dos tarimbeiros aos bacharéis de farda

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FABIANA MEHL SYLVESTRE DOS TARIMBEIROS AOS BACHARÉIS DE FARDA: MODERNIZAÇÃO, CORPORATIVISMO E CONFLITO NO BRASIL IMPERIAL (1860-1880). CURITIBA 2004

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FABIANA MEHL SYLVESTRE

DOS TARIMBEIROS AOS BACHARÉIS DE FARDA: MODERNIZAÇÃO, CORPORATIVISMO E CONFLITO NO BRASIL IMPERIAL

(1860-1880).

CURITIBA 2004

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FABIANA MEHL SYLVESTRE

DOS TARIMBEIROS AOS BACHARÉIS DE FARDA: MODERNIZAÇÃO, CORPORATIVISMO E CONFLITO NO BRASIL IMPERIAL

(1860-1880).

Monografia apresentada para a conclusão do Curso de História da Universidade Federal do Paraná – UFPR – sob a orientação do Profº Dr. Luiz Geraldo Silva.

CURITIBA DEZEMBRO/2004.

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Sumário

Introdução

Definição do objeto de pesquisa

Forças Armadas no Império: uma breve revisão historiográfica

A perspectiva organizacional

Capítulo I: Uma modernização aristocrática e nacionalista

A geração dos tarimbeiros

Origem social, influências filosóficas e engajamento político

A guerra e a criação de um projeto modernizador para as Forças Armadas

Capítulo II: A consecução do projeto modernizador das Forças Armadas

Principais argumentos e estratégias adotadas pelos oficiais tarimbeiros

A busca pela dignificação do profissional das armas

Implicações da política partidária

Capítulo III: Esgotamento do projeto e conflito de gerações no interior das Forças

Armadas

Tarimbeiros e subalternos

O distanciamento entre a Marinha e o Exército

Isolamento e decadência do grupo dos tarimbeiros

Conclusão

Fontes e Referências Bibliográficas

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Introdução

Definição do objeto de pesquisa

O presente trabalho de pesquisa teve como objetivo central a rediscussão do papel

dos militares tarimbeiros1 no processo de modernização das Forças Armadas do Brasil,

durante parte do Segundo Reinado. Muitos fatores nos levaram a optar pela análise dessa

temática, mas o principal deles foi o fato de que, apesar da ampla revisão que tem sido

feita nas últimas décadas em torno da Guerra do Paraguai e de outros temas correlatos, o

nosso pensamento historiográfico ainda encara as lideranças militares dos anos 1850-1870

como um grupo reacionário e, dessa forma, como um dos principais responsáveis pelo

atraso no processo de profissionalização da corporação militar na época do Império. Uma

das principais idéias defendidas por esta historiografia é a de que, como os oficiais

tarimbeiros advinham de setores ligados à elite imperial, usufruíam muitos privilégios

dentro da corporação, especialmente no tocante às promoções, que eram rápidas e

baseadas na escolha do governo, não no merecimento. Assim, considera-se que eles não

poderiam querer modificar uma situação que lhes era vantajosa. Por outro lado, os autores

que defendem este tipo de concepção – dentre os quais, Sérgio Buarque de Holanda é,

provavelmente, um dos representantes mais emblemáticos – também apresentam a

tendência de conferir um maior destaque à geração posterior, a dos bacharéis de farda, a

quem em geral se atribui um profundo anseio modernizador que, articulado ao discurso

positivista, ao sentimento corporativo e às origens “populares” desta segunda geração,

resultou no fomento de um espírito crítico em relação às lideranças e estruturas arcaicas da

organização militar e do governo imperial.

Acreditamos que a concepção pejorativa que a historiografia tem alimentado a

respeito dos oficiais que ocuparam as altas patentes em torno dos anos 1850-1870, tem

suas origens justamente no seio do conflito de gerações entre “tarimbeiros” e “bacharéis

de farda”, que começou a ocorrer entre finais dos anos 1870 e início dos anos 1880. O

palco deste conflito de gerações foi a organização militar e, conforme esperamos ter

demonstrado através desta pesquisa, este conflito não significou a luta entre reacionários e

modernizadores, embora tenha sido abordado nestes termos, mas sim entre dois grupos

1 Em um Dicionário do século XIX, observa-se a seguinte definição: “Tarimbeiro: Que dorme na tarimba. Que foi tirado da tarimba, que não seguiu curso cientifico; militar tarimbeiro”. Há também o sentido figurado: “indivíduo grosseiro, sem educação”. SILVA, Antonio de Morais. Dicionário da Língua

Portuguesa, Vol II. Rio de Janeiro: Empresa Literária Fluminense de A A. da Silva Lobo, 1891, pp: 874.

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diferentes que procuravam se auto-afirmar dentro da organização, e sustentavam projetos

distintos de modernização para as Forças Armadas. Sendo assim, a nossa intenção foi a de

resgatar parte do processo em que se desenvolveu o projeto modernizador dos tarimbeiros,

as suas principais características, enfoque e público-alvo, as alianças que eles travaram

visando a sua consecução e os principais empecilhos, internos ou externos à corporação,

que se apresentaram durante a vigência da implementação do projeto em questão. Para

tanto, optamos por realizar a nossa investigação ao longo dos vinte anos que se seguiram à

invasão da Província do Mato Grosso, em 1864, embora ao longo da nossa pesquisa

tenham aparecido muitas evidências de que o projeto modernizador dos tarimbeiros tenha

se originado antes mesmo da Guerra do Paraguai, ligando-se, provavelmente ao processo

de formação das primeiras instituições nacionais, aspecto que estaremos procurando

contemplar em futuras pesquisas.

Por outro lado, a adoção de um período de curta duração nos permitiu compreender

dois aspectos centrais que dizem respeito ao processo maior em que se operava a

profissionalização das Forças Armadas no período imperial: o primeiro deles foi o da

importância da Guerra do Paraguai como uma experiência decisiva para que tarimbeiros e

bacharéis de farda considerassem que a organização militar brasileira não estava preparada

para os desafios impostos por um conflito armado de proporções modernas, como foi a

campanha contra López. Embora esta experiência tenha sido crucial para os dois grupos, é

possível observar que eles a trataram de uma forma bastante diferenciada, pois, enquanto

os tarimbeiros a utilizaram para aumentar sua capacidade de dialogar com os partidos e

instar junto ao governo para melhorar a situação da corporação através da via jurídica, os

bacharéis de farda passaram a usá-la para criticar os representantes dos poderes civis e as

velhas lideranças militares, opondo-se abertamente a ambos, através da imprensa e da

difusão das suas idéias junto aos membros subalternos da corporação.

O segundo fator importante que foi possível observar através deste curto recorte

temporal, diz respeito às várias reformas alcançadas pelos oficiais tarimbeiros e políticos

simpáticos à corporação ainda no início da década de 1870, que possivelmente significou

um período auge na consecução daquele projeto modernizador. Nesta época os tarimbeiros

conseguiram levar o governo a aprovar o aumento dos soldos de oficiais e praças (1872), a

lei de promoções dos oficiais da Armada (1873), a alteração do sistema de recrutamento

(1874) e a abolição dos castigos corporais no Exército (1874), reformas que tiveram um

alcance enorme, sobretudo no âmbito das forças de terra, pois já nos anos 1870 os

ministros da guerra mostravam-se entusiasmados com a afluência de voluntários, a

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disciplina e o estado de ordem que se via entre suas tropas. Desta forma, foi possível

perceber que a modernização da corporação era uma preocupação constante deste grupo,

que teve um papel bastante relevante, embora limitado, no processo de profissionalização

da Força Armada Imperial. Nesta direção, a nossa pesquisa se encerra justamente no

momento em que o grupo dos tarimbeiros, enfraquecido pelo falecimento de muitos

líderes de prestígio, pela crescente desconfiança da elite civil em relação ao elemento

militar e, finalmente, pela ausência de uma identidade com as novas gerações, se tornou

isolado e incapaz de dar continuidade ao seu antigo projeto.

Forças Armadas no Império: uma breve revisão historiográfica

O nosso trabalho abrange simultaneamente três campos de estudo, que se

relacionam intimamente; trata-se da corporação militar brasileira no século XIX, da

Guerra do Paraguai, e da política imperial. Das obras que estão referenciadas na presente

pesquisa, apenas algumas promoveram um tipo de análise que envolvesse estes três temas

ao mesmo tempo, e até por isso, apareceram de forma bastante recorrente em nosso

trabalho. São elas: Do Império à República, de Sérgio Buarque de Holanda, o “Exército e

o Império” de John Schultz, A Espada de Damôcles, de Wilma Perez Costa e, talvez em

menor grau, Maldita Guerra¸ de Francisco Doratioto, mas diferentemente dos outros

autores, Doratioto não pretende problematizar a Força Armada imperial, e sim a Guerra do

Paraguai. As três primeiras obras mencionadas apresentam uma grande afinidade, pois

compartilham da mesma tendência em apresentar a história da organização militar como

se ela estivesse divida entre dois períodos completamente diversos, e derivados da Lei de

Promoções para as tropas de terra em 1850; portanto, os três autores defendem a idéia de

que no primeiro momento, observa-se um Exército do tipo senhorial, permeado por

valores estamentais, por estruturas arcaicas e um certo reacionarismo político e social, ao

passo que, no segundo, o Exército é visto como uma instituição do tipo nacional, dotada

de emergentes perspectivas de classe e meritocracia, em um processo de

profissionalização e de modernização aceleradas.

Esta dicotomia entre ambos os períodos, que aparentemente é comum às três obras

analisadas, fica particularmente clara numa acepção de John Schultz. Afirma este autor

que, enquanto “o Brasil transformava-se, de sonolenta colônia em 1822, em uma

sociedade em vias de modernização e urbanização com a queda do Império, também o

exército passava, de uma organização aristocrática, não educada e não profissionalizada, a

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uma força educada e dotada de vigoroso sentido de solidariedade institucional”2. Para nós,

este tipo de perspectiva apresentada pelos autores é, provavelmente, em parte tributária

das influências da sociologia weberiana, sendo esta particularmente evidente no caso de

Holanda. As suas obras tendem a dar uma ênfase enorme para o advento da modernidade

e, como explica José Carlos Reis, ele procura desvendar “no presente as sobrevivências

arcaicas, ainda ibéricas que precisariam ser superadas (...) quer identificar os obstáculos

que entravam a modernização política e econômico-social-mental do país. Esses

obstáculos estão ligados às nossas raízes ibéricas, que devem ser recusadas e cortadas”3.

Deste modo, fica bastante evidente o motivo pelo qual este autor foi um dos principais

veiculadores da concepção pejorativa ligada aos oficiais tarimbeiros, e ao Exército no

período anterior aos anos 1850, aos quais, tradicionalmente, se atribuem inúmeras

reminiscências coloniais.

No trabalho de Wilma Perez Costa, a Guerra do Paraguai é retratada como um

período de aguda contradição entre as velhas estruturas coloniais e a emergente sociedade

moderna. Em A Espada de Damôcles, ela afirma que o exercício do monopólio da

violência legítima através da criação de uma Força Armada profissional é um elemento

indispensável para a criação de um “Estado Moderno”. Entretanto, argumenta Costa, no

Brasil este processo foi atrasado justamente em função de determinadas reminiscências

coloniais, como a escravidão que, como ela acredita, impossibilitava o recrutamento de

nacionais, ou ainda a presença da Guarda Nacional, considerada como um aspecto

antagônico ao desenvolvimento de um Exército profissional e do próprio monopólio da

violência por parte do Estado. Contrariamente ao fato de não ser capaz de desenvolver o

seu monopólio da violência, a monarquia brasileira procurava, insistentemente, adotar

uma postura imperial na região platina, o que acabou gerando a Guerra do Paraguai.

Finalmente, Costa aponta para a incoerência existente entre a incapacidade do Império em

profissionalizar a corporação militar e a sua belicosidade na região platina, considerando

que isso foi um elemento central para o fomento do descontentamento militar e,

conseqüentemente, do Golpe que resultou na queda do Império.

Para nós, o desenvolvimento das Forças Armadas no período imperial não se

resume a esta polarização duvidosa entre atraso e modernidade, que muitas vezes nos

impede de compreender a riqueza de detalhes oriunda da heterogeneidade cultural, social e

2 SCHULTZ, John. “O Exército e o Império”. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (Org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II, Vol IV. São Paulo: Difel, 1974, pp: 235. 3 REIS, José Carlos. As Identidades do Brasil: de Varnhagen à FHC. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999, 122.

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econômica em que se operou a construção do Estado nacional brasileiro. Naturalmente, a

bagagem teórico-metodológica oferecida pela sociologia também pode ser bastante útil

para entendermos melhor o papel dos grupos sociais no processo histórico, como bem o

demonstra, por exemplo, a obra A construção da ordem, do sociólogo José Murilo de

Carvalho. Longe de se prender demasiadamente em modelos originários das ciências

sociais, este autor procurou, através de uma análise empírica bastante consistente,

compreender o papel das elites brasileiras na manutenção da unidade nacional e da

hegemonia política civil durante todo o período Imperial e dessa forma, contribuiu

profundamente para a produção historiográfica relativa à política imperial. O mesmo se

pode dizer a respeito do seu artigo “As Forças Armadas na Primeira República: o poder

desestabilizador”, no qual ele sugere que a análise do comportamento político da

organização militar brasileira deve partir do estudo dos seus elementos internos, e não dos

aspectos externos à corporação, ao contrário do que propõe muitos autores engajados em

uma perspectiva analítica do tipo instrumental.

Portanto, o presente trabalho também compartilha de alguns conceitos gestados no

interior das ciências sociais, especialmente no que se refere à utilização da perspectiva

organizacional, que consideramos a mais adequada para a compreensão da história da

corporação militar brasileira no período imperial. Acreditamos que através deste tipo de

perspectiva, é possível promover a dissociação de vários aspectos ideológicos ligados ao

presente objeto de estudo e formulados pela nossa historiografia que, a exemplo de Sergio

Buarque de Holanda, muitas vezes parece depositar no passado do país os anseios de

modernidade e de desenvolvimento nacional presentes em sua geração.

A perspectiva organizacional

Conforme sugere José Murilo de Carvalho, acreditamos que, independentemente

do período, ou grupo analisado, “há sempre maior ou menor grau de liberdade nas

decisões e o exercício dessa liberdade pode ser mais ou menos eficaz dependendo dos

atores”4. A redescoberta da autonomia relativa dos indivíduos em relação às estruturas

sociais, políticas e econômicas é, provavelmente, um dos principais legados da nossa

produção historiográfica recente. Foi justamente por compartilhar desta idéia que, em

nossa pesquisa, demos uma ênfase maior aos aspectos internos da corporação militar, em

detrimento dos condicionantes econômicos e sociais, dos quais, tradicionalmente,

4 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem e Teatro de sombras. Rio de Janeiro: Editora UFRJ/Relume Dumará, 1996, pp: 17.

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derivavam as explicações sobre o comportamento político das Forças Armadas no Brasil.

Neste sentido, o recorte teórico-metodológico adotado neste trabalho foi a perspectiva

organizacional, tal como ela vêm sendo defendida por José Murilo de Carvalho e

Edmundo Campos Coelho. Isso porque ela se afasta da idéia clássica de que a corporação

militar tem atuado na esfera pública brasileira como um “instrumento” das classes sociais,

o que retira completamente a possibilidade de compreendermos a atuação política dos

militares, tendo em vista o grau de autonomia usufruído pelos indivíduos, bem como a

complexidade inerente a uma organização como as Forças Armadas. Da mesma forma,

através da perspectiva organizacional, o comportamento político dos militares é encarado

“como expressão do estágio de amadurecimento, complexidade e peso social relativo”5 em

que a corporação militar, entendida como uma organização total, se encontra em cada

momento histórico. Como assegura Edmundo Campos Coelho, antes de refletir os anseios

e interesses de qualquer classe social, ela é “uma organização que sempre competiu por

recursos escassos com outras organizações, para tanto desenvolvendo táticas de ação

política, produzindo doutrinas e ideologias, gerando e educando seus próprios líderes e

liderados”6.

Orientada por esta vertente analítica, o presente estudo teve como objetivo

principal a compreensão do papel da oficialidade tarimbeira no processo de expansão,

modernização e profissionalização da Força Armada brasileira durante parte do Segundo

Reinado. Ao longo do nosso trabalho, procuramos demonstrar que o fato destes militares

se originarem da elite local, ou mesmo de se envolverem com a vida pública brasileira,

não significava que eles não agissem conforme interesses organizacionais; para nós a

inserção política dos líderes tarimbeiros foi essencial para que eles pudessem travar

alianças e construir estratégias próprias, através das quais, esperavam que o governo

imperial viesse a sofrear as demandas da sua instituição. Tendo em vista que os nossos

objetivos se relacionam com a análise do projeto modernizador esboçado e efetivado por

este grupo de oficiais e políticos aliados, as principais fontes utilizadas nesta pesquisa

foram os relatórios anuais produzidos no interior dos ministérios da Guerra e da Marinha

durante o período de 1864-1882.

Os Relatórios do Ministério da Guerra e do Ministério da Marinha formam uma

documentação bastante interessante, pois muitos destes ministros eram oficiais

5 COELHO, Edmundo Campos Coelho. Em busca de Identidade: o Exército e a Política na Sociedade

Brasileira. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1976, pp: 9-10. 6 Idem, pp: 9-10.

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tarimbeiros, ou políticos civis que acabavam se ligando à corporação em função de terem

assumido as pastas da marinha ou da guerra repetidas vezes; neste sentido, observa-se que

por maiores que fossem as suas divergências partidárias, eles tendiam a lutar por aquele

projeto comum de profissionalização da corporação militar. Os relatórios ministeriais

foram muito importantes para a construção da presente pesquisa, pois neles aparecem

inúmeras críticas e denúncias com relação aos problemas enfrentados pela corporação,

além de várias propostas de melhorias e reformas que, para nós, quando analisadas em

conjunto, constituem a evidência maior da existência de um projeto modernizador entre os

tarimbeiros. Apesar disso, essa documentação praticamente não contemplava um aspecto

central para o nosso trabalho, que era o relacionamento desta oficialidade tarimbeira com

os representantes dos dois partidos do Império. Portanto, foi preciso utilizar também os

Anais do Parlamento do Império referentes aos anos de 1864-1880. A partir destas fontes,

foi possível compreender melhor os engajamentos destes militares, algumas das suas

estratégias políticas e os principais argumentos por eles utilizados para defender as

reformas que as instituições militares careciam para a sua modernização.

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Capítulo I: Uma modernização aristocrática e nacionalista

“Se grande foi o nosso dispêndio pecuniário (...) se muitas vidas perdemos, ou nos combates, ou vítimas do rigor das fadigas e da insalubridade do clima, a honra nacional ficou desafrontada, e este resultado foi e será para sempre para nós brasileiros a mais completa recompensa de todos os esforços empregados”. Visconde do Rio Branco. Ministro da Guerra. 1872.

A geração dos tarimbeiros

Conforme têm demonstrado muitos historiadores que se dedicam à análise da

Força Armada brasileira no período imperial, é possível acreditar que as reformas

introduzidas no Exército na década de 1850 foram muito importantes na transformação da

composição social da oficialidade, bem como no surgimento de um comportamento

político distinto no interior da corporação, que se manifestou de forma mais evidente,

especialmente, após os anos 18807. Como explica John Schultz, a origem destas reformas

esteve vinculada à hegemonia política que os conservadores obtiveram com a proclamação

da maioridade de D. Pedro II e, na seqüência, na capacidade deste partido em revitalizar o

Exército, o que permitiu ao Império debelar as revoltas que haviam surgido ao longo do

período regencial8. Ainda segundo este autor, “a prosperidade brasileira e a estabilidade do

período 1845-1864 tornaram possível para o governo devotar suas atenções a reformas

militares, especialmente na área da instrução. Uma lei de setembro de 1850 revolucionou a

estrutura do corpo de oficiais, atribuindo a indivíduos portadores de diplomas da

Academia Militar privilégios em relação aos que não os possuíssem”9. Embora em

princípio isto dificultasse o acesso das pessoas mais pobres, o governo criou escolas

preparatórias gratuitas para o ingresso no ensino superior, o que ampliou

consideravelmente as possibilidades de educação e de ascensão de jovens sem recursos ou

influências políticas. Além disso, a introdução de exigências mínimas de idade também

contribuiu “para diminuir as vantagens aristocráticas (...) Boas relações continuaram a ser

de grande importância para as promoções, mas mesmo as mais elevadas dentre elas nada 7 O trabalho mais importante neste sentido é o artigo de John Schultz “O Exército e o Império”. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (Org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II, Vol IV. São Paulo: Difel, 1974. A mesma opinião é expressa por Sérgio Buarque de Holanda, no seu livro “Do Império à República”. In: Holanda (org.) História Geral da Civilização Brasileira. Tomo II, Vol V. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil/Difel, 1997, e por Wilma Peres Costa na obra A Espada de Dâmocles. O Exército, a Guerra

do Paraguai e a Crise do Império. São Paulo: Editora Hucitec - Editora da Unicamp, 1996. José Murilo de Carvalho também analisa o processo de transformação social da oficialidade brasileira, no seu artigo “As Forças Armadas na Primeira República: o poder desestabilizador”. In: FAUSTO, Boris (Org.) História

Geral da Civilização Brasileira. Tomo III, Vol II, São Paulo: Difel, 1977. 8 De acordo com Schultz, em 1840 o exército imperial suprimiu a revolta da Balaiada no Maranhão, em 1842 saiu vitorioso em São Paulo e Minas, em 1845 resolveu a Revolução Farroupilha e em 1848/49, finalizou a Revolta da Praieira, em Pernambuco. SCHULTZ, Op. Cit., pp: 244-245. 9 Idem, pp: 245.

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podiam fazer em favor de um oficial que não houvesse atingido uma certa idade

mínima”10.

Com relação às reformas de 1850, importam-nos dois elementos centrais: o

primeiro deles, é que, apenas em 20 ou 30 anos, estas mudanças operaram uma profunda

transformação na composição social da oficialidade; se até os anos 1860-70,

predominavam nas altas patentes os elementos relacionados à aristocracia local, após este

período é possível observar que os oficiais provinham essencialmente de setores médios e

baixos da sociedade, sendo freqüentemente oriundos de famílias de militares. Um segundo

aspecto que deve ser ressaltado neste sentido é a maneira como este processo foi encarado

pela historiografia, pois se observa que os oficiais da geração antiga, ou seja, aqueles que

foram promovidos antes da Guerra do Paraguai, têm sido encarados de forma bastante

pejorativa. Por se tratar de uma geração essencialmente aristocrática, estes militares são

comumente representados como elementos refratários às mudanças sociais, e às reformas

que as Forças Armadas careciam para se projetar enquanto uma organização relevante. É

possível observar este tipo de interpretação na obra de Sergio Buarque de Holanda, por

exemplo. Segundo o autor: “A distinção começara a fazer-se sentir especialmente por

volta de 1850 (...) Até então, preenchiam os altos postos militares, de ordinário, elementos

relacionados, pela origem, ou pelos laços de família, às classes dirigentes, e isso mesmo

deveria facilitar o seu rápido acesso (...) Ora, esses oficiais não poderiam ter maior

interesse em derrubar uma situação que haviam ajudado a consolidar”11.

Acreditamos que esta afirmação merece questionamentos, pois apresenta a idéia de

que o legislativo brasileiro promoveu as reformas dos anos 1850 à revelia dos oficiais

aristocráticos, esquecendo-se que estes militares muitas vezes eram membros do governo,

e propunham, eles mesmos, através de ministérios ou senatorias, várias reformas para as

Forças Armadas. Ainda nesta direção, deve-se ressaltar que a historiografia tende a

considerar que os militares ditos “tarimbeiros” tinham pouco ou nenhum compromisso

com a corporação, ao contrário do que se têm concebido com relação aos oficiais que lhes

procederam. Comparando Caxias com Floriano Peixoto, Schultz declara que o primeiro

“funcionava mais como chefe do Partido Conservador do que como representante dos

interesses militares”12, enquanto o Marechal de Ferro, apesar de abolicionista e

propugnador da modernização, era leal “para com a classe militar, e não para com o

10 SCHULTZ, Op. Cit., pp: 237. 11 HOLANDA, Op. Cit., pp: 307. 12 SCHULTZ, Op. Cit., pp: 239.

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Partido Liberal”13. No entanto, ao contrário do que se pensa, a análise da atuação política

destes militares permite-nos perceber que a instituição militar era o foco central das

preocupações deste grupo. Além disso, observa-se que para os contemporâneos da época,

não havia qualquer antagonismo entre a vinculação organizacional e a atividade política.

No Brasil dos anos 1840-1850, era muito freqüente a presença de membros de

organizações militares ou eclesiásticas na vida pública, e é possível acreditar que este

fenômeno persistiu pelo menos até a queda do regime imperial14.

Origem social, influências filosóficas e engajamento político

Como já dissemos, geralmente os oficiais tarimbeiros eram originários das

camadas altas da sociedade. Em geral, estes militares tinham pelo menos o equivalente a

uma educação secundária15, podendo-se acreditar que muitos deles tenham entrado em

contato com o pensamento europeu, pois seus discursos refletem a influência do

iluminismo e, mais particularmente, do iluminismo português; como assegura José Murilo

de Carvalho, este “era essencialmente reformismo e pedagogismo. O seu espírito não era

revolucionário, nem anti-histórico, nem irreligioso, como o francês; mas essencialmente

progressista, reformista, nacionalista e humanista”16. Isso fica muito claro em discussão

ocorrida em 1864entre o Sr. Paranhos e o Visconde da Boa Vista; enquanto o último, um

militar reformado e comandante da Guarda Nacional, advogava pela supressão dos

castigos corporais, Paranhos se opunha, declarando que esta era uma medida que deveria

ser acompanhada por outras. Em resposta, Visconde da Boa Vista declarou que as

“reformas que se tem feito ao nosso exército, que ligação de sistema tem? Não são elas

feitas aos bocadinhos? (...) Vemos medidas tomadas no ministério da guerra ontem que

hoje vão para trás (...) andamos para diante e para trás; não há verdadeiramente o que se

chama de conquista de idéias, não vejo sistemas. Só temos feito uma conquista que é

grande, é estarmos todos de acordo em manter-se a constituição”17. Esta frase traduz bem

o apego aos ideais de progresso e modernização, bem como o humanitarismo e o

13 SCHULTZ, Op. Cit., pp: 239-240. 14 José Murilo de Carvalho considera que a forte presença de padres e militares na vida política brasileira antes de 1850 se explica pelo fato de que eles possuíam um maior nível de educação, ao passo que a grande maioria da população era analfabeta. Com o desenvolvimento das instituições de ensino superior, os cargos político-administrativos começaram a ser ocupados por uma nova elite, oriunda especialmente dos cursos jurídicos. No entanto, acreditamos que estas organizações mantiveram ainda uma grande influência política, como é possível observar na “Questão Religiosa” da década de 1870 e, naturalmente, no golpe militar que instaurou a República em 1889. Ver: CARVALHO. A construção da ordem..., Op. Cit. 15 Idem, pp: 69. 16 Idem, pp: 57. 17 Fala do Sr. Visconde da Boa Vista, 20 de abril de 1864. Anais do Parlamento, 1864, Livro 1, pp: 123.

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constitucionalismo próprios do pensamento da Era das Luzes, temas que eram muito caros

para este grupo de militares.

Embora estejamos usando o termo “grupo” para nos referir à geração dos

tarimbeiros, não seria correto afirmar que eles formavam uma comunidade unida e

convergente, pois, com efeito, muitos apresentavam divergências entre si. Havia, no

entanto, vários fatores em comum, como a influência do pensamento iluminista, a

fidelidade ao sistema monárquico, a opção pela luta política parlamentar, a recusa ao

radicalismo e, talvez em menor grau, a crença no liberalismo. Estes elementos, articulados

ao desejo de aperfeiçoar a instituição militar, eram provavelmente comuns a todos estes

oficiais, fossem eles liberais ou conservadores. Acreditamos que a diferença central entre

os engajados nestes dois partidos, se relacionava com a forma com que se deveria operar a

modernização das Forças Armadas, e a finalidade por eles visualizada. Parece-nos

evidente que os conservadores conclamavam por uma ação direta do Estado, pois

julgavam que as tropas deveriam ser utilizadas para a manutenção da unidade nacional e

sustentação da centralização monárquica. Segundo afirmou o Barão de Cotegipe numa

discussão parlamentar por volta de 1871: “nossa mais urgente necessidade é que a

segurança do litoral brasileiro esteja a cargo da força marítima. Se não fosse a força

marítima, talvez que o Império não estivesse unido, e quando um país cria uma marinha,

não a cria somente para a sua defesa externa; cria também para a manutenção da ordem

interna”18. Os militares liberais, no entanto, apresentavam uma relação bem mais ambígua

com estas questões. Embora desejassem a melhoria das Forças Armadas, receavam que a

instituição fosse usada de forma despótica pelo governo central, o que significaria a

derrocada do seu projeto federalista. Apesar disso, quando assumiam as pastas da marinha

e da guerra, não deixavam de reclamar dos problemas da corporação, o que nos leva a

concluir que é provável que eles tenham carecido de apoio dentro do seu partido até mais

ou menos 1870.

Talvez em função desta relutância dos liberais, até os anos 1860-1870, os

principais defensores de reformas para as Forças Armadas foram justamente os

conservadores, não somente pela sua concepção de Estado, mas também porque eles

acreditavam que a força militar era indispensável para a construção de uma grande nação.

Como declarava o ministro da marinha, Affonso Celso de Assis Figueiredo por volta de

1868, não “pode a nação que preze sua dignidade impunemente descuidar-se dos aprestos

18 Fala do Sr. Barão de Cotegipe, 18 de julho de 1871. Anais do Parlamento, 1871, Livro 3, pp: 158.

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da guerra e dormir tranqüila na segurança da justiça, ou no abandono da sua própria

fraqueza. Bem quisera ver realizada a substituição da força militar pelos elementos

produtivos da agricultura e da indústria. Mas um país incapaz de resistir ou ofender,

quando seja necessário, não poderá gozar de suas próprias riquezas”19. Desta forma, com

as vistas voltadas para modelos existentes nas “nações cultas” da Europa, este grupo de

militares e políticos simpáticos à corporação procurou, através de diversas medidas,

fomentar o desenvolvimento das Forças Armadas, visto que este era um elemento

necessário para que o Brasil se destacasse como potência dentro da América do Sul.

Apesar das reformas educacionais que eles conseguiram produzir no Exército durante os

anos 1850, as mudanças operavam-se ainda de modo muito tênue e, como não denotavam

um caráter emergencial, eram freqüentemente barradas pelo governo. No entanto, com a

eclosão da Guerra do Paraguai, a necessidade de modernizar as Forças Armadas ganhou

um novo impulso, e este grupo obteve, talvez pela primeira vez na história da sua

corporação, a possibilidade de ser ouvido por deputados, parlamentares e membros do

Conselho de Estado.

A guerra e a criação de um projeto modernizador para as Forças Armadas

Por ocasião da eclosão da Guerra do Paraguai, o partido liberal, que então estava

no poder, foi duramente criticado por conservadores. Cabe aqui reproduzir as queixas de

Saraiva, emitidas ao longo daquele conflito armado, em 1869, as quais que são muito

representativas desta questão: “fui sempre alvo de todos os ataques, quando se tratava da

política exterior, que começou em 1864 e que na opinião de muita gente produziu a guerra

(...) tolerar-se que qualquer indivíduo, ignorando tudo quanto se fez, se levante, como

profeta, para estigmatizar um diplomata, um ministério, e mesmo responsabilizar um

partido como o autor de uma guerra, é realmente inadmissível”20. Neste caso, Saraiva

estava se referindo ao momento em que foi enviado em missão diplomática para negociar

com o governo do Uruguai, ainda em 1864, e que, uma vez fracassada, determinou a

intervenção militar brasileira na Banda Oriental21. De acordo com idéia expressa pelo

então ministro da marinha, Francisco Xavier Pinto Lima, depois de desvanecida a

esperança de obter “por meios pacíficos, uma solução honrosa às reclamações que

19 Affonso Celso de Assis Figueiredo. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1868, pp: 7. 20 Fala do Sr. Saraiva, 8 de junho de 1869. Anais do Parlamento, 1869, Livro 2, pp: 130 21 A correlação entre o fracasso diplomático da missão Saraiva, e a intervenção militar brasileira no Uruguai é uma idéia presente na obra de Wilma Peres Costa. Ver: COSTA, Op. Cit., pp: 134.

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havíamos formulado perante o governo da República Oriental (...) vimos-no afinal

compelidos a usar das represálias contra aquele estado, como único meio de obrigar o seu

governo a fazer justiça às nossas queixas”22.

Embora o Brasil tenha vencido aquela campanha, o ditador paraguaio “interpretou

a intervenção brasileira no Uruguai como prenúncio de um ataque ao Paraguai, após

anexar parte do território uruguaio. Essa anexação, interpretava a chancelaria paraguaia,

era a única justificativa para os gastos do Império em sua ação militar no Uruguai”23.

Desta forma, argumentando que a intervenção brasileira nos assuntos platinos significava

uma ameaça à independência paraguaia, López invadiu a Província do Mato Grosso,

dando origem à guerra com o Império. Como afirma Francisco Doratioto, é possível

acreditar que a dificuldade com que brasileiros enfrentaram os blancos no Uruguai tenha

inclusive encorajado o Paraguai a partir para a guerra, pois apesar de ela ter sido

“planejada pelo governo imperial para ser uma prova de força, constituiu-se em

demonstração de fraqueza, devido à dificuldade e à demora em mobilizar a tropa”24. Ao

que parece, o mesmo pensava, em 1865, o Visconde de Camamú, ministro da guerra no

momento em que se deu a eclosão daquele conflito. Segundo ele, “a questão com o Estado

Oriental não tomaria as proporções a que chegou, se o ultimatum pela missão especial

apresentado a Aguirre fosse logo apoiado por uma força respeitável”25.

A invasão do Mato Grosso foi provavelmente um dos episódios mais traumáticos

da época imperial. Segundo Doratioto, esta Província era a região mais isolada e

desprotegida do Império. Quando atacados, os poucos soldados brasileiros ali

estacionados não conseguiram se defender por muito tempo, e promoveram uma retirada

desastrosa, abandonando armamento e munições para o inimigo; a população, que tentava

fugir para o mato, era procurada e presa pelas tropas guaranis. Mulheres foram vítimas de

violências sexuais, e os homens eram interrogados, torturados, e muitas vezes mortos. A

região foi completamente saqueada, e os objetos de valor, bem como os prisioneiros,

levados a Assunção. Lá eles eram alimentados com comidas estragadas, e obrigados a

trabalhar nos acampamentos militares; muitos só sobreviveram graças ao auxílio do

Consulado português. O ataque paraguaio causou imensa indignação na população

22 Francisco Xavier Pinto Lima. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1865, pp: 9. 23 DORATIOTO, Francisco. Maldita Guerra. Nova história da Guerra do Paraguai. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp: 70. 24 Idem, pp: 69. 25 Visconde de Camamú, Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro, Tipografia Universal de Laemmert, 1865, pp: 2.

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brasileira, e foi visto como um ato bárbaro, traiçoeiro e injustificável26. O espanto e o

orgulho nacionalista ferido com a invasão do país evidenciam-se, por exemplo, numa

afirmação do Visconde de Camamú, externada em 1865: “Acerca da agressão, que o

governo do Paraguai fez ao Império, a quem deve existência política (...) devo dizer-vos

que a indignação, de que nos possuímos, correspondeu a gravidade da afronta, e das

atrocidades cometidas na província do Mato-Grosso”27.

Ao mesmo tempo em que a guerra despertou sentimentos nativistas, também gerou

um constrangimento enorme dentro da elite imperial, ainda mais na medida em que os

militares atribuíam as dificuldades de defesa do país ao descaso do governo com relação

às Forças Armadas. É justamente esta crítica que se observa numa declaração de Affonso

Celso de Assis Figueiredo, emitida em 1868, isto é, ao longo da guerra: “As circunstâncias

imperiosas, que inopinadamente nos rodearam e ainda pesam sobre o país, vieram

despertar-nos do pesado letargo, em que jazíamos, e fazer-nos reconhecer que nos

expuséramos à guerra, descuidando-nos durante a paz. Se o governo do Paraguai nos

soubera precavidos e prontos para qualquer emergência (...) certamente não seríamos tão

atrozmente injuriados”28. Paralelamente a isto, a experiência compartilhada na campanha

contra López levou muitos militares a adquirir uma consciência maior a respeito do estado

precário em que se encontrava a corporação, especialmente no concernente aos recursos

humanos, visto que as tropas estavam repletas de gente desnutrida, analfabeta, sem

nenhuma instrução ou disciplina, e, definitivamente, sem qualquer afeição à profissão das

armas.

Outro fator que parece ter se tornado comum neste momento foi a exaltação da

figura do herói-militar, que naturalmente era canalizada pelos oficiais e políticos

simpáticos a esta corporação, com a finalidade de se coagir o governo a atender as suas

demandas. Neste caso, é muito interessante observar a afirmação do Barão de Cotegipe,

externada em inícios de 1869, pouco antes do fim daquele conflito: “Surgiu a guerra do

Paraguai, imprevista e rudemente, e ainda bem não nos havíamos percebido da grandeza e

extensão da luta, já a marinha se cobria de glória no Riachuelo29, salvando o império de

uma grande afronta, livrando as duas repúblicas aliadas de uma dominação atroz, e 26 DORATIOTO, Op. Cit., pp: 97-111. 27 Visconde de Camamú (1865), Op. Cit., pp: 2. 28 Affonso Celso de Assis Figueiredo (1868), Op. Cit., pp: 2-3. 29 A batalha do Riachuelo foi muito importante para as tropas imperiais, pois praticamente acabou com a marinha guarani; apesar disso, os brasileiros não conquistaram de imediato o controle fluvial, e tiveram que forçar muitas fortificações e baterias presentes nas barrancas ribeirinhas. Como o Brasil tinha comunicações internas incipientes, precisava controlar os rios para transportar o Exército. Ver: SCHULTZ, Op. Cit., pp: 270.

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decidindo logo a sorte de toda a campanha pela completa destruição do plano audaz do

inimigo, que queria constituir o arbítrio supremo dos destinos da América do Sul (...) Uma

classe que assim se distingue nas crises mais difíceis é digna dos favores de estado, e das

simpatias que por toda a parte se encontra”30. O heroísmo dos soldados era sempre um

tema presente nos relatórios dos ministérios da Guerra e da Marinha dos anos de batalha,

como é possível ver, por exemplo, neste relato de Affonso Celso de Assis Figueiredo de

1867: “evitando o campo raso, onde fácil nos fora a vitória, o ditador vangloria-se,

entretanto, de impedir o passo dos nossos bravos (...) bosques intrincados, um clima

nocivo, verdadeiros inimigos que a todo transe nos cumpre vencer, são obstáculos

formidáveis que a natureza interpõe entre os soldados do Brasil, que anseiam a peleja, e as

legiões do déspota, que temem a derrota”31. Desta forma, é preciso destacar a importância

da Guerra do Paraguai como uma experiência que funcionou como um catalisador no

processo de luta pela modernização da corporação militar. Como procuramos demonstrar

através da literatura citada, a busca por esta modernização já vinha ocorrendo, pelo menos,

desde os anos 1850 e, conforme acreditamos, foi encabeçada pelos líderes tarimbeiros, que

por isso mesmo não podem ser encarados como elementos “reacionários”. A Guerra do

Paraguai, no entanto, deu um novo sentido a esta luta, pois lhes forneceu inúmeros fatores

importantes, como uma maior coesão grupal, o orgulho corporativo, a consciência do que

precisava ser corrigido ou até mesmo criado dentro da instituição e, principalmente, os

argumentos que eles precisavam para levar o governo a atender os seus interesses

organizacionais. Neste sentido, cabe aqui destacar a afirmação de Affonso Celso de Assis

Figueiredo, expressa em 1868, a qual parece sintetizar o que estamos procurando

demonstrar; segundo o então ministro da marinha, no “momento terrível tudo nos faltava.

Sobejou felizmente o patriotismo de um povo heróico, que tudo supriu. Nenhum sacrifício

se poupou, nem recusou (...) Dolorosa experiência temos hoje: aproveitemo-la

desenvolvendo e fortificando o poder marítimo do Império”32. A partir deste momento, os

militares tarimbeiros começaram a se dedicar de forma ainda mais intensa para o

aperfeiçoamento das instituições da Marinha e do Exército, propondo uma série de

reformas e medidas que, conforme acreditamos, quando tomadas em conjunto, podem ser

consideradas como um verdadeiro projeto modernizador para as Forças Armadas.

30 Barão de Cotegipe. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1869, pp: 5. 31 Affonso Celso de Assis Figueiredo. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1867, pp: 16. 32 Grifo nosso. Affonso Celso de Assis Figueiredo (1868), Op. Cit., pp: 3.

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Capítulo II: A consecução do projeto modernizador das Forças Armadas

“A carreira militar exige grandes sacrifícios, mas não se pode nela exigir abnegação completa de todas as regalias inerentes ao cidadão (...) Um oficial subalterno não pode viver à guisa de um operário, cuja condição honrosa, mas humilde, lhe consente uma existência correspondente ao seu salário (...) Depois de alcançada certa idade, eis o peso de família que vem se acrescentar às dificuldades com que lutara sempre o oficial (...) A classe militar sofre, e de vós espera este ato de justiça”. João José de Oliveira Junqueira, Ministro da Guerra, 1872.

Principais argumentos e estratégias adotadas pelos oficiais tarimbeiros

Embora os oficiais tarimbeiros jamais tenham utilizado este termo, acreditamos

que eles tenham sido responsáveis pela elaboração de uma espécie de “projeto

modernizador” para a corporação militar, que esteve vigente até o início dos anos 1880.

Para nós, o que justifica o emprego do termo “projeto” é a percepção de que as diversas

medidas modernizantes propostas por estes oficiais, ou mesmo por políticos simpáticos à

corporação, apresentavam uma certa unicidade entre si, pois estavam sempre se remetendo

a dois argumentos centrais. O primeiro deles, já mencionado anteriormente, é que os

defensores deste projeto consideravam que havia uma necessidade imperiosa de se manter

a organização militar bem preparada, pois assim, nenhuma ameaça externa, nem mesmo

interna, poderia prejudicar o progresso da nação e as instituições do Império. O segundo

argumento, que passou a ser utilizado depois de 1864, era o da constante recorrência à

experiência vivida na Guerra do Paraguai, que além de justificar o primeiro aspecto

enunciado, havia instaurado uma “dívida de gratidão”, ou de “sangue”, da sociedade civil

para com os ex-combatentes. Antes de analisarmos mais detalhadamente estas duas facetas

do referido projeto, cabe aqui ressaltar que as estratégias adotadas por estes militares eram

marcadas pelo reformismo e pela crença de que a inserção partidária e a atuação política

constitucional eram suficientes para o fomento do progresso nacional.

Como assegura José Murilo de Carvalho, a tendência moderada que marcou o

pensamento e a prática política da elite brasileira durante o período anterior a 1870, esteve

vinculada, principalmente, à dramática experiência das revoltas regenciais, que quase

levou o sistema imperial à derrocada. Segundo o autor, esta “experiência foi marcante

tanto para conservadores como para liberais, na medida em que estes, em sua maioria

esmagadora, também não apoiavam mudanças radicais”33. Desta forma, percebemos que é

justamente neste período turbulento, marcado pela Regência, e pelo predomínio liberal,

que se originaram algumas características importantes desta elite militar, como por

exemplo, a sua inquestionável fidelidade ao sistema monárquico. Naturalmente os 33 CARVALHO. A construção da ordem…, Op. Cit., pp: 116.

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19

tarimbeiros criticavam o governo, e ainda com maior ênfase na medida em que este não

parecia disposto a atender seus interesses organizacionais, mas estas críticas geralmente se

voltavam contra o partido que estivesse no poder, e não contra o Imperador. Acreditamos

que a adesão à monarquia parlamentar e a fidelidade a D. Pedro II, são aspectos centrais

para a compreensão do tipo de modernização proposta pelos tarimbeiros, até porque, estes

foram os principais elementos que diferenciaram esta geração da oficialidade “científica”

dos anos 1880 que, como explica Carvalho, não assistiu ao crítico período das regências, e

por isso mesmo era muito menos fiel à monarquia.

Portanto, observa-se que as principais estratégias utilizadas pelos tarimbeiros para

fazer com que fossem aprovadas as reformas que eles careciam para a modernização das

Forças Armadas foram justamente a inserção partidária e o diálogo com os poderes

políticos do Império. Como procuramos evidenciar, depois de 1864, as suas

argumentações eram freqüentemente acompanhadas por recorrências à guerra, sendo esta

usada para trazer à tona as humilhações sofridas durante a invasão do país, e o vergonhoso

despreparo em que este se encontrava naquela ocasião. Já no início da guerra, em 1865,

declarava Visconde de Camamú: “Bem pouca tropa tínhamos nós em pontos fronteiros

assaz importantes, e quando o dever indeclinável de nos fazermos respeitar (...) obrigou-

nos a recorrer à última razão das nações ofendidas, vós sois testemunhas das dificuldades

que se encontraram em fazer convergir para um ponto batalhões espalhados pelas

províncias (...) O primeiro resultado, pois, de termos assim dividida e espalhada a nossa

força, experimentou-se na falta de um Exército que de pronto pisasse o território inimigo e

coibisse os atentados de que foram vítimas os súditos brasileiros”34. Ainda conforme este

ministro, “em maio do ano passado lia-se no Relatório do Ministério da Guerra o

seguinte: ‘Em Mato-Grosso devemos conservar força de linha; seria imprevidência

reservar a sua remessa para quando circunstâncias inesperadas o reclamassem’; e pelo fim

desse mesmo ano [1864] reconhecíamos o acerto daquelas palavras. A ninguém devemos

hoje acusar de esquecimento para com pontos tão importantes (...) nossa força, pois, deve

ser fixada, segundo as necessidades reais do serviço, para que em tempo nenhum se

reproduzam as cenas deploráveis, de que tantos brasileiros estão sendo vítimas”35.

Ainda com relação à Guerra do Paraguai, é preciso ressaltar que ela foi responsável

pela emergência de um forte orgulho corporativo, e da impressão de que o país devia

muito aos militares mortos ou invalidados em campanha. Este tipo de concepção parece

34 Visconde de Camamú (1865), Op. Cit., pp: 2. 35 Visconde de Camamú (1865), Op. Cit., pp: 4.

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20

ter surgido já nos primeiros dois anos de guerra, como se observa na declaração do

ministro da marinha, Francisco de Paula da Silveira Lobo, expressa em 1866: “O Paraguai

beijará a mão que lhe quebra os grilhões do cativeiro; mas o sangue dos nossos bravos é

infelizmente o preço da derrota de um déspota, que se contrapõe a toda política generosa e

nobre”36. Um exemplo ainda mais sugestivo é a afirmação do ministro João José de

Oliveira Junqueira, que declarava: “Nunca demais serão retribuídos soldados como os

nossos, que encetaram e puseram termo glorioso à colossal campanha do Paraguai,

soldados sóbrios e valentes, que têm sempre coberto com os louros da vitória a bandeira

que representa o Brasil”37. Apesar de utilizarem largamente a questão da “dívida de

sangue”, os líderes tarimbeiros o faziam de forma bastante moderada. Com efeito, ao fim

da campanha, em 1869, dizia o Barão de Cotegipe: “Uma classe que assim se distingue

nas crises mais difíceis é digna dos favores de estado, e das simpatias que por toda a parte

se encontra. Infelizmente nossas circunstâncias atuais não permitem melhorar a sua sorte,

proporcionando aos oficiais vantagens, no presente, pelo aumento do soldo”38. Neste

sentido, é preciso acrescentar que acreditamos que estes militares evitavam o radicalismo

político, não porque faziam parte da elite, como sugerem autores como Sergio Buarque de

Holanda, mas sim porque consideravam este radicalismo uma abertura para a

desestruturação do regime, e temiam reviver os percalços que marcaram o período

regencial. Soma-se a isso o fato de que, entre os tarimbeiros, o governo imperial era em

geral visto como um aliado, e não como um inimigo das Forças Armadas.

A busca pela dignificação do profissional das armas

Como demonstrou John Schultz, a organização militar já apresentava uma

tendência modernizante desde 1850, quando o Exército passou por algumas reformas,

recebendo uma nova lei de promoções que permitia a ascensão profissional de jovens sem

recursos. Da mesma forma, outras medidas foram sendo colocadas em discussão, antes

mesmo da Guerra do Paraguai, como é o caso da lei de recrutamento, tema bastante

recorrente nos relatórios ministeriais. Como já procuramos explicar anteriormente, a

campanha contra López significou um marco para o desenvolvimento deste projeto

modernizador, tanto porque forneceu aos oficiais tarimbeiros os argumentos que eles

precisavam para coagir o governo a atender as suas demandas organizacionais, como

36 Francisco de Paula da Silveira Lobo. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1866, pp: 13. 37 João José de Oliveira Junqueira. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1872, pp: 12. 38 Barão de Cotegipe (1869), Op. Cit., pp: 5.

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21

também porque ela lhes conferiu uma grande oportunidade de serem ouvidos pelos

representantes dos poderes públicos. Da mesma forma, ela serviu para comprovar um

aspecto que vinha sendo ressaltado por estes líderes pelo menos desde os anos 1850 e que,

provavelmente, foi o principal enfoque do projeto modernizador por eles defendido, que

era a necessidade de se profissionalizar a carreira militar. Neste sentido, observa-se que

um dos maiores problemas enfrentados por eles nos campos de batalha foi justamente a

ausência de tropas disciplinadas e instruídas, coisa que atrasou muito o término da guerra.

Um exemplo claro disso foi o fato de Caxias ter assumido o comando-chefe das operações

em 1866, quando o exército estava estagnado diante da fronteira de Humaitá, e só ter

conseguido completar aquele cerco após 1868, sendo notório que este intervalo foi

necessário para a reorganização das tropas39.

A experiência da guerra, portanto, colaborou para o desenvolvimento daquele

projeto singular, orientado principalmente para a profissionalização da carreira militar. A

necessidade de se construir uma força disciplinada e bem treinada fez, inclusive, com que

o grupo dos tarimbeiros cessasse de pedir grandes contingentes, aspecto que até então

havia sido a principal demanda da organização. Neste sentido, é interessante perceber a

diferença existente entre um discurso anterior e outro posterior à guerra. Em 1864,

defendendo diante do Parlamento uma maior fixação de forças, argumentava o Visconde

de Boa Vista: “o governo pede força para o serviço, e o parlamento, regateando, nega-lhe

o indispensável a pretexto de economia e de dificuldades no recrutamento. Cria-se força,

mas uma força que apenas chegando para a guarnição do sul do império, é a que se

espalha por todo ele”40. Uma opinião completamente diferente se observa na seguinte

expressão de João José de Oliveira Junqueira, ministro da guerra em 1871: “É de

inclinável necessidade que tenhamos um bom exército, bem disciplinado, para servir de

núcleo aos aumentos que forem precisos em ocasião de guerra (...) os voluntários

encontrarão oficiais e praças, que lhes sirvam de norma, e os corpos se aumentaram com

soldados novos, que em pouco tempo se tornarão adestrados, misturando-se com o pessoal

antigo e disciplinado”41. A idéia de um “núcleo” militar pequeno, mas bem organizado, foi

se tornando uma constante a partir dos anos 1870. Ao invés de lutarem por maiores

contingentes, os tarimbeiros passaram a defender o aperfeiçoamento deste núcleo, bem

como a diminuição das suas atribuições, pois queriam que as tropas deixassem de ser

39 SCHULTZ, Op. Cit., pp: 251. 40 Fala do Sr Visconde de Boa Vista. 20 de abril de 1864. Anais do Parlamento, 1864, Livro 1, pp: 119. 41 João José de Oliveira Junqueira (1872), Op. Cit., pp: 4.

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divididas em destacamentos policiais, nos quais considerava-se que era impossível manter

a disciplina, a organização e o armamento.

De acordo com o ministro Junqueira, que escrevia o seu relatório em 1872, isto é,

no momento em que o projeto dos tarimbeiros já estava plenamente consolidado, a criação

deste núcleo militar seria possível através da “atenção a três pontos importantes: a

instrução militar, o provimento de braços (...) e o armamento aperfeiçoado”42. Com

relação às três metas assinaladas pelo ministro, importam-nos especialmente as duas

primeiras, não somente porque elas se relacionam com a experiência vivida na Guerra do

Paraguai, mas também porque as reformas derivadas destas duas diretrizes foram

responsáveis por mudanças profundas e de longo alcance dentro da corporação. A

expansão da instrução foi, provavelmente, uma das mais importantes conquistas dos

oficiais tarimbeiros, e ocorreu tanto no âmbito do Exército como na Armada, embora

tenha tido maiores repercussões em meio às tropas de terra. De acordo com o Visconde do

Rio Branco, ministro da guerra em 1870, a “instrução militar dada nas escolas regimentais

a praças de prét atraiu muito particularmente as vistas do Governo (...) ficou ordenado que

nas certidões de assentamento das praças fosse declarado se sabem ler e escrever, e se

aprenderam nas suas respectivas escolas regimentais (...) A instrução, que se proporciona

ao soldado, abre-lhe mais possibilidades de aspirações, não só para a obtenção dos postos

de oficiais inferiores, como até de matrícula no estabelecimento de instrução militar

secundária e superior”43. Acreditamos que a educação oferecida pelo governo aos soldados

que serviam no Exército tinha um significado muito maior, na medida em que podia

determinar a ascensão profissional dos recrutas, fato que havia sido possibilitado com a lei

de 1850, na qual a promoção dos postos inferiores era baseada em critérios educacionais e

no princípio da antiguidade. A Marinha, por sua vez, só passou por uma reforma

semelhante em torno de 1873 e, mesmo assim, metade dos oficiais inferiores era

promovida por antiguidade, e a outra ainda por escolha do governo. Isso ocorria porque a

referida lei colocava o embarque como condição essencial para a promoção desta parte de

oficiais, e este era algo que dependia de autorização do Ministério da Marinha. Sendo

assim, os efeitos da ampliação educacional ficavam diluídos em função da falta de

mobilidade profissional dentro da Armada.

42 João José de Oliveira Junqueira. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1874, pp: 3. 43 Visconde do Rio Branco. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1872, pp: 5.

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23

A questão do “provimento de braços”, também apontada por Junqueira, era outro

fator que sempre gerava preocupações entre os tarimbeiros, e parece ter se tornado

particularmente alarmante depois da Guerra do Paraguai, de modo que se tornou uma das

principais bandeiras de luta daquele projeto modernizador. Até 1874, o governo estipulava

o número de recrutas que cada província deveria fornecer ao Exército e a Marinha, e as

autoridades incumbidas do recrutamento eram responsáveis por atingir os contingentes

necessários. Este meio não só era extremamente violento, como também incapaz de

satisfazer as necessidades da organização, como é possível observar através da seguinte

queixa do Visconde de Boa Vista, externada em abril de 1864: “Eu reprovo o atual modo

de recrutamento, reprovo-o tanto mais quanto a experiência me tem mostrado que ele

assim não é senão uma arma para vinganças. Nosso modo de recrutamento não está de

acordo com a constituição (...) o governo cumpra com o seu dever, queira recrutar, não

deixe isso entregue à vontade de seus recrutadores; nem de sua polícia (...) o atual

recrutamento, sendo vexatório, produz muito pouco (...) estendendo os recrutadores suas

redes, depois de feita boa pescaria, deixam escapar pelas malhas os melhores peixes. E por

que recrutadores tão ativos, como são, deixam escapar assim tanto peixe? Pegam 20, 40,

50 homens, e apurada a colheita, aparece um ou dois recrutados; mas isto sucede com os

que não tiveram padrinhos”44. Outro problema constantemente apontado com relação ao

sistema de recrutamento era a desigualdade regional com que se cobrava o “imposto de

sangue”, fato que fica evidente através de declaração do ministro Junqueira em 1872: “Por

mais justa e eqüitativa que seja a distribuição dos recrutas em relação à população do

Império, sucede que, na prática, há províncias que suportam maior peso deste imposto de

sangue. É irregularidade acoroçoada pelo sistema vigente, em que o arbítrio das

autoridades recrutadoras, e não a prescrição da lei, tem a maior influência”45.

Mais uma decorrência do sistema de recrutamento defeituoso, como reclamava a

oficialidade tarimbeira, era o fato de que ele era em geral feito em meio as camadas mais

baixas da sociedade e, desta forma, acabava trazendo gente considerada pouco apta para o

serviço das armas. Como escrevia o Barão de Cotegipe, em 1870, da forma como estava

constituído, o sistema de recrutamento de então acabava colocando a bordo dos navios

“réus de polícia, e toda a escória da sociedade considerada incorrigível”46. O mesmo

problema ocorria no âmbito do Exército, como sugere o ministro Junqueira, em 1872: “as

44 Fala do Sr. Visconde de Boa Vista. 20 de abril de 1864. Anais do Parlamento, 1864, Livro 1, pp: 120. 45 João José de Oliveira Junqueira. (1872), Op. Cit., pp: 4. 46 Barão de Cotegipe. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1870, pp: 12.

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24

fileiras de soldados acham-se tão mal constituídas pelo vicioso sistema de aquisição de

pessoal, que deles só se pode exigir a subordinação, e, nas ocasiões precisas, a coragem.

Entre eles não há espírito de classe, e a ansiedade com que todo e qualquer soldado espera

a sua baixa é disso demonstração”47. A partir dos anos 1870, a questão do recrutamento

parece ter se tornado cada vez mais grave, pois além de todos os aspectos mencionados,

observa-se que a população se tornou ainda mais arredia ao serviço obrigatório, sobretudo

em função da violência com que se havia feito o recrutamento durante os anos de guerra.

Neste sentido, cabe aqui reproduzir o alerta de Visconde do Rio Branco, ministro da

guerra em 1870: “Os sacrifícios, porém, que fez a população brasileira, durante as

exigências da prolongada guerra do Paraguai, aconselham toda a prudência em chamar ao

serviço, por meio do recrutamento, aqueles que a ele estejam sujeitos”48. Finalmente,

acrescenta-se que a reforma no sistema de recrutamento era algo imperativo, em função do

próprio anseio de modernização das Forças Armadas, caracterizado em projeto durante

este período. Ainda de acordo com o ministro Junqueira, para se “obter um exército

regular é mister começar pela base da instituição: esta base é o meio de prover-se pessoal

(...) Alcancemos o pessoal preciso, sem os vexames atuais, e depois a instrução (...) e a

disciplina mantida pelos chefes, farão o resto”49.

Nesta direção, observa-se que a obtenção da reforma da lei de recrutamento em

1874, que estabeleceu o alistamento universal da população masculina, e recrutamento por

sorteio, foi uma das maiores conquistas da oficialidade tarimbeira, e dos políticos que

vinham ocupando as pastas da marinha e da guerra naquele período. A lei de 1874 pode

ser vista como mais uma evidência da sensibilidade que este grupo tinha com relação aos

problemas vivenciados pela corporação militar, e da maneira como eles instaram junto ao

Estado brasileiro para aperfeiçoar a própria instituição. Além disso, um balanço das

principais reformas obtidas pelos tarimbeiros – aumento dos soldos de oficiais e praças

(1872), lei de promoções dos oficiais da Armada (1873), alteração do sistema de

recrutamento (1874) e abolição dos castigos corporais no Exército (1874) – revelam mais

uma importante faceta do projeto modernizador que eles esboçaram e procuraram colocar

em prática até o início dos anos 1880, qual seja, a busca por melhores condições de vida e

de serviço para o profissional das armas, e em especial, aos oficiais, a quem em geral se

atribuía maior importância. Nessa direção, o ministro Junqueira expressava, em 1872, que:

47 João José de Oliveira Junqueira. (1872), Op. Cit., pp: 9. 48 Visconde do Rio Branco. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1871, pp: 3. 49 Grifo nosso. João José de Oliveira Junqueira (1872), Op. Cit., pp: 5.

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25

“Um soldado se faz em seis meses, um oficial de confiança, conhecedor dos deveres de

todos os militares nas suas diversas funções, um oficial capaz de auxiliar um general em

chefe e de cooperar para o bom êxito de grandes planos estratégicos, só se habilita depois

de sérios estudos na prática em frente ao inimigo”50. Portanto, é possível acreditar que as

medidas propostas pelo grupo dos tarimbeiros tinham como objetivo central moralizar a

corporação frente à sociedade brasileira e estrangeira, especialmente a partir da

dignificação da carreira militar, até porque, como se dizia à época, a oficialidade brasileira

formava o “espírito” das Forças Armadas51.

Implicações da política partidária:

Mesmo que as reformas obtidas pelos oficiais tarimbeiros não tenham, em muitos

casos, atingido os resultados esperados, é inegável que elas promoveram uma melhoria

relativa dentro da corporação militar, servindo, ao mesmo tempo, para projetar a Força

Armada como uma instituição relevante em meio ao cenário político e social brasileiro.

Até a eclosão da Guerra do Paraguai, a corporação praticamente não tinha expressão junto

ao governo e por isso mesmo dificilmente conseguia fazer com que este atendesse aos seus

interesses organizacionais. Como já procuramos demonstrar anteriormente, os

conservadores foram os primeiros a sofrear as demandas daquela instituição, aliando-se a

setores da oficialidade tarimbeira com o objetivo de fortalecer o Exército e a Marinha,

visto que estes eram considerados sustentáculos importantes para a manutenção do regime,

da unidade nacional e, principalmente, do governo centralizado. É possível acreditar que a

“aliança” existente entre tarimbeiros e conservadores tenha trazido prestígio para ambos,

pois ao mesmo tempo em que foi utilizada para modernizar e projetar socialmente as

Forças Armadas, também resultou no fato – coincidente ou não – de que os governos

conservadores pareciam ter se tornado os únicos capazes de vencer campanhas internas ou

externas ao país. Este é o caso, por exemplo, das Revoltas Regenciais, que foram

sufocadas sob a égide conservadora, a campanha contra o argentino Rosas e,

principalmente, a Guerra do Paraguai, que só foi concluída após a queda do Gabinete

Zacarias, e da emergência política dos conservadores.

Provavelmente em função disso, a partir dos anos 1870 se observa que muitos

liberais, militares ou não, passaram a se envolver mais com as demandas das Forças

Armadas. Isto fica particularmente evidente por ocasião do aumento dos soldos, quando o

50 João José de Oliveira Junqueira (1872), Op. Cit., pp: 18. 51 A expressão é de João José de Oliveira Junqueira, ministro da guerra em 1872.

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governo propôs um projeto, segundo o qual os aumentos estavam previstos para depois

que fossem aprovadas outras reformas. O objetivo neste caso era adiar um pouco os gastos

que viriam de tais aumentos, o que foi extremamente censurado pelos liberais, que

alegavam, por volta de 1873, que o governo requeria “tantas reformas, que realmente, se

tivessem de preceder a medida, ou as remeteria para as kalendas gregas, ou por demais se

teria de demorar a satisfação de urgentes necessidades, com a relevância de dívida de

gratidão e em todo caso ato de incontestável justiça”52. Em resposta, dizia Silveira da

Motta naquela ocasião: “Pelo menos, tempo houve em nosso país, e era o tempo áureo da

chamada oposição liberal; brilhava então verdadeiro patriotismo, e o zelo fiscal era levado

ao último apuro. Então tudo quanto fosse aumento de despesa era objeto de grave

ponderação e quase sempre de gravíssima impugnação por parte da oposição, e muito

principalmente no sentido de avantajar a tropa, ou de terra ou de mar, quase sempre

considerada e vista com maus olhos (...) esses que mais primavam pelo seu liberalismo

eram os mais extremos impugnadores em todos os orçamentos e verbas de despesa

relativas ao militar (...) Agora é a oposição que excita, que toma a dianteira, que se esforça

por ter a iniciativa de proporcionar vantagens ao exército ou à armada”53. Como se

observa através desta afirmação do senador Motta, fica bastante evidente que nesta época

os liberais começaram a defender os interesses da corporação a fim de ganhar

popularidade dentro dela, e também para diminuir a influência que os conservadores

haviam conquistado dentro das Forças Armadas.

Essa tentativa de minorar o papel dos conservadores, e mesmo de criticar o tipo de

enfoque utilizado por eles na condução do processo de modernização das Forças Armadas

fica igualmente evidente quando analisamos algumas das primeiras discussões feitas em

torno do projeto de lei relativo à promoção dos oficiais da Armada, que havia sido

proposto por Cotegipe e pelo ministro da marinha Duarte de Azevedo, em 1871. Ambos

defendiam o projeto como uma forma de “dotar com uma boa lei de promoções a marinha

de guerra, que está desprovida deste benefício, quando o exército já goza dele; trata-se de

melhorar a carreira e a sorte daqueles que derramaram seu precioso sangue na terra

inimiga em prol da dignidade nacional; trata-se de honrar a corporação (...) Com esta

classe de leais servidores (...) acredito, senhores, que não serão demasiados os favores que

lhes fizerem os representantes da nação”54. Em resposta, declarava Zacarias: “Em uma lei

52 Fala do Sr. Visconde de Nitherohy. 22 de Janeiro de 1873. Anais do Parlamento. 1873, Livro 1, pp: 123 53 Fala do Sr. Silveira da Motta. 22 de Janeiro de 1873. Anais do Parlamento. 1873, Livro 1, pp: 124. 54 Fala do Sr. Barão de Cotegipe. 06 de Junho de 1871. Anais do Parlamento. 1871, Livro 2, pp: 28.

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27

orgânica não se fazem favores; não é disso que se trata, mas de bem avaliar serviços e

assegurar que, conforme esses serviços, sejam promovidos aqueles oficiais que

efetivamente tiverem direito de ser (...) Toda paixão deve ser arredada do terreno da

discussão tão árida, e ao mesmo tempo tão séria, como é uma lei de promoções”55. Neste

sentido, é possível acreditar que os liberais fossem completamente avessos à idéia de que

o Estado estava fazendo “favores” às Forças Armadas, porque isso tornava a corporação

mais dependente do governo e, desta forma, mais suscetível a ser utilizada em benefício da

centralização monárquica.

O que se observa, portanto, é que ambos os partidos viam a organização militar

como uma força poderosa, que poderia vir a ser utilizada tanto a favor, como contra a sua

plataforma política. Os conservadores foram os primeiros a sofrear os interesses daquela

instituição, visando usá-la em benefício da centralização monárquica; mas ao longo dos

anos 1870, como era natural, a corporação militar foi se tornando mais complexa, e assim,

mais difícil de ser controlada. Cabe aqui lembrar que, pelo menos desde o período

regencial, vigorava a concepção de que as instituições militares deveriam manter-se

subordinadas às instituições civis, e não o contrário. Apesar disso, observa-se que um

certo receio de que o elemento militar se voltasse contra os poderes civis foi, em maior ou

menor grau, uma preocupação constante dos políticos do Império. Em torno dos anos

1870, esta desconfiança em relação aos militares foi novamente se agravando, e começou

a minar o diálogo existente entre a corporação e o governo imperial, fato que fica muito

claro nesta discussão, iniciada por Barão de Cotegipe em janeiro de 1873: “Os honrados

ministros advogam a causa de uma classe numerosa e preponderante no Estado, e

acrescentarei mesmo temível...”56. Em resposta, interrompeu-o Duque de Caxias, dizendo:

“Temível para os inimigos da pátria”57. Na seqüência, Cotegipe acrescentou: “V. Ex. com

este aparte ainda vai tornar-me ainda mais odioso. Peço que me deixe completar o meu

raciocínio. Temível, digo eu, porque não está na mesma posição que qualquer outro

cidadão, porque é de seu bom ou mau procedimento que principalmente deriva a

segurança ou perturbação da ordem pública. Eu, senhores, gosto muito de discutir com

quem não tem espada; com as espadas não sei discutir...”58.

55 Fala do Sr. Zacarias. 06 de Junho de 1871. Anais do Parlamento. 1871, Livro 2, pp: 28. 56 Fala do Sr. Barão de Cotegipe. 24 de Janeiro de 1873. Anais do Parlamento. 1873, Livro 1, pp: 147. 57 Fala do Sr. Duque de Caxias. 24 de Janeiro de 1873. Anais do Parlamento. 1873, Livro 1, pp: 147. 58 Fala do Sr. Barão de Cotegipe. 24 de Janeiro de 1873. Anais do Parlamento. 1873, Livro 1, pp: 147.

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28

Acreditamos que esta discussão é sintomática do prelúdio da dissolução da

“aliança” existente entre conservadores e tarimbeiros que havia sido crucial para a

evolução das Forças Armadas, mas que, a partir da segunda metade da década de 1870, já

começava a desnudar algumas das suas limitações. Enquanto os oficiais tarimbeiros se

resignaram em sua postura tradicional dentro da política parlamentar – muito embora esta

já não fosse suficiente para atender as demandas da organização – as novas gerações de

oficiais científicos, principalmente no âmbito das tropas de terra, começariam a adotar

outras estratégias de luta, travando novas alianças e manifestando um comportamento

político completamente diferente daquele expresso pelo grupo dos tarimbeiros.

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Capítulo III: Esgotamento do projeto e conflito de gerações no interior das

Forças Armadas

“Da instabilidade dos ministérios resulta que as idéias mais salutares, os planos e melhoramentos mais profícuos, raramente são incorporados em atos por aqueles que os concebem, e as mais das vezes se perdem, ou flutuam incertos na dependência das vicissitudes da política e das opiniões que elas fazem subir ao poder”. Affonso Celso de Assis Figueiredo. Ministro da Marinha. 1867.

Tarimbeiros e subalternos

Um problema constantemente enfrentado pelos oficiais tarimbeiros em expandir o

seu projeto modernizador no interior da corporação foi, desde cedo, a ausência de

voluntários para preencher as fileiras da marinha e do exército. A maioria deles atribuía

esta dificuldade à “repugnância” da população para com o serviço militar e, além disso, à

facilidade de se obter os meios de subsistência num país como o Brasil. Era justamente

essa a opinião de Visconde do Rio Branco, que em 1872, dizia que há “em geral, vós o

conheceis, repugnância para o serviço das armas, e de outro lado a facilidade de

adquirirem-se os meios de subsistência obsta a que se aliste o número de indivíduos

indispensáveis para o completo da força decretada”59. O mesmo pensava Junqueira,

quando ministro da guerra em 1874: “Em um país novo e rico, como o nosso, é difícil

achar voluntários para a profissão das armas (...) pois que, bem que nobre e distinta essa

classe e hoje melhor remunerada, contudo não oferece o incentivo da atividade industrial,

que atrai a tantos jovens para se ocuparem de misteres que lhes possam trazer

independência e muitas vezes a riqueza”60. Neste período a obtenção de voluntários era

uma questão profundamente importante para a corporação militar, pois ela vinha, desde a

época regencial, passando por um processo de nacionalização e de profissionalização das

tropas. Neste sentido, observa-se que o uso de mercenários dentro das Forças Armadas foi

sendo encarado como um problema que tinha que ser eliminado, o que seria feito através

da substituição destes engajados por soldados e marinheiros nacionais.

Em 1864, por exemplo, foi apresentado ao Parlamento um projeto através do qual

seriam abolidos os castigos corporais apenas entre os engajados, o que provocou uma

resposta furiosa do Visconde de Boa Vista: “os engajados são em muito pequeno número,

e quando assim não fosse, não é certamente esta a classe para que deve haver mais

comiseração; porquanto, engajando-se sabem a que vem fazer e a que sujeitam-se, e por

59 Visconde do Rio Branco (1872). Op. Cit., pp: 3. 60 João José de Oliveira Junqueira (1874), pp: 5.

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via de regra são homens sem meios de vida, e nesta terra só não se têm meios para

sustentar a si e a sua família quem é vadio; ao passo que quem sabe trabalhar, não

abandona seus trabalhos e sua família pelas fadigas do exército (...) Eu, portanto, hei de

votar pela supressão do artigo, já que não é possível por ora fazer adotar a minha idéia da

completa supressão da pancada”61. Enquanto no Exército a tendência foi a de se evitar o

contrato de estrangeiros, no âmbito da Marinha, os engajados eram ainda muito

necessários, sobretudo para funções que exigiam conhecimentos específicos, como a de

maquinista. Neste caso, os ministros da marinha procuravam fazer com que o governo

concedesse cartas de nacionalização aos estrangeiros, como evidencia a declaração

externada em 1865 pelo ministro Francisco Xavier Pinto e Lima: a “carência de nacionais

habilitados com os conhecimentos profissionais requeridos para o pessoal deste corpo, e as

dificuldades e embaraços com que lutam para obter naturalização, pelo processo ordinário,

alguns dos estrangeiros já alistados na nossa armada na qualidade de extranumerários, tem

até hoje impedido a sua definitiva organização (...) peço-vos que autorizeis o governo a

conceder cartas de nacionalização, independentemente daquelas formalidades, aos que,

achando-se no caso acima figurado, a requererem com o fim de alistar-se nos corpos de

maquinistas e oficiais marinheiros”62. Por outro lado, é também possível crer que esta

demanda pela nacionalização dos estrangeiros ligados à marinha se desse em função das

necessidades da guerra.

Os tarimbeiros consideravam que um outro grande problema da corporação militar

era “a deficiência de pessoal idôneo”, sobretudo em função do recrutamento que, como já

explicamos anteriormente, muitas vezes trazia para as fileiras militares réus de polícia, e

aqueles considerados como a escória da sociedade. Esta era a impressão de muitos

militares e políticos ligados a este grupo, como explicou, em 1872, o Visconde do Rio

Branco: “O recrutamento tem salvado da ociosidade e suas perigosas tendências a muitos

indivíduos que, vivendo inutilmente para a sociedade, encontram nas instituições militares

pronto corretivo às suas faltas, e debaixo de severa vigilância reformam os seus hábitos, ao

passo que recebem instrução e preparam-se para serem melhores cidadãos”63. Os reflexos

do recrutamento forçado, naturalmente se faziam sentir no comportamento dos soldados e

dos marinheiros, e muitos acreditavam que a solução para a disciplinarização das tropas

estava no recrudescimento dos castigos corporais e de outras penalidades. Este tipo de

61 Fala do Sr. Visconde da Boa Vista. 20 de abril de 1864. Anais do Parlamento, 1864, Livro 1. pp: 123, 124. 62 Francisco Xavier Pinto e Lima (1865), Op. Cit., pp: 7. 63 Visconde do Rio Branco (1872), Op. Cit., pp: 4.

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31

concepção era também defendida pelo Barão de Cotegipe, em 1870: “a disciplina dos

imperiais marinheiros, em geral, não é boa; porque repetidos são os castigos corporais no

quartel e nos navios, por falta de subordinação, por esquecimento dos deveres, e por

imoralidade dos costumes (...) Seja como for, quem faz os soldados e os marinheiros são

seus superiores; envidem eles todos os esforços legítimos para discipliná-los, que não lhes

faltará apoio da administração”64. A mesma idéia está presente, por exemplo, numa

afirmação de Francisco Xavier Pinto Lima, que, em 1865, estava “convencido de que

semelhante fato [freqüência das deserções] é principalmente devido à ineficácia da pena

cominada pela legislação em vigor (...) a punição aos que desertarem pela terceira, quarta,

e mais vezes é sempre a mesma, sem agravação para as reincidências, isto é: um ano de

prisão a bordo dos navios de guerra, sem vencimento de soldo, e percebendo apenas ração

e fardamento (...) Quem conhece os hábitos da marinhagem brasileira (...) facilmente

compreenderá que o temor dessa pena jamais será um freio às deserções”65.

Outros ministros vinculados ao grupo dos tarimbeiros, entretanto, pareciam

compreender melhor a situação dos membros mais inferiores da corporação; este é o caso,

por exemplo, de Affonso Celso de Assis Figueiredo, que procurava explicar, por volta de

1868, o motivo das constantes deserções entre os marinheiros. “Supondo que um desses

míseros desvalidos da fortuna e da proteção, que são arrancados em uma lavoura de

recrutas, deixando mulher e filhos, a mãe velha e doente, de quem é o único arrimo, o pai

entrevado sem poder ganhar o alimento, eis um homem com isenções legais. Mas aqui,

centenas de léguas distantes, sem amigos, sem recursos, sem poder provar o seu direito,

não se lhe podendo dar crédito à palavra, assenta a praça e segue o destino que lhe dão.

Como fica aquela família? (...) Como serve aquele homem? Na primeira ocasião deserta: é

preso e castigado. Deserta segunda, terceira, décima vez (...) Tal é a sorte que podem estar

sujeitas as tripulações dos nossos navios de guerra”66. Este tipo de sensibilidade diante dos

problemas enfrentados pelos membros inferiores da instituição militar, no entanto, era

algo bastante raro de se ver entre os próprios ministros, e é provável que também o fosse

entre os oficiais que estavam no comando das tropas de terra e, especialmente, nas de mar,

aonde os castigos corporais só foram substituídos por penas de reclusão após o período

imperial. Desta forma, vemos que a maioria dos tarimbeiros atribuía o mau

comportamento dos soldados e marinheiros, à sua natureza ignara, desconsiderando que o

64 Barão de Cotegipe (1870), Op. Cit., pp: 13. 65 Francisco Xavier Pinto e Lima (1865), Op. Cit., pp: 8. 66 Affonso Celso de Assis Figueiredo (1868), Op. Cit., pp: 2-3.

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motivo para aquela resistência provinha do fato de que ao serem forçados a entrar para as

Forças Armadas, estas pessoas deixavam para trás a sua liberdade, a sua terra, o seu

trabalho e os seus familiares.

Como assegurava o ministro Junqueira, em 1872, a ausência de gente idônea se

relacionava com o problema do recrutamento, sendo este, “um dos defeitos mais sensíveis

da nossa organização militar. Não se obtém facilmente os contingentes necessários para

elevar o exército ao número fixado na lei, e nem se o pode fazer, pelo atual sistema de

apresentação voluntária, e de recrutamento tal qual ele está estabelecido. Poucos são os

indivíduos, que, em tempo de paz, se oferecem para seguir espontaneamente o nobre

serviço das armas, como a longa experiência de mais de quarenta anos nos têm revelado.

Quanto ao recrutamento forçado, penso que já não há no país duas opiniões diferentes.

Julga-se igualmente que como está organizado, é um sistema vicioso, vexatório, desigual,

e insuficiente para preencher os claros nas fileiras do exército”67. Como temos procurado

demonstrar, tanto no Exército, como na Armada, considerava-se que o recrutamento

forçado trazia gente pouco idônea para o serviço militar, o que era um empecilho para a

expansão da instrução e da disciplina e, dessa forma, representava um sério entrave para a

difusão do projeto modernizador dos tarimbeiros. Porém, este problema não foi tratado da

mesma forma nas duas instituições e, talvez, as diferentes alternativas propostas pelos dois

ministérios podem ter sido uma das principais causas do distanciamento que foi se

operando entre o Exército e a Marinha no último quartel do século XIX.

O distanciamento entre a Marinha e o Exército

Neste sentido, é possível observar que no âmbito do Exército muitos dos ministros

vinculados ao grupo dos tarimbeiros procuraram superar o problema da ausência de

voluntários e, conseqüentemente, de “gente idônea”, através da “dignificação da carreira

militar”, ou seja, buscando melhores condições de vida para os soldados. Como

explicamos anteriormente, embora muitas medidas nesse sentido fossem também feitas na

Marinha, elas ficavam diluídas em um ambiente que não possibilitava a ascensão

profissional dos marujos. No Exército, pelo contrário, a possibilidade de ingressar para a

oficialidade pode ter estimulado muitos soldados a permanecerem nas fileiras, bem como

a ingressarem nos depósitos de instrução, ou até mesmo no ensino secundário e superior.

Naturalmente as mudanças introduzidas com a lei de 1850 levaram um certo tempo para se

67 João José de Oliveira Junqueira (1872), Op. Cit., pp: 3.

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processar, porém, acreditamos que a consolidação de uma maior mobilidade no interior do

Exército realmente tenha incentivado a afluência de voluntários, abrindo caminho para

reformas de maior alcance, como por exemplo, a abolição dos castigos corporais, que foi

decretada juntamente com a instalação do recrutamento por sorteio, em 1874. Com estas

reformas, observa-se que ao término dos anos 1870 o problema da ausência de voluntários

foi diminuindo, o que colaborou para a profissionalização no Exército, como explicava o

Duque de Caxias em 1877: “Ainda uma vez tenho a satisfação de informar-vos do espírito

de ordem que anima o nosso Exército, o qual continua a dar provas de sua disciplina e

dedicação às Instituições do país (...) Completo o quadro do Exército, em conseqüência da

afluência de voluntários, e suspenso por este motivo o recrutamento forçado, que devia

continuar até tornar-se efetivo o primeiro sorteio (...) não será preciso por enquanto o

sorteio para o Exército, e sim talvez para preencher as vagas que houverem nos corpos da

Armada”68.

Como se pode ver pela frase acima, na Marinha ainda figurava o problema da

ausência de voluntários mesmo em 1877, fato que pode ter sido motivado tanto pela

ausência de mobilidade profissional, como também pela permanência dos castigos

corporais, que praticamente transformava os oficiais em “feitores” da marinhagem. A

própria permanência da chibata e da pranchada na Marinha se relaciona com a concepção

que a oficialidade tarimbeira alimentava com relação aos marinheiros, como se observa na

numa proposição feita pelo Barão de Cotegipe em 1870. Segundo ele, com o

desenvolvimento das Companhias de Aprendizes Marinheiros, as “tripulações ficariam

(...) compostas unicamente das praças deste corpo, e do batalhão naval, e adestradas nos

exercícios de sua profissão. Não se verá mais a bordo o elemento heterogêneo da

marinhagem, que constitui ainda hoje um terço das guarnições, e que dificilmente se

acomoda às regras de obediência a que não foi acostumada. Compostas as guarnições com

gente idônea será talvez possível realizar uma outra medida digna de toda a reflexão e

estudo, – a supressão dos castigos corporais – por ora justificados, porque entram na

organização delas homens que não podem ser governados somente por estímulos”69.

Portanto, observa-se que enquanto no Exército houve a tentativa de se melhorar as

condições de vida e de serviço a fim de promover a afluência de voluntários, na Armada

os marujos continuaram a ser tratados com extrema violência, o que aumentava

68 Duque de Caxias. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia de Paulo Hildebrant, 1877, pp: 4-5. 69 Barão de Cotegipe (1870), Op. Cit., pp: 11.

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34

consideravelmente sua resistência, que se traduzia em crimes de deserção, homicídios e

roubos, além de outros delitos comuns nas embarcações. Os militares vinculados ao

Ministério da Marinha acreditavam que a resistência ao recrutamento se dava em função

da repugnância da população brasileira em relação à vida do mar e, por isso, desde os anos

1840, começaram a esboçar um projeto através do qual pretendiam transformar os

pequenos pescadores em reserva naval para a marinha de guerra. É justamente este tipo de

concepção que apresentava o Barão de Cotegipe, que em 1869 declarava que a falta de

marinhagem parecia “um fato inexplicável quando se atende a que o Brasil possui um

imenso litoral habitado, e um sem número de portos, que servem de saída a vários rios

navegáveis. Mais incompreensível será ainda isso para quem vê na costa do Norte (...) os

nossos pescadores em frágeis jangadas pelo oceano, até perderem a terra de vista; ou em

esguias canoas, como na Bahia, lutarem em frescas brisas, e saírem para fora do porto,

equilibrando-se com o seu próprio peso para que não soçobrem! Esses mesmos homens

são os que (...) passam a maior parte do seu tempo embarcados nas garoupeiras (...)

adquirindo assim os hábitos da vida do mar, que constituem o perfeito marinheiro. Temos,

portanto, escola e homens do mar feitos; mas apesar disso falta-nos marinhagem!”70.

Porém, como demonstra Luiz Geraldo Silva, a tentativa de converter os pequenos

pescadores em reserva naval para a Armada, articulada ao projeto burguês de organização

de um mercado de trabalho no setor pesqueiro, resultou em um conflito dramático entre

duas visões de mundo antagônicas: por um lado, a da cultura marítima, marcada pelas

noções de isolamento, de autonomia da faina, de produção artesanal, aonde as festas e

cerimônias recebiam um lugar de destaque e, por outro, a cultura dos militares e

burgueses, marcada por uma noção acrítica de modernidade e uma concepção particular de

nacionalismo. Neste sentido, o predomínio da pequena pesca, e a clara resistência ao

recrutamento, foram tornando inviável o projeto de transformar os pescadores em reserva

naval para a marinha de guerra, o que certamente contribuiu para que a Armada

procurasse outras alternativas para superar o problema da afluência de voluntários71. Desta

forma, ao contrário do que ocorreu em meio às tropas de terra, na Marinha a tentativa de

se estimular os membros subalternos para que reformassem os seus hábitos,

transformando-se em indivíduos melhores para si mesmos e para a sociedade pode ter

70 Barão de Cotegipe (1869), Op. Cit., pp: 09. 71 SILVA, Luiz Geraldo. Pescadores, Militares e Burgueses: Legislação Pesqueira e Cultura Marítima no

Brasil. Recife: UFPE, Dissertação de Mestrado, 1991.

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35

sofrido um sério arrefecimento, fato que consagrou o distanciamento entre as duas

instituições.

A partir dos anos 1870, muitos tarimbeiros ligados à Armada começaram a

defender insistentemente a criação das chamadas Companhias de Aprendizes Marinheiros

em todas as Províncias, pois elas, como escrevia Cotegipe em 1869, “indicam que podem

ser o viveiro fecundo de guarnições morigeradas e aptas para os nossos navios. É ele [o

asilo] um verdadeiro estabelecimento filantrópico, que rouba ao vício e ao crime centenas

de criaturas, para transformá-las em úteis cidadãos e dignos servidores do Estado (...)

Assim, nem ficamos dependendo do serviço voluntário, improfícuo, como já vimos, nem

precisamos recorrer ao meio arbitrário e violento do recrutamento. É suficiente que as

autoridades locais se compenetrem do pensamento filantrópico do governo, e o auxiliem,

concorrendo para que os desvalidos e os órfãos menores que se encontram em grande

número na ociosidade nas vilas e pequenas povoações, vão receber a educação e adquirir

uma profissão honrosa nas companhias”72. Acreditamos que ao se concentrarem no

recolhimento de órfãos para servir nas fileiras de imperiais marinheiros, ou do batalhão

naval, a maioria dos oficiais tarimbeiros vinculados à Armada deixou de tentar melhorar a

sorte daqueles que eram trazidos pelo recrutamento forçado. Além disso, a sua preferência

pelos órfãos, pode ser explicada pelo fato de que estes eram muito mais susceptíveis ao

fomento da ressocialização do que os pescadores adultos e dotados de uma visão particular

de mundo que habitavam o litoral brasileiro.

Isolamento e decadência do grupo dos tarimbeiros

No início dos anos 1880, o projeto da oficialidade tarimbeira começou a apresentar

o seu esgotamento, sobretudo em função da ausência de um apoio de base e de uma nova

liderança que desse continuidade à sua consecução. Vários problemas começaram a

aparecer neste sentido, e o primeiro deles era o fato de seus defensores estarem velhos

demais, sendo que muitos dos seus líderes mais prestigiados faleceram ainda no começo

desta década, como é o caso do Marquês do Herval (mais conhecido como Osório), ou do

próprio Duque de Caxias. Outro aspecto que deve ser ressaltado neste sentido, é que ao

longo da década de 1870 e início dos anos 1880, as clivagens internas ao grupo dos

tarimbeiros aumentaram sensivelmente, não somente em função do crescente assedio do

Partido Liberal, que rompeu com a hegemonia dos conservadores, mas também porque o

72 Barão de Cotegipe (1869), pp: 11.

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distanciamento que se operava entre a Marinha e o Exército havia sido um desdobramento

inconveniente da maneira como o projeto modernizador foi colocado em prática por

militares e políticos simpáticos à corporação. Em 1871, por ocasião de uma das primeiras

discussões em torno do projeto de lei de promoções da Armada, já dizia o senador

Paranaguá: “As instituições que regem a marinha e o exército, ao menos no seu espírito e

nas suas bases fundamentais devem guardar certa harmonia”73 entre si. Apesar dos alertas

dos liberais, a Marinha recebeu uma lei de promoções que, como se dizia à época, deu ao

“governo um arbítrio desmesurado, entregando-lhe de pés e mãos atados a distinta

corporação dos oficiais da armada”, sendo considerada um “presente funesto, fatal ao

governo, fatal à marinha de guerra”74. Como procuramos demonstrar anteriormente, na

medida em que a lei de promoções excluía a ascensão dos recrutas, ela também acabou

impedindo que a Marinha acompanhasse o Exército em suas reformas mais radicais, o que

também promoveu uma cisão entre os oficiais tarimbeiros ligados a cada uma destas

instituições.

Porém, talvez um dos maiores problemas enfrentados por este grupo tenha sido a

ausência de uma identidade entre eles e as novas gerações de oficiais que ingressaram no

Exército após 1850, e assistiram ao processo de profissionalização, ampliação da educação

e fomento de uma ideologia meritocrática no interior da corporação militar. Como assinala

Sergio Buarque de Holanda, na primeira metade do século XIX, “preenchiam os altos

postos militares, de ordinário, elementos relacionados, pela origem, ou pelos laços de

família, às classes dirigentes, e isso mesmo deveria facilitar o seu rápido acesso: o caso de

Caxias, major antes dos 30 anos, general antes dos 40, serviria para exemplificar tal

situação (...) Com o tempo, no entanto, esse tipo de oficiais vai desaparecer”75. Portanto,

como asseguram Schultz e Holanda, com o processo de burocratização e

profissionalização das Forças Armadas, a maior parte da oficialidade passou a ser

recrutada nos setores mais populares e é interessante perceber que muitos dos militares

que aderiram ao movimento republicano foram justamente aqueles que haviam ingressado

para a Academia Militar durante os anos de 1850-6076. Para esta nova geração de

militares, as promoções se davam muito mais lentamente, e eram acompanhadas por

critérios rigorosos de idade e de instrução (estamos nos referindo sobretudo aos cursos

científicos), o que certamente contribuiu para que eles desprezassem a geração dos oficiais

73 Fala do Sr. Paranaguá. 6 de junho de 1871. Anais do Parlamento, 1871, Livro 2, pp: 18. 74 Idem, pp: 18. 75 HOLANDA, Op. Cit., pp: 307. 76 HOLANDA, Op. Cit., pp: 307.

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tarimbeiros, que haviam galgado as mais altas patentes em função da sua influência

política, e não do mérito pessoal.

Além disso, as reformas produzidas no Exército, ao longo dos anos 1850, criaram

uma geração de oficiais completamente diversa daquela que havia lhe antecedido, pois

além de serem oriundos de setores sociais marcadamente populares, eles também tiveram

a possibilidade de usufruir uma educação completa e rigorosa, vantagem que até então era

uma exclusividade da elite local. Neste sentido é preciso destacar a preponderância do

estudo, como um meio de penetração das correntes de pensamento presentes na Europa,

como foi o caso do próprio positivismo. Foi certamente a educação gratuita oferecida pelo

Exército que instrumentalizou estes jovens militares na formação de uma consciência

crítica a respeito da sua realidade, sobretudo na medida em que eles acreditavam que o

Império vinha, desde finais da Guerra do Paraguai, ferindo o orgulho da sua corporação.

Como afirma Holanda, estes militares se “viam no pórtico de uma carreira de deserdados,

em um país desgovernado”77. Desde esta época, observa-se que em meio às tropas houve a

generalização de um ressentimento com relação à monarquia parlamentar, representada

pelos “legistas” ou “casacas”, cuja morosidade na discussão das reformas era encarada

como um elemento de grande atraso dentro do país. Este ressentimento não passou

despercebido pelos tarimbeiros, como denota uma declaração de João José de Oliveira

Junqueira de 1872: a questão dos soldos, que dependia de aprovação do Parlamento,

“pareceu-me digna de ser tratada em separado. Tão graves interesses acham-se ligados, tal

influência exerce atualmente na organização militar que chamo toda a vossa atenção afim

de resolvê-la com a possível brevidade (...) A classe militar achou-se, cumpre confessá-lo,

num pé de desigualdade na comunhão social. Tão mal retribuída não pode marchar a par

das que iam sendo favorecidas à medida que se alteravam as condições de vida, e que por

isso mantinham a sua importância. Resultaram daí sentimentos prejudiciais, que atuavam e

atuam ainda para dividir a classe militar em dois grupos, o dos descontentes e dos

resignados”78.

Apesar de conhecerem o descontentamento que grassava dentro do Exército, é

muito provável que os oficiais tarimbeiros tenham subestimado o caráter potencialmente

explosivo da insatisfação dos bacharéis de farda, superestimando, ao mesmo tempo, a sua

fidelidade ao governo monárquico, como se observa uma expressão de Junqueira em

1872: “Basta lançar as vistas para uma tabela de vencimentos militares, para ter idéia de

77 Idem, pp: 307. 78 João José de Oliveira Junqueira (1872), Op. Cit., pp: 8.

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quão justas são, não as murmurações do exército, que não as faz, porque contra isto se

opõe seu espírito de disciplina, mas o anelo e a ansiedade por um aumento razoável nos

seus vencimentos”79. A mesma descrença em relação a um comportamento antagônico ao

governo por parte desta jovem oficialidade, se observa numa discussão travada em 1873,

entre os senadores Barão de Cotegipe e Duque de Caxias. O primeiro dizia que “em nosso

sistema de governo, felizmente assim tem sucedido até hoje: o elemento civil tem sido

sempre o preponderante, e a classe militar tem cumprido restritamente o seu dever”.

Enquanto isso foi interrompido por Caxias, que prometia que ela haveria “de cumprir

sempre”80 o seu dever. Assim, vemos que no final dos anos 1870 os oficiais tarimbeiros,

que lutaram por praticamente toda a sua vida adulta pela manutenção da monarquia

parlamentar e pelo fortalecimento das Forças Armadas, haviam se tornado um grupo

enfraquecido, sem apoio dos políticos civis que, como vimos, tradicionalmente

alimentavam suspeitas em relação à corporação, e sem apoio dos militares mais jovens,

que rejeitavam o engajamento dos tarimbeiros com a política imperial. A partir daí,

enquanto a velha oficialidade tarimbeira se resignava diante do impasse entre seus

interesses políticos e organizacionais, a nova geração de bacharéis de farda começou a se

opor abertamente ao governo, como por exemplo, através da inserção no movimento

abolicionista, ou mesmo no republicano, e da adoção de técnicas mais radicais de pressão

política, como o uso da imprensa engajada, e a difusão das suas idéias junto aos membros

mais subalternos da corporação. Ainda nesta direção, observa-se que eles passaram a

rejeitar completamente as lideranças militares do passado, construindo um discurso que de

certa forma permanece até os dias de hoje, através do qual os tarimbeiros são

representados como elementos reacionários e atrasados. E o aspecto mais irônico deste

processo, é que se não fossem as reformas modernizadoras implantadas pelos tarimbeiros,

talvez os bacharéis de farda jamais tivessem existido.

79 Grifo nosso. Idem, pp: 9. 80 Grifo nosso. Fala do Sr. Duque de Caxias. 24 de Janeiro de 1873, Anais do Parlamento, Livro 3, pp: 147.

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Conclusão

Conforme procuramos explicitar anteriormente, o presente trabalho teve como

objetivo central a rediscussão do papel da oficialidade tarimbeira e dos seus aliados

políticos no processo de modernização das Forças Armadas do Brasil durante o período

imperial. Os resultados da nossa pesquisa indicaram que, longe de se constituírem em um

grupo refratário à profissionalização da sua corporação, os militares tarimbeiros, assim

como posteriormente o fariam os bacharéis de farda, estiveram freqüentemente lutando

para aperfeiçoar a própria instituição e, neste caso, um dos principais elementos que

diferenciavam uma geração da outra, foi justamente o timbre da modernização proposta

em cada um destes períodos. Como evidencia a historiografia, os militares tarimbeiros se

originavam de setores ligados à elite política, o que não só lhes possibilitava uma rápida

ascensão no interior das Forças Armadas, como também lhes garantia a oportunidade de

ocuparem cargos importantes, como ministérios ou senatorias. Porém, ao contrário do que

se têm sugerido, não cremos que isso resultasse em desinteresse com relação aos

problemas da corporação militar, até porque, em um ambiente político que preconizava a

subordinação do elemento militar ao civil, a inserção político-partidária parece ter sido

uma das únicas estratégias de que estes militares poderiam dispor para levar o governo a

atender os seus interesses organizacionais.

Foram justamente os políticos conservadores, interessados em usar as Forças

Armadas para garantir a centralização monárquica, os primeiros a estabelecer uma aliança

tácita com os militares tarimbeiros. Neste primeiro momento, observa-se que os liberais

eram os maiores impugnadores de tudo o que pudesse resultar em gastos com os militares,

o que provavelmente retardou a implantação de várias reformas que já vinham sendo

apresentadas pelos tarimbeiros desde pelo menos a década de 1850. Apenas após 1864,

com a invasão da Província do Mato Grosso, que este grupo teve uma oportunidade maior

de ser ouvido pelos representantes dos poderes políticos do Império. Ao mesmo tempo em

que eles ressaltavam o caráter vexatório das atrocidades cometidas pelos paraguaios na

Província invadida, também davam ênfase ao heroísmo dos soldados brasileiros, que

derramavam seu sangue em território inimigo, para defender a honra e os interesses

nacionais. É provável que estes discursos realmente tenham sensibilizado um pouco os

políticos civis, e aplainado o tradicional temor que se tinha em fortalecer demasiadamente

a corporação militar, pois logo após o término da Guerra do Paraguai, observa-se uma

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aceleração na promoção de reformas visando a profissionalização das Forças Armadas.

Em geral, estas reformas voltaram-se para dois objetivos: primeiro, para aumentar a

afluência de voluntários para as tropas e, segundo, para melhorar as condições de vida e de

serviço dos oficiais, considerados como o “espírito da corporação”.

Vários aspectos, no entanto, significaram um entrave enorme ao projeto

modernizador dos tarimbeiros. Talvez o maior deles tenha sido a sua incapacidade de

romper com os preconceitos que os separavam dos membros subalternos da corporação, o

que ocorria com uma intensidade ainda maior no âmbito da Marinha do que nas tropas de

terra, aonde a maior mobilidade profissional permitia que muitos recrutas permanecessem

nas fileiras militares, buscando certos níveis de instrução o que, de fato, podia significar a

obtenção de patentes mais elevadas. Por sua vez, na Armada a resistência oferecida pelos

pescadores que eram recrutados para a marinha de guerra não só impossibilitou a

formação de uma reserva naval junto à população litorânea, como também alimentou a

crença de que o recrutamento trazia gente ignara, e que a melhor solução para a obtenção

de recrutas era através da criação de várias Companhias de Aprendizes, através das quais,

os órfãos eram abrigados e educados para servirem como marinheiros. A diferença das

abordagens com relação ao problema do recrutamento, e da afluência de voluntários,

acabou gerando um grande distanciamento entre a Marinha e o Exército e, portanto,

significou uma das primeiras clivagens no interior do grupo dos tarimbeiros.

No final dos anos 1870 e início dos anos 1880, o grupo dos tarimbeiros entrava em

um período de franca decadência. Ao se iniciar a década de 1880, faleciam muitos dos

seus líderes de maior prestígio, situação que era agravada pela ausência de um grupo novo

de oficiais que estivessem dispostos a dar continuidade àquele projeto de modernização

aristocrática e conservadora. Além disso, provavelmente não sem motivos, neste período

houve um recrudescimento dos tradicionais receios alimentados em relação à corporação

militar, e muitos dos políticos civis que anteriormente haviam defendido abertamente seus

interesses, passavam agora a denotar uma certa recalcitrância em relação à antiga aliança.

Portanto, observa-se que já no início dos anos 1880, o projeto de modernização esboçado e

conduzido pelos tarimbeiros chegava ao fim, juntamente com o seu grupo, que estava

completamente enfraquecido, dividido e isolado. No entanto, é preciso se considerar que,

mesmo que de forma limitada, estes oficiais tiveram um papel profundamente importante

no processo de profissionalização das Forças Armadas, além do que, foram eles quem

primeiramente projetaram a corporação dentro do cenário político e social brasileiro.

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Fontes e Referências Bibliográficas:

Fontes utilizadas: Seção do dia 20 de abril de 1864. Anais do Parlamento, 1864, Livro 1. Seção do dia 08 de junho de 1869. Anais do Parlamento, 1869, Livro 2. Seção do dia 06 de Junho de 1871. Anais do Parlamento, 1871, Livro 2. Seção do dia 18 de julho de 1871. Anais do Parlamento, 1871, Livro 3. Seção do dia 22 de janeiro de 1873. Anais do Parlamento, 1873, Livro 1. Seção do dia 24 de Janeiro de 1873. Anais do Parlamento, 1873, Livro 1. Affonso Celso de Assis Figueiredo. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1867. Affonso Celso de Assis Figueiredo. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1868. Barão de Cotegipe. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1869. Barão de Cotegipe. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia do Diário do Rio de Janeiro, 1870. Francisco Xavier Pinto Lima. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1865. Francisco de Paula da Silveira Lobo. Relatório (...) dos Negócios da Marinha. Rio de Janeiro: Tipografia Perseverança, 1866. Duque de Caxias. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia de Paulo Hildebrant, 1877. João José de Oliveira Junqueira. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1872. João José de Oliveira Junqueira. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1874. Visconde de Camamú, Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro, Tipografia Universal de Laemmert, 1865. Visconde do Rio Branco. Relatório (...) dos Negócios da Guerra. Rio de Janeiro: Tipografia Universal de Laemmert, 1871.

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