dossiê repúblicas 16 jan 2014

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diário as beiras | 16-01-2014 4 | essencial | Solares e Repúblicas de Coimbra em risco Repúblicas não podem ser Por que saíram as Repúblicas da “órbita” dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra? O que acontece é que as Repúblicas eram uma espé- cie de apêndice dos SASUC e viviam como que pendu- radas num ou noutro apoio. Mas viviam tranquilas as- sim. De repente, surgiu a nova lei das rendas e as casas vieram ter connos- co, pedindo que a Reitoria se pronunciasse com ur- gência para fazer pressão, nomeadamente junto da Assembleia da República e dos deputados. Aí, o senhor reitor acedeu e coube-me colaborar na elaboração de um parecer nesse sentido. Foi uma questão pacífica, no seio da Reitoria? Sim. Mas, desde o início, percebemos que os tempos são outros e que seria muito difícil manter as Repúbli- cas como exceção total. Por outro lado, numa altura em que a crise e as dificulda- des económicas são trans- versais a toda a sociedade, também se torna um pouco dif ícil manter esta situação de exceção. Para mim, aliás, a questão da equidade no tratamento, perante todos os estudantes, é fundamen- tal. Eu sei, todos sabemos, quantos estudantes têm de pagar rendas altíssimas, quantas famílias vivem com dificuldades para manter os filhos na universidade. Por isso, eu não consigo e não farei nunca nada que legitime essa exceção. Exceção que é quase um pri- vilégio... Em certa medida sim. Aliás, foi isso mesmo que transmiti, sempre, às Repú- blicas. No entanto, quando se percebeu que era inevi- tável a alteração legislativa e que, a curto prazo, os se- nhorios poderiam mesmo alterar as rendas, começá- mos a ser contactados no sentido de encontrar me- canismos de viabilizar as rendas atuais, em sintonia com a câmara. E devo dizer que nos foram feitas as pro- postas mais insólitas, como, por exemplo, a aquisição de um dos imóveis dispo- nibilizando a República um quarto em permanência para alguém que quisesse ter uma experiência de viver numa República. Em suma, um privilégio. As casas invocam o estatuto histórico e cultural que anga- riaram ao longo de décadas... Sim, e também o papel im- portante que tiveram no re- conhecimento da Alta Uni- versitária como Património da Humanidade (embora isso não seja consensual, entre eles...). Mas não deixa de ser um privilégio, pelo menos a esse nível, em que a Universidade apenas fa- ria a aquisição dos imóveis mas, ao mesmo tempo, não teria o controlo sobre quem pode e não pode ocupar. Não obstante, a Reitoria tem estado ao lado das Repúbli- cas em iniciativas concretas, nomeadamente, junto da Câ- mara de Coimbra... É verdade. Eu própria acompanhei-os e participei com eles em diversas reuni- ões com a autarquia, nome- adamente, com o vereador da Habitação, procurando articular com as políticas da câmara municipal para esse setor. Isto depois de eu ter elaborado um documento em que a Associação Acadé- mica reconhece a existên- cia das Repúblicas, que não existia e que estava previsto na Lei. O apoio disponibilizado é de que natureza? Disponibilizámos apoio jurídico e também facilitá- mos o contacto com a en- tidade bancária com que trabalhamos, no sentido de terem um balcão que os apoiasse. Para além disso, disponibilizámos de ime- diato um técnico da uni- versidade (um engenhei- ro civil), que começou por fazer uma avaliação dos imóveis, no plano f ísico. Quem têm sido os seus in- terlocutores? Pois, isso tem sido outra dificuldade. Eu fui fazendo a identificação dos proble- mas à medida em que as casas vinham ter comigo. Pedimos a cada uma que preparasse um dossiê que descrevesse o histórico de cada República, incluin- do investimentos feitos e outras benfeitorias. Isto para que, quando se fizer a avaliação dos imóveis, a Reitoria possa ajudar na negociação com os senho- rios. Já conseguiu falar com todas as Repúblicas? Não. O que tive, foi uma reunião, no final do ano passado, com o Conselho de Repúblicas (CR), por causa do apoio dos SASUC. Eles tinham manifestado o receio de perderem esse apoio, mas o reitor assegu- rou-lhes que se mantinha, e na mesma base, que é de cerca de 50 mil euros anu- ais. São, sobretudo, víveres. Como é que é distribuído esse apoio? A base é a informação do CR, que nos diz quantos elementos tem cada casa e, depois, a distribuição é “por cabeça”, digamos assim. Ou seja, eles dei- xarão de se alimentar nas cantinas e receberão o cor- respondente ao valor das refeições. Como controla a Universida- de a informação do CR? Pois, essa foi uma ques- tão que discuti com eles... E não posso dizer que tenha um número exato. Aliás, a mesma coisa sucede com o Estádio Universitário, em que não consigo ter um número exato de estudan- tes universitários inscritos No último ano, muitas coisas mudaram na vida das Repúblicas de Coimbra. O “golpe” maior, porém, aconteceu co da Universidade. Também por isso, o reitor decidiu “acrescentar” as relações com estas casas comunitárias às inc Vice-reitora Helena Freitas assume que a autonomia das Repúblicas é o que as Textos | Paulo Marques Arquivo-Luís Carregã Arquivo-Luís Carregã Arquivo-Luís Carregã Arquivo-Carlos Jorge Monteiro Arquivo-Bernardo Parra

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Dossiê Diário as Beiras - Trabalho sobre as Repúblicas de Estudantes da Universidade de Coimbra. Edição de 16 janeiro 2014. Textos de Paulo Marques.

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Page 1: Dossiê repúblicas 16 jan 2014

diário as beiras | 16-01-2014 4 | essencial | Solares e Repúblicas de Coimbra em risco

Repúblicas não podem ser exceção nos apoios da UC

Por que saíram as Repúblicas da “órbita” dos Serviços de Ação Social da Universidade de Coimbra?

O que acontece é que as Repúblicas eram uma espé-cie de apêndice dos SASUC e viviam como que pendu-radas num ou noutro apoio. Mas viviam tranquilas as-sim. De repente, surgiu a nova lei das rendas e as casas vieram ter connos-co, pedindo que a Reitoria se pronunciasse com ur-gência para fazer pressão, nomeadamente junto da Assembleia da República e dos deputados. Aí, o senhor reitor acedeu e coube-me colaborar na elaboração de um parecer nesse sentido.

Foi uma questão pacífica, no seio da Reitoria?

Sim. Mas, desde o início, percebemos que os tempos são outros e que seria muito dif ícil manter as Repúbli-cas como exceção total. Por outro lado, numa altura em que a crise e as dificulda-des económicas são trans-versais a toda a sociedade, também se torna um pouco difícil manter esta situação de exceção. Para mim, aliás, a questão da equidade no tratamento, perante todos os estudantes, é fundamen-tal. Eu sei, todos sabemos, quantos estudantes têm de pagar rendas altíssimas, quantas famílias vivem com dificuldades para manter os filhos na universidade. Por isso, eu não consigo e não farei nunca nada que legitime essa exceção.

Exceção que é quase um pri-vilégio...

Em certa medida sim. Aliás, foi isso mesmo que transmiti, sempre, às Repú-blicas. No entanto, quando se percebeu que era inevi-tável a alteração legislativa e que, a curto prazo, os se-nhorios poderiam mesmo alterar as rendas, começá-mos a ser contactados no sentido de encontrar me-canismos de viabilizar as rendas atuais, em sintonia com a câmara. E devo dizer que nos foram feitas as pro-postas mais insólitas, como,

por exemplo, a aquisição de um dos imóveis dispo-nibilizando a República um quarto em permanência para alguém que quisesse ter uma experiência de viver numa República. Em suma, um privilégio.

As casas invocam o estatuto histórico e cultural que anga-riaram ao longo de décadas...

Sim, e também o papel im-portante que tiveram no re-conhecimento da Alta Uni-versitária como Património da Humanidade (embora isso não seja consensual, entre eles...). Mas não deixa de ser um privilégio, pelo menos a esse nível, em que a Universidade apenas fa-ria a aquisição dos imóveis mas, ao mesmo tempo, não teria o controlo sobre quem pode e não pode ocupar.

Não obstante, a Reitoria tem estado ao lado das Repúbli-cas em iniciativas concretas, nomeadamente, junto da Câ-mara de Coimbra...

É verdade. Eu própria acompanhei-os e participei com eles em diversas reuni-ões com a autarquia, nome-adamente, com o vereador da Habitação, procurando articular com as políticas da câmara municipal para esse setor. Isto depois de eu ter elaborado um documento em que a Associação Acadé-mica reconhece a existên-cia das Repúblicas, que não existia e que estava previsto na Lei.

O apoio disponibilizado é de que natureza?

Disponibilizámos apoio jurídico e também facilitá-mos o contacto com a en-tidade bancária com que trabalhamos, no sentido de terem um balcão que os apoiasse. Para além disso, disponibilizámos de ime-diato um técnico da uni-versidade (um engenhei-ro civil), que começou por fazer uma avaliação dos imóveis, no plano f ísico.

Quem têm sido os seus in-terlocutores?

Pois, isso tem sido outra dificuldade. Eu fui fazendo

a identificação dos proble-mas à medida em que as casas vinham ter comigo. Pedimos a cada uma que preparasse um dossiê que descrevesse o histórico de cada República, incluin-do investimentos feitos e outras benfeitorias. Isto para que, quando se fizer a avaliação dos imóveis, a Reitoria possa ajudar na negociação com os senho-rios.

Já conseguiu falar com todas as Repúblicas?

Não. O que tive, foi uma reunião, no final do ano passado, com o Conselho de Repúblicas (CR), por causa do apoio dos SASUC. Eles tinham manifestado o receio de perderem esse apoio, mas o reitor assegu-rou-lhes que se mantinha, e na mesma base, que é de

cerca de 50 mil euros anu-ais. São, sobretudo, víveres.

Como é que é distribuído esse apoio?

A base é a informação do CR, que nos diz quantos elementos tem cada casa e, depois, a distribuição é “por cabeça”, digamos assim. Ou seja, eles dei-xarão de se alimentar nas cantinas e receberão o cor-respondente ao valor das refeições.

Como controla a Universida-de a informação do CR?

Pois, essa foi uma ques-tão que discuti com eles... E não posso dizer que tenha um número exato. Aliás, a mesma coisa sucede com o Estádio Universitário, em que não consigo ter um número exato de estudan-tes universitários inscritos

No último ano, muitas coisas mudaram na vida das Repúblicas de Coimbra. O “golpe” maior, porém, aconteceu com a entrada em vigor da nova Lei das Rendas. Algumas casas – nem todas... - não hesitaram em recorrer à ajuda da Universidade. Também por isso, o reitor decidiu “acrescentar” as relações com estas casas comunitárias às incumbências da vice-reitora Helena Freitas

Vice-reitora Helena Freitas assume que a autonomia das Repúblicas é o que as torna relevantes no contexto universitário

Textos | Paulo MarquesArquivo-Luís Carregã

Arquivo-Luís Carregã

Arquivo-Luís Carregã

Arquivo-Carlos Jorge Monteiro

Arquivo-Bernardo Parra

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nas secções desportivas e que pratiquem desporto no estádio.

Como pensa resolver essa questão?

A única solução, para mim, é dispor de uma pla-taforma informática que nos permita ter, pelo me-nos, o controlo. Já o esta-mos a preparar para o des-porto universitário. Esta é, aliás, uma das melhores formas de a universidade ajudar a Associação Acadé-mica, não tenho quaisquer dúvidas.

Que reação teve, por parte das Repúblicas?

Houve abertura para um procedimento idêntico e pode ter a certeza de que também vamos fazê-lo. Para já, o que temos é ape-nas a informação verbal

mas eles já sabem que o va-lor do apoio da Universida-de vai passar a depender do controlo, informatizado, do número de estudantes universitários que efetiva-mente vivem em cada Re-pública.

Admite que o diálogo, via CR, pelo menos no formato que tem vindo a assumir, não tem sentido?

Eu penso que, no limite, vamos mesmo ter de ultra-passar esta ideia de diálo-go coletivo e consensual, através do CR, e passar a assumir um diálogo indi-vidual. Aliás, no caso da associação RUAS, que tem como incumbência zelar pela área de intervenção da sua responsabilidade dire-ta, esse diálogo caso a caso parece-me absolutamente incontornável.

Do contacto que já teve, sente que há Repúblicas e Repúblicas...

Há, de facto, algumas que terão uma organização modelar e que até são um exemplo do que pode ser uma vivência universitária partilhada e diferente. E há outras...

Por exemplo?Posso dizer-lhe que, com

uma em particular, tive imensas dificuldades, num processo que se arrastou, praticamente desde que entrei, que foi o do “Ninho dos Matulões”, que teve um período em que pra-ticamente só esteve ocu-pado por uma pessoa que não pagava condomínio – obrigando a Universida-de, depois, a ter de pagar, quando já estava em con-tencioso.

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Repúblicas não podem ser exceção nos apoios da UCNo último ano, muitas coisas mudaram na vida das Repúblicas de Coimbra. O “golpe” maior, porém, aconteceu com a entrada em vigor da nova Lei das Rendas. Algumas casas – nem todas... - não hesitaram em recorrer à ajuda da Universidade. Também por isso, o reitor decidiu “acrescentar” as relações com estas casas comunitárias às incumbências da vice-reitora Helena Freitas

REm primeiríssimo lugar, eu tenho um grande respeito pela história das Repúblicas e pela sua autonomia, que é no fundo a lógica que as torna relevantes no contexto universitário

RÉ uma lógica de habitação, de comunidade, que é espontânea e que resulta da própria comunidade estudantil

RNo entanto, creio que é importante é olhar para as Repúblicas, hoje, e perceber se este é verdadeiramente outro tempo...

RHá a ideia de uma certa cristalização, mas eu acho que não pode haver uma abordagem top-down

RDa mesma forma que esta lógica de funcionamento, de agregação, de comunhão, de partilha da própria vida universitária surgiu, no meio estudantil, eu diria, na forma ideal, que também agora deveria partir daí a reflexão sobre as Repúblicas, sobre o seu tempo e o seu modo

RCompreenda-se, pois, que me é difícil e, com toda a franqueza, nem sei se me cabe a mim suscitar a questão

Vice-reitora Helena Freitas assume que a autonomia das Repúblicas é o que as torna relevantes no contexto universitário

discurso direto

DR-Anthropus

DB-Luís Carregã

DR

DR-Sdistintos

DR

DR

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diário as beiras | 16-01-2014 6 | essencial | Solares e Repúblicas de Coimbra em risco

Lei das rendas é ameaça para muitas casas a cair de podre111 Ninguém sabe ao

certo quantos residentes têm as Repúblicas – cerca de 250 e outros tantos co-mensais, admite um repú-blico. Quase todas vivem tempos dif íceis, quer pela dificuldade em “recrutar” residentes quer pela ofensi-va dos senhorios, respalda-dos na nova lei das rendas.

Este foi, como se sabe, um rude “golpe” na centenária história das Repúblicas – há décadas a viverem com rendas congeladas, na es-magadora maioria de va-lor irrisório. É certo que a intervenção de várias ins-tâncias (da Reitoria da Uni-versidade de Coimbra aos partidos e aos deputados jovens e eleitos por Coim-bra) conseguiu amenizar os efeitos. Facto, porém, é que, a partir de 2017, to-das as Repúblicas entrarão no regime geral aplicável a todos os imóveis.

Ao lado das Repúblicas, uma das reações mais enér-gicas foi, justamente, a da Associação Académica de Coimbra. O presidente cessante da direção-geral, Ricardo Morgado, fez ques-tão de liderar o processo de recolha de assinaturas para a entrega, na Assem-bleia da República, de uma petição com mais quatro mil assinaturas. O objetivo, reiterado por Ricardo Mor-gado, é ver “reconhecido o valor das repúblicas e so-lares para Coimbra e para Portugal”.

Cabe dizer que, depois do fim do regime especial, os senhorios passam a poder celebrar com as Repúblicas contratos de dois em dois anos. Ora, o receio de todos

os envolvidos – repúblicos e AAC – é que tal situação potencia o risco de despejo.

No presente, há já um caso de “sucesso” desta espécie de “espada de Dâmocles”: a 5 de Outubro, confron-tada com uma subida da renda de €12,50 para €764 – o teto máximo permitido pelo regime especial, que corresponde a 1/15 do valor matricial do edif ício – fe-chou no final de outubro.

Na altura, o Conselho de Repúblicas veio a público manifestar o receio de que outras possam ter o mes-mo desenlace. Cinco casos suscitam, aliás, preocupa-ções redobradas, sendo que os casos do Palácio da Loucura, na rua Antero de Quental (onde a renda foi

aumentada de €55 para €580), e do Spreit’-ó-Furo, à Ladeira do Seminário, pare-cem ser os mais “bicudos”.

Entretanto, com a emer-

gência gerada pela nova lei, quase passaram para segundo plano as carências que, de há muito, afligem as Repúblicas.

Em causa estão as condi-ções estruturais e de equi-pamentos das casas. Há problemas de humidades, há paredes a esboroar-se, há telhados a meter água, há instalações elétricas pre-cárias pondo em risco a se-gurança dos residentes, há esgotos em rotura iminente (e outros já a correr a céu aberto, dentro de casa).

São, todos, problemas a que quase só as próprias casas tiveram de acorrer. E, recorde-se, o último sub-sídio para obras atribuído pelo Estado data já do dis-tante ano de 2000.

Lei estabelece regime especial para Repúblicas

1 Até 2017, aumento da renda tem teto igual a 1/15 do valor matricial do imóvel

2 Numa casa, este regime implicou subida de 12,5 euros para 764 euros. A República fechou...

Repúblicas temem que, a partir de 2017, possam ser despejadas sem “apelo nem agravo”

O que representa para as Repúblicas a entrada em vigor da Lei das Rendas?

p&r

Jorge Moreira da SilvaMinistro do Ordenamento

Ricardo MorgadoPresidente da DG-AAC

Manuel MachadoPresidente da Câmara de Coimbra

João Gabriel SilvaReitor da Universidade de Coimbra

O Governo fez aquilo que lhe competia, integrando as Repúbli-cas de Coimbra enquanto institui-ções que deviam beneficiar de uma ponderação mais gradual, uma vez que mantêm os seus contratos de arrendamento por pelo menos mais sete anos, sendo que em pelo menos cinco anos a renda a pagar está limitada.

As Repúblicas são hoje patrimó-nio da Humanidade, classificação reconhecida em julho último pela UNESCO e, como casas de estudan-tes, têm que ter um valor que um estudante possa suportar. Não con-cordamos, por isso, com a opinião do Governo. É possível ir mais além

Embora não veja como se pode contornar a nova Lei do Arrenda-mento Urbano, que é para todos, vamos analisar caso a caso de modo a tentar encontrar alternativas. Admito como possível haver um acordo entre a Câmara Municipal de Coimbra e a Universidade de Coimbra para se proceder à aquisi-ção de alguns desses imóveis.

A classificação de Património da Humanidade, reconhecida pela UNESCO, confere um argumento muito forte para se encontrarem mecanismos adequados que per-mitam solucionar as questões colo-cadas pelas Repúblicas de Coimbra

Arquivo-Luís Carregã

Arquivo-Carlos Jorge MonteiroDR DR

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16-01-2014 | diário as beiras

111 16 Repúblicas in-tegram a área classificada pela UNESCO. Espalhadas um pouco pela cidade, há mais uma dezena. A histó-ria e a idiossincrasia con-fere-lhes um lugar à parte no património imaterial da cidade mais universitária do país.

Dentre as 26 casas iden-tificadas pelo Conselho de Repúblicas, apenas três funcionam em imóveis per-tencentes à Universidade de Coimbra – as vizinhas Baco e Marias, na Rua do Loureiro, e o Ninho dos Ma-tulões (que, do Bairro Sousa Pinto, foi transferida para Celas).

Desde a década de 1990 que uma República é pro-priedade da Câmara Mu-nicipal – os Kágados, à Sé Velha, que é a mais antiga em funcionamento.

Das restantes casas, duas delas constituem casos curiosos: o Bota Abaixo, há anos constituída em

associação, que é dona do imóvel e vive, mesmo, uma situação algo bizarra, uma vez que tem inquilinos; a República dos Galifões, que ardeu no verão de 1985, gerando um movimento com vista à compra do edi-

f ício, através da Associação República dos Galifões, A aquisição ocorreu dois anos depois e a reconstru-ção viria a concretizar-se em 1996.

No presente, há pelo menos duas casas – a Ay-

ó-Linda, no Bairro Sousa Pinto, e a Boa-Bay-Ela, na rua João Pinto Ribeiro – que parecem querer trilhar ca-minho similar, constituin-do-se como associação e negociando a compra dos imóveis.

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Proteção legal apenas foi conferida em 1982111 Os maiores desa-

fios das Repúblicas são al-terar a visão negativa das casas por parte dos “futri-cas”, albergar mais estu-dantes, fomentar convívios e repensar a relação com a Associação Académica. Desafios de hoje? Pois, po-dia perfeitamente ser, mas estes têm qualquer coisa como… 65 anos. Foi, jus-tamente, em 1948 que o Conselho de Repúblicas se reuniu para ultrapassar o acumular de todos aqueles problemas.

Curiosamente, os Solares e as Repúblicas apenas vi-riam a ter proteção legal com a Lei n.º 2/82, de 15 de janeiro. O diploma estabe-lece, logo no artigo 1.º, que as casas são “constituídas de harmonia com a praxe académica” e têm estatuto de associações sem perso-nalidade jurídica. Quanto à sua validação, a lei impõe que cabe ao reitor a sua existência, após consulta à AAC e ao CR, “se este se encontrar em funciona-mento”.

Há 26 casas identificadas mas apenas 16 são Património da Humanidade

Bota-Abaixo constitui-se como associação, adquiriu a casa e até tem inquilinos

Quando falamos de Repúblicas de estudantes de Coimbra falamos de uma forma de vida coletiva e também de comunidades de afetos, ou seja, de

um lado significativo de uma certa vida estudantil, abrigada, embora nem sempre, à sombra de uma Universidade sete vezes secular.

As Repúblicas constituem uma forma de alojamento dos estudantes que anualmente chegam à cidade do Mondego. Melhor: de alguns estudantes, uma vez que atualmente existem 20 e tal casas (oficializadas) e cada uma destas pode albergar de seis a doze estudantes. A estes acrescentam-se os comensais que partilham a mesa e os amigos da casa. Ou seja, os repúblicos das várias casas representam uma peque-na fatia do “estudantado” da mítica cidade dos estudantes. Mas estas comunidades fazem parte da galáxia de elementos da sociedade académica coimbrã, da construção da imagem da cidade, de um sem-número de elementos que, ao longo dos tempos, foram povoando e alimentando (porque repro-duzindo) imaginários.

Estas casas comunitárias ligam-se ao ambiente de irre-verência da vida académica de Coimbra. São espaços que assumem a identidade e a singularidade, mas também a diversidade e a mudança. São património herdado e patri-mónio a reinventar, com continuidades e descontinuidades. Constituem paisagens afetivas, património vivencial, imaterial, ao marcarem os trajetos pessoais de quem por lá passou. Re-presentam um património de pedaços de história do coletivo, um património de amizades que perduram tantas vezes pela vida, que o travo amargo do afastamento não parece destruir.

São lugares de memória. São, muitas vezes, uma espécie de escolas privadas da vida dos que de Coimbra levaram uma lição. Mais do que o lado festivo da vida (por vezes dionisía-co) e do que o abecedário da boémia, há um estilo convivial nas Repúblicas que permite falar de núcleos de convivência juvenil com elevada coesão grupal, onde os jovens vivem uma pluralidade de experiências assumidamente juvenis, desenraizados do espaço familiar, a experienciar um tempo de excepção permissiva – tempo de autonomia psicológica, de catarse, de aventura, de descoberta e de momentos iniciá-ticos, de autonomia.

Ainda hoje, nas Repúblicas de Coimbra, têm lugar relaciona-mentos de forte componente de convivência e partilha: expe-riências e objetivos com muito de comum, ativas afinidades, acordos estabelecidos (explícita e também implicitamente), sintonias de ordem diversa, ações lúdicas, rituais, linguagens, dificuldades, artes de invenção e práticas festivas. Em suma: esquemas de perceção de grande semelhança, que condu-zem à questão das aprendizagens, muitíssimo valorizada pelos atuais e também pelos antigos repúblicos.

A rememoração dos episódios das crises académicas (de 1962, de 1965, de 1969 ) pertence ao património intangível da quase totalidade das Repúblicas de Coimbra, até porque faz parte dos trajetos cognitivos de antigos elementos das casas, que reconhecem facilmente como essa participação e esse envolvimento os tornou cidadãos mais competentes. São essas representações que chegam aos atuais repúblicos, herdeiros de todo esse património simbólico, nos combates, na atuação, no mosaico de modos e estilos de vida, na carto-grafia cognitiva. Mesmo que os tempos sejam outros, várias décadas decorridas, parece haver, aqui e ali, “pedigree” histó-rico de uma cultura crítica em relação a verdades absolutas.Considero que ainda hoje a maioria das Repúblicas são “ilhas” privilegiadas, onde a reflexão e o debate são provocados...

Teresa CarreiroDocente e investigadora do CEIS20co-autora da obra “Um por cem - um olhar sobre as Repúblicas de Coimbra

De que falamos quando falamos de Repúblicas

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