os sentidos do abolicionismo penal na realidade …
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS
CURSO DE SERVIÇO SOCIAL
OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE
BRASILEIRA: racismo estrutural e perspectivas do sistema penal.
NATAL/RN
2021
MARIANE JOYCE FERREIRA SARAIVA
OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA: racismo
estrutural e perspectivas do sistema penal.
Monografia apresentada ao curso de
graduação em Serviço Social, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Serviço Social.
Orientadora: Profa. Dra. Tassia Rejane
Monte dos Santos
NATAL/RN
2021
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro Ciências Sociais
Aplicadas – CCSA
Elaborado por Eliane Leal Duarte - CRB-15/355
SARAIVA, Mariane Joyce Ferreira.
Os sentidos do abolicionismo penal na realidade brasileira: racismo
estrutural e perspectivas do sistema penal / Mariane Joyce Ferreira Saraiva. -
2021.
64f.: il.
Monografia (Graduação em Serviço Social) - Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Centro de Ciências Sociais Aplicadas, Departamento de
Serviço Social. Natal, RN, 2021.
Orientadora: Profa. Dra. Tassia Rejane Monte dos Santos.
1. Abolicionismo penal - Monografia. 2. Sistema penal - Monografia. 3.
Encarceramento - Monografia. 4. Criminologia Crítica - Monografia. 5.
Racismo - Monografia. I. Santos, Tassia Rejane Monte dos. II. Universidade
Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.
RN/UF/Biblioteca CCSA CDU 343.81
MARIANE JOYCE FERREIRA SARAIVA
OS SENTIDOS DO ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA: racismo
estrutural e perspectivas do sistema penal.
Monografia apresentada ao curso de graduação
em Serviço Social, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, como requisito parcial à
obtenção do título de Bacharel em Serviço
Social.
Aprovada em: 09/09/2021
BANCA EXAMINADORA
______________________________________
Profa. Dra. Tassia Rejane Monte dos Santos
Orientadora
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
______________________________________
Profa. Dra. Rayane Noronha Oliveira
Membro Interno
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
______________________________________
Profa. Dra. Janaiky Pereira De Almeida
Membro Interno
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo geral discutir o abolicionismo penal como uma
estratégia política fundamental na luta contra a barbárie estrutural do capitalismo maduro,
especialmente na tradição genocida presente nas realidades periféricas, como o Brasil. O
sistema penal brasileiro possui nuances contraditórias na sua concepção sócio-jurídica, que
reproduz na sua legitimação social aspectos da desigualdade e da violência estrutural e
institucional. Dessa forma, este trabalho faz uma crítica ao sistema penal brasileiro, ao tratar
sobre os seus mecanismos de seletividade, punição e genocídio frente às classes trabalhadoras
e subalternas, bem como identifica os princípios baseados na ideologia racista nas instituições
hegemônicas. Além da crítica ao sistema penal, possui como intuito realizar uma breve
discussão sobre a criminologia, traçando um viés crítico, com a introdução do marxismo e a
necessidade de tratar o racismo como uma discussão primária ao debate de criminologia crítica
brasileira. Tratando ainda da criminologia crítica, é enfatizado a luta abolicionista apresentando
algumas formas de estratégias de alguns pensadores e autores do abolicionismo penal.
Palavras-chave: Abolicionismo penal, sistema penal, encarceramento, criminologia
crítica, racismo.
ABSTRACT
This work has as main objective to discuss the penal abolitionism as a key political
strategy in the fight against structural barbarism of mature capitalism, especially in the
genocidal tradition present in peripheral realities, such as Brazil. The Brazilian penal system,
has conflicting nuances in their socio-legal conception, which reproduces on their social
legitimacy aspects of inequality and structural and institutional violence. Thus, the document
criticizes the Brazilian penal system, dealing with their mechanisms of selectivity, punishment
and genocide against the working and subaltern classes, as well identifying the principles based
on racist ideology in the hegemonic institutions. In addition to the criticism of the penal system,
it’s intended to carry out a brief discussion on criminology, outlining a critical bias, with the
introduction of Marxism and the need to treat racism as a primary discussion in the Brazilian
critical criminology debate. Still dealing with the critical criminology, is emphasized the
abolitionist fight, presenting some forms of strategies of some authors of penal abolitionism.
Keywords: Penal abolitionism, penal system, incarceration, critical criminology,
racism.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................. 8
2. ASPECTOS HISTÓRICOS DO SISTEMA PENAL NA REALIDADE
BRASILEIRA ......................................................................................................................... 11
2.1 RACISMO ESTRUTURAL E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL................................ 11
2.2 O SISTEMA PENAL BRASILEIRO E A REPRODUÇÃO DA VIOLÊNCIA ESTRUTURAL .. 14
2.3 A VIOLÊNCIA COMO POTÊNCIA IDEOLÓGICA E ECONÔMICA ............................... 25
3. A CRIMINOLOGIA COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO .......... 35
3.1 A CRIMINOLOGIA COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL ............................................ 35
3.2 A CRIMINOLOGIA NA DOMINAÇÃO PERIFÉRICA.......................................................... 38
3.3 BREVE DISCUSSÃO SOBRE A CRIMINOLOGIA BRASILEIRA ........................................... 41
4. O ABOLICIONISMO PENAL NA TRADIÇÃO DAS LUTAS SOCIAIS
ANTICAPITALISTAS ........................................................................................................... 45
4.1 ABOLICIONISMO PENAL: ASPECTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS .................................... 45
4.2 PERSPECTIVAS POLÍTICAS DAS ESTRATÉGIAS ABOLICIONISTAS .................................. 49
4.3 O ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA ............................................... 55
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................... 60
6. REFERÊNCIAS ................................................................................................... 62
8
1. INTRODUÇÃO
O presente documento consiste em um trabalho de conclusão de curso como requisito
parcial exigido para obtenção do Título de Bacharel em Serviço Social na Universidade Federal
do Rio Grande do Norte. Trata-se de um trabalho que possui como temática central tratar o
abolicionismo penal como uma forma de intervenção ao sistema penal brasileiro e suas
estruturas de opressão. O abolicionismo penal ganha potência na década de 1970, juntamente
com os movimentos antiprisionais. É um movimento que precisa ser mais amplamente discutido
e democratizado, para que se tenha o entendimento de que o sistema penal não é o caminho que
irá nos trazer segurança e que sua atuação advém de interesses que nada se relacionam com a
segurança social. Dessa forma, apresenta-se o movimento abolicionista penal como forma mais
incisiva de intervenção ao sistema penal brasileiro, que historicamente até sua presente prática
possui objetivos de criminalizar e matar determinados corpos, além de ser um sistema movido
pela engrenagem racista.
Para a construção do documento foi realizada uma pesquisa bibliográfica usando a
metodologia de revisão bibliográfica da fundamentação teórica do abolicionismo penal. Foi
desempenhada através de pesquisas bibliográficas de livros, teses, publicações de revistas e
artigos que fazem uma análise crítica do movimento abolicionista penal e suas práticas diante
do sistema penal. Além de ter usado dados quantitativos para fundamentar as análises
qualitativas realizadas em pontos julgados necessários. A seleção dos autores foi baseada
principalmente com foco em autores e autoras brasileiras e que trouxessem a realidade brasileira
de forma crítica. Além, de protagonismo brasileiro, foi necessário a escolha de alguns nomes
clássicos do abolicionismo penal internacional, para fortalecer a linha de pensamentos exposta
no presente trabalho.
A escolha da temática vem de uma aproximação ao longo da graduação, influenciada
principalmente por espaços de estudos e debates em que me inseri ao longo do processo
formativo. Após vir de um processo de pesquisa sobre criminalização da pobreza no
capitalismo, o meu primeiro contato direto com o abolicionismo penal foi através de um estudo
sobre as obras da Angela Davis. Após esses estudos, decido me aprofundar um pouco mais na
temática abolicionista, principalmente com o intuito de conhecer autoras e autores brasileiros
que tratassem do abolicionismo penal na realidade brasileira. Esse documento possui os meus
primeiros contatos com a temática, e é um trabalho com questões básicas para entender o
9
abolicionismo penal em âmbito brasileiro e para que deseja ter o primeiro contato com a
temática.
O documento se organiza em três capítulos, divididos em subtópicos. Possui como
objetivo apresentar o movimento abolicionista penal e o quão é uma luta urgente e necessária
para os grupos que são diretamente vítimas das reais atribuições do sistema penal brasileiro.
Como também uma temática sedenta de mais discussões na academia e nos espaços de
educação popular.
O primeiro capítulo aborda uma breve discussão do racismo estrutural brasileiro e seu
modo de operar de forma velada através do mito da democracia racial. Trabalha o contexto
sócio-histórico do sistema penal brasileiro em sua fase de Colônia, Império, República e
contemporaneidade em contexto de ascensão do neoliberalismo, para sedimentar e explanar as
origens e manutenção racista e de contenção social de povos que historicamente não tiveram
efetivamente integração social e seguem sendo alvos de criminalização e punição. É feito um
debate sobre as formas de genocídio da contemporaneidade, explicitando que não é apenas o
ato de matar diretamente que se enquadra como genocídio, como também várias outras formas
de violações de direitos que determina a degradação e a morte lenta dos indivíduos. Nesse
debate de variadas formas de genocídio é dado ênfase ao contexto em que o trabalho foi
produzido de crise sanitária em decorrência da COVID-19, onde indivíduos de territórios
periféricos, com dificuldade de acesso aos direitos vitais, a exemplo de saúde e estruturas de
isolamento social e condições de higienização, como também indivíduos que estão inseridos
em trabalhos precarizados e principalmente os corpos que se encontram encarcerados em
estruturas precarizadas e submetidos a condições subumanas. Além de refletir no processo de
negligência em que o governo neoliberal, negacionista bolsonarista1 está lidando com a
pandemia, negligenciando, mais intensamente os indivíduos que estão inseridos no cárcere do
sistema penal em condições subumanas, criminalizados e que não possuem a mínima atenção
da sociedade, e está diante de um governo federal que defende o punitivismo, o armamentismo
1 O bolsonarismo, tem como prática a omissão de fatos históricos, afirmativas históricas que não possui
nenhuma comprovação documental, fazendo distorções factuais, criando e sedimento ideologicamente
uma versão dos fatos em favorecimento de um ideal ditatorial e opressor abertamente defendido pela
figura do Bolsonaro e seus apoiadores. Em contexto pandêmico, o mesmo tem negado fatos científicos,
alimentando um movimento antivacinas.
10
da população, e a massificação de uma falsa moralidade do “cidadãos de bem” e da
criminalização da pobreza.
O segundo capítulo possui como objetivo discutir a criminologia como um instrumento
técnico, cuja fundamentação teórica positivista tende à função ideológica de criminalizar
determinados indivíduos de acordo com os interesses das classes dominantes. O capítulo traz
uma breve discussão da inserção de correntes filosóficas que modelam os caminhos da
criminologia positiva e suas diferentes abordagens acerca da criminalização, além de
apresentar, como contraponto, a discussão da criminologia crítica, através do pensamento
marxista. Em contexto histórico do sistema penal brasileiro é discutido que a criminologia
crítica brasileira se referencia não somente à luta de classes como objeto principal, mas também
a questão de raça como fator primário para tratar a criminalização no Brasil.
Já no terceiro capítulo é feita uma abordagem acerca do movimento abolicionista
penal, onde busquei desnudar os estereótipos do senso comum sobre o abolicionismo penal ser
apenas uma forma imediata de acabar com todas as prisões e com o controle social, onde nossa
realidade voltaria ao "olho por olho, dente por dente". O capítulo apresenta como o movimento
abolicionista é e deve perpassar por todos os segmentos de lutas anticapitalistas e de garantia
de direitos e igualdades; além de trazer estratégias de intervenções concretas que estão
diretamente ligadas ao movimento abolicionista diante da realidade do racismo estrutural e
sistema penal brasileiro.
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2. ASPECTOS HISTÓRICOS DO SISTEMA PENAL NA REALIDADE
BRASILEIRA
2.1 RACISMO ESTRUTURAL E O MITO DA DEMOCRACIA RACIAL
Em meados da década de 20, surge e firma-se no Brasil um dos mecanismos
ideológicos mais bem-sucedidos no processo de resguardo ao racismo estrutural-institucional.
Trata-se do ideário da democracia racial, que fora difundida para o povo brasileiro de uma
forma profundamente competente.
É pregada a imagem de uma nação que goza da harmonia entre povos, onde
preconceitos não existem e impera a pluralidade cultural. Tal retrato, entretanto, nada mais é
que uma concepção de elites brancas, criada para atender benefícios e interesses próprios, afim
de ocultar a face do racismo e do genocídio negro que baseou a construção do país.
O mito da democracia racial, além de ocasionar o apagamento da história cruel
e desumana do povo negro escravizado, também deslegitima as populações negras,
consubstanciando a realidade desse povo apenas a uma condição de classe, suprimindo a
histórica circunstância da negação aos povos afro-brasileiros à integração social.
Nesse sentido, Nascimento (2019, p. 6) relata alguns efeitos dessa “democracia
racial”:
Com efeito essa destruição coletiva tem conseguido se ocultar da observação
mundial pelo disfarce de uma ideologia de utopia racial denominada
"Democracia racial", cuja técnica e estratégia têm conseguido, em parte,
confundir o povo afro-brasileiro, dopando-o, entorpecendo-o interiormente;
tal ideologia resulta para o negro num estado de frustração pois que Ihe barra
qualquer possibilidade de auto-afirmação com integridade, identidade e
orgulho.
A prática de reduzir os problemas do país às questões de classes é um equívoco, e tal
ato resta evidenciado no fato de que, dentre as populações em situação de vulnerabilidade
social, inseridas em subempregos e/ou vivendo em favelas e condições precárias nas zonas
rurais, afro-brasileiros permanecem sendo parte majoritária.
No entanto, como é possível uma discussão avançada da realidade material que
o racismo incide, e como trazer esta discussão para uma população inteiramente educada a
acreditar que vive em um país de harmonia entre todas as raças? Velar este racismo e negar o
caráter racial que integra cada expressão da questão racial tem sido uma prática eficaz para
deslegitimar qualquer luta e denúncia em âmbito racial, além de individualizar o racismo, como
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se este fosse algo pertencente à alguns poucos indivíduos em particular, não representando a
nação e o Estado.
Contudo, é justamente nesta esfera de “inexistência” do racismo que o sistema
penal brasileiro encontra os meios necessários para o domínio e criminalização de seletos
grupos, vítimas do capitalismo periférico comandado por uma elite hegemonicamente branca.
É um processo que expõe o trajeto histórico e de continuidade à um sistema escravocrata de
dominação.
Sobre o apagamento da história de exploração dos negros africanos no processo
econômico do Brasil, e singularização do racismo em nossa sociedade:
Assim, como donos do passado, num monopólio autoral em que não cabe a
versão dos dominados, foi possível ao segmento branco forjar os processos de
naturalização que fariam da interiorização da supremacia branca e da
subordinação negra o grande legado do nosso racismo. Diante de tal narrativa
restou aos negros somente o presente. Um presente sem causas, só de
conseqüências. E como já não fosse permitido empregar o vocabulário da raça,
agora subsumido na classe, o projeto da democracia racial acabou por
obstaculizar qualquer tentativa de recuperação da trajetória histórica de todo
um segmento. (FLAUZINA, 2006, p. 38)
Portanto, é necessário pensar em todo o processo de escravização e tráfico dos povos
negros africanos que foram arrancados de suas terras de forma brutal, vítimas de extermínio,
tortura, estupros. Não obstante, ao chegar nas colônias foram obrigados a viver em condições
subumanas, e à trabalho compulsório, tratados como animais. Neste sentido, ao analisarmos o
Brasil Colonial, é nítido que o processo de escravidão aos negros foi um dos mais violentos e
demorados, e que até mesmo o processo de abolição carregava em si outros objetivos, como a
retirada de responsabilidade dos senhores de escravos sobre a população negra. O fato é que o
país não os proporcionou uma liberdade plena, haja vista a falta de integração social para este
povo negro, que apenas passaram a ser criminalizados e dominados no âmbito público.
É disseminada a ideia de uma “democracia racial”, porém, esta coexiste com um
aparato de instituições, cujos instrumentos são pautados no racismo. Na realidade dos afro-
brasileiros, há as mais diversas formas de genocídio.
Diante desse processo de constituição do Brasil, é justa a equiparação com as barbáries
do regime nazista na Alemanha; porém, não possui o mesmo choque e comoção na consciência
do mundo. A proposta de equiparar dois grandes momentos de horror na história da humanidade
não é com o intuito de diminuir um sobre o outro, apenas de afirmar que um desses momentos
deveria ter a mesma comoção que o outro, é como se o “mal” que caiu sobre os povos africanos
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e suas realidades em decorrência desse processo brutal fosse secundarizado. A realidade dos
povos afro-brasileiros no Brasil segue submetidos a um país profundamente racista e com
práticas de extermínio dessa população. Nascimento (2019, p. 48) comenta sobre a
“emancipação que também significou mais violência e mais genocídio:
Se a escravidão significou crime hediondo contra cerca de 300 milhões de
africanos, a maneira como os africanos foram "emancipados" em nosso país
não ficou atrás como prática de genocídio cruel. Na verdade, aboliram
qualquer responsabilidade dos senhores para com a massa escrava; uma
perfeita transação realizada por brancos, pelos brancos e para benefício dos
brancos.
Dessa forma, esta dita “democracia racial” proporciona que a supremacia branca
do Brasil se materialize através de uma violência oculta, insidiosa e difusa, mas de alto teor
destrutivo. Dessa forma, apesar de distinguir-se de alguns outros países, cujas legislações em
determinados momentos históricos deram legitimidade à tais fenômenos – à exemplo de
Estados Unidos, com as conhecidas leis de Jim Crow, e o Apartheid na África do Sul – os
resultados dessa supremacia branca é o que expõe a periculosidade (NASCIMENTO, 2019).
Pensar o racismo apenas como uma algo ideológico não seria uma contemplação
suficiente para a complexidade de como o racismo de insere na realidade brasileira, que estar
para além de uma concepção individualista da consciência. Porém, ao pensar o racismo como
algo estrutural da sociedade e das instituições que a compõe, veremos que a ideologia do
racismo atua no inconsciente, pois mesmo que você seja um indivíduo dotado de consciência,
a sociabilidade em que estamos inseridos, seja historicamente, politicamente, culturalmente nos
insere em uma organização racista, porém somos inconscientes trabalhados com a naturalização
do racismo velado nessa organização.
Somos o tempo todo alimentados com uma estrutura racista em todos os âmbitos, no
sistema educacional sem representatividade negras, estudando autores brancos, contando a
história dos brancos por professores brancos, como também nos programas televisivos, em
âmbito cultural e as instituições da sociedade, com ênfase no sistema de justiça, onde os lugares
atribuídos as pessoas negras são de lugares de pouca valorização social, econômica, moral e
estigmatizada. Então sim, o racismo é sim ideológico, temos essa visão clara ao pensar em
negros em uma posição de opressor, a exemplo de policiais negros, oprimindo outros indivíduos
negros. Porém, é uma ideologia que alimenta o inconsciente e principalmente materializada
através de “práticas sociais concretas” (ALMEIDA, 2019). A partir do momento em que as
instituições usam a ideologia racista e sedimenta o imaginário da sociedade essa linha de
14
pensamento “natural”, logo todos estão submetidos a esse tipo de organização social ideológica
e estrutural sejam brancos e negros.
2.2 O SISTEMA PENAL BRASILEIRO E A REPRODUÇÃO DA VIOLÊNCIA
ESTRUTURAL
O projeto de punição e opressão do Brasil começa historicamente no período colonial.
As punições nascem e perduram por vários períodos em âmbito privado, ou seja, entre os
senhores e seus escravos.
As Ordenações Filipinas2 podem ser consideradas as primeiras implementações de
junção de programações criminalizantes em esfera pública no contexto colonial, e, mesmo com
esse aparato público, as punições continuaram sendo de domínio privado dos senhores
escravocratas e os corpos negros. No entanto, o novo mecanismo público demonstrou-se uma
eficaz junção com o privado.
Para Flauzina (2006), dois pontos a serem ressaltados desse período de conciliação
entre aparatos punitivos público e privado é que o novo aparelho público foi muito útil para
conter os corpos em dominação, evitando e atuando principalmente nas fugas ou intervindo em
qualquer tipo de organização de resistência do povo negro, como a perseguição e destruição
dos quilombos. Outro ponto importante à se ressaltar, foi a implantação do medo e o poder de
desarticular qualquer organização ou esperança de mudança de realidade, fazendo com que a
população escravizada naturalizasse a condição de submissão à vida de servidão e punição. É
um aparato que se alimenta e dissemina o discurso racista, logo, influenciava indivíduos à
agirem contra seu próprio grupo.
Esta imposição do medo tinha como principal objetivo manter a ordem e a manutenção
do poder dos senhores de engenho, o controle e a submissão dos corpos negros escravizados,
da terra e de continuidade ao sistema de exploração escravocrata (FLAUZINA, 2006).
2 “As Ordenações eram compilações de normas editadas pela Coroa Portuguesa, reunidas sem maior
coerência nem lógica. Seus nomes derivavam dos monarcas que as editavam. As últimas foram as
Ordenações Filipinas ou Código Filipino, de 1603, de Don Filipe I, que substituíram as Manuelinas e
Afonsinas.” VIEIRA, HUGO. 2. As Ordenações Filipinas: o DNA do Brasil. Revista dos Tribunais, [S.
l.], v. RT vol.958 (Agosto 2015), p. 1-7, 16 fev. 2017, p. 2
15
O período imperialista do Brasil não difere quase nada do período colonial referente a
contenção da população negra. Muito pelo contrário, se comparado aos passos do período
colonialista, o imperialismo traz uma resposta bem mais opressora e aprimorada no que
concerne a exclusão da população negra de qualquer dignidade humana e social. Neste
contexto, houve um temor crescente e generalizado por parte da elite com relação a
possibilidade de ocorrer grandes revoltas e revoluções, que extinguiriam a dominação
hegemônica branca e o sistema de mão de obra escrava.
Esta preocupação abundava em decorrência dos centros urbanos naquele período
serem ocupados e movimentados majoritariamente por negros. Segundo Flauzina (2006, p. 56):
O Rio de Janeiro era, dessa maneira, uma cidade africana. A mesma dinâmica
poderia ser observada em praticamente todos os outros aglomerados urbanos
do país. No dizer de Lélia Gonzalez, “a rasteira está dada, o Brasil está e é
africanizado”. Uma massa negra desgovernada, vivendo à margem da tutela,
com possibilidade de se articular sem maiores resistências, poderia representar
não só o fim de um sistema de exploração de mão-de-obra, mas o fim da
própria hegemonia branca. Assim, era preciso apertar os freios, estreitar ainda
mais o controle sobre os escravizados, não deixando escapar os libertos à
engenharia do controle. É na administração desse momento explosivo da
história que o Império concentra todas as suas energias.
A maior demanda e depósito de forças do sistema imperialista era controlar ao máximo
possível os corpos negros, sejam eles escravizados ou “livres”. Desta forma, a maneira de
controle e estratégia mais eficaz encontrada foi criar um aparato de leis que controlasse qualquer
movimento da população negra, à exemplo da Lei nº 1.420 de 1883, que punia e encarcerava
em situações em que um negro estivesse trafegando pelas ruas a uma certa hora sem nenhum
tipo de autorização do seu senhor (FLAUZINA, 2006).
No entanto, a lei mais emblemática de controle de corpos e privação de qualquer
inserção social é a lei da Vadiagem.3 O ato de criminalizar a situação de vadiar é um dos feitos
que mais transparece o controle e a perseguição do corpo negro, a falta de interesse de uma
inserção social dessa população e a presença estampada do racismo. Os corpos negros que
estavam escravizados sofriam suas punições e controle através do âmbito privado e os corpos
negros “livres” apenas entre as aspas, pois nunca tiveram de fato uma liberdade concreta,
estavam agora submetidos as punições e controle na tutela do Estado.
3 Criminalizada pelo art. 295 do Código Criminal do Império e por várias posturas e leis municipais
16
É nesse mesmo período, portanto, que começa a engatinhar o autoritarismo e
vigilantismo policial, que hoje conhecemos e convivemos (FLAUZINA, 2006). Por sua vez,
Nascimento (2006, p. 14) comenta sobre o temor da elite em ver uma revolta afro-brasileira
ocorrer e a necessidade de suprimir ao máximo qualquer emancipação desses povos:
Uma possível tomada do poder pelos negros foi sempre um pesadelo
perturbando o sono tranquilo das classes dominantes e governantes do país,
durante todo o decorrer de nossa história. Por isso tornou-se um aspecto básico
na concepção de uma técnica e de uma estratégia para o esmagamento e
desaparecimento completo do negro do mapa demográfico.
Ademais, é de suma importância salientar que no mesmo período houve a grande
necessidade de embranquecimento da nação, sob a aparente justificativa de busca de mão-de-
obra qualificada. Nessa conjuntura, o Brasil dispôs de um grande contingente de trabalhadores
europeus imigrando para os territórios de maiores produções agrícolas no país, e que acabaram
por ocupar trabalhos que antes eram feitos por mão-de-obra escrava. Concomitante a isto, agora
há uma população negra, de ex-escravos, rejeitada a ocupar um trabalho assalariado.
Logo, diante da negativa da população negra à inserção na classe trabalhadora, a
afirmativa de que seria necessário mão-de-obra qualificada demonstra não possuir o mínimo de
coerência, haja vista que esta mesma população negra foi a principal responsável na edificação
da colônia e futuro país. Havia-se, na realidade, o pensamento de que o embranquecimento
predominaria no processo de miscigenação dos povos. Nascimento (2019, p. 10) relata uma
lembrança pessoal muito nítida da chegada da mão de obra europeia, tão bem recebidos e
providos de vários incentivos, mesmo que em outro período da história de nosso país:
Tempos atrás, durante o transcurso de minha infância e adolescência, comecei
a testemunhar o fenômeno que vem ocorrendo desde os fins do século XIX:
ou seja, a invasão do pais por levas e levas de trabalhadores brancos vindos
da Europa, com apoio de seus governos de origem, além da ajuda financeira e
outras facilidades dispensadas pelos governos do Brasil. Ao mesmo tempo
que isto acontecia, a enorme força de trabalho negra era rejeitada, ontem como
hoje, por aqueles que corporificam o “sistema econômico”.
A busca pelo embranquecimento de afro-brasileiros é algo presente na vida dessa
população, mesmo nos dias atuais, sob o argumento de que o embranquecimento deles, geraria
uma ascensão em relação as condições socioeconômicas, maiores oportunidades na inserção de
bons empregos, boa educação e maior aprovação social; isto, pois supostamente a capacidade
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de ser bem-sucedido socioeconomicamente estaria diretamente atrelada ao grau de semelhança
do individuo com relação aos aspectos do fenótipo branco europeu.
Tal argumentação é utilizada por inúmeros nomes consideráveis, incluindo alguns que
são conhecidos por seus posicionamentos “progressistas” e com ideologias de esquerda – à
exemplo do escritor Caio Prado Jr., que tenta justificar o “atraso” dos estados do Norte e
Nordeste (como Alagoas, Bahia, Maranhão, Pernambuco e Sergipe) em relação a qualificação
de mão-de-obra e tecnologias, pelo motivo destes possuírem um maior número de afro-
brasileiros e uma preservação maior da cultura africana (NASCIMENTO, 2019).
Não obstante, existem ainda terceiros que fazem uso do ideário da “democracia racial”
para restringir o problema social apenas às questões de classes e, ao mesmo tempo, atribui um
discurso racista usando a superioridade de classe como motivo de desenvolvimento econômico
e social de certas regiões do país:
Opostamente, a área sulista, principalmente os Estados de São Paulo, Rio de
Janeiro, e em menor escala Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul,
formam a área mais “avançada”. Por quê? Porque área mais urbanizada,
industrializada, comercializada, mecanizada, impessoalizada e plasticizada
mimeticamente sob modelos europeus e dos Estados Unidos; tais modelos não
se restringem ao plano da economia, crescentemente englobam estilos de vida
e visão do mundo. Mais importante ainda: o sul foi inundado no decorrer deste
século por um influxo maciço de imigrantes branco-europeus, em grande parte
assistidos financeiramente pelo Estado, com o objetivo explícito de
embranquecer a população brasileira; estes são os que Prado Jr.
manifestamente considera ‘sensivelmente superiores’ em stock e cultura à
‘preexistente massa da população trabalhadora” isto é, os africanos
escravizados e seus descendentes. O despudorado fundamento "científico’ de
cunho branco-supremacista contido nessa definição é uma amostra
representativa da mentalidade ‘progressista’ da esquerda brasileira, em sua
adesão à utópica "democracia racial" e unidade mundial dos trabalhadores
(NASCIMENTO, 2019, p. 159-160).
Por outro lado, além da necessidade escancaradamente racista de embranquecer a
população brasileira, andava a passos muito distantes o projeto de abolição da escravatura,
sendo o Brasil o último país a aderi-la por meio de um processo liderado pela elite branca
“progressista”, intrinsecamente íntima aos senhores de escravo (FLAUZINA, 2006).
Dessa forma, apesar de não podermos desconsiderar tal fato como uma conquista, é
necessário avançar nessa discussão e não apenas estacionar na romantização da abolição. Por
mais que houvesse uma resistência e uma organização pressionando a abolição constituída pelo
povo negro, o ato de abolir a escravatura possuía intenções intimamente ligadas à produção
capitalista e as novas demandas da classe burguesa dominante.
18
Nascimento (2019, p. 49) comenta sobre a motivação principal em que se deu essa
abolição de forma retrograda:
Qual teria sido, então, a natureza daquela retrógrada ‘emancipação’, decretada
pela classe dirigente, sem qualquer iclentificação com as aspirações dos
africanos escravizados? Com efeito, tudo que diz respeito à nossa abolição
oficial, quer dizer, puramente formal, está umbilicalmente vinculado à
revolução industrial inglesa; a emergência da produção baseada no trabalho
“livre” necessitava de mercados para sua manufatura industrial.
A existência desses imigrantes europeus não significou que eles tiveram grande
participação na edificação econômica do país. Muito pelo contrário, o mérito desse trabalho foi
sistematicamente a produção em benefício individual da elite branca do país (NASCIMENTO,
2019).
Ademais, não bastando tais intervenções exaltadamente racistas do sistema
imperialista, a guerra do Paraguai serviu claramente como uma forma de extermínio do povo
negro, que foi colocado na linha de frente das batalhas:
Por fim, dentro da pauta de extermínio que subsidia o processo de arianização
do Brasil, a guerra do Paraguai que se inicia em 1864 e se arrasta até 1870,
deve ser levada em conta. De 1860 a 1872 a população negra tem uma redução
em um milhão de pessoas em termos absolutos. As mortes causadas por uma
guerra enxergada como “a solução final para o problema do negro”, utilizado
nas frentes de batalha, também causou muitas mortes pela sobrecarga dos
escravizados no aumento na quantidade de trabalho, pelas doenças
contagiosas, dentre outros (FLAUZINA, 2006).
No sistema republicano não há tantas novidades no que se refere ao controle social de
povos negros. Há novidades no que se refere ao um aparato mais estratégico, como a utilização
efetiva da democracia racial; o que era publicamente racista, agora é um racismo longe dos
holofotes. Flauzina (2006, p. 67) cita dois períodos da república de postura no controle social:
Para entendermos essa nova sistemática em toda sua complexidade e
enxergarmos esse momento de virada nas estratégias punitivas, temos de
observar esse sistema penal em dois momentos de sua maturação. Uma, no
período pós-abolição mais imediato, e outra, a partir da sofisticação que se
percebe com os acontecimentos da década de 30 e a promulgação do Código
de 1940.
Nesse período, havia um cenário de trabalhadores imigrantes concentrados nos campos
que também eram explorados no trabalho rural, e nos centros urbanos uma concentração de
negros libertos. O controle social agora precisava lidar com essas novas demandas. Primeiro os
senhores de produção agrícola tentando conter as indignações e reivindicações da massa
trabalhadora europeia, evitando que houvessem grandes articulações trabalhistas. Já a
19
população negra, sofria uma perseguição e contenção meramente racista, com o intuito de
higienizar os grandes centros urbanos.
Em todas as instituições que tinham como foco o controle social, à exemplo de
manicômios, asilos, penitenciárias, abrigos de menores e a própria instituição polícia, foi
absorvido as teorias da criminologia positivista expressamente sedimentada no racismo
(FLAUZINA, 2006). Ou seja, a chegada da República não mudou a conservação de interesses
da elite do país e a conduta de extermínio, perseguição e contenção de corpos negros baseados
no racismo.
Atendendo aos interesses estratégicos da elite hegemonicamente branca em suprimir
a integração social da população negra, foi arraigado o discurso da democracia racial. Sob a
premissa de que o racismo não existe e por meio de um já mencionado processo de apagamento
histórico de todo o extermínio e opressão, além da individualização da prática do racismo, o
país se torna oficialmente um lugar de harmonia entre raças, como se o passado nunca tivesse
existido.
Forma-se, portanto, o cenário ideal que permite a redução dos problemas enfrentados
pela população negra à uma posição restrita a questões de classe social, haja vista que em tese,
a discussão sobre raça não é mais cabível em um país onde prevalece a democracia racial. Por
trás desse paraíso, o sistema penal – juntamente de todos os seus aparatos – segue agindo e
servindo aos intuitos para o qual foi criado: contenção, criminalização e extermínio dos corpos
negros. E seguimos nesse mesmo formato desde então.
A despeito da Constituição Federal de 1988, que pressupõe a ideia de um Brasil
redemocratizado, temos um país com medidas mais incisivas de punição e encarceramento.
Dessa forma, ao mesmo tempo em que havia a ampliação do direito coletivo, havia-se também
um aumento na violação dos direitos individuais de alguns segmentos específicos.
Para concretizar tais violações, esse período é marcado pela ampliação do número de
condutas criminalizantes, por ampliação no tempo de pena para diversos crimes, e também pela
contenção de direito a progressão de pena e o direito a liberdade condicional em determinadas
situações. Em decorrência dessas novas diretrizes, tal conjuntura acabou por proporcionar uma
grande ampliação e maiores investimentos no sistema carcerário, cujo foco atinha-se
especialmente na expansão física dos espaços, à fim de comportar cada vez mais encarcerados
(ALVEZ e CRUZ, 2021).
A contemporaneidade e a ascensão do neoliberalismo em um país periférico como o
Brasil, produz concentração de renda, regressão em políticas públicas sociais e, em decorrência
20
desses fatores, impulsiona o contingente de população submetida a pobreza (FLAUZINA,
2006). É nesse contexto de avanço do capitalismo em terras periféricas, que se nutre uma elite
que não abre mão da concentração de riquezas e do aparato do sistema penal para manter a
estabilidade e poder, criminalizando assim, as massas subalternas como o exército industrial de
reserva, grupos raciais específicos, ou também aqueles que não possuem serventia para
produção.
Alves e Cruz (2021, p. 25) trazem um trecho em seu artigo que retrata empiricamente
as medidas tomada pelo Brasil em ampliar a criminalização de condutas que antes não eram
consideradas crimes:
Ao longo das últimas duas décadas o Brasil tem adotado o recrudescimento
penal como principal meio para reprimir a dita criminalidade. De acordo com
a pesquisa realizada por Marcelo Campos (2010), 52,6% das leis legisladas
pelo Executivo, no período de 1989 a 2006, referem-se a leis mais punitivas,
entende-se por esse termo o aumento da punição comparada a lei anterior.
Ademais, 45% se enquadram na criminalização de novas condutas, ou seja,
condutas que antes não eram criminalizadas passaram a ser. Isso parece
sinalizar um caráter mais incisivo do poder público nesse universo punitivo.
O sistema penal segue fazendo esse serviço sórdido, com muita eficiência e sob uso
do véu da democracia racial. Todas as instituições do sistema penal seguem tendo como base a
criminologia positivista, e, nessa condição, temos o papel essencial dos veículos midiáticos que
constroem no imaginário das massas populares a imagem do indivíduo de bem e o infrator do
mal, que a qualquer momento pode violar sua propriedade privada. Está posto então os estigmas
e, por conseguinte, a seletividade desse sistema e o controle social exercido sobre determinados
grupos.
Segundo Flauzina (2006, p. 87):
É justamente orientadas por esse tipo de pressuposto que as agências
da criminalização secundária vão formatando a criminalidade numa seleção
que, se discursivamente está posta para o controle de uma pobreza
generalizada, segue, na prática, atuando de acordo com os postulados de
cunho racista que a preside. Nesse tocante, atentando para a movimentação do
aparato policial percebemos uma disposição inequívoca em recrutar os
indivíduos negros para as fileiras da punição. A vigilância ostensiva
empreendida nos bairros populares de maioria negra é um primeiro indício
dessa tendência.
Nesse período de neoliberalismo em um país periférico como o Brasil, não podemos
deixar de citar o grande empreendimento lucrativo que o sistema penal tem se tornado. Tal
processo é mais notório e prossegue de maneira mais avançada nos Estados Unidos, ao qual
denominamos de complexo industrial prisional.
21
Porém, o Brasil também tem avançado nesse empreendimento lucrativo. A política
contra as drogas, em grande acentuação em nosso país, pode ser analisada como uma forma de
justificar a intensificação na intervenção e investimentos nas instituições do sistema penal.
Segue números da evolução das despesas per capta com a função segurança pública entre os
anos de 2011 e 2020:
Tabela 1 – Evolução das despesas per capita com a Função Segurança Pública, por região
Em R$ constantes de 2020
Regiões 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Região Norte 388,21 395,93 403,32 438,32 448,59 409,65
Região Nordeste
267,59
297,93
274,80
289,97
278,09
292,45
Região Sudeste
389,69
370,43
399,61
424,85
436,15
403,49
Região Sul 284,09 303,45 323,79 353,94 357,03 363,90
Região Centro-
Oeste 398,19
419,45
403,21
455,32
498,52
498,90
Regiões 2017 2018 2019 2020 Variação % Média
Região Norte 416,04 447,78 468,72 469,35 20,90 428,59
Região Nordeste 293,37 307,78 313,48 309,46 15,65 292,49
Região Sudeste 391,62 388,06 375,76 357,05 -8,38 393,67
Região Sul 390,41 384,68 380,24 385,00 35,52 352,65
Região Centro-
Oeste 478,74
496,44
522,75
483,84
21,51
465,53
Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de
Segurança Pública. 2021.
Flauzina (2006, p. 91) comenta sobre essa relação da criminalização do comércio das
drogas ilícitas, como também a criminalização do uso de drogas com a indústria do controle do
crime:
Com a consolidação de um mercado surpreendente, a partir dos anos 70, o
comércio de drogas ilícitas é capaz de movimentar recursos volumosos e,
principalmente, justificar os excessos cometidos no controle dos segmentos
marginalizados. Nesses termos, longe de corresponder à plataforma que a
sustenta, qual seja a persecução dos grandes produtores e comerciantes dos
22
produtos ilícitos, essa é uma atividade que, pela sua grande penetração no
imaginário como atividade altamente reprovável, serve de sustentáculo
ideológico para o avanço do controle penal sobre os alvos efetivos do sistema.
Ainda nesse latente crescimento de empreendimento, a segurança privada tem se
tornado um setor de destaque em nossa economia. A ascensão do complexo industrial prisional,
em pleno capitalismo monopolista e globalizado, sem descrença nenhuma é um dos maiores
motivos em contexto neoliberal para a manutenção do sistema prisional. À respeito do lugar de
destaque aos quais os empreendimentos de segurança privada têm ocupado na economia no
país nos últimos anos, podemos observar que:
Diante desse cenário, os números brasileiros apontam para um setor em plena
expansão, que não parece mesmo contar com qualquer limite à incrementação
de seus investimentos. O mercado de segurança privada que vende uma
espécie de proteção ilusória, mas muito lucrativa, é o maior responsável pelas
altas cifras desse empreendimento no país. De acordo com Luis Mir, em 1999
enquanto vários setores da economia tiveram uma redução em sua margem de
lucros, o aparelho de segurança privada teve um crescimento em torno de 4 a
5% ao ano em seus lucros, que de R$ 6,9 bilhões em 1994, saltaram para R$
14,5 bilhões em 2001 (FLAUZINA, 2006, p. 92).
Mais uma vez, trazendo à exemplo os Estados Unidos – que possui a maior população
carcerária do mundo e um complexo industrial prisional mais evidente. Algumas prisões já não
são gerenciadas pelo setor público, e nestas, empresas privadas assumem o comando da
administração e gestão das instituições, bem como também é comum a presença de corporações
que lucram com a exploração do trabalho de encarcerados e/ou prestam os mais variados
serviços de manutenção.
Em nosso país, além do grande destaque das empresas privadas de segurança, têm-se
uma firme presença de implantação de tecnologias como forma de segurança, a exemplo das
câmeras de reconhecimento facial. Gilmore (2020) comenta o aumento dos recursos para o setor
de segurança:
Portanto, se olharmos mais especificamente para o que aconteceu nos
orçamentos estaduais e municipais, vemos a expansão dos orçamentos
dedicados ao encarceramento em massa, às prisões e à polícia. Vemos não
apenas isso, mas também que nos aparatos sociais que supostamente deveriam
trabalhar para outros fins – educação, saúde e assim por diante -, há um
aumento das funções policiais.
Abaixo temos números da quantidade de vigilantes que possuem vínculo ativo por
regiões do país no ano de 2021. É nítido o quantitativo bem maior na região sudeste, região que
concentra os maiores centros urbanos do país e as maiores favelas:
23
Tabela 2 – Quantidade de vigilantes com vínculos ativos
Brasil, Regiões e Unidades da Federação
Vigilantes
Ns. Absolutos Percentual do total
Especializadas Orgânicas Especializadas Orgânicas
Brasil 502.318 23.790 100,0 100,0
Região Norte 34.068 1.119 6,8 4,7
Acre 1.555 184 0,3 0,8
Amazonas 8.420 162 1,7 0,7
Amapá 1.668 22 0,3 0,1
Pará 14.780 506 2,9 2,1
Rondônia 4.913 176 1,0 0,7
Roraima 1.017 0 0,2 0,0
Tocantins 1.715 69 0,3 0,3
Região Nordeste 98.802 5.362 19,7 22,5
Alagoas 4.409 706 0,9 3,0
Bahia 28.077 736 5,6 3,1
Ceará 16.191 990 3,2 4,2
Maranhão 9.356 195 1,9 0,8
Paraíba 5.782 326 1,2 1,4
Pernambuco 19.181 1.324 3,8 5,6
Piauí 3.944 321 0,8 1,3
Rio Grande do Norte 6.317 589 1,3 2,5
Sergipe 5.545 175 1,1 0,7
Região Sul 75.633 3.019 15,1 12,7
Paraná 24.628 1.133 4,9 4,8
Rio Grande do Sul 30.970 984 6,2 4,1
Santa Catarina 20.035 902 4,0 3,8
Continua
24
Brasil, Regiões e Unidades da Federação
Vigilantes
Ns. Absolutos Percentual do total
Especializadas Orgânicas Especializadas Orgânicas
Brasil 502.318 23.790 100,0 100,0
Região Sudeste 243.633 12.392 48,5 52,1
Espírito Santo 11.437 247 2,3 1,0
Minas Gerais 33.105 1.647 6,6 6,9
Rio de Janeiro 49.295 1.864 9,8 7,8
São Paulo 149.796 8.634 29,8 36,3
Região Centro-Oeste 50.182 1.898 10,0 8,0
Distrito Federal 23.174 373 4,6 1,6
Goiás 14.895 922 3,0 3,9
Mato Grosso do Sul 4.709 293 0,9 1,2
Mato Grosso 7.404 310 1,5 1,3
Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de
Segurança Pública. 2021.
Em seguida, temos o quantitativo de empresas ativas por regiões do país no ano de
2021, e mais uma vez é nítido os números mais expressivos vindo da região sudeste do país:
Tabela 3 – Quantidade de empresas, por tipo
Brasil e Regiões
Especializadas Orgânicas Total
Total (sem curso de
formação) Empresas de
curso de formação
Total (incluindo curso de
formação) Ns. Abs %
Sem curso de formação
Incluindo curso de formação
Ns. Abs
% Ns. Abs
% Ns. Abs
% Ns. Abs
%
Brasil 2.235 100,0 236 2.471 100,0 1.154 100,0 3.389 100,0 3.625 100,0
Norte 185 8,3 24 209 8,5 91 7,9 276 8,1 300 8,3
Nordeste 503 22,5 59 562 22,7 293 25,4 796 23,5 855 23,6
Sul 396 17,7 41 437 17,7 153 13,3 549 16,2 590 16,3
Sudeste 881 39,4 86 967 39,1 516 44,7 1.397 41,2 1.483 40,9
Centro-Oeste 270 12,1 26 296 12,0 101 8,8 371 10,9 397 11,0
Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de
Segurança Pública. 2021.
25
2.3 A VIOLÊNCIA COMO POTÊNCIA IDEOLÓGICA E ECONÔMICA
A população negra está sujeita a várias formas de genocídio. No entanto, é preciso
salientar e termos em mente que este genocídio não se conclui apenas em extermínio direto da
vida, mas pode também se expressar por meio de processos que fazem com que a vida negra
esteja mais sujeita à morte.
Para melhor compreensão, podemos começar pensando na organização geográfica de
todas as nossas cidades e centros urbanos, que historicamente pressionou e isolou a população
negra em áreas marginais aos centros urbanos, sem nenhum tipo de política pública de
habitação. É uma população que está mais sujeita a pobreza e não só se explica essa sujeição
pelo sistema capitalista em território periférico como o nosso, mas principalmente pelo trajeto
histórico de falta de integração social destes, que na prática nunca tiveram sua liberdade
concreta, e cujo controle social – por meio de punições e extermínio – apenas passou do âmbito
privado, para o âmbito público.
Outro grande exemplo de extermínio advém do escasseamento de acesso da população
negra à educação. São muitos os motivos que levam a essa evasão: pobreza extrema à qual são
mais prováveis de estarem submetidos em decorrência da trajetória histórica de exploração, a
falta de representatividade nas escolas – inclusive na falta de disciplinas que tratem sobre a
trajetória do povo negro –, bem como a forma de assimetria social presente no ambiente escolar,
que, assim como o sistema penal, molda um tipo de hierarquização entre os bons e os maus
(FLAUZINA, 2006).
Essa falta de incentivo à inserção da população negra na educação é também uma
estratégia de aumentar as dificuldades dessas pessoas possuírem uma qualificação maior em
busca de uma ascensão financeira. A mesma estratégia vale-se ao fato das escolas estarem
aderindo um modelo de segurança e disciplina que supera o ensino intelectual e crítico,
assemelhando-se com medidas tomadas no sistema prisional (DAVIS, 2019a).
Portanto, é necessário enxergar esta escassez de oportunidades como uma forma
estratégica de apagamento da cultura, da consciência e do conhecimento de sua própria história.
Ao analisarmos, por exemplo, a população negra dos Estados Unidos que em todo o processo
histórico sofreu muito fortemente esta tentativa de apagamento com o intuito de disciplinar e
desarticular qualquer revolta, ao ponto de boa parte não se reconhecer enquanto um grupo de
semelhantes; é uma população negra que não se reconhece como descentes de africanos, são
apenas norte-americanos.
26
Os africanos trazidos ao Brasil, por algumas poucas causalidades, mas principalmente
em decorrência de muita resistência, conseguiu passar por gerações uma parte considerável de
influência das culturas africanas. No entanto, é equivocado justificar este fato pelo motivo de
que a escravidão no país foi mais maleável do que em outras colônias. Muito pelo contrário,
além do Brasil ter sido o último país a proclamar a abolição da escravatura, o país foi uma
colônia com meros objetivos de exploração4, onde a riqueza era toda usufruída pelos países
exploradores. Diferentemente dos Estados Unidos, por exemplo, onde os ingleses que chegaram
nesse novo território tinham o objetivo de fundar uma colônia de povoamento5 e trazer suas
famílias. Comparado a certas colônias, o Brasil teve um processo de escravidão
disparatadamente mais brutal e genocida.
Afastar a população negra brasileira do acesso à educação também é uma forma de
afastamento de conhecimento de todo seu processo histórico e de consciência, tendendo a se
formar uma massa populacional mais maleável. Sobre os esforços das elites no apagamento das
culturas africanas e do contexto histórico de escravidão brutal como uma estratégia de controle
e de retirar a identidade do povo afro-brasileiro, Nascimento (2019, p. 65-66) diz:
No sentido de apagar da lembrança do afro-brasileiro a horripilante etapa
histórica brasileira do escravagismo, a camada dominante no Brasil não tem
poupado esforços. Com esta providência se conseguiriam vários benefícios:
primeiro, aliviaria a consciência de culpa dos descendentes escravocratas, os
mesmos que ainda hoje continuam dirigindo os destinos do pais; segundo,
simultaneamente ao desaparecimento do seu passado, o negro brasileiro
assistiria também à obnubilação de sua identidade original, de sua religião de
berço e de sua cultura, o que resultaria na erradicação da personalidade
africana e no orgulho que Ihe é inerente.
Mais explicitamente temos o sistema penal e suas instituições, ao destacar a polícia e
seu vínculo direto com o racismo e com o extermínio direto da população negra.
4 “Colônia de exploração (Pflanzungskolonien) – O objetivo seria a exportação de produtos
primários para os países europeus. Geralmente, o número de europeus seria baixo, eles não se tornariam
cidadãos locais e o uso de mão de obra escravidão seria frequente. [...] este tipo de colônia não tende a
desenvolver-se como nação.” (HEREEN, 1987 apud MONASTERIO e EHRL, 2015, p. 11)
5 “Colônia de povoamento (Ackerbaukolonie) – A tradução literal seria colônia de
agricultores. Optamos por alterar o termo para manter consistência com a tradução feita por Leroy-
Beaulieu (1902). Nestas, os colonos são agricultores europeus e proprietários de terra. Este tipo de
colônia tenderia a tornar-se uma nação independente.” (HEREEN, 1987 apud MONASTERIO e EHRL,
2015, p. 11)
27
Indicada a participação do sistema penal na consolidação de um quadro que
situa o Brasil entre os países em que mais se mata no mundo é preciso avaliar
de perto os desdobramentos desse empreendimento para a população negra.
Como agência central na movimentação do aparato penal e tendo em vista a
histórica relação que se estabeleceu entre Polícia e racismo no Brasil, é preciso
considerar em primeiro plano a participação dessa instituição na conformação
da realidade em tela. Em primeiro lugar, é importante termos em mente que a
instância policial é a que assume o maior quinhão das decisões no âmbito do
sistema penal (FLAUZINA, 2006, p 115).
Ainda sobre as mais variadas formas de genocídio da população afro-brasileira no
Brasil, Nascimento (2019, p. 185) declara:
Destruição sistemática ou genocídio que se tem concretizado tanto pelo
assassínio direto dos africanos matança pelos capitães-de-mato, agressões
permanentes da polícia, liquildação coletiva através da fome, ausência de
moradia decente e de assistência médica adequada; mas genocídio ainda por
intermédio da destruição das línguas, cultura, costumes, religiões e
instituições dos africanos escravizados e seus descendentes.
O embranquecimento da população afro-brasileira também se enquadra como uma
forma de genocídio, muito bem disfarçado e pouco pautado como tal. Esse embranquecimento
coercitivo vem se instaurando advindo da elite branca, como uma forma de chegar aos objetivos
aparentes de uma harmonia racial em nosso país. No entanto, não há dúvidas que é uma forma
de aniquilar qualquer resquício de povos negros africanos.
As condições da vida encarcerada dispõem de violações de direitos, torturas e mortes.
É uma rotina sem grandes reflexões ou socioeducação. Há descaso em coisas vitais, como
alimentação, espaço físico, insalubridade. O descaso no âmbito da saúde segue o mesmo rito, a
exemplo de pessoas detidas que são usuárias de substâncias psicoativas e necessitam de um
acompanhamento médico, tal acompanhamento que dificilmente irá existir. Davis (2019b, p.93)
traz em seu livro “Uma Autobiografia” a experiência de sua rotina, das violações sofridas e
presenciadas do encarceramento; ela afirma que “prisões e penitenciárias são desenhadas para
subjugar seres humanos, para converter sua população em espécimes de zoológico – obedientes
a nossas tratadoras, mas perigosas umas para as outras.”
O contexto histórico em que esse trabalho está sendo produzido é uma conjuntura em
que as nuances de viver em um país capitalista periférico e racista ficam mais evidentes. Temos
um país afundado em uma crise sanitária e econômica e sem perspectivas de um contexto
melhor, seja, de combate a pandemia, sem investimentos na ciência, no SUS e na propriamente
vacina, como também economicamente. É nesse mesmo cenário que a democracia racial
também cai por terra. A situação da população negra em contexto de pandemia segue muito
28
grave, seja pelo acesso fragilizado à saúde, como pelo fato do setor de determinados empregos
em que sua maior parte são ocupados por pessoas negras estarem sendo mais afetados pela
COVID-19. As condições de moradia também é um fator a serem levados em consideração em
uma crise sanitária. A total desqualificação do governo federal em lidar com as expressões da
questão social que estão postas e mais graves nesse momento de pandemia tem matado milhares
de brasileiros, que não estão morrendo só da doença em questão, mas também por estarem
submetidos a uma vida subumana. E esses brasileiros possuem classe e cor. Nenhuma política
pública ou atenção especial foi criada ou dada para essa população em situação de
vulnerabilidade.
O sistema carcerário nessa conjuntura de pandemia se encontra em condições graves.
Como já é de conhecimento, as estruturas carcerárias no Brasil são profundamente precarizadas,
no qual a população que ali está inserida sobrevive em condições subumanas, pouco espaço
para muitos encarcerados, falta de alimentação adequada, falta de higienização adequada ou
nenhuma higienização, assistência à saúde escassa. Em agosto de 2020 o Brasil contabilizava
um percentual de 1% da população encarcerada tinha testado positivo para o COVID-19, sendo
o quarto país com mais mortes de encarcerados (RUIZ e ABRANTES, 2020). A proliferação
do vírus nesses espaços tem sido muito grande. Há relatos de encarcerados e ex-encarcerados
de que não existe o distanciamento social, lugares com circulação de ar adequado, falta de
distribuição de produtos de higiene pessoal, deficiência no direito à assistência à saúde. Os
encarcerados que foram testados positivos para o COVID-19 estão sendo isolados de maneira
indevida, em locais fechados e inapropriados. E diante dessas condições, mais uma vez a
população negra tem sido o grande alvo de mortes, sendo a população carcerária constituída
por 61,7% de pessoas negras ou pardas (BRASÍLIA, 2018).
Segue um levantamento de número de pessoas encarceradas de acordo com raças do
Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021:
29
Tabela 4 – Evolução da população prisional por cor/raça
Ano
Negra (1) Branca Amarela Indígena
Ns. Absolutos
% Ns.
Absolutos %
Ns. Absolutos
% Ns.
Absolutos %
2005 91.843 58,4 62.574 39,8 1.046 0,7 279 0,2
2006 135.426 56,7 97.422 40,8 1.587 0,7 602 0,3
2007 199.842 58,1 137.436 39,9 2.234 0,6 539 0,2
2008 217.160 56,8 147.438 38,5 2.733 0,7 511 0,1
2009 240.351 59,0 156.197 38,4 2.026 0,5 521 0,1
2010 252.796 59,8 156.535 37,0 2.006 0,5 748 0,2
2011 274.058 60,3 166.340 36,6 2.180 0,5 769 0,2
2012 294.999 60,7 173.463 35,7 2.314 0,5 847 0,2
2013 307.715 61,7 176.137 35,3 2.755 0,6 763 0,2
2014 312.625 61,7 188.695 37,2 3.312 0,7 666 0,1
2015 289.799 63,5 162.731 35,7 3.028 0,7 770 0,2
2016 340.611 63,6 188.741 35,2 3.111 0,6 654 0,1
2017 370.976 64,5 198.244 34,5 5.022 0,9 1.090 0,2
2018 399.657 66,0 198.804 32,9 5.522 0,9 1.201 0,2
2019 438.719 66,7 212.444 32,3 5.291 0,8 1.390 0,2
2020 397.816 66,3 195.085 32,5 5.864 1,0 1.167 0,2 Variação
(entre 2005-2020 em %)
333,1 13,5 211,8 -18,3 460,6 46,8 318,3 9,6
Ano
Outras Total presos com informações sobre
cor/raça
Total de pessoas
encarceradas
Razão entre total presos com
cor/raça informado e total
de pessoas encarceradas (em
%) Ns. Absolutos %
2005 1398 0,9 157.140 361.402 43,5
2006 3989 1,7 239.026 401.236 59,6
2007 4053 1,2 344.104 422.373 81,5
2008 14.685 3,8 382.527 451.429 84,7
2009 8.058 2,0 407.153 473.626 86,0
2010 10.686 2,5 422.771 496.251 85,2
2011 10.809 2,4 454.156 514.582 88,3
2012 13.996 2,9 485.619 548.003 88,6
2013 11.527 2,3 498.897 581.507 85,8
2014 1.608 0,3 506.906 622.202 81,5
2015 - - 456.328 698.618 65,3
2016 2.627 0,5 535.744 722.120 74,2
2017 - - 575.332 722.716 79,6
2018 - - 605.184 744.216 81,3
2019 - - 657.844 755.274 87,1
2020 - - 599.932 759.518 79,0 Variação (entre 2005-2020 em
%) - - - 110,2 81,7
Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de
Segurança Pública. 2021.
30
Em decorrência dos grandes números de infecções pela Covid-19 e óbitos ocasionados
pela doença no sistema prisional, tanto dos encarcerados, quanto dos funcionários do sistema,
assim que ocorreu a organização de grupos prioritários para tomar a vacina da imunização, o
sistema carcerário foi contemplado como setor prioritário para a vacinação.
Tal contemplação como grupo prioritário foi bastante criticada pela população de
senso comum, que se viu no lugar de presenciar “criminosos” sendo os primeiros grupos a
terem o direito a imunização. Porém, dado a todas as circunstâncias de condições do
encarceramento brasileiro é um direito totalmente incontestável.
Tabela 5 – Painel sobre a pandemia de Covid-19 no sistema prisional
Brasil e Unidades da Federação
Covid-19 em pessoas encarceradas
Casos acumulados
Óbitos acumulados
Letalidade Taxa de
incidência (4) Taxa de
mortalidade (4)
Total (3) 57.619 201 0,3% 7.642,1 26,7
Acre 286 4 1,4% 3.613,8 50,5
Alagoas 95 - - 963,9 -
Amapá 346 1 0,3% 12.572,7 36,3
Amazonas 927 2 0,2% 7.429,7 16,0
Bahia 1.040 3 0,3% 7.232,3 20,9
Ceará 2.304 6 0,3% 6.834,8 17,8
Distrito Federal 2.138 4 0,2% 13.355,8 25,0
Espírito Santo 1.150 6 0,5% 4.887,8 25,5
Goiás 2.282 9 0,4% 9.926,9 39,2
Maranhão 506 3 0,6% 4.133,6 24,5
Mato Grosso 2.825 4 0,1% 17.807,6 25,2
Mato Grosso do Sul 4.500 5 0,1% 23.388,8 26,0
Minas Gerais 6.425 13 0,2% 10.212,7 20,7
Pará 886 - - 4.364,3 -
Paraíba 367 4 1,1% 2.931,1 31,9
Paraná 4.063 13 0,3% 6.624,8 21,2
Pernambuco 2.504 9 0,4% 7.597,1 27,3
Piauí 989 1 0,1% 21.232,3 21,5
Rio de Janeiro 531 21 4,0% 1.090,2 43,1
Rio Grande do Norte 636 - - 5.888,3 -
Rio Grande do Sul 3.146 19 0,6% 8.097,8 48,9
Rondônia 1.298 3 0,2% 9.842,3 22,7
Roraima 268 9 3,4% 7.017,5 235,7
Santa Catarina 3.062 6 0,2% 13.049,8 25,6
São Paulo 13.742 53 0,4% 6.276,9 24,2
Sergipe 424 2 0,5% 7.574,1 35,7
Tocantins 877 1 0,1% 20.395,3 23,3
Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de
Segurança Pública. 2021.
31
Porém, mesmo sendo incluídos como um dos grupos prioritários no Plano Nacional de
Operacionalização da Vacinação contra a COVID-19, a vacinação tem sido uma realidade em
distante desse grupo e tem andado a passos lentos no avanço da imunização. Segue números de
imunização de funcionários do sistema de privação de liberdade e da população privada de
liberdade:
Tabela 5 – Vacinação contra Covid-19 no sistema prisional
Brasil e Unidades da Federação
Funcionários do Sistema de Privação de Liberdade (2)
População Privada de Liberdade (2)
1a dose
% da população atendida com 1a dose
2a dose
% da população atendida com 2a dose
1a dose
% da população atendida com 1a dose
2a dose
% da população atendida com 2a dose
Total 84.751 72,5 36.663 31,4 66.651 8,8 1.728 0,2
Acre 1.135 72,2 89 5,7 617 7,8 0 0,0
Alagoas 1.519 170,1 273 30,6 2.637 26,8 4 0,0
Amapá 733 152,7 41 8,5 6 0,2 0 0,0
Amazonas 1.194 76,5 8 0,5 1.030 8,3 43 0,3
Bahia 1.571 39,1 0 0,0 537 3,7 21 0,1
Ceará 1.404 36,4 20 0,5 160 0,5 15 0,0
Distrito Federal 1.170 66,7 433 24,7 64 0,4 11 0,1
Espírito Santo 3.137 87,1 33 0,9 148 0,6 22 0,1
Goiás 3.328 91,1 647 17,7 7.822 34,0 25 0,1
Maranhão 3.675 98,2 1.599 42,7 260 2,1 11 0,1
Mato Grosso 1.977 78,2 400 15,8 643 4,1 42 0,3
Mato Grosso do Sul 1.489 86,8 948 55,2 1.324 6,9 28 0,1
Minas Gerais 10.993 56,3 1.793 9,2 4.932 7,8 120 0,2
Pará 1.449 53,7 365 13,5 1.077 5,3 23 0,1
Paraíba 664 30,8 26 1,2 736 5,9 0 0,0
Paraná 3.725 90,7 333 8,1 9.400 15,3 12 0,0
Pernambuco 2.205 77,0 23 0,8 648 2,0 3 0,0
Piauí 641 57,5 104 9,3 1.696 36,4 30 0,6
Rio de Janeiro 3.069 102,6 888 29,7 2.628 5,4 247 0,5
Rio Grande do Norte 1.353 90,7 275 18,4 166 1,5 23 0,2
Rio Grande do Sul 3.958 74,8 732 13,8 14.201 36,6 105 0,3
Rondônia 1.198 49,7 167 6,9 2.389 18,1 14 0,1
Roraima 255 87,0 2 0,7 1 0,0 1 0,0
Santa Catarina 2.608 56,9 82 1,8 10.428 44,4 59 0,3
São Paulo (3) 29.316 84,8 27.348 79,1 2.797 1,3 869 0,4
Sergipe 162 20,7 5 0,6 192 3,4 0 0,0
Tocantins 823 62,3 29 2,2 112 2,6 0 0,0
Fonte: FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (org.). Anuário Brasileiro de
Segurança Pública. 2021.
É necessário realçar que os números tendem a ser bem piores do que esses
disponibilizados. Os fatores para afirmar que esses números são mais alarmantes advém a
princípio de que são dados que não possuem a mínima relevância e preocupação para os meios
32
midiáticos, para as massas populares que estão vinculadas aos estigmas e muito menos para a
elite dona do país. Além dessa concretude de fatos, existe a escassez de testes nessas instituições
prisionais, somado a toda insalubridade e condições subumanas já citadas que os encarcerados
estão submetidos.
Em vários países, nesse contexto de pandemia, foram adotadas medidas de
desencarceramento, como a saída de pessoas em grupos de risco, a exemplo de gestantes,
idosos, indivíduos com comorbidades para a modalidade de prisão domiciliar, ou
monitoramento eletrônico. Algumas penas também foram perdoadas e outros atos infracionais
estão sendo descartados para serem motivos de uma sentença de prisão em meio fechado (RUIZ
e ABRANTES, 2020).
O Brasil tem ido no caminho oposto, mais evidentemente em decurso das
perspectivas de uma “segurança pública mais firme” do governo federal, que são melhores
traduzidas para perspectivas de culpabilização, criminalização e genocídio da população pobre
e afro-brasileira. Como um exemplo concreto da postura do governo federal ao enfrentamento
da COVID-19 no sistema carcerário foi a publicação da Portaria nº 135/202043, por Sergio
Moro, ex-ministro de Justiça e Segurança Pública do governo Bolsonaro. Nessa Portaria foi
estabelecida medidas padrões para o combate a disseminação e prevenção da proliferação da
COVID-19 no sistema prisional, medidas essas que em sua maioria prever mais permanência
de encarceramento e violações direitos, como a proibição de visitas dos familiares, dos
advogados, permanência de pessoas de grupos de riscos encarceradas. Aqui estão algumas
dessas medidas (RUIZ e ABRANTES, 2020):
1. restrição, ao máximo, da entrada de visitantes e advogados nas unidades prisionais
– desrespeita a prerrogativa de assistência jurídica a encarcerados; nega a entrada de produtos
básicos para a subsistência (as famílias se responsabilizam pelo que o Estado deveria prover);
2. criação de áreas específicas para isolamento de presos acometidos de sintomas
gripais – o Depen anunciou o uso de contêineres de ferro como alternativa às unidades
prisionais para o enfrentamento da nova pandemia. O Conselho Nacional de Política Criminal
e Penitenciária (CNPCP) vetou tal medida;
33
3. isolamento de presos maiores de 60 anos ou com doenças crônicas – com “cortinas”
ou “marcações no chão”, definindo espaço de dois metros de distância dos demais custodiados,
caso não haja possibilidade de isolamento;
4. promoção de meios e procedimentos carcerários para assepsia diária das celas;
5. promoção de campanhas educativas sobre os meios de prevenção da doença,
envolvendo servidores, visitantes e privados de liberdade – o Núcleo de Estudos da Burocracia
da Fundação Getúlio Vargas (FGV) aponta outra fragilidade: o nível de preparo de agentes
penitenciários para lidar com a pandemia;
6. suspensão de saídas temporárias – de acordo com a OAB/SP, “Restringir ainda mais
os direitos dessa população vulnerável é aplicar duplamente a punição imposta, o que não é
permitido pela nossa Carta Maior. E vai mais além, é tratar como não humanas as pessoas que
estão em situação de encarceramento”;
7. gestões entre os órgãos competentes visando à atenção e critérios restritos na
concessão de prisão domiciliar aos privados de liberdade que se enquadrem nas hipóteses
concessivas legais e tenham estrutura familiar, com monitoramento da pena via tornozeleiras
eletrônicas e aferição do impacto possível na sobrecarga do sistema de segurança pública e
saúde – estrutura familiar é conceito altamente subjetivo, e sobrecarga já existe, com presídios
superlotados.”
A criminologia crítica no Brasil precisa avançar no sentido de não secundarizar a causa
racial ao tentar aprofundar a crítica ao sistema penal. Essa criminologia ainda segue na maior
parte das produções e crítica na pauta apenas da classe social. Como já foi comentado
anteriormente, o sistema penal e o ato de encarcerar foi e é usado hoje principalmente em
decorrência de interesses capitalistas, no sentido de conter a massa proletária de uma possível
revolta, de manter a disciplina, despejar o exército industrial de reserva e pessoas que não se
enquadram no perfil de útil para esse capital, seja produzindo, como também consumindo. Mas
o Brasil tem sua particularidade histórica e esse sistema penal foi criado com objetivos de conter
e disciplinar determinadas classes sociais, vai para além dessa dimensão de classe. Temos um
34
sistema penal criado quase que exclusivamente para manutenção da escravidão, e que mantém,
com novas técnicas e tecnologias, a perseguição e genocídio do povo negro.
É necessário citar também a secundarização do sexismo em relação a crítica ao
sistema penal. O racismo e o sistema patriarcal são dois componentes que regem diretamente
esse sistema, tanto quanto a questão da classe. Significa dizer também que não importa quem
esteja sob tutela desse sistema, deixando claro que existe sim uma diferença de tratamento em
relação a brancos e negros dentro do sistema, porém, ele vai operar com sua base de
instrumentos racistas e sexistas.
35
3. A CRIMINOLOGIA COMO INSTRUMENTO DE DOMINAÇÃO
3.1 A CRIMINOLOGIA COMO FORMA DE CONTROLE SOCIAL
A primeira concepção que é necessário ter em mente para direcionar a uma discussão
sobre a criminologia crítica, é compreender que o crime não é ontológico. Ao partir desse ponto,
todas as definições de criminologia elaboradas ao longo dos períodos possuem um teor de
finalidade. Ou seja, não são discursos neutros. São discursos que carregam intenções e
interesses de determinados contextos históricos e/ou grupos. Batista (2011, apud CASTRO,
1983) traz um conceito de criminologia:
Para Lola Aniyar de Castro, é a atividade intelectual que estuda os processos
de criação das normas penais e das normas sociais que estão relacionadas com
o comportamento desviante dessas normas; e a reação social, formalizada ou
não, que aquelas infrações ou desvios tenham provocado: o seu processo de
criação, a sua forma e os seus efeitos.
Em seguida, ela faz uma pequena análise desse conceito, identificando que essa
definição da Lola, se contrapõe aos manuais jurídicos, que traz o conceito de criminologia como
o exame casual-explicativo do crime e dos criminosos, ou seja, uma concepção positivista
(BATISTA, V. 2011).
Ao voltar a questão de que cada concepção de criminologia possui um teor de atender
certos interesses de um determinado período, Batista (2011, p. 15) afirma que “entender o crime
como um constructo social, um dispositivo, é o primeiro passo para adentrarmos mais além da
superfície da gestão criminal”. Por conseguinte, ao entender o crime como um constructo social
e dispositivo, é necessário pensar que toda a questão criminal vai estar intrinsecamente ligada
às necessidades de manutenção da ordem e estabilidade de uma determinada classe social, o
desenvolvimento da questão social está intimamente atrelado ao desenvolvimento do sistema
capitalista e de acumulação de capital.
Nesse mesmo contexto de linhas de pensamentos criminológicos e seus interesses,
temos a presença de um sistema penal que possui o discurso de um sistema justo e igualitário
para todos. Porém, é um sistema profundamente seletivo e que atinge indivíduos de
determinados grupos sociais, usando suas condutas como “justificativa”.
Batista (2011) cita que, para alguns autores, a partir do momento em que a vítima se
tornou um secundário na situação do crime – tendo como marco as penas em público, a partir
36
do século XIII – deu-se início a uma criminologia. Nesse contexto, era necessário construir a
figura de inimigo e medo, onde entram em cena os personagens do “herege” e da “bruxa”. De
mesmo modo, se trouxermos para a nossa realidade atual, a grande mídia tem-se demonstrado
a principal responsável por desempenhar este papel de objetificação das pessoas.
O início da acumulação do capital, que impulsiona ao longo dos períodos o
mercantilismo, manufatura e posteriormente a Revolução Industrial, é um grande marco para
que avultem novos métodos da criminologia. Havia-se agora, uma sociedade de classes e uma
necessidade de disciplinar e conter uma massa de mão de obra para as novas necessidades do
capitalismo (BATISTA, V. 2011).
Neste sentido, cabe uma reflexão no tocante à transição dos grandes eventos em que
se tornaram os castigos e execuções públicas, para uma nova forma de punição advinda com o
surgimento das prisões. Esse marco é geralmente debatido e mencionado como um momento
reformista e humanitário, pois agora, ao invés das torturas e execuções públicas, é
proporcionada a “dignidade” do indesejado pagar a sua penitência, isolado e refletindo sobre o
ato cometido para que este não venha a se repetir.
Não há discordância de que foi realmente uma transformação reformista e, que de certo
feitio, poupou alguns tipos de torturas e mortes cruéis caracterizadas como grandes eventos.
Porém, é necessário ir mais à fundo nessa questão, em especial se pensarmos na eminente
necessidade que o capitalismo em ascensão tinha de envolver a massa de mão de obra, e conter
uma população pobre e fora do mercado. Essa população atravessou um contexto de revolução
burguesa e, agora, possuía uma perspectiva revolucionária; as prisões, portanto, surgem como
novas alternativas de punir os indesejados e de disciplinar a mão de obra para conter essa massa
e as técnicas de criminalização e contenção da população pobre chega até as colônias,
destacando-se o Brasil, com um reflexo mais precarizado e cruel.
Batista (2011, p. 29) afirma que essa criminalização cruel, ao chegar no Brasil e seu
contexto histórico de violações de corpos em nome da produção capitalista, acabou por efetivar
uma “democracia” restrita para alguns: “Na periferia do capitalismo, e no Brasil em particular,
tudo isso vai se agregar ao genocídio colonizador, às marcas da escravidão, à república nunca
consolidada, ao estado previdenciário já malhado antes de nascer, aos paradoxos da cidadania”.
Após a Revolução Burguesa e a necessidade de reformulação do sistema punitivo, têm-
se a ascendência de uma criminologia modelada pelo positivismo, que usava como artificio a
desqualificação da ideia de igualdade. Essa ideologia – que surge com o intuito de responder
as novas demandas do capitalismo e em prevenir possíveis revoltas, ou até mesmo uma
37
revolução – fora amplamente explorada e instaurada, tendo suas aparentes contradições com a
escola clássica, se apropriando como base a generalização, e a outra a individualização; no
entanto, essas contradições são aparentes, pois, as diferenças na identificação do objeto
criminalizante dessas duas tendências de pensamento são, na verdade, complementares
(FLAUZINA, 2006).
A criminologia positivista está baseada diretamente com a individualização de tal
episódio de conduta criminalizante, que põe a ordem legal como uma ordem conatural, onde
homens loucos ou sem moral que a violam são indivíduos que não se adaptaram à sociedade
(BATISTA, N. 2007).
Portanto, nessa lógica de culpabilização de indivíduos e generalização de
determinados segmentos da população como sendo propensos ao crime, é possível identificar
que o sistema penal opera com base em critérios quantitativos e qualitativos. O ponto
quantitativo é exposto quando identificamos que o sistema penal não possui condições reais de
administrar todos os atos criminosos que ocorrem frequentemente. Nesse caso, esse aparelho
opera usando a seletividade como uma ferramenta para buscar os quantitativos e, dessa forma,
pessoas de seguimentos hegemônicos estão mais propensas a serem inocentadas do que aquelas
em segmentos de vulnerabilidade (FLAUZINA, 2006).
Ou seja, atenua-se o estigma de que pessoas de determinada classe e raça são mais
tendentes a cometerem atos criminosos, com base pelo simples dado do perfil de pessoas
inseridas no sistema penal. E é exatamente dessa forma que o discurso raso é propagado para
as massas populacionais, sendo a mídia o seu mais eficaz disseminador.
Ademais, é nessa perspectiva de ligação do sistema penal aos objetivos de
criminalização de condutas e grupos específicos, que Flauzina (2006, p. 25) afirma que o ponto
qualitativo se apresenta. Ela diz: “Nesse âmbito, a grande conclusão efetuada a partir da ruptura
de paradigmas em Criminologia, é que as atribuições do sistema penal relacionam-se mais
concretamente ao controle e perseguição de determinados indivíduos do que com a contenção
das práticas delituosas.”
Logo, à vista do exposto em relação a questão criminal e o discurso criminológico,
afirmar que o sistema penal está falido é um equívoco. Esse sistema possui projeto e objetivos
de contenção e criminalização, respondendo aos mandos e aos interesses da classe burguesa.
Flauzina (2006) afirma que:
Ao final, o que ficou definitivamente explicitado é que a alardeada “falência
do sistema penal” é, em verdade, slogan de mais uma manobra. O sistema
penal funciona e funciona bem. Funciona para os fins para os quais foi sempre
38
dirigido: manter as pessoas onde estão. Nesse sentido, “... mais do que uma
trajetória de ineficácia, o que acaba por se desenhar é uma trajetória de eficácia
invertida, na qual se inscreve não apenas o fracasso do projeto penal
declarado, mas, por dentro dele, o êxito do não-projetado; do projeto penal
latente da modernidade (p. 25).
Deste modo, resta evidenciado que o campo do direito possui o objetivo de
garantir a estrutura do modelo econômico e social da sociedade capitalista; ou seja, objetiva
manter a hegemonia e o consenso das massas, e deter quem estiver fora desse modelo padrão
social. Sendo assim, podemos determinar como uma forma de controle social.
3.2 A CRIMINOLOGIA NA DOMINAÇÃO PERIFÉRICA
No contexto da América Latina, intensamente marcada pela exploração e
genocídio, até os dias atuais é nítida a presença de uma criminologia positivista com seus traços
definidos de classificação e hierarquização, em decorrência da herança de colonização. Sobre
esse cenário, “Máximo Sozzo analisa o nascimento da criminologia na América Latina como
uma colossal tradução do positivismo, uma importação cultural que configuraria
racionalidades, programas e tecnologias governamentais sobre a questão criminal” (SOZZO,
2006 apud BATISTA, V. 2011, p. 46).
A América Latina constituiu sua história como principal campo de atuação a
exploração dos países europeus, sendo demarcada por um processo de escravização, genocídio
e precipuamente, apagamento da cultura e de autorreconhecimento dos povos; Flauzina traz
uma análise de Lélia González em relação a esse apagamento sofrido pelos povos trazidos para
essas terras, como os negros africanos, e dos indígenas que já às habitavam. Inclusive, a própria
generalização e nomeação de uma “América Latina” possui esse intuito de apagamento de
identidades das mais diversas populações que aqui estavam e, assim, construía-se
estrategicamente uma forma de velar o racismo e transparecer um continente de harmonia entre
vários povos, porém, sem desestruturar a dominação da classe hegemônica branca.
De acordo com Lélia González, a América Latina está muito mais vinculada
a sua herança indígena e africana do que propriamente latina. Nesse sentido,
a latinidade é entendida como uma formulação eurocêntrica forjada com o
intuito de inferiorizar culturalmente e eliminar os traços dos grupos que
efetivamente conformam a identidade desse território. Assim, a América
Latina, em verdade, configura-se enquanto uma América Latina, em que o
racismo, desde a própria nomeação conferida, opera para a subjugação dos
segmentos vulneráveis. Atentando para os usos da linguagem, que assume
para si os embates da arena social, percebemos a cristalização de uma imagem
que abre as frestas da exclusão simbólica dos segmentos, como pressuposto
fundamental à produção do extermínio físico (FLAUZINA, 2006, p. 30 apud
GONZÁLEZ, 1988).
39
É nessa concreticidade de um histórico de dominação de elite branca europeia,
criminalizando e apagando as identidades de povos africanos e indígenas como uma forma de
“civilizar” o território, que o sistema penal operou e opera até os dias atuais na América Latina,
baseando-se essencialmente na criminalização e opressão de determinados povos através do
racismo.
Tendo como base essa relação íntima entre o racismo e a operação do sistema penal, é
necessário ter em mente que os estudos de criminologia crítica – em especial no contexto de
Brasil e América Latina – com o objetivo de ter uma apreensão aprofundada desse sistema,
obrigatoriamente não deve secundarizar a pauta do racismo que o estrutura. Sobre a
criminologia latino-americana, Flauzina (2006, p.35) diz:
A Criminologia latino-americana e, muito especialmente a brasileira, vive um
momento decisivo. Com uma realidade que, de tão evidente, começa a não
caber mais em si, estamos, irremediavelmente, diante de duas direções não
conciliáveis que apontam no horizonte. De um lado, já se consolida uma
construção teórica que, apesar de reconhecer as iniqüidades estruturais
próprias de nossa região, se recusa a trabalhar toda sua complexidade,
trazendo a questão racial como um apêndice dos sistemas penais para o
conforto de nossas elites. De outro, uma concepção que, deslocando o papel
cumprido pelo racismo em nossos sistemas da periferia para o centro da
análise, pressente uma formulação que atinge não somente os aparelhos
repressivos, mas a própria narrativa da formação dos Estados e tudo o que
disso decorre.
Na criminologia, em determinados períodos houve a ruptura com o positivismo, e o
surgimento de novas linhas de pensamento. Pôde-se, portanto, acompanhar a introdução da
sociologia e do rotulacionismo, sendo ambos possuidores de métodos diferentes na busca do
conhecimento da criminologia ou de quem é definido por criminoso. No entanto, tais rupturas
tiveram suas limitações, principalmente ao deixar de lado a análise da influência da acumulação
do capital e da relação homem x trabalho na questão criminal.
[...] essa despolitização não foi capaz de aprofundar sua interpretação da
questão criminal, nem de entender, os mecanismos reguladores da população
criminosa, nem as relações de poder sobre as classes criminalizadas. Seu
caráter formalista e universalizante acabou produzindo uma visão política de
médio alcance, deslocada da economia, do processo de acumulação do capital.
(BATISTA, V. 2011, p. 77)
É inegável que a criminologia baseada no pensamento sociológico foi um
amadurecimento significativo, em especial na percepção de romper com convicções de que o
ser criminoso é algo biologicamente determinado. A sociologia transfere a criação de um ato
criminoso, e o que faz um indivíduo ser um criminoso, para a forma como uma sociedade se
40
organiza. Ou seja, é uma linha de pensamento que defende que a criminalidade não é um fato
preexistente; Baratta (1976, p. 14) afirma que “Isto significa que existe um recrutamento de
uma circunscrita população criminosa, selecionada dentro do mais vasto círculo daqueles que
cometem ações previstas sob o código criminal e que, distribuída através de todas as classes
sociais, constitui não a minoria, mas a maioria da população.”. Nesse mesmo pensamento,
Flauzina (2006, p. 19) traz uma tese que sustenta a criminologia sociológica:
A tese central desenvolvida nessa perspectiva, é a de que o desvio é criado
pela sociedade. Assim, o crime não existe como realidade ontológica, pré-
constituída, mas como fruto da reação social (controle), que atribui o rótulo
de criminoso (etiqueta) a determinados indivíduos.
Sendo assim, à contraponto do positivismo, cujo objeto central era o indivíduo
delinquente, na sociologia este objeto passa a ser as determinações que o fizeram um criminoso,
dando a abertura necessária para questionarmos quais as intenções reais delas (FLAUZINA,
2006).
A introdução do pensamento marxista na criminologia foi a referência mais importante
e mais eficaz no emprego de romper totalmente com o pensamento positivista/iluminista no
âmbito da questão criminal. A concepção basilar no pensamento marxista-criminológico é
ponderar os objetivos do sistema capitalista e o seu manuseamento da questão criminal para
obter êxito no controle social, para uma submersão das lutas de classe, para manter sua
dominação e, principalmente, para mantar a classe trabalhadora disciplinada em busca da
produção da mais-valia. Batista (2011, p. 81) afirma que “O processo punitivo estaria
integralmente ligado ao controle e disciplinamento do mercado de trabalho. A sansão pena teria
então um vínculo direto com a força de trabalho e com o exército industrial de reserva”.
Essa criminologia, agora introduzida ao marxismo, teve mudanças significativas de
como pensar o crime e o criminoso. No pensamento positivista tinha-se a pergunta central de
“quem é o criminoso?”; no pensamento marxista temos o deslocamento desse sujeito
“criminoso” para as condições objetivas, estruturais e funcionais do sistema capitalista.
A base da criminologia crítica é questionar o que na criminologia tradicional é
inquestionável. Têm-se o objetivo de analisar o código penal e trabalhar em que contexto ele
foi feito, quais as motivações e a quem interessa. Além disso, é uma linha de pensamento que
não se limita ao que está posto, mas vai discutir a que missão de fato o sistema penal possui,
além de seu funcionamento prático e suas relações como instrumento de controle social
(BATISTA, N. 2007). Essa criminologia crítica trabalha em anular a teoria de que a
41
criminalidade é ontológica, científico-naturalista e bio-psicológica, defendida pela criminologia
positivista.
Baratta determina o salto de análise qualitativa da criminologia crítica comparado à
criminologia positivista:
O Salto qualitativo que separa a nova da velha criminologia consiste,
sobretudo, na superação do paradigma etiológico, que era o paradigma
fundamental de uma ciência entendida, naturalisticamente, como teoria das
“causas” da criminalidade. A superação de tal paradigma traz consigo a
superação de suas implicações ideológicas: a concepção da conduta desviante
e da criminalidade como realidade ontológica preexistente à reação social e
institucional, assim como a aceitação a crítica das definições legais, como
princípio de individualização daquela pretendida realidade ontológica- duas
posições, entre si, absolutamente contraditórias. (BARATTA, 1978, p. 09)
3.3 BREVE DISCUSSÃO SOBRE A CRIMINOLOGIA BRASILEIRA
É perceptível a presença do pensamento reformista, inclusive no Brasil. No entanto, é
fundamental rejeitar e afastar-se de soluções que se limitam a meras “melhorias de condições”
das prisões. O sistema prisional serve para um propósito, e possui suas determinadas funções
em favor do controle da massa popular e disciplinamento, causando dor, tortura e violando
corpos. Segundo Batista (2011, p. 91): “A verdadeira relação entre o cárcere e sociedade, diria
o sábio Barata, é entre quem exclui e quem é excluído, ou, melhor dizendo, entre quem tem o
poder de criminalizar e quem está sujeito à criminalização”.
O direito criminal da contemporaneidade tem introduzido novas leis no sentido de
documentar a tendência de reeducação e reinserção do encarcerado à vida social. Ocorre que, é
muito incoerente o pensamento otimista de que essas novas leis possam acabar com os
estereótipos e de que os efeitos estigmatizantes da sociedade possam cessar, tornando menos
desfavorável a volta desses indivíduos à vida social. Ademais, outro elemento da realidade ao
qual é necessário analisar, é que na realidade estes indivíduos encarcerados estão em uma
situação real de socialização e educação, ao invés de ressocialização e reeducação (BARATTA,
1976).
Essas pessoas que estão mercê de serem engolidas pelo sistema penal, são pessoas que
muitas vezes se encontram em situação de violação de direito, como a falta de acesso à
42
educação6, ou outros direitos básicos, onde o estado sempre esteve ausente. Logo, esse grupo
é notado finalmente pelo estado apenas no momento de punição.
Segundo Batista (2006, p. 99), o modelo neoliberalista se difere dos outros períodos
pelo sucedido de conciliar o sistema penal com novas técnicas, novas tecnologias e novos
desdobramentos de opressão para constituir e controlar determinados bairros pobres e
determinadas populações. Ela cita o exemplo do Rio de Janeiro, sendo uma realidade mais
próxima para nós brasileiros:
As favelas do Rio que estão ocupadas manu militari são vendidas como um
modelo que se assemelha aos territórios ocupados da Palestina: muros,
controle minucioso da movimentação, novas armas, novas técnicas, mas
principalmente uma gestão policial da vida.
É de certa percepção que os veículos de comunicação das grandes mídias é o grande
pilar que sustenta a legitimação do sistema penal, enraizando um sentimento de medo, criando
um inimigo constante, alimentando estigmas e, principalmente, tratando o sistema penal através
de um discurso simplista e raso, disseminado para a grande massa e ao qual Batista (2006, p.
102) chama de “populismo criminológico”. Segundo ela, “Nilo Batista demonstra as relações
entre mídia e sistema penal no capitalismo de barbárie, denunciando seu inédito protagonismo.
Quem pauta as agências do sistema penal é o monopólio global da mídia no Brasil”.
Esses veículos midiáticos possuem o objetivo de introduzir e sedimentar o campo da
ideologia da massa popular. Campo este, que possui um papel central de introduzir e
transformar interesses de um grupo dominante minoritário, em interesses gerais da sociedade;
no caso do sistema penal, introduz-se a inversão do sentido da lei, pondo o homem em condição
de existir para a ela, e não ela existindo ao homem (BATISTA, N. 2007).
Ao discutir o sistema penal, é definível três grandes linhas de pensamento: “Lei e
Ordem”, direito penal mínimo e o abolicionismo penal. No entanto, como a própria Batista
(2006) cita, não quer dizer que a perspectiva de “Lei e Ordem” seja característico
exclusivamente do campo ideológico da direita, o direito penal mínimo exclusivamente do
centro, e o abolicionismo penal exclusivo da esquerda; trata-se de uma questão muito complexa,
a ser melhor debatida. Os abolicionistas penais, por exemplo, tendem a se aliar à tendências,
órgãos e ONGs que possuem propensões reformistas, pelo motivo da vida no cárcere ser algo
6 Segundo dados do InfoPen (apud SINHORETTO, 2015, p. 29), entre 2005 e 2012 “a maior
parte dos(as) presos(as) não chegou a completar o ensino fundamental. Para este mesmo período
constata-se que uma parte muito restrita da população prisional possuía ensino superior [...]”.
43
de intervenções urgentes, mesmo que mínimas e que signifiquem na manutenção do sistema
penal. Ou seja, são estratégias imediatistas e necessárias para as vidas no cárcere que estão
sendo violadas.
Nessa mesma linha, há o apelo dos movimentos sociais em criminalizar certos atos
como uma forma de justiça, à exemplo da violência contra mulher, racismo, LGBTfobia, entre
outros. Essa recorrência à justiça criminal é totalmente plausível, em decorrência das condições
objetivas em que vivemos, e por ser também demandas imediatas; viver no capitalismo da
barbárie é ter como exclusiva opção imediata recorrer à justiça criminal, pois, a prazos curtos,
não há mais nada a recorrer. Neste caso, a ponderação que mais precisa ser feita dentro dos
movimentos sociais, é que a luta e a conquista não podem se limitar e esgotar-se ali, naquele
ato de criminalizar. É necessário ir além e buscar novas estratégias fora do sistema criminal,
que de fato sejam mais efetivas no tocante à uma mudança de cultura, de superação do sistema
capitalista e dos seus meios de opressão e controle, pois esse sistema de punir é uma máquina
criada e mantida para outros propósitos, visando inclusive, gerar mais violência.
Flauzina (2007, p. 77) faz uma análise de como o direto penal e o sistema penal não
possuem o poder de emancipar, libertar e de proporcionar igualdade social se são segmentos
que estão expressamente firmados pelo racismo:
São inócuos porque o Direito Penal, ao contrário dos demais ramos do Direito,
é um campo da negatividade e da repressão, não se constituindo enquanto
espaço para a promoção de interesses de caráter emancipatório. Além disso, e
mais importante, o Direito penal se materializa pelo sistema penal. E como
engrenagem que toma o racismo como pressuposto de sua atuação, o sistema
é um espaço comprometido, inadequado e incapaz de gerir as demandas a
partir de uma perspectiva de igualdade, a exemplo do que ocorre com as
demandas femininas.
E principalmente para os movimentos negros, não se esgotar na conquista de apenas
criminalizar o racismo, pois procurar viabilizar direitos e igualdade entre raças através do
sistema penal, é buscar onde justamente o racismo desde todos os períodos é base pilar de
sustentação desse sistema. Se findar apenas na criminalização é o significado de que não vamos
ter concretamente uma emancipação e igualdade. É um problema bem mais enraizado do que
apenas criminalizar, inclusive através da instituição criada historicamente para contes a
população negra, esse não é o caminho.
Tendo em vista esse cenário, o sistema penal tem sido considerado como um
espaço impróprio para a resolução dos conflitos de gênero, na medida em que
sob o discurso da proteção, especialmente da liberdade sexual, acaba por
duplicar a vitimização feminina. Assim, a partir da cultura machista que o
preside, o aparato criminal reproduz a violência na seleção de vítimas,
44
reforçando os estereótipos que as catalogam e consequentemente dividem,
além de não dar uma resposta efetiva ao ato infracional praticado
(FLAUZINA, 2006, p. 130).
Por fim, tomando a concepção de Baratta (1976), não há como pensar no fim do
sistema penal e marginalização criminal sem uma mudança diretamente na estrutura social e
econômica em que estamos inseridos. O sistema capitalista necessita da hierarquização e
criminalização de grupos de determinada raça e classe, e o sistema penal cumpre o papel de
manter essa estrutura de organização social distinguindo sobre critérios de seletividade quem
merece a “liberdade”, e quem precisa ser criminalizado e excluído de uma integração social.
45
4. O ABOLICIONISMO PENAL NA TRADIÇÃO DAS LUTAS SOCIAIS
ANTICAPITALISTAS
4.1 ABOLICIONISMO PENAL: ASPECTOS HISTÓRICOS E TEÓRICOS
O abolicionismo penal é um pensamento, uma teoria, como também é um movimento
social advindo dos novos movimentos da criminologia crítica, que porta vários sentidos plurais
e libertários frente ao controle social em sentido amplo (ANDRADE, 2020). O movimento
abolicionismo possui característica ir ao confronto de ideias reducionistas do que é o “crime”,
do senso comum criminológico, da universalidade do discurso penal e trata a situação-problema
de forma subjetiva, confrontando a decisão do soberano e defendendo a não existência do
soberano e das prisões (PIRES, 2020).
O abolicionismo penal no Brasil é carregado de muito senso comum, distorção, o que
ocasiona deslegitimação. O pensamento no senso comum tem atribuído vários modelos de
conceito e características do abolicionismo penal, a exemplo de atribuir o modelo monopolítico,
ou seja, referenciado de forma singular e o modelo totalizador e estático, ou seja, como se o
abolicionismo penal defendesse um sistema pronto, que está pronto para ser implementado, no
pensamento de que hoje estamos na base do sistema penal e amanhã já podemos acordar com
os abolicionistas penais derrubando todas a prisões e acabando com o controle social. Outra
estigma atribuído ao abolicionismo é que o ato de abolir vai significar caos, desordem, todos
voltando ao estado de natureza, olho por olho e dente por dente, estado de guerra, deixando a
sociedade à mercê da criminalidade e indivíduos perigosos. Há quem afirme também que o
abolicionismo é apenas um pensamento inconsequente e irresponsável, advindo dos setores
marginalizados e que não merece espaço na discussão criminológica. E principalmente é colado
como um sistema utópico, da ilusão vinda da Europa e que jamais será possível ser
implementada na realidade brasileira, em decorrência das diversidades de contextos
(ANDRADE, 2020).
O abolicionismo não é um receituário pronto de que já está pronto para ser
implementado. É uma teoria/movimento que está dentro das lutas processuais e micro, a ser
exercida cotidianamente, até sem a própria ciência de que é um exercício frente ao sistema
penal. Por exemplo, o antiproibicionismo das drogas é também uma luta abolicionista, tendo
como contexto contemporâneo brasileiro, o proibicionismo das drogas, o tráfico de drogas tem
sido o maior motivo de mortes e encarceramentos de jovens. É necessário deixar exposto que
46
o abolicionismo penal não é uma forma de ausentar o controle social, mas sim o controle social
punitivo. E de fato, o abolicionismo penal adveio pioneiramente de pensadores europeus, mas
é um movimento que chegou a todo o mundo, inclusive na discussão da criminologia crítica
latino-americana, bebendo de fontes europeias, mas colocando como centralidade o contexto
da América Latina.
O primeiro passo para tratarmos sobre o abolicionismo penal é labutar o ponto
ideológico. Fazer com que as pessoas possam se questionar se não existe alternativas frente ao
sistema penal que possam de fato ser efetivo no que concerne a integridade física e psicológica
a todos os indivíduos. Muito pelo contrário, o que ocorre é uma alimentação do imaginário da
população a existência de inimigos perigosos. Porém, é um sistema que não faz ninguém se
sentir mais seguro, mas na verdade tira o seu foco dos verdadeiros ameaçadores de segurança.
Davis (2020, p. 41) afirma: “Teoricamente, isso deveria fazer com que as pessoas se sentissem
melhor, mas o que realmente faz é desviar sua atenção das ameaças à segurança geradas pelas
forças armadas, pela polícia, pelas corporações gananciosas e, algumas vezes, pelos próprios
parceiros íntimos de uma pessoa.”
O trabalho ideológico de fundamentar que o sistema penal é algo essencial e que não
há mais nada além que possa substitui-lo é um trabalho feito através da popularização de
discursos simplistas, fazendo com que não haja uma discussão e uma reflexão mais aprofundada
sobre as nuances que perpassam as situações que levam as pessoas até o cárcere. É estabelecido
a figura de um indivíduo mal e desumanizado, e você pode ser apenas contra ou a favor desse
inimigo e seus atos. Os veículos midiáticos, principalmente o jornalismo policial
sensacionalista, que está presente na vida da população brasileira, tem feito esse trabalho
ideológico, alimentando a criminalização de afro-brasileiros.
É muito fácil limitar o discurso de que o sistema penal é algo necessário e naturalizado.
Não vai ser preciso refletir sobre a história do Brasil, sobre em que contexto se efetivou um
sistema penal nesse país de capitalismo periférico e o motivo de sua manutenção. Nos tira a
responsabilidade de pensar sobre as problemáticas do racismo, de gênero, de classe que estão
postas. A organização social de um país periférico que atribui ideologicamente uma democracia
racial, como também a presença de uma mídia que naturaliza a criminalização, nos distancia
também da realidade subumana, das violações de direitos, da violação dos corpos que
perpassam a vida no cárcere.
O abolicionismo penal vai muito além do que apenas uma reivindicação de um mundo
sem um sistema penal. Como já foi refletido anteriormente, o sistema penal foi criado para
47
manter interesses de uma elite branca e sua necessidade de criminalizar e conter a população
afro-brasileira da garantia de uma verdadeira integralidade social. Sendo, assim é um sistema
que perpassa por interesses de classe, de uma determinada raça em manter a soberania política,
econômica, social, cultural e ideológica. Portanto, discutir abolição do sistema penal é
necessariamente discutir sobre esses determinantes que sustentam esse sistema e trazer a mesa
todos as problemáticas de uma democracia nos moldes do capitalismo.
Davis (2020) recorrentemente explicita uma análise do Du Bois. Para Du Bois, o fim
da instituição escravidão não era para ter sido apenas um fim por si só. Mas que a abolição da
escravidão viesse juntamente com a criação de novas instituições que garantissem a
integralidade social efetiva desses ex-escravizados. Trazendo para a nossa realidade brasileira,
foi algo que não ocorreu e sim a introdução de um sistema de criminalização. Essa mesma
análise pode ser usada no abolicionismo penal. Não apenas o ato de acabar o sistema penal,
mas também a criação de novas instituições que atuem efetivamente de forma democrática nas
expressões da questão social que incidem na população e os levam em direção ao sistema penal.
Davis (2020, p. 93) afirma:
Cabe a nós insistir na obsolescência do encarceramento como forma
dominante de castigo, mas não podemos fazer isso brandindo machados e
investindo literalmente contra os muros dos presídios, mas sim reivindicando
novas instituições democráticas que discutam os problemas que nunca são
discutidos pelos presídios de maneira produtiva.
O debate sobre o sistema penal vem se tornando necessário, graças as denúncias das
condições subumanas e as mais variadas violações, trazidas pelos próprios detentos, por ex-
detentos e principalmente pela mobilização de familiares, que estão profundamente engajados
lá luta pelos Direitos Humanos, nas frentes de desencarceramento. Ou seja, mais uma vez o
debate tem tomado espaço em decorrência de muita luta e resistência. Bem como várias
entidades de esquerda que vem dialogando a pequenos passos sobre o sistema penal de uma
forma crítica. Esses pequenos passos da esquerda brasileira no diálogo e na atuação frente ao
sistema penal reflete em um limitado engajamento apenas no quesito reformista desse sistema.
Hulsman e Celis (2018, p. 93) afirmam o quão é impossibilitado uma mudança de fato efetiva
nas prisões, estando elas inseridas no sistema penal e na sua real funcionalidade:
Não basta tentar modificar a situação dos detentos, para que alguma coisa
realmente mude. A concentração das tentativas de mudança nesta última fase
do processo penal se revela, na práti-ca, inoperante. Pretender transformar a
prisão - e somente a prisão - significa trabalhar no interior de uma posição
imutável, sem qualquer perspectiva de progresso. É preciso se situar mais
acima, lá no começo do processo, onde são selecionadas as pesssoas que vão
se tomar detentas.
48
As próprias prisões, em um determinado período histórico, foram uma criação
reformista, progressista e que ampliava os direitos dos cidadãos; uma forma humana de lidar
com os indesejados. A punição antes das prisões era um espetáculo público, onde pessoas eram
executas e/ou torturadas de diversas formas em praças públicas e diante de uma plateia, com o
intuito de exacerbar a sensação de retaliação ao crime cometido.
Criou-se então nos reformistas da época, o pensamento de que, isolar tal indivíduo e
colocá-lo em uma penitenciária – para como o próprio nome já diz, pagar uma penitência - seria
de fato um caminho para “corrigi-lo” perante a lei. Ou seja, a lógica simples é que, ao cometer
tal ato, aquela pessoa seria isolada da sociedade, perderia seu direito de liberdade, para
simplesmente refletir sobre o seu ato, como se fosse algo parecido com um retiro. Após sua
reflexão, autoconscientização e aprendizado, a tal pessoa era inserida novamente na sociedade,
arrependida do que fez e consciente de não cometer novos atos. A história das prisões está
imbricada com a ideia de reforma. Davis (2019a, p.43) afirma que, “se as palavras ‘reforma
prisional’ saem com tanta facilidade de nossos lábios, é porque ‘prisão’ e ‘reforma’ estão
indissociavelmente ligadas desde o início do emprego do encarceramento como o principal
meio de punir aqueles que violam as normas sociais.”
O aumento do encarceramento no Brasil nos últimos anos, principalmente em
decorrência da “guerra às drogas”, tem proporcionado algumas movimentações equivocadas
que tinham como sentido a resistência ao aprisionamento, porém, possui quase um efeito
contrário. Como a exemplo de criações de penas alternativas, a criação de prisões “vips”. São
movimentos que mais agravam e naturalizam o sistema penal. Um exemplo muito claro é a
prática da justiça restaurativa. Para a justiça restaurativa não está em questão o ato de punir,
muito pelo contrário, a justiça restaurativa está bastante embricada com as tendências neoliberal
de punir mais e melhor. São práticas que estão conectadas com a tendências das mais variadas
formas de punição fora do encarceramento propriamente dito (PASSETTI, 2020), ampliando
os instrumentos de disciplina e controle social e mesmo sendo formas alternativas de punir, não
necessariamente está ligado a diminuição do número de encarcerados, pelo contrário, é um
número que cresce a cada novo ano.
O movimento abolicionista também tem participado desses espaços de diálogos de
mediações reformistas do sistema penal, diálogos da justiça restaurativa, dado que, as condições
da vida no cárcere necessitam de intervenções imediatas, além da corrente reformista ao longo
dos tempos tem se inserido com êxito em algumas conquistas, como reformulação de leis, como
49
também uma bandeira de promessa de “reinserção social”. Mas não se pode perder de vista que
defender apenas reformas no sistema penal, significa sua permanência na sua mesma essência
racista, bem como, reafirmar a ideologia de que é impossível a abolição do sistema penal.
A questão mais imediata hoje é como prevenir um aumento ainda maior das
populações carcerárias e como levar tantos detentos do sexo masculino e do
sexo feminino quanto possível de volta para o que os próprios chamam de “o
mundo livre”. Como podemos descriminalizar o uso de drogas e o comércio
de serviços sexuais? Como podemos levar a sério estratégias de justiça
reparadora em vez de uma justiça exclusivamente punitiva? Alternativas
eficazes envolvem a transformação tanto das técnicas de abordagem do
“crime” quanto das condições sociais e econômicas que levam tantos jovens
de comunidades pobres, especialmente das comunidades de pessoas de cor, ao
sistema correcional juvenil e depois à prisão. O desafio mais difícil e urgente
hoje é explorar de maneira criativa novos terrenos para a justiça nos quais a
prisão não seja mais nossa principal âncora (DAVIS, 2019a, p. 22).
4.2 PERSPECTIVAS POLÍTICAS DAS ESTRATÉGIAS ABOLICIONISTAS
Davis (2019a) nos faz comparar algumas instituições que foram bem consolidadas,
que estavam em um lugar de essencialidade e de interesses econômicos, políticos e socias de
uma classe e raça dominantes, mas que se tornaram obsoletas. Sendo um exemplo muito claro,
a escravidão, o linchamento e a segregação. O exercício de pensar o quão deveria ser difícil
vislumbrar uma organização social sem a escravidão, mas que foi possível chegar a uma
abolição, por mais que esse momento no Brasil tenha ocorrido em contexto de interesses da
elite branca, mas também por muita luta e resistências de movimentos negros que lutavam por
uma democracia plena, bem como, hoje ativistas antiprisionais defendem a abolição com o
mesmo propósito de democracia legitima.
O método de encarcerar pessoas, surgiu juntamente com a ascensão do sistema
capitalista e não é nenhuma coincidência. Temos que pensar que esse sistema penal que
encarcera classe trabalho, principalmente a classe trabalhadora afro-brasileira, faz parte da
necessidade de produzir criminalização, contenção e empobrecimento dessa população, e da
manutenção do sistema capitalista. Estar na luta de combate do capitalismo é necessariamente
abraçar a luta contra o sistema penal.
O grande maior entrave em promover debates sobre o abolicionismo penal é o
questionamento do que viria depois e do que substituiria esse sistema. Bem como, há uma
expectativa que abolicionistas penais tenhamos a obrigação de ter tudo estruturado de como
será esse depois e como lidar com tantos encarcerados, com essa população que cometeram
50
atos infracionais. Pensar dessa forma simplificada e individualizada não é o caminho para uma
reflexão mais profunda para um caminho de tornar as prisões obsoletas.
O primeiro caminho de ponderação é pensar que o sistema penal não é algo isolado do
setor de segurança. Como foi enfatizado anteriormente, o sistema penal está historicamente e
completamente imbricado com as necessidades do sistema capitalista e racista. Em toda a
história do Brasil é testemunhado a criação e ascensão do sistema penal brasileiro
desempenhando o papel de criminalizar, em manter a escravidão, em conter e impedir a
integralidade social de afro-brasileiros sempre em propício da manutenção da política
econômica e social regida pela elite branca brasileira. Sem descolar do processo histórico do
sistema penal brasileiro, trazendo para a nossa contemporaneidade de capitalismo monopolista,
de grandes corporações e tecnologia; vivenciamos o convênio desse modelo capitalista e o
sistema penal. Sendo assim, podemos começar a dialogar mais profundamente o real propósito,
permanência e para quem ele de fato serve e o quão está conectado com todas as estruturas
político-econômica, político-social e nuances na esfera de classe, raça e gênero do sistema
capitalista.
Ao tratar o sistema penal e suas as relações políticas, sociais e econômicas, as
estratégias e intervenções abolicionistas precisam estar pautadas nessas nuances. Significa
perpassar por lutas no âmbito de raça, classe, gênero. Lutas por uma educação democrática, em
combate a militarização desse espaço. Lutas por um acesso a saúde de qualidade democrático
e gratuito para todos e principalmente uma luta anticapitalista. Voltando a grande referência do
Du Bois trabalhada pela Davis, é uma estratégia para o abolicionismo penal a criação de novas
instituições que possam de fato trabalhar as nuances e expressões da questão social que tendem
a encarcerar uma certa parte da população e que essas instituições possam substituir o sistema
penal da nossa organização social e do nosso ideológico de necessidade de punição. Davis
(2019a, p. 116) analisa o âmbito do fortalecimento das escolas, sem militarização, com um
ensino democrático e representativo como uma forma de estratégia para a diminuição de
encarcerado:
As escolas devem, portanto, ser encaradas como a alternativa mais poderosa
às cadeias e prisões. A menos que as atuais estruturas de violência sejam
eliminadas das escolas nas comunidades pobres e de pessoas de cor —
incluindo a presença de guardas e policiais armados — e a menos que o
ambiente escolar se torne um lugar que incentive o prazer de aprender, as
escolas continuarão a ser o principal canal para as prisões. A alternativa seria
transformar as escolas em veículos para o desencarceramento.
51
Ao debater o setor da saúde, é nítido, e principalmente em nossa conjuntura de governo
federal no que se refere ao sucateamento do Sistema Único de Saúde, sistema esse, que que tem
como dever prover a garantia de acesso à saúde de forma gratuita a todos. A população que se
encontra em condições de pobreza recorre ao SUS como um dos seus únicos meios de acesso à
saúde, e são recepcionados por sistema que está fragilizado e sem condições de proporcionar
um acolhimento imediato. É palpável que o direito ao acesso à saúde é incompatível entre a
população na situação de pobreza e a população burguesa. A população empobrecida não possui
meios financeiros para recorrer a outras alternativas além do SUS, seja arcar financeiramente
com o acompanhamento à saúde particular, como a contratação de planos de saúde também no
âmbito particular. É necessário ter consolidado que o acesso a um direito com qualidade se
esbarra na disparidade de classe e de raça no Brasil.
A descriminalização das drogas é outro fato a ser defendido e trabalhado, tanto para
combater o racismo, quanto para a luta do desencarceramento. Haja vista que, a criminalização
das drogas e principalmente a “guerra as drogas” instaurada no Brasil tem levado muitos afro-
brasileiros em situação de pobreza ao encarceramento. Nesse sentido, é necessário pensar o
usuário de drogas como uma demanda de saúde pública, além da necessidade do
desenvolvimento de programas, projetos fortalecidos de redução de danos para que esses
usuários possam recorrer de forma acessível e gratuita. É um caminho mais efetivo no objetivo
de tratar diretamente a relação da dependência de drogas que alguns países já tem adotado,
tendo em vista que encarcerar essas pessoas é apenas uma forma de punir, sem efetivação direta
com a dependência em questão, além de não obter nenhum resultado em relação a uma
diminuição, seja no tráfico, ou no consumo. E mais uma vez nos vemos no debate de um
Sistema Único de Saúde bem consolidado no que se refere aos investimentos e ampliação. Um
dos exemplos que pode ser citado dos inúmeros países que vem adotando uma postura de
redução de danos é Portugal, segue um trecho de um artigo do jornal El País, relatando como
Portugal se tornou referência mundial na regulação das drogas, é nítido os resultados positivos
colhidos, seja na diminuição do consumo de drogas, como na diminuição da transmissão de
algumas doenças, como também a diminuição de encarceramento por motivos de drogas:
Foi então que o Governo aprovou uma nova estratégia que começaria a ser
implementada dois anos depois, após longos debates com a sociedade civil e
no Parlamento. A legislação estava longe de ser revolucionária:
descriminalizar o consumo daqueles que portassem no máximo 10 doses de
uma determinada substância ilícita. Não muito diferente do que acontece
na Espanha, por exemplo. Mas o que fez a diferença foi a mudança de
sensibilidade em relação aos viciados: deixaram de ser tratados como
criminosos, receberam programas de cuidados, de substituição de heroína por
52
metadona, foram incluídos no sistema de saúde para tratarem suas doenças.
Os resultados não demoraram a chegar. Apesar de o consumo global de drogas
não ter diminuído, o de heroína e cocaína, duas das mais problemáticas,
passou de afetar 1% da população portuguesa para 0,3%; As contaminações
por HIV entre os consumidores caíram pela metade (na população total,
passaram de 104 novos casos por milhão ao ano em 1999 para 4,2 em 2015),
e a população carcerária por motivos relacionados às drogas caiu de 75% a
45%, segundo dados da Agência Piaget para o Desenvolvimento (LINDE,
2019).
É necessário apontar que esses programas, projetos de redução de danos necessitam
possuir um caráter universal e gratuito. Não é só uma questão de estabelecer novas alternativas
não-criminalizantes desses usuários, pois esse suporte de instituições que tratam de usuários de
drogas existe igualmente nos países que estão traçando a “guerra as drogas”, o ponto é que essas
instituições são de cunho particular e de custos muito altos. Ou seja, mais uma vez o recorte de
classe e raça nesse contexto. O usuário de drogas de classe alta, não será tratado como um
criminoso, será tratado apenas como um dependente que precisa de um tratamento de cunho de
redução de danos, pois existe a possibilidade de arcar com os custos dessas instituições. Nessa
mesma posição de usuário e drogas, a classe pobre e de cor do país é afogada na criminalização
e no encarceramento. A luta precisa ser na criação de instituições que possam contribuir com o
desencarceramento, mas sempre levantar a pauta de que elas precisam ser gratuitas e para todos.
Outra pauta de intensa relevância, principalmente porque ela tem sido uma discussão
central ao redor do mundo, é a questão de imigrantes. Tem sido centro de discussões a nível
mundial, pois essa evasão de pessoas do se lugar de origem em destino a outros países, tem sido
bastante recorrente. Essas pessoas se motivam a sair de seus países de origem, por motivos
variados, seja fugindo de guerras, de violência, de intolerâncias, da extrema pobreza. Porém,
os motivos sempre se voltam a busca dessas pessoas de viverem de forma mais digna e
melhorarem sua qualidade de vida. Ou seja, a deslocação de pessoas para países de “primeiro
mundo” resulta das desigualdades do capitalismo global, a estruturação econômica dos países.
Em resposta a essa imigração, os países que são os destinos desses emigrantes têm adotado a
política de criminalizar essas pessoas que entram no país de forma irregular. Nos últimos anos,
esses países têm investido em centros de detenções específicos para imigrantes, encarcerando
essas pessoas, além de ser fonte de lucro de muitas corporações que fortalecem o complexo
industrial prisional. Segue um trecho de um artigo da BBC que discute os lucros por trás do
encarceramento de imigrantes nos Estados Unidos:
Além dos centros de detenção, há também uma ‘complexa rede de negócios
privados lucrando com a crise migratória’, segundo Tylek. ‘No setor de
transportes, por exemplo, estão as empresas que transportam os imigrantes
53
desde a fronteira até os centros de detenção. Em alguns casos, as empresas de
transporte são propriedade dos mesmos conglomerados donos dos centros de
detenção. Isso ocorre com o Geo Group e o CoreCivic, por exemplo’, diz ela.
Além disso, diversas companhias aéreas americanas alugam seus aviões para
o transporte de imigrantes, para deportação ou para enviá-los a centros de
detenção. Nas últimas semanas, com o aumento das críticas públicas, muitas
delas se negaram a transportar crianças que tivessem sido separadas de suas
famílias. O fornecimento de alimentação e telefonia para os centros de
detenção também produz contratos lucrativos (BERMÚDEZ, 2018).
Não é necessário ir muito longe para compreender diante do que foi exposto aqui, que
é mais lucrativo criminalizar imigrantes, do que investir em uma política de acolhimento e de
seguridade de direitos dessa população. Trazendo para a realidade do Brasil, que também está
tendo um aumento significativo no número de imigrantes, é muito comum ver essas pessoas
em situação de rua, em sinais de trânsito pedindo alguma contribuição financeira, ou
executando trabalhos insalubres, como limpando para-brisas de carros, ou vendendo balas. Essa
população pode não ser inserida no cárcere de imediato ao chegar no país, mas as condições de
desassistência que encontram, fazem com que os levem a serem criminalizados. Ou seja, uma
população que saiu do seu país de origem, buscando dignidade de vida, chega no país de destino
para se inserir em condições até piores, por falta de políticas fortalecidas de acolhida e garantias
para essas pessoas.
Como já foi amplamente discutido anteriormente o sistema penal brasileiro foi
concebido nos moldes do racismo de um sistema de exploração de corpos, e ao longo de todo
o processo histórico apenas se adaptou as novas realidades e criou novas formas de criminalizar
negros e pobres. Não há como discutir e desenvolver um abolicionismo penal brasileiro, sem
discutir o racismo como base estruturante desse sistema. As lutas contra o racismo também não
podem ser descoladas da luta pelo desencarceramento.
Essa compreensão mais elaborada do papel social do sistema de punição exige
que abandonemos nossa maneira habitual de pensar sobre a punição como
uma consequência inevitável do crime. Teríamos que reconhecer que o
“castigo” não é uma consequência do “crime” na sequência lógica e simples
oferecida pelos discursos que insistem na justiça do aprisionamento, mas sim
que a punição — principalmente por meio do encarceramento (e às vezes da
morte) — está vinculada a projetos de políticos, ao desejo de lucro das
corporações e às representações midiáticas do crime (DAVIS, 2019a, p. 121).
Davis (2019a) traz também a alternativa de transferir crimes para a responsabilidade
de civil e não criminal, como uma forma de combater a retaliação dessas pessoas. Em alguns
países e até mesmo nos Estado Unidos, algumas organizações e os próprios indivíduos tem
adotado o método de justiça restaurativa ou reparadora. Consiste em tratar o indivíduo que
54
cometeu o ato em um devedor e não em um criminoso, mas devendo se responsabilizar pelo
ato cometido e repara-lo.
Hulsman e Celis (2018) também é outro pensador que traz uma estratégia essencial
rumo a uma mudança de mentalidade em relação a estigmas e estereótipos. Ele afirma que a
modificação da linguagem usada, como exemplo as palavras crimes, criminoso, criminalidade,
substituindo para palavras como “situações problemáticas”, “pessoas envolvidas”, seria uma
forma de romper com o ideológico criado em cima da figura do “criminoso” e do ato
infracional. Além de possibilitar novas formas de resolver tais acontecimentos conflitantes.
A dificuldade de pensar em uma vida sem prisões está muito atrelado aos ideológicos
que sustentam a nossa contemporaneidade e o sistema penal. O sistema penal tem sido usado
para dissuadir os reais problemas societário de um país capitalista periférico. O sucateamento
e privatização de direitos básicos, como educação e saúde. O desvio de foco das lutas de gênero,
de classe, a própria pobreza. Os objetivos são sempre distanciar as massas de um embate frente
as condições que o capitalismo está propiciando. Para que caia por terra a ilusão de que o
sistema penal é uma solução de problemas, o movimento abolicionista precisa traçar estratégias
anticapitalistas, o movimento nunca será apenas uma luta para o fim das instalações físicas das
prisões e do sistema penal, é uma luta principalmente ideológica. O abolicionismo penal precisa
vir na educação dos indivíduos, sendo trabalhado na subjetividade, mas ao mesmo tempo que
trata o individual, trata também de uma absorção coletiva. Davis (2018, p. 36) traz o quão o
sistema penal nos limita em algumas reflexões:
Por que aquela pessoa é má? A prisão impede essa discussão. Qual é a
natureza dessa maldade? O que a pessoa fez? Por que a pessoa fez aquilo? Se
pensarmos a respeito de alguém que cometeu atos de violência, o que permite
aquele tipo de violência? Por que os homens se envolvem em comportamentos
violentos contra as mulheres? A própria existência das prisões impossibilita
esse tipo de discussão, que é necessário para que imaginemos a possibilidade
de erradicar tais condutas.
O capitalismo monopolista detectou o sistema penal como uma forma de lucro. Há a
necessidade de mais corpos criminalizados e encarcerados para que o sistema penal siga
funcionando e ampliando suas estruturas. Aí entra as empresas terceirizadas prestando os mais
diversos serviços para essas estruturas, além de diversas empresas de segurança que lucram
com a banalização da criminalização. Diante do exposto, o maior grande interessado atual na
manutenção e ampliação do sistema penal são as grandes corporações do capitalismo
monopolista. Davis (2018, p. 101) traz uma fala bem emblemática do real significado do
sistema penal:
55
Coloquem-nas, todas, em uma imensa lata de lixo, acrescentem algum tipo de
tecnologia eletrônica sofisticada para controlá-las e deixem que definhem ali.
Ao mesmo tempo, criem a ilusão ideológica de que a sociedade ao redor está
mais segura e mais livre porque pessoas negras, latinas, indígenas e asiáticas
perigosas, pessoas brancas perigosas e, decerto, pessoas muçulmanas
perigosas estão trancadas!
Os indivíduos que se inserem no cárcere, são pessoas que tiveram suas vidas
perpassadas por violações de direitos, não tiveram acesso à educação pública qualidade, a um
emprego, uma moradia, acesso a saúde pública de qualidade, ou seja, condições subumanas
proporcionadas pelo capitalismo e o que as restaram foi a criminalização e o cárcere, para que
a sociedade não sinta mais responsável por aquela vida que o capitalismo violou.
Outra estratégia citada por Davis (2018), é a necessidade de unificação e conexão das
lutas frente ao capitalismo. O que o feminismo negro interseccionalidade. É necessário haver
uma interseccionalidade das lutas, seja elas nacionais, como também internacionais, para que
possamos unificar forças em todas as causas e principalmente a anticapitalista.
4.3 O ABOLICIONISMO PENAL NA REALIDADE BRASILEIRA
O Brasil enquanto país capitalista periférico, com um sistema penal que em sua
essência de surgimento está atrelado aos interesses da classe dominante e segue servindo aos
mesmos propósitos, apenas se adequando as novas demandas. Como já foi citado anteriormente
os afro-brasileiros são sempre o que mais perpassam pelo sistema penal, em decorrência do
contexto histórico dos negros e o direito de uma integralidade social que sempre lhes forem
negadas. O encarceramento segue de uma certa forma escondendo essa população e suas reais
necessidades sociais e econômicas, propiciadas pelos problemas concretos no modo de
produção capitalista. No Brasil, segundo o Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (2020), crimes que mais encarceram são crimes contra o patrimônio (38,65%) e
em seguida relacionados a drogas (32,39%).
56
Figura 1 – Quantidade de incidências por tipo penal
Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (org.). Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (2020)
Esses crimes contra o patrimônio que estão evidenciados no gráfico acima que
chegaram a o encarceramento, são crimes cometidos por indivíduos de condições
socioeconômicas precarizadas, são roubos de objetos pessoais, automóveis. Dificilmente temos
um encarceramento de crime por questões de crime patrimonial que sejam de fato
economicamente grande, como a exemplo de questões tributárias. Sendo assim, é notório que
o sistema penal alcança pessoas que estão expostas as expressões da questão social no sistema
capitalista e consequentemente atinge a maior parte dos afro-brasileiros.
O marco no aumento no número de encarcerados que se inserem em decorrência
de crime relacionado as drogas se caracterizou principalmente após a Lei Federal nº
11.343/2006, a partir de então foi intensificado o processo de criminalização tanto do que se
trata do tráfico de drogas, como também para os usuários. Ao criminalizar também os usuários
têm-se a situação de tratar questões de saúde pública, redução de danos de uma forma criminal.
A guerra as drogas, baseada no proibicionismo, fez com que os números do encarceramento
aumentassem exorbitantemente, ignorando qualquer tipo de realidade objetiva das pessoas que
se inserem no cárcere em decorrência dos crimes de drogas e mais uma vez criminalizando
57
majoritariamente determinados grupos sociais que são a ponta mais frágil do sistema de tráfico
de drogas e usuários.
Segue gráfico da quantidade de incidências por tipo penal dividido por gênero
masculino e feminino:
Figura 2 – Quantidade de incidências por tipo penal, Masculino e Feminino.
Fonte: Departamento Penitenciário Nacional (org.). Levantamento Nacional de Informações
Penitenciárias (2020)
Nesse gráfico dividido por gênero masculino e feminino, é evidente um número
considerável do gênero feminino se enquadrando em crimes de drogas. As mulheres tem se
inserido no encarceramento de forma muito expressiva, principalmente em decorrência do
crime de tráfico de drogas. Essas mulheres, devido as condições objetivas de pobreza, mulheres
essas que geralmente são as responsáveis pelo núcleo familiar, tem tomado um lugar no sistema
de tráfico de drogas em seu geral como “mulas”7 de droga. Ou seja, essas mulheres ocupam
um lugar de vulnerabilidade, de exposição e de descarte maior mesmo nessas atividades ilegais,
a discussão de gênero perpassa todas as estruturas socais.
É inadiável tomar como uma estratégia abolicionista o desinvestimento no
sistema penal. Como já foi analisado anteriormente, o complexo industrial prisional tem
avançado, e essa inserção direta de lucratividade capitalista no sistema penal tem sido a amarra
mais difícil de se romper para pensarmos mais concretamente em um projeto de uma sociedade
sem o sistema penal. Seguindo nessa estratégia, devemos lutar para o direcionamento desses
orçamentos destinados ao setor de segurança, para setores de direitos sociais, educação, saúde,
políticas públicas, assistência social.
7 Indivíduo que realiza o transporte de droga transfronteiriço.
58
É muito bem apregoado como consenso geral a ideia de que para termos uma
ordem social, manutenção da integridade das pessoas, é necessário encarcerar determinados
indivíduos. Contudo, pouco se reflete sobre as motivações reais de encarceramento desses
corpos, tornando-se assim, algo distante abstrato. O abolicionismo como estratégia política de
classe, supõe engendrar um trabalho de base, a partir da tomada de consciência da massa
popular de que o sistema penal é apenas uma máquina de criminalizar, excluir e matar pessoas.
É substancial deixar entendível que é um sistema que mesmo com seu intuito inicial de
substituir os regimes de punição pautados os castigos físicos e execuções públicas, segue
agredindo corpos e os assassinando. Além de descortinar a ideia de que o sistema penal e sua
expansão atua diretamente na diminuição de ocorrência de crimes e violência, são variantes que
não correm na mesma direção e proporção. Ao alcançar uma consciência popular, a
reivindicações abolicionistas vira pauta popularizada. O Hulsman e Celis (2018, p. 61-62)
afirma o quão os corpos encarcerados são agredidos em situação de encarceramento:
Mas, é também um castigo corporal. Fala-se que os castigos corporais foram
abolidos, mas não é verdade: existe a prisão, que degrada os corpos. A
privação de ar, de sol, de luz, de espaço; o confinamento entre quatro paredes;
o passeio entre grades; a promiscuidade com companheiros não desejados em
condições sanitárias humilhantes; o odor, a cor da prisão, as refeições sempre
frias onde predominam as féculas - não é por acaso que as cáries dentárias e
os problemas digestivos se sucedem entre os presos! Estas são provações
físicas que agridem o corpo, que o deterioram lentamente.
Pensar em abolir o sistema penal, significa abolir também ideologicamente. É
necessário desconstruir o sistema penal como um meio de trazer segurança, resolver os
problemas, afastar e punir o inimigo. Ou seja, uma mudança de percepção, de como ligar com
ações conflitantes. Tudo isso envolve uma série de mediações que precisam desvelar a forma
como a banalização do crime se processa na sociedade e no prisma do aparato legal
institucional, de modo que permear a alienação ideológica e estrutural da ordem capitalista
fundamentada na criminalização da pobreza. Trazendo para a realidade objetiva brasileira e o
contexto histórico marcado por escravidão dos corpos negros e o seguimento da não
integralidade social dos afro-brasileiros é necessário o abolicionismo frente a ideologia racista.
Ao tratar das perspectivas do sistema penal brasileiro e a presença determinante
do racismo estrutural, as lutas abolicionistas se fazem fundamentais na realidade brasileira para
fins de garantia de direitos humanos, garantia de políticas públicas sociais, a partir de uma
sociedade com práticas libertárias. O abolicionismo penal deve estar presente nos segmentos
de lutas atuais, além de ser tratado como um movimento em prática e não como uma utopia.
59
Deixar sempre enfatizado que não é um movimento que visa reformas, ou manutenção e sim
um movimento que é uma viabilidade incomparável e possui de abolir o encarceramento da
população que está à mercê do sistema penal.
60
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O abolicionismo penal é uma luta urgente a ser democratizada em âmbito
universal. O processo histórico brasileiro é construído através da exploração e genocídio de
povos, em prol do domínio dos colonizadores, um país cuja condição econômica e social da sua
formação nacional esteve e permanece submetida à dinâmica capitalista dependente de
desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo mundial. Aqui, o sistema penal emergiu
a serviço de uma classe e de seus interesses capitalistas de proteção e ampliação da propriedade
privada burguesa, sem que precisasse bancar os débitos pressupostos na perspectiva moderna
dos pactos de civilidade do capitalismo ocidental. Revestida de uma ideologia da ordem
abarcadas por falsas condutas morais, criou um distintivo social, determinando quem é “útil”
para o sistema capitalista do lado de fora e quem é mais “útil” dentro das prisões. Assim, o
sistema penal brasileiro é uma grande máquina de moer gente, corpos que possuem raça, que
fazem parte de uma determinada classe social, que possuem determinadas subjetividades, que
tiveram e têm seus direitos fundamentais negados e violados, velado pelo manto da
“democracia racial”.
O movimento abolicionista precisa ser uma pauta de lutas em todos os
segmentos de lutas da sociedade e principalmente anticapitalista, pois estamos todos presos a
esse sistema que sempre será seletivo, violador de direitos de alguns e jamais romperemos com
as violações das minorias. O capitalismo necessita das expressões da questão social, das
periferias para seguir operando, que sempre precisará de um sistema penal reformado ou não,
mas um sistema que não perderá sua essência de operar aos interesses da manutenção dos lucros
capitalistas. O sistema penal é um grande negócio extremamente lucrativo para o capitalismo
que serve tanto à ilegalidade como também ao legalismo, ou seja, é um sistema utilitarista das
classes dominantes.
O crescimento do conservadorismo é um fenômeno mundial. Contudo, em
países da periferia capitalista, o contexto de crise do capital convive com o levante de
vanguardas neoliberalistas e protofascistas, que flertam com os interesses imperialistas centrais
e asfixia com ameaças, expropriações e violações de direitos sociais a frágil democracia
burguesa conquistada historicamente pelas lutas populares e do conjunto de trabalhadores/as.
A maior expressão disso, no Brasil, é representada pelo bolsonarismo, o processo de
sucateamento de políticas públicas, retirada de direitos e a guerra aos pobres tem se
intensificado e sido mais evidenciado nos últimos anos, através do encarceramento em massa,
61
do aumento da letalidade policial, em determinados territórios. Além da falácia de um
posicionamento aberto bolsonarista de intensificação nos segmentos de segurança. Essa
intensificação não significa necessariamente investimentos, mas trago com o significado de
uma legitimação de torturas, de matar corpos sem muito receio de velar a conduta de letalidade
policial.
Apesar de uma conjuntura quase que inteiramente desfavorável para concretização de
lutas sociais, é necessário a resistência e traçar estratégias que concretizem a resistência. A
universidade, mesmo sendo impactada com os retrocessos da onda bolsonarista, ainda é um
espaço propício de resistência, através dos espaços de trocas de debates, das produções
acadêmicas e democratização do conhecimento crítico. É necessário um fortalecimento das
bases de resistência, de uma democratização de conhecimentos e conscientização popular e
principalmente das lutas unificadas, a necessidade de um entendimento e concretização da
interseccionalidade das lutas, feministas, antiracistas, anticapitalistas, LGBTQIA+, dos
imigrantes. É necessário traçar estratégias internacionais, e que esses movimentos possam se
apoiarem e se fortalecerem ao objetivo de uma emancipação social, tendo em vista que as
questões, de classe, raça, gênero no sistema capitalista se interseccionam e geram diversas
formas de opressão.
Tendo o entendimento que o abolicionismo penal brasileiro precisa estar
essencialmente sedimentado na luta antiracista e anticapitalista se torna de fato uma
concretização distante, tendo em vista o contexto mundial e brasileiro de ascensão do
neoliberalismo no sistema capitalista e uma superação do capitalismo como algo
ideologicamente e concretamente ainda muito distante. Porém, o fatalismo não é o caminho que
irá mudar a realidade ou nos fortalecer. A resistência do movimento, o debate abolicionista seja
pela academia, como nas frentes populares de desencarceramento, nas famílias de jovens que
estão encarcerados. É uma forma de sedimentar raízes e de questionar o hoje, o hoje de um
sistema penal que racionalmente não possui funções de proteger a integridade de pessoas, mas
que possui funções de contenção social, seletividade, punitivismo e genocida em função das
classes dominantes em seus interesses de falsa moralidade, políticos e econômicos. Precisamos
ter objetivos utópicos para resistir e solidificar caminhos que nos leve aos objetivos utópicos e
nos faça superar esse capitalismo da barbárie.
62
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