dossiê: teoria social e desenvolvimento desenvolvimento … · discute os impactos do...

28
51 Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO RURAL, CAPITALISMO E AGRICULTURA FAMILIAR Nilson Weisheimer RESUMO: O ensaio aborda as dinâmicas do desenvolvimento rural que resultaram na modernização conservadora da agricultura. Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de agricultura. Este traz como resultado a emergência de dois tipos de fazer agrícola representadas por impérios alimentares e por agricultores familiares. Ambos os setores são contraditórios e complementares e seus impasses revelam a crise agrária contemporânea, parte integrante da crise estrutural do modo de produção capitalista. Palavras- chave: desenvolvimento rural, neoliberalismo, agricultura familiar. ABSTRACT: This essay focuses on the dynamics of rural development that resulted in conservative modernization of agriculture. Discusses the impacts of neoliberalism in rural and capitalist development on the familial forms of agriculture. This has as result the emergence of two types of agricultural represented by empires to food and farmers. Both sectors are contradictory and complementary and their dilemmas reveal the contemporary agrarian crisis, part of the structural crisis of the capitalist mode of production. Keywords: rural development, neoliberalism, family farming Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Upload: vuminh

Post on 30-Nov-2018

226 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

51

Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento

DESENVOLVIMENTO RURAL, CAPITALISMO E AGRICULTURA FAMILIAR

Nilson Weisheimer

RESUMO: O ensaio aborda as dinâmicas do desenvolvimento rural que resultaram na

modernização conservadora da agricultura. Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural

e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de agricultura. Este traz como

resultado a emergência de dois tipos de fazer agrícola representadas por impérios alimentares e

por agricultores familiares. Ambos os setores são contraditórios e complementares e seus

impasses revelam a crise agrária contemporânea, parte integrante da crise estrutural do modo de

produção capitalista.

Palavras- chave: desenvolvimento rural, neoliberalismo, agricultura familiar.

ABSTRACT: This essay focuses on the dynamics of rural development that resulted in conservative

modernization of agriculture. Discusses the impacts of neoliberalism in rural and capitalist

development on the familial forms of agriculture. This has as result the emergence of two types of

agricultural represented by empires to food and farmers. Both sectors are contradictory and

complementary and their dilemmas reveal the contemporary agrarian crisis, part of the structural

crisis of the capitalist mode of production.

Keywords: rural development, neoliberalism, family farming

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 2: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

52

1. Introdução

Este ensaio é resultado do esforço de aproximação ao estudo do “desenvolvimento rural” e as

dinâmicas de transformação capitalistas da agricultura. Buscamos discutir a historicidade e o

conteúdo político do desenvolvimento rural e suasrelação com as formas de fazer agricultura.

A estrutura argumentativa do texto inicia considerando os vínculos entre a noção de

desenvolvimento e o ideal transformador da modernidade. Segue discutindo suas implicações

sobre a emergência do projeto de desenvolvimento rural produtivista que resultaria em uma

modernização conservadora da agricultura. O esgotamento deste modelo seria precipitado

pela crise econômica e intensificado pela transição no regime de acumulação capitalista

desde então descrito como neoliberalismo e seus efeitos sobre o meio rural e a agricultura.

Posteriormente retoma-se o debate clássico sobre o desenvolvimento do capitalismo na

agricultura para situar a especificidade da agricultura familiar. Como considerações finais

destacamos as contradições presentes entre este dois modos de fazer agricultura

representada por império agroalimentares e por agricultores familiares como expressão da

crise agrária contemporânea De um modo geral e preliminar, podemos mencionar que

frequentemente quando nos referimos à noção de desenvolvimento estamos acionando um

ideal da modernidade. A noção de desenvolvimento é intrínseca ao projeto da modernidade,

uma vez queperseguiu um novo tipo de padrão civilizacional descrito por Marx e Engels como o

período histórico no qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”. Neste, o indivíduo assume o

papel de protagonista das transformações sociais e complementarmente, nas palavras de

Weber (2004), a aquisição capitalística é obtida racionalmente.

A interpretação da modernidade assumiria papel central no debate sociológico ensejando

diferentes explicações (metanarrativas) sobre os motivos e condicionantes de seu processo. De

acordo com José Maurício Domingues (2002), para as versões materialistas seria o

desenvolvimento das forças produtivas que engendraria a destruição de comunidades originais

inclusivas e coesas (MARX, 1981). Para as abordagens funcionalistas o desenvolvimento da

divisão do trabalho social (DURKHEIM, 1978) ou a diferenciação em geral que levaria ao

pluralismo de papéis sociais (PARSONS, 2010) que ofereceria a explicação para as mudanças

típicas da modernidade; uma terceira fonte enfatizaria que certos processos e matrizes culturais

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 3: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

53

estariam na base dessa concepção de indivíduo como agente moral soberano (TAYLOR, 1989).

Estas abordagens teóricas compartilham a percepção de que as transformações da modernidade

acarretariam crescente dissolução de padrões morais, cognitivos e estéticos implicando a

radicalização da modernidade e do próprio indivíduo. Deste modo, exigindo a ampliação das

habilidades reflexivas como orientadora da ação num mundo marcado por contradições

iminentes.

É justamente o esforço reflexivo de compreender e dirigir o ritmo e a direção da

modernização que permite a emergência da noção de desenvolvimento enquanto uma estratégia

de ação planejada.

Em sua concepção tradicional o desenvolvimento é definidocomo a conquista do

progresso econômico e social (desenvolvimento) através da transformação do estado de

subdesenvolvimento (baixa produção, estagnação, pobreza) em países designados de forma

variada como “pobres”, “subdesenvolvidos”, “menos desenvolvidos” ou “em desenvolvimento”

(BERSTEEIN, 1996). Segundo Henry Bernstein (1996), o crescimento econômico é entendido

como condição necessária, ainda que reconheça ser este insuficiente, para o progresso social

pela satisfação de necessidades básicas, tais como nutrição, saúde e habitação adequadas

(superação de pobreza absoluta), e outras condições de uma existência humana plena, como o

acesso universal à educação, liberdades civis e participação política (superação de pobreza ou

privação relativa).

O debate hegemônico sobre o “desenvolvimento” se instaura com maior força, a ponto de

virar o objetivo da ação dos governos, no período imediatamente posterior ao término da Segunda

Guerra Mundial e estender-se-ia até meados dos anos de 1970. As bases objetivas para a noção

de desenvolvimento de então foram estabelecidas nas três semanas de julho de 1944 quando na

cidade de Bretton Woods nos EUA, por ocasião da Conferência Monetária das Nações Unidas, foi

criado o FMI. O tratado de Bretton Woods, como ficou conhecido, estabeleceu as regras da ordem

econômica mundial depois da Segunda Guerra com os EUA, sendo a economia largamente

hegemônica com mais da metade do PIB do planeta e 80% das reservas de ouro. Sob estas

condições, apesar das resistências, incluindo a de John Maynard Keynes, que fora o

representante do Governo Inglês no encontro, os EUA lograram impor as novas normas e

instituições que passaram a regular a economia mundial e a ditar as diretrizes das políticas de

desenvolvimento.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 4: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

54

O mapa geopolítico mundial foi redesenhado depois de 1945 pelo fim da guerra e por

movimentos anticolonialistas, resultando no fim do império colonial britânico, na hegemonia dos

EUA no mundo capitalista e sua rivalidade com a União Soviética e o bloco socialista que estava

em expansão. Neste cenário, a busca por aliados entre os estados independentes da Ásia, África

e a manutenção da influência norte-americana sobre a América Latina passou a ser norteador do

debate acerca das possibilidades de desenvolvimento sob o regime capitalista dos anos

vindouros. Note-se que neste momento a noção de desenvolvimento pensado pela tecnocracia

restringia-se ao crescimento econômico por meio da industrialização percebendo-se as melhorias

sociais como derivadas desta.

2. Desenvolvimento Rural e Modernização Conservadora

A agricultura e o meio rural logo passaram a ser um subtema deste projeto de

desenvolvimento. Promover o desenvolvimento rural significava o aumento da produtividade

agrícola em índices mais elevados do que o crescimento populacional. A partir da década de

1950, começou a acelerar-se o processo de industrialização da agricultura e de formação do

complexo agroindustrial provocando mudanças profundas na estrutura da produção e da

comercialização agropecuária. Conforme Alberto Passos Guimarães (1979), depois de esquecida

por muitas décadas, os países capitalistas desenvolvidos fizeram a redescoberta da agricultura

passando a vigorar uma nova estratégia nas relações entre o mundo capitalista desenvolvido e o

mundo capitalista subdesenvolvido.

A tônica desta nova estratégia de relação entre as nações capitalistas foi a inserção dos

países do Terceiro Mundo no mercado mundial como exportadores de produtos agrícola a baixo

custo e importadores de produtos industrializados produzidos em larga escala. Para tal lançou-se

um conjunto de medidas que resultaram no desenvolvimento de novas tecnologias voltadas à

ampliação da produtividade de produtos agrícolas que ficaria conhecida por “Revolução Verde”.

Esta se constituiu sob um novo padrão tecnológico para a agricultura rompendo com os processos

produtivos do passado, impondo aos agricultores uma nova racionalidade técnica e econômica,

mercantilizando a vida social e minando com a relativa autonomia setorial que a agricultura teria

experimentado antes do amplo desenvolvimento das relações capitalistas na agricultura em

escala planetária.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 5: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

55

De um modo geral, a “Revolução Verde” no “mundo capitalista subdesenvolvido” ou

“periférico”, como o define Henry C. Wallich (1969), serviu para elevar a produtividade agrícola

dos estabelecimentos e das regiões em que as rendas já eram altas; mas nada pôde fazer para

melhorar a situação dos pobres do campo. Por isso tornou ainda mais profundo o fosso entre as

classes rurais de altas e baixas rendas, contribuindo para agravar ainda mais as contradições da

agricultura capitalista (GUIMARÃES, 1979).

Isto porque para promover a industrialização da agricultura com a importação do pacote

tecnológico da “Revolução Verde” foi necessário um pesado investimento monetário que entre os

países latino-americanos só pode ser realizado por meio do Estado, sob a forma de subsídios

agrícolas dirigidos aos grandes proprietários fundiários desde então denominados “empresários

rurais”. O novo padrão tecnológico exigiu uma apropriada atividade de pesquisa e assistência

técnica a fim de se atingir rendimentos compatíveis para a inserção no mercado internacional.

Enquanto isso, para os agricultores menos capitalizados a concentração de terras lhes

direcionou para áreas menos férteis, mantendo-se a produção com práticas tradicionais visto que

o novo pacote tecnológico fora pensado para as grandes propriedades rurais.

Com a disseminação de tal padrão na agricultura, desde então chamado de “moderno”, o

mundo rural (e as atividades agrícolas, em particular) passou a se subordinar, como mera peça

dependente, aos novos interesses, classes e formas de vida e de consumo, majoritariamente

urbanas que a expansão econômica do período ensejou, em graus variados, nos diferentes

países. Esse período, que coincide com a impressionante expansão capitalista dos “anos

dourados” (1950-1975), é assim um divisor de águas também para as atividades agrícolas

transformando o mundo rural tão logo os efeitos desta época de mudanças se tornassem

completos (NAVARRO, 2001).

Este padrão de desenvolvimento foi denominado de “modernização conservadora” porque

não alterou a estrutura fundiária nem as relações de poder, a exemplo dos Junkers alemães. Um

paralelo evidente com o caso do Brasil, onde os grandes proprietários fundiários mantiveram sua

posição de poder, com a subordinação dos trabalhadores rurais e mesmo dirigindo a

modernização sob seus interesses. Este paralelo entre o Brasil e a Alemanha difere

substancialmente dos processos de modernização pelos quais passaram, por exemplo, a França e

o México, onde os conflitos agrários levaram ao enfraquecimento da grande propriedade rural por

meio de reformas agrárias.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 6: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

56

O balanço destes quase 50 anos de intervenções mostra que na busca do

desenvolvimento rural pouco modificou o estado e a dinâmica da pobreza da subordinação dos

trabalhadores nas zonas rurais, tão pouco se estabeleceu a democracia nas relações sociais

agrárias. George Martine (1991) enfatiza que o modelo de modernização conservadora

conseguiu transformar o aparato produtivo e alcançar expressivos níveis de crescimento

econômico sem alterar os níveis de pobreza absoluta, mantendo grande parte da população em

condições miseráveis e acentuando ainda mais a concentração de rendas e de terras no Brasil.

Como resultado social houve uma maior subordinação do trabalho ao grande capital e o êxodo

rural provocou uma urbanização acelerada.

Do ponto de vista ambiental, este modelo de desenvolvimento essencialmente

produtivista promoveu o esgotamento prematuro dos solos e a contaminação dos recursos

hídricos, assim como o desmatamento nas áreas de florestas tropicais como as que ocorreram

com a expansão da fronteira agrícola no Centro-Oeste e Norte do Brasil. Além disso, a importação

de pacotes tecnológicos ampliou a dependência externa e vinculou a agricultura a uma matriz

energética não renovável.

Sobre este último aspecto, é necessário reconhecermos, como o faz o físico nuclear

José.W. Bautista Vidal (1988), que quando um país opta por um pacote tecnológico externo,

mesmo que este ofereça altos índices de produtividade, ele esta decidindo de fato pela

importação de mecanismos e processos que levarão a ampliação da sua dependência externa

visto que foram originadas sob orientações econômicas, políticas, sociais e mesmo militares

elaboradas conforme os interesses dos responsáveis por estas agregações e seus controladores.

Esta questão é reafirmada por José A. Lutzenberger (2001) ao referir-se à implementação da

biotecnologia na agricultura controlada por grandes corporações transnacionais:

O principal problema aqui não é tanto se nossos alimentos se tornarão

de qualidade inferior e até nocivos - apesar de que isso possa vir a

ocorrer - mas, novamente, trata-se de adicionar mais estruturas de

dependência e dominação sobre os agricultores que ainda restam e

impor uma limitação de escolhas para o consumidor. (LUTZEMBERGER,

2001, p.73).

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 7: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

57

A importação de pacotes tecnológica acabou por restringir o acesso dos agricultores a

variedades de sementes nativas pela imposição de sementes industrializadas, levando ao

desaparecimento de variedades tradicionalmente utilizadas. O que implica na alteração dos

padrões alimentares ampliando a espiral da dependência externa e a subordinação da

agricultura nacional as grandes corporações externas.

Esta noção de desenvolvimento rural esgotou-se no final dos anos setenta devido a

impossibilidade dos estados nacionais continuarem arcando com seu elevado custo de

investimento, frente à crise econômica mundial que se deflagrou após 1973. Somam-se a isto os

insatisfatórios resultados, particularmente em relação à redução da pobreza rural e da fome que

pouco se modificou.

Navarro (2001) sugere que o desencanto com a possibilidade de desenvolvimento

associou-se ao estancamento da fase econômica expansionista do pós-guerra (refreado já em

meados da década de 1970) e, posteriormente, à vaga conservadora que gradualmente instalou-

se na virada daquela década. Ambas contribuiriam para desacreditar as propostas de

desenvolvimento rural. Depois nos anos oitenta, o início da implementação de políticas

inspiradas em enfoque que posteriormente seria rotulado de neoliberalismo passaram a reduzir o

papel do Estado e retiraram o desenvolvimento rural da cena de discussões.

Como resultado a década de 1980 pode ser considerada como uma “década perversa”

(GRAZIANO da SILVA, 1996 (b)) ou como “a década perdida” (PIÑEIRO, 2003), pois, apesar da

retomada dos governos constitucionais na América Latina, o contexto foi de estagnação

econômica e crise social, onde:

A ação do Estado foi decisiva para separar os que ganharam dos que

perderam, através da perversa combinação de um brutal arrocho

salarial com uma política de câmbio defasado e a administração de

polpudos subsídios direcionados a grupos de interesses específicos

(GRAZIANO da SILVA, 1996 (b): p.ii).

O legado do desenvolvimento rural pautado pelo produtivismo resultou na chamada

modernização conservadora. Atualmente, na América Latina, a maior parte dos pobres rurais é

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 8: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

58

constituída pelos pequenos produtores e seus familiares, trabalhadores rurais sem terra,

remanescentes de comunidades tradicionais como quilombolas e indígenas, jovens

desempregados ou trabalhadores temporários e por unidades familiares chefiadas por mulheres.

3. As transformações recentes no regime de acumulação e seus impactos sobre o espaço social

rural e a agricultura

A retomada do debate sobre o desenvolvimento a partir da década de noventa ocorre sob

um novo contexto mundial marcado por mudanças econômicas, políticas, sociais e culturais que

caracterizam o que David Harvey (1994) descreve como uma transição no regime de acumulação

e no modo de regulamentação social a ele associado. Estas transformações estruturais ensejam

novas maneiras dominantes da experiência sobre o espaço e o tempo e conferem novos papéis à

informação e a centralidade do conhecimento.

Harvey (1994) sugere que o capitalismo esteja vivendo uma transição histórica através da

passagem do Fordismo - Keynisianismo para um novo regime denominado “acumulação flexível”.

Ele sustenta a tese de que há alguma forma de relação entre a ascensão de formas culturais

“pós-modernas”, a emergência de modos mais flexíveis de acumulação do capital e um novo ciclo

de “compressão do tempo-espaço” na organização do capitalismo. Essas mudanças quando

confrontadas com as regras básicas de acumulação capitalista mostram-se mais como

transformação da aparência superficial do que como sinais do surgimento de alguma sociedade

pós-capitalista ou pós-industrial inteiramente nova. Ele argumenta que as mudanças

correspondem a uma tentativa de solução financeira para as tendências de crises cíclicas do

capitalismo. Conforme suas palavras: “A transição para a acumulação flexível foi feita por meio

de rápida implantação de novas formas organizacionais e de novas tecnologias produtivas”

(HARVEY, 1994: p.257).

Este novo regime de acumulação emerge com base na revolução tecnocientífica

informacional repousando no conhecimento como principal elemento para a agregação de valor.

O novo padrão técnico científico implica em crescente intensidade e complexidade dos

conhecimentos desenvolvidos. A capacidade de gerar e absorver inovações são, portanto, vistas

como elementos-chave da competitividade dinâmica e sustentável. Incrementar o processo de

inovação requer o acesso aos conhecimentos e a capacidade de apreendê-los, acumulá-los e usá-

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 9: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

59

los. O caráter complexo e dinâmico dos novos conhecimentos requer ênfase especial no

aprendizado permanente e interativo, como forma de indivíduos, empresas e demais instituições

tornarem-se aptos a enfrentar novos desafios e capacitarem-se para uma inserção mais positiva

no novo cenário (LASTER; et al, 2002).

Os sistemas aperfeiçoados de comunicação e de fluxo de informações associados a

racionalizações nas técnicas de distribuição aceleram o fluxo de mercadorias e dinheiro tendo o

globo como espaço de ação. Estes elementos intensificam uma tendência da modernidade: a

compressão tempo-espaço. As dimensões de compressão do espaço e do tempo estão sujeitas à

pressão da circulação e da acumulação do capital. Segundo Harvey (1994), as fases de

compressão de tempo-espaço são também de crise de super acumulação, períodos de confusão e

incerteza.

Neste contexto, as políticas de ajuste estrutural aplicadas em intensidades diferentes

nos países latino-americanos a partir do marco do neoliberalismo expressa no “Consenso de

Washington” consolidam a dependência econômica dos países latino-americanos confrontando-

se com a estratégia de substituição de importações disseminada pela CEPAL que predominou até

o fim dos anos setenta.

Em linhas gerais o programa de ajuste econômico e normativo promovido pelo projeto

neoliberal, este invólucro ideológico da ditadura do capital financeiro sobre os povos do mundo,

promove à liberdade ampla mobilidade ao capital financeiro e a restrição do poder regulador dos

Estados Nacionais. Contudo, é necessário destacar que este processo é altamente seletivo e de

mão única cujos fluxos atentem aos interesses do centro de comando do capitalismo em

detrimento das nações periféricas na dinâmica da concentração do capital. Este programa

neoliberal pode ser apresentado resumidamente em dez pontos: 1) ajuste fiscal: só gastar o que

arrecada; 2) redução do tamanho do Estado, limitando sua intervenção na economia, redefinindo

seu papel, enxugando a máquina; 3) privatizações: vender empresas que não se relacionam

diretamente com as atividades de governação; 4) abertura comercial: reduzir as taxas de

importação, estimular o comércio externo e a globalização; 5) não restrição ao capital externo; 6)

abertura financeira: fim das restrições às instituições financeiras internacionais conferindo a

estas o mesmo tratamento que é dado para as instituições nacionais, redução da presença do

estado na economia; 7) desregulamentação: reduzir as regras da economia para o livre

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 10: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

60

funcionamento do mercado; 8) reestruturação da previdência social; 9) concentrar os

investimentos em infraestrutura básica; 10) fiscalização e redução dos gastos públicos.

No exame do impacto destas transformações nas relações de produção sobre o meio

social rural, Diego Piñero (2003) destaca que os programas de ajuste estrutural,

desregulamentação estatal, privatização, abertura da economia a inversões estrangeiras e

abertura das fronteiras comerciais, seguidas com disciplina pelos governos latino-americanos,

não aumentaram o bem estar da população, mas, ao contrário, produziram mais pobreza e

desigualdades sociais (PIÑEIRO, 2003). Além disso, “la deuda externa del continente creció a

niveles asfixiantes impidiendo la capitalización y el desarrollo económico” (PIÑEIRO: 2003,

p.27).

Como resultado destes processos, houve nos anos de 1990 a implementação de maiores

restrições à agricultura, em decorrência do processo de globalização e das políticas das instituições

financeiras internacionais. Os agricultores dos países latino-americanos que tentaram

acompanhar estas transformações promoveram ajustes para compensar as novas restrições e as

mudanças ocorridas nas décadas anteriores, empregando formas alternativas de capitalização

interna aos estabelecimentos produtivos, ligados principalmente ao forte aumento da

produtividade, redução de custos e desmobilização de ativos. Isto ocorreu às custas de um maior

endividamento do setor a fim de promover um maior incremento no campo científico da

biotecnologia e da informática, que “son los que dominarán los processos agrícola hacia el

futuro” (PIÑERO: 2003, p. 28).

Como consequência, o processo de desemprego de mão de obra foi ainda mais

acentuado, não somente de trabalhadores contratados, mas também de membros das famílias

dos produtores. Houve também redução no número de estabelecimentos e queda nos preços das

terras, principalmente após a estabilização registrada nos países que vivenciavam altos índices

de inflação. No Brasil, como indicam Dias e Amaral (2000) este processo agravou uma situação

anterior, com fortes raízes históricas, que caracteriza o setor agrícola brasileiro como registrando

uma das distribuições de renda mais desiguais na América Latina.

Outra consequência das transformações econômicas na agricultura, registradas na

América Latina, foi uma maior diferenciação ocupacional da população rural. Por um lado,

ocorreu a diminuição da população considerada como rural e o aumento da população agrícola,

isto é, aumentou o número de trabalhadores de empresas agroindustriais e no setor de serviços,

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 11: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

61

que não vivem necessariamente no campo e que, em consequência, não podem ser chamados

nem de agricultores familiares ou camponeses, nem de população rural.

Clayton Campanhola e José Graziano da Silva (2000) mostram que das 46 mil famílias de

trabalhadores agrícolas com mais de dois empregados existentes no Brasil em 1997, mais da

metade (27 mil) residiam em áreas urbanas industrializadas. Entre as 223 mil famílias com até

dois trabalhadores agrícolas, quase um terço (68 mil) também residiam em zonas urbanas. Por

outro lado, o incremento das ocupações não agrícolas tem crescido em toda a América Latina.

Schneider (2003) menciona que os empregos rurais não agrícolas representam 40% das rendas

dos habitantes do meio rural latino americano. Para o Brasil, Graziano da Silva mostra que a

população economicamente ativa rural, entre 1985 e 1995, cresceu a uma taxa de 0,4% ao ano,

muito menor que a taxa de crescimento urbano, de 2,5% ao ano. Paralelamente, considerando os

empregados em atividades agrícolas entre 1992 e 1995 a população rural diminuiu 0,5% ao ano,

enquanto que a atividade não agrícola no meio rural teve um crescimento de 3.5% ao ano,

compensando as perdas de postos de trabalho que ocorriam no setor produtivo agrícola (Graziano

da Silva, 1996(a)).

Deve-se destacar que há ainda setores importantes do meio rural que são agrícolas,

enquanto que outros incluem uma dupla atividade: agrícola e não agrícola. Havia no Brasil em

1997, em termos absolutos 350 mil pessoas que combinavam atividades agrícolas e não

agrícolas (Campanhola e Graziano da Silva: 2000, p.52). Grande parte dos migrantes muda-se,

ao menos provisoriamente, para as periferias de povoados e cidades, sem perder contato com sua

localidade e com sua família de origem, e coloca em circulação mão-de-obra, dinheiro, bens e

alimentos de uma residência a outra. (PIÑERO: 2003).

Estas informações dão conta de um processo de diversificação das formas de ocupação e

renda no meio rural que resultam das novas dinâmicas espaciais possibilitadas por processos

técnicos e organizacionais que caracterizam a nova estratégia de acumulação. Neste sentido, a

busca das empresas por relações de trabalho mais flexíveis é a principal indutora dos processos

de industrialização difusa que estão alterando as características espaciais da divisão social do

trabalho transformando o meio rural num espaço não exclusivamente agrícola.

Schneider (2005) sistematiza as múltiplas dimensões da reestruturação econômica,

produtiva e institucional, apresentando cinco efeitos sobre a agricultura familiar e o mundo rural.

Conforme o autor, primeiro são abertos os mercados, quando se aceleram as trocas comerciais e

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 12: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

62

intensifica-se a competitividade, agora tendo por base poderosas cadeias agroalimentares que

monopolizam a produção e o comércio atacadista em escala global, restringindo a participação

nestas relações de troca de imensas regiões produtoras. Isso vale inclusive para alguns países e

mesmo parcelas continentais (REARDON; BERDEGUÉ, 2003 apud SCHNEIDER, 2005). Segundo,

paralelamente ao processo contínuo de aprofundamento do progresso tecnológico (agora via

biotecnologias, engenharia genética, etc.) destaca-se o aparecimento de iniciativas, das mais

variadas matizes, que contestam e criticam o padrão técnico dominante (GOODMAN; WATTS,

1997, apud SCHNEIDER, 2005). Terceiro, as modificações nos processos de produção pós-

fordistas (mais flexíveis e descentralizados) levam à diluição das diferenças setoriais (o

agribusiness é visto como o encadeamento de vários setores) e espaciais. O rural deixa de ser o

locus específico das atividades agrícolas, e as variadas formas de complementação de renda e

ocupação em atividades não-agrícolas permitem que a renda de muitas famílias que residem no

meio rural se estabilize ao longo do ano e que os filhos não precisem mais deixar o meio rural para

achar emprego (ECHEVERRÍA, 2001; SILVA, J. 1999; SCHNEIDER, 2003, SCHNEIDER, 2005).

Quarto, o papel do poder público e das instituições que atuam nos espaços rurais se modificam. O

centralismo cede espaço à parceria e à participação da sociedade (BOISIER, 1999;

CAMPANHOLA & GRAZIANO DA SILVA, 2000 apud SCHNEIDER, 2005). Quinto, a dimensão

ambiental e a sustentabilidade do uso dos recursos naturais deixam de ser vistas como um

aspecto secundário e um argumento de minorias e passa a ser um fator de competitividade, um

elemento de estímulo à ampliação do consumo, uma vantagem econômica comparativa e um pré-

requisito para obtenção de créditos e acesso a fundos de investimento, especialmente os de

fontes públicas (PLOEG; RENTING, 2000 apudSCHNEIDER, 2005).

Ainda com base na leitura de Enrry Bernstein (2011) podemos interpretar e destacar os

principais temas na discussão da globalização e de seu impacto sobre a agricultura.

a) A liberação do comércio, mudanças nos padrões globais de comércio dos

produtos agrícolas e as disputas resultantes disto na Organização Mundial do

Comércio (OMC);

b) Efeitos sobre os preços das mercadorias agrícolas futuro impulsionada pela

especulação financeira;

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 13: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

63

c) Restrição, e mesmo eliminação, de subsídios e apoios à produção em pequena

escala como as da agricultura familiar e camponesa nos países do hemisfério

sul;

d) Crescente concentração de corporações globais na indústria de agroinsumos e

agroalimentares com poucas empresas multinacionais controlando o mercado

global;

e) Novas tecnologias organizacionais implantadas por estas corporações em

conjunto com cadeias de mercados agrícolas com controle da produção e

distribuição de insumos e alimentos;

f) Combinação destas tecnologias com o poder econômico coorporativo

restringindo e determinando as escolhas e práticas dos agricultores;

g) Avanço do controle destas corporações sobre direitos reservados junto à OMC

de patente e propriedade intelectual sobre material genético de plantas e

organismos vivos como a nova fronteira tecnológica;

h) Sobre esta tônica, observa avanços na engenharia genética de plantas e

animais (organismo geneticamente modificados) que passam ditar um novo

padrão de produtividade e em conjunto com a monocultura especializada

contribui para perda da biodiversidade;

i) A produção de bicombustíveis como a nova fronteira do lucro dominada por

corporações do agronegócio e com impactos sobre a produção mundial de

alimentos, notadamente a de graus nos EUA;

j) Aumento vertiginoso das substâncias químicas na produção agropecuária

representando um dos principais riscos globais para a saúde humana,

combinado com o processamento industrial de alimentos e as decorrentes

deficiências nutricionais das dietas a base de “fast food” ou de “junk food”

resultando em aumento da obesidade, cardiopatias e outras doenças

decorrentes dos novos hábitos alimentares, convivendo com o aumento da

insegurança alimentar, fome e desnutrição aguda nas nações da periferia do

capitalismo;

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 14: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

64

k) Os custos ambientais de todos os temas mencionado acima, notadamente a

degradação de solos, consumo excessivo de recursos hídricos,

suacontaminação por resíduos químicos e a diminuição da biodiversidade

entre outros (BERNSTEIN, 2011).

O conjunto de fatores macroeconômicos, políticos e sociais e ambientais descritos

acima, incluindo os fracassos de quase todos os países ao tentar alcançar um crescimento

duradouro e sustentado de suas economias, manter níveis elevados de investimentos públicos em

infraestruturas produtivas e serviços sociais qualificados a suas populações e a ampliação das

vulnerabilidades externas aos desajustes da economia global condicionam as novas estratégias

de desenvolvimento rural que emergem a partir de meados dos anos de 1990.

Neste contexto de risco e incerteza as possibilidades de promoção do desenvolvimento

rural passam a ser cada vez mais atribuídas à capacidade de entendimento entre diferentes

atores sociais e instituições em escala local, a fim de que estes possam neste cenário de

turbulência se valer de certas oportunidades de mercado e criar dinâmicas propícias ao

desenvolvimento. Sempre a favor e benefício do grande capital financeiro que se articulam às

corporações agroindustriais denominadas por Van Der Ploeg (2008) como impérios alimentares.

4. Desenvolvimento capitalista e agricultura familiar

Discute-se agora como as dinâmicas promovidas pelo modo de produção capitalista

envolvem a agricultura, transformando as relações de produção camponesas sem dissolver o

processo de trabalho familiar na agricultura. Neste sentido, a primeira questão que se impõe é

estabelecer o caráter deste modo de produção.

Conforme Karl Marx (2004), o que define o caráter de um modo de produção é a

articulação existente entre as forças produtivas e as relações sociais de produção. Essa

articulação visa a assegurar a própria reprodução do modo de produção. Com isso, podemos dizer

que os modos de produção até hoje existentes se definem pela presença de classes sociais

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 15: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

65

complementares e antagônicas que resultam da articulação entre determinado estágio de

desenvolvimento das forças produtivas e suas correspondentes relações sociais de produção.

O conceito de modo de produção em Marx aparece qualificado por algum termo como,

escravista, feudal ou capitalista. Isso ocorre porque, em sua análise, Marx não aborda a

produção em geral, mas se refere sempre à produção em um determinado estágio de

desenvolvimento das forças produtivas da humanidade. Além disso, é importante considerar que

este conceito não se reduz a uma interpretação econômica da sociedade, ou seja, ao processo de

produção de bens materiais. Outrossim, trata-se de uma ferramenta teórica que inclui outros

níveis de realidade social, como o jurídico, o político e o ideológico, que figuram no plano da

superestrutura da sociedade. Ou seja, o modo de produção é um conceito que permite pensar a

totalidade social.

No capitalismo, este processo implica o fato de que: a) todo produto social toma a forma

de mercadorias (e não apenas uma fração excedente); b) a própria força de trabalho é uma

mercadoria; c) o capital, que é uma relação social, cristaliza-se em meios de produção que são

também mercadorias. Este processo possibilita a extração da mais-valia como apropriação

privada do valor gerado pelo trabalho social e potencializa a circulação do capital em base

ampliada. Ou seja, conforme expõe Karl Marx, o que define o capitalismo não é simplesmente a

produção de mercadorias, mas, precisamente, o fato de que: “1) As mercadorias são produto do

capital; 2) a produção capitalista é a produção de mais-valia; 3) é, no fim de contas, produção e

reprodução do conjunto da relação, e é através disso que este processo imediato de produção se

caracteriza como especialmente capitalista” (MARX, 2004, p. 37).

Com base nesta definição geral, os camponeses aparecem na teoria marxista como uma

“exploração parcelar”, ou seja, que produz em uma parcela restrita de terra e que estão

integrados parcialmente ao processo de divisão social do trabalho. Como trabalhadores e

proprietários dos meios de produção, configuravam uma situação atípica no capitalismo, sendo

percebidos como resquícios de um modo de produção pré-capitalista. Assim, são descritos como

uma forma de “produção simples de mercadorias”, uma vez que eles não correspondem

propriamente a nenhuma das três classes fundamentais do capitalismo na agricultura: o

capitalista industrial, o proprietário fundiário e o trabalhador agrícola assalariado. A cada uma

delas corresponderia, respectivamente, uma das três formas de divisão do valor: o lucro, a renda

da terra e o salário.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 16: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

66

Percebe-se que, apesar da aliança entre capitalista e proprietário fundiário, o segundo

possui, na propriedade do solo (condição para a renda absoluta), na diversidade natural dos tipos

de solo (condição para a renda diferencial), um título que lhe permite embolsar uma parte dessa

mais-valia, para a qual ele não contribui nem para dirigir nem para criar. Por isto, acrescenta

Marx, o capitalista considera o latifundiário como uma mera excrescência, um parasita e mesmo

um entrave para a produção capitalista. (MARX, 1985; AMIN, 1977; ROSDOLSKY, 2001). Esse

processo é geral e dominante no capitalismo, mas não pode ser considerado como homogêneo.

Há toda uma série de arranjos específicos, estruturais e conjunturais, na expansão e dominação

das relações capitalistas na agricultura que Marx não considerou.

Uma análise apurada da interação entre capitalismo e agricultura que se realiza com

base no trabalho familiar, e distinta da anterior, é encontrada na obra do economista russo

Alexander Chayanov (1974, 1981). Sua perspectiva teórica buscou integrar as vertentes da

economia política de Marx com as diretrizes da escola marginalista (econômica neoclássica)

produzindo uma teoria econômica do campesinato com ênfase na microeconomia. Este autor

parte do que chamou de modo de produção camponês (não-capitalista) cujas unidades

elementares são formadas por famílias simultaneamente proprietárias dos meios de produção,

realizadoras do trabalho e gestoras do empreendimento produtivo. Tais unidades estariam,

principalmente, voltadas para suprir suas demandas internas e comercializariam apenas a fração

excedente dos produtos.

Para Chayanov, a unidade de análise fundamental era a família camponesa, considerada

como uma totalidade cujo trabalho ele percebeu como indivisível. Ou seja, a família camponesa

correspondia a uma unidade de força de trabalho e de consumo centrada em um casal e seus

filhos, aos quais podem ser agregados outros membros e cujo esforço se dirige ao que ele

descreveu como balanço entre a capacidade de trabalho e a necessidade de consumo buscando

alcançar o grau ótimo de exploração. Conforme propunha este autor:

Uma análise mais profunda indica o seguinte: o produto do trabalho indivisível de uma

família, e, por conseguinte, a prosperidade da exploração familiar, não aumenta de maneira tão

marcante quanto o rendimento de uma unidade econômica capitalista influenciada pelos

mesmos fatores, porque o camponês trabalhador, ao perceber o aumento da produtividade do

trabalho, inevitavelmente equilibrará os fatores econômicos internos de sua granja, ou seja, com

menor exploração de sua capacidade de trabalho. Ele satisfaz melhor as necessidades de sua

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 17: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

67

família, com menor dispêndio de trabalho, e reduz assim a intensidade técnica do conjunto de

sua atividade econômica (CHAYANOV, 1981, p. 141).

Depreende-se dessa passagem que o caráter indivisível do resultado do trabalho familiar

constitui-se na dimensão fundamental para a compreensão da família camponesa. A produção é

o retorno da atividade de toda a família, fator este que pode liberar força de trabalho para fora da

unidade familiar quando parte dela for excedente, ou introduzir mudanças no padrão tecnológico

como estratégia para compensar a escassez de força de trabalho. Chayanov (1974) parte da

premissa de que a família tem o controle sobre o próprio trabalho e sobre o processo produtivo

que realiza, sendo capaz de definir as melhores estratégias visando à satisfação de suas

necessidades com o menor grau de exploração do próprio trabalho. É deste pressuposto que

emerge a ideia de que há uma dimensão subjetiva que molda o perfil camponês de seu tempo. De

tal modo que:

La familia campesina trata de cubrir sus necesidades de la manera más fácil y,

por lo tanto, pondera los medios efectivos de producción y cualquier otro objeto al

cual puede aplicarse su fuerza de trabajo, y la distribuye dé manera que brida una

remuneración elevada. De esta manera, es frecuente que, al buscar la retribución

más alta por unidad doméstica de trabajo, la familia campesina deje sin utilizar la

tierra y los medios de producción de que dispone si otras formas de trabajo le

proporcionan condiciones más ventajosas (CHAYANOV, 1974, p. 120).

Nota-se que, da centralidade da família como promotora do esforço de trabalho e

detentora da propriedade e definidora das necessidades de consumo, decorre a importância da

evolução de sua composição demográfica, como um elemento chave do próprio processo de

transformação interno da unidade família/estabelecimento, o que Chayanov (1981) denominou

“diferenciação demográfica”. Ou seja, no ciclo de desenvolvimento da família ocorre uma

alteração entre o número de consumidores e o de produtores, promovendo uma diferenciação

relativa na composição interna do grupo doméstico. Ao longo de sua existência, a família

atravessa diferentes ciclos demográficos que determinam tanto a oferta de trabalho quanto o

nível de consumo. Há uma história (econômica) da família, em que o apogeu de sua capacidade

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 18: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

68

produtiva é alcançado quando esta consegue um equilíbrio entre os membros trabalhadores e

consumidores. Conclui-se, assim, que:

Cada familia, entonces, segun su edad, constitui en sus diferentes fases un

aparato de trabajo completamente distinto de acuerdo com su fuerza de trabajo,

la intensidad de la demanda de sus necessidades, la relación consumidor-

trabahador, y la possibilidad de aplicar los princípios de la cooperacion compleja

(CHAYANOV, 1974, p. 55-6).

Em síntese, segundo sua teoria a Unidade Econômica Camponesa (UEC), com plena

capacidade de se autodeterminar no processo produtivo, funcionaria com base em quatro

aspectos gerais: a) Ser ao mesmo tempo uma unidade de produtores e de consumidores;b) Ter a

capacidade de estabelecer os objetivos e as estratégias para o equilíbrio entre consumo e

penalidade do trabalho, ou seja, buscando atingir o grau ótimo de exploração do trabalho; c) As

UECs não são historicamente homogêneas porque, no seu interior, ocorre uma permanente

diferenciação demográfica (da infância à velhice, passando pela juventude e vida adulta), assim,

a evolução econômica da família é dada pelo avanço do ciclo etário; d) A família sempre realiza

um cálculo para decidir entre intensificar a exploração do trabalho ou introduzir mudanças

tecnológicas, ou ainda procurar trabalho fora da UEC.

Percebe-se que o eixo central de sua abordagem consiste na afirmação de que essa

unidade econômica – a família camponesa – exerce a gestão de sua unidade produtiva, pautando

sua orientação por princípios provenientes de seu funcionamento interno, buscando equilibrar a

capacidade de trabalho da família com suas necessidades de consumo. Assim, o trabalho

familiar se opõe ao trabalho assalariado. Segundo Chayanov (1974, 1981), essa forma de

trabalho caracterizado pelo emprego da mão-de-obra familiar confere-lhe uma especificidade,

sendo um dos fatores centrais que a diferem das unidades de produção capitalista.

Decorrente desta posição, Chayanov (1974) constata que o preço da terra não é, sob

estas condições, equivalente à capitalização da renda, visto que esta não existe, mas ao trabalho

necessário para satisfazer as necessidades da família. Ou seja, a terra não é vista como um ativo

econômico do qual se extrai uma renda, mas é uma terra de trabalho do qual se produz um

sustento, sendo por este balizado seu valor. A segunda conclusão é a de que o chamado modo de

produção camponês, quando integrado a uma formação capitalista dominante, perde seu

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 19: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

69

conteúdo de autonomia. O autor constata, então, que a capacidade de resistência da economia

familiar camponesa decore da aceitação de baixa remuneração de seu trabalho que faz a

agricultura capitalista perder todo o seu poder de concorrência.

Quais as implicações destas constatações? O economista egípcio Samir Amin sugere que

a redução da remuneração do trabalho realizado nestas condições é tal que: “1) a renda do solo

(renda imputada à propriedade) é anulada; 2) a remuneração do trabalho – a que se reduz o

preço dos produtos – equipare-se ao valor da força de trabalho proletária” (AMIN, 1977, p. 29).

Entende-se que a subsunção real dos agricultores ao capital possibilita aos capitalistas

apropriarem-se do valor produzido pelo trabalho familiar sem necessitar repassá-lo ao

proprietário fundiário na forma de renda da terra. O trabalho familiar na agricultura permite,

deste modo, que uma parte maior do valor seja apropriada pelo empresário capitalista

desfazendo a necessidade do latifundiário. Uma nova aliança de classe se produz entre

capitalista e proprietário minifundiário. Os produtores familiares (produtores simples de

mercadorias) continuam proprietários formais de seus meios de produção, mas, convertem-se em

trabalhadores para a agroindústria, produtores de valores de troca (produtos e serviços) ao custo

da sua reprodução de simples. Como resultado, a alteridade camponesa apontada por Chayanov

vai sendo solapada pelas condições estruturais e estruturantes das relações plenamente

mercantis típicas do capitalismo.

Sobre este último aspecto, Henri Mendras (1978) contribui para o entendimento dos

efeitos sociológicos da relação entre capitalismo e agricultura. Ele reelaborou o termo

sociedades camponesas formulado originalmente no âmbito do funcionalismo para aplicá-lo em

termos de tipos ideais à experiência francesa. Segundo este autor, as sociedades camponesas

podem ser identificadas pela presença de cinco características: a) A autonomia relativa das

coletividades camponesas frente a uma sociedade envolvente que as domina, mas tolera as suas

originalidades; b) A importância estrutural do grupo doméstico, organização da vida econômica e

da vida social da coletividade; c) Um sistema econômico de autarquia relativa, que não distingue

consumo e produção e que tem relações com a economia envolvente; d) Uma coletividade local

caracterizada por relações internas de interconhecimento e de relações débeis com as

coletividades circunvizinhas; e) A função decisiva do papel de mediação dos notáveis entre

coletividades camponesas e sociedades envolventes (MENDRAS, 1978, p. 14-5).

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 20: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

70

Percebe-se que os princípios que estruturavam as sociedades camponesas eram a

racionalidade econômica incompleta e os vínculos sociais dados pela tradição e pelas relações

personificadas. Neste caso, a vida em comum implicava relações personificadas que operavam

com base na reciprocidade, o direito à subsistência e à reciprocidade aparecia como princípios

morais que norteavam a “vida da aldeia”. A reciprocidade era um dos princípios estruturadores

da vida social e material das formações econômicas anteriores ao capitalismo. Assim, a

especificidade do campesinato residiria na existência de um código de conduta partilhado

comunitariamente até por setores sociais antagônicos, que funcionaria como princípio

estruturador da vida social.

Mendras constatou que este padrão de relacionamento social estaria em plena

dissolução. Segundo ele, as antigas sociedades camponesas estariam em desaparecimento

frente à expansão das relações econômicas capitalistas. Conforme suas palavras: “o ‘camponês’

transforma-se em agricultor, produtor agrícola que é ao mesmo tempo, ‘empreiteiro’ e

‘trabalhador’, proprietário de seus meios de produção, mas que não utiliza – ou só em pequena

escala – mão-de-obra assalariada” (MENDRAS, 1978, p. 13). Neste caso, a produção agrícola

comandada pelo mercado realiza-se em empresas familiares onde já não mais existe o

autoconsumo, e a produção é inteiramente comercializada. Este autor apontava o fim do

campesinato no território francês e sua substituição pelo agricultor moderno, visto que: “[...] o

camponês não saberá sobreviver ao desaparecimento da coletividade aldeã e da autocracia

familiar” (MENDRAS, 1978, p. 15).

Estas teorias contribuíram para a compreensão atual sobre a agricultura familiar,

descrevendo as dinâmicas internas das unidades familiares, ou mostrando a dissolução das

relações não-mercantis em comunidades de agricultores. Deste modo, o campesinato pode ser

entendido como uma forma particular da agricultura familiar, mas os agricultores familiares já

não podem mais ser caracterizados exclusivamente como camponeses. Isto porque ambas as

categorias compartilham o caráter familiar das relações de trabalho que se fundamenta nos

princípios da reciprocidade interna à família e não por relações formalmente mercantilizadas.

O processo de expansão capitalista visto na primeira parte deste ensaio impôs profundas

mudanças à lógica tradicional camponesa. A autonomia perante o mercado, que era a base

objetiva da alteridade camponesa, hoje persiste apenas como expressão de precariedade social e

inadequação frente ao mercado de produtos agrícolas. O modo de produção camponês e a

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 21: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

71

racionalidade típica de atores – parcialmente inseridos nas trocas mercantis – sucumbem frente

à dinâmica da acumulação do capital. O capitalismo como modo de produção dominante impõe

sua racionalidade mercantil como racionalidade dominante. O que se realiza, principalmente,

pela subsunção dos agricultores ao complexo agroindustrial resultando na imposição de novos

padrões tecnológicos; consequentemente na crescente dependência destes em relação ao

sistema financeiro. Com efeito, a noção de agricultura familiar visa a enfatizar as mudanças que

ocorrem com o desenvolvimento do capitalismo na agricultura.

Ricardo Abramovay (1998) sustenta que integração da agricultura de base familiar ao

mercado capitalista implicou mudanças na vida social, na racionalidade econômica e nos

processos produtivos que caracterizavam o campesinato. Segundo demonstrou este autor, uma

agricultura familiar altamente integrada no mercado, capaz de incorporar os avanços técnicos e

a responder às políticas governamentais, não pode ser pensada como camponesa. Neste sentido,

menciona que:

As sociedades camponesas são incompatíveis com o ambiente econômico onde

imperam relações claramente mercantis. Tão logo os mecanismos de preços

adquiram função de arbitrar as decisões referentes à produção, de funcionar

como princípio alocativo do trabalho social, a reciprocidade e a personalização

dos laços sociais perderão inteiramente o lugar, levando consigo o próprio caráter

camponês da organização social (ABRAMOVAY, R. 1998, p. 117).

Segundo esta proposta, no capitalismo o trabalho agrícola realizado com base em

relações familiares e não-salariais denomina-se agricultura familiar. Ainda conforme Ricardo

Abramovay (1998), nas circunstâncias de um mercado capitalista plenamente desenvolvido, é

mais adequado pensar as formas de configuração e reprodução da agricultura familiar,

correspondendo a situações em que a propriedade dos meios de produção e a organização do

processo de trabalho encontram-se assentadas em bases de relações familiares. O autor destaca

que no capitalismo “não há atividade econômica em que o trabalho e a gestão se estruturam tão

fortemente em torno de vínculos de parentesco e onde a participação de mão-de-obra não-

contratada seja tão importante” (ABRAMOVAY, R. 1998, p. 209) como na agricultura familiar.

Estas características fazem da agricultura familiar um setor único na economia.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 22: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

72

Entende-se que os agricultores familiares contemporâneos são agentes dos processos de

transformação pelos quais têm passado a agricultura e os espaços sociais agrários. Além disso,

esta categoria social vem transformando sua própria existência ao longo da história, adaptando-

se ao modo de produção dominante e buscando, ao mesmo tempo, preservar o caráter familiar do

processo de trabalho. Tal compreensão torna relevante considerar os elementos endógenos no

funcionamento destas unidades produtivas. Este aspecto também está presente na definição

esboçada por Ricardo Abramovay (1997):

A agricultura familiar é aquela em que a gestão, a propriedade e a maior parte do

trabalho vêm de indivíduos que mantém entre si laços de sangue ou casamento.

Que esta definição não seja unânime e muitas vezes tão pouco operacional é

perfeitamente compreensível, já que os diferentes setores sociais e suas

representações constroem categorias científicas que servirão a certas

finalidades práticas: a definição de agricultura familiar, para fins de atribuição

de crédito, pode não ser exatamente a mesma daquela estabelecida com

finalidades de quantificação estatística em um estudo acadêmico. O importante

é que estes três atributos básicos (gestão, propriedade e trabalho familiares)

estão presentes em todas elas (ABRAMOVAY, R. 1997, p. 3).

Em síntese, as características centrais da agricultura familiar residem no fato de que a

gestão do trabalho e da propriedade dos meios de produção – mesmo que não necessariamente

da terra – encontram-se sob a responsabilidade da família, entendida como grupo doméstico de

trabalho e de consumo, que realiza a reprodução geracional do processo de trabalho e a

transmissão do patrimônio familiar.

Diferentemente das unidades camponesas, a causalidade estrutural da agricultura

familiar deve-se à expansão do capitalismo na agricultura. Neste sentido, é preciso considerar as

diferenças existentes entre os agricultores familiares, que podem envolver desde empresas

familiares altamente capitalizadas, que incorporam inovações tecnológicas e de produtividade

elevada; estabelecimentos com baixo rendimento produtivo e financeiro, mesmo estando

altamente integrados ao mercado através de sistemas agroindustriais; e outros com

características próximas do modelo camponês voltado para a produção de subsistência.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 23: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

73

A intensificação das relações mercantis em escala global, globalização neoliberal, tem

como efeitos sobre a agricultura familiar uma maior dependência destes aos mercados e, em

decorrência, disto uma maior diferenciação de classes e novas dificuldades para a sua

reprodução social em escala ampliada, isto é, dificultando a reprodução geracional da

agricultura familiar.

Apesar do volume e da intensidade das mudanças que marcam as distinções entre

camponeses e agricultores familiares, este processo conservou o caráter fundamental da

agricultura familiar como uma unidade de produção e de consumo parental, ou seja, manteve-se

o caráter familiar do trabalho agrícola.

5. Considerações Finais

O debate proposto permite demonstrar que o desenvolvimento rural ocorrido ao longo do

século XX foi edificado sob a égide do grande capital monopolista. Com isto o desenvolvimento

intensificou o processo de mercantilização das relações de produção na agricultura e a tendência

de concentração do capital e do meio de produção. Neste contexto, a alteridade relativa

experimentada pelas sociedades camponesas antes do capitalismo perdeu completamente a sua

base objetiva, e se ainda existe é como resquício de uma cultura pré-capitalista. Contudo, as

forma de produção familiar persiste na atualidade, agora sob a forma de agricultura familiar.

Esta é entendida como uma produção simples de mercadoria inserida em relações capitalistas de

maneira subordinada aos impérios agroalimentares que dissemina um modelo de monocultura

agroexportadora.

Com efeito, presenciamos de um lado um processo de intensificação da diferenciação

social interna entre os agricultores familiares e de outro a ampliação do poder dos impérios

agroalimentares de determinação das dinâmicas e práticas dos agricultores familiares. Os

impérios agroalimentares impulsionam e reproduzem a agricultura capitalista se beneficiando

com ela. Os agricultores familiares intensificam sua dependência em relações aos mercados de

crédito, insumos e produção de commodities e com isto são cada vez mais restritas as suas

possibilidades de reprodução social. Com efeito, o desenvolvimento rural no modo de produção

capitalista produziu, simultaneamente, antagonismo e interdependências entre estas duas

formas de fazer agricultura. Os efeitos desta contradição tem sido a intensificação das crises

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 24: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

74

agrária, alimentar e ambiental. Estas figuram como partes constitutivas de uma mais geral e

multidimensional, a crise estrutural do modo de produção capitalista.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 25: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

75

Referências bibliográficas:

ABRAMOVAY, Ricardo. Paradigmas do capitalismo agrário em questão. Campinas:

Hucitec/Unicamp, 1998.

BERNSTEIN, Henry. Desenvolvimento e Subdesenvolvimento. In: OUTHWAITE, William;

BOTTOMORE, Tom. (Editores). Dicionário do Pensamento Social do século XX Rio de Janeiro: Jorge

Zahar Ed.,1996, p.197-201.

BERNSTEIN, Henry. A dinâmica de classe do desenvolvimento agrário na era da globalização; In

Sociologia, Nº27. Porto Alegre, maio/agosto 2011. p. 52 81.

BOISIER, S. El desarrolo territorial a partir de la construccion de capital sinergético. Revista

Redes, Santa Cruz do Sul, v.4, n. 01, p.61-78, jan.-abr. 1999. In: SCHNEIDER, Sergio. A

abordagem territorial do desenvolvimento rural e suas articulações externas. Sociologias. jan.-

jun. 2004, no.11.

CAMPANHOLA, Clayton; GRAZIANO DA SILVA, José.O Novo Rural Brasileiro: uma análise nacional

e regional. Jaguariúna: EMBRAPA, 2000.

CHAYANOV, Alexander V. La organización de la unidade económica campesina. Buenos Aires:

Nueva Visón, 1974.

CHAYANOV, Alexander. Sobre a teoria dos sistemas econômicos não capitalistas. In: SILVA, J

Graziano da. e STOLCKE, Verena (orgs). A questão agrária. São Paulo: Brasiliense, 1981.

DIAS, Guilherme S.; AMARAL, Cicely Amaral. Mudanças estruturais na agricultura brasileira,

1980-1998In: BAUMANN, Renato (org).Brasil: uma década em transição. Rio de Janeiro: Editora

Campus (co-edição com a CEPAL), 2000.

DOMINGUES, José Maurício. Reflexividade, individualismo e modernidade. Rev. Bras. Ciências

Sociais, jun. 2002, vol.17, no. 49, p.55-70

DURKHEIM, Émile. A Divisão do Trabalho Social. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril S. A., 1978.

ECHEVERRIA, R. G. (Ed.). Desarrollo de las economías rurales. Washington: Banco

Interamericano de Desarrollo, 2001. In: SCHNEIDER, Sergio. A abordagem territorial do

desenvolvimento rural e suas articulações externas.Sociologias.jan.-jun. 2004, no.1

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 26: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

76

GOODMAN, D., WATTS, M. (Eds.).Globalizing Food: agrarian questions and global

restructuring.London: Routledge, 1997. In: SCHNEIDER, Sergio. A abordagem territorial do

desenvolvimento rural e suas articulações externas. Sociologias. . jan.-jun. 2004, n.

GUIMARÂES, Alberto Passos. A Crise Agrária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

GRAZIANO DA SILVA, José. Sobre a delimitação do rural e do urbano no Brasil. Campinas: Anais

do Encontro da Sober, 1996 (a).

GRAZIANO DA SILVA, José. A nova dinâmica da agricultura brasileira. Campinas:

UNICAMP/Instituto de Economia, 1996 (b).

HARVEY, David. Condição pós-moderna. 4º ed. São Paulo: Edições Loyola, 1994.

LASTRES, HELENA MARIA MARTINS, ALBAGLI, SARITA, LEMOS, CRISTINA et al. Desafios e

oportunidades da era do conhecimento. São Paulo Perspectiva. [online]. jul. /set. 2002, vol.16,

no. 3 [citado 04 Janeiro 2006], p.60-66. Disponível na World Wide

Web:<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010288392002000300009&l

ng=pt&nrm=iso>. ISSN 0102-8839

LUTZENBERGER, José A. O absurdo da agricultura. Estudos Avançados, set./dez. 2001, vol.15,

no.43, p.61-74.

MARTINE, George. A trajetória da modernização agrícola: a quem beneficia? In: Revista Lua Nova

Nº23. São Paulo, 1991. p. 07-37.

MARX, Karl El Capital: Crítica de la Economia Política. México: Fundo de Cultura Económica,

1973. Tomo I.

MARX, Karl. Formações econômicas pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.

MARX, Karl. O Capital. Capítulo IV. São Paulo: Centauro, 2004.

MAUSS, Marcel. Ensaios de Sociologia. São Paulo: ed. Perspectiva, 2001.

MENDRAS, Henry. As sociedades camponesas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.

NAVARRO, Zander. Desenvolvimento rural no Brasil: os limites do passado e os caminhos do

futuro. Estudos. Avançados, set. /dez. 2001, vol.15, no. 43, p. 83-100.

OFFE, Claus. Capitalismo Desorganizado. 2º ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 27: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

77

PARSONS, Talcott. Estrutura da Ação Social. São Paulo. Vozes, 2010.

PIÑEIRO, Diego. Sustentabilidad y Democratización de las Sociedades Rurales de América

Latina.Sociologias, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em

Sociologia, n.10, 2003. p. 26-33.

PLOEG, J.D. van der & RENTING, H. Impact and potential: a comparative review of European rural

development practices. Sociologia Ruralis, Netherlands, v. 40, n. 4, p. 529-43, 2000. In:

SCHNEIDER, Sergio. A abordagem territorial do desenvolvimento rural e suas articulações

externas.Sociologias , jan.-jun. 2004, no.11.

PLOEG. Jan Douwe Van Der. Camponeses e império alimentares: lutas por autonomia e

sustentabilidade na era da globalização. Porto Alegre. EdUFRGS, 2008.

REARDON, T.; BERDEGUÉ, J.A. La rápida expansión de los supermercados en América Latina:

desafíos y oportunidades para el desarrollo. Banco Interamericano de Desarrollo – BID

(Departamento de Desarrollo Sostenible, Unidade de Desarrollo Rural), Washington, junio,

2003. In: SCHNEIDER, Sergio. A abordagem territorial do desenvolvimento rural e suas

articulações externas. Sociologias [online], n. 11, jan.-jun. 2004.

SCHNEIDER. Sergio. A Pluriatividade na Agricultura Familiar. Porto Alegre Ed. UFRGS, 2003.

SCHNEIDER, Sérgio. A abordagem territorial do desenvolvimento rural e suas articulações

externas. Sociologias. [online]. jan./jun. 2004, no.11 [acesso em 14 de novembro de 2005],

p.88-125. Disponível na World Wide Web:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151745222004000100006&lng=p

t&nrm=iso>. ISSN 1517-4522.

TAYLOR, Charles. Sources of the self. Cambrid: Cambridge Universit Press,1989.

VEIGA, José Eli da.O Brasil rural ainda não encontrou seu eixo de desenvolvimento. Estudos.

Avançados, set./dez. 2001, vol.15, no.43, p.101-119.

VIDAL, José W. Bautista. De estado servil a nação soberana: civilização solidária dos tropico.

Petrópolis: Ed. UNB, Ed. Vozes, 1988.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78

Page 28: Dossiê: Teoria Social e Desenvolvimento DESENVOLVIMENTO … · Discute os impactos do neoliberalismo no meio rural e do desenvolvimento capitalista sobre as formas familiares de

78

WALLICH, Henry C. Desenvolvimento “Periférico”. InPEREIRA, Luiz, (org). Subdesenvolvimento e

Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1969.

WEBER, Max. Ensaio de Economia. Rio de Janeiro, Zahar editores, 1979.

WEBER, Max A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Martin Claret, 2004.

WEISHEIMER, Nilson. Marx: categorias sociológicas fundamentais. In: Universidade Luterana do

Brasil (org.). Sociologia Clássica. Curitiba: IBEPX, 2008. p. 141-55.

Olhares Sociais (02) janeiro-junho de 2013: 51-78