doutorado luto

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA MONICA MARIA DE ANGELIS MOTA O LUTO EM ADOLESCENTES PELA MORTE DO PAI: RISCO E PREVENÇÃO PARA A SAÚDE MENTAL São Paulo 2008

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DOUTORADO LUTO

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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO INSTITUTO DE PSICOLOGIA

    MONICA MARIA DE ANGELIS MOTA

    O LUTO EM ADOLESCENTES PELA MORTE DO PAI: RISCO E PREVENO PARA A SADE MENTAL

    So Paulo 2008

  • MONICA MARIA DE ANGELIS MOTA

    O LUTO EM ADOLESCENTES PELA MORTE DO PAI: RISCO E PREVENO PARA A SADE MENTAL

    Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Psicologia. rea de concentrao: Psicologia Clnica Orientadora: Prof. Dra. Elizabeth Batista Wiese

    So Paulo

    2008

  • AUTORIZO A REPRODUO E DIVULGAO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.

    Catalogao na publicao

    Servio de Biblioteca e Documentao

    Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo

    Mota, Monica Maria de Angelis.

    O luto em adolescentes pela morte do pai: risco e preveno para a sade mental /Monica Maria de Angelis Mota; orientadora Elizabeth Batista Wiese. --So Paulo, 2008.

    231 p.

    Tese (Doutorado Programa de Ps-Graduao em Psicologia. rea de Concentrao: Psicologia Clnica) Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo.

    1. Luto 2. Adolescncia 3. Pai 4. Famlia 5. Trauma emocional I. Ttulo.

    BF575.G7

  • FOLHA DE APROVAO

    Monica Maria de Angelis Mota O luto em adolescentes pela morte do pai: risco e preveno para a sade mental

    Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo para a obteno do ttulo de Doutor em Psicologia.

    rea de concentrao: Psicologia Clnica Orientadora: Prof. Dra. Elizabeth Batista Wiese

    Aprovada em:

    Banca Examinadora

    Prof. Dr.: ___________________________________________________________________ Instituio:_______________________Assinatura: __________________________ Prof. Dr.: ___________________________________________________________________ Instituio:______________________Assinatura: ___________________________ Prof. Dr.: ___________________________________________________________________ Instituio:______________________Assinatura: ___________________________ Prof. Dr.: ___________________________________________________________________ Instituio:______________________Assinatura: ___________________________ Prof. Dr.: ___________________________________________________________________ Instituio:_______________________Assinatura: __________________________

  • A meu pai Joecyl, por seu exemplo de perseverana, minha eterna admirao.

    A meu pai Bruno, cuja generosidade despertou meu

    amor filial.

    A minha me, Nice, por sua fora e apoio na hora mais difcil de nossas vidas, meu

    reconhecimento sem fim.

  • Agradecimentos

    minha orientadora, Prof Dr Elizabeth Batista Wiese, por acreditar em mim. Sua dedicao e

    pacincia foram fundamentais para a realizao deste trabalho.

    Prof Dr Maria Jlia Kovcs, por seu apoio nas horas mais difceis, contribuindo com

    intervenes sempre geis, seguras e produtivas.

    Prof Dr Cleusa Sakamoto, companheira de trabalho, presena sempre confivel e criativa.

    Prof Dr Leila Tardivo, que h tanto tempo acompanha minha vida profissional, sempre me

    aconselhando, estimulando e acolhendo com extrema generosidade, minha gratido eterna.

    Prof Gabriela Caselllato, pelas preciosas sugestes.

    Aos jovens que participaram desta pesquisa, pela generosidade e pelo envolvimento com a proposta.

    Sem vocs, este trabalho no teria sentido.

    Aos meus alunos e pacientes, com quem sempre aprendo muito, vivendo trocas intelectuais e de afeto

    que me fazem refletir e aprender sobre a vida, mantendo-me estimulada e esperanosa.

    s colegas do Mackenzie, pelo apoio e pela pacincia com que me acompanharam nessa jornada, pela

    amizade carinhosa e imprescindvel, mulheres e profissionais que admiro e nas quais me espelho.

    As colegas de doutorado, Aicil Franco, Adriana Tannus e Denise Monteiro, sempre generosas e

    compreensivas.

    instituio que me acolheu e me permitiu trabalhar com seus alunos, particularmente ao corpo

    diretivo, aos psiclogos e assistente social.

    s pessoas que colaboraram comigo para a realizao deste trabalho, na leitura do texto, nas

    transcries e tradues, em especial, Aparecida Fusaro, amiga do corao, Helena Meidani, cuja

    eficincia e profissionalismo me fizeram aprender a admir-la, e Renata Freire, psicloga, querida

    companheira de consultrio.

  • A meus pais Joecyl (in memoriam), Bruno e Berenice, a quem admiro profundamente.

    A vida foi generosa, ao me permitir ser orientada por essas pessoas, que tanto e to

    bem se dedicaram a mim.

    Ao Csar, que, com seu amor e companheirismo, me apoiou no momento mais difcil

    desta empreitada, por sua inesgotvel pacincia, e que, com sua simplicidade, me fez

    aprender a olhar para as estrelas e sonhar.

    A minha irm Valeska, pelo estmulo constante.

    s amigas Solange Souza, Solange Henriques, Fernanda Baleeiros, Cristina e

    Sueli, que, com seu companheirismo, em muitos momentos me deram o necessrio

    suporte.

    Ao Carlos, que tanto acreditou na minha capacidade de atingir meus objetivos, meu

    carinho e minha gratido por tudo o que com ele aprendi.

  • Tem tanta gente ruim no mundo....

    um pensamento chato, feio e egosta, n?

    Mas, sei l, no quero isso pra ningum, horrvel.

    horrvel, horrvel, horrvel. Porque pai pai, me me,

    voc vai sentir falta, n? A minha me com tudo, com tudo,

    eu amo ela e ela a melhor me do mundo, sabe?

    Acho que normal. K.

  • RESUMO MOTA, M. M. A. O luto em adolescentes pela morte do pai: risco e preveno para a sade mental, 2008. 231f. Tese (Doutorado) Instituto de Psicologia, Universidade de So Paulo, So Paulo, 2008.

    Este estudo explora, descreve e discute a vivncia de luto de cinco adolescentes que perderam

    o pai biolgico por morte de causas diversas. Para tanto, investigaram-se vivncias e

    manifestaes relacionadas a essas experincias de perda, suas repercusses para os jovens e

    para seu desenvolvimento emocional, as estratgias de que eles se valeram para enfrentar esse

    luto, sua resilincia frente perda vivida (capacidade do jovem de resistir s adversidades

    geradas pela morte do pai, adaptar-se e manter-se psicologicamente saudvel), identificando-

    se fatores de risco (vulnerabilidades) e de proteo para a elaborao desse luto e o

    desenvolvimento dos adolescentes, bem como a necessidade ou no de se proporem formas de

    cuidado especficas para os enlutados, entre as inmeras possibilidades teraputicas, mesmo

    que profilticas. Como procedimento, usaram-se o Inventrio de Auto-avaliao para jovens

    de 11 a 18 anos (YSR), para rastrear a eventual presena de problemas de sade mental, e uma

    entrevista semi-estruturada com roteiro. A anlise dos dados obtidos estabeleceu que o luto

    pela morte do pai biolgico na adolescncia tem caractersticas prprias, distinguindo-se do

    luto que essa perda acarreta em outras etapas do ciclo vital, em funo dos desafios singulares

    do desenvolvimento nesse perodo. Embora a morte do pai biolgico represente para o

    adolescente uma crise, tambm pode ser uma oportunidade para que, no enfrentamento dessa

    perda, ele amadurea. Constatou-se ainda a importncia do suporte social de uma rede de

    apoio que compreenda e atenda as necessidades do enlutado, sobretudo pela presena de uma

    me funcional, para a ressignificao dessa perda, alm de que, se o adolescente tem

    dificuldade para expressar seu luto, pode ficar entorpecido e negar as conseqncias dessa

    perda, comprometendo seu desenvolvimento emocional.

    Palavras-chave: 1. Luto 2. Adolescncia 3. Pai 4. Famlia 5. Trauma

  • ABSTRACT

    MOTA, M. M. A. The bereavement of adolescents for the death of father: risk and prevention for mental health, 2008. 231f. Thesis (Ph.D) Psychology Institute, University of So Paulo, So Paulo, 2008. This study explores, describes and discuss the bereavement experience of five adolescents

    who had lost their biological father by death of several causes. Thus, it was sought to

    investigate the experiences and events related to these experiences of loss; its impact on

    young people and for their emotional development; the strategies that they used to cope with

    this mourning; the resilience to face the loss experienced (the adolescents ability to resist to

    the adversities generated by the death of the father, adapt to and remain psychologically

    healthy), identifying risk factors (vulnerabilities) and protection factors for the resolution of

    this bereavement and the development of adolescents, and if its necessary to propose ways of

    special care for the bereaved, among the many therapeutic possibilities, even if prophylactic.

    As procedure, were used the Inventory of Self-assessment for young people from 11 to 18

    years-old (YSR), to trace the possible presence of mental health problems and a semi-

    structured interview with a script. The analysis of data obtained established that the mourning

    for the death of biological father in adolescence presents its own characteristics,

    distinguishing itself from the grief that this loss brings at other times of the life cycle,

    according to the natural challenges of development in that period; the fact that, although the

    death of the biological father represents a crisis for the adolescent, can also be an opportunity

    for him or her, when facing this loss, matures; The importance of social support of a

    supportive network that understands and meets the needs of the bereaved, especially the

    presence of a functional mother, for the re-signification of this loss, as well as the fact that the

    teenagers difficulties to express themselves about the mourning that they experience can

    guide them to remain numb and deny the consequences of this loss, and impair their

    emotional development.

    Key-words: 1. Bereavement 2. Adolescence 3. Father 4. Family 5. Trauma

  • SUMRIO

    I. INTRODUO ...................................................................................................... 11

    I.1 OBJETIVO GERAL ............................................................................................... 15

    I.2 OBJETIVOS ESPECFICOS .................................................................................. 15

    I.3 HIPTESES ........................................................................................................... 15

    II. MTODO ............................................................................................................... 17

    II.1 PARTICIPANTES .................................................................................................. 19

    II.2 LOCAL ................................................................................................................... 20

    II.3 INSTRUMENTOS .................................................................................................. 21

    II.4 PROCEDIMENTOS PARA COLETA E ANLISE DE DADOS ........................ 29

    II.5 CONSIDERAES TICAS ................................................................................ 34

    III. A MORTE E O LUTO ............................................................................................ 36

    III.1 O HOMEM OCIDENTAL E A MORTE ............................................................... 36

    III.2 O LUTO .................................................................................................................. 42

    III.2.1 Apego, perda e luto ................................................................................................. 42

    III.2.2 O processo de luto ................................................................................................... 47

    III.2.3 O luto complicado ................................................................................................... 55

    IV. ADOLESCNCIA E LUTO ................................................................................... 65

    IV.1 ADOLESCNCIA .................................................................................................. 65

    IV.2 ADOLESCENTES EM LUTO ............................................................................... 71

    V. RESULTADOS ....................................................................................................... 80

    V.1 ANLISE DAS ENTREVISTAS ........................................................................... 80

    V.1.1 Caso K. .................................................................................................................... 80

    V.1.2 Caso J. ..................................................................................................................... 96

    V.1.3. Caso R. .................................................................................................................... 108

  • V.1.4 Caso C. .................................................................................................................... 114

    V.1.5 Caso M. ................................................................................................................... 127

    V.2 ANLISE DO YSR ................................................................................................ 138

    V.2.1 YSR de K. ............................................................................................................... 138

    V.2.2 YSR de J. ................................................................................................................ 140

    V.2.3 YSR de R. ............................................................................................................... 142

    V.2.4 YSR de C. ............................................................................................................... 143

    V.2.5 YSR de M. .............................................................................................................. 144

    VI. DISCUSSO .......................................................................................................... 146

    VI.1 DADOS DE IDENTIFICAO DOS ADOLESCENTES .................................... 146

    VI.2 CARACTERSTICAS DA PERDA ....................................................................... 149

    VI.3 VIVNCIAS E MANIFESTAES RELATIVAS PERDA E AO PROCESSO DE LUTO .......................................................................................... 153

    VI.4 FATORES DE RISCO (VULNERABILIDADE) PARA LUTO COMPLICADO ..... 156

    VI.5 FATORES DE PROTEO (E APOIO) PARA LUTO COMPLICADO ................... 162

    VI.6 ESTRATGIAS DE ENFRENTAMENTO ........................................................... 167

    VI.7 REPERCUSSES DA PERDA PARA O ADOLESCENTE E SEU DESENVOLVIMENTO ......................................................................................... 168

    VI.8 AVALIAO DAS ENTREVISTAS .................................................................... 171

    VI.9 YSR ......................................................................................................................... 172

    VI.10 BREVE SNTESE DE CADA CASO .................................................................... 173

    VII. CONSIDERAES FINAIS .................................................................................. 178

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS .................................................................... 181

    ANEXO I ................................................................................................................ 189

    ANEXO II ............................................................................................................... 192

    ANEXO III .............................................................................................................. 196

    ANEXO IV ............................................................................................................. 197

    ANEXO V ............................................................................................................... 201

  • 11

    INTRODUO

    A escolha de um tema de estudo comumente marcada pela experincia de vida do

    pesquisador, e aqui no foi diferente. No entanto, h tambm outros motivos, conscientes e

    inconscientes, que concorreram para a eleio do tema o luto de adolescentes que perderam seu pai biolgico por morte , dentre os que me so conhecidos.

    Desde o incio de minha atuao como psicloga clnica, a princpio exclusivamente

    com crianas e depois tambm com famlias e adultos, pude constatar a importncia da

    dinmica das relaes familiares, notadamente das relaes entre pais e filhos, na constituio

    dos problemas vividos por meus pacientes.

    Observei ainda que, ao considerar a dinmica das relaes familiares, poucas

    experincias podem ser to marcantes e to difceis de elaborar quanto a morte de um ente

    querido como um pai ou uma me, notadamente se esta se d precocemente, quando os filhos

    ainda so crianas ou adolescentes.

    Alm disso, h muito tempo a Psicologia tem se ocupado de estudar as relaes entre

    mes e filhos, mas s muito recentemente focou seu interesse na figura do pai e em seu papel

    no desenvolvimento dos filhos. Embora isso esteja mudando, em funo das reformulaes

    que vem sofrendo a famlia na sociedade ocidental contempornea, esse tema ainda carece de

    pesquisas.

    Acresce-se que eu mesma perdi meu pai muito cedo, o que tambm contribuiu para

    que eu me sensibilizasse por esse tema to delicado e me propusesse a estud-lo.

    Sem dvida, falar de morte, em nossa cultura, sempre difcil, por tratar-se de um

    tema ainda estigmatizado na sociedade ocidental contempornea e que permanece quase como

    um tabu, apesar de essa ser uma experincia inerente condio humana. Falar sobre essa

    vivncia e expressar sentimentos em relao a ela so atitudes pouco estimuladas, comumente

    reprimidas, j que viver o luto frequentemente visto como indigno, vergonhoso, sinnimo de

    fraqueza de carter e, portanto, constrangedor e inaceitvel (Domingos; Maluf, 2003;

    Domingos, 2000). No entanto, a morte de uma pessoa amada uma das experincias mais

    dolorosas para o ser humano e evoca, alm da perda em si, a idia de aproximao da prpria

    morte, ao trazer a tona uma ameaa integridade do sujeito. Alm disso, essa perda tambm

    pode acarretar uma srie de outras com as quais o sujeito tambm ter que lidar (Bromberg,

    2000).

  • 12

    Em suas teorias sobre o vnculo, em que se articularam conceitos da etologia e da

    psicanlise, Bowlby (2004b) postulou o luto (em ingls, mourning) como o trabalho psquico

    de elaborao da perda de um ente significativo, independentemente de seus resultados, e

    com esse sentido que usaremos o termo neste estudo.

    Apesar de ser uma reao normal e at mesmo esperada diante do rompimento de uma

    relao significativa, o luto requer um ajustamento social e faz surgirem os mais variados,

    profundos, intensos e primitivos sentimentos como angstia, raiva, arrependimento, saudade,

    medo e tristeza.

    Segundo Bowlby (2004b), a vivncia do luto permite a interligao entre vrios

    processos e condies e poderia metaforicamente ser comparada a uma inflamao, condio

    que, segundo a medicina, tambm se relaciona a vrios processos que analogamente ao luto podem resultar em cura ou em patologias.

    O reconhecimento da importncia desse tema tem motivado psicanalistas e psiquiatras

    a pesquisarem as relaes entre os distrbios psiquitricos e a perda da pessoa amada,

    especialmente a perda precoce da me e/ou do pai (Bowlby, 2004b), freqentemente

    considerada fator de vulnerabilidade para muitos dos problemas psiquitricos da vida adulta,

    pois tem conseqncias profundas e duradouras na vida do enlutado (Bromberg, 2000; Parkes,

    1998).

    A maior parte dos estudos sobre morte precoce dos pais aborda crianas, mas, como eu

    j havia trabalhado com adolescentes no mestrado, optei por continuar a investigar esse

    universo, agora focando seu luto pela perda por morte do pai biolgico (Hahn, 2005; Mota,

    2003).

    Para Bowlby (1997, 2004a), os adolescentes manifestam o luto como resposta quebra

    de um vnculo afetivo, mas, quando essa perda se refere a uma figura que tem para eles valor

    de sobrevivncia, essa ruptura pode eliciar uma intensa ansiedade (ansiedade de separao) e

    vir a influenciar a maneira como o sujeito lidar com seus vnculos e perdas futuras, bem

    como influenciar sua confiana bsica em si, nos outros e no mundo (Bowlby, 2004b;

    Bromberg, 2000; Parkes, 1998).

    Embora o adolescente tenha mais recursos para administrar a prpria vida do que a

    criana e compreenda e acredite que a morte inevitvel e universal e pode, a qualquer

    momento, atingi-lo e queles que ele ama, difcil para ele lidar concomitantemente com a

    perda de um ente significativo e com as demandas das tarefas inerentes a seu estgio de

    desenvolvimento (Pereira, 2004; Domingos; Maluf, 2003; Domingos, 2000; Kovcs, 1992).

  • 13

    A adolescncia reconhecidamente um momento singular do processo de crescimento

    e desenvolvimento, no qual ocorrem mudanas significativas na relao do sujeito com seu

    corpo e com seus laos amorosos e sociais, as quais so vividas diferentemente, dependendo

    do contexto em que se insere o jovem (Outeiral, 2003).

    Frente a essas transformaes fsicas, psquicas, sociais , o adolescente precisa deixar para trs seu mundo infantil e viver o luto dessa perda, voltando-se inicialmente para si

    mesmo, rompendo com ideais e valores familiares e sociais vigentes, para poder se diferenciar

    e adotar novos modelos, na busca de sua identidade (Osrio, 1989).

    Essa no uma tarefa simples, pois impe intensas transformaes e, eventualmente,

    um mal-estar, causado por um corpo que se modifica e estranho, ou mesmo um luto pelo

    corpo perdido, ao lado da quebra dos ideais infantis e da separao dos pais, fatores que

    concorrem para que o adolescente passe por uma srie de dificuldades nas situaes peculiares

    a essa etapa da vida.

    Evidentemente, se o adolescente, j sobrecarregado por tantas demandas, tem tambm

    que lidar com a perda de uma pessoa significativa, muito provavelmente se configurar uma

    situao tal que lhe exigir um esforo de elaborao ainda maior e que poder esgotar suas

    estruturas defensivas e precipitar respostas extremas (Domingos; Maluf, 2003).

    Sabe que, na adolescncia, a perda parental pode comprometer a aquisio da

    independncia e da autonomia adulta, podendo levar o jovem a regredir a uma condio

    menos amadurecida que um dos maiores problemas que o adolescente pode enfrentar , embora tambm, como qualquer crise, possibilite ao sujeito fazer uso de solues criativas

    que promovam seu amadurecimento (Pereira, 2004; Domingos; Maluf, 2003; Balk, 2000;

    Domingos, 2000).

    Nesse sentido, as dificuldades a que o adolescente deve fazer face podem ser

    acentuadas, principalmente quando ele no encontra condies para falar sobre suas

    experincias de perda, ficando impedido de esclarecer dvidas ou de expressar seus

    sentimentos relativos ao luto, ou quando no pode contar com o respaldo de seu meio social

    no sentido de ser compreendido, de ter sua dor legitimada ou de contar com um genitor

    sobrevivente funcional, que o faa sentir-se cuidado, amparado e seguro.

    Portanto, a experincia de luto pela morte de me e/ou pai na adolescncia um fator

    de risco para a sade mental, e, na literatura, tem sido relacionada depresso, presena de

    doenas graves, a intensos e perturbadores sentimentos de culpa, reduo da auto-estima e

    ao desenvolvimento de distrbios psquicos, prejudicando a performance escolar e

  • 14

    profissional e nos relacionamentos interpessoais e estimulando comportamentos desviantes

    (Pereira, 2004; Domingos; Maluf, 20003; Domingos 2000).

    O luto precoce aumenta a suscetibilidade do indivduo dificuldade escolar,

    depresso e delinqncia, e algumas das conseqncias possveis do luto prolongado

    referem-se a prejuzos na sade, ao favorecimento de distrbios mentais como transtornos

    depressivos, distrbios da intimidade e da identidade, problemas com a lei e dificuldades na

    paternidade ou na maternidade (Balk, 2000; Nader, 2000).

    Assim, o estudo do processo de luto em adolescentes que perderam o pai biolgico por

    morte pode ampliar a compreenso de como esse grupo vivencia esse processo, associando os

    desafios e transies dessa fase do desenvolvimento com as experincias e resultados desse

    luto, detectando fatores de risco e vulnerabilidades que interfiram em seu enfrentamento.

    Finalmente, pretende-se tambm, atravs deste estudo, promover a reflexo sobre a

    necessidade de se proporem atuaes que favoream aos adolescentes a vivncia de um

    processo de luto no qual a perda sofrida possa ser ressignificada, e seus danos, minimizados.

  • 15

    I. OBJETIVOS

    I.1 OBJETIVO GERAL

    Este estudo tem por objetivo investigar a vivncia do processo de luto em adolescentes

    pela perda do pai biolgico por morte de qualquer natureza.

    I.2 OBJETIVOS ESPECFICOS

    A partir do objetivo geral, delinearam-se objetivos especficos a serem investigados

    junto aos adolescentes que participaram deste estudo:

    as vivncias e manifestaes relacionadas s suas experincias de perda e luto pela morte do pai biolgico;

    as repercusses dessa perda para eles e para seu desenvolvimento emocional; as estratgias de que se valeram para o enfrentamento dessa perda; a resilincia frente perda vivida (entendida aqui como a capacidade do jovem de

    resistir s adversidades geradas pela morte do pai, adaptar-se nova situao e

    manter-se psicologicamente saudvel, cumprindo suas tarefas cotidianas),

    identificando-se fatores de risco (vulnerabilidades) e fatores de proteo (apoio) que

    tenham dificultado ou favorecido a elaborao desse luto e comprometido ou no o

    desenvolvimento desses jovens;

    a eventual necessidade de se proporem formas de cuidado especficas para os enlutados, que abarcam inmeras possibilidades teraputicas, ainda que profilticas,

    em relao vivncia desse luto: aconselhamento diferente da psicoterapia e recomendado em outros casos , e apoio social, que pode ser obtido na prpria comunidade, mesmo que informalmente, e em grupos de auto-ajuda.

    I.3. HIPTESES

    Considerando-se os objetivos especficos, estipulou-se que se investigariam as

    seguintes hipteses:

    a vivencia do processo de luto pela morte do pai biolgico entre o final da adolescncia mdia e o incio da tardia apresenta caractersticas prprias,

  • 16

    distinguindo-se do luto que essa perda acarreta em outras fases do ciclo vital, em

    funo dos desafios singulares do desenvolvimento por que passam os adolescentes

    durante esse perodo;

    a morte do pai biolgico pode representar para o adolescente uma crise e, ao mesmo tempo, uma oportunidade para que ele busque solues criativas, que lhe favoream

    no s o enfrentamento dessa perda, mas tambm seu amadurecimento;

    se, na elaborao de seu luto, o adolescente rfo de pai tiver suporte social de uma rede de apoio que compreenda e atenda suas necessidades, isso provavelmente

    concorrer para que ele supere essa perda;

    a dificuldade do adolescente em se expressar quanto morte de seu pai biolgico, mesmo que ela se tenha dado anos antes, pode lev-lo a ficar entorpecido e a negar

    as conseqncias dessa perda, comprometendo seu desenvolvimento emocional.

  • 17

    II. MTODO

    Prope-se aqui uma pesquisa qualitativa, surgida no desenvolvimento das

    investigaes nas cincias humanas, quando era preciso superar os limites das anlises

    meramente quantitativas (Pdua, 2000).

    A pesquisa qualitativa preocupa-se com o significado dos fenmenos e processos,

    levando em conta as motivaes, crenas, valores e representaes sociais que permeiam a

    rede de relaes sociais, aspectos que no so passveis de mensurao e controle em moldes

    estritamente estatsticos.

    Nesse sentido, Martins e Bicudo (1998) sublinharam a importncia de se estabelecer o

    conceito de fenmeno, objeto da pesquisa qualitativa e que pode ser entendido como aquilo

    que se manifesta, o que se mostra, ou seja, o que visvel em si mesmo e que pode se revelar

    de vrias formas, dependendo do acesso que se tem a ele.

    Dessa forma, na pesquisa qualitativa em Psicologia, um fenmeno se apresenta em

    local determinado, ou seja, s pode ser entendido em funo da situao especfica em que

    acontece e se mostra. Por exemplo, o cime, a depresso, a hostilidade, o medo etc. s se

    podem considerar fenmenos em situaes concretas nas quais algum sinta cime, depresso

    etc., e o acesso a eles se d, mais especificamente, pelo sentimento e, indiretamente, pela

    descrio desse sentimento.

    Conseqentemente, a pesquisa qualitativa abandona a generalizao e focaliza o

    especfico, buscando uma compreenso particular daquilo que se estuda, atravs de descries

    individuais e interpretaes subjetivas das experincias vividas, como um modo de ajuizar o

    sentido das proposies que levam a uma compreenso ou aclaramento dos sentidos e

    significados da palavra, das sentenas e dos textos (Martins; Bicudo, 1988, p. 28).

    Assim, o pesquisador e sua relao com o sujeito pesquisado elemento fundamental

    na pesquisa qualitativa em Psicologia Clnica, e se colocam para o pesquisador inmeras

    questes sobre os aspectos subjetivos intrnsecos a essa relao.

    Na pesquisa qualitativa, o pesquisado no representa uma entidade objetiva,

    homogeneizada pelo tipo de resposta que deve dar, mas reconhecido em sua singularidade

    como responsvel pela qualidade de sua expresso, relacionada com a qualidade de seu

    vnculo com o pesquisador (Rey, 2002, p. 57).

    Portanto, nessa situao, apesar do norte dado pela teoria, o pesquisador um dos

    principais instrumentos da pesquisa no tratamento dos dados, posto que a ele que compete

    captar e interpretar as sutilezas do fenmeno estudado, atribuindo-lhe significados. Em

  • 18

    sntese, na pesquisa qualitativa, o pesquisador no mero observador, mas um instrumento

    essencial, pois participa ativamente da investigao.

    Assim, para que o pesquisador conduza adequadamente seu estudo, ele deve estar

    consciente de seus vieses cultural, tnico, racial e de gnero, para identificar sua eventual

    interferncia na anlise dos dados. Essa modalidade de pesquisa exige grande severidade na

    objetivao, na originalidade, na coerncia e na consistncia das idias.

    Ressalte-se, no entanto, que a opo por uma metodologia depende tambm da

    natureza do objeto de estudo, dos objetivos da pesquisa e do enquadramento terico que

    orientar a anlise dos dados.

    Neste caso, a metodologia qualitativa pareceu a mais indicada, pois, em funo do

    objeto e dos objetivos, a que permite uma maior compreenso da singularidade humana

    frente ao luto, ou a procura de significados das aes e das relaes humanas nesse contexto,

    que no podem ser captados por equaes, mdias ou clculos estatsticos.

    Neste caso, a investigao partiu de relatos de jovens de 16 a 18 anos que perderam o

    pai entre o quarto ano de vida e h mais de um ano do incio deste estudo, de modo que tomou

    como fonte de dados o ambiente natural e o pesquisador, como seu principal instrumento; deu

    prioridade aos dados descritivos e ao significado que os sujeitos pesquisados atriburam a seus

    sentimentos, s coisas e sua prpria vida, de modo que a anlise dos dados valorizou mais o

    processo do que os resultados obtidos (Trivinos, 1992).

    Para se compreender o processo de luto dos jovens que participaram deste estudo,

    adotou-se como principal referencial terico a teoria do apego, de Bowlby (2002), embora

    contribuies de outros autores que pesquisam o luto sobretudo o de adolescentes (Doka, 2000; Franco, 2000; Parkes, 1998; Corr e Balk, 2001; Worden, 1996, 1998, entre outros) tambm tenham sido consideradas, sempre da perspectiva de que cada indivduo vivencia seu

    luto de forma singular.

    Entretanto, apesar de se ter enfatizado a abordagem qualitativa, ela complementada

    com alguns dados quantitativos, apostando-se na fecundidade dessa articulao. Enquanto

    aquela permite que se investigue a fundo o fenmeno do luto, esta d mais preciso a alguns

    de seus aspectos (Silva, 1998; Minayo, 1994), e assim se justifica o uso do Youth Self Report

    (YSR), um inventrio de auto-avaliao para jovens, com que se levantou o perfil psicolgico

    dos adolescentes que participaram deste estudo.

    Fundamentado em medidas e em suas relaes, de forma rigorosa e sistemtica, para

    atingir preciso, validade e confiabilidade, esse inventrio permitiu generalizaes de medidas

    que contriburam para enriquecer a anlise qualitativa das entrevistas.

  • 19

    II.1 PARTICIPANTES

    Participaram desta pesquisa cinco adolescentes de 16 a 18 anos, de ambos os sexos, de

    classe socioeconmica mdia-baixa, rfos de pais policiais, cuja morte ocorreu entre seu

    quarto ano de vida e h mais de um ano do incio deste estudo. Em todos os casos, os pais

    tinham sido casados legalmente e viviam juntos na ocasio da morte do pai, cujas causas

    variaram entre assassinato, acidente automobilstico e doena crnica.

    Embora a Organizao Mundial de Sade (OMS, 2008) estabelea a adolescncia

    entre 10 e 20 anos, s ouvimos jovens de 16 a 18 anos, para tentar trabalhar com

    caractersticas mais homogneas e com sujeitos menos vulnerveis aos eventuais riscos que

    este estudo acarreta. Alm disso, consideraram-se os limites do YSR (Achenbach, 1991;

    2007), que rastreia problemas de sade mental em adolescentes de 11 a 18 anos.

    Ainda para proteger os adolescentes de possveis riscos pela participao neste estudo,

    determinou-se que a perda do pai se deveria ter dado h pelo menos um ano, excluindo-se os

    jovens que pudessem estar numa condio mais vulnervel.

    Por outro lado, para poder compartilhar sua experincia de perda e de luto pelo pai,

    considerou-se que seria mais prprio que, por ocasio dessa morte, o filho j tivesse condies

    cognitivas de compreender minimamente o que se passava, da que se tenha estipulado o

    quarto ano de vida, idade a partir da qual ele j poderia guardar alguma lembrana do pai e de

    seu falecimento.

    Assim, o tempo decorrido entre a morte do pai do adolescente e sua participao nesta

    pesquisa variou de 4 a 15 anos, o que no um problema, pois sabe-se que o processo de luto

    pode durar de meses a anos (Worden, 1998) ou mesmo no findar (Rangel, 2005).

    Para se reduzirem os riscos da participao de adolescentes com problemas de sade

    mental, o convite foi feito a jovens que atendiam aos critrios descritos e eram alunos de uma

    escola de ensino mdio da cidade onde vivia a pesquisadora, na suposio de que, assim,

    atenderiam s demandas sociais esperadas de indivduos de sua faixa etria, de modo que,

    pelo menos em princpio, esse critrio excluiria jovens com dificuldades mentais mais

    acentuadas.

    Tomou-se ainda o cuidado de s se convidar o adolescente depois da anuncia de seu

    responsvel, e logo no primeiro contato com cada um deles foram esclarecidos o objetivo e as

    condies desta pesquisa. Cumpre notar que todos os responsveis e jovens que foram

    convidados mostraram disponibilidade quase imediata em colaborar, explicitando por escrito

  • 20

    sua concordncia com os termos desta investigao, ao assinarem um Termo de

    Consentimento Ps-esclarecido (Anexo I).

    Por fim, para assegurar o anonimato dos participantes, cada um dos adolescentes

    identificado aqui pela letra inicial de seu nome de batismo.

    II.2 LOCAL

    Esta investigao contou com a colaborao de uma escola particular de ensino mdio,

    de grande porte, localizada numa das capitais do sul do pas, que tambm foi escolhida por ter

    entre seus principais objetivos o atendimento a rfos de policiais, oferecendo-lhes bolsa de

    estudos (totais ou parciais) e acompanhamento pedaggico, quando necessrio.

    Aps contato com a direo da escola, a pesquisadora teve a oportunidade de

    apresentar sua proposta ao corpo diretivo, aos psiclogos e assistente social do colgio, que

    reconheceram a importncia do estudo e se dispuseram a cooperar.

    Antes de ser executada, a proposta foi discutida com a assistente social e com os

    psiclogos da escola, que sugeriram algumas mudanas nos procedimentos. Essas proposies

    foram integralmente acatadas e se referiam adequao ao cotidiano da escola e dos alunos.

    Inicialmente, fez-se um procedimento piloto, para que se avaliasse cada etapa,

    sobretudo aspectos como o tempo necessrio para a aplicao do YSR, a durao da primeira

    entrevista e sua adequao aos objetivos da pesquisa, ente outros.

    Esse piloto foi analisado e discutido pela pesquisadora, sua orientadora e a banca do

    exame de qualificao, que concluram por sua aplicao tal como estava, sem qualquer

    mudana no procedimento proposto inicialmente.

    Desde o piloto, todos os procedimentos foram executados nas dependncias da escola,

    em salas de aula antecipadamente reservadas para isso, na quais entrevistadora e entrevistado

    ficaram vontade, sem ser interrompidos e onde se pde preservar o sigilo.

    Como os participantes estudavam no perodo matutino das 7h00 s 12h30 , todos os procedimentos tiveram lugar logo depois das aulas, conforme disponibilidade do jovem e da

    pesquisadora e acerto prvio entre eles.

    Houve apenas duas excees. Uma delas foi no procedimento piloto, em que o

    primeiro encontro com uma das adolescentes ocorreu durante a aula de Psicologia, por

    sugesto dos psiclogos da escola; mas, como esse tempo no foi suficiente para se concluir o

    procedimento, marcou-se outro encontro, s 18h00, na prpria escola, onde a jovem estagiava

    tarde.

  • 21

    A outra exceo foi porque uma jovem ia diretamente da escola para o trabalho, e a

    pesquisadora, psicloga clnica, disponibilizou seu consultrio particular, situado no centro da

    cidade e em regio de fcil acesso, para com ela realizar os procedimentos deste estudo.

    II.3 INSTRUMENTOS

    Para a coleta de dados, utilizaram-se:

    o Youth Self Report (YSR), inventrio de auto-avaliao para jovens (Achenbach, 1991, 2007);

    uma primeira entrevista psicolgica, semi-estruturada, aqui entrevista inicial com o adolescente;

    uma segunda entrevista, aberta, aqui designada entrevista de retorno. O YSR um instrumento padronizado, internacionalmente reconhecido e utilizado

    para rastrear problemas de sade mental em jovens de 11 a 18 anos. Este estudo usou a verso

    brasileira, traduzida para o portugus pelo Laboratrio de Terapia Comportamental do

    Instituto de Psicologia da Universidade de So Paulo, sob a superviso da Profa. Dra. Edwiges

    Silvares, em parceria com o Departamento de Psiquiatria e Psicologia Mdica da Escola

    Paulista de Medicina, da Universidade Federal de So Paulo, sob a coordenao da Dra. Isabel

    Bordin, mediante autorizao e acompanhamento do prprio autor (Anexo II).

    No entanto, deve-se ressaltar que, embora um estudo preliminar indique que h uma

    boa correlao entre os escores mdios obtidos por adolescentes encaminhados a servios de

    sade mental da amostra normativa norte-americana e os escores mdios obtidos pelos

    adolescentes brasileiros encaminhados para atendimento psicolgico, os estudos de validao

    da verso brasileira do YSR ainda esto em estgio embrionrio.

    Nesta investigao, o uso do YSR visou a permitir pesquisadora:

    conhecer um pouco do cotidiano do jovem e ter uma noo de como ele vive sua adolescncia;

    estabelecer com ele, logo de incio, um contato mais prximo, que criasse uma atmosfera de maior confiana tanto para o jovem se sentir mais vontade para falar

    sobre seu luto como para a pesquisadora acolh-lo, se fosse preciso; (A

    pesquisadora leu e acompanhou o participante enquanto ele respondia a cada uma

    das questes do inventrio, procedimento que, embora seja compatvel com as

    instrues para a aplicao do instrumento, no to habitual, pois o YSR em

    geral auto-aplicado.)

  • 22

    obter um perfil psicolgico do jovem para compar-lo com os dos demais jovens de sua faixa etria, j que se trata de um instrumento padronizado. Esse perfil permite

    que se faam algumas consideraes sobre seu desenvolvimento e, em certos casos,

    at mesmo que se lhe sugira um acompanhamento psicolgico, quando isso parece

    necessrio e compatvel com os objetivos de sua utilizao. (O encaminhamento

    previsto pelo prprio manual do YSR (Achenbach, 1991, 2007).)

    O YSR um dos inventrios que compem o Sistema de Avaliao Empiricamente

    Baseado do Achenbach (ASEBA) (Achenbach, 1991; 2007), que representa o sistema de

    avaliao mais utilizado e pesquisado no mundo.

    Atualmente, o ASEBA tem mais de 6.000 publicaes, que relatam pesquisas em 67

    culturas e estudos de validao em diversos pases, tendo sido traduzido para inmeras lnguas

    (Rocha, 2007).

    O modelo proposto pelo sistema ASEBA visa a obter dados para a avaliao de

    problemas e competncias comportamentais e emocionais com base no comportamento

    observvel relatado por diferentes fontes, que, assim, pode variar de acordo com o observador

    e o contexto.

    Esse sistema inclui uma srie de inventrios, que se propem a subsidiar os

    profissionais da rea da sade mental na avaliao de diferentes indivduos em contextos

    variados, de modo que se obtenham perspectivas mltiplas sobre o funcionamento dessas

    pessoas, pelas pontuaes que compem diferentes perfis.

    A elaborao desse sistema fundamentou-se nas experincias de profissionais que

    acompanharam pacientes em diferentes mbitos e os relatos dos prprios clientes sobre sua

    experincia. Analisaram-se estatisticamente os dados obtidos junto a uma grande amostra,

    identificando-se padres de problemas mais freqentes, segundo pontuaes atribudas por

    diferentes avaliadores.

    Rocha (2007) ressaltou que os padres derivados dessas anlises estatsticas

    possibilitaram a construo de escalas que revelaram sndromes, ou conjuntos de problemas

    que co-ocorrem com os clientes que foram encaminhados para servios de sade mental ou

    que obtiveram escores muito altos entre a populao geral. Essas sndromes receberam nomes

    que descrevem os problemas a que se refere cada uma.

    Vale enfatizar ainda que os escores dos itens de problemas dos inventrios do sistema

    ASEBA, inicialmente apresentados em perfis, tambm podem ser fornecidos sob a forma de

    grficos, expressando a situao do cliente dentro das sndromes de problemas

    comportamentais e emocionais.

  • 23

    Desse modo, baseado em dcadas de pesquisas e experincias prticas, desde os anos

    1960, o sistema ASEBA:

    permite a obteno de dados quantitativos e qualitativos; revela as semelhanas e diferenas de funcionamento dos clientes em diferentes

    contextos, em sua interao com pessoas diferentes (avaliao atravs de mltiplas

    perspectivas) e em diferentes momentos;

    facilita a comparao das informaes obtidas por diferentes profissionais; possibilita a comparao entre os perfis dos examinandos com amostras normativas

    (por sexo e idade) e com suas prprias impresses;

    apresenta qualidades psicomtricas satisfatrias; apresenta ferramentas que avaliam um grande espectro de psicopatologias; fornecer escalas orientadas pelo DSM-IV; econmico (com relao a custos e tempo); permitir estudos sobre diferenas culturais em diversos pases. O YSR um dos inventrios do ASEBA para avaliao da populao escolar e

    tambm uma variao de outro instrumento dessa coleo, o Child Behavior Checklist

    (CBCL), inventrio de comportamento de crianas e adolescentes, que avalia indivduos de 4

    a 18 anos e deve ser respondido por pais ou responsveis (Achenbach, 1991; 2007).

    No YSR, avalia-se a sade mental dos adolescentes de 11 a 18 anos por informaes

    fornecidas pelo prprio jovem, que em cada item deve reconhecer, nos seis meses

    imediatamente anteriores ao preenchimento do inventrio, a presena ou no de determinados

    comportamentos. O inventrio composto por duas partes: uma que avalia Competncias e

    outra, Problemas. Na primeira, avaliam-se Atividades e Social, cujos resultados so expressos

    por escalas que levam o mesmo nome, e pode-se tambm obter a Competncia total, atravs

    de sua respectiva escala. Na segunda parte, a somatria dos escores obtidos permite que se

    trace um perfil dos problemas do adolescente que derivado da anlise de oito agrupamentos

    de itens que compem sndromes (subescalas ou escalas individuais):

    a) Ansiedade/depresso: chorar muito; fobia simples; fobia de escola; medo de fazer

    ou pensar algo destrutivo; perfeccionismo; no se sentir amado; sentir-se desvalorizado;

    nervoso ou tenso; muito ansioso e medroso; sentir-se culpado; preocupar-se com o que acham

    dele; falar em suicdio; mostrar-se muito preocupado.

  • 24

    b) Isolamento/depresso: anedonia (perda da sensao de prazer nos atos que

    costumavam proporcion-la); preferir ficar sozinho; mostrar-se reservado; tmido; sem

    energia; triste; retrado.

    c) Queixas somticas: ter pesadelos, constipao intestinal; tonturas; cansao; sentir

    dores inespecficas; cefalia; nuseas, problemas com os olhos; problemas com a pele; dores

    abdominais ou epigastralgia; vmitos e outras queixas do gnero.

    d) Problemas sociais: revelar-se muito dependente dos adultos; queixar-se de solido;

    no se relacionar bem com outras crianas e adolescentes; ter cime facilmente; sentir-se

    perseguido; machucar-se com freqncia; frequentemente ser alvo de gozaes; relatar que

    outras crianas e adolescentes no gostam dele; mostrar-se desajeitado; preferir conviver com

    crianas mais jovens; ter problemas na fala.

    e) Problemas de pensamento: pensamentos obsessivos; machucar-se de propsito;

    apresentar alucinaes auditivas; tique; cutucar a prpria pele; mexer em partes ntimas em

    pblico; apresentar compulses; alucinaes visuais; dormir menos que as outras crianas;

    revelar colecionismo; comportamentos estranhos; idias estranhas; falar dormindo; ter

    problemas com o sono.

    f) Problemas de ateno: comportar-se de modo infantil; no terminar o que comea;

    dificuldade em fixar a ateno; mostrar-se agitado; parecer confuso; perder-se nos prprios

    pensamentos; estar impulsivo; no apresentar um bom desempenho na escola; revelar-se

    desatento; distrair-se com facilidade; permanecer com o olhar parado.

    g) Comportamento de quebrar-regras: usar bebida alcolica sem permisso; no

    demonstrar arrependimento; desrespeitar as regras; andar em ms companhias; mentir;

    preferir crianas e adolescentes mais velhos; fugir de casa; colocar fogo nas coisas; apresentar

    problemas sexuais; roubar; praticar atos de vandalismo.

    h) Comportamento agressivo: discutir muito; revelar-se cruel; exigir ateno; destruir

    suas coisas; destruir as coisas dos outros; desobedecer em casa; desobedecer na escola; entrar

    em muitas brigas; atacar fisicamente as pessoas; gritar muito; irritar-se com facilidade; revelar

    mudanas repentinas de humor; ficar emburrado facilmente; desconfiado; gostar de gozar da

    cara dos outros; mostrar-se esquentado; ameaar as pessoas; fazer muito barulho.

    Rocha (2007) mostra que o YSR ainda fornece outras informaes, sob o ttulo Outros

    problemas, onde se incluem os itens que no so incorporados nas sndromes mas que, junto

    com estes, so usados para se calcular o escore de Total de problemas.

    Por sua vez, algumas das sndromes foram agrupadas em duas grandes categorias, de

    acordo com o tipo de problemas considerado: Problemas externalizantes e Problemas

  • 25

    internalizantes. No primeiro grupo, concentram-se sobretudo conflitos com outras pessoas e

    se incluem os sintomas das sndromes Comportamento de quebrar-regras e Comportamento

    agressivo. O segundo engloba principalmente problemas e conflitos internos do adolescente,

    que muitas vezes no so perceptveis por outras pessoas. Este grupo composto por sintomas

    das sndromes Ansiedade/depresso, Isolamento/depresso e Queixas somticas.

    A atual verso brasileira do YSR tambm permite que os itens de Problemas sejam

    apresentados em perfis que configuram as Escalas orientadas pelo DSM-IV (subescalas

    Problemas). Cada uma delas inclui itens que foram avaliados por especialistas como muito

    consistentes com as categorias daquela classificao, de modo que as obtidas a partir dessa

    anlise so: Transtornos afetivos, Transtornos de ansiedade, Problemas somticos, Dficit de

    ateno/transtorno de hiperatividade, Transtorno opositor desafiante, Transtorno de conduta,

    Transtorno obsessivo-compulsivo e Transtorno de estresse ps-traumtico.

    Alm disso, ao ser transformados em escores T, os escores brutos do YSR informam

    se os adolescentes apresentam comportamento desviante em relao ao esperado para sua

    idade e sexo. A partir desses escores e com base em pontos de corte para os escores T, a

    amostra pode ser classificada em trs categorias: clnica, no clnica e limtrofe, podendo-se

    incluir esta categoria em qualquer uma das primeiras.

    Assim, os resultados obtidos pelos adolescentes podem ser avaliados em clnicos,

    limtrofes ou no clnicos, na Escala total (Total de problemas), e, quanto aos Problemas

    externalizantes e internalizantes, nas oito sndromes (subescalas) aferidas pelo instrumento,

    bem como nas Escalas orientadas pelo DSM-IV.

    Por fim, atravs de um relato narrativo, o YSR tambm fornece um resumo dos

    resultados e indica itens considerados crticos, que inspiram maiores cuidados, segundo o

    julgamento de profissionais da rea clnica.

    Rocha (2007) acrescenta que todos os perfis do YSR podem ser registrados e

    analisados a mo ou com o auxlio do computador, neste caso, atravs de programa prprio, o

    software central da ASEBA, o Assesment Data Manager (ADM).

    Quanto entrevista inicial com o adolescente, um instrumento elaborado pela

    prpria pesquisadora, semi-estruturado, que abordou com os participantes aspectos de sua

    perda e de seu processo de luto pela morte do pai, em funo dos objetivos deste estudo. Essa

    entrevista foi o principal procedimento para a coleta de dados desta pesquisa e, juntamente

    com o inventrio YSR, comps o levantamento de dados propriamente dito.

    A seleo dos temas e das questes dessa entrevista no se orientou apenas pelos

    objetivos do trabalho, mas tambm por uma reviso da literatura disponvel, especialmente

  • 26

    trs estudos recentes com a populao brasileira, dois dos quais com adolescentes: Fatores de

    risco para luto complicado numa populao brasileira (Franco; Mazorra; Tinoco, 2002),

    Vivncias de morte e luto em escolares de 13 a 18 anos (Domingos, 2000) e Adolescncia,

    luto e enfrentamento (Pereira, 2004).

    Nessa entrevista, as questes foram organizadas de modo a se abordarem primeiro

    aspectos mais gerais e depois os referentes perda e ao luto, segundo uma seqncia temporal

    dos acontecimentos. Ento, s questes que tratavam de aspectos gerais da vida do

    adolescente, seguiram-se outras, sobre os acontecimentos acerca da morte de seu pai, antes, na

    poca e depois dessa perda, e, finalmente, sobre vivncias e manifestaes relativas a esse luto

    e sobre as impresses do jovem acerca de sua participao neste estudo.

    Vale lembrar que, como instrumento de pesquisa, a entrevista pode ser definida como

    um encontro interpessoal solicitado pelo pesquisador e que visa comunicao verbal para o

    levantamento de informaes sobre o objeto de pesquisa (Minayo, 2000; Turato, 2003). A

    escolha desse instrumento foi norteada pela natureza do estudo a entrevista tem sido considerada procedimento fundamental na investigao cientfica psicolgica e amplamente

    utilizada por pesquisadores de campo da rea (Bleger, 1980; Pdua, 2000; Turato, 2003). Para

    Pdua (2000), a entrevista em pesquisa de campo tem vantagens como a possibilidade de

    anlise quantitativa e qualitativa dos dados e o fato de poder ser aplicada a pessoas de

    qualquer segmento da populao.

    Pela entrevista, o pesquisador pode obter dados objetivos, relativos aos fatos, e

    dados subjetivos como, idias, crenas, opinies, pensamentos e sentimentos, atitudes,

    condutas, comportamentos e razes, conscientes e inconscientes, do entrevistado (Turato,

    2003; Minayo, 2000). Alm disso:

    [...] a entrevista um instrumento precioso de conhecimento interpessoal, facilitando, no encontro face a face, a apreenso de uma srie de fenmenos, de elementos de identificao e da construo potencial do todo da pessoa do entrevistado e, de certo modo, tambm do entrevistador (Turato, 2003, p. 308).

    Posto que o pesquisador no neutro, distante ou emocionalmente isento, ele tambm

    participa da investigao, e preciso considerar sua empatia, sensibilidade, humor e

    sinceridade como componentes importantes da pesquisa. Isso leva necessidade de que a

    entrevista transcorra num ambiente de cordialidade e de aceitao mtua, que favorea o

    dilogo franco (Turato, 2000), e essa mesma conjuntura impe limites que tambm devem ser

  • 27

    observados: a fidedignidade do entrevistado e a possibilidade de o entrevistador avaliar, julgar

    e interpretar as informaes de forma distorcida (Minayo, 2000; Pdua, 2000).

    Alm disso, na relao que se estabelece entre entrevistador e entrevistado, ocorrem

    dois fenmenos psquicos que participam desse encontro e determinam significativamente sua

    produtividade: a transferncia e a contratransferncia. O primeiro diz respeito atualizao,

    na entrevista, por parte do entrevistado, de padres de sentimentos, atitudes e condutas

    inconscientes estabelecidos ao longo de seu desenvolvimento, principalmente daqueles

    vividos nas relaes interpessoais com seus familiares na infncia (Laplanche, 1994; Bleger,

    1980). O segundo, por sua vez, diz respeito ao conjunto de reaes do entrevistador pessoa

    do entrevistado, e mais especificamente sua transferncia.

    Na verdade, esses fenmenos se do em toda relao interpessoal, mas, numa

    entrevista, se bem manejados, podem e devem ser usados como instrumentos tcnicos de

    observao e compreenso do psiquismo do entrevistado (Laplanche, 1994; Bleger, 1980).

    Deve-se ressaltar ainda que a entrevista pode seguir padres diferentes, que podem ser

    resumidamente agrupados em entrevista fechada (estruturada) e a entrevista aberta (no

    estruturada), conforme seja mais ou menos dirigida pelo entrevistador (Minayo, 2000; Bleger,

    1980).

    Na entrevista fechada, as questes seguem um roteiro previamente elaborado, tm

    formulao especfica e so apresentadas segundo uma ordem predeterminada, no tendo o

    entrevistador liberdade para alterar qualquer uma dessas disposies. Evidentemente, esse

    modelo tem vantagens e desvantagens. Sua padronizao imprime maior agilidade ao

    trabalho, reduz custos, permite a incluso de muitos participantes, facilita o tratamento dos

    dados e a reproduo dos procedimentos, mas h perdas quanto amplitude das respostas e

    pela impossibilidade de mudar as perguntas ou pedir informaes adicionais (Laville; Dionne,

    1999).

    Com maior flexibilidade, a entrevista aberta supe que o entrevistado discorra

    livremente sobre o tema que lhe proposto e permite, na medida do possvel, que o

    entrevistado configure o campo da entrevista segundo sua estrutura psicolgica particular,

    [...] [o que] possibilita uma investigao mais ampla e profunda da personalidade

    (Bleger, 1980, p. 10).

    Ensejando um contato mais prximo entre o pesquisador e o entrevistado e

    favorecendo a explorao em profundidade da personalidade deste ltimo, a entrevista aberta

    particularmente adequada pesquisa qualitativa (Minayo, 2000; Laville; Dionne, 1999).

  • 28

    Na verdade, embora as entrevistas semi-estruturada e no estruturada no sejam

    exatamente iguais, pois diferem quanto ao grau de estruturao, nenhuma interao cuja

    finalidade seja a pesquisa completamente espontnea (Minayo, 2000).

    Na entrevista semi-estruturada, opo deste estudo, apesar de o pesquisador seguir um

    roteiro de perguntas, este apenas um fio condutor e facilitador da comunicao, pois o

    entrevistador permite e, s vezes, at incentiva o entrevistado a falar livremente sobre temas

    que surjam como desdobramento do foco da pesquisa (Pdua, 2000).

    Na pesquisa qualitativa, a entrevista semi-estruturada a abordagem mais adequada e,

    por isso, a mais usada, pois, guiando a discusso, o entrevistador garante que ela gire em torno

    dos objetivos e hipteses propostos, mas, dando certa liberdade ao entrevistado, pode obter

    informaes mais ricas e fecundas (Minayo, 2000; Rey, 2000; Turato, 2000; Bleger, 1980).

    Aqui, a escolha pela entrevista semi-estruturada permitiu que o pesquisador seguisse

    um roteiro de perguntas preestabelecido em funo do tema, dos objetivos e das hipteses da investigao , mas tambm que adotasse uma postura mais flexvel diante do participante, levando em conta suas necessidades, seu ritmo e seu discurso. Mostrando-se mais emptico ao

    jovem, favorecendo o estabelecimento de um clima de confiana e concorrendo para o curso

    da entrevista, o pesquisador tambm pde ajustar a entrevista realidade da situao,

    incluindo ou excluindo uma pergunta, por sua inadequao, ou pelo fato de ela j ter sido

    respondida, ou por ter perdido a importncia, em face do discurso e da reao do entrevistado.

    A flexibilidade desse instrumento permitiu que o entrevistador fizesse pausas e

    tambm expressasse sua empatia para com o relato do jovem, o acolhesse quando ele se

    mostrava sensibilizado por algum tema e o orientou quando pareceu necessrio.

    Alm disso, de acordo com seu compromisso tico, o entrevistador teve a liberdade

    e a condio de fazer colocaes que favorecessem ao adolescente a expresso de

    sentimentos relativos a essa perda, legitimassem sua dor pela morte do pai e o ajudassem a

    reconhecer que cada um tem um modo particular de vivenciar seu luto, atitudes pouco

    estimuladas em nossa sociedade, mas muito importantes para uma saudvel elaborao do

    luto (Domingos, 2000; 2003).

    Por fim, aps cerca de dois a trs meses da aplicao do YSR e da realizao da

    entrevista inicial com o adolescente, marcou-se com cada um dos jovens um segundo

    encontro, a entrevista de retorno (Anexo III), cujo nico objetivo era oferecer ao jovem algum

    tipo de suporte, caso ele precisasse e quisesse. Esta foi uma entrevista breve, aberta, em que se

    procurou levantar as impresses do jovem sobre sua participao na pesquisa e identificar

    eventuais reflexes que ele tenha feito em funo dela. Alm disso, se nessa entrevista, o

  • 29

    jovem manifestasse demanda por uma orientao ou por um acompanhamento psicolgico,

    ele seria encaminhado para uma clnica-escola, sem nus algum para ele, o que, no entanto,

    no foi necessrio em nenhum dos casos.

    II.4 PROCEDIMENTOS PARA COLETA E ANLISE DOS DADOS

    O procedimento de coleta de dados desta investigao incluiu as seguintes etapas:

    a) Convite

    Como j foi dito, esta pesquisa contou com a colaborao de uma reconhecida

    instituio de ensino mdio que presta servios a rfos de policias, para a qual apresentei o

    projeto e pedi autorizao para convidar alguns de seus alunos adolescentes, entre aqueles que

    se enquadrassem nas exigncias deste estudo.

    Concedida a autorizao, a pesquisadora, junto com os psiclogos e a assistente social

    da instituio, profissionais que ficaram encarregados de auxili-la no que fosse preciso,

    considerando os critrios de incluso, indicaram aleatoriamente alguns alunos.

    Depois, por telefone, conversei com os responsveis por esses jovens e, com sua

    autorizao, com os prprios jovens, apresentando a pesquisa e dando a cada um deles os

    devidos esclarecimentos, de acordo com as normas ticas previstas pela Resoluo n. 196/96,

    do Conselho Nacional de Sade.

    b) Encontros

    Os encontros ocorreram nas dependncias da escola, em salas reservadas para esse

    fim, sempre aps o horrio de aula dos participantes e em funo da disponibilidade da dupla.

    Com exceo do primeiro adolescente a realizar os procedimentos planejados, com

    quem se fizeram efetivamente trs encontros, os demais participantes s estiveram duas vezes

    com a pesquisadora. Essa exceo se deveu ao fato de que, inicialmente, por sugesto da

    escola, os encontros com os jovens seriam durante as aulas de Psicologia, o que demandaria

    pelo menos trs encontros com cada um. Mas, depois da realizao do piloto, decidiu-se

    planejar as atividades em duas etapas, sempre aps o horrio das aulas, o que permitia que as

    entrevistas transcorressem durante o tempo que fosse preciso, sem interrupes.

    Assim, na primeira etapa, em um nico encontro, retomaram-se os esclarecimentos

    contidos no Termo de Consentimento Ps-esclarecido, aplicou-se o YSR e, depois, se realizou

    a entrevista inicial com o adolescente; tudo isso se cumpriu, em mdia, em uma hora e meia.

  • 30

    Cerca de trs meses aps a concluso da primeira etapa, realizou-se a entrevista de

    retorno.

    Os responsveis pelos jovens tiveram a liberdade de acompanh-los aos encontros,

    para conhecer a pesquisadora e se esclarecer sobre o procedimento, mas nenhum deles

    manifestou esse desejo.

    Como j se sabe, nos dois encontros, as entrevistas foram gravadas e depois

    transcritas, com a devida autorizao do jovem e de seu responsvel.

    c) O inventrio de auto-avaliao para jovens (YSR)

    Na primeira entrevista, o jovem iniciou sua participao respondendo ao YSR

    (Achenbach, 1991, 2007), tendo sido instrudo para tanto pela pesquisadora, que leu para ele

    cada questo, acompanhando-o durante todo o tempo em que ele se dedicou a responder o

    inventrio.

    Apesar de esse inventrio poder ser respondido sem nenhuma ajuda, optou-se por

    assessorar o jovem para se dirimirem possveis dvidas que ele pudesse ter a respeito do YSR,

    ao mesmo tempo em que se criava uma maior proximidade com o participante.

    d) Entrevista inicial com o adolescente

    Logo depois de responder ao YSR, o jovem participou da entrevista inicial semi-

    estruturada, em que se abordaram questes relativas perda de seu pai e ao luto vivido.

    Sobre as entrevistas, importa ainda destacar que foram preparadas para garantir o

    mximo de benefcios e o mnimo de danos que o fato de falar sobre sua perda pudesse

    acarretar para os jovens, a quem tambm se cientificou de que se depois dessa entrevista eles

    sentissem necessidade de conversar sobre ela, poderiam procurar a pesquisadora.

    e) Entrevista de retorno

    Ainda para se assegurar ao jovem o mximo de vantagens e o mnimo de prejuzos que

    lhe pudesse acarretar o fato de falar sobre sua perda e seu luto, o pesquisador fez com cada

    participante uma segunda entrevista, cerca de trs meses depois da primeira.

    Nessa segunda entrevista, procurou-se saber se o jovem apresentava algum tipo de

    dificuldade relativa sua perda e a seu processo de luto, sobretudo pelo fato de ter participado

    deste estudo, de modo a se avaliar a convenincia de se propor a ele algum tipo de ajuda.

    Felizmente, nenhum deles fez qualquer queixa que justificasse a proposio de uma terceira

  • 31

    entrevista, para apoio ou orientao, e muito menos a indicao de um acompanhamento

    psicolgico, e tampouco revelou algum desejo nesse sentido.

    Ainda assim, a pesquisadora se disps a lhes prestar, em qualquer tempo, mais

    esclarecimentos sobre aspectos da pesquisa de que participaram ou ligados perda e ao luto

    que vivem, e mesmo indicar um acompanhamento psicolgico gratuito.

    f) Anlise dos dados

    Pelas especificidades dos instrumentos que se empregaram neste estudo o YSR e a entrevista semi-estruturada , a anlise dos dados foi feita com estratgias diferentes.

    Para o tratamento das respostas ao YSR, usou-se um programa de informtica

    especfico, o Assesment Data Manager (ADM).

    O ADM o software central do ASEBA, e sua verso de 2007 foi gentilmente

    disponibilizada pelo Laboratrio de Terapia Comportamental do Instituto de Psicologia da

    Universidade de So Paulo.

    Os resultados desse tratamento forneceram inmeras informaes de natureza

    qualitativa e quantitativa sobre o perfil psicolgico dos adolescentes pesquisados,

    normatizadas por idade e sexo.

    J a anlise do contedo das entrevistas teve como referncia a abordagem sugerida

    por Bardin (1970), contemplando a categorizao e a descrio do material obtido, bem como

    a proposio de inferncias que as caractersticas do discurso permitiam, cumprindo-se em

    trs etapas:

    a) Transcrio: as entrevistas foram transcritas de modo a recuperar tanto quanto

    possvel os acontecimentos dos encontros, e o material obtido foi organizado em protocolos.

    b) Pr-anlise: consistiu na leitura flutuante do material obtido, ou seja, uma leitura

    exaustiva das transcries das entrevistas, em que a pesquisadora se deixou impregnar pelas

    impresses e pelos discursos, atentando para todos os elementos que os compunham, sua

    construo, retrica, tonalidade emocional, silncios, lapsos, etc.

    Depois de se esgotar o contato com as entrevistas j transcritas, discriminaram-se

    contedos de naturezas diferentes, estabelecendo-se categorias objetivas e temticas

    relacionadas com a pesquisa, seus propsitos e sua fundamentao terica.

    A grande maioria dessas categorias j havia sido considerada anteriormente, por

    ocasio da elaborao da entrevista, de modo que poucas foram as incluses nessa etapa.

    Para esclarecer esse procedimento, apresenta-se a lista final com a qual efetivamente

    se trabalhou, sinalizando as inseres que se deram aps o exame exaustivo das transcries,

  • 32

    informando que o item Outras repercusses, inicialmente proposto, foi suprimido aps a

    leitura do material.

    Dados de identificao do adolescente: sexo; escolaridade; idade (atual e na ocasio da morte do pai); contexto familiar (estruturao do ncleo familiar) antes, na ocasio e aps a

    perda;

    relacionamento com o pai e o papel deste no contexto familiar. Caractersticas da perda e circunstncias que a permearam:

    circunstncias da morte do pai: causa e tipo de morte e tempo transcorrido desde ento;

    forma como o jovem recebeu a notcia da morte do pai; acesso ou no a informaes relativas a essa morte; participao do adolescente nos rituais do funeral.

    Vivncias e manifestaes relativas perda e ao processo de luto do jovem (reaes do participante perda):

    imediatas; subseqentes; atuais.

    Resilincia (competncia mesmo em circunstncias adversas) do jovem frente a sua perda, considerando-se especificamente fatores de risco (vulnerabilidade) e de

    proteo para luto complicado (fatores que representaram algum tipo de apoio para

    o jovem, favorecendo-lhe a vivencia de seu luto):

    fatores predisponentes no adolescente; fatores da relao com o falecido pai; fatores relativos perda em si; suportes sociais; outros: a experincia com os rituais de luto; as condies socioeconmicas; a crena em vida aps a morte; a expresso de vivncias relativas perda e ao processo de luto;

  • 33

    flexibilidade da estrutura familiar; grau de comunicao e de unio entre os membros do ncleo familiar; presena de figuras substitutivas; presena de modelos de identificao; vitimizao.

    Estratgias gerais de enfrentamento pensamentos ou aes (intencionais e conscientes ou no) no sentido de eliminar ou reduzir a ameaa gerada pelos

    problemas decorrentes da morte do pai;

    Repercusses (mudanas psicossociais) da perda para o adolescente e seu desenvolvimento, no tocante a suas:

    representaes atuais sobre si prprio; representaes atuais sobre o outro (categoria que inclui possveis influncias da

    morte do pai no modo como o jovem estabelece ou vivencia as relaes atuais);

    representaes atuais sobre a vida em geral e expectativas sobre o futuro; estruturao familiar atual; outras repercusses.

    Avaliao da entrevista: procurou-se abordar a os motivos pelos quais o jovem se disps a participar deste estudo e como se sentiu durante e depois da participao.

    Finalizando essa etapa, destacaram-se os segmentos das entrevistas que continham

    informaes diretamente ligadas ao estudo.

    c) Anlise e interpretao: descrio e discusso dos dados, levando-se em conta os

    aspectos recorrentes, convergentes e divergentes, procurando-se equacionar dimenses,

    relaes, tendncias e padres para elucidar seu significado de acordo com as proposies

    deste estudo.

    Assim, atravs de cuidadosa reflexo sobre os textos transcritos, a participao de cada

    jovem e as dedues (inferncias) a que levaram as informaes levantadas e luz da teoria

    psicolgica, atriburam-se significados aos dados encontrados e se propuseram interpretaes

    para esclarecer os questionamentos postos por este estudo.

    Com os resultados da anlise do YSR e o tratamento das entrevistas, articularam-se

    essas informaes e suas interpretaes, em funo dos objetivos deste trabalho e da teoria

    que o fundamentou, finalizando a anlise dos dados obtidos.

  • 34

    II.5 CONSIDERAES TICAS

    Esta pesquisa se estruturou e executou de acordo com as normas ticas previstas pelos

    cdigos nacionais, resoluo n. 196/96, do Conselho Nacional de Sade, tendo sido aprovada

    pela Comisso de tica do Departamento de Psicologia Clnica da Universidade de So Paulo,

    em 30 de abril de 2008.

    Alm disso, como participaram deste estudo pessoas de luto, foi preciso levar em conta

    especificidades como:

    o fato de se tratar de uma populao vulnervel, o que aumenta o risco de prejuzos a que os participantes ficam sujeitos;

    a dificuldade de se avaliar a possibilidade de riscos a longo prazo, j que o luto um processo;

    a individualidade do processo de elaborao do luto, o que dificulta as generalizaes;

    a possibilidade de o enlutado no estar em condies de discernir sobre sua participao ou no;

    a necessidade de que o pesquisador estivesse devidamente preparado para lidar com essa populao, fosse do ponto de vista terico ou de sua experincia clnica.

    Para se garantirem esses cuidados e se registrar formalmente a anuncia dos

    participantes proposta da pesquisa, apresentou-se a cada um deles e a seu responsvel um

    termo de consentimento, que ambos assinaram e os informava:

    da natureza da pesquisa, seus objetivos e procedimentos (inclusive a gravao e a transcrio das entrevistas pela pesquisadora);

    de que se tomariam todos os cuidados para se evitarem os danos previsveis, iniciativa que incluiu: a) cuidados com a abordagem do tema na entrevista e suas

    possveis conseqncias; b) uma entrevista de acompanhamento com o jovem, trs

    meses depois do procedimento propriamente dito; c) a possibilidade de uma

    entrevista adicional, em qualquer tempo, se o jovem tivesse necessidade ou

    interesse; d) o compromisso de que, mesmo depois de a pesquisa ter sido concluda,

    o jovem e sua famlia teriam o devido respaldo, com orientao e, se necessrio,

    encaminhamento do adolescente e/ou do responsvel para atendimento

    especializado gratuito, em clnica-escola, onde se averiguou a viabilidade de o

    atendimento se dar quase que prontamente;

  • 35

    da preservao do anonimato do sujeito e da garantia do sigilo e da confidencialidade dos dados, que seriam usados apenas com fins acadmicos e

    mantidos sob a responsabilidade da pesquisadora, aps o trmino da pesquisa;

    do compromisso da pesquisadora em respeitar os valores culturais, sociais, morais, religiosos e ticos, bem como os hbitos e costumes dos sujeitos;

    de seu direito de se recusarem a participar ou de retirarem seu consentimento a qualquer momento.

  • 36

    III. A MORTE E O LUTO

    III.1 O HOMEM OCIDENTAL E A MORTE

    Embora seja um fato natural do ciclo vital, a morte fim da existncia humana, nica certeza absoluta da vida evoca no homem ocidental contemporneo intensa angstia e muito medo (Rangel, 2005; Oliveira, 2001; Bromberg, 2000; Domingos, 2000; Kovcs, 1992;

    Kubler; Ross, 1989).

    Nos dias de hoje, porm, de acordo com Rangel (2005), convive-se com a morte de

    diversas formas, entre duas situaes extremas: a morte interdita e a morte escancarada.

    No caso da morte interdita, a morte vivida como um tabu e, ou se evita falar sobre

    ela, ou se fala dela com eufemismos, para neg-la, de modo que, em geral, ao ocorrer em

    hospitais e asilos, ela se mantm distante do dia-a-dia da maioria das pessoas.

    Por outro lado, mortes trgicas, catastrficas ou violentas tm sua divulgao

    favorecida pelos recentes avanos tecnolgicos, sendo veiculadas escancaradamente e de

    forma sensacionalista pela mdia, que praticamente obriga as pessoas a conviverem com elas.

    Assim, passam a ser assunto corriqueiro e recorrente, o que talvez at possa, em parte,

    representar tambm uma tentativa de elaborao do impacto que essas mortes acabam tendo.

    Essa a morte escancarada.

    No entanto, nem sempre foi assim. Embora, diante da morte e de seu luto, o homem

    ocidental da atualidade ainda mantenha atitudes oriundas de antigos costumes, ao longo da

    histria, essas atitudes passaram por mudanas profundas e estabeleceram uma ruptura

    histrica com relao s condutas anteriores (Maranho, 1998).

    O historiador francs Philippe Aris (1977) se dedicou a reconstruir historicamente as

    atitudes e representaes do homem ocidental diante da morte e do luto, desde a Idade Mdia

    at a Idade Moderna, descrevendo as diferentes realidades que encontrou ao longo dos

    tempos. Em sua obra O homem perante a morte, o autor procurou sistematizar essas

    realidades de acordo com a prevalncia de determinados significados atribudos pelo homem

    morte. No entanto, segundo Kovcs (1992), deve-se ressaltar que, apesar de as representaes

    abordadas por Aris (1977) serem mais caractersticas de um ou de outro perodo ou momento

    histrico, elas podem estar presentes em outros momentos.

  • 37

    O primeiro desses significados prevaleceu por volta dos sculos IX e X, na Idade

    Mdia, perodo que Aris (1977) chamou de a morte domada, quando o homem tinha com a

    morte uma convivncia mais prxima e natural.

    Nesse contexto, as pessoas comumente sabiam que iam morrer ou esperavam pela

    morte em casa, cercadas por seus familiares, vizinhos e at mesmo pelas crianas, depois de

    terem se preparado antecipadamente para isso, inclusive ditando suas ltimas vontades.

    A morte era, portanto, uma cerimnia pblica, anunciada, de modo que, embora fosse

    temida, era aceita e esperada como uma lei da natureza, da qual no se poderia fugir. O grande

    receio era morrer repentinamente, sem os rituais de preparao, o funeral e o sepultamento.

    Aris (1977) salienta tambm que, na poca medieval, os sentimentos de dor pelos

    mortos podiam ser expressos mais livremente, j que os rituais fnebres favoreciam a vivncia

    do luto, permitindo um contato mais direto com a morte e as manifestaes de dor admitidas

    nesses rituais.

    Entretanto, o homem medieval temia o contato com os mortos porque acreditava que

    eles podiam contamin-lo fisicamente, atravs da decomposio dos corpos, ou

    psiquicamente, com a assombrao de fantasmas ou almas penadas, de sorte que muitos dos

    rituais fnebres praticados na poca visavam a facilitar aos mortos sua jornada para os cus,

    separando-os definitivamente dos vivos.

    Ainda na Idade Mdia, a partir dos sculos XI e XII, o homem passou a se inquietar

    com o que aconteceria aps sua morte, com sua ida para o inferno ou para o paraso. Assim,

    preocupado com o juzo final a avaliao que Deus faria das almas e com o que lhe aconteceria no exato momento de sua morte, o homem mudou sua relao com a morte, e ela

    j no era mais encarada com a mesma naturalidade de antes. Para Aris (1977), nesse

    perodo, a morte pode ser entendida como a morte em si mesmo (ou a morte de si mesmo).

    A, a hora da morte assumiu uma grande importncia, como a hora da passagem da

    alma, e a principal preocupao era realizar essa passagem com a garantia do perdo divino

    e, conseqentemente, com um lugar reservado no paraso (Oliveira, 2001).

    Como, na poca, o apego aos bens materiais se tornara o grande pecado, os meios

    preconizados para se alcanar a absolvio eram os donativos feitos Igreja, as oraes aos

    mortos, a compra das indulgncias e do perdo da Igreja, pois se acreditava que era preciso se

    desfazer dos bens materiais para ir para o cu.

    Desse modo, pela necessidade de se terem garantias de como seria o juzo final, os

    testamentos dessa poca representavam no s um ato de direito privado, destinado a regular a

    transmisso dos bens, mas sobretudo, um ato religioso, no qual o fiel professava sua f,

  • 38

    reconhecia seus pecados e resgatava-os por um ato pblico, alm de doar parte de seus bens

    Igreja, como garantia de sua salvao, e prescrever seus desejos quanto a seu funeral (Aris,

    1977).

    Tambm nesse perodo o corpo morto passou a receber um tratamento diferente, sendo

    encerrado em caixes, excludo e escondido, pois os vivos no precisavam ver os mortos agora, uma viso insuportvel. Nesse contexto, intensificou-se a tcnica do embalsamamento,

    numa tentativa de se conservar viva a imagem do morto, o que tambm pode ser entendido

    como uma de se negar a ocorrncia da morte (Oliveira, 2001).

    Nesse mbito, os temas macabros se tornaram freqentes e revelavam as fantasias e os

    temores que se haviam instalado frente ao morto e morte, o que s veio a perder um pouco

    de sua importncia e gradativamente depois do sculo XVI. Ento, sob a influncia do idealismo, o sofrimento trazido pela morte passa a no ser

    mais to relacionado agonia dessa hora, e sim tristeza do rompimento de uma amizade,

    concepo que suprime o carter concreto da morte, representado pelo moribundo agonizando

    no leito, e lhe atribui um sentido metafsico, expresso pela metfora da separao da alma e do

    corpo.

    Paralelamente, do fim da Idade Mdia at o sculo XVIII, os rituais de luto

    englobavam uma srie de procedimentos e atitudes de forma a induzir a famlia do morto a

    manifestar, por certo tempo, dor e tristeza pelo ente querido, sentimentos nem sempre

    sinceros. Essas manifestaes de pesar tinham ainda a funo de proteger os sobreviventes da

    dor pela morte do familiar, mas assumiram propores que fizeram com que o luto passasse a

    ser ostentado e as expresses de pesar se tornassem mais controladas e austeras (Dias, 1991).

    Segundo Aris (1997), o que no se podia expressar por palavras ou gestos passou a

    ser representado pelo uso da cor preta e de outras por parte dos enlutados, o que assumia vrios significados: o medo que se tinha dos mortos, o abandono e a perda sofrida, sugerindo

    a necessidade de uma ateno especial para com os enlutados.

    Outro ritual que ganhou fora nesse perodo foi a celebrao de missas inmeras , que comeavam antes da hora da morte, missas de intercesso, outras, no prprio momento da

    morte ou imediatamente depois dela, mas que duravam dias, semanas, meses, um ano;

    algumas ligadas aos rituais do funeral, na poca denominado servio, outras, no.

    Alm disso, comeou-se a acreditar que o cadver conservava certa sensibilidade, um

    resduo de vida, de modo que se poderia constituir em matria-prima para medicamentos para

  • 39

    a preveno e a cura de doenas, ser usado na fertilizao da terra e compor poes com

    poderes afrodisacos ou capazes de transmitir vida a moribundos (Kovcs, 1992).

    Em funo dessas crenas, ganhou fora a concepo de que a alma era imortal, e

    ficou difcil separar o natural do sobrenatural e a vida da morte. As pessoas passaram a ter

    medo de serem enterradas ainda vivas, e surgiram vrios rituais para atrasar os enterros, como

    os velrios: a morte estava distante e prxima, e a nfase recaa sobre a vida na morte

    (Kovcs, 1992).

    Porm, a partir do sculo XVIII e at a metade do sculo XIX, sob a influncia do

    romantismo, a morte ganhou novo e diferente sentido, passando a representar um sublime

    descanso e a oportunidade de se reencontrar o ser amado. Nesse contexto, a morte percebida

    como arrebatadora e impressionante e deixa de ser temida para ser amada e desejada;

    prevalece a crena na vida aps a morte, e j se comea a defender a possibilidade de

    comunicao entre vivos e mortos e da reencarnao (Dias, 1991; Kovcs, 1992).

    Ainda segundo Kovcs (1992), contraditoriamente, o medo que predominava nesse

    perodo era relativo s almas do outro mundo, que poderiam vir perturbar os vivos, o que deu

    origem a uma srie de rituais que tinham por objetivo afugentar esses seres.

    Nessa poca, o homem se ocupava menos de sua prpria morte, e mais da morte do

    outro. Mudou at mesmo a concepo de como deveriam ser os cemitrios, com novas leis

    que instituram padres para o sepultamento dos mortos, estabelecendo-se regras quanto ao

    espao e profundidade das covas.

    Desse modo, no sculo XIX, o luto adquiriu uma expresso ainda mais contundente,

    pois, diante do morto, os sobreviventes tendiam a se comover excessivamente, o que revela

    que a morte no era mais percebida como um evento to natural, mas cada vez mais de difcil

    aceitao, indomesticvel, selvagem (Domingos, 2000).

    J no sculo XX, houve mudanas significativas na atitude do homem ocidental diante

    da morte e em sua vivncia de luto em algumas das regies mais industrializadas e

    urbanizadas, mais tecnicamente avanadas, e a sociedade passa a expulsar a morte de seu

    mbito, afetando que nada aconteceu, de modo que a morte pblica, como um evento que

    atingia toda a sociedade, passou a conviver com a morte vergonhosa (Aris, 1977).

    A partir do sculo XIX, com os avanos da medicina, j se podia ter conhecimento da

    proximidade da morte, e ela passou a assustar tanto, que se fazia de tudo para no se falar nela

    e se negar sua iminncia. Incapazes de tolerar sua morte, os que estavam volta do

    moribundo temiam contar-lhe a gravidade de seu estado e tudo faziam para ocult-la.

  • 40

    Assim, o moribundo passou a no ser mais dono de si, mas sua famlia que se

    responsabilizava por ele. De acordo com Aris (1977), essa morte, caracterizada pela

    alienao do prprio moribundo de sua condio, a morte invertida.

    Nesse perodo, com a medicalizao da sociedade, fundada no triunfo sobre a doena e

    a morte, esta passou de um acontecimento natural a um evento que representava o fracasso, a

    impotncia e a impercia, devendo por isso ser ocultado. A presena da morte no deveria ser

    percebida, e a boa morte ocorreria quando o moribundo fingia que no sabia que iria morrer e

    no se sabia se a pessoa tinha morrido ou no (Oliveira, 2001; Kovcs, 1992).

    Se no havia morte, no havia luto, de modo que a expresso aberta da dor, de

    sentimentos e de emoes suscitadas pela perda da pessoa que morreu passou a ser

    considerada mrbida e de mau gosto, tornando-se proibida; muitas vezes, s restava ao

    sobrevivente chorar s escondidas, num luto solitrio, como se fosse vergonhoso demonstrar

    pesar pela perda de uma pessoa querida.

    Com o tempo, e principalmente no sculo XX, entre 1930 e 1950, com a transferncia

    do local da morte do lar para o hospital, a mudana de postura diante da doena e da morte

    que era defendida com o argumento de representar um avano tecnolgico, e essas tendncias

    se fortaleceram e consolidaram (Domingos, 2000).

    Entretanto, essa mudana de postura tambm era, de certa forma, conveniente para o

    hospital e para a famlia. Para o hospital, afastava-se a famlia do doente com a justificativa de

    que ela embaraaria o bom andamento do hospital e do trabalho dos mdicos, com suas

    lamentaes, choros ou questionamentos e rituais (Aires, 1977). Alm disso, como os

    pacientes terminais tambm incomodam os profissionais de sade com sua revolta, sua dor,

    seus questionamentos e exigncias, a funo de se responsabilizar pelo moribundo passou a

    ser do hospital e da equipe mdica, que assim teria como controlar tais inconvenientes.

    Por outro lado, a famlia se preservava da convivncia com aspectos considerados

    repugnantes e mrbidos da doena e da morte, alm de poder mais facilmente escamotear sua

    dor e seu luto, cujas expresses importunariam a sociedade, por serem consideradas de mau

    gosto, vergonhosas e muitas vezes associadas a manifestaes histricas (Domingos, 2000).

    Dessa forma, no s o moribundo seria poupado, mas tambm sua famlia, os vizinhos

    e a sociedade, sobretudo as crianas, que, diante da morte, poderiam ficar traumatizadas.

    Assim se excluram a morte e o luto da sociedade ocidental, situao que ainda bastante

    comum na atualidade, pois, numa sociedade voltada para o progresso e para a produtividade, a

    morte e o luto devem ser mantidos ocultos, sem direito a um espao pblico, para no

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    causarem constrangimento e para que a sociedade no se tenha que ocupar com o limite e a

    finitude.

    Antes, o enlutado se entristecia e tinha liberdade e acesso a rituais para dar livre vazo

    a sua dor, ser confortado pela presena e pelo amparo de pessoas prximas, que traziam

    freqentemente lembranas do morto; hoje, at se pode considerar que o enlutado tenha o

    direito de sofrer, mas privadamente, poupando os demais da sua dor.

    Alm disso, o amparo de pessoas prximas muitas vezes lhe negado, pois as pessoas

    evitam se aproximar dele, por considerarem que