dos reis catÓlicos ao sÉculo xix. a polÍtica de...

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1 ANTECEDENTES DA PRESENÇA ESPANHOLA NO CONTINENTE. DOS REIS CATÓLICOS AO SÉCULO XIX. A POLÍTICA DE EXPANSÃO E DE CONTENÇÃO DA PIRATARIA. AS RELAÇÕES COM MARROCOS ATÉ À GUERRA DE 1859. No dia 19 de setembro de 1580, um cativo espanhol ficou livre após o pagamento do resgate efetuado pelos padres trinitários. Entrava na embarcação que o levaria a casa. Este cativo havia passado cinco anos privado de liberdade e na incerteza de saber qual o momento em que a sua vida ou a integridade do seu corpo, já antes ferido, chegariam ao fim. Era um dos mais de dois mil europeus que povoavam a cidade de Argel aguardando a liberdade ou a morte, com as mesmas penas e esperanças. Com o tempo, quando pôde finalmente dedicar-se ao exercício da sua arte, viria a ser um homem famoso e, nas suas obras, ver-se-iam as referências ao seu tempo na Argélia. Tratava-se de Miguel de Cervantes, mercenário em Itália, ferido em Lepanto e capturado na galé Sol, quando regressava de Nápoles, com quase trinta anos e acompanhado pelo seu irmão. O soldado Cervantes levava consigo cartas de D. João de Áustria e do duque de Sesa para o rei, recomendando-o para o comando de uma companhia. Isto fez com que o seu dono em Argel pensasse que Cervantes era uma pessoa de importância, tendo pedido por ele um preço inacessível para a família. Argel era uma cidade cosmopolita, cheia de pessoas de diversas raças e origens, capital da regência do império otomano e comparável a Roma em população, riqueza e vida, sem os teatros, os livreiros ou a imprensa da cidade italiana, embora mais hedonista e sensual, bem como com maior liberdade por não dispor de ordens religiosas ou instituições como a Inquisição, liberdade essa que não chegava aos milhares de cativos e escravos. Ali conviviam raças e religiões, numa sociedade hierarquizada em que cada um sabia até onde podia desejar chegar. Os cativos circulavam livremente pelas ruas da cidade e pelos seus arredores, praticavam os seus cultos e relacionavam-se entre si e com os argelinos ou os turcos. No entanto, não podiam deixar o seu lugar de residência e, caso não obedecessem, podiam morrer através das punições que lhes eram infligidas. Cervantes aproveitou a sua liberdade para deambular para tentar fugir várias vezes. Mas todas as fugas acabaram por falhar e, se não foi condenado à morte, foi

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1

ANTECEDENTES DA PRESENÇA ESPANHOLA NO CONTINENTE.

DOS REIS CATÓLICOS AO SÉCULO XIX.

A POLÍTICA DE EXPANSÃO E DE CONTENÇÃO DA PIRATARIA.

AS RELAÇÕES COM MARROCOS ATÉ À GUERRA DE 1859.

No dia 19 de setembro de 1580, um cativo espanhol ficou livre após o pagamento do

resgate efetuado pelos padres trinitários. Entrava na embarcação que o levaria a casa.

Este cativo havia passado cinco anos privado de liberdade e na incerteza de saber qual o

momento em que a sua vida ou a integridade do seu corpo, já antes ferido, chegariam ao

fim. Era um dos mais de dois mil europeus que povoavam a cidade de Argel

aguardando a liberdade ou a morte, com as mesmas penas e esperanças. Com o tempo,

quando pôde finalmente dedicar-se ao exercício da sua arte, viria a ser um homem

famoso e, nas suas obras, ver-se-iam as referências ao seu tempo na Argélia. Tratava-se

de Miguel de Cervantes, mercenário em Itália, ferido em Lepanto e capturado na galé

Sol, quando regressava de Nápoles, com quase trinta anos e acompanhado pelo seu

irmão. O soldado Cervantes levava consigo cartas de D. João de Áustria e do duque de

Sesa para o rei, recomendando-o para o comando de uma companhia. Isto fez com que o

seu dono em Argel pensasse que Cervantes era uma pessoa de importância, tendo

pedido por ele um preço inacessível para a família.

Argel era uma cidade cosmopolita, cheia de pessoas de diversas raças e origens,

capital da regência do império otomano e comparável a Roma em população, riqueza e

vida, sem os teatros, os livreiros ou a imprensa da cidade italiana, embora mais

hedonista e sensual, bem como com maior liberdade por não dispor de ordens religiosas

ou instituições como a Inquisição, liberdade essa que não chegava aos milhares de

cativos e escravos. Ali conviviam raças e religiões, numa sociedade hierarquizada em

que cada um sabia até onde podia desejar chegar. Os cativos circulavam livremente

pelas ruas da cidade e pelos seus arredores, praticavam os seus cultos e relacionavam-se

entre si e com os argelinos ou os turcos. No entanto, não podiam deixar o seu lugar de

residência e, caso não obedecessem, podiam morrer através das punições que lhes eram

infligidas. Cervantes aproveitou a sua liberdade para deambular para tentar fugir várias

vezes. Mas todas as fugas acabaram por falhar e, se não foi condenado à morte, foi

devido às cartas que trazia e que incentivaram a cobiça do seu dono, Dali Mami. Mais

de 25000 cativos enchiam a praça. A vida era dura e a traição, a submissão e alguns atos

cobardes e mesquinhos ajudavam a suportar os rigores e a obter alguns benefícios e

favores. Nem o próprio Cervantes escapou a estes comportamentos, mas permaneceu

fiel à sua fé e à sua pátria. Metade dos homens que povoavam Argel renunciou à fé

cristã, tornando-se, a partir desse momento, livres. Eram chamados renegados. Muitos

deles dedicavam-se a ser corsários e enriqueceram com a pirataria. Conseguiam uma

vida confortável numa cidade onde a origem não era importante, que facilitava as

oportunidades de prosperar e na qual se valorizava a riqueza acima de tudo. De facto,

toda a cidade vivia do dinheiro fácil das espoliações aos cativos, dos resgates, da

pilhagem, da venda de escravos aos turcos e do roubo.

Os berberes viam a pirataria como uma maneira de contra-arrestar a expulsão de

Castela e a perda do Reino de Granada, uma recompensa à sua maneira. Os habitantes

islâmicos consideravam a pirataria como uma jihad ou uma guerra santa marítima e

achavam que os europeus também a praticavam ao seu modo1. O mar Mediterrâneo,

tradicionalmente lugar de comércio, havia-se convertido num local inseguro, onde

piratas e corsários impediam a atividade dos comerciantes cristãos, que antes

praticavam um comércio com regras e respeitoso, e no qual as populações ribeirinhas

viviam com um medo constante dos ataques mouros. Era necessário que os monarcas

cristãos eliminassem esse foco de perigo que os magrebinos e os turcos representavam.

Uma das melhores formas de se oporem foi tomar posições estratégicas nas margens de

Tunes, da Argélia ou de Marrocos para, a partir daí, dificultarem a ação dos piratas e

castigarem oportunamente as cidades dos reinos africanos. Nessa época, cidades como

Tunes, Trípoli ou Argel eram autênticas cidades-estado cheias de esplendor, enquanto,

no interior dos reinos, abundava a pobreza e o atraso secular. Os espanhóis procuravam

controlar as cidades costeiras, o campo não lhes interessava porque quase não oferecia

nada de lucrativo. E, assim, surge a presença espanhola nas costas e nas cidades

africanas.

O inimigo berbere

Durante séculos, o inimigo dos reinos cristãos peninsulares foi o invasor

muçulmano. À medida que decorria a Reconquista e o território cristão se ia alargando,

os reis peninsulares viam como perigosa ou ameaçadora a relação política que existia

entre muçulmanos de ambas as margens do Estreito de Gibraltar. O impulso guerreiro

natural foi o de perseguir o inimigo para além do mar com o objetivo de conjurar novas

invasões, de tal forma que, como se atestava no testamento da rainha Isabel, a Católica,

se favorecia a expansão peninsular em África. Esta ideia, afastada do ideal da Hispânia

romana, cedo foi posta de parte por diversas circunstâncias, mas continuou viva a

política de combater o muçulmano, o mouro, o berbere ou o turco, no seu terreno, para

garantir a segurança interna. No entanto, havia uma outra forma de relação, a comercial,

aproveitada pela Coroa de Aragão para se ligar com outros povos separados pelo mar

Mediterrâneo.

As primeiras incursões em África foram as aragonesas e as portuguesas. O

comércio catalão e aragonês com os povos africanos era antigo e bem organizado.

Enquanto as relações foram pacíficas e satisfatórias, não foi necessário enviar milícias.

Alguns historiadores, como o francês Pierre Hubac ou o marroquino Abdallah Laroui,

pensam que a pirataria foi uma forma de os estados árabes fugirem à asfixia provocada

pela opressão dos reinos cristãos2. Até ao século XV, especificamente até à conquista de

Constantinopla pelos turcos (1453), predominaram as negociações pacíficas. Jaime I e

Jaime II haviam assinado tratados com Tunes e Bugia. Terminada a reconquista

aragonesa, na época de Jaime I, com a conquista de Maiorca (1228) e Valência (1238), e

pacificado o interior, os aragoneses e os catalães dedicaram-se à política externa.

Aragão, sob o reinado de D. Pedro III, havia ocupado a ilha de Yerba ou Los Gelves

(atualmente, Djerba) em Tunes, em 1285, numa expedição comandada por Roger de

Lauria, e manteve-a durante cinquenta anos. Tunes foi, de facto, uma consequência da

política italiana do rei, já que se considerava que Djerba era tributária de Sicília. As

conquistas perdiam-se com facilidade, já que se tratava de posições militares que, mais

ou menos bem protegidas, apenas podiam ser reforçadas a partir da distante península

ou a partir dos reinos italianos. Os custos de manutenção dos domínios e da fortaleza

que a pirataria turca ia adquirindo incentivaram o rei a abandoná-los e a continuar com

uma política de entendimento. A expansão do império otomano em auxílio dos reinos

magrebinos, forma que os argelinos arranjaram para se oporem à tutela espanhola, teve

como consequência a perda da importância das relações comerciais pacíficas com os

reinos da margem sul do Mediterrâneo, originando uma época de guerras e conflitos.

Castela começou a sua expansão africana depois da conquista das Canárias. Em

1476, Diego de Herrera fundou a fortaleza de Santa Cruz de Mar Pequeña, num lugar

indefinido e que, séculos mais tarde, foi tomado forçosamente como Sidi Ifni. Após a

conquista de Granada, os Reis Católicos empreenderam a expansão espanhola, que

inicialmente se desenvolveria em África, mas a descoberta da América mudou o

objetivo. Em 1497, o comendador Pedro de Estopiñán, um homem do duque de Medina

Sidonia, conquistou Melilha. Em 1505, completar-se-ia a ação com a conquista do porto

de Cazaza, a oeste da península de Três Forcas. Ambos os pontos eram

complementares, porque serviam de defesa às embarcações conforme os ventos

dominantes, já que um protegia contra o vento poente e o outro, contra o vento levante.

Estopiñán era tesoureiro da casa de Niebla e havia participado na conquista de Granada.

As rivalidades entre os reis de Fez e de Tremecém deixaram Melilha – chamada Rusadir

– arrasada e quase abandonada. No dia 17 de setembro de 1497, os espanhóis

desembarcaram sem oposição e dedicaram-se a fortalecer algumas das defesas

arruinadas da cidade com materiais levados de Espanha, para reconstruir, nos dias

seguintes, adarves e torres da muralha. As obras defensivas continuariam ano após ano,

sempre por necessidade vital e, em algumas ocasiões, como depois do terramoto de

1660, por imperativos extraordinários. Depois de se apoderarem de Melilha, os

espanhóis ficaram limitados aos estreitos muros da cidade e apenas podiam ser

abastecidos por mar quando os cabilenhos vizinhos os cercavam, o que aconteceu várias

vezes ao longo do século XVIII.

O codicilo do testamento da rainha Isabel, a Católica, reflete o desejo real de

combater os infieís em terras do norte africano; tomar posse dessas terras, prevenindo

novas tentativas dos muçulmanos para se apoderarem de Espanha; combater a pirataria

e controlar os avanços turcos no Mediterrâneo Ocidental. Como dissemos, a conquista

da América mudou o rumo do impulso hispânico, mas o cardeal Cisneros cumpriu

alguns dos desejos da sua rainha e ordenou a expedição do alcaide de Los Donceles,

Diego Fernández de Córdova, que, em 1505, conquistou Mers el Kebir (a que os

espanhóis chamavam Mazalquiviri). A conquista não foi fácil porque os defensores

estavam informados do ataque. Uma vez na posse da praça fortificada, os espanhóis

aperceberam-se de que a mesma estava isolada, carecia de água doce e as operações de

socorro deviam ser feitas por mar, sendo difíceis, pelo que precisavam de outra

conquista que lhes servisse de defesa e prevenção. Alcácer-Quibir oferecia uma formosa

baía que servia perfeitamente para os desembarques e fundeadouros das embarcações;

i Em português, Alcácer-Quibir [NT].

muitos anos depois, seria base da armada francesa em Argélia, e da argelina, depois da

independência.

Em 1509, o cardeal Cisneros dirigiu a primeira expedição contra Orão. Uma

frota de dez galés e oitenta embarcações saiu de Cartagena com mais de quinze mil

homens (dos quais quatro mil iam a cavalo) e com a participação de Pedro Navarro.

Orão era uma importante cidade portuária com mais de seis mil habitantes, que

mantinha boas relações comerciais com Génova e Veneza. Protegida por muralhas,

contava com uma alcáçova que dominava o resto da praça e que se rendeu perante o

cardeal em pessoa, no dia 18 de maio do mesmo ano. No campo exterior, os espanhóis

encontraram a água que lhes faltava em Alcácer-Quibir. As duas cidades, quase

separadas por uma montanha, criaram um enclave espanhol na Argélia.

Esta não foi a primeira nem a última vez que Pedro Navarro combateu em

África. Havia nascido por volta de 1460 e esteve ao serviço do rei D.Fernando, o

Católico. Emigrou jovem para a Itália, onde se alistou como mercenário e corsário com

o valenciano Antonio Centelles. No início da primeira guerra italiana, passou a estar ao

serviço dos franceses. Quando Centelles foi preso e executado pelos turcos, Navarro

ficou ao serviço do Grán Capitán. Participou na conquista de Cefalónia, esteve em

Canosa, em Barletta, em Cerignola e em Nápoles. Seguiu Gonzalo Fernández de

Córdova em Gaeta, e Garellano, recebendo pelos seus feitos o título de conde de

Oliveto. É o exemplo do mercenário que, com sorte e talento, subiu na escala social. De

volta a Espanha, o rei Católico incumbiu-o de combater os corsários turcos que

ameaçavam a navegação pelo Mediterrâneo. Em 1508, conquistou o Penedo de Vélez de

la Gomera, levantando as primeiras fortificações do ilhote. A maneira de atuar, naquela

época, era muito diferente da colonização do século XIX. Não se queria controlar e

povoar o território para a sua exploração comercial, mas sim para se estabelecer

algumas bases militares em castelos ou praças-fortes, a fim de se vigiar o tráfico e

impedir a ação corsária contra as embarcações cristãs. Por isso, não se conquistavam

reinos ou regiões inteiras, mas pontos estratégicos na costa. Alcácer-Quibir e Orão eram

lugares de grande importância para as relações com o reino de Tremecém. Como

dissemos, Navarro acompanhou Cisneros na expedição a Orão e Alcácer-Quibir, mas

acabaram ambos a lutar pela divisão dos despojos da guerra.

No ano de 1510, decidiu-se continuar os ataques ao norte de África e confiou-se

a expedição ao inexperiente duque de Alba, que levava Navarro como segundo

comandante. Conquistou Bugia, que havia sido um porto importante mas que se havia

convertido num ninho de piratas que atacavam as costas da Itália e da Espanha, e

conseguiu que os reis de Argel (a quem exigiu a entrega do penedo de Argel, situado à

entrada do porto, onde construiu um castelo), Tremecém e Tunes se declarassem

vassalos do rei espanhol. Nesse mesmo ano, conquistou-se Trípoli à viva força,

fazendo-se prisioneiro o seu rei. Navarro havia construído um castelo à entrada do porto

de Argel, que permaneceu em poder dos espanhóis até 1529, quando Martín de Vargas e

os seus cento e cinquenta homens não conseguiram resistir ao assédio turco. Vargas foi

feito prisioneiro pelo dei e morreu espancado. Na tentativa de recuperar Djerba, Navarro

sofreu uma desastrosa derrota, motivada pela falta de previsão e pelo excesso de

confiança. Em 1511, Navarro voltou a Itália para lutar com a Liga Santa e foi preso

pelos franceses na batalha de Rabean, no dia 11 de abril de 1512. O Rei Católico não

quis pagar o resgate que pediram por Navarro e este ficou ao serviço do rei Francisco I

de França, combatendo em Navarra e em Itália. Morreu em Nápoles, em 1528.

Política africana de Carlos V e Felipe II

Estas expedições e conquistas tiveram, na verdade, pouca importância e foram

de curta permanência. Também não constituíram uma prioridade na política da época. O

desejo de travar os espanhóis levou os monarcas argelinos e tunisinos a chamar em seu

auxílio os turcos. O aparecimento dos irmãos Barbarossa e o poder crescente da

esquadra turca mudaram muito as coisas. Estes navegadores deram um novo impulso à

luta contra os espanhóis, atacando-os em todos os seus domínios africanos e tornando-se

donos de grandes territórios no norte de África, de Tunes a Argel. O inimigo africano

tornou-se mais poderoso e perigoso para os espanhóis: estava protegido pelo império

otomano e atuava com a ousadia própria da superioridade tanto em terra como no mar.

Os turcos aproveitaram para explorar o descontentamento popular em Tunes e as lutas

internas na Argélia, e acabaram por unir estes reinos ao seu império.

A partir de 1620, Solimão, o Magnífico, apossou-se da região, expulsando os

cavaleiros de São João das ilhas mais orientais. As águas do Mediterrâneo foram-se

tornando cada vez mais perigosas. Em 1516, a Espanha perde a sua possessão em Argel.

Em 1520, o desejo de vingança levou a uma nova expedição, na qual ia Diego de Vera,

às ordens do vice-rei da Sicília, Hugo de Moncada, conquistando-se de novo Djerba.

Em 1522, perde-se o Penedo de Vélez de la Gomera e, em 1530, Carlos V cede Trípoli

aos Cavaleiros de São João, por estar muito fora de mão dos seus domínios. Em 1535,

com intervenção pessoal de Carlos V, ocuparam-se novamente Tunes e La Goleta,

registando-se grandes saques e libertando-se centenas de cativos cristãos. No entanto,

fracassaram em 1541, ao quererem apoderar-se de Argel com uma frota diminuída pelo

temporal e pelas grandes perdas. Uma grande esquadra de 516 navios, que

transportavam mais de 12000 marinheiros e 24000 soldados, falhou na sua tentativa de

ocupar as elevações próximas a Argel, devido às chuvas diluvianas e aos temporais

constantes que desorganizaram a armada espanhola. Derrotados após três dias de

resistência, tiveram que se retirar, protegidos pelos cavaleiros de Malta. A tempestade

acabou por afundar 140 barcos e optou-se por não se voltar a tentar o desembarque.

Este acontecimento originou um ponto de inflexão da ação espanhola no norte

africano e a mudança de rumo na política hispânica, para além de uma importante

vitória turca. A retirada espanhola da Argélia e de Tunes levou de novo a anarquia

àqueles reinos. O sistema de alianças que Carlos V mantinha com alguns reis locais

rompia-se e favorecia as guerras internas. Acontecia com frequência as dinastias

surgirem ou acabarem quando os europeus perdiam o controlo de um território. Em

1540, Andrea Doria e a sua esquadra genovesa ao serviço do imperador espanhol

tiveram que ir em auxílio do rei tunisino Muley Hasnan, ameaçado pelo seu próprio

filho3.

Felipe II também falhou nas tentativas de reconquista de Bugia e Trípoli, embora

conquistasse de novo Djerba e, em 1564, conquistasse definitivamente o Penedo de

Vélez de la Gomera. Em 1555, o vice-rei de Nápoles não pôde socorrer a praça de

Bugia. A bancarrota que ameaçava a Espanha impedia a formação de armadas por não

haver dinheiro para os pagamentos necessários. Felipe II manteve, contudo, uma boa

relação com os marroquinos e, após Lepanto (1571), o perigo turco no Mediterrâneo

Ocidental parecia eliminado ou, pelo menos, havia-se chegado a um equilíbrio entre os

dois poderes dominantes, o dos turcos e o dos espanhóis, e abandonou-se a política de

tomar posições ribeirinhas. Houve ainda mais um episódio: a conquista de Tunes por D.

João de Áustria, em 1573, mas que se perdeu, juntamente com La Goleta, no ano

seguinte. Com isto, termina a política de expansão no sul do Mediterrâneo e os

espanhóis não tentam mais nenhuma conquista: ficavam com Orão, Alcácer-Quibir,

Melilha e Vélez de la Gomera. A Espanha devia resolver problemas internos e

americanos. Deve-se acrescentar, ainda, a ilha de Alhucemas, conquistada na época de

Carlos II, já que as efémeras ocupações de Larache e La Mamora (Mehdia) não se

consolidaram.

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POSSESSÕES ESPANHOLAS NO NORTE DE ÁFRICA

(DE ESTE A OESTE)

LUGAR ANO DA TOMA DA POSSESSÃO ANO DE PERDA

Trípoli 1510 1551

Gelves 1497 1560

Querquenes 1574 1574

La Mamora 1550 1553

Monastir 1541 1550

Susa 1541 1550

Tunes 1535 1574

La Goleta 1535 1574

Bizerta 1535 1573

Ilha de Tabarca 1540 1540

Bona 1535 1535

Bugia 1510 1555

Tedles 1510 1510

Castelo de Argel 1510 1529

Argel 1510

Mostaganem 1510 1510

Alcácer-Quibir 1505

1732

1708

1791

Orão 1505

1732

1708

1791

Horna 1531 1535

Tremecém 1542 1543

Melilha 1497

Chafarinas 1848

Cazaza 1505

Penedo da ilha de

Alhucemas

1673

Penedo de Vélez de la 1508

9

Gomera

Ceuta 1580

Tânger 1578 1640

Arzila 1578 1588

Larache 1610 1689

Mahamora 1614 1681

Mazagão 1578 1640

Santa Cruz de la Mar

Pequeña

1614 1681

Espanha na Argélia

Nesta sucessão de conquistas e perdas, houve, no entanto, uma aventura que se

prolongou durante quase três séculos: a presença espanhola nas cidades de Orão e

Alcácer-Quibir, na Argélia. De facto, as duas praças constituíam dificilmente uma

possessão defendida por um sistema de fortificações exteriores que as tornaram

inexpugnáveis, apesar dos numerosos ataques, cercos e assédios. A sua conquista, em

1505, foi consequência do impulso pessoal do cardeal Cisneros. Os espanhóis

estabeleciam alianças com algumas tribos próximas que os abasteciam, a quem

chamavam «mouros da paz». Outras vezes, o necessário e o supérfluo obtinham-se

mediante razias no campo argelino, as chamadas jornadas.

Enquanto, os hispânicos se defendiam nas muralhas, os arredores eram ocupados

por povoadores indígenas chegados do campo ao abrigo da prosperidade que a cidade

produzia. Este consolidado domínio espanhol podia ter sido, se as circunstâncias não o

tivessem impedido, o início de uma futura colonização. A presença dos turcos na

regência de Argel e a chegada dos Barbarossa tornaram mais difícil a vida nas praças

espanholas e mais perigosas as saídas.

Com o tempo, essas praças perderam-se devido à Guerra de Sucessão, que

desviou a atenção espanhola dos seus domínios argelinos, e, em 1707, o dei de Argel

aproveitou para as atacar. Este havia-se fortalecido com artilharia turca para garantir o

êxito da operação. Orão era uma cidade amuralhada, com uma alcáçova, defendida pelo

castelo de Santa Cruz e pelo forte de São Gregório, a poente, e os fortes de São Felipe,

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Santo André e o castelo de Rosalcázar, a levante. Os sitiantes começaram por cercar a

torre do Nascimento, que protegia o manancial que abastecia de água a localidade; esta

caiu após quase dois meses de resistência. Depois, atacaram o castelo de Santa Cruz,

bombardeando e minando uma parte dos seus muros. O resto ficou mal defendido pelo

marquês Valdecañas, que optou por abandonar o território e voltar à península, embora

uma pequena quantidade de espanhóis ficasse a lutar até à morte. A expedição de

auxílio não chegou, porque o seu chefe passou para a fação do arquiduque e as

embarcações mudaram de rumo para combater em águas peninsulares. Os assaltantes

apoderaram-se de Orão e da sua alcáçova no dia 20 de janeiro de 1708. Os espanhóis

fugiram para Alcácer-Quibir e, perante a impossibilidade de defesa, o governador

Baltazar de Villalba negociou uma rendição honrosa. Os termos da capitulação não

foram respeitados pelos assaltantes e os espanhóis acabaram cativos.

Orão foi, de novo, porto de piratas e a navegação comercial ressentiu-se. O

número de cativos aprisionados durante as capturas aumentou. Emilio Sola4 relata que

Orão era a saída para o mar do reino de Tremecém, cidade próspera onde se cunhava

moeda e se conservava uma importante sabedoria histórica. Os espanhóis destruíram as

bibliotecas árabes, arrasaram os vestígios dos mouriscos expulsos e converteram a praça

conquistada numa cidade cristã e espanhola, base de correrias e ataques espanhóis à

região, que, no entanto, nunca chegaram a dominar. Os cristãos de Orão usavam as

mesmas armas que os seus inimigos turcos e árabes, e capturavam em terra bens que

aumentavam a fortuna dos soldados expatriados. No entanto, a presença reduzida à

porção de Orão não bastava para conter os ataques marítimos.

Felipe V, aconselhado por Patiño, teimou em recuperar os territórios perdidos na

guerra e enviou uma esquadra para as águas argelinas. A expedição era comandada por

José Carrillo de Albornoz, conde de Montemar, capitão geral das costas do Reino de

Granada. A esquadra era composta por mais de quinhentas embarcações de transporte e

dez navios militares, levava trinta e dois batalhões de infantaria, vinte e quatro

esquadrões de cavalaria e outras tropas. Na manhã do dia 29 de junho de 1732,

desembarcaram na praia, onde fortificaram uma posição. Foram duramente fustigados

por forças argelinas e turcas, e alguns autores situam no teatro de operações

combatentes marroquinos sob o comando do barão de Ripperdá, que havia sido primeiro

ministro de Espanha com Felipe V e tentava construir para si um reino no Magrebe.

Após um duro combate, os espanhóis dominaram a montanha de El Santo e os argelinos

abandonaram a cidade. Alcácer-Quibir contava com uma guarnição turca reduzida, que

11

se rendeu no dia 2 de julho, deixando os defensores partirem para Argel. Os argelinos

fustigaram os espanhóis em numerosas ações que não tiveram grande resultado. Orão

havia sido conquistado, registando-se apenas 58 mortos. Fortalecidas as defesas,

deixou-se na cidade uma guarnição de dez batalhões de infantaria, quinhentos cavalos,

um regimento de artilharia e tropas auxiliares, com Álvaro de Navia e Osório, terceiro

marquês de Santa Cruz de Marcenado, como governador, que morreu numa batalha

travada em setembro desse mesmo ano.

A posse destas praças era considerada pela corte cada vez mais desnecessária e

cara, tendo-se multiplicado as vozes que propunham o seu abandono. O retorno dessas

praças ao dei considerava-se uma vantagem em qualquer negociação diplomática. Ainda

assim, o recrudescimento dos ataques piratas obrigou Carlos III a enviar uma expedição

para Argel, sob o comando de O’Reilly, em 1775, que se saldou com a derrota e a morte

dos expedicionários e dos cativos que permaneciam na cidade. Em 1784, tentou-se uma

conquista por terra, mas as defesas de Argel conseguiram conter todos os ataques

espanhóis.

A forma de combater havia mudado, os espanhóis já não eram assim tão

superiores aos argelinos e os turcos contavam com o apoio de paxás do oeste, de

Constantina, de Cabília e até de Marrocos. Começou a apreciar-se outra forma de fazer

política; as guerras esgotavam o país e não deixavam os frutos desejados. Em 1786,

Mazarredo é enviado para assinar com o dei um tratado de paz e de comércio

semelhante ao assinado com Trípoli e que marcava uma época de paz. Esta paz tornava

ainda mais desnecessárias as possessões; um fenómeno natural, o terramoto que

destruiu as defesas de Orão e de Alcácer-Quibir em 1790, precipitou a marcha dos

espanhóis negociada com o dei. Além disso, o inimigo começava a ficar com uma

artilharia suficiente para derrubar as defesas amuralhadas. Os espanhóis abandonaram a

praça, tendo antes dinamitado os fortes modernos. Quarenta anos depois, os franceses

chegaram a Argélia, convertendo-a numa colónia.

Relações com Marrocos

Marrocos é o vizinho africano mais próximo de Espanha, separado desta por 14

quilómetros e meio de mar; ambos os países estão por natureza condenados a relações

de todo o tipo. De Marrocos, procediam as vagas de invasores após o ano 711; a maior

parte dos mouriscos expulsos dos reinos espanhóis e um grande número de judeus

12

foram para Marrocos. Os vizinhos rivalizavam, lutavam e faziam acordos; oscilavam

entre a paz e a guerra. As vicissitudes de um reino transmitiam-se ao outro, qualquer

debilidade era aproveitada. A proximidade e a longa história de conflitos fizeram ver

aos governantes espanhóis que o caminho da paz seria mais frutífero e menos doloroso

do que o da guerra. E foi este o caminho que se manteve enquanto o império

marroquino teve poder suficiente para impor respeito. As conquistas ocasionais de

Vélez de la Gomera, Alhucemas, Larache ou Arzila, bem como das praças de Ceuta e

Melilha destinaram-se mais à tentativa de combater a pirataria do que a um desejo de

confronto com o sultão.

O império marroquino mantinha laços políticos entre o sultão e as tribos, que

não eram consideradas de forma igual em todo o território. O soberano governava o seu

estado (Majzenii) com mão de ferro. A sua autoridade era imposta com o auxílio de

tropas e funcionários, nomeadamente, nas cidades e na parte central e plana do país. No

campo (bled es siba), distante e montanhoso, admitia-se uma autoridade superior, mas o

controlo quotidiano era muito lasso e o sultão limitava-se a cobrar impostos e a recrutar

tropas. Nem sempre ambos os acontecimentos foram possíveis e pacíficos.

O império chegou ao seu auge com o sultão Muley Ismail, que subiu ao trono

em 1672, com a violência habitual na sucessão em Marrocos. O sultanato não era

hereditário e as rivalidades entre os pretendentes conduziam com frequência a intrigas,

assassinatos e, ainda, à guerra civil. Aquele sultão não desprezou a relação com os

piratas, já que obtinha abundantes benefícios do espólio e do resgate dos cativos;

contudo, organizou o seu império de uma maneira mais moderna e eficaz, começando

pela estrutura militar, dotando-se de alguns corpos de obediência direta e eliminando,

em parte, os senhores feudais. Tal como assinala Morales Lezcano, converteu o país

«numa potência militar mais organizada, até tal ponto que, nos princípios do século

XIX, o atraso de Marrocos em comparação com a sua vizinhança não era tão acentuado

como seria um século mais tarde5». Construiu alcáçovas por todo o território, para

controlar as tribos mais rebeldes ao poder. Chegou à expansão máxima e ao maior

controlo efetivo do território. Recuperou Mahamora e Larache, que estavam em mãos

espanholas, bem comoTânger, que os ingleses ocupavam. Nem antes nem depois, até ao

protetorado, sultão algum conseguiu maior grau de adesão e de obediência das tribos

dos confins do bled. Outra caraterística do seu reinado foi o estímulo à conquista do

ii Majzen- Antigamente governo ou autoridade suprema em Marrocos [NT].

13

interior e o abandono do mar. As expedições por ele enviadas chegaram às fronteiras do

Senegal e do Níger; fustigou os espanhóis e os portugueses, recuperando quase todas as

praças que estes possuíam nas costas marroquinas.

Depois da morte de Muley Ismail, em 1727, seguiu-se um período de desordem

e lutas internas, até que chegou ao trono o sultão Mohamed, em 1757. Foi um homem

que debilitou algumas das instituições de Muley Ismail e reduziu a sua guarda de negros

ou abids, verdadeiro corpo pretoriano do sultão e sustento da expansão e do poder de

Ismail. Procurou avançar nas relações internacionais, assinando tratados com a

Dinamarca, em 1757, e com a Inglaterra, em 1760. Marrocos conservava, ainda, um

pequeno poder naval e uma força corsária importante, embora não fosse comparável

com a da regência de Argel ou com a esquadra turca no Mediterrâneo. A importância

económica que tinham para o império o aprisionamento de embarcações europeias e o

comércio com os cativos fazia com que os sultães mantivessem este sistema de atuação.

No entanto, a Espanha estava muito próxima e era tão fácil para os marroquinos

capturar os despojos hispânicos como para a armada espanhola contra-atacar, por dispor

de melhores barcos e de bases muito próximas. As ações de personagens como Barceló

e as suas canhoneiras contra os piratas argelinos e contra as embarcações marroquinas,

como aconteceu quando afundou três galeaças da marinha do sultão em 1764,

marcavam uma diferença assinalável no que diz respeito à potência naval dos dois

países.

António Barceló foi um marinheiro maiorquino, nascido em 1717, que, durante

o cerco de Gibraltar (1779-1783), quando já tinha uma vasta experiência de guerra no

mar, inventou um modelo de embarcação a que chamou canhoneira e que foi o terror

dos corsários. As canhoneiras eram lanchas nas quais Barceló colocava uma blindagem

de ferro que as revestia até abaixo da linha de flutuação e que eram armadas com um

canhão ou morteiro montado de forma a girar; tinham um parapeito forrado para os

artilheiros e restantes marinheiros. Era uma embarcação muito manobrável e de fácil

transporte. A inovação que pressupunha esta embarcação facilitou a sua atuação e foi de

grande valor no combate à pirataria e em cercos como o de Argel, em 1783, que não

serviu para conquistar a praça mas para forçar um tratado de paz.

É verdade que os sultães aproveitaram habilmente as rivalidades e as guerras

entre os diversos países europeus; mas não é menos verdade que sempre fugiram da

guerra pelo medo natural de serem derrotados. Portanto, uma boa política convencional

era a melhor solução para todas as partes, como concluíram Muley Mohamed e o rei

14

espanhol Carlos III. As boas relações entre o governador de Ceuta, Osorio, e Samuel

Sumbel, judeu marroquino ao serviço do sultão, abriram portas a um comércio

normalizado e foram as primeiras conversações que conduziram à assinatura de um

tratado duradouro. Tratou-se de negociações que o padre Juan José Boltas continuaria

numa embaixada oficiosa, em 1765, e que continuaram por intermédio de outro

franciscano missionário no império, frei Bartolomé Girón de la Concepción.

A missão destes eclesiásticos consistia em averiguar a predisposição do sultão

para a negociação. A parte marroquina mostrava-se favorável ao pacto e, como

consequência das conversações, o sultão enviou à corte espanhola, como embaixador,

Sidi Ahmet el Gazel. Chegou a Espanha em maio de 1767 e encontrou-se com o rei

espanhol no dia 21 de agosto. Nos dias seguintes, manteve conversações com Grimaldi

e com o padre Girón. A visita desta embaixada marroquina foi retribuída com a que

Carlos III enviou a Marrocos no ano seguinte, encabeçada pelo oficial da armada

espanhola Jorge Juan. Os trabalhos realizados culminaram com a assinatura do tratado

de 28 de maio de 1767. O acordo assinado entre ambas as nações revelou-se satisfatório

e útil. Nesse tratado, assentaram-se as relações comerciais, a abertura de alguns portos e

cidades aos europeus e manteve-se a paz. Os espanhóis não conseguiram tudo aquilo a

que se propunham e não viram atendido o pedido para estabelecer uma base ou feitoria

na costa, em frente às Canárias, reivindicando a antiga Santa Cruz de Mar Pequeña, nem

para alargar o campo exterior dos presídios. Em suma, estabeleceu-se um pacto relativo

à livre navegação e ao livre comércio entre os espanhóis e os marroquinos, a abertura de

consulados espanhóis nos portos marroquinos e uma grande liberdade para as pescas.

O tratado não impediu que o sultão reivindicasse as colónias cristãs nas costas

marroquinas. Foi sempre um dos pilares da política exterior marroquina e um tema

recorrente até os nossos dias; nunca renunciaram à posse dos enclaves. Em 1769, o

sultão atacou e conquistou a praça portuguesa de Mazagão (El Jadida) e fustigou as

praças espanholas. Esta política agressiva foi vista pelo rei Carlos III como uma forma

de romper o tratado de 1767 e o governo espanhol declarou guerra ao marroquino no dia

23 de outubro de 1774. O sultão tomou a iniciativa e atacou, em primeiro lugar, o

Penedo de Vélez de la Gomera, sem conseguir conquistá-lo, e depois surgiu com um

exército de treze mil homens diante dos muros de Melilha. Em fevereiro de 1775,

depois de semanas de cerco, assaltaram a praça; o ataque redundou num grande

fracasso, deixando mais de 8000 mortos. Muley Mohamed pediu a paz e os espanhóis

15

obtiveram novas vantagens comerciais, que se adicionaram ao tratado de 1776, em

prejuízo da Inglaterra.

A partir desse ano, a paz entre os dois países foi duradoura e proveitosa,

sucederam-se embaixadas e comissões que revelavam uma relação amigável e

agradável. A Muley Mohamed ben Abdalah sucedeu, em 1790, o seu filho Muley

Yazid, homem orgulhoso, caprichoso e déspota, que chegou ao poder graças ao apoio da

guarda negra, que o seu pai havia debilitado mas não aniquilado. Sendo um sultão

belicoso e apoiante da doutrina do irredentismo territorial, também quis conquistar as

praças espanholas, e, em setembro de 1790, ordenou o ataque à cidade de Ceuta, que se

repetiria em agosto desse mesmo ano. Os espanhóis contra-atacaram, bombardeando

Tânger. O destino da campanha ficou decidido quando o sultão levantou o cerco por se

ter produzido uma revolta no interior do país. O sultão morreu nessas lutas internas, no

ano de 1792.

Sucedeu-lhe Muley Soleimán, um dos seus filhos, de carácter mais benévolo e

amigo da paz, que procurou tratados de comércio com os Estados Unidos, a Sardenha e

alguns estados hanseáticos, e iniciou conversações com a Espanha. Provavelmente, a

prudência deste monarca vinha marcada pelos fracassos bélicos de seu pai o que o levou

a aceitar como possível a via amistosa. Como gesto de boa vontade, permitiu o regresso

ao império de missionários franciscanos, que haviam sido expulsos pelo sultão anterior.

Nomeou um alto funcionário imperial para negociar com a Espanha, Sidi Mohamed ben

Otmán, que facilmente colaborou com o governo de Cánovas, assinando-se um tratado

de paz, amizade, navegação, comércio e pesca, no dia 1 de março de 1799.

O tratado de 1799 era uma renovação do de 1767. Incluía a jurisdição consular,

de conteúdo fortemente religioso, que permitia que os litígios em que intervinham

espanhóis se resolvessem perante os cônsules de Espanha, arrebatando-os da jurisdição

marroquina. Esta era considerada uma vantagem para os europeus, que posteriormente

degeneraria num sistema capitular que diminuiu a autoridade do Majzen, como

veremos. Admitia-se a compra de imóveis para os espanhóis em Marrocos e vice-versa,

o livre comércio e a livre navegação (os direitos que os espanhóis deviam pagar por

introduzir mercadorias em Marrocos eram de 10 por cento, ficando excluídas algumas

quantidades de determinados produtos sobre os quais se aplicava uma tarifa de pesos ou

onças por quintal); reconheciam-se privilégios antigos ativos no comércio dos dois

países, como o da Companhia dos Cinco Grémios de Madrid, que permitia a saída de

16

cereais pelo porto de Casablanca, pagando-se 16 reais de bilhãoiii por cada alqueire de

trigo e 8 reais pelo de cevada; admitia-se, ainda, a compra de cânhamo e madeira

marroquina para arsenais espanhóis. O convénio não foi cumprido em numerosas

ocasiões, mas o balanço foi positivo quer para os espanhóis, porque se garantiu a paz e a

harmonia e se reduziu consideravelmente a pirataria, quer para os marroquinos, porque

a balança comercial lhes foi favorável durante muitos anos. Cánovas havia-o

classificado de «monumento insigne da humanidade por parte do novo Sultão e de

previsão política por parte do nosso governo».

No entanto, chegado o século XIX, os espanhóis começaram a planear políticas

expansionistas em Marrocos. A chegada dos franceses à Argélia, em 1830, as

conquistas portuguesas no sul do continente e o êxito inglês na colónia do Cabo

estavam a abrir as portas do continente a um novo modo de entender as relações

internacionais: o colonialismo. A Espanha considerava que Marrocos, por estar mais

próximo do que qualquer outro país europeu, era um assunto espanhol, embora fosse

chocar com a oposição inglesa, francesa e até alemã. Marrocos era a chave a sul para o

Estreito, tinha uma posição estratégica especial e um grau de desenvolvimento maior do

que o dos vizinhos africanos do sul. Não obstante, a desintegração política do império

que levou à crise social e económica favoreceu muito as políticas de intervenção

europeias.

No início do século XIX, aparece em cena uma personagem extraordinária,

aventureiro valioso, intrigante político, espião e escritor que respondia pelo nome

espanhol Domingo Badía y Leblich e que, convenientemente disfarçado de árabe,

visitou vários países muçulmanos sob o nome de Ali Bey el Abasí. Havia nascido em

Barcelona, em 1767, mas foi jovem para Cuevas de Almanzora. Ali residia ainda uma

comunidade mourisca e é possível que, nesse ambiente, Ali Bey el Abasí tenha

aprendido árabe, embora mais tarde tivesse aperfeiçoado os seus estudos

academicamente. Atraído pelo mundo muçulmano, embarcou para Marrocos. Soube

captar o apoio e a proteção do sultão Muley Soleimán e, por meio de intrigas e enganos,

encarregou-se de conduzir ao levantamento do reino de Fez para o ceder a Espanha.

Para isso, pediu auxílio militar a Godoy, com quem havia previamente estabelecido um

pacto - embora este incluísse apenas a possessão de cidades como Tânger - para apoiar

o rebelde Sidi Hassan, enquanto as tropas espanholas atacariam os marroquinos desde

iii Antiga moeda espanhola [NT].

17

Ceuta. No entanto, Carlos IV não quis contribuir para tal intriga e os planos nunca se

concretizaram. Ali Bey teve que fugir de Marrocos e empreendeu viagem rumo ao Egito

e a Meca, sendo o primeiro europeu a visitar esta última, através da Argélia e da Líbia.

Também visitou a Turquia, a Síria e a Grécia, foi um afrancesado convencido e José I

nomeou-o alcaide de Córdova. Após a queda de Bonaparte, partiu de Espanha e voltou à

vida de fingimento e intriga. Disfarçado de agente francês, dirigiu-se a Damasco sob o

nome Ali Otmán, mas foi descoberto pelos serviços secretos ingleses e morreu

envenenado.

A França também tomava posições em Marrocos. Sob diversos pretextos, a

esquadra francesa comandada pelo príncipe de Joinville bombardeou, em agosto de

1844, os portos de Tânger e Mogador (Essaouira). Pouco depois, o exército imperial

marroquino, que foi em auxílio do líder argelino Abdelkader, foi derrotado na batalha

de Isly pelo marechal Bugeaud, o que ocasionou também uma perda de território que

está na origem das lutas políticas ainda existentes entre Marrocos – que reclama a sua

devolução – e a Argélia. O poder militar francês, muito superior ao marroquino, e o

medo que inspirava uma ocupação foram determinantes para a assinatura do Tratado de

Lalla-Marnia, em 1845, que fixava as fronteiras entre a Argélia e Marrocos.

No dia 6 de janeiro de 1848, os espanhóis planearam um golpe de autoridade,

quando ocuparam as Ilhas Chafarinas. A ocupação estava prevista, mas o capitão geral

de Granada, Francisco Serrano, duque de La Torre, que comandava a expedição a bordo

do Piles, acelerou os preparativos ao aperceber-se de que os franceses estavam a tentar

algo semelhante para proteger a entrada na Argélia. Tratava-se de três ilhas de pouca

extensão, em que, embora hoje apenas exista uma guarnição militar, na altura havia uma

população civil dedicada ao comércio e à pesca, uma igreja, um clube, um teatro e até

uma pequena fábrica de conservas. Quando as guerras do Rife acabarram, a população

começou a emigrar para Melilha e outros lugares mais convenientes. Além do seu

propósito militar, as ilhas serviram, em certas ocasiões, para desterro de cabecilhas

cubanos e marroquinos bem como dos rebeldes de Jaca.

Os incidentes com o reino marroquino foram uma constante. As reivindicações

marroquinas sobre as praças espanholas e os ataques a embarcações marcaram o destino

das relações entre os dois países. As embarcações marroquinas atacavam as espanholas,

roubavam a mercadoria, especialmente quando estas últimas ficavam varadas por causa

das tempestades. Houve alguns assassinatos e agressões a residentes no império. A ideia

que defendia a intervenção florescia entre certos intelectuais e alguns políticos. A

18

Espanha não queria abrir mão de Marrocos num processo que se avizinhava, mais ainda

quando havia perdido quase a totalidade das colónias americanas. Em 1844, Serafín

Estébanez Calderón publicou o seu Manual del oficial en Marruecos, obra que

respondia à corrente de opinião partidária da intervenção direta e de ocupação do

território no norte magrebino. O título é enganador, já que se trata sobretudo de um

ensaio descritivo sobre o país vizinho, que abrange geografia, estado político e história.

O autor tentava dar uma visão do império do sul, promover o conhecimento dessa nação

e iniciar o trabalho propagandístico a favor do eternamente escasso partido africanista

espanhol.

Estava-se a abrir portas a uma corrente de opinião política partidária de uma

intervenção direta no império do sul. Os seus promotores consideravam que a Espanha

tinha mais direito a intervir do que outras potências europeias, devido à sua história e à

sua proximidade. A ocupação francesa da Argélia havia aberto uma porta e apontado

um caminho. Estébanez, já afastado da milícia e da política, escreveu um livro após o

assassinato de um agente do consulado espanhol em Marrocos. Os ânimos

antimarroquinos aqueciam na Espanha da época, clamava-se por uma guerra que não

aconteceu e o livro vendeu-se rapidamente, conduzindo o autor à Academia de História.

A mentalidade do escritor, comum à da Espanha da época, tratava de resumir os tópicos

sobre o atraso de Marrocos e a despótica autoridade dos seus chefes, começando pelo

sultão: «Um estado perfeitamente despótico, o sultão é o dono absoluto do que os seus

súbitos possuem, até a vida que vivem não a têm senão em depósito»6. Esta obra é, de

facto, propagandística da guerra que chegaria, por fim, em 1859, mas que, no espírito de

muitos espanhóis, era considerada a política necessária para enfrentar a questão

marroquina. Por isso, Estébanez conclui: «Todos os esforços da diplomacia chocarão

com a natureza das coisas e a Espanha deve acompanhar cuidadosamente, com os olhos

bem abertos, acontecimentos importantes, para não ser apanhada desprevenida. No

momento em que a França passar as margens de Muluya ameaçando os distritos de

Guert, Errif e Tetuan, a Espanha deve agir ativamente para que ninguém, a não ser ela,

domine aquela parte da costa setentrional de África e, para isto, é necessário ter em

maior consideração e deixar menos de lado os nossos domínios daquele país»7. Para

isto, propunha o afastamento da França, a coligação diplomática com a Grã-Bretanha e

o uso da força na conquista.

19

2

A GUERRA DE 1859-1860: AS CAUSAS, O DESENVOLVIMENTO E AS

CONSEQUÊNCIAS.

A GUERRA DE 1893.

As difíceis relações com Marrocos

A partir da segunda metade do século XIX, ocorre uma mudança na política

africana espanhola. Pouco a pouco, aparece um partido de africanistas defensores da

intervenção nos assuntos marroquinos, de reivindicações territoriais no continente e da

presença espanhola nos fóruns onde se iria debater as distribuições. Não eram muitos,

mas, entre eles, contavam-se intelectuais de prestígio e alguns políticos de primeira fila.

Os impulsionadores desta corrente foram Joaquín Costa, Francisco Coello, Emilio

Bonelli e outros geógrafos e militares que foram abrindo um dos caminhos por onde

transcorreria a política exterior espanhola, de tal forma que a questão africana se tornou

mais presente na imprensa, nas publicações e nas Cortes. Como consequência de tudo

isto, qualquer incidente no império marroquino ou no golfo da Guiné era engrandecido

ao ser exposto com intenção propagandística. Os governos procuraram não se descuidar

nos assuntos africanos, não só para evitar protestos e escândalos, mas também porque

essa era a forma de não empurrarem a Espanha para o isolamento internacional.

No entanto, a política africana nunca foi uma prioridade dos governos espanhóis

dos séculos XIX e XX, a não ser em raros momentos. Coincide com uma etapa em que

recrudesceram os ataques aos espanhóis e aos franceses em Marrocos, possivelmente

como desconfiança face à agressividade europeia. Os franceses já haviam optado pela

rutura com Marrocos, pela intervenção no país e pela ocupação definitiva. Em 1844,

ocorre a batalha de Isly, na qual o sultão foi derrotado quando foi ajudar o líder argelino

Abd el Kader, tendo os franceses alargado o seu departamento de Orão às custas do

território marroquino. Os espanhóis viam com preocupação a atividade gaulesa num

cenário que consideravam da sua incumbência e não queriam ficar marginalizados em

nada que afetasse o império magrebino. Os europeus rivalizavam pelas riquezas de

Marrocos, principalmente minas e cereais, e por conseguirem ser os fornecedores do

império, pelo que as ações de uma potência provocavam a reação das outras.

20

Neste contexto, os marroquinos continuaram com as suas eternas reclamações

sobre as praças espanholas. Pelo tratado de 1799, com Muley Soleimán, os espanhóis

haviam adquirido o direito a ocupar as franjas do território que envolviam Ceuta e

Melilha, mas as tribos fronteiriças não reconheceram esta cessão e ocupavam o

território em discussão. Em 1844, o cônsul espanhol em Tânger havia entregado ao

representante do sultão um ultimato em que se exigia o restabelecimento da linha

exterior de Ceuta e a devolução do território que ocupavam as cabilas.

Surpreendentemente, o governo marroquino ignorou a extensão territorial espanhola e o

facto de esta haver sido contemplada no tratado de 1799. Contudo, a intervenção do

cônsul britânico Drummond Hay∗ fez com que o imperador aceitasse as pretenções

espanholas e assinasse um acordo, no dia 25 de agosto desse ano, reconhecendo o

direito espanhol e oferecendo algumas indemnizações pelos ataques. Para cumprir o

acordo, procedeu-se à demarcação dos limites exteriores de Ceuta, mediante uma ata

assinada no dia 7 de outubro e confirmada no acordo de Larache, de 16 de maio de

1845. Contudo, isto não deixou os cabilenhos satisfeitos e as agressões contra os

espanhóis e os ataques às embarcações continuaram.

Em 1847, criou-se a Capitania Geral de África em Ceuta, que desapareceu pouco

depois, mas que deu à praça maior importância militar, coincidindo com os ataques que

os marroquinos fronteiriços faziam contra Melilha pelo mesmo motivo de discórdia: o

desacordo nos limites exteriores. Em 1849, o general Chacón dá início a uma ação de

punição contra os cabilenhos próximos de Melilha. Em 1854, foi capturada a

embarcação espanhola Nuestra Señora del Carmen, e, em 1856, a San Joaquín,

iniciando-se uma série de capturas e ataques corsários às embarcações espanholas que

se aventuravam nas costas marroquinas ou que tinham a desgraça de encalhar devido a

tempestades. Para conter estas ações, enviou-se uma esquadra para Tânger, em 1856,

conseguindo-se um acordo com o representante do sultão, que se completaria com

∗ Sir John Drummond Hay havia nascido em 1816 e, aos vinte e quatro anos, já era funcionário na

embaixada britânica, em Constantinopla. Quatro anos depois, foi enviado para Tânger como agente consular para manter um contacto pacífico com o sultão numa fase de crise franco-britânica. Ali permaneceu mais de quarenta anos, sendo imprescindível em toda a atuação diplomática no império. Interveio como mediador em conflitos de Marrocos com a Dinamarca, com a Suécia ou com a Espanha, como já se viu. Em 1856, como ministro residente, negociou e assinou o tratado de comércio entre a Grã-Bretanha e Marrocos. Continuou sempre com a carreira diplomática em Marrocos, chegando a plenipotenciário e a enviado extraordinário. Reformou-se em 1886, mas continuou a residir parte do ano em Tânger. Morreu na Escócia, em 1893. Teve uma grande influência em todos os assuntos marroquinos e os seus livros eram de leitura obrigatória e a informação era copiada pelos que queriam saber algo sobre a realidade marroquina. Destacam-se Morroco and the Moors. Western Barbary: Its Wild Tribes and Savage Animals (1869) ou as memórias publicadas em 1896.

21

outro, assinado em Tânger no dia 29 de agosto de 1859, que garantia o alargamento do

campo exterior de Melilha até onde chegasse a bala de um canhão de 24 polegadas de

calibre, disparado com a espoleta a zero desde o centro da cidade amuralhada, bem

como o posicionamento de tropas do sultão nas fronteiras das praças espanholas e em

frente de Alhucemas e Vélez de la Gomera, para se garantir a sua segurança. Mas, os

cabilenhos de Anyera∗ manifestaram a sua oposição a este acordo, atacando algumas

obras de fortificação de Ceuta.

As causas e a preparação da guerra

Afirmar que o ataque dos anyera a Ceuta e a ausência de punição por parte do

sultão foram a única causa da guerra é exagerar, embora seja aquela que a historiografia

tradicional da época prefere. Mesmo supondo que foi a gota de água, o último de uma

série de ataques e agressões, não pode explicar por si só o sucedido, porque, tal como

em ocasiões anteriores, se poderia saldar com uma ação de punição ou com uma

reclamação diplomática. Os espanhóis aumentaram os incidentes e os marroquinos

prometeram castigar os culpados com o objetivo de manter alguma paz com a Espanha,

que já durava há mais de cem anos. As relações entre ambos os países desenvolviam-se

de forma satisfatória, após a assinatura do tratado de paz de 1799. No entanto, o sultão

alargava demasiado as relações diplomáticas sem qualquer demonstração de autoridade,

provavelmente porque não tinha força suficiente para fazer frente às cabilas de Anyera,

que, perante a falta de ação, voltaram à carga contra as fortificações espanholas. Por

outro lado, os espanhóis pareciam prontos para a guerra e impediram qualquer acordo

com o enviado do sultão.

Nesta etapa da história, a Espanha estava em paz interior, após o fim da guerra

carlista, e conhecia um importante desenvolvimento económico. Havia-se iniciado uma

política exterior audaz, com intervenções na Cochinchina (1858), em Santo Domingo

(1861), no México (1862) e na Guerra do Pacífico (1866). O poder que o exército

espanhol havia alcançado, após anos de guerra civil, e o auge que o colonialismo militar

estava a atingir contribuíram possivelmente para a aventura africana que tinha como

objetivo manter os militares ocupados: em 1857, os ingleses enfrentaram uma sangrenta

revolta de sipaios na Índia e, em 1859, os franceses atacaram os marroquinos a partir da

∗ Anyera, Anjera ou Anghera (Anjra é a denominação oficial em Marrocos) é a cabila cujo território circunda a cidade de Ceuta.

22

Argélia. Como dizíamos, a política francesa cada vez mais agressiva em Marrocos fez

com que os políticos espanhóis temessem que a Espanha fosse posta fora de jogo. Era

também uma oportunidade de mudar o curso da história de derrotas que a Espanha havia

sofrido na América e na humilhante invasão napoleónica. A guerra de África era, pois,

uma ocasião para se encontrar uma causa nacional, um objetivo que unisse todos os

espanhóis contra um inimigo comum e estrangeiro. E não foi desperdiçada. A empresa

configurou-se como algo de todos e tanto os políticos, com algumas exceções

destacadas, como Alonso Martínez, como a imprensa que representava a opinião das

distintas fações (por exemplo, os artigos de Emilio Castelar em La Discusión) apoiaram

a aventura. Por outro lado, foi uma empresa muito popular. As pessoas iam despedir-se

das tropas, esgotavam-se as edições dos jornais e dos folhetos que contavam

semanalmente as vicissitudes da campanha, organizavam-se banquetes que faziam

sucesso e iniciativas para angariar fundos, surgiram voluntários de todo o lado, até dos

distritos catalães e do País Basco, que sofreram a guerra carlista com maior força.

Essa corrente favorável entre a opinião pública foi habilmente aproveitada pelo

governo da União Liberal para declarar a guerra. Houve que ultrapassar algumas

reticências diplomáticas, já que a Inglaterra via com maus olhos qualquer ação que

incluísse Tânger, dada a sua posição estratégica como chave para o Estreito, e a França

não toleraria um ato de ocupação de território africano.

Oferecidas as garantias pertinentes, O’Donnell propôs ao Parlamento uma

declaração de guerra, no dia 22 de outubro de 1859, que foi aprovada por unanimidade

pelos 187 deputados presentes. Nada se criticou, nada se discutiu. Ninguém colocou

objeções às datas escolhidas, nem se questionou o estado do exército em geral, nem se

propôs uma informação exaustiva sobre o inimigo, nem se falou do desconhecimento do

teatro de operações. Havia tanto ardor guerreiro próprio como desdém pelo inimigo.

Contudo, o sultão era o encarregado de manter a ordem no território que rodeava Ceuta,

tal como se assinou no tratado de 1845, e o incumprimento desta cláusula foi visto

como causa suficiente para declarar a guerra. De facto, o sultão não tinha força que

chegasse para manter a ordem e a autoridade em todo o império, e as ações dos berberes

rifenhos fugiam ao seu controlo. O’Donnell referiu no Parlamento a necessidade de

lavar a honra e terminou a sua intervenção dizendo: «Firmes na nossa razão e no nosso

direito, o Deus dos exércitos fará o resto». E, num ambiente de júbilo, de exultante

impulso patriótico, os espanhóis viram esta guerra como uma magnífica ocasião para

demonstrar o seu poder. Os espanhóis haviam tido sempre uma forte desconfiança,

23

quando não inimizade, pelos mouros. E, naqueles tempos, começava a antever-se a

possível expansão em território marroquino, tal como havia previsto a rainha Isabel, a

Católica, no seu testamento.

A guerra de 1859-1860

Após a declaração de guerra, forma-se o corpo expedicionário do exército sob o

comando do capitão geral Leopoldo O’Donnell Joris, conde de Lucena. É insólito que o

comando do exército expedicionário recaísse no presidente do Governo. A autoridade

superior do estado-maior era o marechal de campo Luis García e o seu tenente era o

brigadeiro José Ramón Mackenna. Este Exército de Operações ou Exército de África

organizou-se da seguinte forma:

a) Primeiro Corpo do Exército, sob o comando do marechal de campo

Rafael Echagüe Birmingham, que se organizou no campo de Gibraltar e

Ceuta. Composto por uma brigada de vanguarda e uma divisão. No total,

doze batalhões de infantaria, um esquadrão de cavalaria, três companhias

de artilharia montada com dezoito peças, quatro companhias de

engenheiros, quinze guardas-civis a pé e outros quinze a cavalo.

b) Segundo Corpo do Exército, sob o comando do tenente-general Juan

Zabala de la Puente, conde de Paredes de Nava, organizado no distrito de

Cádis. Composto por duas divisões com um total de dezasseis batalhões

de infantaria, um esquadrão de cavalaria, três companhias de artilharia

montada com doze peças, uma companhia de artilharia de montanha com

seis peças e uma companhia de engenheiros, quinze guardas-civis a pé e

outros quinze a cavalo.

c) Terceiro Corpo do Exército, sob o comando do tenente-general Antonio

Ros de Olano, conde de La Almina, organizado em Málaga. Composto

por duas divisões com dezasseis batalhões de infantaria, um esquadrão de

cavalaria, duas companhias de artilharia com doze peças e uma de

montanha com seis peças, uma companhia de engenheiros, quinze

guardas-civis a pé e outros quinze a cavalo.

d) Uma divisão de reserva, formada em Antequera sob o comando do

tenente-general Juan Prim Prats, conde de Reus. Composta por quatro

24

batalhões de infantaria, dois batalhões de artilharia e outros dois de

engenheiros.

e) Uma divisão de cavalaria sob o comando do marechal de campo Félix

Alcalá Galiano, formada no Porto de Santa María. Composta por nove

esquadrões de cavalaria e três de artilharia com doze peças.

Um total de 163 oficiais-generais e superiores, 1599 oficiais e 33228 classes de

tropa e soldados.

Embora os números não sejam exatos, já que, ao longo da campanha, se foram

somando efetivos, calcula-se que tenham participado entre 45000 a 50000 espanhóis. Os

tratadistas, como o general Martín Arrúe, falam de escassez de tropa de infantaria para

empreender uma campanha em terra inimiga. Também participou uma pequena frota

sob o comando do almirante Segundo Díaz Herrero. À sua frente estava um exército

marroquino de composição imprecisa, mas que talvez integrasse mais de 100000

soldados de infantaria e mais de 30000 de cavalaria. Serrallonga resume a preparação da

campanha em duas palavras: improviso e desconcerto. Fala do erro de escolher Tetuan

como objetivo, da falta de recursos da armada, da pesada administração e de carências

sanitárias, sobretudo perante a cólera, que era epidémica nessa altura. A isto há que

acrescentar o problema das comunicações escassas e a falta de recursos, que se resolveu

em parte com a ajuda de instituições de caridade.

As tropas espanholas em Ceuta

A primeira parte das operações consistia em situar as tropas espanholas fora da

cidade de Ceuta, fortificar as posições onde aquelas acamparam e organizar a marcha

em direção ao inimigo. Uma vez transportadas as tropas para África, muitas em

embarcações estrangeiras contratadas para o efeito, montaram-se os acampamentos em

Ceuta. A cidade era pequena e estava contida numas muralhas que deixavam pouco

espaço para os recém-chegados. Tal quantidade de tropa em tão pequeno espaço

originou um amontoado que favorecia as doenças. As ruas encheram-se de soldados e

tendas, de transeuntes, de feridos e de todos os civis que acompanhavam um exército na

guerra, desempenhando diversos ofícios e comissões. À medida que chegavam mais

tropas e perante a impossibilidade de as alojar na cidade, estas afastavam-se do centro

para montar os acampamentos no campo exterior. Ceuta encontrava-se amuralhada após

25

um canal que a convertia numa ilha. Desde este canal até à zona em disputa com

Marrocos, existia um pequeno território com algumas hortas e construções escassas, que

carecia de defesa permanente e favorecia os ataques marroquinos. Neste espaço, foram

acampando as remessas de tropas seguintes, estabelecendo alguns redutos fortificados

que foram a origem de uma linha de fortes que viriam a construir-se.

Os espanhóis estabeleceram no campo exterior o quartel general de O’Donnell e

os mais avançados dos acampamentos de Prim e Zabala. Ainda mais em direção ao

campo inimigo, encontravam-se a mesquita e o outeiro onde ocorreram os primeiros

combates. Um pouco mais adiante, já passada a fronteira, formaram um grande

acampamento num antigo casarão chamado El Serrallo, que era um excelente lugar de

observação de Ceuta, por um lado, e da serra de Bullones, por outro. «Foi sem dúvida,

um soberbo alcácer, quase tão vistoso por fora (o que é próprio das construções árabes)

como os que habitam os nossos soberanos europeus, muito bem situado para se ter uma

vida paradisíaca», dizia Alarcón1. O edifício encontrava-se abandonado, embora fosse

refúgio ocasional de algumas autoridades da zona. Havia sido conquistado com

facilidade, possivelmente porque se tratou de uma ação que o inimigo não esperava, e

ali acamparam as forças de Echagüe, que desembarcaram no dia 19 de novembro. A

armada bombardeou o campo inimigo enquanto os engenheiros limpavam e

fortificavam as posições espanholas. Echagüe tinha a missão de entreter o inimigo

enquanto a maior parte das forças espanholas desembarcava no cabo Negro para atacar,

a partir daí, a foz do rio Martín, o forte que os mouros possuíam no lugar e o caminho

para Tetuan. El Serrallo era o centro de um arco defensivo sobre o qual se iniciaram os

trabalhos de três redutos, Isabel II, Príncipe Alfonso e Francisco de Asís, a que, mais

tarde, se juntariam outros três que garantiam a defesa dos acampamentos espanhóis e da

cidade de Ceuta.

Os redutos eram fortificações provisórias, mais do que pequenas fortificações;

no entanto, nestas posições, construir-se-iam, posteriormente, os fortins que ainda se

encontram na cidade africana. O plano espanhol consistia em assegurar este território

fronteiriço para marchar pela costa até à foz do rio Martín (Jelú), onde existiam uns

pequenos fortins marroquinos, continuar, de seguida, pela margem do rio até à cidade de

Tetuan, conquistá-la e prosseguir até se fazer o mesmo com Tânger.

A dureza do terreno dificultava a construção de redutos avançados e os

marroquinos fustigavam continuamente os espanhóis através de confrontos, emboscadas

ou escaramuças. Em frente às tropas espanholas, espalhadas nos arredores de Ceuta,

26

para oeste, apresentava-se a serra de Bullones, de difícil acesso, cumes escarpados,

embora não muito elevados, e barrancos profundos que dificultavam o avanço e

facilitavam as emboscadas. Era a fronteira natural do território plano de Ceuta. Uma

abertura no maciço montanhoso, conhecida como o buraco de Anyera, fazia ligação

com o caminho para Tânger pelo Estreito, que os espanhóis não tinham previsto seguir,

e com um vale onde se concentrava a maior parte da população da cabila. No entanto,

tratava-se de um desfiladeiro perigoso para os espanhóis e uma saída natural dos

atacantes. À frente deste acidente natural, construía-se a todo o vapor o reduto de Isabel

II. Na parte mais próxima da margem, levantar-se-ia o reduto de Alfonso XII, para

proteger a estrada que se projetava em direção a Tetuan, num corredor coberto entre a

costa e a serra, onde só existia uma vereda. A proximidade das elevações à praia

dificultava o trabalho, já que os espanhóis estavam na mira das espingardas dos

rifenhos.

No dia 25 de novembro, deu-se a primeira batalha importante na serra de

Bullones. O inimigo marroquino havia-se concentrado em grande número nos sopés e

barrancos da serra, à frente das posições avançadas espanholas. Chovia a cântaros e os

espanhóis apenas podiam divisar o inimigo quando já o tinham em cima. Os

marroquinos tentavam isolar o reduto de Isabel II do acampamento de El Serrallo e

atacavam simultaneamente as obras dos outros redutos. Era uma tentativa desesperada

de expulsar o intruso do seu território e impedir que a guerra continuasse. O ataque do

inimigo teve de ser combatido com várias cargas de baioneta e com lutas corpo a corpo.

Os batalhões espanhóis ficaram isolados uns dos outros pelas forças marroquinas. No

entanto, o valor e a disciplina serviram para vencer a dificuldade. O general Echagüe

colocou-se à frente das suas tropas, ficando ferido na mão e com o seu cavalo morto. A

carga do brigadeiro Lassansaye com os batalhões de Talavera e Mérida serviu

finalmente para socorrer os de Madrid e os de Alcântara, e conseguiu-se salvar o destino

da batalha, que se apresentava muito difícil, conquistando-se a primeira grande vitória.

A batalha causou 411 baixas do lado dos espanhóis (94 mortos).

Por fim, no dia 27, desembarcou, em Ceuta, o general O’Donnell, produzindo

um enorme júbilo entre a tropa, como assinalava Alarcón no seu Diario de un testigo de

la guerra de África. Nesse mesmo dia, chegaram parte do Segundo Corpo e a divisão de

reserva.

Apesar dos combates, a serra de Bullones não havia sido conquistada; apenas se

repeliram os ataques e reforçaram as posições espanholas à espera do resto das tropas,

27

que ainda não haviam podido desembarcar devido ao estado do mar. As investidas

inimigas continuaram durante todo o mês de novembro. No dia 27, O’Donnell

conseguiu finalmente desembarcar com a divisão de Orozco e parte da reserva de Prim.

Nos ataques do dia 30, O’Donnell encontrava-se à frente das tropas e observava como

os mouros se introduziam no campo espanhol através do buraco de Anyera e cercavam

a posição do Renegado, que dominava o reduto espanhol de Isabel II. O avanço foi

cortado com uma carga de baioneta do regimento de Madrid, com o coronel Caballero e

os soldados de Borbón, que cercaram o inimigo, abortando o seu plano de ataque e

encurralando-o de costas para o mar. Mas os cabilenhos recusaram render-se, morreram

a combater ou lançaram-se ao mar, onde a maioria acabou afogada; poucos conseguiram

chegar às praias da baía de Benzu para se porem a salvo.

Apesar da ousadia do inimigo, os espanhóis eram superiores, contavam com

melhor cavalaria e armamento, e estavam protegidos pelas baterias de artilharia que

flagelavam as concentrações marroquinas. O exército espanhol ficou na defensiva até

que se completasse o plano inicial de ataque e avanço. Era necessário que a marinha

transportasse o resto da tropa e bombardeasse as posições assinaladas no rio Martín, o

que foi impedido pelo forte vento levante que devastava as costas africanas.

A situação continuou sem grandes sobressaltos. Os espanhóis prosseguiam as

obras de defesa e o início da estrada para Tetuan, seguindo pela costa até ao rio Martín e

organizando as tropas para o avanço definitivo. Os cabilenhos flagelavam-se fustigando

as posições e acampamentos com pequenas ações que mantinham em contínuo alerta as

tropas espanholas. Mas chegou o momento em que os marroquinos das cabilas

fronteiriças lançaram um ataque desesperado com a intenção de vencer definitivamente

o exército espanhol. No dia 9 de dezembro, as tropas avançadas dos redutos de Isabel II

e do Rei Francisco notaram que o inimigo se aproximava das trincheiras, atacava e

conseguia passar pelas linhas espanholas. Cada reduto estava defendido por três

companhias, que não foram suficientes para deter os magrebinos, tendo sido necessário

pedir reforços para os expulsar para os bosques próximos. Uma vez reorganizados, os

espanhóis lançaram um segundo ataque.

A jornada foi uma sucessão de ataques rifenhos repelidos pelas tropas de reforço

espanholas, seguidos de uma reorganização e de novos ataques. Foi uma luta

extenuante, em que não houve tréguas. Os sobreiros dos bosques serviam de proteção

aos atiradores cabilenhos, que não pouparam esforços. Uma vez repelidos os ataques,

O’Donnell decidiu não seguir os marroquinos até aos bosques mas, antes, esperá-los nas

28

posições fortificadas. Perante isto, os cabilenhos, conscientes da sua inferioridade em

ataques em campo aberto, abandonaram a luta e voltaram para as suas casas. O

combatente marroquino era duro; não se deixava prender, preferia a morte.

Sustentava-se com muito pouco e resistia aos espanhóis com um caráter invejável.

Yriarte escrevia: «Queimaram-lhes as searas, cortaram-lhes pelo tronco as árvores de

fruto que mantinham essas tribos; até os mananciais foram tapados para se conseguir a

dispersão das hordas»2. Mas escondiam-se em grutas e resistiam aos espanhóis até ao

limite das suas forças.

Todo o mês de dezembro decorreu com contínuos ataques mouros aos

espanhóis, que defendiam os seus redutos e trabalhavam na estrada para Tetuan. Para

organizar a marcha, tinham de traçar uma estrada capaz de suportar a passagem dos

canhões e das carroças. As forças espanholas tinham que avançar pela costa sul de

Ceuta para chegarem ao cabo Negro e ao rio Martín, onde esperariam o resto das forças

de combate que iam desembarcar nesses pontos. Os ataques marroquinos na serra de

Bullones não haviam alcançado o objetivo de parar e fazer recuar o exército espanhol,

que, superadas as elevações iniciais, avançava para o vale de Los Castillejos. Os ataques

agravaram-se ao chegar o Natal. Os mouros disparavam não só as suas velhas

espingardas como também as suas modernas armas, compradas à Grã-Bretanha. Já não

eram apenas os cabilenhos de Anyera, como nos primeiros combates; agora, tinham o

apoio das tropas do exército do sultão, que, enviadas pelo seu irmão Muley el Abbas,

acampavam na parte final do rio Martín (Uad el Jelú). Era um exército numeroso, mas

carecia do armamento e da disciplina do exército espanhol. Os hospitais de Ceuta

encheram-se de feridos nos combates e de doentes de cólera; e alguns tiveram que ser

transportados para a península para dar lugar aos que chegassem depois.

A batalha de Castillejos

A segunda parte da ofensiva compreendia o avanço por uma linha paralela à

costa. A partir do dia 12 de dezembro de 1851, o exército espanhol dedicou-se quase

por completo a trabalhar no caminho de Ceuta a Tetuan para que este estivesse

transitável. A divisão de reserva de Prim estava encarregada de proteger as obras, por

isso foi escalonada ao longo do caminho de Ceuta a Tetuan, nos contrafortes

montanhosos, protegendo de possíveis ataques marroquinos o corredor costeiro onde se

trabalhava.

29

Os espanhóis tinham pressa de sair do contorno montanhoso e de poder enfrentar

o inimigo em campo aberto. Procuravam proteger-se na planície para evitar as contínuas

agressões e emboscadas que os marroquinos organizavam, aproveitando o terreno. No

dia 1 de janeiro de 1860, deu-se a batalha decisiva de Los Castillejos, vale situado a

cerca de 10 quilómetros de Ceuta e passagem obrigatória para o cabo Negro e para o rio

Martín. Ali, havia um pequeno aduar de beduínos que, durante o protetorado, os

espanhóis transformaram numa vila, que hoje tem o nome de Fnidiq e conta com quase

60000 habitantes. Nas colinas próximas, acampava um numeroso contingente de tropas

marroquinas. O ano novo começou com um importante dispositivo espanhol que

avançava para ali. Prim ia na vanguarda e parou quando divisou o lugar. Havia chegado

pela costa sem oposição. Nas primeiras colinas, em frente, aguardavam cerca de mil

mouros, que constituíam a vanguarda inimiga. A artilharia limpou o bosque, ao passo

que o brigadeiro Serrano protegia o flanco para que Prim tomasse posições no vale

enquanto algumas forças de fuzileiros desembarcavam.

Defronte dos espanhóis, encontravam-se cerca de vinte mil combatentes

inimigos, entre cabilenhos e tropas do sultão. Os espanhóis haviam ocupado Castillejos,

onde existiam algumas ruínas, protegendo-se no vale. Mas a verdadeira batalha

aconteceria nas elevações onde os marroquinos se escondiam, avançando pelos sopés da

serra num movimento paralelo, tendo o exército espanhol na mira. Para evitar o fogo

inimigo, Prim atacou com quatro batalhões em linha, quatro em reserva e o Regimento

de Córdova como segunda reserva, apoderando-se de uma colina dominante. Entretanto,

na planície, os Hussardos da Princesa atacavam, pondo o inimigo em fuga até chegar a

um terreno onde se tinham cavado algumas aberturas, nas quais caíram cavalos e

cavaleiros e onde ocorreu a única perda séria do exército espanhol. As dificuldades de

um terreno irregular, cheio de ravinas e barrancos, com florestas nos sopés das serras,

impediram os espanhóis de chegar ao acampamento mouro. Mas Prim aproveitou para

estabelecer o acampamento da sua divisão na colina conquistada e, numa das suas

elevações, pôde ver o contingente inimigo, o que despertou o seu desejo de o atacar.

Contudo, percebeu que o seu objetivo era Tetuan e não o acampamento, pelo que

manteve as suas posições.

Apesar de tudo, a realidade não era tão simples; Alarcón escrevia: «A posição do

referido campo era mais forte do que parecia à primeira vista, situado como estava no

fundo de quatro montes apinhados, cuja conquista nos havia custado uma luta longa e

sangrenta, bem como havia distraído as nossas forças da sua verdadeira direção»3.

30

Entretanto, os marroquinos receberam reforços e, dada a passividade ofensiva

espanhola, decidiram atacar Prim na sua base, através de vagas contínuas de

combatentes que colocavam em grande perigo as posições espanholas. Os espanhóis

tinham lutado todo o dia, sem descanso nem comida, quando o Regimento do Príncipe

foi cercado numa colina: era uma situação comprometedora, na qual a derrota estava

quase garantida. Prim tomou uma decisão arriscada: mandou avançar a artilharia para

combater o inimigo enquanto os soldados eram repostos. Os soldados espanhóis

abandonaram as suas mochilas no terreno para poderem combater mais à vontade,

deixando na campanha tudo aquilo de que necessitavam, exceto a espingarda. Prim,

num ímpeto de coragem, tirou a bandeira espanhola do porta-bandeira e falou às suas

tropas com palavras que Pedro Antonio de Alarcón reproduziu: «Soldados! Vós podeis

abandonar as vossas mochilas, que são vossas; mas não podeis abandonar esta bandeira,

que é da pátria. Eu vou meter-me com ela nas linhas inimigas… Permitireis que ela caia

em poder dos mouros? Deixareis morrer o vosso general sozinho?». As palavras

surtiram efeito, os soldados carregaram à baioneta e fizeram dispersar aqueles que já os

tinham quase vencidos. Nesse momento, os soldados do Segundo Corpo do Exército de

Zabala chegaram ao acampamento, evitando que as tropas de Prim fossem cercadas, e

golpearam o flanco marroquino. Os mouros ainda atacaram, uma terceira vez, as tropas

espanholas, que, conforme o dia passava, estavam mais reforçadas nas suas posições e

com as defesas mais bem fortificadas para poderem derrotar com mais segurança os

inimigos. A vitória foi total. Os marroquinos atravessaram o rio Castillejos,

desmontaram o acampamento e dispersaram em direção ao sul ou para o este, pela serra.

Os espanhóis dominavam já o vale e os primeiros contrafortes da serra, e podiam

continuar o caminho para o sul. No entanto, a batalha havia provocado muitas baixas de

ambos os lados.

A partir de Castillejos, os espanhóis deviam seguir pela costa até à foz do rio

Martín. O caminho era pantanoso e estava cheio de irregularidades que favoreciam as

emboscadas e os ataques mouros. Deviam chegar a Altos de la Condesa e atravessar o

rio Manuel, passar por um desfiladeiro estreito, atravessar o rio Smir até chegarem ao

cabo Negro e ao monte que o circunda até à foz do Martín, onde os marroquinos tinham

o acampamento principal, alguns fortes e paióis. Em mais de um mês, apenas se havia

avançado cerca de 10 quilómetros.

31

Cabo Negro e o rio Martín

Como dissemos, o passo seguinte do exército espanhol era avançar pelo caminho

de Tetuan, que seguia paralelo à costa até ao rio Martín. Os marroquinos ocupavam as

elevações laterais, atacando continuamente os espanhóis, que avançavam pela beira-

mar. Os combates ocorreram a céu aberto. No dia 4 de janeiro, os espanhóis estavam em

Altos de la Condesa, muito próximo de Castillejos, e tinham diante de si a dificuldade

de atravessar o rio Manuel, que se apresentava como um obstáculo. Para salvar a

situação, gizou-se uma ação que apanhou de surpresa os marroquinos; «um dos

movimentos mais formosos feitos nesta guerra pelos espanhóis», segundo o francês

Yriarte4. O exército espanhol estava acampado à beira do rio Manuel, enquanto os

marroquinos esperavam, colocados nos contrafortes da serra, para atacarem quando os

espanhóis cruzassem um baixio estreito. No entanto, descobriu-se que o rio Manuel não

desaguava abertamente no mar; em vez disso, passava através de uma língua de areia

suficiente para transitarem homens, animais, carroças e canhões. Enquanto Ros de

Olano realizava manobras de entretenimento, a maior parte do exército espanhol

atravessou o rio para continuar para o sul sem grandes contratempos. Quando os mouros

deram conta da manobra, os espanhóis já se encontravam no Montenegro, uma elevação

à beira-mar que fecha o caminho para o rio Martín. Sucederam-se os ataques mouros

frente às forças de Ros de Olano, que teve de os conter.

Os espanhóis ainda tiveram contrariedades com o tempo. Uma forte tempestade

junto do rio Smir obrigou-os a acampar, em condições muito difíceis, no aduar de

M’diq ou Medik, em campos encharcados e sem os alimentos que lhes deviam chegar

por mar. A água inundava tudo, os espanhóis ficavam encharcados enquanto combatiam

o inimigo. O terreno pantanoso dificultava o avanço e facilitava as doenças.

Os espanhóis já estariam a avistar o vale de Tetuan quando passaram o cabo

Negro e divisaram o rio Martín, por cuja várzea chegariam à cidade. No cabo Negro,

aguardavam, outra vez, as forças marroquinas, reforçadas pela guarda negra do sultão e

pela numerosa cavalaria chegada de Tetuan, contra a qual lutou a artilharia espanhola. O

terreno era propício para as cargas de cavalaria, mas os marroquinos não se atreveram a

lançar o ataque. Foram os espanhóis que, apoiados pelo fogo de granadas, tomaram a

iniciativa. No dia 16 de janeiro, haviam madrugado e, sem perder tempo com o

pequeno-almoço, aliviados apenas por bolachas secas, lançaram-se às colinas para

desalojar o inimigo. A chegada da esquadra e o seu fogo contra as posições inimigas

32

fizeram o resto. Às três horas da tarde, chegaram novas embarcações com a divisão do

general Ríos.

Os espanhóis acamparam nas ladeiras das colinas e chegaram nesse mesmo dia

ao rio Martín, onde existia um pequeno forte marroquino, que foi conquistado,

conseguindo-se recuperar 7 canhões de calibre 24. Em dezasseis dias, haviam avançado

quarenta quilómetros e estavam quase a dez de Tetuan. O inimigo havia perdido uma

posição de grande importância estratégica e, seguramente, psicológica. A esquadra

espanhola fundeou na foz do rio Martín. No entanto, como assinala Joly, no geral, não

havia ilusões acerca das dificuldades que ainda tinham de vencer. Os marroquinos

instalaram-se à frente da cidade de Tetuan, numa última tentativa de a manter em seu

poder. Os espanhóis montaram o acampamento principal no forte Martín. Haviam

completado todo o trajeto costeiro e deviam começar o caminho interior, para oeste,

seguindo o curso do Martín, para chegar a Tetuan.

O’Donnell esperou um tempo, antes de dar início à ação decisiva de atacar

Tetuan. As tropas recém-chegadas eram jovens e inexperientes e requeriam algum

trabalho de instrução. A retaguarda espanhola estava protegida no caminho de Ceuta e

no mar, onde se encontrava a armada, no mar próximo. Tentou manter a paz o mais

possível, mas o inimigo atacou as fortificações que se erguiam no reduto da Estrella,

uma posição avançada que, com essa forma geométrica, os espanhóis construíam à beira

do rio Alcântara. As forças marroquinas prepararam-se para defender a cidade de

Tetuan. Enviadas pelo príncipe Muley el Abbas, reforçaram-se com novas tropas

chegadas sob o comando de Muley Ahmed. Montaram dois acampamentos unidos por

uma primeira linha de trincheiras. El Abbas tinha o seu acampamento na torre de Cefú

ou Jeleli, protegido por duas linhas de trincheiras e apoiado nos primeiros contrafortes

da serra.

No dia 23 de janeiro, os marroquinos atacaram o reduto de Estrella, onde

trabalhavam como operários 300 caçadores da Rainha e cem de Llerena, e onde se

mantinham algumas tropas de proteção sob o comando do brigadeiro Villate. A ação era

observada pelo general Ríos a partir de Aduana, posição avançada espanhola onde o

sultão tinha a alfândega do rio Martín, navegável até esse ponto, na confluência com o

Alcântara. «Conjunto de edifícios pouco importantes que serviam de armazém ao

comércio dos mouros», dizia Yriarte5. Para evitar a derrota, O’Donnell mandou os

reforços com artilharia e cavalaria, enquanto Ríos cobria o flanco esquerdo. Os

marroquinos tentavam manter os espanhóis no reduto, enquanto a sua cavalaria os

33

cercava pelas duas alas e fustigava Ríos no lado poente do Alcântara. As tropas de Ríos

eram novatas, bem como os seus oficiais-generais e superiores, e caíram na armadilha

de seguir o inimigo, que consideravam derrotado. Viram-se cercadas por este e tiveram

que ser socorridas pelas outras tropas enviadas por O’Donnell. A ação de contra-atacar

os marroquinos através de outro movimento para os cercar deu resultado e a situação

ficou resolvida. Foi a última vez que o exército marroquino tomou a iniciativa,

surpreendendo os espanhóis. No dia 29 de janeiro de 1860, os espanhóis celebraram

missa no acampamento, dedicando-se, mais tarde, ao reconhecimento do campo de

Tetuan.

O’Donnell havia assinalado o dia 4 de fevereiro como o dia do assalto a Tetuan.

O exército pôs-se em marcha muito cedo, avançando contra os tiros das espingardas do

inimigo e parando a 1700 metros do acampamento de Muley Ahmed. A artilharia

hispânica preparou o avanço, enquanto dois batalhões do Terceiro Corpo defendiam os

espanhóis dos ataques pela esquerda dos soldados e cavaleiros marroquinos. O Terceiro

Corpo cedo ultrapassou as trincheiras mouras, enquanto o Segundo Corpo esperava o

cessar-fogo das peças de artilharia para cercar o inimigo pelo outro flanco. Os

marroquinos das trincheiras eram bons lutadores, ajudados pela artilharia do

acampamento e da cidade de Tetuan. Mas os espanhóis penetraram no acampamento

com o major Primo a dirigir o Batalhão de Alba de Tormes e dos voluntários catalães

que haviam chegado de véspera. A reserva espanhola havia impedido que as forças de

Muley el Abbas, colocadas na torre Jeleli, fossem em auxílio dos seus compatriotas. Os

marroquinos abandonaram no acampamento tudo o que haviam levado e fugiram para

Tetuan sem que os seus oficiais-generais e superiores pudessem fazê-los voltar ao

combate. O acerto tático de O’Donnell havia infligido uma derrota total às forças

magrebinas e a cidade de Tetuan ficava aberta para os espanhóis.

No dia 5, o general O’Donnell dirigiu-se ao governador de Tetuan para que a

praça se rendesse, sob a ameaça de a bombardear. Com a promessa de respeitar vidas e

fazendas, a cidade rendeu-se aos espanhóis. O Batalhão de Zaragoza foi o primeiro a

entrar na cidade amuralhada, onde os espanhóis permaneceram. O’Donnell tinha a

esperança de continuar até Tânger. No campo marroquino, reinava o caos e a

desmoralização. A cidade de Tetuan, com cerca de cinquenta mil habitantes, estava

amuralhada e artilhada, mas os defensores não se sentiram capazes de lutar com o

exército espanhol. Muley el Abbas havia-se retirado, fugindo a sete pés, desistindo da

defesa da cidade. Seguiram-no muitos habitantes, que tentavam pôr-se a salvo

34

caminhando para Tânger, acreditando que os espanhóis incendiariam a cidade e que os

habitantes das montanhas saqueariam os restos: «Do alto da alcáçova observamos ao

longe, em direção ao fondakiv a longa caravana de fugitivos que ia como que em

peregrinação procurar refúgio nos escabrosos montes ou nas cidades vizinhas», escrevia

Núñez de Arce, que acompanhava Zabala, como cronista6.

Restavam os judeus sefarditas, que aclamavam os espanhóis como salvadores.

Estes entraram em Tetuan no dia 6 de fevereiro de 1860. Nesse momento, a conquista

de Tetuan era apenas um passo importante no caminho para Tânger, o verdadeiro

objetivo do exército espanhol. No entanto, embora a retirada marroquina de Tetuan

facilitasse a conquista da cidade sem resistência, a guerra não estava ainda terminada.

No dia 1 de março, publicou-se El Eco de Tetuán, dirigido, escrito e impresso por Pedro

Antonio de Alarcón e que se tornou o primeiro jornal editado em Marrocos. Alárcon

aproveitou a imprensa do exército expedicionário e publicou vários números que

defendiam a intervenção espanhola e a política de O’Donnell.

Durante a campanha, para ajudar os seus compatriotas, os cabilenhos fronteiriços de

Melilha atacavam continuamente a praça e as tropas espanholas de guarnição. No dia 7

de fevereiro, o brigadeiro Buceta, major da praça, decidiu iniciar uma operação de

punição, que se saldou com uma derrota, no dia 10 do mesmo mês, obrigando os

espanhóis a resguardarem-se nos fortes e na cidade.

A batalha de Uad Ras e o final da campanha

No dia 11 de março, ocorreu a primeira proposta de paz, que as autoridades

superiores marroquinas recusaram. O inimigo, refugiado na serra Bermeja, não se rendia

e continuaria a lutar ainda durante algumas semanas. O período de tréguas acabou nesse

mesmo dia, quando os marroquinos, escondidos na margem do Martín, iniciaram as

hostilidades contra as tropas de Echagüe. No dia 12, a tranquilidade volta a ser

ameaçada quando os marroquinos tentam atacar Tetuan. O inimigo protegia o caminho

para Tânger, pelo qual os espanhóis ainda tinham a esperança de passar, embora os

acordos diplomáticos com a França e a Inglaterra impedissem o exército espanhol de

chegar à cidade do Estreito. Além disso, dominavam as elevações dos arredores da

ivFondak, em espanhol fondac: em Marrocos, hospedaria onde se negoceiam as mercadorias levadas pelos traficantes. [NT]

35

cidade recém-conquistada. Para garantir a tranquilidade, era necessário voltar a

combater o exército do sultão até o derrotar definitivamente.

Como os espanhóis conheciam a tática marroquina, que consistia em cercar

pelos flancos, o general Ríos optou pelas elevações. O’Donnell ordenou que as tropas

espanholas avançassem. No entanto, o caminho de Tetuan para Tânger era difícil e

estreito, para além de não ser adequado para as carroças de artilharia e intendência.

Apenas se podia ir a pé ou a cavalo. Echagüe ia na vanguarda, a comandar o Primeiro

Corpo, seguido pelo Segundo Corpo, com Prim, e o Terceiro, com Ros de Olano, e com

toda a bagagem carregada por burros e oitocentos camelos comprados em Orão,

protegida pela divisão da cavalaria; a divisão de reserva de Mackenna encerrava o

cortejo. Às nove horas da manhã, a 2 quilómetros de Tetuan, o fogo da artilharia do

sultão começou a atingir a vanguarda. O objetivo dos marroquinos era conquistar o

aduar de Samsa e as elevações que o dominavam, para cercar as tropas espanholas,

espalhando-se pela serra. Echagüe, com três batalhões, antecipou-se à manobra e

impediu a retirada marroquina para Uad Ras∗, colocando um dos batalhões no ponto

mais alto. Prim veio em seu auxílio com uma brigada, atacando os marroquinos nas

colinas e a cavalaria com disparos artilheiros, enquanto Ríos tomava as elevações da

serra Bermeja. Depois, os marroquinos, derrotados, voltaram a pedir a paz, embora

continuassem a mostrar-se intransigentes quanto à perda de Tetuan. O governo espanhol

havia concordado com a diminuição da indemnização mas não com a retirada da cidade.

No dia 23 de março, o exército de O’Donnell estava preparado para avançar para

Tânger. O’Donnell já se havia reunido com Muley el Abbas para tratar da extensão do

acordo de paz. O marroquino sabia que as potências europeias não deixariam os

espanhóis chegar a Tânger e aproveitou-se do facto de a situação estar estagnada,

embora tivessem perdido a guerra. Era a sua última tentativa de conservar a cidade de

Tetuan, a que O’Donnell se opunha ameaçando continuar a guerra até Fez e Mequinez.

O general espanhol tinha conhecimento do estado de decadência em que o império

magrebino vivia, embora fosse pouco provável que pudesse continuar a guerra dadas as

pressões da França e da Inglaterra. As conversações foram interrompidas. Abbas tentava

ganhar tempo e O’Donnell insistia com ele, ao verificar que novas forças marroquinas

chegavam ao campo inimigo. No final de fevereiro, haviam chegado a Tetuan os

Tercios Vascongados, que reforçavam o exército espanhol, mas eram tropas voluntárias

∗ Os nomes árabes foram sempre muito mal traduzidos em espanhol. Pode-se ver escrito o rio Ras como Wad Ras, Uad Ras, Gualdrás ou Guad Ras.

36

de escassa instrução. Dado que os marroquinos não chegavam a acordo, O’Donnell

mandou que a esquadra bombardeasse os portos de Arzila e Larache.

No entanto, a interrupção das conversações apenas produziu um efeito negativo

em algumas das cabilas submetidas, que voltaram a fustigar os soldados espanhóis,

causando vários mortos. O acampamento marroquino estava a cerca de 10 quilómetros

de Tetuan, no caminho por onde deviam passar os espanhóis. Um novo encontro era

inevitável. Possivelmente, o erro de Muley el Abbas foi colocar as suas tropas nas

margens dos rios Martín e Ras, em campo aberto, estratégia de que o exército espanhol

sempre havia saído vitorioso, em vez de aproveitar os desfiladeiros do fondak (cenário

de ações difíceis em campanhas posteriores). Talvez este seja o sinal de quão pouco

acertado esteve o comando marroquino na guerra.

A batalha de Uad Ras, a mais complexa da guerra, havia começado. O flanco

direito espanhol não estava tão protegido, porque dava para campo aberto, e foi por aí

que os marroquinos atacaram após atravessar o Martín. Os espanhóis tiveram que os

expulsar a golpes de baioneta, obrigando-os a retirarem-se para os vales de Ras e Buceja

(Bu Sfiha). Entretanto, outras forças marroquinas, numa manobra de distração sem

sucesso, atacavam as posições da retaguarda espanhola nos fortes Estrella e Martín, este

último edifício muito degradado devido aos ataques que as esquadras francesas e

espanholas haviam perpetrado antes de ser conquistado pelo exército espanhol. Ao

chegar à ponte de Buceja, o vale ficava mais estreito, pelo que era mais fácil reter os

espanhóis nesse local. Os combates aumentaram, porque os espanhóis lutaram

tenazmente para conquistar uma posição elevada que protegesse o avanço, mas a

resistência marroquina era dura.

Os marroquinos entrincheiravam-se nos barrancos. Os voluntários catalães de

Prim tiveram que se empenhar a fundo. Passado o meio-dia, a vitória não pendia para

nenhum dos lados. O’Donnell decide, então, atacar o centro marroquino, carregando à

baioneta, fazendo recuar o inimigo pela primeira vez e conquistando com relativa

facilidade a ponte de Buceja. Mas o inimigo aguardava nas ladeiras de ambos os

flancos, para onde havia sido empurrado pelas cargas espanholas. Prim compreendeu

que não podia deixar que eles se entrincheirassem, pelo que lhes cortou a passagem, e

atacou as posições marroquinas, cuja maior parte estava no aduar de Anaral e no de

Benider, que dava nome aos montes. Uma vez conquistados esses pontos, a cavalaria

marroquina tentou isolar estes espanhóis da maior parte do exército. Para o impedir,

estavam os caçadores de Cidade Rodrigo, que chegaram à luta corpo a corpo, detiveram

37

o avanço inimigo e deixaram o campo cheio de cadáveres espanhóis e marroquinos. Na

segunda carga, viram-se apoiados pelo batalhão de Baza e a cavalaria moura voltou a

pôr-se em fuga.

O exército espanhol já estava completamente colocado e as ações marroquinas

estavam a ser menos efetivas. Haviam passado o dia inteiro a lutar quando O’Donnell

lançou o ataque final; a frente marroquina foi quebrada e as suas unidades foram

abandonando o combate. Às cinco horas da tarde, acabou a batalha. Yriarte descreveu-a

assim: «A vitória era total, mas havia saído muito cara… O valor demonstrado pelos

mouros estava acima de qualquer elogio; não foi coragem, foi ira, fanatismo, uma fúria

louca que se apoderou deles»7. Estava-se no Ramadão, o ardor guerreiro intensificou-se,

sendo também a última e desesperada tentativa de conter ou vencer os espanhóis.

A paz e as suas consequências

No dia 24 de março de 1860, iniciaram-se as conversações de paz em Tetuan.

Após a batalha de Uad Ras, Muley el Abbas não tinha mais forças para se opor aos

espanhóis e tentou conseguir uma paz honrosa, mas as condições de O’Donnell já

estavam impostas. O marroquino tentava já conseguir obter a paz o mais possível e

definitivamente. Derrotado em Uad Ras, já não tinha forças nem capacidade para se

opor aos espanhóis vitoriosos.

No dia 25 de março, os dois majores reuniram-se numa tenda de campanha para

concluírem os detalhes do acordo. A reunião foi longa e trabalhosa, embora as posturas

negociadoras estivessem em plano desigual. O’Donnell aceitou uma diminuição de cem

milhões de reais na indemnização, que se ficou pelos quatrocentos milhões. O general

atuava sem consultar ninguém, com presunção e sabendo em pormenor o que queria

aceitar, pois não nos devemos esquecer de que ele era também a autoridade do Governo

espanhol que havia redigido as cláusulas. Mas o convénio foi realista, contra os

sonhadores que pretendiam continuar com a conquista de todo o país quando nem

sequer era lógico prolongar as linhas para se avançar para Tânger. Não era uma guerra

colonial propriamente dita porque a sua finalidade não foi a conquista e a ocupação

permanente de um território africano. Para isso, precisava-se de mais meios materiais,

económicos e humanos, bem como de um acordo diplomático com outros países

europeus.

38

A paz foi assinada em Tetuan, no dia 26 de abril de 1860, renunciando os

espanhóis à continuação da conquista e fazendo regressar o exército à península a partir

do dia 29. O entusiasmo produzido pela guerra arrefeceu ao conhecer-se as condições da

paz. Em Espanha, esperava-se muito mais, principalmente a ocupação do norte

marroquino. Resumimos as cláusulas da seguinte forma:

1. Reconheceram-se os limites exteriores de Ceuta.

2. Estabeleceu-se uma indemnização de 400 milhões de reais. Enquanto

não fosse paga, os espanhóis retinham a cidade de Tetuan.

Relativamente à quantia, há discussões. Alguns autores, sobretudo da

época, consideram que a quantia se ajustava às despesas e baixas

causadas na parte espanhola. Outros pensam que era mais do que

Marrocos podia pagar e que foi uma medida que precipitou o império

nas mãos dos europeus.

3. Marrocos reconheceu o direito de Espanha a ter uma possessão em Santa

Cruz de Mar Pequeña.

4. Ambas as partes se comprometiam a assinar um novo tratado de

comércio.

Algo que se fez em Madrid, no dia 20 de novembro de 1861. Tratado que era

muito similar ao de 1779. Respeitava-se a liberdade de residência e de aquisição de

imóveis conforme o estatuto de nação mais favorecida. Concordou-se com a isenção de

impostos aos espanhóis em Marrocos e admitia-se a jurisdição consular.

Estabeleciam-se os direitos de ancoragem e pilotagem dos capitães do porto. Também

foi imposta ao sultão a obrigação de erguer um farol no cabo Espartel. Outorgou-se aos

espanhóis a possibilidade de comerciar em qualquer cidade marroquina onde um

súbdito de outra nação tivesse o mesmo direito. Estabeleceram-se tarifas alfandegárias e

o direito de pesca para os espanhóis nas costas marroquinas.

No papel, era um bom convénio para os espanhóis e muito severo para os

marroquinos. Como assinalámos, a situação espanhola era de expansão económica e

pensou-se que o mercado marroquino seria idóneo para as exportações e as importações,

mas o estado da economia espanhola era mais débil do que o desejável e não podia

encarregar-se de tudo o que Marrocos produzia e de que necessitava. Para piorar as

coisas, passado pouco tempo, o sultão assinava convénios semelhantes com a Inglaterra

39

e com outras potências europeias. Curiosamente, a Espanha era a única nação europeia

cujo comércio com Marrocos era deficitário.

Outra das consequências negativas da guerra para Marrocos foi o controlo das

suas alfândegas. Devido às pressões internacionais, os espanhóis consentiram em

abandonar Tetuan, cidade que garantia a indemnização da guerra, em troca de controlar

as alfândegas dos oito portos marroquinos abertos ao comércio exterior: Tânger, Tetuan,

Larache, Rabat, Casablanca, Mazagão, Safi e Mogador. Metade dos direitos iria para as

arcas espanholas e a outra metade para Marrocos. Esta situação durou de 1862 a 1885 e

nunca se chegou a cobrar a totalidade da quantia. A penúria que o controlo das

alfândegas trouxe à fazenda marroquina aumentou ainda mais, porque a Inglaterra havia

concedido ao sultão um empréstimo para o pagamento da indemnização que não estava

a ser restituído nos prazos devidos, pelo que também controlou as alfândegas na parte

que ainda correspondia a Marrocos. A perda de rendimentos, numa etapa de declínio,

foi de tal monta que conduziu Marrocos rumo à ruína e à decadência que, anos mais

tarde, iriam proporcionar a instauração do protetorado.

A tudo isto deve-se acrescentar que a jurisdição consular derivou para um

regime de capitulações, que consistia na possibilidade de os cônsules estrangeiros

admitirem protegidos marroquinos (judeus e muçulmanos) que eram julgados pelas

legislações europeias correspondentes e não pela justiça marroquina. O abuso deste

sistema fazia com que os súbditos do sultão que tinham possibilidades de fugir à justiça

do país se colocassem sob esta proteção, constituindo, assim uma casta privilegiada.

A guerra teve algumas consequências positivas para a Espanha, porque

realmente foi uma ocasião de unidade nacional da qual participaram todos os setores e,

apesar das baixas, não se ouviram vozes contrárias, salvo para criticar, como fez

Cánovas, «a grande guerra da paz pequena». Pela primeira vez em muitos anos,

possivelmente desde a invasão napoleónica, os interesses nacionais não estavam

divididos. A intervenção nas alfândegas permitiu que a Espanha formasse funcionários

marroquinos – amines – menos corruptos com os comerciantes do que os anteriores.

Também serviu para fixar de forma estável o câmbio de moeda, colocando a Espanha

outra vez numa posição dominante no cenário marroquino. Ainda assim, como

assinalam Lécuyer e Serrano, a grande beneficiada foi, possivelmente, a Inglaterra, cuja

economia lhe permitia aproveitar-se do que a Espanha era incapaz de explorar.

A última consequência da guerra foi a assinatura de outro tratado, o de Tânger,

no dia 26 de junho de 1862, em que se demarcavam os limites de Melilha, adquirindo a

40

Espanha uma franja considerável do alargamento da cidade, estabelecendo-se uma zona

neutral, por sinal hoje desconhecida por Marrocos, que a invadiu pouco a pouco. Tal

tratado provocou uma reação violenta das cabilas fronteiriças contra os espanhóis. As

negociações, a que presidiu, com grande habilidade, o diplomático Merry y Colom∗,

terminaram de forma muito favorável para a Espanha.

Relativamente à campanha e às suas ações, temos uma quantidade considerável

de fontes que nos permitem seguir os feitos diários do exército expedicionário. A guerra

suscitou também uma enorme expetativa nos países europeus, que mandaram

correspondentes e enviados especiais para se informarem a seu respeito∗. Devido à falta

de fotógrafos, apareciam igualmente inúmeros desenhadores, que deixaram belos

testemunhos dos acontecimentos; o mais célebre foi o do francês Charles Yriarte, que,

além dos seus desenhos, deixou uma excelente crónica: Sous la tente; récits de guerre et

de voyages. Os estados-maiores europeus também aproveitaram os acontecimentos para

enviar adidos militares ao exército de O’Donnell. Alguns deles deixaram as suas

impressões em livros, como o bávaro Schlagintweit em Der Spanisch-Marrokkanische

Krieg in den Jarhen 1859 und 1860 ou o prussiano Von Goeben. O governador

britânico de Gibraltar, lord Codrington, também foi à batalha de Tetuan. Entre os

cronistas espanhóis, destaca-se Pedro Antonio de Alarcón, que foi publicando

semanalmente o que ia vendo desde a sua posição privilegiada e cujos textos foram

reunidos num dos seus livros mais conhecidos: Diario de un testigo de la guerra de

África, abundante em detalhes e nomes, muito bem ilustrado e fonte básica para seguir o

decorrer das ações bélicas. Outro cronista célebre, também testemunha presencial dos

acontecimentos, foi Gaspar Núñez de Arce, que publicou Recuerdos de la campaña de

África (1860). Benito Pérez Galdós dedicaria a esta guerra um dos seus episódios

nacionais, Aita Tettauen (1905), e parte de outro, Carlos VI en La Rápita (1905).

∗ Francisco Merry y Colom foi o primeiro conde de Benomar. Diplomata espanhol, nascido em Sevilha, em 1829. O seu primeiro posto foi em Washington. De seguida, foi ministro em Tânger e embaixador em Berlim e em Roma, quando ocorreu a Conferência de 1884. Interveio ativamente na política para o império. Em 1866, viajou para Fez para entrevistar o sultão, com o objetivo de estabelecer alfândegas em Ceuta e em Melilha. Interveio também em Melilha, em 1893. Morreu em Roma, em 1900. ∗ Joly deixa o nome de muitos deles: Hardman, do Times, de Londres; os franceses De Chavarrier, do Constitutionnel, e Yriarte; e o belga Boyer, do L’Independance Belge e do La Patrie.

41

De guerra em guerra

A guerra que acabou em 1860 representava um acontecimento de enorme

popularidade que se viu coroado com o êxito militar, embora fosse necessário reduzir as

pretensões políticas e diplomáticas. Os espanhóis voltaram à sua pátria com um enorme

crédito sobre Marrocos, com o aumento do campo exterior das praças africanas e uma

vaga promessa de reconhecimento de uma zona pesqueira na parte ocidental do país.

Nunca se chegou a cobrar o dinheiro na sua totalidade e a possessão não duraria mais do

que setenta anos. Os anos seguintes trouxeram a perda da importância de Espanha em

Marrocos principalmente por duas razões: por um lado, como consequência da perda de

relevância de Espanha na esfera europeia e, por outro lado, pela internacionalização da

questão de Marrocos. Para não perderem o domínio no assunto, os espanhóis tentaram

conciliar os seus interesses simultaneamente com os da França e os da Inglaterra, o que

se tornava difícil.

A questão marroquina aparece e desaparece das primeiras páginas nacionais ao

longo dos anos. Como consequência do Tratado de Uad Ras, os espanhóis começaram

gradualmente a melhorar e a fortificar o território reconhecido em Melilha e, em menor

medida, em Ceuta. Em 1871, conteve-se, na primeira dessas cidades, o leito do rio de

Oro, na sua foz, o que produziu uma reação violenta da intervenção espanhola dos

marroquinos, que estavam cada vez mais zelosos da sua independência. Um ano depois,

discutiu-se nas Cortes a possibilidade de abandonar o Penedo de Vélez de la Gomera.

Foi um projeto de lei apresentado ao Senado pelo ministro da Guerra, Fernández de

Córdova, marquês de Mendigorría, que alegava que já não havia razão para a sua

possessão e que dava lugar a frequentes ataques, sendo difícil o envio de socorro. A

fortaleza estava em ruínas e a sua manutenção era cara. O projeto foi retirado perante o

protesto irado dos senadores, que tomaram a possessão do penedo como uma questão de

dignidade nacional.

A obsessão pelas questões africanas despertou nos países europeus. A

colonização já era um desejo geral e uma realidade em vastos territórios africanos

ocupados pelas distintas potências. Os exemplos da França, em Argélia, e de Portugal,

no sul do continente, apontavam um caminho que outros países estavam dispostos a

seguir. A política colonial pretendia obter grandes extensões para povoar e explorar. Já

não se queria possuir apenas algumas bases para o comércio em vários pontos da costa.

Foram iniciados, com êxito surpreendente, os estudos sobre o continente e as

42

explorações. Algumas sociedades geográficas, monarcas ou governos financiavam os

gastos de personalidades aventureiras e visionárias. Em 1855, os alemães Overweg e

Barth chegaram ao Sudão, ao Chade e Tombuctu, e Nachtigal percorreu, a partir de

1869, a parte ocidental; em 1858, o britânico Burton chegava aos grandes lagos, Speke e

Grant, às fontes do Nilo; em 1874, o francês Brazza percorria o Congo; em 1877, Serpa

Pinto explorava Angola e Moçambique.

Nessa altura, alguns espanhóis viajaram para Marrocos em situações particulares

de aventura e curiosidade. Em comparação com os exploradores estrangeiros, os

espanhóis careciam dos meios económicos dos mais famosos aventureiros britânicos ou

franceses e nem sequer contavam com apoio oficial para a cobertura diplomática e

financeira nas situações difíceis. No entanto, com mais vontade do que recursos,

entusiasmados por um extraordinário sentido do inovador, uma mão cheia de espanhóis

atreveu-se a entrar no continente perigoso e desconhecido. Alguns escolheram

Marrocos.

Um deles, Joaquín Gatell y Folch, havia nascido em Tarragona, em 1826,

estudou Filosofia no seminário da sua cidade e Direito na Universidade de Barcelona.

Estudou árabe e foi para Londres, onde se tornou um visitante assíduo do Museu

Britânico. Nesse local, tomou conhecimento de um prémio que os franceses dariam ao

primeiro que fosse da Argélia ao Senegal, passando por Tombuctu. Quis ser ele, mas

esteve tanto tempo retido em Orão que os outros o ultrapassaram. Cumpria o seu sonho

de viajante, que havia deixado registado nuns versos:

Arrastava-me o anelo

de misteriosas aventuras,

e empreendi atrevido voo

em busca de um estranho solo

e de estranhas criaturas.

E deixei os pátrios lares

e mil objetos queridos

para atravessar os mares

e lançar-me aos acasos

de mundos desconhecidos.

43

Após as derrotas marroquinas às mãos dos espanhóis, em 1860, e dos franceses,

em 1861, Gatell y Folch optou por ir para Tânger, traduziu para o árabe uma pequena

obra francesa de artilharia e fez circular o boato de que era um instrutor militar que

gostaria de trabalhar para o sultão. Foi chamado pelo governador da cidade, que havia

facultado o seu livro ao irmão do sultão. Finalmente, informado Muley el Abbas, Gatell

fez com que o contratassem e lhe dessem um uniforme marroquino, tomando o nome e

o título de Caid Ismail. Pôs-se a caminho com muitas dificuldades. Uma delas quase lhe

custou a vida, ao lançar-se contra um fura-vidas que se fazia passar por beato. Chegou a

Fez como major da artilharia imperial, composta por 200 homens, 3 oficiais e 6 velhos

canhões. Gatell ironizava no seu Diario: «O corpo de artilharia de Marrocos é um

modelo no seu género. E não é a vaidade que me leva a dizer que é um modelo, já que

eu faço parte dele, mas sim porque é a verdade. Por acaso, não existem modelos para

fazer rir»8.

O exército imperial acompanhava a banda de música dirigida pelo desertor

espanhol Ferrer e que tocava as mesmas marchas que as bandas militares espanholas,

entre elas Guerra, guerra, al infiel marroquí! A falta de disciplina e de armamento, bem

como a aversão que lhe tinham alguns notáveis da corte magrebina, obrigaram-no

rapidamente a desistir de prosseguir a carreira militar; contudo, interveio em combates

contra cabilas independentes, como as do Garb, e contra os Beni Hassan e os

Rahamena, em 1862, acontecimentos que registaria no seu Diario. Além deste escrito

sobre a campanha, Gatell deixou um texto com o título Manual del viajero explorador

del Africa e uma Descripción del Sus. No primeiro desses textos, expôs os impulsos que

o levaram, a ele e a muitos outros, a África:

Quem está, pela primeira vez na sua vida, a iniciar uma viagem a um país

incivilizado constrói mil esperanças relativas às peregrinas aventuras que, no seu

parecer, o esperam. Seduzido pelos relatos que lhe fizeram ou entusiasmado

pelas suas leituras, espera ansioso o momento de partir para satisfazer a sua sede

de novidades, para ser testemunha de estupendas maravilhas. A curiosidade

arrasta-o e, no seu íntimo, preocupado com as suas ideias, imagina, com as cores

mais encantadoras, os cenários e objetos que vai presenciar. Espera ser de

imediato um herói, como o herói das suas lendas, sem ter em conta o que este

sofreu. Sabe, com certeza, que o esperam contratempos e aborrecimentos, mas

não é por isso que desanima, porque a sua impaciência sufoca todo o medo; sabe

44

também que se vai expor a grandes perigos, o que não deixa de lhe agradar,

porque apenas os vê na sua imaginação e espera evitá-los com a maior das

facilidades; grandes obstáculos aparecerão no seu caminho, mas promete

ultrapassá-los a todos. Antes da viagem, tudo é fácil e sedutor; uma expedição

arriscada é o cúmulo do prazer para homens inexperientes. No entanto, a viagem

começa e, passado pouco tempo, a cena muda repentinamente de figura.

Satisfeita a primeira curiosidade, começa-se a notar que o corpo se cansa, que o

espírito fica aborrecido e o coração, desgostoso. Ali, onde se esperava encontrar

palácios encantados, não se veem mais do que miseráveis barracas; em vez de

tipos sedutores, vê-se confrontado por caras repugnantes; os cenários são quase

todos bárbaros e de terror; a civilização consiste em grosseiras gerigonças e, se a

tudo isto se juntar um perigo real e verdadeiro, então já se sente mais a falta da

calma e da tranquilidade de que se disfrutava no solo da pátria. No entanto, isto

não deve desanimar os viajantes inexperientes: o homem de coração não

desanima diante dos contratempos. Leve sempre avante o objetivo proposto: o

cumprimento do seu dever compensa largamente as suas dificuldades e até

mesmo nos seus próprios sofrimentos encontra prazer, persuadido de que os seus

trabalhos perderiam mérito se não fossem levados a cabo por entre sacrifícios.

Quanto maior estes forem, maior será a sua satisfação e, no fim da sua viagem,

um nobre orgulho despertará na sua alma, ao ver que levou a cabo uma empresa

digna, ultrapassando todos os obstáculos.9

A experiência de instrutor não durou muito porque, entre outras coisas, impedia

Gatell de viajar pelo país, que era aquilo de que mais gostava. Assim, quando foi

obrigado a demitir-se, passou a ser médico e percorreu Rabat, Mazagão, Mogador, Atlas

até chegar às planícies do Sus, antecipando-se a outras expedições espanholas cujo

objetivo era a colonização do Saara. Esta parte do sul de Marrocos era um território

desconhecido através do qual os estrangeiros não se podiam aventurar, já que as suas

vidas corriam perigo. Era uma zona fronteiriça entre o deserto e o império, o último

lugar de soberania marroquina onde a autoridade do sultão não era excessivamente

visível; era também o limite com os territórios nómadas das tribos saarauis. Gatell

descreveu as cidades de Tarudant e Agadir. De volta a Mogador, foi a bordo de um

navio inglês para Casablanca, a partir de onde continuou viagem para Tânger e para

Espanha. Regressou em 1865, após quatro anos em terras africanas. As suas descrições

45

do país e dos combates em que participou, publicadas originalmente em inglês e em

francês, contribuíram com muitos dados para o conhecimento de Marrocos. Foi um

partidário decidido da colonização espanhola do Saara. Morreu em Cádis, no dia 13 de

maio de 1879, quando preparava outra expedição.

José María de Murga y Mugártegui foi contemporâneo de Gatell e um aventureiro

semelhante. Nasceu em Bilbau, em 1827; foi oficial de cavalaria; esteve, como

observador, na Guerra da Crimeia, onde conheceu alguns notáveis marroquinos. Depois

de visitar Constantinopla, decidiu viajar para África. Estudou previamente árabe, em

Paris, e doutorou-se em Cirurgia Menor, em Madrid. Por fim, estabeleceu-se em

Marrocos, em 1863, onde se fez passar por renegado enquanto viajava pelo país e

tomava notas das suas observações, com o nome de Hach Mohamed el Bagdadi. Em

Fez, foi bem acolhido por uma numerosa colónia de renegados, ou seja, cristãos que

abandonavam a sua religião para abraçar o islamismo; deles deixou um divertido relato.

Havia colónias similares em Marraquexe, Mequinez e outras cidades, e todos

obedeciam a um líder chamado Torres, um delinquente fugido da justiça de Valência.

Os renegados eram acolhidos pelo sultão, numa situação de tranquilidade e respeito.

«Os renegados, que nada têm a perder nem a ganhar, prestaram grandes e bons serviços

aos imperadores marroquinos… Isolados, ignorantes da língua e sem relação nem apego

algum por aquele país, são uma guarda pretoriana da qual o sultão pode esperar tudo se

souber conduzi-la; não tem de temer revoluções internas no seio dela e, por sua vez,

dela não pode ter medo algum, pois, reduzida hoje a um pequeno número, seria desfeita

e destruída apenas com uma insinuação»10. Isto era o que Murga escrevia sem

desconhecer a precariedade da situação deste tipo de pessoas, que podiam perder o favor

do sultão quando este deixava de precisar delas. O sultão pagava-lhes uma pequena

quantia, que eles completavam com outras ocupações, lícitas ou não. Murga

enquadrou-se neste grémio durante um tempo.

Murga exerceu os mais variados ofícios, pondo em risco a sua vida em várias

ocasiões. Foi vendedor ambulante e médico, ocupações que lhe permitiram viajar pelo

país, como era seu desejo. Como membro da guarda renegada do sultão, teve fácil

acesso a alguns lugares e entrada em cidades onde acompanhava o sultão. Os seus

estudos de Medicina valeram-lhe para exercer a profissão de médico num país de

curandeiros e charlatões que tratavam os males com produtos inócuos e variadas

superstições. Alguns conhecedores dedicavam-se à indústria farmacêutica, inventando

remédios do mais pitoresco, que apenas a credulidade dos ingénuos habitantes do país

46

podia aceitar. Em 1865, morre a sua mãe e Murga regressa a Espanha, publicando, em

Bilbau, em 1868, Recuerdos africanos del moro vizcaíno. O livro trata de vários aspetos

da vida no país, mas de forma desordenada. Nele não narra a sua vida e as suas viagens,

que parece que deixou para uma obra posterior que não chegou a concluir. Mas foi uma

fonte importante de informação sobre a vida e os costumes, quando não existiam outros

textos sobre Marrocos. Posteriormente, foi deputado-geral de Vizcaya e participou no

cerco de Bilbau, na guerra carlista. Em abril de 1873, voltou para Marrocos, de onde

regressou, em agosto, pelas Canárias. Quando preparava a sua terceira viagem, em

1876, morreu subitamente, em Cádis. Tal como Gatell, Murga contribuiu para um

melhor conhecimento do império magrebino, que, naqueles anos, era quase

impenetrável. Ambos facilitaram o labor propagandista dos africanistas espanhóis.

A aventura de Cristóbal Benítez, que atravessou Marrocos e chegou a Tombuctu,

cidade proibida aos estrangeiros, foi ainda mais romanesca. De Benitéz, sabe-se pouco,

quase nada; havia vivido em Tânger ou Tetuan, pelo que tinha conhecimentos de árabe.

Mais tarde, seria intérprete na alfândega de Larache e no consulado espanhol, e,

possivelmente, também chanceler em Mogador. Havia conhecido o viajante alemão

Oskar Lenz e ambos decidiram atravessar o império, parte do Saara e chegar à cidade de

Mali. Lenz necessitava de alguém que lhe servisse de tradutor e Benítez, que havia

viajado em algumas ocasiões pelo interior do país desde a sua residência em Tetuan,

aproveitou a iniciativa do alemão para dar início à sua aventura. Cada um escreveria a

sua história com um estilo diferente, mas com abundância de detalhes sobre a vida

marroquina, de que se sabia tão pouco até então. A investigadora Lily Litvak escreve:

«Das duas crónicas, a mais detalhada e erudita é a de Lenz. No entanto, a mais

apaixonante é a de Benítez, provavelmente pela forma de escrever, mais solta, mais

livre, mas, sobretudo, porque nesta se dá mais importância às aventuras e peripécias

ocorridas durante a viagem»11. Efetivamente, o relato é uma incessante sucessão de

aventuras em situações extraordinárias, que Benítez vai narrando com graça, com o

exagero próprio dos europeus que, naqueles anos, visitavam o país magrebino.

Demoraram sete meses para chegar a Tombuctu, percorrendo cidades e campos que

Benítez deixou descritos à sua maneira. O fascínio pelo que era novo estava sempre

ligado a um forte sentimento de alteridade e à inevitável comparação entre a civilizada

Europa e a bárbara África.

Em março de 1880, abandonaram Marraquexe, disfarçados de mouros, na

companhia de um árabe argelino chamado Hach Ali Butabeb e de outros servidores do

47

país. A viagem desde Ceuta, de onde partiram três meses antes, não tivera, até então,

grandes contratempos. Depois, continuaram pelo interior do país, visitando os paxás das

cidades, protegidos por uma carta que o sultão deu a Lenz e que o certificava como

médico otomano. Atravessaram os desfiladeiros do Atlas, passaram por Tarudant e pela

região do Sus, onde tiveram problemas com a população, que os considerava cristãos

disfarçados. Benítez acalmou os ânimos, fazendo-os acreditar que eram xerifes ou

descendentes do profeta que voltavam de uma viagem a Meca.

Prosseguiram viagem pelas montanhas. O trajeto, que Gatell já havia feito,

obrigava-os a passar por Agadir. Atravessaram o Saara, com grandes dificuldades e

perigos, a começar pelo rio Dráa, cujo caudal se encontra seco na maior parte do ano

mas que recolhe torrencialmente as águas do Atlas em determinadas épocas. O Dráa era

a fronteira do Saara, o limite entre berberes e nómadas do deserto. Segundo Benítez, «o

seu principal exercício é a pilhagem, podendo-se garantir, sem recear qualquer engano,

que não há um único indivíduo que não seja ladrão; quando não há caravanas para

roubar, ou vão tão bem armadas e vigiadas que é impossível atacá-las, vão ao extremo

de se saquearem mutuamente ou de se reunirem em grande número para saquear as

tribos inimigas»12.Com isso, queria salientar o risco da sua travessia pelas areias. Do

Dráa passaram para Tinduf, a cidade que era a verdadeira porta para o deserto e para o

mercado principal das caravanas que aí entravam ou daí saíam. A cidade amuralhada

estava rodeada por um extenso palmeiral, a única vegetação em muitos quilómetros em

redor. Mudaram de guia e abasteceram-se de camelos acostumados às jornadas do

deserto, para continuarem o seu caminho até à curva do rio Níger, atravessando os

territórios que hoje correspondem ao Saara Ocidental, à Mauritânia e ao Mali. A

hostilidade crescente de alguns dos criados fez com que os dois desconfiassem que

corriam perigo, porque, naquela região, era fácil fazer desaparecer uma pessoa e ficar

com os bens que ela levasse. A fome, a sede e o cansaço foram outros inconvenientes na

expedição improvisada dos dois europeus.

No dia 1 de julho, chegaram a Tombuctu, cidade cosmopolita cheia de

mercadores de todas as nações árabes e negras. Estrategicamente situada, era o centro

comercial de muitas regiões. «Em Timbouctou encontra-se à venda tudo o que a África

e os africanos produzem; embora a população nada produza, porque os povos do interior

do Sudão e do norte e sul do continente levam para lá os seus produtos para venda ou

troca, pela sua posição geográfica serve de depósito geral»13, escrevia Benítez. Saíram

da cidade a caminho de São Luís do Senegal, para evitar de novo o deserto, e de lá

48

embarcaram para Tenerife. O relato de Benítez foi publicado no Boletín de la Real

Sociedad Geográfica a partir de junho de 1886 e apareceu em forma de livro, em

Tânger, em 1899. Em 1883, Benítez fez parte da expedição que tentou fixar a

localização exata de Santa Cruz de Mar Pequeña. Faleceu em Mogador (Essaouira) no

dia 7 de setembro de 1924, tendo sido enterrado no cemitério português da cidade.

Em 1884, teve lugar a primeira viagem de Julio Cervera Baviera, engenheiro

militar, pelo interior do império, embora mais tarde participasse em expedições

saarianas. Este homem inquieto, nascido em Segorbe, em 1824, e falecido em Madrid,

em 1929, trabalharia, mais tarde, com Marconi e teve as primeiras patentes da telegrafia

sem fios. Alguns atribuem-lhe a invenção da rádio. Participou, ainda, na guerra de

Cuba, defendendo Guamaní. O livro Expedición al interior de Marruecos, publicado

pela primeira vez em 1885, foi fruto da sua primeira viagem ao interior do império, que

lhe foi encomendada pelo exército para que conhecesse melhor a nação. Consigo,

levava material fotográfico, deixando algumas amostras gráficas da vida nas cidades e

nos campos marroquinos, que foram publicadas na sua obra. Tentava procurar

itinerários, desenhar mapas e descrever o estado da nação, tendo em vista futuras

expedições ou a preparação do campo para a colonização.

Percorreu o caminho da guerra de 1860, saindo de Ceuta até chegar à cidade de

Tetuan, dando notícias da mesma e das cabilas do território, detalhando com perfeição o

que era relativo ao exército marroquino, possivelmente porque essa era a sua principal

incumbência. Já existia, nesta cidade, uma pequena colónia espanhola:

Na praça de Espanha, de planta retangular, aberta, vazia, encontra-se o nosso

consulado e o espaçoso, cómodo e inútil convento de frades franciscanos,

ocupado por alguns reverendos senhores que não fazem absolutamente nada de

proveito e que têm uma vida tranquila e invejável, ou seja… invejável para os

preguiçosos de profissão. Há, também, na praça a farmácia espanhola… da

ocupação dos espanhóis, apenas resta um bairro completamente em ruínas, cujos

edifícios foram destruídos com o objetivo de aproveitar as madeiras como

combustível, devido às dificuldades e aos perigos a que os soldados estavam

expostos se fossem procurar lenha fora da cidade. 14

Dali, encaminhou-se para Tânger, dando os detalhes que pôde sobre o caminho e

a passagem de Ain Yedida, onde se levantava o célebre fondak, cenário de cem batalhas

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espanholas. Seguiu o caminho do sul até Alcácer-Quibir, percorreu os rios Uarga e

Sebú, e chegou a Fez, cidade onde aproveitou para se informar sobre a estrutura política

e administrativa do império: «Visito os monumentos, percorro os bazares, examino as

pontes construídas antigamente sobre o rio de Fez, inspeciono os mais pequenos

detalhes e acumulo dados que contribuem para formar a minha opinião sobre o valor e a

importância do império e das suas coisas»15. O seu itinerário recorda os projetos

expansionistas dos mais notáveis africanistas espanhóis.

Em Fez, Cervera trocou a indumentária europeia pelas vestes do país e aí

permaneceu vários dias, sendo acolhido por alguns notáveis. Mais tarde, visitou Rabat

que considerava a povoação mais bonita do país, Mehedia, Larache, Arzila e Tânger,

para regressar a Espanha. As viagens dos espanhóis pelo império no último terço do

século XIX apoiaram-se em guias locais e na proteção de líderes e personagens

importantes. Cervera não se fez passar por muçulmano, salvo quando queria deambular

pelas ruas de Fez sem ser incomodado, mas não teve mais contratempos que os outros,

embora, verdade seja dita, não tenha chegado, nesta viagem, às regiões do sul. Cervera,

a quem voltaremos quando falarmos do Saara, é uma das figuras mais importantes do

africanismo espanhol e uma personagem inquieta, surpreendente e ilustre.

A conferência de 1880

Em 1877, Cánovas decide admitir a política de statu quo em Marrocos,

renunciando à conquista de Santa Cruz de Mar Pequeña para que as ações espanholas se

coordenassem com as de outros países sem levantar receios nem originar conflitos. Em

campo marroquino, jogavam várias potências com interesses na zona, principalmente a

Espanha, a França, a Alemanha e a Inglaterra. Nenhuma delas podia atuar sem o acordo

de todas, para não se correr o risco de se chegar ao conflito. Os europeus não queriam,

de maneira alguma, originar, em África, uma guerra entre eles. Portanto, os interesses

de cada um deviam ser conjugados com os dos restantes. Com o objetivo de ajustar as

políticas de todos os países, o plenipotenciário inglês em Madrid, Sackville West, havia

acordado com o ministro espanhol de Estado, Carlos Manuel O’Donnell, a realização de

uma conferência em Madrid. As potências interessadas responderam de forma positiva a

esta conferência, que foi inaugurada no dia 19 de maio, com a presença de

representantes da Alemanha, da Áustria-Hungria, da Bélgica, dos Estados Unidos, da

Inglaterra, da Dinamarca, da Itália, de Marrocos, de Portugal, da Suécia-Noruega e da

50

Espanha. A conferência tratou especialmente de dois pontos. O primeiro foi a

manutenção do statu quo, estratégia muito utilizada pela diplomacia que consistia em

deixar as coisas como se encontravam no momento até se chegar a um acordo entre os

países interessados, para lhes ser dada a solução conveniente. O segundo ponto dizia

respeito à proteção consular a súbditos marroquinos. Já vimos que a jurisdição consular

se aplicava aos estrangeiros no império, desde que a mesma lhes fosse reconhecida, e

aos nacionais marroquinos, a quem se estendia e que eram agentes comerciais de casas

estrangeiras. Os países estrangeiros queriam ver aumentado este privilégio; contudo, o

representante marroquino, Mohamed Vargas, queria reduzi-lo ao mínimo e deixá-lo

apenas para os assuntos penais e mercantis. Uma extensão abusiva da proteção consular

ia contra a soberania marroquina e a autoridade do sultão. No entanto, para os europeus,

era um mecanismo muito útil nas suas relações comerciais e servia para minar a

estabilidade do império. No final, limitou-se a doze proteções consulares por potência e

a convenção ficou assinada no dia 3 de julho.

A situação em Marrocos prosseguia numa calma tensa, na qual a ordem interior

do império ia sendo destruída, e as potências europeias aguardavam o momento

oportuno para intervir, agitando, dentro do possível, a política marroquina. Em 1887, o

ministro de Estado, Segismundo Moret, viajou para Paris e tratou do assunto de

Marrocos. No ano anterior, em Madrid, Paul Cambon havia sido nomeado embaixador

francês, organizador do protetorado em Tunes e especialista em questões africanas. A

política marroquina de Espanha estava a agitar-se e, apesar dos protestos de alguns, os

dois partidos tinham a mesma ideia de intervir no momento propício. A sessão das

Cortes do dia 31 de janeiro de 1881 foi clara para determinar as posições. Receava-se

que a situação se descontrolasse e se desencadeasse uma intervenção europeia. Segundo

Moret, ministro do Estado do governo de Sagasta, Marrocos era «uma questão de

interesse vital para a Espanha». O seu adversário Cánovas era mais prudente, mas tinha

o mesmo espírito intervencionista. Ambos defendiam o respeito pelo statu quo. De

facto, não tinham outra alternativa, mas Moret era mais impulsivo e reforçou as

guarnições de Ceuta e Melilha. Cánovas, líder da oposição, suspeitava que, por detrás

disto, se escondia alguma aventura intervencionista; contudo, Moret negava-o.

Cambon tentava conjurar as ações espanholas sobre África, em consonância com

o acordo hispano-italiano de 1887, que procurava a abstenção italiana em questões

marroquinas. Moret era muito manipulador, tentava desvincular-se de França e

aproximar-se de Inglaterra, mas as suas manobras não eram apreciadas nem no interior

51

nem no exterior, e Sagasta substituiu-o pelo marquês da Veja de Armijo. A aliança (ou

pelo menos, o acordo natural) tinha que ser feita com a França, que era a outra potência

interessada no país, em virtude das suas fronteiras argelinas, e com os consulados e as

casas comerciais que tornavam real a presença gaulesa no país. A Espanha e a França

achavam óbvio que deviam ser elas a ocupar Marrocos, nem que fosse através de um

protetorado. O objetivo final, que era a conquista de Marrocos, ficava adiado.

Em 1887, o ministro marroquino dos Negócios Estrangeiros, Mohamed Torres,

retirou-se por ter já uma idade avançada. Era um homem sábio, que soube negociar

habilmente com os europeus, apesar de estar consciente da debilidade da sua posição.

Temia-se, nesses dias, a morte de Muley Hassan e o governo espanhol mandou

concentrar tropas na Andaluzia e a esquadra, na baía de Tânger. Em 1890, o kaiser

Guilherme chegava ao poder e dava por terminado o sistema de alianças existente nos

tempos de Bismarck. A Alemanha e a Inglaterra enfrentaram-se pela sua supremacia

num novo cenário. A Alemanha reivindicava o seu papel no mundo, a sua vontade de

intervir e de ter uma porção na divisão de África face às posições quase exclusivistas de

França e de Inglaterra. A França havia ocupado Tunes em 1881, com o pretexto de que

servia de base aos rebeldes argelinos e dada a situação financeira de bancarrota que

ameaçava o empréstimo francês, argumentos que se poderiam utilizar também para uma

operação similar em Marrocos. A outra política francesa para a colonização passava por

estrangular financeiramente os países norte-africanos até que não pudessem pagar as

suas dívidas e tivessem que admitir um protetorado.

Marrocos esteve sempre presente nas ambições estrangeiras das potências

europeias. Trata-se de uma etapa histórica de grandes alianças internacionais. Em 1882,

formou-se a Tripla Aliança com a Alemanha, com o império austro-húngaro e,

finalmente, com a Itália. Para lhes fazer frente, a França e a Inglaterra tentavam chegar a

acordos a que se podia associar a Rússia. A Espanha ficava isolada, o que preocupava

os políticos hispânicos, porque sabiam que a questão de África se resolveria num

tabuleiro internacional. Os gabinetes espanhóis tentaram não ficar fora do sistema de

alianças. Moret tentou uma aproximação à Tripla Aliança através de um acordo com a

Itália, ressentida pela sua exclusão de Tunes. Procurava-se o apoio da Tríplice para

excluir a França de Marrocos, considerada uma pretensão desmedida. No entanto,

chegou-se a assinar um acordo entre a Itália e a Espanha, em 1887, que incomodou a

França. Moret havia ganhado algum apoio internacional à política espanhola

relativamente a Marrocos. Contudo, os acordos serviriam de pouco.

52

Nessa década, aparecem em Espanha as primeiras manifestações de um

africanismo ativo propagador das ideias de intervenção em África. O início do

africanismo organizado pode ser situado na Sociedade Geográfica Madrilena, fundada

em 1876. O trabalho de atuar no ânimo geral e nos responsáveis políticos teve pontos

altos, como o Congresso Espanhol de Geografia Comercial e Mercantil realizado em

1883 por aquela sociedade. A sua intenção era incitar os políticos a abordar de forma

decidida a questão africana. Abriram-se as sessões recordando o ideário da Sociedade:

Não seria prudente, nem patriótico, esperar que os governos satisfaçam esta

necessidade, pois, sendo eles expressão sintética e unitária da opinião social, só

se verão obrigados a incluir nos seus programas novos rumos para a política

colonial de Espanha quando a opinião geral se pronunciar de forma decidida e

unânime e se lançar à ação por meio de órgãos espontâneos, e demonstrar por

atos que tem consciência clara do que quer, e vontade firme para o querer, para

além do poder material para o fazer, sem que os frutos que consiga pela sua ação

sejam exóticos ou prematuros.16

Era necessário agir sobre o governo a partir da opinião pública e por meio das

elites cultas e conhecedoras das novas políticas seguidas na Europa.

No dia 30 de março de 1884, decorreu no teatro Alhambra de Madrid, o comício

da Sociedade de Africanistas e Colonistas, que serviu para dar a conhecer este grupo e

para expor as suas ideias fundacionais. Intervieram Francisco Coello, Joaquín Costa,

Gabriel Rodríguez, Gumersindo de Azcárate, Eduardo Saavedra e José de Carvajal. A

reunião, claramente propagandista a favor da intervenção em África, embora

inicialmente se garantisse o respeito e a integridade de Marrocos, acabou com a leitura

de um manifesto de vinte e dois pontos que se enviou às Cortes, nos quais se resumiam

as velhas aspirações espanholas em Marrocos, na Guiné e no Saara, e se exigiam ao

governo reformas e medidas administrativas, económicas e legislativas. A posição

resumia-se à prevenção relativamente às ações de outras potências e à preparação para

atuar no devido momento. Coello resumia esse manifesto assim:

O que seria de Espanha, senhores, se um dia outra nação poderosa ocupasse as

costas e os territórios que temos tão próximos!... É esta, sem dúvida, uma

questão de honra nacional para a Espanha; e considero-a tão importante, tão

53

interessante, que, aos meus olhos, a ocupação de um ponto das costas de

Marrocos por uma potência estranha seria para nós, espanhóis, uma mancha tão

grande como se se tratasse de qualquer pedaço do nosso próprio território17.

No entanto, ainda não se vislumbrava a colonização propriamente dita, mas um

sistema de colaboração comercial e política que Joaquín Costa resumia, com

ingenuidade e excesso de boas intenções, entre grandes aplausos do público:

Os marroquinos foram os nossos mestres e devemos-lhes respeito; foram nossos

irmãos e devemos-lhes amor; foram nossas vítimas e devemos-lhes uma

recompensa real. A nossa política com Marrocos deve ser, portanto, uma política

reparadora, uma política de intimidade e de restauração. Se tal política pudesse

ser contrária aos nossos interesses de momento, ainda assim, eu recomendá-la-ia

à minha pátria, considerando que apenas são dignos da vida os povos que sabem

sacrificar o seu proveito temporal por um impulso do coração e que põem acima

de tudo a santa religião do dever18.

Aconteceram outras iniciativas, como a criação, em 1886, da Câmara Espanhola

de Comércio em Tânger. O arabista Antonio Almagro Cárdenas havia fundado em

Granada o jornal La Estrella de Occidente, foi o impulsionador do I Congresso

Espanhol Africanista, realizado nessa cidade em 1892, com um carácter marcadamente

cultural e científico, mas que não excluiu das suas sessões algumas questões sobre a

política marroquina. A importância do assunto provoca o aparecimento de novas obras

sobre Marrocos, algumas de especial relevância, como El império de Marruecos y su

constituición (1882), de Emilio Bonelli, oficial de infantaria que teria um papel de

destaque na ocupação do Saara. Nesse mesmo ano, a embaixada de Wenceslao Ramírez

de Villa-Urrutia deslocou-se a Marraquexe, com a missão de tratar com o sultão a

entrega do território de Santa Cruz de Mar Pequeña, reconhecida no Tratado de Uad

Ras. Tinha como intérprete o aventureiro Cristóbal Benítez. Teríamos que esperar até ao

século XX para vermos nascer outras iniciativas semelhantes, como os quatro

congressos africanistas que ocorreram entre 1907 e 1910, bem como a atuação da Liga

Africanista e dos centros comerciais hispano-marroquinos, na segunda década do século

passado.

54

A guerra de 1893

O statu quo sobre a política do império criava uma situação de tensão entre as

potências interessadas na intervenção. Nenhuma renunciava às suas pretensões; no

entanto, nenhuma podia atuar sem o consentimento das outras, o que gerava uma

permanente situação de desconfiança em relação ao que algumas potências podiam estar

a preparar nas costas das outras para fortalecer as suas posições ou para consolidar as

políticas de factos consumados. A França aproveitava as suas fronteiras da Argélia para

empreender ações contra a integridade territorial marroquina. A Espanha tinha uma

arma que utilizaria de imediato. As suas posições de Ceuta e Melilha eram a melhor

cabeça-de-ponte para uma penetração e estava ainda por executar o acordo da extensão

de limites de Melilha. As relações com Marrocos oscilavam entre atos piratas contra as

embarcações espanholas e protestos apoiados pelas embarcações da armada, que iam

aos portos marroquinos como forma de ameaça. O império vivia já em decadência e

sem autoridade. Face a esta situação, os caudilhos tribais e todo o tipo de personagens

mais ou menos pitorescas impunham a força onde faltava a ordem e o respeito pela lei.

Como consequência da guerra de 1860, os espanhóis conseguiram o alargamento

do campo exterior da velha cidade amuralhada de Melilha. Em 1862, delimitou-se a

nova extensão, atirando-se, a partir da cidade velha, uma bala de canhão de calibre 24

com a espoleta a zero. A distância conseguida foi um raio com cerca de 2900 metros.

Assinalou-se, com alguns marcos de pedra, uma linha poligonal que marcava os 12,3

quilómetros quadrados de área de território espanhol e concedeu-se aos marroquinos um

enclave onde estava a mesquita em que repousavam os restos de Sidi Guariach. A partir

dessa linha, existiria uma zona neutral de 500 metros de largura. Nada mais se fez até à

década de oitenta, quando se começou a fortificar a zona espanhola com a construção de

fortes que a protegiam a ela bem como à fronteira. Eram construções pequenas, pouco

mais que torres circulares com um pátio central, com muros pouco resistentes, pensados

para os tiros das espingardas, e com uma artilharia rudimentar. Cada um dos fortes

albergaria uma guarnição reduzida. No entanto, eram o símbolo da soberania e uma

demonstração de força. Em 1881, edificou-se o forte de San Lorenzo e, em 1885,

finalizou-se os de Camellos e de Cabrerizas Bajas. O maior de todos, o de Rostrogordo,

finalizou-se em 1890 e o de Cabrerizas Altas, em 1893. Cada um destes dois últimos

podia albergar 150 homens, mas necessitava da praça para o fornecimento de

55

intendência e água. Completavam o perímetro os fortins de María Cristina e San

Francisco, cada um com capacidade para 50 homens.

Ao abrigo das fortificações, nasceram os bairros exteriores da cidade, que

cresciam a cada ano. Apenas faltava terminar o forte de Sidi Guariach para completar a

defesa de ponto. A sua construção havia-se iniciado em 1890, mas surgiram

dificuldades por entrar em conflito com a cabila do mesmo nome, já que esta entendia

que o forte estava a ocupar parte do terreno da mesquita e do santuário. As obras foram

abandonadas e, em 1893, decidiu-se continuá-las. Os trabalhos que os presidiários

adiantavam de dia, os cabilenhos desfaziam de noite. No início de outubro, o general

Margallo – major da praça – decidiu que uma secção pernoitaria nas obras e que se

levantaria um fortim provisório, como defesa.

No dia 2 de outubro, os mouros atacaram as forças espanholas colocadas no

lugar. O ataque foi persistente e, pelo imprevisto, os reforços espanhóis não

responderam de forma adequada. Cerca de 200 espanhóis ficam cercados no fortim

provisório e nas obras de construção, sem possibilidade de ripostar ou de sair dali.

Margallo quis pôr-se à frente da operação de socorro e foi ao forte mais

próximo, o de Camellos, a partir do qual tentou organizar a operação, pedindo reforços

à praça, que foram chegando a conta-gotas e de forma desorganizada. Entre os que

chegaram em primeiro lugar, encontrava-se uma bateria de artilharia com duas peças.

Após várias horas, conseguiu-se formar uma coluna com cerca de 450 homens,

improvisada e diversificada, com a qual se iniciou o contra-ataque. Nesta primeira ação,

explodiu um dos canhões. Tentou-se chegar aos sitiados dispondo os homens em

guerrilha ou formando uma coluna, mas os esforços foram em vão.

À tarde, Margallo compreendeu que a força do resgate não ia poder alcançar o

fortim para libertar os sitiados. No entanto, tinha conseguido abrir um corredor entre o

fortim provisório e o de Camellos, por onde os mouros não passavam e por onde se

pediu aos sitiados que retrocedessem. As guerrilhas chegaram a cerca de 300 metros do

fortim, mas o inimigo - calcula-se que cerca de cinco mil homens - não as deixou chegar

mais perto. A operação terminou; os sitiados chegaram a Camellos e retiraram-se para a

praça. Os espanhóis tiveram 19 mortos e 51 feridos e com contusões. O fortim e as

obras foram destruídos. Margallo havia subestimado a reação cabilenha à construção do

forte. Contava, além do mais, com poucas forças de reserva em Melilha, já que tinha a

guarnição espalhada pelos fortes exteriores. A esta primeira agressão devia ter-se

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respondido com uma ofensiva organizada que devia ter sido levada a cabo por um

exército expedicionário chegado da península.

A agressão havia chegado à imprensa e ao Parlamento espanhol. O ministro da

Guerra, general López Domínguez, sentia-se contrariado e era prudente em relação a um

avanço em Marrocos. Em Melilha, não havia lugar para se acolher um exército grande,

não existia um porto capaz, nem serviços sanitários, alojamentos ou armamento.

Calculava-se que o inimigo seria composto por cerca de cinquenta mil homens, metade

dos quais, pelo menos, estava armada. A resposta à agressão era difícil e foi-se adiando,

enquanto os cabilenhos se iam organizando e aumentando, dia após dia. A indecisão, o

atraso e a falta de operacionalidade agravavam a situação da praça espanhola e davam

força aos inimigos. As fogueiras acesas a cada noite no topo de Gurugu chamavam os

reforços, homens armados de todas as cabilas próximas. No dia 7, os cabilenhos

atacaram com fogo de fuzilaria a canhoneira Cuervo, que reconhecia a zona e que

respondeu com disparos de canhão. Pouco a pouco, chegaram reforços, enquanto no

Estreito se apressava o contrabando de armas para os mouros.

Entre os dias 15 e 18, uma comissão técnica do Ministério da Guerra avaliou a

situação; contudo, a ação espanhola era adiada. O ministro proibiu Margallo de dar

início às hostilidades e os marroquinos construíram trincheiras impunemente na zona

neutral. No dia 21, ordenou-se às autoridades marroquinas a destruição dessas

trincheiras, mas o paxá, que era a autoridade do sultão na zona, não respondeu. O Conde

de Venadito, cruzador comandado por Díaz Moreau, chegou à zona e abriu fogo contra

as trincheiras do sul da cidade. Foi a primeira reação espanhola; contudo, este

acontecimento incomodou sobremaneira o ministro López Domíngues, que começava a

perder a confiança em Margallo, enquanto este, por sua vez, perdia a paciência após

vinte dias de inatividade. O orçamento do exército havia diminuído após a organização

do ministério empreendida por López Domínguez; notava-se a escassez de meios e, a

Melilha, apenas foram como reforços cerca de 350 homens de dois batalhões dos

regimentos de Borbón e de Estremadura, sob o comando do general Ortega; o batalhão

de Caçadores de Cuba; três companhias de sapadores; quatro de artilharia e mais duas

baterias de artilharia de montanha.

No dia 27, começaram a entrincheirar os arredores do forte sitiado; no entanto,

os espanhóis foram novamente atacados. Foi a primeira ocasião em que a infantaria

espanhola usou as novas espingardas mauser. Os sapadores e as forças de proteção

retiraram-se para Cabrerizas Altas, mas, ao chegar, encontraram-se com as forças do

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general Ortega, que haviam chegado antes do tempo previsto, e tiveram que apinhar

mais de 700 homens num espaço pensado para 150. Cercados os dois generais no forte,

Melilha ficava sob o comando do coronel Casellas, do regimento de África, que

organizou uma coluna de resgate. No dia seguinte, essa coluna pôs-se em marcha. A

empresa não era fácil, porque o inimigo era muito superior e estava perfeitamente

entrincheirado nos barrancos. Para se conseguir chegar ao forte, foi preciso desdobrar os

homens do Batalhão Disciplinar em guerrilha para conter a harcav marroquina. Aqueles

homens punidos portaram-se como heróis ao desocuparem o caminho até Cabrerizas

Altas, onde, enquanto isso ocorria, eram presenciados cenários angustiantes pelo

amontoamento e pelos tiros contínuos dos mouros∗. Margallo, desesperado, enviou o

tenente Juan Picasso, que havia acorrida a Rostrogordo para contactar telefonicamente

com a praça. O tenente, que, com o tempo e como general, viria a instruir o famoso

processo Picasso, chegou ao forte, mas não pôde comunicar porque as linhas estavam

cortadas. Voltou a Cabrerizas, apesar da situação de cerco. Com isto, obteve a Laureada

de San Fernando. Depois, Margallo, surpreendido e atribulado, quis desocupar a entrada

do forte, ordenando a várias companhias que saíssem e tomassem as suas posições, que

foram sempre rechaçadas pelo fogo inimigo. Insistiu em colocar duas peças de artilharia

na parte plana exterior para proteger os soldados. O próprio general saiu para

supervisionar a operação e foi atingido na cara por um tiro que lhe causou a morte.

Embora o general Margallo fosse considerado um herói da campanha, a sua

atitude durante os acontecimentos foi condenável. Primeiro, não deu importância aos

incidentes do início; depois, não soube neutralizar o ataque cabilenho. Decidiu ir para a

primeira linha, ficando cercado em Cabrerizas Altas, quando o seu papel, como major

da praça, obrigava a que nela permanecesse, dirigindo as operações. Por último,

cometeu a imprudência de sair do forte para vigiar a instalação de dois canhões,

morrendo devido à sua imprudência∗. Poucas horas depois, comandando um comboio

que chegava, o major José Valero Berenguer, explorador da Guiné Espanhola sobre

vHarca - Em Marrocos, expedição militar de tropas indígenas de organização irregular [NT]. ∗ Os tiros vinham do fogo de fuzil ou espingarda dos mouros. Eram armas velhas e soavam onomatopeicamente a pa-co, de onde deriva a expressão pacos para referir os atiradores rifenhos. ∗ A versão oficial destaca o heroísmo de Margallo, que foi socorrer um canhão em perigo. No entanto, parece que a morte lhe chegou pela bala de um franco-atirador que o viu desprotegido ao abandonar o abrigo de uma guarita de onde dirigia a operação. Ciges Aparicio, jornalista que publicou alguns livros e muitos artigos sobre Marrocos, aponta maliciosamente que o tiro saiu das fileiras espanholas, por vingança, devido ao contrabando de armas que o general fazia e que havia abastecido o inimigo. No entanto, Ciges não tem nenhum indício de prova onde se apoiar. A sua insinuação poderá ter sido uma das causas do seu fuzilamento, em Ávila, no início da Guerra Civil, quando era governador de distrito.

58

quem voltaremos a falar, caiu mortalmente ferido. A morte deste ilustre africanista

deveu-se possivelmente a outra imprudência. Llanos Alcaraz relata-a assim:

O chefe administrativo do comboio, D. José Valero Berenguer, eminente

africanista, oficial distinguido na campanha de Cuba, homem de vasta ilustração

e de preclara inteligência, está na porta de Cabrerizas, fora do seu lugar,

excedendo-se no cumprimento do seu dever. Quando subia pela estrada,

marchava a corpo descoberto diante das carroças: o capitão primeiro-tenente do

Batalhão Disciplinar, D. Arturo Campos Hidalgo, ao passar junto de Valero,

disse-lhe:

— Está a expor-se sem necessidade (o fogo intensifica-se). Porque é que

não vai à direita de uma carroça, cobrindo-se o mais possível?

E Valero respondeu, sorrindo:

— A mim, as balas já me conhecem: não me fazem mal.

Na porta de Cabrerizas Altas, Valero seguia com interesse o

desenvolvimento do combate e disse, referindo-se aos inimigos:

— Como disparam! Como disparam!

Uma bala rifenha entra-lhe pela base do pulmão esquerdo e sai pelo

hipocôndrio direito, causando-lhe uma ferida gravíssima que, três dias

depois, lhe provocou a morte.19

O inimigo aproximava-se do forte e corria-se o risco de que os canhões caíssem

em seu poder. O primeiro-tenente do regimento da Estremadura, Miguel Primo de

Rivera, saiu com alguns soldados, que chegaram à luta corpo a corpo com os mouros,

mas conseguiram resgatar as duas peças. Com o tempo, o primeiro-tenente chegaria a

ser ditador. Pouco depois, as guerrilhas do Batalhão Disciplinar chegaram ao forte; o

cerco estava quebrado. Aproveitando a surpresa, organizou-se um comboio, no qual o

general Ortega e o seu estado-maior saíram para a praça com o cadáver de Margallo. No

entanto, não houve tempo para evacuar os feridos; os mouros voltaram a aproximar-se.

Os dados falam da dureza do combate desse dia: 32 mortos espanhóis e quase 200

feridos e com contusões. O forte de Cabrerizas Altas continuava cercado e, embora a

coluna de reforço tivesse conseguido introduzir alimentos e medicamentos, a escassez

de água era um problema grave.

59

No dia 29, chegou a Melilha o general Macías para substituir como

comandante-geral, o falecido Margallo. Com ele, chegaram os batalhões de Segorbe,

Tarifa e Catalunha, bem como o resto do regimento de Cuba, além dos cruzadores

Alfonso XII, Cuba e Luzón. A primeira coisa que Macías fez foi organizar um comboio

para o dia seguinte, com o objetivo de substituir as tropas cansadas de Cabrerizas Altas

e Rostrogordo e de levar abastecimentos. A operação desenvolveu-se com êxito, apesar

de ter causado 3 mortos e 9 feridos. Os canhões da praça e dos cruzadores

bombardeavam sem parar o campo inimigo e os cabilenhos iam já acusando o cansaço e

a falta de munições. No dia 3 de novembro, Macías preparou outra operação semelhante

e conseguiu chegar, de novo, aos fortes sem qualquer problema. As guerrilhas do

Batalhão Disciplinar foram, como sempre, a abnegada e eficaz vanguarda. Os

bombardeamentos da praça e da esquadra dizimaram o inimigo, que, apesar de insistir

no tiroteio, já não atacava em campo aberto.

A campanha estava quase acabada, mas ainda houve tempo para a «guerrilha da

morte» do capitão Ariza atuar. Tratava-se de um grupo de presidiários voluntários que,

em troca da redenção ou da redução de penas, efetuou quase uma centena de ações

arriscadas contra o inimigo, com o surpreendente balanço de apenas um morto∗. Em

dezembro, havia chegado um exército expedicionário sob o comando do general

Martínez Campos para pôr fim às últimas ações de guerra e assegurar a praça e o campo

espanhóis. A campanha havia terminado com 58 mortos, 151 feridos e 53 homens com

contusões espanhóis. Uma vez acabada, chegou, atrasado, ao porto de Melilha, o

cruzador Reina Mercedes, com 10000 espingardas mauser e 8 milhões de cartuchos

adquiridos à Alemanha. No dia 8 de dezembro, celebrou-se uma missa de campanha na

elevação de Sidi Guariach. O exército concluiu a operação defendendo o território

nacional, mas renunciou a qualquer ação de resposta sobre o território marroquino. Isto

desapontou alguns espanhóis, mas foi a mais diplomática das soluções.

Martínez Campos em Marraquexe

Após a guerra, chegaram as conversações de paz. O sultão enviou o irmão Muley

Arafa e, pela parte espanhola, chegou a Melilha, como chefe do Exército

∗ A guerrilha dissolveu-se por um incidente vergonhoso. Um dos condenados cortou as orelhas a um mensageiro mouro que chegara para negociar. O condenado foi fuzilado. No entanto, esta é uma amostra de costumes bárbaros de algumas tropas espanholas de mutilação do inimigo marroquino.

60

Expedicionário e plenipotenciário nas negociações, o general Arsenio Martínez

Campos. Em Melilha, estavam já 23000 espanhóis dispostos a avançar sobre o campo

marroquino, embora tal não fosse mais do que uma demonstração de força, já que o

governo não queria realizar atos que levassem à rutura do statu quo. As obras em Sidi

Guariach foram retomadas, para se concluir a construção do forte que seria chamado

Purísima Concepción. Martínez Campos ostentava o título de embaixador

extraordinário perante o sultão e dispôs-se a cumprir a missão, encaminhando-se para

Marraquexe. As suas pretensões eram claras: exigiria ao sultão o castigo dos rebeldes, a

entrega de 12000 espingardas e o respeito pela zona neutral. O general espanhol sabia

que não podia exigir muito ao sultão, porque não havia muitos recursos em Marrocos

para fazer frente às despesas públicas ordinárias; nem queria quebrar o estado de

paralisação das coisas, que as potências impuseram; nem se podia tornar inimigo de

outros países europeus por forçar uma situação complicada para o sultão. Este era um

homem angustiado pela situação. O jornalista de La Época, Rodrigo Soriano, que

acompanhava o general Martínez Campos, descrevia-o assim: «Levanta-se muito cedo,

trabalha bastantes horas, come muito sobriamente e descansa… É um homem taciturno,

que compreende a sua situação lamentável»20.

No entanto, as negociações não terminaram com as vantagens esperadas. O

tratado foi assinado no dia 5 de março de 1894, em Marraquexe. A fazenda marroquina

não podia fazer face a um pagamento muito elevado, já que estava quase em falência e

submetida à intervenção das alfândegas, como já vimos, para os pagamentos das dívidas

anteriores. No final, estabeleceu-se uma soma de 20 milhões de pesetas e adiou-se o

desarmamento e o castigo dos rebeldes. O governo de Sagasta aceitou umas condições

insuficientes, em parte forçado pela Grã-Bretanha, e obteve poucas vantagens para a

Espanha. Boada, jornalista do La Vanguardia, de Barcelona, que foi a Marrocos,

escrevia: «Não se tirou com isto, sem dúvida, todo o partido que, bem dirigido desde o

início, podia obter-se na questão de Melilha. No entanto, não se pode negar que, dado o

o estado a que o governo chegou, por erros que não vem a propósito recordar, não se

podia esperar muito mais»21. Foi garantida a nomeação de um novo paxá que

controlasse as cabilas vizinhas a Melilha, mas isso era pouca coisa, porque as tribos só

obedeciam às autoridades do sultão quando lhes apetecia, já que este carecia da força

necessária para impor uma conduta pacífica. E, embora o governo tentasse que a paz se

apresentasse como um grande progresso, a imprensa encarregava-se de demonstrar o

contrário.

61

À campanha de Melilha, haviam ido correspondentes dos principais jornais

espanhóis, que enviavam as suas crónicas diárias através do cabo submarino. A

quantidade de jornalistas dava a esta campanha um ar muito moderno e os espanhóis

sabiam o que ocorria no campo rifenho e nos arredores de Melilha. Provavelmente, foi a

primeira vez que houve um grande movimento de enviados a uma campanha espanhola.

Alguns dos correspondentes estiveram cercados com o general Margallo, no forte, ou

com Martínez Campos, na sua embaixada, e muitos deles reuniram as suas crónicas em

livros, pelo que o conhecimento direto dos factos é muito completo, uma vez que se

podem constatar os dados de uns e de outros∗. As guerras eram acontecimentos

populares que, além da tragédia que implicavam, despertavam a curiosidade na

população e reanimavam as rivalidades nacionais e os sentimentos patrióticos. Como

era habitual, e apesar de se usar já a câmara fotográfica, os redatores eram

acompanhados por excelentes desenhadores, que registaram os acontecimentos nas

ilustrações que eram publicadas nos jornais diários e nas revistas. Como consequência

desta guerra, a Guarda Civil chegou a Melilha para atuar como polícia interior.

∗ José Boada e Romeu, enviado do La Vanguardia de Barcelona, publicou Allende el estrecho (Barcelona,

1895); Francisco Hernández Mir, El Porvenir de Sevilha, Farrucos y gallinas (Sevilha, 1894); o capitão Martín, La Justicia, Los sucesos de Melilha (Madrid); Nocedal, El Siglo Futuro, La campanha de Melilha (Madrid, 1894); Luis Morote, El Liberal, Sagasta, Melilha, Cuba (Paris, 1908); Rodrigo Soriano, El Liberal, Moros y cristianos (Madrid, 1895). Outros jornalistas não publicaram livros mas deixaram a imprensa repleta de crónicas. A obra mais completa sobre a campanha deve-se a Adolfo Llanos Alcaraz: Melilha (Madrid, 1894). Outra volumosa exposição é a de Álvaro Carollo: Al África, españoles! (Barcelona, 1894?). Recentemente, apareceu La guerra de Melilha de 1893 (Madrid, 2008), de Agustín Ramón Rodríguez González.

62

3

A PENETRAÇÃO EM MARROCOS.

A CONFERÊNCIA DE ALGECIRAS DE 1909.

MELILHA E O DESENVOLVIMENTO MINEIRO.

O PROTETORADO EM MARROCOS.

A GUERRA DE 1909-1914. A PENETRAÇÃO PACÍFICA E OS PRIMEIROS PLANOS POLÍTICOS.

Daí em diante, os factos desenrolaram-se da maneira semelhante. Os espanhóis, vítimas

de agressões e ataques piratas, continuavam limitados a Ceuta, a Melilha e aos penedos

menores. A pirataria era a atividade regular ou ocasional de muitos dos habitantes

costeiros, que aproveitavam as embarcações encalhadas pelas tempestades ou, de forma

mais arriscada, atacavam as que navegavam perto da costa. A cobrança dos resgates

proporcionava benefícios grandes e confortáveis. O sultão carecia de autoridade para

controlar um império em decadência, endividado e sem um sistema político-militar

eficaz. As potências mantinham o statu quo à espera de chegar a acordos que

permitissem concretizar uma política de ocupação no norte africano.

No início do século XX, a Espanha estava ainda mais debilitada

internacionalmente pela perda de Cuba, de Porto Rico e das Filipinas, que havia deixado

uma crise de identidade nacional e um sentimento de frustração generalizado. A questão

africana tornou-se a única saída para garantir uma presença internacional e a suficiente

compensação perante o desastre colonial. Falava-se de forma desinibida dos direitos

históricos que a Espanha possuía em Marrocos, como justificação para as

reivindicações. Nesta matéria, os dois partidos da Restauração estavam de acordo, com

diferenças de estratégia, embora não de fundo. Em agosto de 1901, Silvela publicou um

artigo em La Lectura no qual o político conservador profetizava o final do statu quo, ou

situação transitória em que se deixava tudo como estava, e propunha um acordo com a

França para obter a parte correspondente aos espanhóis na divisão∗. O seu adversário,

Sagasta, parecia inclinado a pactuar também com a Inglaterra para evitar o seu

∗ O artigo «La cuestíon de Marruecos» surgiu sem assinatura, mas de imediato se espalhou a notícia de que o autor era Francisco Silvela.

63

desagrado, pois não era possível arranjar uma solução que satisfizesse os dois lados.

Desta vez, Sagasta tinha razão.

Em 1902, a Espanha e a França chegaram a um acordo que se plasmou num

documento que dividia Marrocos entre os dois países, mas que não chegou a ser

aprovado por medo da oposição britânica.∗ ∗ Já Silvela estava a chefiar um governo

conservador que foi muito cauteloso na questão. Era um tratado pelo qual a França

reconhecia a Espanha uma grande parte do território marroquino: quase todo o norte até

às cidades de Fez e Taza. O tabuleiro norte-africano tinha que ser considerado

globalmente e a solução tinha que passar pelo acordo entre todos os países com

interesses numa zona que vai do Egito a Marrocos. O Reino Unido tinha um enorme

interesse na navegação pelo Mediterrâneo e no controlo das margens do Estreito de

Gibraltar. As questões, de facto, resolver-se-iam sem a participação espanhola, mediante

uma teia complicada de acordos bilaterais.

A declaração franco-britânica de 8 de abril de 1904 culminava com uma série de

incidentes, sendo o mais importante o de Fachoda, cidade sudanesa, em que se

encontraram os exércitos coloniais da França e da Grã-Bretanha. O francês Marchand

havia chegado do Congo à frente de uma expedição e acampou em Fachoda. Dias

depois, chegou o britânico Kitchener com as suas tropas e montou o seu acampamento

em frente ao dos franceses. Não houve combates, limitaram-se a comunicar aos seus

governos a situação. Meses depois, o governo francês ordenou que Marchand se

retirasse. Os britânicos desejavam expandir-se a sul para enlaçar o Egito com o Cabo, e

os franceses queriam unir o Congo com a Somália. A França renunciou ao Sudão em

troca de a Inglaterra reconhecer o seu direito a Marrocos. No entanto, os ingleses

colocaram algumas reservas ao documento, como o livre comércio pelo Estreito de

Gibraltar, a proibição de o fortificar e a cessão a Espanha de uma zona no norte do país,

que se delimitaria num tratado franco-espanhol posterior.

Por este motivo, ou seja, dado que a Espanha não interveio no tratado, a França

considerou a zona norte como uma cessão a Espanha e não um protetorado diferente.

Também a Grã-Bretanha garantia que a Espanha não ocuparia a ilha de Perejil e que se

formaria em Tânger uma zona internacional. Tudo isto para evitar que um único país

controlasse as duas margens do Estreito, passagem obrigatória para Suez na rota para a

∗ ∗ Os espanhóis desejavam um tratado semelhante ao franco-italiano de 1901, em que a França deixava as

mãos livres para Itália na Líbia e esta reconhecia o protetorado francês em Tunes, sem oposição.

64

Índia. Por esta cláusula, o governo de Maura, representado pelo ministro de Estado,

Rodriguez San Pedro, negociou com o ministro francês, Delcassé, a extensão da zona

espanhola, que necessariamente devia estar compreendida entre o rio Sebú e Melilha.

Os espanhóis negociaram mal, careciam de força ou tinham pouco para oferecer a

França, mas o facto é que a franja atribuída a Espanha era muito pequena, de má

qualidade e povoada por tribos rebeldes. Não havia qualquer semelhança com o tratado

nonato de 1902, através do qual Espanha adquiria as terras até Fez e as ricas várzeas do

Lucus e do Sebú.

O acordo assinou-se em Paris, no dia 3 de outubro de 1904∗, e nele se atribuía a

Espanha uma chamada zona de influência, sobre a qual poderia atuar, realizar obras e

melhoramentos administrativos, económicos, militares e financeiros, mas sem alterar o

statu quo e respeitando a soberania e a autoridade do sultão. Além disso, reconhecia-se

a Espanha o direito a ocupar Santa Cruz de Mar Pequeña e uma franja no sul do país,

limitando com o Saara, concedido a Espanha definitivamente em 1900, na zona de

Tarfaya. Admitia-se que, nas zonas que lhes correspondiam, a França e a Espanha

podiam realizar obras públicas e explorar minas e pedreiras, direito que daria lugar ao

posterior conflito hispano-marroquino.

No entanto, ficava por resolver uma questão: o reconhecimento de alguma

vantagem para a Alemanha, país que sempre esteve interessado em África e que

mantinha uma política expansionista propiciada por Bismark. Em 1905, o cruzador

Hohenzollern levou o kaiser Guillerme II de visita a Tânger, como apoio ao sultão e à

soberania marroquina, tentando neutralizar as ações das outras potências europeias. A

Alemanha mantinha um comércio próspero e crescente no império que via ameaçado

pelos pactos entre a França, a Grã-Bretanha e a Espanha. Tentava romper a Entente

Cordiale, ou seja, o pacto de não-agressão e de organização da atividade colonial

subscrito entre a França e a Inglaterra em 1904, ao qual, mais tarde, se juntaria a Rússia,

formando-se a Triple Entente. A Alemanha tentava pactuar com a França e com os

outros países continentais e isolar a Grã-Bretanha. A posição espanhola não lhe

importava muito, porque não tinha interesse em conflitos. Procurava romper os estreitos

limites da conferência de Madrid de 1880, dando origem a uma nova conferência

internacional sobre Marrocos que favorecesse as suas pretensões.

∗ O acordo completou-se com uma permuta de notas no dia 1 de setembro de 1905.

65

A conferência de Algeciras

A Alemanha conseguiu, por fim, convocar uma conferência internacional para

tentar reduzir a influência da França e da Inglaterra em África. Entre 16 de janeiro e 7

de abril de 1904, decorreu a Conferência de Algeciras, com os representantes dos países

interessados∗. O representante do sultão encontrava-se presente, numa última tentativa

para manter a soberania nacional sem interferências, e os restantes países para obter a

sua quota numa hipotética divisão do país e do seu mercado. A ata final da conferência

pouco dizia, mas punha fim ao desejo, já não dissimulado, de acabar com o regime

marroquino e de o substituir por um protetorado. Tratava-se um documento pouco

comprometedor que escondia as verdadeiras conversações e aquilo a que, oralmente,

chegaram a acordo os principais países participantes. O mesmo aconteceu em Berlim,

em 1885, através de um simples documento oficial e muitas conversas nos salões onde

se mostravam intenções e se ajustavam interesses.

Romanones mostrava-se satisfeito por ter organizado uma conferência que, de

certa forma, mantinha o prestígio de Espanha e a sua participação internacional. Em

concreto, decidiu-se criar, em Algeciras, uma política de portos marroquinos, dirigida

pela França e pela Espanha, e um banco estatal que a França administraria. Nos oito

portos marroquinos abertos ao tráfico internacional, organizar-se-ia uma polícia

indígena com comandos europeus que vigiasse a ordem e perseguisse o contrabando. A

Espanha administraria a polícia dos portos de Larache e Tetuan; a França, a dos de

Rabat, Mazagão, Safi e Mogador; conjuntamente, ficariam encarregadas dos portos de

Tânger e Casablanca. Também se acordou que, nas suas respetivas zonas, a França e a

Espanha atuariam contra o contrabando, especialmente o de armas. Isto dava-lhes, na

prática, possibilidades quase infinitas de intervenção nos assuntos internos do país. No

entanto, nem se produziram as mudanças que a Alemanha esperava para aumentar as

suas expetativas nem se aboliu o sistema de observância do statu quo no sentido de

decidir a intervenção sem rodeios.

De facto, produziram-se efeitos contrários aos que a Alemanha esperava. O

bloco franco-britânico, que levava perfeitamente preparada a conferência e as suas

políticas coordenadas, revelou-se vencedor, reafirmando as suas teses. A soberania que

o sultão queria manter a todo o custo sofreu outros duros golpes com a criação da

∗ Alemanha, França, Espanha, Reino Unido, Império Austro-Húngaro, Bélgica, Itália, Países Baixos, Rússia, Portugal, Suécia, Estados Unidos e Marrocos.

66

polícia portuária e do Banco do Estado de Marrocos. A Espanha conseguiu algo

importante no convénio posterior de Cartagena, de 8 de abril de 1907: o respeito pela

sua integridade territorial. A cautela com que a Espanha havia intervindo na questão

marroquina devia-se ao receio de que a Inglaterra ocupasse as ilhas Canárias ou

Maiorca, ou alargasse a sua base gibraltina. Nesse momento, depois do convénio, tanto

a França como o Reino Unido garantiram o território espanhol.

Com os acordos de 1904 e o pactuado em Algeciras, a Espanha e a França

possuíam já meios para atuar no território marroquino. O pretexto da ordem na zona e

uma função de polícia especializada no sentido mais amplo servir-lhes-iam para o fazer.

A partir de 1907, os acontecimentos precipitaram-se. A França pressionava

continuamente o sultão a admitir a necessidade de assistência técnica, financeira e

militar para, de uma vez por todas, contar sempre com os franceses no momento de

decidir a política do país e organizar a sua administração. Os franceses utilizaram alguns

incidentes que ocorreram nessa altura para forçar a sua intervenção direta. Com o

pretexto do assassinato do doutor Mauchamp, em Marraquexe, a França ocupou Uxda e

a parte a sul do Muluya; os espanhóis, por sua vez, ocuparam Restinga e Cabo de Agua,

em 1908, também com o pretexto de garantir a segurança de Melilha frente aos bandos

de cabilenhos rebeldes. Depois, alguns incidentes em Casablanca, durante os quais

morreram vários operários franceses, e a posterior perseguição de europeus serviram à

França para bombardear aquela cidade e, posteriormente, ocupá-la com a ajuda de cerca

de quinhentos fuzileiros navais espanhóis que desembarcaram do Álvaro de Bazán.

Com estes antecedentes, os batalhões franceses dedicaram-se a ocupar livremente

Chauia, a partir de Casablanca e Rabat até Marraquexe e Mequinez.

O governo de Maura mostrava-se cauteloso, conhecedor da débil posição de

Espanha para levar a cabo, nesse momento, uma ocupação de envergadura no território

marroquino, e assistia, preocupado, às ações francesas. Em 1911, a França ocupou Fez,

após outro incidente semelhante. A sorte marroquina estava lançada. A França atuava

livremente, sem oposição dos outros países ocidentais e sem quase nenhuma resistência

marroquina.

67

As minas do Rife e El Roghi Bu Hamara

Os mesmos acordos de 1904 deram a Espanha a possibilidade de atuar dentro da

sua zona de influência. Na cabila de Benibi-Ifrur, existiam algumas jazidas de mineral

de ferro que se julgavam ricas e rentáveis. As amostras de rocha conseguidas já haviam

sido estudadas, faltava apenas arranjar uma companhia solvente que tivesse os meios

necessários para a sua exploração. Depois de Algeciras, era a Espanha e não o sultão

quem devia atuar. E este assim o fez.

No entanto, a zona de Marrocos fronteiriça com Melilha, devido à ausência da

autoridade do Majzen, encontrava-se dominada por um cabecilha rebelde ao sultão, Abd

el Aziz, chamado Bu Hamara, que impôs a sua autoridade com base, por um lado, na

força e, por outro, no acordo com os chefes cabilenhos. Considerava-se a si próprio

pretendente ao trono, embora não passasse de um impostor, daí o sobrenome de El

Roghi∗; juntava a uma formação na Madraza de Fez e a alguns empregos no Majzen

uma fama de mago que inspirava um medo respeitoso entre a população supersticiosa.

Sabe-se que havia sido funcionário em Taza e que foi preso por falsificar assinaturas.

Depois de sair da prisão, foi para a Argélia e juntou-se à seita dos darkawa. Em certas

ocasiões, incorporava a personalidade de um irmão do sultão, Muley Hassan, que estava

há oito anos na prisão, para sustentar os seus falsos direitos ao trono. Contava com uma

guarda pretoriana que impunha a sua vontade e cobrava impostos a habitantes e a

comerciantes. Havia-se feito proclamar sultão, em Taza, em 1902, e, nesse mesmo ano,

venceu um importante exército enviado pelo verdadeiro sultão para o deter. Este,

apoiado pelos argelinos, recuperou Taza, em 1903, e impediu que El Roghi tomasse

Uxda. Bu Hamara retirou-se prudentemente para Farhana e Zeluan, nas proximidades de

Melilha, cujas alcáçovas dominava e onde instalou uma espécie de corte, e dedicou-se a

governar uma zona que beneficiava do comércio com os espanhóis. Desde então, o seu

poder no território era real e não se sentia importunado por autoridade alguma, tendo

submetidas as cabilas de Guelaya, Kebdana e grande parte do Rife. Para continuar com

a sua situação de quase soberano, procurou manter a ordem e a paz, e respeitava os

limites espanhóis. Entretanto, a Espanha mantinha uma postura de reconhecimento ao

sultão legítimo e uma relação contínua com o cabecilha da zona próxima.

∗ Significa “pretendente”, já que Bu Hamara fingiu ser irmão do sultão e aspirante ao trono.

68

Bu Hamara, por sua conta e risco, havia chegado a concluir negociações para

adjudicar, em 1907, por uma elevada quantidade de dinheiro, a exploração mineira de

cobre, prata, ouro e chumbo, em Kelaya, a um industrial francês chamado Massenet,

protegido do duque de Wagran. E, simultaneamente, concedia as minas de ferro de Beni

bu Ifrur a alguns espanhóis que formaram o Sindicato Espanhol de Minas do Rife. A

atitude de Espanha, com a qual sempre manteve boas relações mas que não podia

reconhecer a sua autoridade quase soberana e que ignorava os acordos que El Roghi

assinava, levou-o a uma certa hostilidade relativamente à presença dos espanhóis. Por

outro lado, os cabilenhos, que se sentiam donos da riqueza do seu subsolo, também não

viram com agrado a atuação de Espanha, pelo que o conflito estava, de novo, lançado.

Bu Hamara, ainda, iniciou uma campanha para dominar o Rife central, que o levou a

enfrentar a cabila de Beni Urriaguel, sofrendo uma tremenda derrota. Por último, o

sultão reorganizava as suas forças para acabar de vez com o cabecilha rebelde. Os

intervenientes em jogo eram muitos e preparavam-se para o desenvolvimento dos

acontecimentos.

A Espanha, como era lógico, ignorou as concessões mineiras de Bu Hamara e

decidiu outorgar as suas (sempre em nome do sultão) nos montes de Uixan (Beni bu

Ifrur), que coincidiam com as do rebelde rifenho. Os grupos espanhóis que competiam

pelas minas acabaram por chegar a um acordo e uniram-se formando a Companhia

Espanhola de Minas do Rife, da qual um dos cujos principais acionistas era o conde de

Romanones. Massenet, com alguns sócios espanhóis com os quais formou a Companhia

Norte Africana, obteve as minas de chumbo de Afra. As minas, algumas a céu aberto,

eram de fácil exploração e estavam próximas a Melilha. Havia-se obtido também

autorização para fazer um caminho-de-ferro que transportasse o mineral até ao porto

desta cidade e para a construção de caminhos, vivendas, fornos e outras instalações.

Essas minas foram exploradas até aos anos setenta do século XX e delas se obteve um

mineral de qualidade, sobretudo ferro, que se enviou para todo o mundo. Em algumas

épocas, como a Segunda Guerra Mundial, o ferro de Melilha era muito procurado pelas

potências para o fabrico de armas. Em 1907, iniciaram-se os trabalhos de construção

dos caminhos-de-ferro, já que cada companhia possuía um, e foram instaladas as

primeiras famílias de trabalhadores nas povoações construídas no lugar mineiro.

El Roghi havia cometido o erro de ir contra as cabilas do Rife central, querendo

dominar também Bocoya e Beni Urriaguel. Foi derrotado e, perante a sua debilidade, as

tribos do seu território começaram a revoltar-se contra o cabecilha e a organizar-se

69

contra os espanhóis. Queriam gerir eles próprios as concessões das jazidas situadas nos

seus territórios. Alguns chefes cabilenhos que apoiavam o rebelde também temeram

perder, com a sua queda, a parte das importâncias que lhes era destinada. Chegada a

altura, colocar-se-iam contra os espanhóis que os privavam do dinheiro. O poder de Bu

Hamara desmoronava-se e este estava consciente de que não podia ter várias frentes

abertas ao mesmo tempo, pelo que optou pelo acordo com os espanhóis. No dia 8 de

agosto de 1908, os cabilenhos de M’Taza e Beni Sicar atacaram as populações mineiras,

levando o que puderam e pondo em fuga os habitantes espanhóis. De acordo com o que

se havia pactuado com os espanhóis, Bu Hamara era o encarregado de punir estes

ataques, mas o seu poder estava a diluir-se. O rebelde optou por abandonar a região,

retirando-se para o interior do país, sendo derrotado e preso pelas forças do sultão, que o

levaram como prisioneiro para Fez numa carroça jaula, em agosto de 1909. Ali, foi

torturado e executado.

As cabilas ou tribos tentaram preencher o vazio de autoridade em que ficou

mergulhada a zona, voltando à tradicional independência entre elas e a esporádicos

laços de união quando tinham um inimigo comum. A atitude hostil destas cabilas

paralisou as obras mineiras e foi necessário regressar ao velho sistema de pactos, com

negociações intermináveis. A paralisação dos trabalhos, e tendo em conta que uma das

companhias era de capital francês, levou os franceses a ameaçar com o envio de tropas

se os espanhóis não tomassem o controlo da situação. O general Marina,

comandante-geral de Melilha, optou por levar por diante os trabalhos sob proteção

militar e por empreender algumas ações de punição sobre as tribos. Não acreditava que

fosse possível chegar a um acordo com as cabilas locais e temia que estas voltassem à

postura dos três últimos séculos de cerco da cidade de Melilha, situação que não ocorreu

enquanto se manteve o poder de Bu Hamara.

El Roghi trouxe consigo a paz e a sua ausência, a anarquia. Essa mesma

anarquia era o pretexto perfeito para que os espanhóis e os franceses interviessem

definitivamente no país. Por isso, a política deslizava por caminhos tortuosos e

introduzia rodeios pouco claros para chegar ao verdadeiro objetivo. O governo de

Madrid contrariou Marina e optou por enviar Alfonso Merry del Val à frente de uma

embaixada extraordinária junto do sultão, que não obteve resultados concretos, já que o

monarca pretendia que os espanhóis retirassem as tropas de Restinga e de Cabo de

Agua, ocupados em 1908. Para resolver a paralisação insuportável, no dia 7 de junho de

70

1909, as companhias obtiveram autorização espanhola para retomar os trabalhos

interrompidos após a partida de El Roghi Bu Hamara.

O general Marina e o começo da guerra

Como dissemos, em 1909, o comandante-geral de Melilha era Marina. Tratava-

se de um homem maduro, com uma grande carreira militar e de personalidade forte.

Havia nascido em Figueras, em 1850, e aos seis anos estava em Luzón (Filipinas), já

que o pai, também militar, fora colocado nesta colónia. Em 1863, de regresso a Madrid,

Marina ingressou como cadete no batalhão de Caçadores de Llerena. Três anos depois,

o alferes Marina voltou às Filipinas, onde esteve até 1872. Lutou na guerra carlista, às

ordens de Echagüe. Em 1874, na defesa de Tolosa, ganhou a Cruz de Mérito Militar de

1ª classe. Quando a campanha acabou, já era major. Depois de vários postos

peninsulares, Marina embarcou para a América, em 1889, porque havia sido nomeado

ajudante do capitão general de Porto Rico. Passado pouco mais de um ano foi, como

tenente-coronel, de novo às Filipinas, onde participou nas operações de Mindanau e

chegou a coronel. Foi ferido, novamente condecorado e promovido a brigadeiro. Em

1897, encontramo-lo a combater em Cuba, até se perder a guerra, o que o levou a

regressar a Espanha, sendo nomeado governador civil de Barcelona. Em 1900, era

general de 3 estrelas e, após vários comandos na península, foi colocado em Marrocos.

Portanto, Marina era um homem experiente, que estava no auge da sua carreira

militar. Havia sido soldado em várias guerras e conhecia o combate. Não era um homem

que estivesse ainda a iniciar a sua carreira e podia contradizer o ministro e o governo

quando as instruções deles, em sua opinião, não eram as corretas. O governo era

demasiado cauteloso no que dizia respeito aos assuntos marroquinos, para não contrariar

a França e a Inglaterra, mas Marina apoiava-se no que havia sido pactuado em Algeciras

para propor novos avanços que consolidassem as posições mineiras espanholas.

Marrocos era o seu posto desejado, uma terra para conquistar, depois de ver como se

perdiam Cuba, Filipinas e Porto Rico. Marina queria que as tropas espanholas

ocupassem permanentemente posições no campo mouro para proteger os trabalhos de

construção do caminho-de-ferro e as minas. Em concreto, quis conquistar o Atalayón,

uma pequena península dentro da lagoa de Mar Chica, ao sul de Melilha, a partir de

onde os espanhóis podiam repelir qualquer agressão. No entanto, não foi autorizado a

tal.

71

No dia 9 de julho de 1909, os mouros atacaram os trabalhadores do

caminho-de-ferro mineiro que estava a ser construído entre Melilha e as minas,

causando seis mortos e um ferido. O facto desencadearia a guerra, porque era grave o

suficiente para já não colocar mais obstáculos ao previsto na ata de Algeciras. Nesse

mesmo dia, assinou-se o decreto que mobilizava as brigadas de caçadores de Madrid, do

Campo de Gibraltar e de Barcelona, para as enviar a Marrocos e pacificar o país. Esta

chamada de reservistas, muitos deles casados e com famílias para sustentar, foi a origem

da Semana Trágica de Barcelona. Dada a estrutura distrital dos regimentos, quando um

se mobilizava já se sabia que todos os afetados eram do mesmo distrito e, como

consequência, todas as vítimas também o seriam. Esta circunstância atrasou, em 1893, a

chegada de reforços, porque politicamente era uma medida que introduzia a

desigualdade entre espanhóis. Em 1909, organizou-se uma revolta e uma greve geral

revolucionária de consequências sangrentas. O governo de Maura, muito debilitado

desde a lei do terrorismo∗, não tinha força suficiente para enfrentar a situação a não ser

com as armas da Guarda-Civil e com o exército. A batalha intestina obrigava a atrasar

as decisões em Marrocos. A partir de então, começou-se a ouvir em Espanha o famoso

grito «Maura, não!»; o político conservador viu-se destinado ao declínio e o sistema da

Restauração começou a deteriorar-se inevitavelmente.

Marina não tinha tropas suficientes para enfrentar os atacantes rifenhos,

precisava de reforços. Algumas decisões pouco acertadas no plano militar agravaram a

situação das tropas espanholas em África. A guerra não iria ser um passeio contra as

guerrilhas rebeldes, mas uma autêntica campanha contra um exército irregular mas

disciplinado e austero, que lutava na sua terra e que conhecia o lugar e as suas

vantagens de uma forma que surpreendeu, em muitas ocasiões, as forças espanholas. Os

combates desenrolar-se-iam em Gurugu, maciço montanhoso ao sul de Melilha, cujos

barrancos, causados pela erosão dos séculos, descem abrindo-se como funis

perpendiculares ao mar, oferecendo ao emboscado um abrigo seguro e dificultando a

ofensiva. Os barrancos sucedem-se de tal maneira que, superado um, aparece outro e

depois outro, numa série ilimitada de obstáculos. O solo era pedregoso e estava cheio de

grandes rochas que eram utilizadas como proteção. O caminho para as minas

∗ O projeto de Lei de Repressão do Terrorismo procurava combater os atentados anarquistas, mas incluía

grandes limitações à imprensa e aos sindicatos. Foi muito criticado por todos os setores da sociedade espanhola, incluindo muitos liberais.

72

estendia-se entre os montes e o mar, podendo ser facilmente atacado a partir das

elevações, o que convertia os soldados espanhóis num alvo quase certo.

Após o ataque aos trabalhadores, Marina ordenou a colocação de metade das

forças de Melilha no território da agressão. Com três batalhões e uma bateria montada,

estabeleceu quatro posições defensivas: duas na vanguarda (Atalayón e Sidi Ahmed el

Hach) e duas na retaguarda (Segunda Caseta e Sidi Musa). No entanto, estas posições

padeciam dos grandes defeitos da ação espanhola em Marrocos. Eram dominadas por

elevações não ocupadas e deviam ser abastecidas diariamente por colunas com origem

na praça. O inimigo, escondido, limitava-se a disparar (com tiros de franco-atiradores)

durante todo o dia com as suas espingardas Lebel e Chassepot francesas, bem como

com os Remington americanos, que haviam adquirido em contrabando, ou com as suas

velhas espingardas de sempre. As posições eram atacadas e a defesa passava por ações

de socorro empreendidas desde Melilha. Os ataques eram cada vez mais abundantes e

causavam muitas baixas no lado espanhol.

Marina decidiu iniciar uma operação para contra-arrestar o poder dos cabilenhos.

No dia 21 de julho, o coronel Álvarez Cabrera saiu de noite de Melilha com o objetivo

de reforçar Sidi Musa, e assim o fez, após uma longa caminhada. Mas cometeu a

imprudência de colocar peças de artilharia nas ladeiras do monte sem conquistar as

elevações de Ait Aixa, de onde poderia dominar o campo. Conscientes do erro espanhol,

os inimigos atacaram, deixando os espanhóis numa situação muito comprometedora,

sob o fogo rifenho. A coluna era pequena para a ação e estava mal preparada, defeitos

comuns nas ações espanholas em Marrocos, e caminhou de noite, perdendo o contacto

com a praça, da qual não pôde receber ordens. Álvarez Cabrera avançava para uma

armadilha e Marina quis impedi-lo, mas o oficial de ligação não encontrou a coluna. Ou,

pelo menos, é o que a história oficial refere. Um autor explica-o de forma clara: «A

reduzida coluna colocada sob o comando do coronel Álvarez Cabrera, como a mesma

ordem expressa, teve que se formar com companhias de diferentes corpos, algumas

delas acabadas de desembarcar, e, segundo acreditamos, sem experiência de combate,

desconhecendo o terreno em absoluto e sendo completamente novas para o líder que

havia de as conduzir numa operação tão difícil e cheia de perigos»1.

Convém sublinhar que o improviso, a falta de conhecimento do terreno, a

ausência de tropas preparadas e o comando deficitário provocaram graves desastres nas

campanhas africanas. Este foi o primeiro de uma longa sucessão. Os marroquinos

aguardavam pacientemente até estarem numa posição de superioridade relativamente ao

73

inimigo. Frente aos espanhóis, evitavam o combate em campo aberto, onde eram

inferiores, e aproveitavam as dificuldades do terreno para organizar emboscadas.

Quando uma companhia chegou em auxílio de Álvarez Cabrera, apenas encontrou o seu

cadáver e os de muitos outros espanhóis. Marina, que já contava com as brigadas

reservistas chegadas da península, foi ao lugar, apoiado por algumas forças militares,

entre as quais se encontrava o Batalhão de Figueras, que caiu numa emboscada e foi

duramente castigado. Não poder ocupar as elevações de Ait Aixa foi um duro revés para

o comandante-geral e determinou o trágico destino dos espanhóis. Os combates

generalizaram-se, embora, nos dias seguintes, reinasse uma calma relativa na franja que

separava o Gurugu de Mar Chica, que serviu para que os espanhóis reforçassem as suas

defesas. Os marroquinos dominavam as elevações do terreno e os espanhóis

defendiam-se com mais dificuldade no terreno plano. Cabrera era um militar experiente

e conhecedor de Marrocos. Havia sido encarregado de estudar o império e foi chefe da

missão militar junto do sultão. Conhecia o modo de combater rifenho e havia escrito

uma obra sobre este assunto, La guerra en África, publicada em 1893. Será que pecou

por excesso de confiança ou acreditou ser mais forte do que realmente era? Será que

teve a ousadia de avançar de noite com tropas pouco preparadas?

Nos finais de julho de 1909, Marina foi promovido a major-general. Contava já

com mais de 17000 soldados em Melilha e nos seus arredores, número muito importante

para combater os rebeldes rifenhos sem estrutura de exército. No entanto, a guerra

deixava de ser um acontecimento popular entre os espanhóis e convertia-se numa das

maiores causas do descontentamento da primeira metade do século XX.

O Barranco do Lobo

Enquanto o Gurugu estivesse nas mãos do inimigo, a situação na planície era

impossível de dominar. Nem se podia transitar pela franja costeira, nem se podiam

construir nem utilizar os caminhos-de-ferros mineiros. A harca (grupo marroquino de

combatentes irregulares) havia aumentado com a chegada dos cabilenhos de Beni

Urriguel, Quebdana e Beni Bu Yoghi. O cabecilha Amezián ou Mizzian começava a

exercer uma liderança indiscutível entre as tribos próximas da praça espanhola. Após o

revés, Marina preparou duas operações para o dia 27 de julho. Uma foi a saída de uma

coluna de seis companhias de infantaria e uma unidade de artilharia para proteger o

comboio e defender o segundo barracão, instalação de caminhos-de-ferro a cerca de 7

74

quilómetros de Melilha. A segunda consistiu em formar uma brigada de caçadores, sob

o comando do general Pintos, que vigiasse os barrancos do Gurugu, caso o inimigo

atacasse o flanco da secção de escolta do comboio que descia pelos mesmos. O comboio

de aprovisionamento chegou sem percalços. Pintos colocou a sua brigada na posição de

Lavaderos e outra parte dos seus homens e uma bateria, na pousada do cabo Moreno.

Formavam-na seis batalhões de infantaria, um esquadrão de cavalaria e as companhias

auxiliares. Pintos dispôs a vanguarda em guerrilha e levou a cabo várias manobras para

colocar três batalhões (Las Navas, Llerena e Arapiles) na entrada do Barranco do Lobo,

que começaram a subir, nele penetrando, como se fosse uma armadilha mortal. Os

batalhões já estavam diminuídos pelas ações anteriores e haviam perdido os seus

majores, mas continuaram.

Houve momentos de indisciplina, própria das tropas inexperientes, e erros

graves dos majores, que insistiram em subir pelo barranco, que estava batido a partir

dos flancos e em altura. Cada vez que se conquistava uma elevação, dava-se ordem para

prosseguir rumo à seguinte. Para isso, faltava capacidade, segundo as palavras de Corral

Caballé: «Os soldados não podem imitar as aves e, num voo rápido, passar de um cume

de uma montanha para o de outra, tinham que descer os barrancos e voltar a trepá-los e,

então, os cabilenhos, protegidos pelas pedras que lhes serviam de trincheira, abriam um

contínuo e mortífero»2. Martínez de Campos dizia: «Os atacantes perderam, de repente,

a noção do seu objetivo. Por trás de cada ondulação havia uma crista e por trás de cada

pedra havia um rifenho disparando»3. Um observador francês que presenciou a

campanha, o general De Torcy, assombrava-se com a dificuldade dos espanhóis na

campanha: «É impossível admitir que os acontecimentos das semanas anteriores, em

particular as circunstâncias dos combates dos dias 18, 20 e 23 de julho, não tenham feito

refletir o major e os espanhóis no geral - ainda novatos na guerra em África - e não lhes

tenham deixado ensinamentos úteis»4. Era a zona onde estava concentrada a maior

quantidade de inimigos, entre eles os que causaram a derrota de Álvarez Cabrera.

Marina tentou impedir o avanço para que os seus homens não subissem a parte

direita do barranco, porque, na sua ofensiva, não viam as elevações do terreno, mas já

era tarde de mais. As tropas espanholas estavam presas no buraco, dominadas pelo fogo

rifenho. «Era impossível evitar a confusão, precursora do pânico, e os batalhões

dizimados começaram a retirar-se, com ordem em alguns pontos, precipitadamente

noutros, abandonando azémolas com munições e sem poder retirar mortos e feridos, não

sendo poucos os que neste movimento de recuo caíram no fundo do barranco»5. O

75

general Pintos e os majores Arapiles e Las Navas haviam morrido. O coronel Aranda,

major da coluna de proteção da caravana, apresentou-se rapidamente para tomar o

comando. Os espanhóis haviam ficado com 143 mortos e 599 feridos.

Os espanhóis sofreram duas importantes derrotas e haviam compreendido à

força que o inimigo era mais numeroso, mais forte e estava mais bem preparado e

adaptado ao terreno do que eles pensavam. Marina teve que mudar de estratégia.

Aprendeu que o estreito corredor situado entre o Gurugu e o mar, caminho natural para

a cabila mineira de Beni bu Ifrur, era uma ratoeira na qual os mouros podiam impor a

sua força. Aprenderam também a usar a informação fornecida pelos balões cativos a

partir de onde se enviavam fotografias, desenhos e planos das posições inimigas no

monte e que serviam para a artilharia orientar as cargas. A artilharia espanhola tinha

boas peças Schneider de grande precisão e alcance no tiro, e cuja blindagem protegia os

seus soldados. Marina tinha já uma considerável quantidade de efetivos, mas, durante os

meses de agosto e setembro, não houve combates importantes, porque se havia decidido

preparar a campanha de outra forma e era necessário programar as novas ações. Em

agosto, havia chegado a divisão de Orozco, com Aguilera e São Martinho a

comandarem as brigadas. As tropas espanholas não cabiam na praça e tinham que

acampar no terreno exterior, ao abrigo da artilharia de Melilha e dos fortes.

Em agosto, Orozco exibiu um ato de força: foi pela Restinga, que era a língua de

terra que separava o mar de Mar Chica, e conquistou Zoco-el-Arbaa. Pensou abrir um

boqueirão para que as canhoneiras pudessem penetrar no Mar Chica e, assim, disparar

com facilidade para as ladeiras do Gurugu e para que os barcos abastecessem sem

perigo, por mar, as tropas situadas em Nador, mas não conseguiu. Dada esta

impossibilidade, optou-se por desembarcar as tropas e a bagagem, no Cabo de Agua,

mais a este, e, a partir daí, atacar sem ter que passar pelo estreito corredor que vai do

Gurugu ao mar. Desta forma, o coronel Larrea assegurava o controlo pacífico de

Akerman e Quebdana, nos finais de agosto. No dia 4 de setembro, Aguilera, com dois

batalhões de infantaria, abandonou Zoco-el-Arbaa e dirigiu-se para Quebdana. No seu

regresso, foram baleados pelos rifenhos da cabila e pelos que se haviam refugiado na

alcáçova de Zeluan, antiga corte de El Roghi. No dia seguinte, conquistou Lehdera, com

o apoio das baterias Schneider, que punham o inimigo em fuga. Pouco a pouco, os

espanhóis aprendiam a forma de agir do inimigo e decidiram nunca ir em colunas

enquanto os flancos não estivessem cobertos devidamente, em particular o que dava

para as montanhas. No dia 7, Aguilera conquistou definitivamente Akerman e a zona

76

plana da cabila, e, depois, Zoco-el-Arbaa. Os inimigos submetiam-se-lhe gradualmente

e a intensidade dos combates diminuía.

O final da campanha

Marina tinha uma enorme carência de recursos. Os mapas da época não eram

fiáveis, quase não se conhecia o terreno e deviam preparar-se as ações sem prévia

inspeção visual do mesmo ou arriscando-se no desconhecido. No dia 20 de setembro,

Marina decide lançar a ofensiva. Entende que é melhor cercar o inimigo no maciço de

Gurugu do que voltar a passar pelo corredor costeiro. No forte de Rostrogordo,

concentra uma divisão de caçadores sob o comando do general Tovar, uma divisão de

infantaria com o general Sotomayor e o resto das unidades de Melilha comandadas pelo

general Del Real. Para a ofensiva enviou apenas a divisão de Tovar, primeiro, com a

brigada de Alfau, que se dirigiu a oeste da cidade, para Hach Bissian, e, na sua

retaguarda, dois regimentos da brigada de Morales. A partir desse ponto, Marina e Alfau

atravessam o rio Jateb e chegam a Taurit, enquanto Morales e Tovar se desviam para

Taxdirt e Tafarat. Conseguiram chegar ao mar na outra costa da península de Três

Forcas, o que garantia o contacto com a armada.

Tovar encontra mais resistência no seu avanço para Taxdirt. O seu flanco

esquerdo é fustigado desde Tafarat e o Batalhão de Catalunha tem que se empenhar a

fundo para proteger o avanço e rechaçar o inimigo, ocupando as colinas de Taxdirt para

o conter, porque, embora este se tivesse retirado, não cessava de disparar. Quando

Tovar decide aliviar esta unidade, ao deixar livre a colina para os do Batalhão de

Catalunha, o inimigo decide atacar, com o propósito de a conquistar. A cavalaria de

Cavalcanti impede este ataque na famosa carga que lhe valeu a condecoração. O

tenente-coronel José Cavalcanti de Albuquerque y Padierna havia nascido em Cuba, em

1871. Estava casado com uma filha de Emilia Pardo Bazán. Havia combatido naquele

país e, ao regressar, foi adido militar em Roma. Também teve uma participação

importante na campanha de 1921, quando se viu obrigado a substituir o falecido

Silvestre. A República afastou-o da carreira militar e morreu em Madrid, em 1937. O

esquadrão chegou a fazer três cargas num terreno de solo duro e ligeiramente inclinado.

Os marroquinos não puderam fazer frente aos rápidos cavaleiros e fugiram, desistindo

do ataque. Os espanhóis salvaram-se. Ao cair da tarde, a situação era comprometedora,

com as forças espanholas atacadas por todos os lados sem que a reserva os pudesse

77

auxiliar. Depois, chegaram reforços enviados a partir de Rostrogordo, e outros, por mar,

tendo a situação acalmado.

Nos dias seguintes, os espanhóis foram avançando para o sul, cercando o

Gurugu pelo oeste e encontrando-se, pela primeira vez, com mouros que estavam do seu

lado, como Asmani El Gato, que colaborou com uma harca amiga. No dia 23, já

estavam em Zoco-el-Had de Beni Sicar. Neste ponto, ocorreu o acontecimento em que o

cabo Noval ganhou fama. Estavam numa patrulha que saiu de um posto avançado

quando foram cercados pelos mouros. Eram rifenhos de Beni Urriaguel, de Alhucemas,

que se haviam associado à luta. Haviam enganado os espanhóis da posição próxima, que

não disparavam, pensando que se tratava de amigos. Noval apercebeu-se da artimanha e

gritou «abrir fogo, que são eles!», e salvou os seus companheiros da emboscada, caindo

morto. Obteve a Cruz de San Fernando de 2ª classe.

Por sua vez, o general Aguilera manobrava pelo sul do Mar Chica para ocupar os

poços de Aograr, Zeluan e Nador. Neste último, que ainda nem era uma povoação,

Orozco descansou; no dia 26, chegou a divisão de Tovar para irem juntos, no dia

seguinte, para Zeluan. Duas colunas paralelas, muito numerosas, iam pelos terrenos

planos que os rifenhos não podiam defender nem atacar. Nesse mesmo dia, ocuparam a

povoação e a alcáçova de Zeluan. Pacificada a zona pelas duas tropas, o coronel

Aizpuru é encarregado de conquistar o Gurugu com três colunas que subiram pelo

labirinto intrincado de barrancos e contrafortes. Aizpuru conquista o pico Basbel, o

coronel Axó faz o mesmo com Kola e o coronel Miguel Primo de Rivera instala-se nas

elevações de Ait Aixa e Gorro Frigio. A ocupação de Ait Aixa foi tardia, porque, se

tivesse sido feita antes, como tentou Pintos de forma imprudente, os espanhóis teriam

dominado o campo plano e a campanha ter-se-ia desenvolvido de outra forma e com

menos baixas. Ainda assim, acabou com a conquista de Tazza e a defesa da zona,

criando posições fortes. Nos finais de outubro, o governo anunciou a repatriação das

tropas expedicionárias. O Governo Militar ou Capitania de Melilha elevou-se a

Capitania Geral e foi-lhe atribuído um efetivo de 20500 homens. A penetração em

Marrocos havia sido posta em marcha e, para isso, era necessário dispor de uma força

militar grande e efetiva.

Os espanhóis haviam travado uma dura contenda no território marroquino contra

um inimigo duro e experiente num tipo de guerra de resistência, emboscadas e

perseguições, mas inferior em número e em organização. Para dominar

aproximadamente os 1700 quilómetros quadrados da península de Três Forcas, que

78

ficaram guarnecidos em defesa da cidade, foram necessários quase 48000 soldados e

gastou-se mais de 100 milhões de pesetas. «Nunca general algum do exército espanhol

chegou a reunir sob o seu comando tantos elementos modernos de combate como o

general Marina»6. A política nacional havia-se deteriorado e começava-se a ver

Marrocos como um problema sangrento, duradouro e pouco rentável. As baixas haviam

sido excessivamente numerosas. Atribuía-se a Marina certa condescendência para com

os mouros, inclinação para o acordo e falta de decisão no castigo definitivo. A forma

hispânica de fazer a guerra em Marrocos apresentava graves falhas, que podiam ter sido

corrigidas estudando a forma francesa de fazer a guerra na Argélia. Os espanhóis

teimavam em manter muitas pequenas posições que deviam ser abastecidas quase

diariamente. Os franceses, desde Bugeaud, colocavam no território grandes posições

bem defendidas e abastecidas, de onde saíam colunas móveis que castigavam o inimigo.

Os espanhóis combatiam com tropas inexperientes recrutas e reservistas, sem unidades

profissionais. Esta forma espanhola de fazer a guerra trará consequências desastrosas,

anos depois.

A instauração do protetorado

Como vimos, a atuação em Marrocos teceu-se através de uma complicada rede

de interesses entre os diferentes países europeus. A França, que era o ator principal

nesta ação, havia chegado a um acordo com a Itália para lhe entregar a Líbia, em 1901,

com a Inglaterra, para lhe ceder o Egito, em 1904, dando lugar à Entente Cordiale, e

nesse mesmo ano, com a Espanha, para lhe dar o que restava de Marrocos depois de

fracassado o tratado nonato de 1902, que Maura não quis assinar para não isolar a

Espanha da Inglaterra. No entanto, faltava contentar a Alemanha. A política agressiva

do kaiser não havia funcionado em Marrocos. A sua visita a Tânger, em 1905, não lhe

trouxe benefícios e a convocatória da Conferência de Algeciras não respondeu ao que

lhe interessava. As suas pretensões em Marrocos, país em que as suas companhias e os

seus comerciantes estavam a realizar bons negócios e tinham perspetivas de os tornar

maiores, não estavam nem de perto cumpridas. Em 1911, os alemães fazem uma nova

demonstração de força e uma reclamação de participação nos assuntos marroquinos,

enviando a canhoneira Panther ao porto de Agadir, que era o mais importante na zona.

O incidente podia ter causado uma guerra: não esqueçamos que a Primeira Guerra

Mundial começou apenas três anos depois. Tão pouco desta vez a Alemanha viu

79

satisfeitas as suas esperanças. A crise de Agadir resolveu-se diplomaticamente a favor

da França, que se viu apoiada pela Inglaterra e pela Rússia através da Triple Entente,

uma aliança que os três países haviam estabelecido. Após este episódio, a França ficou

definitivamente com as mãos livres em Marrocos, em troca de um pedaço do Congo

francês, que foi cedido à Alemanha, incluído no acordo assinado entre ambas as

potências, no dia 4 de novembro de 1911.

Ultrapassado este obstáculo, a França ultima o seu grande projeto norte-africano,

obrigando o sultão a assinar um acordo de instauração de um protetorado no império

magrebino, no dia 30 de março de 1912. As diferenças entre protetorado e colónia são

claras apenas em teoria. No protetorado, o país protegido continuava a conservar a sua

personalidade jurídica internacional e de direito interno. O país protetor limitava-se a

completar a administração insuficiente mediante a criação de uma estrutura política e

administrativa sobreposta, mas que atuava sempre em nome do sultão que cedera o uso

de competências soberanas. Na prática, o domínio do país protetor sobre o protegido era

tal que dificilmente se diferenciava de uma colónia, mais ainda tendo em conta que

havia colónias de diferentes tipos e com diferentes graus de domínio.

Após este passo, a França apressou-se a cumprir o pactuado com a Inglaterra em

1904 e convocou a Espanha para delimitar a zona que lhe corresponderia a norte; ambos

os países assinaram, no dia 30 de novembro de 1912, o tratado em que ficava

constituído o protetorado espanhol em Marrocos, ou a zona espanhola de protetorado,

como os franceses preferiram chamar-lhe. Além disso, a Espanha tinha a sua franja a

sul, adjacente ao Saara, de que falaremos no capítulo respetivo. A França levava a maior

e melhor parte, com grandes zonas de boas terras para agricultura e pecuária, zonas

mineiras e grandes cidades e portos. Também era a mais bem organizada e contava com

grandes alcaides e líderes com os quais o governo podia pactuar.

À Espanha, foi atribuída uma franja pobre, escassamente povoada, montanhosa e

rebelde, bem como alguns pequenos vales para a agricultura e as minas do sul de

Melilha. Tinha sido despojada de Tânger, a norte, da franja até à fronteira argelina, a

este, e do território de Fez, a sul. Apenas possuía uma cidade importante, Tetuan, outra

mediana, Larache, e três pequenas, Arzila, Alcácer-Quibir e Xauen. O território

dividia-se em cabilas belicosas, que se enfrentavam entre si, sem líderes regionais

importantes e contrárias ao poder colonial. O legado era um presente envenenado que a

Espanha teve que aceitar por dignidade nacional e, sobretudo, para não ficar fora do

jogo internacional da época.

80

Em agosto de 1911, quando o acordo com a França estava quase terminado mas

ainda não se havia assinado, os espanhóis ocuparam Larache, Alcácer-Quibir e Arzila,

onde a ajuda de El Raisuni foi fundamental para chegar à cidade e para a dominar sem

se disparar um único tiro. As ações foram encomendadas pelo tenente-coronel Silvestre,

que havia comandado a parte espanhola da polícia portuária de Casablanca e que se

destacaria, mais tarde, na crise de 1921. Os franceses, sem que estivesse estabelecido

formalmente o protetorado, haviam ocupado as zonas mais proveitosas do país e

destacado agentes nas duas margens do rio Lucus, que era a fronteira entre as zonas

francesa e espanhola. Face à possibilidade de tentarem ocupar alguma parte da zona

espanhola, particularmente Alcácer-Quibir, para o dar como um facto consumado, o

governo de Canalejas decidiu ocupar aquelas três cidades e as suas comarcas. Foi um

facto levado a cabo com êxito que teve um importante apoio da população, que via que

a decomposição do Majzen ia minando as estruturas económicas e favorecia o caos e a

violência. Canalejas, um impulsionador da ação colonizadora espanhola e do acordo

com a França, foi assassinado no dia 12 de novembro de 1912, alguns dias antes da

assinatura do tratado.

O protetorado espanhol organizou-se como passaremos a descrever. Embora

fosse mudando de umas etapas para outras, o esquema final não foi muito diferente do

que assinalamos.

Em primeiro lugar, existia uma Administração Central que se dividia em duas

partes:

a) Marroquina. Em primeiro lugar, estava o califa ou representante do sultão na

zona. Era escolhido pelo sultão entre os dois candidatos que o governo

espanhol apresentava. Ditava os decretos e a justiça administrava-se em seu

nome. O Majzen correspondente à autoridade do califa era composto pelo

grão-vizir ou chefe dos serviços administrativos, o vizir da Justiça, que era o

chefe da justiça na zona, o administrador dos bens do Majzen e o

administrador dos bens doados (fundações ou bens deixados para fins

benéficos). As nomeações eram efetuadas pelo califa através de decreto mas

com a autorização prévia do alto-comissário espanhol.

b) Espanhola. Em primeiro lugar, estava o alto-comissário, como chefe político,

administrativo e militar do protetorado espanhol. Dependia da Presidência do

Governo e tinha um vasto poder. Em segundo lugar, estava o delegado-geral

ou secretário-geral, que substituía o alto-comissário e era o chefe da

81

administração protetora. Era também competente em matéria de polícia e

segurança. Era o delegado de Assuntos Indígenas para os assuntos

marroquinos.Também havia o delegado da Educação e Cultura, o delegado

da Economia, da Indústria e do Comércio, o delegado das Obras Públicas e

das Comunicações e o delegado da Fazenda. Cada delegação tinha várias

direções ou serviços.

c) Existiam também alguns órgãos mistos ou organismos em que participavam

tanto funcionários espanhóis como marroquinos: Junta Superior de

Monumentos Artísticos e Históricos, Junta Central de Saúde, Junta Central

do Crédito Agrícola, Mechles el Ulama (relacionada com os direitos de

usufruto dos bens doados), Junta Central de Estatística, Comissão Central

para a Luta Antipalúdica e a Junta Central de Higiene Pecuária.

Simultaneamente, os serviços periféricos organizavam-se numa administração

local igualmente bicéfala:

1) Marroquina. A administração local dividia-se em circunscrições, à frente das

quais se encontrava um alcaide e que compreendiam o território de uma

cabila. Se nesta existisse uma cidade, o cargo convertia-se em paxá e o

território, em paxalato. Os umana el mustafadatvi administravam os bens do

Majzen; os umana das alfândegas, as mesmas; os nuddarvii, os bens doados e

os almotacés cuidavam dos mercados.

2) Espanhola. Coincidindo com as circunscrições ou paxalatos, os espanhóis

estabeleceram os corpos de oficiais territoriais, com um interventor a

comandar, que era militar e exercia no território as competências

administrativas, políticas e de polícia. Em cada corpo de oficiais, era

costume haver serviços de ensino, saúde, obras públicas, agricultura, polícia

e finanças. Nas cidades, existiam juntas municipais ao jeito de câmaras

municipais.

3) Órgãos mistos. Juntas locais de Monumentos, Saúde, Beneficência,

Depósitos Agrícolas, Estatística e Luta contra o Paludismo.

Por último, reconheciam-se as comunidades hebraicas, que tinham algumas

peculiaridades próprias.

vi

Governadores responsáveis pela receita da cidade [NT]. vii

Representantes dos donativos [NT].

82

As zonas rurais foram divididas em corpos de oficiais territoriais comandados

por um militar. O interventor formava parte de uma elite administradora. «O essencial

para o desempenho deste importante cargo é o domínio do idioma árabe; sem este

requisito elementar, não se poderá nunca conseguir o bom rendimento que se deve

esperar daquele que ocupa um posto político-militar», dizia o capitão Amigó, em 19287.

O interventor era uma figura ilustre que falava com os indígenas no seu idioma e estava

familiarizado com a sua cultura e os seus costumes. Vivia na zona que dirigia e tinha

um contato direto e preciso com o mundo rural. Os corpos de oficiais fiscalizavam as

autoridades marroquinas, sobretudo no que dizia respeito ao modo de exercer o poder

sobre os habitantes. Tinham funções de polícia e vigilância, para o que contavam com

forças da Mezjanía, polícia indígena, e da Guarda Civil. Dirigiam os serviços de

interpretação no seu território e controlavam os da educação, saúde, comércio,

beneficência, etc. Também tinham uma importante missão de informação. Pode dizer-se

que eram como delegados ou governadores de cada circunscrição, tendo também um

poder moderador ou de justiça em assuntos de pequena importância. Portanto, as suas

funções eram muito amplas e de difícil sistematização. A variedade de funções obrigou

os interventores a conhecer um tal número de disposições oficiais que o seu trabalho foi

altamente delicado e de realização muito difícil8. No entanto, foram a alma da

Administração espanhola no protetorado marroquino.

O sistema era complexo. Para a aplicação da justiça, por exemplo, cada grupo

racial ou religioso tinha os seus próprios tribunais: os espanhóis recorriam aos tribunais

civis ou eram julgados pelos militares, se pertenciam a esta classe. Os muçulmanos

tinham os tribunais do Majzen, que atuavam com total autonomia e, em algumas

ocasiões, podiam julgar os europeus, e os tribunais religiosos ou islâmicos. O direito

consuetudinário berbere era respeitado e as yamás ou assembleias de tribo estavam

encarregadas de ajuizar os casos que estavam sob a sua autoridade. Os hebreus tinham

tribunais israelitas em Nador, Larache e Tetuan, bem como um alto Tribunal Rabínico

em Tetuan. No protetorado, respeitava-se a liberdade dos cultos. O ensino primário era

administrado em árabe para os marroquinos, em espanhol para os espanhóis e em

espanhol e hebraico para os hebreus. Existiam dois ensinos secundários, o espanhol e o

marroquino.

A instauração do protetorado não deu origem a uma reação forte contra os

espanhóis nas zonas urbanas, mas agravou as contínuas campanhas de pacificação na

zona oriental, onde os cabilenhos se organizavam em torno de líderes tribais que os

83

levavam a lutar contra os espanhóis, a quem viam como ocupantes ilegítimos da sua

pátria. A zona ocidental não teve uma reação tão violenta: parece que, de início, uma

grande parte da população aceitou o novo sistema com alguma esperança de melhorias,

mas também surgiram cabecilhas como El Raisuni, que, após hesitações, se lançou

contra os espanhóis, procurando um poder que o tornasse forte também perante o sultão.

Mais guerra: as campanhas de 1911-1914

Em 1912, o general Alfau passou a ser o primeiro alto-comissário. A zona

espanhola estava só parcialmente ocupada. Em Melilha, como consequência da guerra

de 1909, havia-se dominado uma extensão de 300 a 600 quilómetros quadrados, que

abrangia o território mineiro. Na parte ocidental, apenas se ocupou Larache,

Alcácer-Quibir e Arzila. Ocupou-se Larache em julho de 1911, com a aquiescência da

população. Os espanhóis verificaram que o capitão francês Moreaux se havia

estabelecido próximo de Alcácer-Quibir com o pretexto de vigiar uma mehalla (tropas

do Majzen marroquino) e suspeitaram que a sua intenção era ocupar essa cidade. Os

espanhóis, aproveitando a situação de pilhagem e a falta de autoridade, desembarcaram

no dia 8 e, passados dois dias, o capitão Ovilo entrou em Alcácer-Quibir para a colocar

sob proteção espanhola. A zona ocupada foi posta sob o comando do tenente-coronel

Silvestre, que era o major da polícia de Casablanca.

Exercia grande influência na zona uma personagem feudal de estranha e rica

personalidade, excêntrica e cruel na sua forma de exercer o poder, muito próximo do

banditismo. Muley Ahmed el Raisuni tinha uma vasta formação jurídica e religiosa. Os

seus excessos haviam-no levado à prisão em Mogador, durante quatro anos. Voltou

cheio de ressentimento contra o sultão e viu na colaboração com os espanhóis a forma

de obter mais poder no território norte. Instalou-se em Zinat e serviu-se de artifícios

para sequestrar os ingleses Harris, Pericardis e McLean, bem como todos os que se

punham no seu caminho e pelos quais pensava poder obter resgate. Quando se deu uma

revolta contra o sultão, colocou-se ao lado do pretendente, sublevando as cabilas. No

momento em que os espanhóis chegaram, o seu poder tirânico estava consolidado e

podia submeter a zona. Por isso, Silvestre pensou que, com a sua colaboração, o

domínio seria fácil. E ao princípio foi: El Raisuni facilitou a conquista de Arzila e ficou

como paxá da cidade. No entanto, Raisuni e Silvestre tinham personalidades fortes,

84

eram pouco dados à negociação, imperativos e energéticos, e cedo surgiu o confronto

entre eles.

Em 1911, Alfau, comandante-geral de Ceuta, decidiu ocupar o campo exterior

até ao monte Negrón, seguindo o caminho aberto em 1860. Tanto ele como Larrea, que

era o comandante-geral de Melilha, tinham, nesse momento, um conceito protetor da

política colonial e tentavam ganhar os favores dos indígenas mediante obras públicas e

investimentos. Alfau aproveitava a construção da estrada Ceuta-Tetuan para mover e

estabelecer tropas. Após a instauração do protetorado em Marrocos, o comandante-geral

Alfau quis continuar com uma política de penetração pacífica que partia da premissa de

conseguir a colaboração das autoridades ou dos chefes locais. Estes pediam em troca

dinheiro, poder ou ambas as coisas. Alfau, que conhecia a debilidade deste

procedimento, tentou que El Raisuni fosse nomeado califa (representante do sultão no

protetorado espanhol), mas não o conseguiu, porque outros espanhóis, conhecedores da

inconstante e inquietante personalidade do marroquino e da sua insaciável voracidade

na cobrança de impostos, o impediram. Isto incomodou muito El Raisuni, que, já em

luta com Silvestre, sofreu ainda a ofensa de ver que este apoiava o seu rival Ermiki na

zona de Alcácer-Quibir e que atendia os que ele havia prejudicado. Em 1912, a estrada

já chegava a Cabo Negro e as tropas de engenheiros que a construíam e de infantaria

que a protegiam estabeleceram um acampamento no aduar chamado Medik e que se

converteria na vila de El Rincón de Medik, que é hoje uma cidade com cerca de 40000

habitantes.

Antón del Olmet descrevia-a, em 1913:

Sem ofensa, pode afirmar-se que El Rincón não é Paris. Quando está levante, é

impossível desembarcar. Hoje, com poente, pode-se fazê-lo, mas parcialmente.

Nem uma casa. Alguns barracões de cantineiros; montes de palha; automóveis

que vêm e vão, aprovisionando as tropas; um par de ovos que a esposa do galo

de Morón pôs e um café com leite que é apenas com lama. O incipiente, o que há

para se improvisar à força aparecem no Rincón de Medik. Mas não sejamos

avarentos. Ainda mais infeto foi Nador e hoje é uma pequena vila asseada onde

habitam a paz e o contentamento. Uma carroça, numa estrada espanhola feita

pelos nossos soldados e que ainda é massacrada pela guerra, conduz-se sem

demasiado rendimento até à cidade sagrada, até à Tetuan do nosso sonho e do

meu orgulho!9

85

Em 1913, Alfau entra pacificamente em Tetuan e dispõe-se a convertê-la na

capital do protetorado. Isto gerou uma revolta em várias cabilas próximas, tendo El

Raisuni aproveitado para chefiar a ação antiespanhola na parte ocidental. Esta rebeldia

duraria vários anos e passou por diferentes fases, mas foi muito resistente na parte que

vai de Tetuan a Xauen, Beni Arós e a foz do rio Lau. Deixou a cidade de Arzila e partiu

para os montes existentes entre Larache e Xauen, num lugar chamado Tazarut, onde

possuía um palácio que usou como residência habitual e quartel-general.

Na zona de Melilha, depois da guerra de 1909, as coisas não estavam

completamente pacificadas. Começava-se a dizer que o assunto não se resolveria até

que os espanhóis dominassem a baía de Alhucemas, ponto nevrálgico da revolta rifenha.

Os espanhóis mantinham em seu poder, desde 1910, quase toda a península de Três

Forcas, mas sem atingir o Kert até à sua foz, e estendiam-se pelo este até ao Cabo de

Agua, em frente das Chafarinas. Tinham o Gurugu, o Mar Chica e o território mineiro.

A oposição havia aproveitado o fim da campanha para atacar com maior fúria o governo

de Maura por não ter apoiado suficientemente o bastante o general Marina, que se viu

obrigado a demitir-se.

Os espanhóis haviam aprendido muito com a campanha de 1909. Conheciam

melhor o inimigo e mudaram o modo de combate. Tornaram-se populares alguns

manuais franceses de combate em África, que explicavam o modo de atuar do exército

francês na Argélia. Compreenderam que se deviam deslocar com colunas móveis e

surpreender o inimigo, que o mais importante era a estratégia e que deviam atuar com

mais de uma coluna em simultâneo. Os referidos manuais circulavam em francês e eram

obra de Yusuf y Frisch, um italiano que cresceu como cativo em Tunes e que, em 1830,

entrou com os franceses na Argélia, onde chegou ao grau de general de três estrelas10.

De acordo com o conceito de operações de polícia que o exército espanhol tinha, era

importante dominar o território útil.

Em maio de 1911, o general Larrea ocupava Zaio, junto ao rio Muluya, que era o

limite da zona espanhola. Deixou um destacamento ali e outro numa zona intermediária

com Zeluan. Nesta última localidade, o general Orozco colocou meia brigada. Não

tiveram oposição dos habitantes. Mais tarde, alargou-se a área com as ocupações de

Ras-Medua, Taurit e Harcha. Por último, parte da coluna levada por Orozco a Zeluan

deslocou-se até Segangan. Nesta parte oriental da zona, não encontraram resistência.

86

Os espanhóis queriam consumar o seu controlo sobre a península de Três Forcas,

ampliando o seu domínio até ao rio Kert, e pretendiam inclusivamente chegar mais

além, até El Garet. Para isso, o general Marina e o coronel Serra Orts haviam mantido

conversações com os chefes das cabilas e havia-se chegado a um acordo de ocupação

pacífica que posteriormente não se cumpriria. Queriam ocupar definitivamente a zona

que lhes correspondia e estabelecer aí a sua autoridade. O rio Kert é um canal seco na

maior parte do ano, pouco mais que um regato, que apenas parece um rio quando as

chuvas o enchem de água. Atravessá-lo pressupunha entrar nas cabilas de Beni Sicar e

Beni bu Gafar, lideradas por El Mizzian ou Amezian, homem de grande prestígio

religioso e humano que exercia uma influência notável. Velho conhecido dos espanhóis,

pela campanha de 1909, não era um cabecilha tão cruel nem tão despótico como era

costume. Juntava à sua vida guerreira uma profunda piedade islâmica. Os espanhóis

verificavam que eram continuamente agredidos pelos cabilenhos que se opunham à sua

presença e que eram apoiados pelas cabilas do Rife central, especialmente por Beni

Urriaguel e Bocoya. Em agosto de 1911, alguns trabalhadores da Comissão Geográfica

que elaboravam um mapa foram agredidos e, durante a noite, viram-se nos montes as

fogueiras que chamavam a harca contra a Espanha.

Os combates de agosto e de início de setembro foram duros e o general Larrea

empenhou-se enérgica e rotundamente contra as cabilas rebeldes. García Aldave, que

era capitão general de Melilha desde outubro de 1910, tentou impedir as agressões com

conversações, mas não hesitou em atacar os rebeldes. Os espanhóis mantiveram-se na

margem direita do Kert e os mouros não conseguiram passar o rio. As harcas chegadas

do Rife central, com numerosa cavalaria, deram uma dura luta aos espanhóis, que se

mantiveram nas suas posições devido à artilharia e às manobras da infantaria. No

entanto, o rio Kert ficou como uma fronteira entre o que os espanhóis podiam possuir e

o território rifenho alheio ao seu domínio, que permanecia com o seu tradicional

governo tribal. Larrea aproximou-se do Kert com três colunas diferentes e, no início de

setembro, já tinham a margem conquistada, mas sofriam constantes ataques

marroquinos nas posições de Izhafen, Taurit e, sobretudo, em Imarufen, que era a mais

desprotegida. Os espanhóis tiveram que conter o avanço para reforçar e fortificar estas

posições avançadas.

No início de outubro, apresenta-se em Melilha o ministro da Guerra, general

Luque, que parece mostrar-se satisfeito por ter chegado ao rio Kert e manter a margem

norte. No entanto, as aspirações não se ficavam por aí. Decide-se uma operação de

87

punição contra as cabilas inimigas, atravessando-se o rio de novo. É necessário referir

que, nesta fase, já se havia aprendido a tática francesa da terra queimada e os espanhóis

incendiavam os bens, as casas e as colheitas dos inimigos. No dia 7 de outubro, o

coronel Primo de Rivera chegou a Ifratuata e tentou fortificar a posição, mas retirou-se

para Imarufen, no dia 8. Tratava-se de uma manobra de distração para permitir a Orozco

chegar a Zoco de Zebuya, castigar o inimigo no seu terreno e queimar os seus bens. Até

ao dia 30 de outubro, não houve combates importantes. Os espanhóis mantinham as

suas posições, embora fossem fortemente fustigados. Numa das ações, morreu o general

Ordóñez e, para o substituir, foi enviado o general Aguilera, um militar prestigiado

veterano de Cuba, da guerra carlista e da campanha de 1893.

Os combates haviam servido aos Beni Urriaguel para fortalecerem as suas

posições costeiras, desembarcando em Alhucemas, pois temiam uma ação espanhola na

retaguarda. Em dezembro, a situação continuava por pacificar. A harca de El Mizzian

decide atacar definitivamente na noite do dia 21 de dezembro. Permanecia colocada em

Bu Ermana, a cerca de 10 quilómetros do Kert. E, dada a ordem, atravessaram o rio e

atacaram as posições espanholas, tentando conquistar as mais importantes do perímetro.

Era uma ofensiva em larga escala. Ocuparam as colinas de Taurit-Buxí e tentaram

conquistar Taurit-Zag, no dia 23; apenas o impediu a chegada das colunas de reforço

dos coronéis Ros e Serra. Posteriormente, juntar-se-ia a elas uma terceira coluna,

comandada por Aizpuru. No dia 25, os espanhóis contra-atacaram para reconquistar

Taurit-Buxí.

Aguilera apercebe-se de que a campanha apenas terminaria quando

conseguissem expulsar a harca para o outro lado do rio Kert, sem lhe dar a

possibilidade de voltar a cruzá-lo ficando como fronteira provisória entre o território

espanhol e o campo rebelde. No dia 26, decide organizar uma vasta operação que

abrangesse um extenso território, de Iazanen até Punta Negrí, e, para isso, organiza

cinco colunas sob o comando dos generais Carrasco e Ros, dos coronéis Serra e Aizpuru

e do tenente-coronel Regoyos. O objetivo era a colina de Izarrora. O inimigo era em

maior número do que se calculava. No dia 27, as colunas acamparam à vista do

objetivo, que foi conquistado nesse dia, obrigando os marroquinos a atravessar de novo

o Kert. Os espanhóis caminharam em condições penosas, sem descanso, constantemente

fustigados pelo fogo da harca e sofrendo um número de baixas que, em algumas

companhias, chegava a metade do seu total.

88

Havia chegado o ano de 1912 e havia-se reduzido a harca de El Mizzian; por

isso, os espanhóis decidiram alargar a zona para o sul, com a conquista do Monte

Arruit, e dominar as planícies de El Garet. A operação apresentava-se como a mais

importante das realizadas até então, não apenas por envolver o ponto mais distante de

Melilha até onde se chegava, mas também pela importância de dominar, a partir dessa

elevação, toda a planície de El Garet. A operação era chefiada pelo novo

comandante-geral espanhol, García Aldave. O primeiro objetivo, que era a conquista do

lugar, foi cumprido no final de janeiro de 1912. O segundo objetivo – atrair o inimigo

para o destruir –, não foi conseguido porque a harca estava cansada pelos castigos

excessivos. Uma vez conquistada a posição, o general Larrea permaneceu no lugar, com

o objetivo de empreender uma política de atração pacífica dos chefes das cabilas. Os

marroquinos, vencidos, não voltaram ao combate, embora se excedessem em atos de

pilhagem, roubos, ataques, sequestro e assassinatos de colonos e de mouros partidários

de Espanha. Embora a harca tentasse organizar-se de novo ao abrigo do monte Mauro,

foi definitivamente derrotada pelos espanhóis e dissolveu-se no final de março daquele

ano.

Os combates prosseguiram até abril de 1912, mas com menor intensidade. Em

1911, haviam-se formado os Grupos de Forças Indígenas Regulares, conhecidas

popularmente como os regulares, primeira tentativa espanhola de integrar indígenas

com comandos espanhóis em unidades profissionais, que o coronel Berenguer

comandava. No dia 15 de maio, os regulares de Berenguer enfrentaram a harca inimiga

num duro combate que deixou no campo de batalha o cadáver de El Mizzian. Isto

precipitou o fim da guerra. O cadáver de El Mizzian foi levado para Melilha e

posteriormente entregue, com todo o respeito, aos seus familiares, em Segangan, com

uma companhia de infantaria a prestar-lhe homenagem. Rosa María de Madariaga

explica por que razão foi levado previamente à praça: «Se os espanhóis levaram o

cadáver de Amezián para Melilha, era porque tinham particular interesse em que todos

na cidade, cristãos e muçulmanos, vissem que o morto era efetivamente ele. Com isso,

destruíam a lenda da sua imortalidade que circulava entre os rifenhos e desmoralizavam

a resistência, que se via privada do seu chefe carismático»11. Foi um homem que lutou

nobre e abertamente pelo ideal da independência da sua terra e, se não tivesse morrido,

provavelmente teria sido possível atraí-lo para a causa espanhola através do

reconhecimento da sua autoridade e autonomia. Foi um combatente que Abd el Krim

admirou mais que a nenhum outro.

89

No entanto, a guerra no Rife desenvolvia-se de outra forma. Os militares

espanhóis formavam-se nas academias para as guerras contra exércitos. «Precisamente

por ser uma guerra irregular, está-se sempre exposto a grandes surpresas favoráveis ou

adversas, pela mesma irregularidade que usa o inimigo; trata-se de uma guerra em que

quase todos os dados do problema são desconhecidos para quem comanda e para os

Estados-Maiores e, portanto, a resolução é mais difícil do que na guerra regular, em que

tudo se sabe, geralmente, tudo se presume, se forma um plano, se prepara e se

desenvolve com total regularidade e exatidão. Em África, não; na guerra africana, vai-se

sempre para o desconhecido»12. Em todo o caso, os espanhóis tinham que deslocar

grandes quantidades de tropas para poder vencer a resistência rifenha. Manter um

exército tão numeroso, que também sofria um grande número de baixas, era caro e

impopular. Os espanhóis sofriam um autêntico pesadelo de cada vez que as cabilas se

revoltavam e que tinham que abafar a revolta. Era muito dispendioso conquistar

território economicamente inútil. Cada vez mais, aumentavam as vozes contra a

presença espanhola em Marrocos, que, na opinião de muitos, apenas trazia sangue e dor.

Enquanto a guerra durou, as cabilas do Rife central (Beni Urriaguel, Bocoya e

Tensaman) apoiaram de forma decidida o El Mizzian, hostilizaram a ilha espanhola de

Alhucemas e as propriedades dos mouros amigos de Espanha, entre elas a casa do pai de

Abd el Krim. Os espanhóis respondiam com as baterias da ilha e com os canhões dos

navios da armada enviados à baía.

Os anos seguintes foram de relativa calma, pela complacência em manter as

posições e pelo empenho na penetração pacífica, que era cara, mas que não era

propriamente penetração, pois os espanhóis continuavam limitados nas linhas ganhas na

guerra. Durante a Primeira Guerra Mundial, a França pediu à Espanha que reduzisse as

suas operações e assim se fez. Não obstante, em 1916, colocaram-se outras posições

permanentes na outra margem do Kert, na cabila de Metalza, e fizeram-se incursões

pelo sul até o rio Muluya.

Penetração pacífica, penetração militar. Os planos para o protetorado

A situação na zona ocidental do protetorado apresentava-se um pouco mais

pacífica. Larache, Arzila e Alcácer-Quibir estavam ocupadas quase sem oposição e

Silvestre negociava de forma amigável com o xerife El Raisuni, paxá de Arzila, até que

as suas personalidades chocaram irremediavelmente. Em defesa de Fernández Silvestre,

90

há que dizer que a função protetora da autoridade espanhola não permitia os abusos, as

atrocidades, as rapacidade e os excessos que El Raisuni empregava para submeter as

cabilas da zona e exercer sobre elas o poder. Prisões chocantes, atrocidades ou morte

eram as penas impostas arbitrariamente pela justiça local por pequenos delitos ou

simplesmente por desrespeito da sua absoluta autoridade com gestos ou símbolos. No

entanto, Silvestre não havia calculado bem o poder de que dispunha o caudilho

marroquino; por isso, o confronto não acabou em submissão de um ao outro, mas numa

intranquilidade constante na zona que não permitia viagens por terra porque El Raisuni

e os seus homens praticavam o sequestro para cobrar o resgate, como nos melhores

tempos da pirataria, que, por sua vez, sempre havia sido um bom negócio no país,

praticado por autoridades, corsários ou bandidos.

O xerife havia compreendido que Silvestre atuava por conta própria, sem se

articular com a Legião Espanhola em Tânger nem com o Alto Comissariado, o que lhe

proporcionava maior margem de atuação. Silvestre cometia imprudências, uma atrás da

outra. Em 1913, decide aliar-se ao tradicional inimigo de El Raisuni, chamado Ermiki, o

que provoca a irritação do primeiro. Depois disto, Silvestre punha-se do lado de

qualquer um que estivesse contra Raisuni, tentando minar a sua autoridade em Arzila.

No final do ano, reconhecendo a impossibilidade do acordo com Silvestre, Raisuni

abandonou a zona e refugiou-se em Tazarut, nas montanhas, convertido já em inimigo

de Espanha e senhor do lugar. Raisuni garantiu a presença pacífica dos espanhóis ali,

mas não os deixava exercer toda a autoridade. A sua rebeldia resultaria na luta aberta

com as cabilas comandadas pelo xerife. O cabecilha sentia-se seguro nas montanhas de

Zinat, em Tazarut, em Beni Arós. Os espanhóis eram mais fortes na planície; tinham

artilharia e dominavam o combate em campo aberto.

Alfau, alto-comissário no protetorado, continuava com o seu desejo de ligar

Ceuta a Tetuan por estrada e telégrafo. A ocupação de Tetuan havia gerado uma forte

oposição entre as cabilas, chegando inclusivamente a formar uma harca em Ben

Karrich, que não chegou a atacar a cidade mas obrigou a desalojar o fondak de Ain

Yedida, ponto-chave na passagem das montanhas do caminho de Tetuan a Tânger,

embora, pouco depois, se conquistasse Laucien, nas proximidades. Os espanhóis

estavam obrigados a respeitar ao máximo os costumes, a religião, a forma de vida e a

ordem social muçulmana, para atrair pacificamente a população e evitar a guerra. O

impetuoso Silvestre continuava a ganhar a inimizade da população e, no dia 7 de julho

de 1913, a harca atacou Alcácer-Quibir, que se pôde salvar devido à carga dos

91

esquadrões da cavalaria sob o comando de Queipo de Llano. Entretanto, em Yebala, os

habitantes cortavam a estrada de Ceuta a Tetuan e causavam prejuízos aos viajantes.

Em agosto de 1913, o general Marina substituiu Alfau como alto-comissário. A

primeira coisa que fez foi tornar o caminho seguro, através de uma série de postos

militares entre Ceuta, Medik, Rio Martín e Tetuan. Enquanto Silvestre aumentava o

perímetro ocupado de Larache com ações em Seguelda, Cuesta Colorada e Bufas,

Marina tentou contactar com o Raisuni, em maio de 1915, para chegar a acordos, mas

não o conseguiu: os cadáveres dos seus emissários apareceram nas proximidades de

Larache. Desconfiou de Silvestre, opositor a esta aproximação e partidário de dirigir um

golpe militar contra o cabecilha. Marina sabia que tinha 40000 homens entre Ceuta e

Tetuan, mas eram poucos para conquistar as montanhas e chegar a Xauen. Não poderia

consegui-lo sem a participação de Raisuni. «A estrada de Ceuta a Tetuan estava

ocupada por milhares de soldados, dez ou doze mil homens em penoso serviço de

vigilância, num caminho de 48 quilómetros. E, apesar de tal luxo de forças, apenas se

garantia a segurança das oito horas da manhã às cinco horas da tarde; à noite, a estrada

era dos rebeldes e as tropas recolhidas nos seus acampamentos, fortins e redutos eram

tropas sitiadas. Quantas sentinelas caíram vítimas dos disparos!»13.

Pouco depois, Marina demitiu-se e foi substituído por Gómez Jordana,

comandante-geral de Melilha até então. Jordana, perante as dificuldades que

apresentava a ocupação total do território e a sua submissão a Espanha, optou pela

negociação. No final desse ano, chegou a um acordo com El Raisuni, deixando-o

governar, em nome do sultão, as cabilas que submetesse. Fizeram-se operações

conjuntas para conquistar o fondak de Ain Yedida, que garantia a comunicação de

Tetuan e Larache e isolava, a norte, as cabilas de Anyera e Uad Ras, situadas em

território montanhoso e de difícil acesso por falta de caminhos. Colaborou também na

instalação de postos militares e nas operações contra as cabilas rebeldes. No entanto,

Raisuni continuou com a sua política de abusos e humilhação aos representantes de

Espanha, o que provocou a sua rutura com Jordana porque pensava que a sua

colaboração com a Espanha lhe retirava poder e prestígio entre as cabilas, com o risco

de surgir um novo líder que o substituísse. E também, como assinala Tessainer, porque

sabia que o território pacificado se integraria normalmente no protetorado espanhol,

como estava pactuado, e não lhe restaria nada. Quis excluir do protetorado os montes de

Yebala, de forma a continuarem sob a sua autoridade, mas os espanhóis não estavam

dispostos a ceder território a um líder local.

92

O contacto que Raisuni mantinha com os alemães era outro dos motivos que

preocupava os franceses e os britânicos, pois fazia pensar que o xerife tentava obter os

favores dos alemães perante uma hipotética derrota aliada na guerra. A partir de 1916, a

rutura começava a ser evidente e, em outubro desse ano, Raisuni cortou de novo a

passagem pelo fondak de Ain Yedida14. Silvestre havia deixado o seu posto no final de

1915 e alguns elementos civis espanhóis, em particular o cônsul Zugasti, ainda

mantinham, em 1917, contactos com Raisuni, procurando uma solução pacífica. No

entanto, para os militares, estava claro que apenas o confronto armado acabaria com o

poder do xerife e conseguiria a pacificação da zona. Em julho de 1918, as relações entre

Raisuni e as autoridades espanholas quase não existiram, mas ainda teve lugar uma

reunião em que os espanhóis negaram as armas que o marroquino pedia. O

alto-comissário pediu instruções ao governo para saber que conduta manter, mas não

obteve resposta. A queda de Maura levou Romanones a ministro de Estado no novo

governo liberal e, posteriormente, à Presidência do mesmo. No entanto, Gómez Jordana

faleceu no dia 18 de novembro de 1918, sendo substituído pelo general Dámaso

Berenguer, partidário da rutura com El Raisuni. As deferências acabaram quando

Berenguer ordenou, após a sua visita a Madrid, em março de 1919, que começassem as

hostilidades para conseguir a total ocupação militar do protetorado espanhol.

A presença espanhola na parte ocidental, fundamentalmente na sua capital,

Tetuan, foi provocando o surgimento de uma emigração de funcionários e militares com

as suas famílias que necessitava de comerciantes, construtores, transportadores, entre

outros, e que consolidou a colonização espanhola em Marrocos. Algumas pequenas

indústrias e as explorações agropecuárias acompanharam o início desta aventura

demográfica. A zona oriental desenvolveu-se em torno da mineração que se concentrava

no porto de Melilha. A aprovação do Regulamento Mineiro, em janeiro de 1914,

clarificou muitas dúvidas sobre o regime de concessões e garantiu a segurança jurídica

nas atuações. As administrações espanhola e francesa garantiam às empresas os seus

investimentos em Marrocos e isto fomentou as denúncias de minas. Também se criou

uma Comissão Arbitrária de Litígios para resolver conflitos entre concessionários,

denunciantes e administrações, assim como para adjudicar provisoriamente as

explorações. Existia uma crença antiga, que posteriormente se demonstrou ser falsa, na

riqueza mineira que o Rife central albergava e que atraiu aventureiros de toda a espécie,

exploradores de ouro e empresários que esperavam encontrar o filão mágico. Esta febre

93

pelo negócio pressionava o governo espanhol a ocupar a zona e a proceder à divisão

mineira.

Ao mesmo tempo, iniciou-se a colonização agrícola. Deve-se assinalar que tanto

a exploração mineira como a agrícola e a pecuária produziram entre os marroquinos um

forte sentimento de usurpação das suas terras e de invasão de estrangeiros que excluíam

os habitantes da terra. Assinale-se, também, que este sentimento correspondia, em parte,

à realidade dos factos e explodiria quando chegasse o momento oportuno, como

aconteceu em 1921. Os espanhóis sonhavam com uma exploração agropecuária do

território à maneira argelina. No entanto, não contavam que as terras fossem pobres e

carecessem de água suficiente. Por volta de 1915, constituiu-se a Companhia Espanhola

de Colonização, que se encarregava de dar início à exploração das planícies de El Garet,

perto do Monte Arruit, para atrair colonos espanhóis da península e do Oranesado,

deixando pequenas porções de terra a colonos marroquinos. A companhia limitava-se a

comprar terreno - e, na compra, estiveram envolvidos a fraude e o engano - e a vender

lotes de diversos tamanhos que se pagavam a pronto ou em prestações. Apenas uma

pequena extensão contava com regadios. A esta ação tem que se acrescentar o

estabelecimento de outros espanhóis nas várzeas do Muluya e do Kert, e ainda os que

colonizaram as margens do Lucus, na parte ocidental do protetorado, onde atuava a

Companhia Agrícola do Lucus. A presença dos colonos trazia consigo a construção de

caminhos-de-ferro, estradas, telégrafos e todas as outras obras de fomento de que

precisavam. O projeto apresentava avanços notáveis e um aumento da população

espanhola, mas a guerra de 1921 interrompeu a experiência, que foi retomada em 1927.

94

4

DO DESASTRE DE ANNUAL AO DESEMBARQUE DE ALHUCEMAS.

PACIFICAÇÃO

Em 1919, os espanhóis mal dominavam uma pequena parte do território do seu

protetorado: Melilha e a sua zona de influência até ao rio Kert, ou seja, a península de

Três Forcas, pelo este, até ao Cabo de Agua, em frente das Chafarinas. Dominavam,

ainda, Ceuta e o sul até ao Rio Martín e Tetuan, bem como a zona costeira entre o rio

Lucus e a fronteira internacional de Tânger. Era muito pouco território, descontínuo e

não pacificado. Desde 1912, mal se havia avançado e, quando se avançou, custou muito

esforço e um grande número de baixas. A Espanha não cumpria a missão protetora e

estava a desempenhar um mau papel perante as outras potências europeias, pela sua

falta de resolução e pela sua incapacidade militar. As comunicações entre Tetuan e

Larache ou Tânger apenas eram possíveis por mar. El Raisuni, completamente

distanciado de Espanha, dominava o interior. E as cabilas próximas de Ceuta cortavam

com frequência o caminho-de-ferro Ceuta-Tetuan e a estrada paralela.

A situação em Espanha era complicada. A vida social sofria convulsões que

afetavam a política, na qual intervinham cada vez mais os militares e o rei. Em

Barcelona, o sindicalismo revolucionário era neutralizado pelos sindicatos amarelos,

apoiados pelo patronato e pelo governador civil Martínez Anido, que haviam levado a

cidade a um clima de agitação, atentados e violência. As greves haviam-se estendido

por toda a Espanha. A Primeira Guerra Mundial havia terminado e, com ela, esse espaço

de interinidade nas relações internacionais. O exército espanhol estava mal organizado:

faltava preparação, armamento, instrução, e sobravam oficiais e comandos. Era um

exército que dificilmente poderia enfrentar outro exército europeu e, nessas condições,

tinha grandes dificuldades em submeter o inimigo real, o marroquino. Em 1917, haviam

nascido as Juntas de Defesa, uma espécie de sindicato militar que tentava conseguir

reivindicações salariais, protestava contra o estado de abandono das unidades, assim

como contra a arbitrariedade nas recompensas, e conseguiu ser legalizado pelo governo

de Dato. As Juntas atuavam sobretudo na península, ao passo que os militares

africanistas as foram ignorando pouco a pouco até se chegar à rutura total entre eles.

Uma das reivindicações era acabar com as promoções por méritos de guerra, coisa que

os que se encontravam colocados em Marrocos e eram favorecidos por esta medida não

95

estavam dispostos a aceitar, porque consideravam que o militar devia ir à guerra e ser

recompensado por isso, por oposição aos que viviam comodamente numa guarnição

distrital. Em Espanha, não havia um exército colonial diferenciado da metrópole, o que

agravava as diferenças que, por outro lado, continuaram até à República. A atuação de

alguns dirigentes das Juntas, como o coronel Márquez, levou as Juntas ao desprestígio e

os êxitos nas campanhas, a partir de 1922, deram grande popularidade aos militares

combatentes em Marrocos, os africanistas, cuja influência na vida política espanhola

aumentou.

De Tetuan a Xauen

Em 1919, o general Gómez Jordana foi demitido e Dámaso Berenguer passou a

ocupar o cargo de alto-comissário. Diz-se que esta decisão contrariou o general

Silvestre, comandante-geral de Melilha e muito próximo do rei. Em todo o caso, as

relações entre o primeiro e o segundo, mais antigo no escalão, nunca foram fáceis.

Berenguer ia combater o estado de desobediência generalizada no protetorado para

acabar definitivamente com a rebeldia e impor a autoridade espanhola. A penetração

pacífica havia fracassado e o acordo com as tribos não chegou. Estava na hora de

empreender uma ação militar que, por outro lado, era o que os militares estavam a pedir

há anos.

Desta vez, o governo concordou. O plano traçado por Berenguer consistia em

avançar ao mesmo tempo de Melilha e Tetuan até convergir em Alhucemas. Em

Melilha, atuaria Silvestre e em Tetuan, Berenguer. Provavelmente, ter Silvestre como

comandante em Melilha foi um erro grave, tanto pela sua possível rivalidade com

Berenguer, como pelo seu carácter impetuoso e pouco dialogante. É fácil pensar que

Berenguer, para evitar desencontros com Silvestre, o deixasse atuar sem se imiscuir nas

suas decisões.

Silvestre gozava de uma autonomia imprópria de uma organização hierarquizada

e de forte disciplina. No entanto, nem todos os erros se podem atribuir à liberdade de

ação de Silvestre, mas há que os repartir com a negligência do comando de Berenguer.

Fernández Silvestre era um militar colonial de escassa formação académica. Embora

houvesse estudado em Toledo, adquiriu a sua experiência militar em Cuba, sua terra

natal, e é possível que não estivesse suficientemente adaptado à tática da guerra em

Marrocos. No entanto, era um homem profundamente arraigado no país, em que esteve,

96

com breves ausências, desde 1909. Falava árabe, embora tivesse um profundo

sentimento de alteridade e de missão colonial. Não gerava a diplomacia e atuava pela

força quando a sua autoridade era discutida. Gómez Hidalgo, cronista do Heraldo de

Madrid, descrevia-o desta forma:

Silvestre era a espada que cortava, a pólvora que detonava. Sempre rude, sempre

forte, era o líder vitorioso dos soldados de ferro. De facto, no exército,

considerava-se como um título de valor e de resistência integrar as fileiras do seu

comando. Porque o que exigia às suas tropas era certamente inverosímil. Sem

notar que nem todos gozavam de uma natureza atlética como a sua, obrigava-os

a caminhar dias inteiros debaixo de um sol ardente e a lutar sem descanso a

qualquer hora, em qualquer parte, sem motivo algum, e isso com um desdém

aparente pelas vantagens estratégicas. Mas, como não era general que mandasse

a partir do seu gabinete e, de vez em quando percorresse aparatosamente as

linhas o que o seu automóvel podia chegar, mas era, antes, um homem

regiamente cordial, sempre montado a cavalo, aventurado no mesmo risco que

qualquer chefe de guerrilha, que era o primeiro a chegar e o último a abandonar

em os lugares onde se anunciava algum perigo, todos os seus oficiais e soldados

gostavam dele e usavam palavras de afeto para se lhe referirem.1

Berenguer também era cubano, mas mais culto e menos impetuoso do que

Silvestre. Veterano das guerras em Marrocos, tinha a honra de ter sido o criador dos

grupos de Regulares, em 1911. Foi proclamado general de três estrelas em 1918, sendo

nomeado ministro da Guerra. Havia publicado, em 1918, um livro intitulado La guerra

en Marruecos, em que resumia os conhecimentos militares sobre estas campanhas.

Posteriormente, chegaria a presidir o governo espanhol, após a queda da ditadura de

Primo de Rivera.

Ambos os generais começaram com o pé direito as suas respetivas campanhas.

Berenguer, desde a sua residência de Tetuan, dispunha de um exército mais numeroso e

equipado do que o de Silvestre, e as comunicações com a península eram mais rápidas e

fáceis. Em 1919, dá os seus primeiros golpes ao tomar, no dia 6 de outubro, o fondak de

Ain Yedida e garantir o livre-trânsito para Tânger e Larache pelo interior. Embora

nunca abandonasse a ideia do pacto com os habitantes do território, apoiou a sua

política de sedução na força das armas. Nesse mesmo ano, conseguiu notáveis avanços

97

na região de Larache. Em 1920, ocuparam-se as elevações de Gorgues, ao sul de

Tetuan. Trata-se de uma cadeia montanhosa à distância de um tiro canhão da cidade que

dominava o curso do rio Martín e onde, surpreendentemente, não encontrou oposição. O

terreno era propício à resistência, pois era fácil fortificar as elevações dominantes e

esperar ali a difícil chegada do inimigo. Mais difícil lhes foi chegar a Ben Karrich, no

caminho para Xauen, que foi conquistado no dia 25 de junho. Com estas ações, El

Raisuni viu-se limitado às montanhas e deixou desimpedidos os caminhos que partiam

de Tetuan. Em Gomara, o avanço fazia-se repartindo grandes quantias de dinheiro pelos

cabecilhas locais, embora alguns recusassem a ajuda económica e se opusessem ao

avanço espanhol, «sendo frequentes - como escreve Rosa de Madariaga - os confrontos

entre os partidários e os adversários da colaboração. Nestas condições, o avanço em

Gomara não se tornava tão fácil como se queria fazer crer à opinião pública»2.

No início desse ano, o tenente-coronel Millán Astray havia fundado A Legião ou

Terço de Estrangeiros, unidade profissional que estava encarregada de combater na

primeira linha em muitas das ações posteriores. O seu segundo comandante era o major

Franco. Tratava-se de uma unidade muito disciplinada, temerária e com uma grande

capacidade de manobra e combate, criada segundo o modelo da Legião Estrangeira

francesa que atuava na Argélia. A meio do ano, já estava preparada para entrar em

combate. No entanto, o Terço era apenas mais uma unidade, muito pouco numerosa em

relação ao total de forças espanholas em Marrocos.

O objetivo final desta primeira fase era a cidade de Xauen ou Chefchauen, no

centro da região montanhosa de Ajmas, e Beni Arós, a cerca de 70 quilómetros de

Tetuan. Conquistar a cidade significava pôr um ponta de lança no interior, isolar El

Raisuni em Tazarut e controlar, assim, as cabilas das montanhas. Para isso, Berenguer

saiu de Tetuan no dia 19 de setembro de 1920. A sua coluna era composta por cerca de

quinze mil homens, que avançavam pelo terreno plano, conquistando Zoco el Arba e

Dar Akoba, enquanto os cabilenhos se retiravam para as elevações, onde encontravam o

seu melhor modo de fazer a guerra. Quando se esperava uma guerra sanguinária, o

tenente-coronel Castro Girona, disfarçado de carvoeiro, entrou na cidade de Xauen e,

conversando com as autoridades, com promessas ou ameaças, conseguiu que abrissem

as portas às forças espanholas. No dia 15 de outubro, os espanhóis içaram a bandeira

nacional na localidade. Ao chegar a este ponto, como assinala Martínez de Campos3,

surgiram três problemas ao general Berenguer: assegurar a cidade, pacificar Beni Arós e

acabar com El Raisuni. Os ataques às posições espanholas e o tiroteio eram constantes,

98

porque os rebeldes conservavam os cumes próximos da cidade. O descuido não era

possível nesses dias. Castro Girona, negociador imprescindível, entrou em contacto com

Gomara e conseguiu levá-los à paz. Com isto, havia-se chegado à foz do Lau em abril

de 1921, montando-se ali um acampamento de base, que, mais tarde, daria lugar à

povoação de Uad Lau. O pacto de Gomara permitia aos espanhóis estabelecer a

comunicação entre Xauen e o Mediterrâneo. Faltava atacar Raisuni e conquistar a cabila

de Beni Arós, era nisso que os espanhóis se empenhavam no verão de 1921, quando

ocorreu a tragédia.

O avanço do general Fernández Silvestre

Berenguer defende-se no seu livro das acusações de que foi alvo. Assinala, em

primeiro lugar, que o seu plano consistia em escalonar as operações, ou seja, acabar a

campanha na parte ocidental antes de começar a correspondente à oriental, que o plano

de Silvestre exposto ao Alto Comissariado apenas contemplava chegar até ao monte

Mauro e que tudo o resto se efetuou sem um estudo prévio necessário por parte do Alto

Comissariado4. No entanto, acrescenta que não quis contrariar a urgência com que

Silvestre expôs o seu plano de conquista e que consultou o governo antes de o autorizar:

Embora no meu propósito não entrasse a intensificação, por agora, da ação em

Melilha, como é sempre conveniente ir ganhando o terreno que se puder nas

ocasiões favoráveis, autorizaria o general Silvestre a fazer o que me propõe, se

V.E. não vir algum inconveniente de momento. E que o governo não viu

inconveniente, deixando ao meu critério a decisão; e, como consequência,

autorizei o general Silvestre a dar início às operações projetadas quando

considerasse oportuno, avisando-me, de véspera, de cada um dos seus

movimentos5.

Berenguer não exerceu a sua responsabilidade, não impôs os seus critérios. Face

à impetuosidade de Silvestre no seu plano, talvez invejoso dos avanços ocidentais,

optou por deixar Silvestre fazer o que queria, em vez de conter e ordenar uma campanha

mais lógica.

Silvestre, por sua vez, havia conquistado, em abril e setembro de 1919, Dar

Drius, Tafersit, Azrú, Midar e Buhafora. Em dezembro de 1920, tinha submetidas as

99

cabilas tradicionalmente inimigas, como Tafersit, Beni Tuzin e Beni Ulichek.

Continuava a avançar para o centro do Rife, para a baía de Alhucemas, cuja possessão

asseguraria aos espanhóis o controlo das tribos mais belicosas e garantiria a paz. Desde

sempre, os espanhóis sabiam que, sem o controlo da baía de Alhucemas, não se podia

dominar a zona. Os projetos para a conquistar nunca foram executados até esse ano,

apesar do seu grande valor estratégico e político. Silvestre havia aproveitado um

corredor menos montanhoso existente a meio caminho do mar e da fronteira sul do

protetorado, deixando a costa de fora. Não tinha lugares apropriados para desembarques

nem planícies para estabelecer cabeças-de-ponte. O avanço de Silvestre desde Melilha

parecia assombrosamente fácil, mal encontrou resistência, o que podia ter sido

interpretado como um sinal de que o inimigo estava a concentrar-se num lugar propício

para o ataque, embora Silvestre o interpretasse como apaziguamento face ao seu poder

bélico. Atribuía-se a Silvestre uma boa estrela e essa sorte ditou o final da campanha. O

seu último passo antes de chegar ao rio Amekran era cercar e dominar os Beni Said, o

que conseguiu em meados de dezembro de 1920, com a conquista de Ben Tieb, de Dar

Kebdani e do monte Mauro.

Em janeiro de 1921, Silvestre estabeleceu o acampamento principal na colina de

Annual. Chegar ao coração do Rife, à baía de Alhucemas, na cabila de Beni Urriaguel,

era o último passo e estava ao seu alcance. Silvestre avançava de uma maneira pouco

prática. Ao conquistar um território, deixava uma posição guarnecida com mais ou

menos homens, conforme achasse necessário. Alguns acampamentos eram importantes,

com milhares de homens, como o monte Arruit ou Dar Drius, ambos no caminho de

Melilha, para além de uma reserva reduzida em Dar Kebdani. Outros eram quase um

fortim. Tinha as forças dispersas por todo o território, o que debilitava o seu exército.

Não atuava, como ensinavam os manuais, com colunas móveis rápidas; pelo contrário, à

medida que conquistava uma porção da região, dotava-a de uma polícia militar pequena

e inoperante. Contudo, as comunicações continuavam a processar-se com normalidade,

as posições abasteciam-se sem contratempos e os serviços de aguada não eram

perturbados. As posições careciam de água e era necessário ir buscá-la diariamente aos

caudais ou aos poços, organizando operações arriscadas de proteção e transporte. Os

alimentos e munições também eram fornecidos a partir da praça. Havia, portanto, uma

sensação de tranquilidade que, como veremos, era apenas uma falsa aparência.

Silvestre havia optado pelo confronto total porque o convénio com as cabilas era

impossível. Era chefe da polícia indígena e um militar ilustrado, bom conhecedor da

100

história e com relações frequentes com os cabilenhos, o coronel Gabriel de Morales, que

parecia cético relativamente à aventura e não dissimulava as suas dúvidas sobre o final

da mesma. Desde fevereiro, havia comunicado a Silvestre os seus receios sobre a

conduta dos Beni Urriaguel, a cabila mais poderosa do Rife central, em cujo território se

encontrava a baía. Sabia, por confidências, que as cabilas centrais preparavam uma

resposta mas esperavam prudentemente pelo momento certo. Aconteceu o pior: as

cabilas puseram-se à disposição de apenas um comando para combater o inimigo

comum. Em muito poucas ocasiões, possivelmente esta foi a primeira, se haviam unido

as cabilas de Rife. Normalmente, as alianças eram parciais e para se combaterem umas

às outras. Mas, desta vez, tinham um inimigo comum estrangeiro e um líder com

prestígio e autoridade suficiente. O inimigo era a Espanha e, posteriormente, também a

França; o líder era Abd el Krim el Jatabi.

Abd el Krim era o chefe da cabila de Beni Urriaguel e tinha a sua casa em Axdir,

um pequeno aduar costeiro. Era filho de um chefe a quem queimaram a casa em 1909

por manter amizade com os espanhóis; esta relação, que se traduzia em benefícios,

permitiu-lhe que os filhos estudassem em Melilha e em Madrid. Abd el Krim, cuja

figura foi estudada amplamente por Maria Rosa de Madariaga, havia sido professor de

árabe ou chelja (dialeto rifenho) em Melilha, onde também foi juiz indígena e redator da

página árabe de El Telegrama del Rif. O irmão estava em Madrid, sendo bolseiro na

Residência de Estudantes e aluno da Escola de Minas da universidade. Abd el Krim

havia estado sempre muito próximo dos espanhóis, mas um incidente fez com que se

virasse contra eles. Em 1917, foi preso no forte de Rostrogordo. As circunstâncias não

são claras, pode ter sido devido a pressões francesas, por estar próximo dos alemães, já

que negociava em segredo com os Mannesman em plena guerra mundial. De facto, Abd

el Krim não foi condenado, estava numa espécie de prisão preventiva até que um dia

escapou saltando pela janela, caindo no chão pedregoso, o que o deixou a coxear para o

resto da vida. Apanhado e preso novamente, depois de posto em liberdade trabalhou em

Melilha mais uns meses. Possivelmente, o líder rifenho já seria um nacionalista

convencido. Havia visto Marrocos cair nas mãos dos franceses e dos espanhóis, havia

seguido o desenvolvimento da exploração mineira e, como tantos outros, sonhava com

um Rife rico, devido às minas, para o qual os espanhóis contribuiriam com ajuda mas

sem poder político. De regresso à sua cabila natal no final de 1919, começou a organizar

os seus habitantes de forma a superar as tradicionais instituições tribais e a preparar a

resistência armada contra os espanhóis com sistemas de exército moderno. O irmão

101

também havia regressado. Os seus dotes de organizador haviam acabado por ligar os

habitantes de Beni Urriaguel, Bocoya, Tensamen, Benu Tuzin e Beni Amart.

Os rifenhos adaptariam o seu modo tradicional de lutar às possibilidades de

armamento disponível. No entanto, era ilusório combater os espanhóis em campo

aberto. Por conseguinte, organizavam os seus combatentes em guerrilhas que

aproveitavam o caráter inexpugnável do terreno. Os rifenhos faziam emboscadas,

atacavam e desapareciam pelas montanhas antes que se organizasse a perseguição. Esta

era uma forma de fustigar continuamente o inimigo, mas não era forma de ganhar a

guerra. Possivelmente, esperavam conseguir outro tipo de armamento para lançar

verdadeiras batalhas, pois apenas contavam com fuzis e espingardas.

Em janeiro de 1921, Silvestre solicitou ao alto-comissário Berenguer autorização

para ocupar posições, o que obrigava a atravessar o rio Salah. Entre elas, estavam

Annual e algumas outras na costa que garantiam o abastecimento por mar. Em março,

instalam-se as de Sidi Dris, ao atravessar o rio Amekran, e Afrau, outra posição costeira,

mais a este, criada um pouco antes. Em frente, ficava a cabila de Tensaman. Silvestre

estava inquieto porque sabia que já fazia frente às mais poderosas e resistentes.

Provavelmente, viu-se obrigado a avançar mais além do prudente para garantir todo o

seu sistema de posições ou talvez quisesse aproveitar a situação de necessidade das

cabilas provocada pelas más colheitas. Talvez pensasse que, se havia chegado a esse

ponto sem grandes contratempos militares, o resto iria ser igual. Nunca atuou à maneira

argelina dos franceses, com poucas mas grandes posições e colunas móveis muito

operativas que castigavam o inimigo e deixavam para trás terra queimada. A tática de

Silvestre era de ocupação permanente; contudo, a disseminação de pequenas posições

não garantia o controlo total do território mas um trabalho de polícia que requeria a

pacificação prévia das cabilas.

Com a conquista de Beni Said, o território até ao rio Amekran estava nas mãos

de Silvestre. Tinha uma posição avançada em Annual e outra em Sidi Dris, que

apontavam diretamente para Alhucemas. O alto-comissário não impediu as ações de

Silvestre, sentia-se seguro. Em maio de 1921, Berenguer havia inspecionado a zona por

mar e por terra e não colocou obstáculos ao avanço do comandante-geral de Melilha. De

qualquer forma, havia-lhe exposto as suas dúvidas sobre a conveniência de prosseguir

pela costa ou pelo interior. Mas Silvestre já tinha o plano de continuar pelo interior,

apesar de, a partir de Ben Tieb, o caminho ser muito estreito, por entre desfiladeiros, e

102

de difícil trânsito. Contudo, até então, os abastecimentos faziam-se sem novidades e as

posições não eram incomodadas. Silvestre aproveita para viajar até à corte.

No entanto, em maio de 1921, começaram a chegar rumores confirmados pelo

coronel Morales e o major Villar de que um grande contingente armado espera os

espanhóis. Os contactos que estes oficiais da polícia indígena e o coronel Civantos,

governador da ilha de Alhucemas, mantêm com os marroquinos não oferecem

resultados favoráveis ao avanço. Abd el Krim, por sua vez, castigava os chefes

cabilenhos que entravam em conversações com os espanhóis. Silvestre parece atuar com

precaução, mas, no dia 1 de junho, conquista surpreendentemente Abarrán, uma posição

avançada situada numa colina. O major Villar conquistou-a durante a madrugada, com

mil e quinhentos homens, fortificou-a e deixou nela 100 regulares e 100 arqueiros com

quatro peças de artilharia. À tarde, os mouros atacaram e perdeu-se a posição. Embora a

maior parte dos defensores conseguisse salvar a vida e chegar a Annual, quase todos os

oficiais morreram, salvo o tenente Floresta, oficial de artilharia, que os mouros

prenderam para que os ensinasse a usar os canhões e que preferiu morrer de fome e sede

a fazer tal coisa.

A derrota foi vista como um pequeno revés, não se considerou nunca como um

facto importante. Berenguer escrevia: «Abarrán é um episódio doloroso, infeliz, da

guerra colonial; mas é um caso frequente durante a mesma e, geralmente, isolado nas

suas consequências. Abarrán foi uma surpresa, um excesso de confiança, a confirmação

da atitude rebelde, imprudentemente desconhecida, das cabilas de Tensaman e de Beni

Urriaguel; mas esta surpresa não se podia considerar como indício do que ocorreu

depois»6. Estas palavras escritas são estranhas, depois do ocorrido e conhecendo os

factos que se lhe sucederam. Abarrán foi um aviso do que viria, um ensaio de forças e

do modo de operar, um primeiro exercício de ataque. Não relacionar este episódio com

o que veio posteriormente é continuar a ser muito otimista ou muito inconsciente. Para

ocupar Abarrán, Villar chegou a acordos com os cabilenhos, que os aceitaram para,

depois, atacarem os espanhóis. Não há maior prova de que aquilo que se preparava

estava a ser ensaiado.

O alto-comissário conferenciou com Silvestre no Princesa de Astúrias, ao largo

de Sidi Dris, no dia 4 de junho. Mantêm posturas diferentes e há um desacordo entre

eles que converte a conversa numa disputa desagradável. Silvestre pede reforços

urgentes para finalizar a operação, as suas tropas estão no limite da elasticidade e

necessita de novas unidades para finalizar a marcha para Alhucemas. Berenguer não

103

atende a esta petição porque ele próprio necessita de todos os homens disponíveis na

parte ocidental do protetorado. Mas Berenguer não o impede de prosseguir com o plano

de avanço. Em todo o caso, a política de restrição orçamental do visconde Eza,

enquanto ministro da Guerra, não permite que o general Silvestre receba o armamento e

as munições que tinha pedido há meses, entre as quais se destacavam cerca de trinta mil

granadas.

Seguidamente, Silvestre ordenou que se conquistasse Talilit. Pretendia assegurar

o caminho para Sidi Dris, como forma de chegar ao mar e ser abastecido ou reforçado

por esta via; pretendia também garantir a passagem da retaguarda com Ben Tieb. Estas

três posições estavam no caminho costeiro de Alhucemas. Silvestre pensava que a harca

moura, entretida com a divisão dos despojos de Abarrán, deixaria que os espanhóis

continuassem a ser abastecidos.

A rota de Annual

No dia 7 de junho, ordena-se a conquista da posição de Igueriben, a cerca de 6

quilómetros de Annual, uma posição elevada que, ao contrário de Abarrán, não

dominava claramente o rio Amekran, mas que serviria para o controlo do caminho para

o mar. A posição situava-se num monte sem vegetação e todos os dias tinha que se fazer

a aguada numa ribeira a quatro quilómetros, o que pressupunha um duro combate contra

os cabilenhos emboscados e impunha a conquista prévia de uma colina dominante

chamada «de los Árboles». Os abastecimentos dependiam de Annual. A situação não

estava tão tranquila como anteriormente, havia nuvens de inquietude; as cabilas que

ainda não tinham sido conquistadas haviam formado uma harca numerosa. Os mouros

de regulares e a mehalla não recebiam os seus salários com regularidade e falava-se de

possíveis ataques e deserções. Os espanhóis ainda desconheciam que os indígenas de

Abarrán se tinham rebelado contra os seus chefes e disparado sobre eles.

O Exército de África é um corpo corrupto onde os cofres dos regimentos se

jogam nos casinos e o dinheiro destinado à roupa e à comida dos soldados é ilegalmente

utilizado pelos militares comissionistas. Vigarizam-se as listas de formatura,

simulando-se contar com mais tropas do que as que realmente existem, para se receber

as rações. Os oficiais comandantes dos acampamentos dormem em Melilha, deixando

sozinho o soldado de serviço. Os mouros, por sua vez, desejam vingar o despojamento

de terras de El Garet e das minas de Bu Ifrur, o desprezo que sofrem ao serem preteridos

104

nos contratos e os abusos cometidos contra as suas mulheres. A tradicional

independência rifenha tem, também, combustível com que aquecer o ânimo belicoso

dos seus integrantes. Abd el Krim não só sabe organizar os seus seguidores como

mantém o seu espírito de combate com promessas de riquezas e de uma vida melhor se

se derrotar o obstáculo à melhoria de condições, que são os espanhóis coloniais.

Silvestre toma decisões erradas. Dá licença ilimitada aos recrutas de 18 anos e

temporária aos de 19 anos. Substitui os veteranos por recrutas inexperientes de 20 anos.

Simultaneamente, insiste em pedir reforços, que não lhe são concedidos. No dia 9 de

julho, os espanhóis, na posição de Buimeyán, apercebem-se dos trabalhos que os

rifenhos fazem para atacar Igueriben e as defesas das trincheiras com que fortificam o

cerro de los Árboles, que nunca mais poderá ser conquistada pelos espanhóis para fazer

a aguada. Igueriben fica cercada e os seus defensores já não podem sair para procurar o

necessário. No dia 17 de julho, organiza-se, a partir de Annual uma coluna de socorro

sob o comando do major Romero López, que foi o último que conseguiu vencer o fogo

inimigo e entrar, dizimado, na posição. A partir de então, a situação torna-se

desesperada, pelo cerco que os cabilenhos fazem à posição.

Igueriben estava sob o comando do major Benítez, a quem se autoriza a

evacuação ou a rendição ao comprovar-se que as colunas de socorro não podiam chegar

até ele e deviam retirar-se, uma após a outra, perante o fogo inimigo. Benítez usa o

heliógrafo para comunicar com Annual: «Parece mentira que deixeis morrer os vossos

irmãos, uma mão cheia de espanhóis que souberam sacrificar-se diante de vós»∗. A

primeira questão – a da evacuação – era impossível para os trezentos homens com que

contava a posição face aos vários milhares de sitiadores; à segunda questão, respondeu:

«Os oficiais de Igueriben morrem mas não se rendem». Passaram quatro dias sem

ajudas e a comida havia terminado, haviam de beber a própria urina para mitigar a sede

e as munições chegavam ao fim. A última mensagem de Benítez por telégrafo ótico

dizia: «Restam-me doze cargas de canhão. Ao décimo segundo disparo, fogo sobre nós,

porque mouros e espanhóis estaremos misturados». Dos trezentos ocupantes de

Igueriben, apenas vinte e cinco chegaram a Annual. Quatro deles morreram ao provar a

água e outro, por asfixia. O inimigo rifenho obtinha a sua segunda vitória, sem

possibilidade de contra-ataque espanhol.

∗ Luis Casado Escudero, Igueriben, pp.197-198. Casado, tenente de infantaria, foi o único sobrevivente da posição, foi feito prisioneiro por Abd el Krim e escreveu este livro como testemunho do ocorrido.

105

Na madrugada do dia 22 de julho, Silvestre convocou um conselho de guerra, na

sua tenda de Annual, que durou seis horas. A queda de Igueriben demonstrou a força

que tinha a harca inimiga e a debilidade do sistema de posições que Silvestre havia

estabelecido. O inimigo tinha já como objetivo a posição de Annual e o general

duvidava de que se pudesse defender, porque sofria das mesmas falhas de comunicação

e de abastecimento que Igueriben. Havia pedido – a Berenguer e ao ministro – reforços

da aviação e da marinha que bombardeassem o inimigo e não obteve nada. Não era

possível reforçar o exército de Melilha, não havia forças preparadas para acudir de

imediato. Ao amanhecer, viam-se cinco colunas inimigas a avançar sobre a posição. O

coronel Manella, comandante do Regimento de Cavalaria Alcântara, propôs que se

entrasse em conversações com o inimigo, o que foi recusado. Não se podiam render

perante uma tropa de mouros maltrapilhos. O coronel Morales, chefe da polícia indígena

e o homem que melhor conhecia os aldeãos, pensava que Abd el Krim podia liderar

perfeitamente as agressões contra os espanhóis mas não dominava suficientemente as

cabilas para lhes impor a paz.

Annual era uma ratoeira onde se concentravam cerca de 5000 homens, para além

do gado próprio de um contingente como esse. A resistência no lugar não teria

apresentado problemas se dispusesse de água, comida, medicamentos e munições, mas

não era assim. Para se fazer a aguada para tantas pessoas, havia que travar uma batalha

diária. Carecia-se de cisternas onde a armazenar e os barris nas traseiras das mulas eram

um alvo fácil. A sorte que antes havia sorrido tornava-se adversa. Annual escondia um

longo e tortuoso caminho, difícil de percorrer estando o inimigo organizado. Só o

desfiladeiro de Izummar, primeira dificuldade após o acampamento, era uma armadilha

difícil de vencer. Com os mouros nas elevações a disparar as armas modernas que

conseguiam através do contrabando de Tânger, apenas se podia desejar ter um menor

número de baixas organizando os flancos a meia altura e uma arriscada retaguarda para

proteger a coluna. Isso exigia o sacrifício de alguns e muita disciplina.

Havia-se decidido abandonar Annual e as outras posições mais avançadas e

rumar a Ben Tieb, a cerca de 15 quilómetros em linha reta, onde se aguardaria por

reforços. Assim, telegrafou-se a Berenguer e ao visconde de Eza, ministro da Guerra. A

retirada produziu-se imediatamente. Deram-se instruções apressadas e indefinidas para a

ordem de saída e retirada. No entanto, de maneira geral, não se seguiu nenhuma ordem

nem se cumpriram os mínimos requisitos militares para proteger a coluna dos flancos

organizados e escalonar a saída. Parece que o pânico começou no próprio momento de

106

abandonar a posição e causou uma debandada que ninguém pôde controlar nem

encaminhar. A ordem de saída e as ordens particulares dos comandos foram

desrespeitadas quase por completo. As tropas, aterrorizadas perante a morte próxima,

conhecedoras da crueldade dos mouros para com o vencido e testemunhas do que

ocorreu em Abarrán e Igueriben, decidiram correr desordenadamente. O inimigo estava

já nos arredores de Annual, sem que os espanhóis o impedissem. O caminho estreito

dificilmente permitia que passasse mais de uma pessoa de cada vez; mais à frente,

estreitava-se ainda mais, no desfiladeiro de Izummar, e descia para uma ravina

poeirenta. Cada um ia à sua maneira, fugindo apavorado. Burguete havia escrito antes:

«O contágio de um medroso, de um imprudente, corre como um regueiro de pólvora,

saltando o perigo de posto em posto»7.

Os comandos não podiam controlar a tropa, quando não eram eles os primeiros a

fugir, arrancando os distintivos. Aquele que conseguisse montava sobre uma

cavalgadura, mesmo que, para isso, tivesse que remover o ferido que a ocupava. O

pânico de uns contagiava os outros, largavam as armas e o equipamento para poderem

fugir com mais velocidade. A desordem era absoluta e ninguém parecia dominar a

situação. O coronel Manella, com a pistola na mão, tenta conter a enxurrada humana e

formar escalões para garantir a defesa, mas é impossível fazer obedecer uma maré

humana cujos comandos estão igualmente contagiados pelo terror. A ordem de retirada

abrangia a formação de duas colunas que estariam protegidas pelos flancos pela polícia

indígena e por regulares, mas os componentes destas unidades eram marroquinos que

cedo desertaram e se viraram contra os espanhóis. A formação diluiu-se na confusão de

homens e bestas que atropelou toda a zona, não se detinha nunca e não fazia frente ao

inimigo, que se limitava a fazer tiro ao alvo. Provavelmente, os rifenhos eram menos do

que se suponha, talvez uns poucos que se viram surpreendidos pelo desastre da

evacuação espanhola e decidiram aproveitar as circunstâncias.

Não estava previsto que o ataque sucedesse como efetivamente sucedeu, mas

aproveitou-se a confusão dos espanhóis e, perante a magnitude da tragédia, foi-se

avisando os cabilenhos, que se incorporaram pouco a pouco no festim de sangue. No

acampamento, ficou o general Silvestre, de quem nunca mais se soube. O seu

desaparecimento deu lugar a várias hipóteses sobre a sua morte, inclusivamente a uma

ou outra lenda sobre a sua existência remota e secreta.

A situação de pânico contagiou rapidamente todo o território e, uma após a

outra, foram caindo as quase cento e trinta posições que Silvestre havia estabelecido no

107

seu plano descabido. Umas foram simplesmente abandonadas pelos espanhóis e outras,

atacadas sem piedade quando o inimigo marroquino avaliou a dimensão do desastre. As

posições que se abandonaram ao mesmo tempo que Annual viram a mesma maré

desesperada de espanhóis a correr. O inimigo era implacável, matava, mutilava, não

respeitava a vida dos feridos e aproveitava o imenso espólio deixado. Os esquadrões de

cavalaria sob o comando do tenente-coronel Fernando Primo de Rivera, que, depois da

morte de Manella, ocupou o cargo do Regimento de Alcântara, esperavam à saída do

barranco e improvisavam cargas para conter os perseguidores e proteger o que restava

da coluna durante a marcha. A atitude heróica destes cavaleiros mitigou em parte a

carnificina da fuga e valeu a Primo de Rivera uma póstuma Cruz Condecorada de San

Fernando, entre outras condecorações.

No início, pensou-se em Ben Tieb para se reorganizar as tropas, mas essa

hipótese foi logo descartada, pela sua distância de Melilha, pela confusão nas linhas

espanholas e pela sua difícil defesa perante um inimigo convencido, com moral

vitorioso e inesperadamente armado com aquilo que os espanhóis deixaram para trás.

Ben Tieb era uma posição importante, com uma guarnição de 651 homens de infantaria,

cavalaria, engenharia, artilharia, intendência e saúde. Contava com duas secções e 189

cabeças de gado, e os seus arsenais estavam cheios. Em Ben Tieb, não havia ninguém

com autoridade para forçar os sobreviventes a ficar e resistir; à sua frente, apenas havia

um capitão, Lobo, que não conseguiu conter a maré agitada de fugitivos de Annual. Ao

chegar, a coluna não se reorganizou, mas continuou a fugir. Na retaguarda, os cavaleiros

de Alcântara tentavam proteger a retirada. As unidades estavam desfeitas e os seus

comandos naturais, desaparecidos ou incontactáveis. Entre a tropa espanhola, apenas

existia a urgência de conservar a vida. Separavam essa posição e Dar Drius apenas 10

quilómetros de terreno plano, sem montanhas, e os fugitivos preferiam chegar até lá. Era

maior e estava mais bem abastecida. A posição foi abandonada e incendiada, a coluna

continuou a sua marcha desordenada até Dar Drius, onde havia chegado, no dia 22, de

Melilha, o general Navarro, segundo comandante da Capitania.

A posição de Ben Tieb não podia ser reforçada por qualquer força de reserva. A

água e os alimentos apenas eram suficientes para alguns dias e, convertida em ratoeira,

Ben Tieb não permitia uma ação de ataque sobre o inimigo disperso pelos montes

adjacentes. A retaguarda, o único caminho estreito por onde podiam receber reforços,

estava cortada. Os espanhóis haviam chegado até ali sem lutar e, à primeira

oportunidade de batalha, fugiram perante os atónitos olhos rifenhos. Fugiam apavorados

108

e os rifenhos aproveitaram para os massacrar quase sem oposição. O líder rifenho havia

consolidado a sua posição de chefe após as vitórias de Abarrán e Igueriben, mas não

ousava atacar Annual em campo aberto porque isso seria colocar os seus perante o fogo

dos canhões. Mas deparou com a surpresa de um exército que abandonava a sua posição

de forma desordenada. O efeito psicológico foi grande, porque fez com que os

marroquinos notassem que eram capazes de vencer o exército europeu, desmoralizado e

sem convicção na vitória.

Em Dar Drius, esperava o general Navarro, a quem a situação surpreendeu mais

do que a ninguém; colocou-se à frente do que restava do exército, sem ter uma ideia

clara do que se podia fazer. No entanto, em Dar Drius, encontrava-se a tropa com mais

ânimo, fazendo trabalhos de reforço da fortificação e preparando-se para resistir. O

inimigo é mantido à distância e a sempre presente cavalaria de Alcântara, com o

tenente-coronel Primo de Rivera, protege a chegada de novos grupos de espanhóis. Teve

o auxílio dos soldados do regimento de San Fernando, do tenente-coronel Pérez Ortiz,

que constituía a força de guarnição nessa posição. Navarro havia pensado estabelecer

uma defesa escalonada, aproveitando as posições que mantinha: Dar Kebdani, Kandusi,

Drius e Telatza. Mas as tropas chegam desordeiramente sem os comandos à frente. Não

se podia improvisar uma organização, apenas manter dentro da posição, que tem água,

alimentos e munições, a maior parte dos fugitivos, que, naquele momento, eram mais de

2500 homens, mas cujo número continuava a crescer. Navarro deve encarar os factos,

mas falta-lhe serenidade. Vê-se surpreendido pelos acontecimentos. Desconhece

realmente quantas baixas o inimigo causou e de que forças dispõe. Ignora se os

comandos naturais das unidades continuam à sua frente ou se estão mortos,

desaparecidos ou correram para Melilha. Drius oferece proteção, mas está longe de

Melilha e do mar e é difícil que, em pouco tempo, chegue uma coluna de socorro.

Navarro tomou uma decisão que, certamente, foi o segundo grande erro do

desastre após a retirada de Annual: abandonar Dar Drius, juntar as forças que ainda

estavam dispersas nas posições e aproximar-se de Melilha. Não admitia qualquer crítica,

nem opinião contrária à sua. Possivelmente, pensava que, no Monte Arruit, a 30

quilómetros de Melilha, onde chegava o caminho-de-ferro, a evacuação da praça ou a

ajuda a partir dela se tornariam mais fáceis. Mas o Monte Arruit, como o general devia

saber, não era tão fácil de defender nem estava tão bem apetrechado como Dar Drius.

As posições que ainda resistiam continuavam a cair ou a ser abandonadas. Não

valorizou o suficiente a posição de Dar Drius, os seus armazéns e depósitos, o seu

109

paiol… Navarro procurava desesperadamente uma ajuda externa. Talvez o lógico

tivesse sido resistir em Dar Drius, porque tinha homens e armas para enfrentar um

exército irregular. Devia-se ter tentado uma defesa organizada, com ataques preventivos

aos rifenhos. Mas assustava-o a artilharia que havia caído em poder dos marroquinos, a

situação dos feridos, a distância de Melilha, a impossibilidade de serem socorridos

nesses dias, por terra ou por mar, e a desmoralização generalizada das tropas. Navarro

não via como fácil a defesa de Drius, pela falta de mantimentos e porque a posição

estava dividida em vários acampamentos. Para além disso, sempre pensou que

chegariam reforços a partir de Melilha e o caminho de Drius a Batel podia ser cortado

com facilidade∗.

Na manhã do dia 24, começa a retirada de cerca de 6000 indivíduos. Fazem

explodir a posição que estava intacta com a munição que não puderam transportar e

marcham em perfeita ordem, com os regulares na retaguarda. Para se chegar a Batel,

faltavam 20 quilómetros e os esquadrões de Alcântara multiplicam o seu trabalho para

proteger a coluna. Mas, no caminho, reproduzem-se os factos da retirada de Annual.

Perante os disparos inimigos, a coluna desfaz-se rapidamente devido ao pânico e vão-se

abandonando carroças, camiões, feridos e armas. O terreno enche-se de mortos. A maior

parte da coluna alcançou Batel, onde pôde descansar, beber, comer e repor-se durante

dois dias. No dia 27 de julho, iniciou-se a marcha para Tistutin, com o regimento de

Ceriñola na vanguarda. A posição era facilmente batível pelo inimigo e optou-se por

abandoná-la, também após o descanso. Da uma às duas horas da madrugada do dia 29,

iniciou-se a marcha para o Monte Arruit, que correu com normalidade até chegarem à

posição e serem recebidos pelo fogo inimigo a partir da povoação próxima.

A rendição de Monte Arruit

Nem em Batel nem em Tistutin havia armas ou munições. Navarro, além do

mais, não podia estabelecer comunicações com Melilha, onde já estava Berenguer,

Tetuan ou Madrid. Estava a sós na tomada de decisão. E decidiu recuar ainda mais até

ao Monte Arruit, com a esperança de poder resistir ali até à chegada de forças de

auxílio. Alguns preferiram seguir para Melilha e, desses, muito poucos lá chegaram.

∗ Luis Rodríguez de Viguri y Seoane, La retirada de Annual y el asedio de Monte Arruit, pp.30-31. Este livro é o argumento final da defesa do general Navarro na causa seguida contra ele após o processo Picasso, pelos acontecimentos que narrámos.

110

Eram caçados pelo caminho pelos atiradores rifenhos, morriam devido aos ferimentos

que tinham ou, os mais afortunados, eram presos. O Monte de Arruit foi uma ratoeira.

As tropas estavam cansadas, desorganizadas e sem munições. A posição estava

praticamente sitiada pelos rifenhos. Faltavam pão, água e medicamentos. As feridas

gangrenavam e os espanhóis sofriam de disenteria. O tenente-coronel Primo de Rivera,

após ter feito as últimas cargas dos seus esquadrões a passo, dado o esgotamento dos

cavalos, recebeu um tiro no braço. Amputaram-no sem anestesia e morreu pouco

depois.

Um inconveniente maior e inesperado juntou-se ao sofrimento. O

tenente-coronel de San Fernando, Pérez Ortiz, relata-o assim: «Não tinham passado três

horas desde a nossa chegada à posição quando tivemos uma sensação desagradável: o

canhão dispara e um projétil passa rapidamente de um extremo ao outro do

acampamento. Os mouros colocaram uma peça a cerca de 2000 metros e servem-se dela

antes daquilo que podíamos esperar»8. Até então, os espanhóis apenas haviam sofrido o

fogo das espingardas, mas, agora, os rifenhos tinham em seu poder peças de artilharia

espanholas e faziam-nas funcionar. Alguns soldados espanhóis feitos prisioneiros

haviam ensinado os mouros a dispará-las. A posição já não era defendida.

No dia 31, Navarro recebe um telegrama de Berenguer avisá-lo da

impossibilidade de organizar uma coluna de socorro porque as harcas rifenhas o

impediam. Havia idealizado um plano, que consistia no desembarque de tropas por

Restinga até Zoco el Arbaa, para chegar pela retaguarda do inimigo. No entanto, o

governo não lhe dava as barcaças necessárias. Com as tropas recém-chegadas a Melilha,

poderia tentar-se uma operação. Mas os generais que rodeavam Berenguer em Melilha

(Cabanellas, Fresneda, Neila e Sanjurjo) opuseram-se. Apenas o veterano Cavalcanti e

alguns coronéis, como Riquelme, reclamavam forças para tentar a operação. Não havia

suficientes tropas preparadas em Melilha. Não as podia obrigar a andar a pé 35

quilómetros até aos sitiados, em contínuo combate, e, posteriormente, a regressar.

Muitos dos chegados eram recrutas inexperientes. As baixas que o coronel Jordana

calculou seriam muito elevadas. Não se podia abandonar a defesa da cidade nem o

plano sistemático da reconquista do território. Berenguer não se atreve a tomar uma

decisão heróica e arrojada, possivelmente para não se meter na mesma aventura que

Silvestre.

A resistência em Arruit era dura. O inimigo impedia a aguada e fustigava a

posição sem descanso, com tiros de espingardas e de canhões. Fizeram-se operações

111

para abastecer os sitiados por via aérea, mas os fornecimentos caíam fora dos muros e,

quando eram recolhidos, o inimigo disparava, causando mortos. Só caiu algum gelo

dentro das muralhas, mas era insuficiente. Os aviões não podiam voar a baixa altitude

porque tinham medo de serem abatidos pelos tiros rifenhos. Os feridos morriam por

falta de medicamentos e as munições estavam a esgotar-se. Quase não havia comida

nem água. Os sitiados acreditavam que os Regulares e a Legião fossem salvá-los, pois

sabiam que estes haviam desembarcado em Melilha. Mas as tropas que chegavam a

Melilha esforçavam-se por defender a praça, já que se temia um ataque mouro, e o

escasso perímetro que os espanhóis conservavam. Fortificaram-se os arredores do

Gurugu e Zoco el Had, onde o chefe Abd el Kader, antigo inimigo de Espanha, em

1909, foi o único que se manteve fiel perante os atacantes, seus compatriotas. Devido a

este revés, Berenguer pôde suspender as operações que desenvolvia em Beni Arós e

mover forças da parte ocidental para Melilha, para tentar o resgate e proteger as poucas

posições espanholas, mas não o fez porque, provavelmente, essa solução apenas teria

precipitado a queda de toda a frente ocidental e não teria servido para manter a oriental.

Com as tropas sitiadas no Monte Arriut, o general Navarro rejeitou a opção de

continuar a retirada para Melilha. Alguns aconselharam esta última marcha para

alcançar, pelo menos, Zeluan. O general não se atreveu a tal: «O estado de extenuação

das forças, que todos os testemunhos confirmam, para além da falta de meios de

transporte e da escassez de munições, impedia sequer de, sem abandonar

desumanamente os feridos, tentar uma marcha. Também não era possível recuperar a

artilharia nem reconquistar a cidade mais próxima da posição e que encontrou ocupada

pelo inimigo, porque ambas as coisas exigiam um esforço superior ao que se podia pedir

a tropas tão fortemente castigadas»9. O moral dos combatentes espanhóis estava

arruinado. Houve algumas tentativas de sublevação e algumas deserções, mas não num

número que se possa considerar significativo.

No dia 7 de agosto, o próprio Navarro ficou ferido num ataque mouro e, no dia

seguinte, foi autorizado a negociar com o inimigo. Apenas resistia o Monte Arruit, onde

havia pouco mais de 3000 homens. As restantes posições caíram depois de uma luta

desigual. Algumas, como Nador e Zeluan, resistiram, mas a chegada dos rifenhos

transformou-se num banho de sangue, em que os espanhóis indefesos e desarmados

eram torturados, mutilados e mortos. A negociação com os mouros era conduzida pelo

major Villar. Os emissários de Abd el Krim e os chefes cabilenhos Ben Chel lal e Abd

el Kader chegaram a um acordo honroso: os espanhóis deixariam as armas, à exceção

112

das pistolas dos oficiais, e marchariam até Atalayón (em Mar Chica) sem serem

importunados. Navarro aceitou, autorizado por Berenguer, e foi conduzido com os seus

principais chefes à estação de caminho-de-ferro da região situada junto à posição, numa

tentativa desesperada de Ben Chel Lal para evitar o massacre. A partir daí, foram

enviados para Axdir, região de Abd el Krim, onde sofreriam em cativeiro com o resto

dos prisioneiros espanhóis. Pensaram de boa-fé que as condições da capitulação seriam

respeitadas e não encontraram outra solução possível para a situação.

Aqueles que ficaram na posição do Monte Arruit, já desarmados, foram

massacrados a bel-prazer dos mouros, que assaltaram a posição, sedentos de vingança e

sem obedecerem a instruções nem a ordens. Com isso, saldavam dívidas de humilhação

e de derrota, numa ação infame que não pode ser desculpada por factos anteriores, nem

pelo estado do Rife, nem pela forma tradicional como os rifenhos entendiam a guerra.

As cabilas de Beni bu Yahi e Metalza, as que sofreram os abusos na colonização

agrícola do Garet, fazem pagar com sangue as dívidas pendentes. Talvez se possa

explicar assim o facto de a liderança de Abd el Krim ser mais fraca do que nos fazem

supor e de se manter na luta contra o inimigo estrangeiro. Para controlar todas as

cabilas, Abd el Krim ia precisar da força dos seus e isso, definitivamente, seria visto

como a imposição dos Beni Urriaguel sobre todos os restantes.

Muito se tem escrito sobre o que se podia ter feito e não se fez. Sobre os erros

tremendos de Silvestre, que estendeu as suas forças por uma frente amplíssima,

deixando cabilas armadas à retaguarda e sem reservas para fazer frente a eventualidades

com as que não contou nem quis contar. Sobre Berenguer, que deixou Silvestre atuar

enquanto ele insistia, com muito mais forças e abastecimentos, na campanha de Beni

Arós e que não a suspendeu para auxiliar a Capitania de Melilha quando lhe chegaram

as primeiras notícias. Seja como for, o alto-comissário e responsável militar do

protetorado era Berenguer. Silvestre comportou-se como o autor irresponsável de uma

das maiores provas de incompetência militar contemporânea, mas ninguém o conteve.

Sentir-se-ia protegido pelo rei e, por isso, Berenguer não o deteve? Pode ser, mas tal não

é pretexto suficiente para justificar uma atuação tão calamitosa, que não teve em conta

as mínimas regras da arte militar. Possivelmente, foi uma grande imprudência avançar

com as duas operações em simultâneo, mas isso entra no domínio do discutível. Mas o

que originou realmente a tragédia foi o pânico desencadeado na evacuação de Annual. E

isto é um imprevisto que arruina qualquer plano de atuação. A tropa fugia assustada sem

que os comandos a pudessem conter, o terror apoderou-se de todos e o de cada um

113

alimentava o dos restantes. O comandante-geral, em vez de se colocar à frente da

operação, desapareceu.

Face a esta situação de comportamento irracional, os mouros apenas tiveram que

recolher os frutos sangrentos, sem arriscar qualquer combate. É muito provável que os

rifenhos fossem os primeiros a ficarem surpreendidos pela atitude espanhola. Os

espanhóis haviam-se derrotado a si próprios. O número de mortos espanhóis, nesses

dias de julho e agosto, é objeto de polémica antiga. De acordo com Juan Pando

Despierto, que lida com os dados das diversas fontes, pode afirmar-se que a soma de

todos os falecidos, entre as posições e a população civil dispersa pelo Rife, anda entre

os nove e os dez mil espanhóis10, um número suficientemente perturbador e que

expressa a dimensão da tragédia. Os algarismos sobre o número de rifenhos mortos

nunca se conhecerão. Por outro lado, Abd el Krim havia conseguido reunir várias

centenas de prisioneiros espanhóis, que obrigava, no seu cativeiro de Axdir, a trabalhos

forçados, em condições de alimentação e tratamento desumanas. Pedia por eles um

resgate elevado. A opinião pública tomou de imediato, como causa própria, estes

desgraçados e esforçou-se para denunciar as suas condições de vida, a inatividade do

governo para os resgatar e a falta de diligências para reunir o dinheiro, embora este

fosse usado, depois, para comprar armas para matar mais espanhóis.

Os espanhóis partidários do abandono de Marrocos multiplicaram-se. A

esquerda e parte da direita eram claramente contrárias à permanência. Alguns

entenderam esse desejo de fugir da guerra como anticolonialismo, quando se tratava

simplesmente de uma postura antibelicista. A guerra destruía as famílias mais pobres, as

que não podiam pagar a cota para livrar os seus filhos de entrar no exército. Após o

desastre e a sensibilização da opinião pública, desapareceu a possibilidade de iludir o

serviço militar mediante o pagamento de uma quantidade de dinheiro e o exército

tornou-se, então, verdadeiramente nacional. A existência de soldados das classes média

e alta favoreceu o melhor tratamento dos mesmos.

Ao governo, o desastre de Annual chegou como uma notícia do outro mundo.

Até então, havia deixado o assunto marroquino nas mãos dos militares e, a partir desse

momento da tragédia, apercebe-se das consequências políticas dessa atitude

abstencionista. O rei encontrava-se em San Sebastián, tal como o ministro da Guerra,

Eza. A partir deste acontecimento, a esquerda e os republicanos iniciaram uma batalha

parlamentar com um pedido de responsabilidades e de esclarecimento dos factos. Nesta

batalha, destacou-se Indalecio Prieto, que havia seguido a campanha de reconquista e

114

criticou severamente todo o ocorrido. A sua posição, e a do Partido Socialista,

resume-se a uma intervenção parlamentar, em outubro de 1921: «Oito mil mortos dão

direito, macabramente, mas dão, a exigir uma responsabilidade concreta, quando, como

neste caso, essa responsabilidade se revela de maneira clara, perfeitamente definida»11.

Prieto apontava a responsabilidade a Maura e, depois dele, ao rei. Continuou noutra

sessão: «Aqueles campos de domínio são hoje campos de morte; oito mil cadáveres

parecem agrupar-se em redor do trono, à procura de justiça»12.

O desastre foi o facto que precipitou o fim do sistema da Restauração, em crise

desde há algum tempo, pela corrupção dos partidos e o escasso avanço na

democratização. O governo de Maura não conseguiu sobreviver ao desastre e

Sanchéz-Guerra mal esteve no poder alguns meses. Deu lugar a algumas tentativas

militares de tomada do poder, como a que, em 1923, pretendia colocar como ditador o

general Aguilera, que acabariam na ditadura de Primo de Rivera, instaurada em

setembro de 1923. Teve também como consequência uma crise financeira motivada pela

enorme dívida contraída pelo Estado para fazer frente aos gastos da guerra. Foi o

catalisador de movimentos populares, primeiro como apoio ao governo para proceder à

contraofensiva e esmagar os rifenhos e, depois, contra o mesmo, pelo custo humano de

uma campanha longa e pela má gestão da questão dos prisioneiros.

Os espanhóis, que contavam com mais de seis mil homens à volta de Annual e

cerca de vinte cinco mil na Capitania de Melilha, com artilharia e cavalaria, armas

modernas e abastecimentos, não podiam calcular que algumas bandasviii irregulares,

mais ou menos organizadas por Abd el Krim, pudessem desafiar a sua força e atacá-los

no terreno elevado onde se situava o acampamento. Silvestre, na própria altura dos

factos, apercebeu-se dos seus graves erros. Ficará na história como o responsável da

grande derrota contemporânea de Espanha no terreno das armas∗. Contudo, Silvestre

não teve nunca a ordem terminante de conter o avanço, visto que Berenguer o deixou

atuar a seu bel-prazer. É possível que o impulsivo general estivesse apoiado e

viii Grupo de gente armada [NT]. ∗ Os cronistas da época foram muito duros com Berenguer e não atenderam às suas possíveis razões. Consideravam que Berenguer tinha deixado Silvestre mal equipado enquanto ele levava a maior parte das tropas e do material para a zona de Tetuán. Entendiam, também, que o general Silvestre atuou sempre autorizado pelo alto-comissário e que Berenguer foi negligente na alta inspeção militar que tinha encomendadao em todo o protetorado. Podemos encontrar alguns exemplos sobre este assunto escritos por Augusto Vivero, em El derrumbamiento (1922), por Rafael López Rienda, em Del Uarga a Alhucemas (1925), por Francisco Hernández Mir, em Del desastre al fracaso (1922), por Gómez Hidalgo, em La tragedia prevista (1921), ou por Vila San-Juan em Lo que no tiene nombre (1922), entre muitos outros. Tudo isto motivou o livro de Ruiz Albéniz, Ecce hommo (1923), para salvar a figura de Berenguer.

115

estimulado pelo rei Afonso XIII. No entanto, quando se viu sem tropas suficientes, com

graves necessidades de abastecimento e problemas de comunicações, devia ter esperado

por ter mais força para enfrentar Abd el Krim, em vez de menosprezá-lo e tentar chegar

a todo o custo a Alhucemas no verão de 1921.

A guerra na frente oriental

No início, pensou-se que a guerra na parte de Melilha não tinha nada em comum

com a de Yebala. Berenguer acreditava que o chefe Abd el Malek, com quem havia

pactuado, manteria a zona calma. Nada mais longe da realidade! Os acontecimentos de

Melilha transmitiram-se rapidamente a Beni Aros. Essa zona montanhosa também

interessava ao líder Abd el Krim no seu projeto de república rifenha. Os espanhóis

teriam que suportar uma nova série de ataques, como o que os Beni-Issef lançaram

contra a posição de Akba el Kola na noite de 27 de agosto. Berenguer não deu

demasiada importância a este episódio, apesar dos 175 mortos. Mas os ataques

persistiram. As notícias de Melilha haviam animado os combatentes de El Raisuni, que

estava em Tazarut, quase cercado e à espera da batalha final. Os espanhóis haviam

reforçado Ceuta e Larache com a chegada de novos batalhões; contudo, tiveram que

mover para Melilha as tropas de choque da zona. Em 1921, paralisadas as operações,

decidiu-se evacuar para Tetuan, Xauen e as posições próximas. A saída de Xauen e a

descida até Dar Akoba poderia ter-se convertido noutro desastre como o de Annual,

mas, desta vez, as tropas seguiram as ordens e, com um elevadíssimo número de baixas,

chegaram ao seu destino. Protegeu-se Tetuan através de um anel defensivo que ia do

Lau até ao Gorgues.

A reconquista

Berenguer havia chegado a Melilha no dia 23 de julho de 1921. A cidade vivia a

angústia de pensar que seria a próxima a cair pelo ataque rifenho. A chegada de alguns

sobreviventes das posições e dos civis que escaparam das minas e do Garet havia

enchido a cidade de notícias alarmantes sobre o comportamento dos rifenhos e a

dimensão do desastre espanhol. Em Melilha, restavam quase mil soldados espanhóis,

insuficientes para conter os mouros. O medo sentia-se no ar porque estavam na mira das

espinguardas dos marroquinos que ocupavam o Gurugu. Se estes tivessem disparado

116

com a artilharia capturada, Melilha teria sido devastada. A chegada de Berenguer no

Bonifaz, que havia podido divisar, durante a sua navegação, as posições costeiras de

Sidi Dris e Afrau, sitiadas pelos rifenhos e sem possibilidade de serem socorridas

naquele momento (embora quase todos os de Afrau e alguns de Sidi Dris chegassem a

ser evacuados por mar), não tranquilizou a população porque não a acompanhavam

tropas. Apenas a cabila de Beni Sicar, a oeste de Melilha, com o seu chefe, Abd el

Kader, a comandar, permanecia leal a Espanha. Isso conteve a chegada das harcas. Mas

é possível que o medo pela reação europeia, se se tivesse consumado uma matança na

cidade espanhola, tenha feito com que os rifenhos não ousassem atravessar a fronteira

da cidade espanhola.

Na manhã do dia 24, o Regimento da Coroa chegou à cidade. A população

esperava no porto por qualquer notícia e recebeu os soldados como se fossem

verdadeiros heróis, como salvadores. Posteriormente, chegariam os regimentos de

Borbón, Estremadura e Granada. Um pouco depois, o clamor foi ainda maior, ao

aparecer o Ciudad de Cádiz com duas banderasix da Legião, que, desfilando ao

compasso da sua banda, se dirigiram ao perímetro exterior da cidade para garantir a sua

defesa, após ouvir a emocionada arenga do seu coronel. Comandadas por Millán Astray,

à frente de cada bandera estavam os majores Franco e Fontán. Estavam a combater em

Beni Arós e fizeram os 100 quilómetros até Ceuta em apenas duas jornadas.

Descansaram no navio e marcharam à frente, sem repouso. Pouco depois, chegavam

dois taboresx dos Regulares de González Tablas, considerados suspeitos por muitos

habitantes de Melilha devido ao facto de serem formados por mouros. Eza ofereceu a

Berenguer dezasseis batalhões e a munição que não quis ou não pôde fazer chegar a

Silvestre nos momentos mais angustiosos de Annual.

A crise militar havia desencadeado a crise política. Afonso XIII, numa tentativa

de salvar as aparências, chamou Maura para formar um governo, tendo este nomeado

Juan de la Cierva como ministro da Guerra. Ao mesmo tempo, iniciava-se a instrução

de um sumário que clarificasse as responsabilidades no desastre. É conhecido pelo

nome de Processo Picasso, pelo apelido do general encarregado do mesmo,

condecorado por uma ação em Rostrogordo, em 1893. O governo pôs um travão ao

trabalho deste senhor ou, pelo menos, tentou deixar fora da investigação os chefes

ix Cada uma das companhias dos antigos Terços espanhóis [NT]. x Unidade de tropa regular indígena pertencente ao exército espanhol e composta por várias milícias ou companhias [NT].

117

principais. Mas Picasso era um homem de uma honradez indubitável, inacessível a

pressões e tinha uma enorme capacidade de trabalho. Devido a ele, hoje pode

reconstruir-se a maior parte dos acontecimentos. O seu trabalho terminaria quando o

entregou à comissão parlamentar de dezanove membros que se criou em 1922 e que se

transformaria na Comissão dos Vinte e Um em 1923. Depois, seria a base da acusação

perante o Conselho Supremo de Guerra e Marinha para processar os responsáveis. Os

condenados foram amnistiados pelo rei em 1924. Para evitar a condenação geral, salvar

a honra do governo de então e do monarca e evitar uma crise social e política alarmante,

o general Primo de Rivera fez um golpe de estado e constituiu-se ditador de Espanha.

Entretanto, os rifenhos apercebiam-se da verdadeira natureza da sua façanha.

Abd el Krim converteu-se no líder de uma aliança temporária de tribos, que

tradicionalmente estavam em conflito, e pretendia chegar a Tetuan. Algumas não

haviam esquecido velhas ofensas dos Beni Urriaguel, embora fosse tempo de pôr de

parte as desavenças. O seu receio era manter as armas e os prisioneiros em condições de

serem usados para o que ele concebia como um exército e que não se ocupassem das

cabilas que tendiam à autonomia. Os Beni Urriaguel, Tensaman, Beni Ulisek ou Bocoya

eram propriamente rifenhos, mas, ao atravessar o Kert, aparecia o território de Guelaya.

Tinham o mesmo inimigo mas não eram as mesmas tribos. Os rifenhos revoltaram-se

para defender o seu território do invasor espanhol, os acontecimentos levaram-nos mais

para além do seu terreno natural e não se encontravam confortáveis para lá do Kert.

Alguns líderes rifenhos não viam futuro na sua república e sabiam que, mais cedo ou

mais tarde, os espanhóis iriam reagir e derrotar a resistência armada. Por isso, estavam

claramente ao lado de Espanha, como acontecia com Abd el Kader e outros que

jogavam nos dois lados, ajudando os rifenhos mas entendendo-se em segredo com os

espanhóis. Assim, percebe-se a atitude de Be Chel Lal, ao salvar Navarro e os seus

oficiais, e a de Kadur Ben Amar, que fez o mesmo com os oficiais de Dar Kebdani.

Os rifenhos sabiam que os espanhóis reconquistariam o perdido. Para isso,

teriam de empregar todos os meios possíveis, mas sabiam que os empregariam.

Germain Ayache13 questionava-se sobre a razão de terem mantido a resistência. Teria

sido mais fácil e menos sangrenta uma boa negociação política, porque não é fácil

conter uma guerra quando esta já está em marcha. Mais circunspeto que o seu irmão

Abd el Krim, Mahmed el Khatabi questionava-se, em muitas ocasiões, sobre o futuro da

sua rebelião e as consequências penosas para o seu povo, que entrevia. Contudo, Abd el

Krim estava já embrenhado no papel de líder da revolução rifenha e de dirigente de uma

118

nova pátria, erguida pelo valor dos homens comuns dos campos e das montanhas do

norte de Marrocos, que, com o seu valor e sacrifício, venceram um importante exército

europeu. Depois de Abarrán, poderia ter-se mantido a situação, mas a facilidade da

vitória e o incentivo das cabilas mais próximas de Melilha haviam feito o resto. Os

factos haviam ultrapassado os atores e Abd el Krim não aceitaria nunca um pacto com

Berenguer, embora o alto-comissário lhe oferecesse uma espécie de governo rifenho em

nome de Espanha, um cargo idêntico ao de califa.

Por volta do dia 15 de agosto, Berenguer já contava, em Melilha, com 35000

homens. Ordenou que se estabelecesse uma linha de defesa, que correspondia, mais ou

menos, à zona do combate de 1909. Fortificou-se com uma série de postos e fortins e

manteve-se os rifenhos longe de Melilha. O passo seguinte, repetindo a campanha

daquele ano, era conquistar o Gurugu, onde os rifenhos se encontraram,

surpreendentemente, sem defesas espanholas. Primeiro, chegou-se a Nador; depois, teve

que se socorrer Tizza, que estava cercada há quase cinquenta dias, e conquistar

novamente Zeluan e Tauima. No dia 2 de outubro, conquista-se Atlanten, o que

significou expulsar os rifenhos para o outro lado do rio Kert e conquistar todo o país

Guelaya. Cercado o maciço montanhoso do Gurugu, os espanhóis conseguiram, por fim,

recuperá-lo, no dia 10 de outubro. No dia 24, chegou-se ao Monte Arruit e

resgataram-se, para serem enterrados, mais de 2600 cadáveres de espanhóis que

apodreciam ao sol. Era a prova contundente do ódio desencadeado entre os rifenhos, o

incentivo para que a vingança espanhola se traduzisse em ações de grande violência,

inútil, e castigos excessivos e desumanos. Os espanhóis já haviam utilizado, contra os

tratados internacionais que a Espanha havia subscrito, bombas de gás mostarda entre as

populações rifenhas, sem discriminar mulheres e crianças.

No dia 10 de janeiro de 1922, após uma paragem, os espanhóis chegaram a Dar

Drius. Ali, conteve-se o avanço da reconquista, pois é onde começam as montanhas. Na

planície, os rifenhos não combatiam, conscientes da sua inferioridade em meios, mas

aguardavam, escondidos nos montes, que os espanhóis entrassem, para os caçar.

Berenguer deteve as operações até ter amadurecido o seu plano final. Os rifenhos

tinham já a preocupação da próxima guerra. Abd el Krim ordenou que se cavassem

trincheiras a partir do mar até Tafersit, uma linha quebrada com várias retas de 30

quilómetros que estava apoiada por casamatas e lugares resguardados. O passo seguinte

dos espanhóis seria chegar a Annual, conquistar todo o território perdido por Silvestre

119

três meses antes e preparar a conquista de Alhucemas. Isto ficou incompleto, porque os

acontecimentos na zona ocidental obrigaram a mudar o cenário bélico.

O presidente do conselho de Ministros, Maura, havia convocado uma reunião na

cidade malaguenha de Pizarra, para os dias 4, 5 e 6 de fevereiro de 1922. Na

conferência intervieram também os ministros da Guerra (La Cierva), da Marinha

(marquês de Cortina) e do Estado (González Hontoria), o alto-comissário (Berenguer), o

chefe do estado-maior central (Aizpuru) e o capitão da esquadra (almirante Aznar).

Decidiu-se que a solução era o desembarque em Alhucemas, mas tinha que ser

preparado convenientemente. Entretanto, devia-se utilizar os meios aéreos tanto para

bombardear as posições inimigas como para lançar ataques seletivos, de forma a manter

a inquietação do inimigo. Os rifenhos são informados e protegem a costa com as

baterias capturadas aos espanhóis. Em meados de março, afundam o navio Juan de

Juanes, que abastecia a ilha de Alhucemas.

Em 1922, sendo já presidente do conselho Sánchez-Guerra, os espanhóis, que

formavam três colunas dependentes de Larache, Alcácer-Quibir e Tetuan, haviam

encurralado El Raisuni no seu refúgio de Tazarut. Apenas restavam algumas elevações

no Yebel Alam que mantinham a cabila de Ajmas. A operação estava quase completa,

embora também acabasse sem efeito. Em julho desse ano, conhece-se a pena de

Berenguer, demitido do cargo de alto-comissário, sendo substituído pelo tenente general

Burguete, um militar condecorado em Cuba e autor de vários livros sobre a arte militar.

Sánchez-Guerra confronta-se com a reconquista da zona marroquina, a espinhosa

questão dos prisioneiros de Axdir e também com os conflitos entre as Juntas de Defesa

e os militares africanistas. O exército encontrava-se dividido, os presidentes das Juntas

oponham-se às promoções por mérito de guerra, como se havia feito sempre entre a

milícia, enquanto os africanistas entendiam que o risco das suas vidas nas campanhas,

em vez de viverem regalados nas guarnições provincianas ou nos gabinetes madrilenos,

devia ter a sua justa recompensa. As notícias sobre a corrupção e má conduta em

Marrocos deram alento aos presidentes das Juntas, mas estas foram proibidas, nesse

mesmo ano, pelo decreto de Sánchez-Guerra.

O avanço espanhol era rápido e não teve grandes contratempos. Em outubro de

1922, os espanhóis haviam reconquistado as posições montanhosas situadas entre o rio

Kert e a zona onde ocorreu o desastre. No dia 28 desse mês, conquistou-se o monte de

Tizzi Azza por meio de uma harca auxiliar e, posteriormente, construiu-se uma estrada.

Era um lugar de difícil acesso, uma posição em muito semelhante à de Annual, mas não

120

se quis repetir os erros de Silvestre. Procurou-se tê-la bem abastecida e com reforços

por perto, para o caso de uma urgência. Era a chave do território reconquistado.

Burguete havia dado uma grande importância a esta posição, mas tratava-se de apenas

mais um passo no seu plano de avanço para Alhucemas, um lugar estratégico para

proteger o caminho das tropas. E era também a barreira do território espanhol ou uma

cunha espanhola no território rifenho.

Sofreu um primeiro ataque violento no dia 1 de novembro: «Apesar de os ter

expulsado com um grande número de baixas, também as das nossas colunas não foram

escassas. Uma harca de dois mil homens aguentou as hostilidades nas imediações da

posição durante vários dias; e apenas abandonou a empresa quando acabou por se

convencer de que os tempos haviam mudado e as posições de Espanha não se abatiam.

Se tivesse contado com a autorização indispensável para empreender as operações que o

bom senso militar indicava, a harca teria sido perseguida e aniquilada, ficando livre a

passagem para o território cuja possessão causava aos governantes mais preocupação do

que regozijo», escrevia o cronista Hernández Mir14. A posição voltaria a ser

furiosamente atacada no verão seguinte.

Em novembro, os espanhóis, auxiliados pelas harcas de Amaruchen e por Abd

el Kader, já haviam chegado a Izummar, pelo interior, e a Afrau, pela costa, onde

estabeleceram de novo a posição, que foi atacada, sem êxito, pelos partidários de Abd el

Krim. Estavam quase na linha de Silvestre.

Em novembro de 1922, Burguete, que havia continuado com a reconquista do

território oriental, apresentou a demissão. Não havia conseguido avanços nem políticos,

nem na libertação dos cativos. Era partidário de uma ação imediata sobre Alhucemas,

que o governo recusou. O novo alto-comissário nomeado era um civil, o ex-ministro

Villanueva, que não pôde chegar no respetivo ano devido às suas indisposições.

Interinamente, ocupava o cargo o cônsul López Ferrer, em cujo mandato se libertaram

os prisioneiros. De seguida, tomou posse, no dia 16 de fevereiro de 1923, o

ex-embaixador em França, Luis Silvela. As capitanias militares já não dependiam do

alto-comissário, por este ser civil, mas diretamente do ministério, o que complicava a

sua atuação. O alto-comissário nunca se dirigia ao Ministério da Guerra, mas ao dos

Negócios Estrangeiros. Esta falta de coordenação fez com que o ministro da Guerra,

Niceto Alcalá-Zamora, apresentasse a sua demissão. Silvela tinha que dirigir a política

do protetorado de forma muito complexa. O futuro dependia do exército, em que ele não

mandava; devia tentar a concertação com os marroquinos, sobre os quais nada conhecia

121

porque não era um africanista. Aproveitou os conhecimentos e o bom trabalho do

coronel Castro Girona para criar um gabinete militar na Alta Capitania, que,

evidentemente, não fazia parte da estrutura hierárquica do exército em Marrocos.

A forma cautelosa de tentar resolver o problema que o governo continuava a ter

exasperava os ânimos de muitos dos atores principais. Havia sido nomeado

comandante-geral de Melilha Martínez Anido, que insistiu em avançar até Alhucemas,

propondo dois planos: um desembarque de dezoito mil homens ou a chegada por terra

de três colunas com vinte e quatro mil efetivos. O governo exigiu-lhe calma e o general

demitiu-se.

Os cativos de Axdir

A questão dos prisioneiros espanhóis nas mãos de Abd el Krim foi das mais

espinhosas em toda a crise de Annual. Apesar dos massacres e do assassinato

indiscriminado dos espanhóis que habitavam a zona ou que estavam colocados nas

posições e acampamentos, alguns foram presos e levados ao local do nascimento do

chefe rifenho, onde ficaram cativos. É verdade que os rifenhos preferiam prisioneiros

pertencentes ao corpo sanitário, para aliviar as doenças dos naturais do país, ou de

artilharia, para que os ensinassem a usar os canhões que tinham sido capturados aos

espanhóis. Mas houve muitos mais que se livraram da morte por sorte, pela compaixão

de alguns dos inimigos ou por qualquer outra circunstância. Os prisioneiros chegaram a

ser 491, dos quais 136 morreram devido ao sofrimento do cativeiro, 11 foram fuzilados

e 13 conseguiram escapar. Pelo menos 34 eram trabalhadores das minas; também

estiveram presas, nas piores condições de abusos, algumas mulheres e até crianças.

Entre os prisioneiros, estava o general Navarro, segundo chefe do Capitania de Melilha,

preso no Monte Arruit.

Abd el Krim utilizou os prisioneiros espanhóis para construir estradas e outras

obras públicas, como a rede telefónica e construções militares. Mantinha-os também

próximos de sua casa, como proteção face a ataques aéreos dos espanhóis. E, à maneira

tradicional rifenha, estabeleceu um preço pela sua liberdade, que o governo de Maura

recusou pagar por decisão política, como uma questão de honra nacional, e para evitar

que esse dinheiro se destinasse à compra de armas que iriam ser utilizadas contra os

espanhóis. Berenguer era contra, acreditava que devia realizar-se um esforço

humanitário acima de tudo, sem que isso diminuísse a firmeza da ação espanhola. Os

122

prisioneiros suportavam duras jornadas de trabalho, com escassez de comida e

debilitados pela doença. Passavam frio nos quartos inadequados da sua prisão,

dormindo sobre o chão. E aguentavam-se com as rações que a Cruz Vermelha lhes fazia

chegar, quando lhes eram entregues pelos rifenhos. Os oficiais, a quem obrigavam a

trabalhar algumas vezes, viviam separados do resto dos prisioneiros, junto dos seus

assistentes, em melhores condições, dentro da miséria. Estavam fortemente vigiados

para evitar as fugas e, quando tentavam escapar, o castigo era severo. «Em certas

ocasiões, eram obrigados a trabalhar, fazendo caminhos e outras obras, como acontece

atualmente com o capitão do batalhão de Engenheiros Aguirre, que dirige a construção

de uma casa para Abd el Krim»15.

Em julho de 1922, o jornalista natural da Estremadura Luis de Oteyza, diretor do

La Libertad, conseguiu chegar ao acampamento de Axdir e entrevistar Abd el Krim e

alguns prisioneiros. Acompanhavam-no os fotógrafos Alfonso e Rafael Hernández. As

fotografias das crónicas são o único testemunho que ficou daquela situação; algumas

delas reproduziram-se no livro de Oteyza, Abd-el-Krim y los prisioneros. A Oteyza,

grande defensor do pagamento do resgate, atribuía-se certa benevolência para com o

líder rifenho e considerava-se que não descrevia com clareza as duras condições do

cativeiro. Mais precisos nos detalhes e mais duros nos juízos sobre os seus captores são

os testemunhos dos que sofreram o cativeiro, como o tenente-coronel Pérez Ortiz, o

capitão Sainz Gutiérrez ou o sargento Basallo16.

Enquanto o governo tentava negociar com Abd el Krim, que atrasava a questão

porque não lhe interessava muito o destino dos espanhóis e, em todo o caso, apenas

queria o dinheiro em troca das suas vidas, a opinião pública reclamava a libertação. O

governo espanhol tinha a imprensa e a população contra si devido à lentidão na

reconquista, ao enorme esforço humano e económico que era necessário e à questão por

resolver dos cativos. A queda de Maura proporcionou uma saída. O novo ministro de

Estado, Santiago Alba, havia autorizado Horacio Echevarrieta, um industrial basco, a

efetuar diligências para resolver a questão. E este assim fez, pondo quatro milhões de

pesetas sobre a mesa de Abd el Krim. Embora se difundisse a notícia de que era

dinheiro privado, o mais provável é que a quantia procedesse das arcas públicas e que o

governo abafasse esta circunstância para minimizar as críticas. No dia 24 de janeiro de

1923, os espanhóis sobreviventes embarcaram nos navios que os aguardavam em

Alhucemas.

123

O ataque à zona ocidental e o abandono de Xauen

Enquanto acontecia o desastre na Capitania de Melilha e durante a guerra de

reconquista do território que se lhe seguiu, a situação na zona ocidental permaneceu

tranquila. Gomara não ofereceu resistência às bases costeiras espanholas, Xauen

permanecia ocupada desde que Castro Girona conseguira a entrada pacífica dos

espanhóis, subornando os cabecilhas locais, e El Raisuni continuava preso em Tazarut.

Faltava controlar a beliscosa cabila de Ajmas e parte de Beni Arós, para continuar o

caminho para Alhucemas. Todas as operações militares ficaram em suspenso até se

resolver a questão de Melilha.

Em fevereiro de 1924, os rifenhos, aliados a alguns gomaras, atacaram a posição

espanhola de M’Ter, que o coronel Serrano Orive garantiu. Abd el Krim havia decidido

colocar a zona sob a sua autoridade e enviou duas colunas com dois objetivos: obrigar

os espanhóis a retirarem-se e acabar com El Raisuni, com quem não conseguiu chegar a

acordo porque este último não quis colocar-se às ordens do cabecilha rifenho. Os

marroquinos haviam cortado o caminho de Xauen a Tânger. Primo de Rivera, que já era

ditador de Espanha, considerou a situação muito difícil e viajou para Marrocos. Na zona

de Melilha, pretendia retirar as forças de novo para a linha do rio Kert, mas num célebre

banquete que ocorreu em Ben Tieb, durante o qual apenas se serviram pratos com ovos

preparados de diferentes formas, em alusão à valentia, a Legião mostrou-lhe que se

negaria a retroceder. O ditador optou, então, por deixar as coisas como estavam em

Melilha e ordenou a retirada de Xauen.

As harcas ou tropas de Abd el Krim começaram a atacar as posições espanholas

nas montanhas de Xauen e a foz do rio Lau no verão desse ano. Uma das colunas era

comandada pelo seu irmão Mahmed e a outra, por El Jeriro, com uma poderosa

cavalaria. Os espanhóis perderam Ifartán e Tassa, com inúmeras baixas, e Jeriro

dirigiu-se a Xauen para isolar a cidade. Os espanhóis conseguiram anular essa ofensiva,

mas a cabila de Ajmas juntou-se à revolta e passou também à guerra aberta contra os

espanhóis. Para isolar Xauen, os rifenhos empreenderam ataques contra as posições

espanholas de Xeruta e Dar Akoba - defendida pelo tenente-coronel Emilio Mola -, que

eram as que garantiam as comunicações com Tânger e Laucien. Resistiram

desesperadamente, até que foram socorridas. Corriam os últimos dias de setembro de

1924. As colunas espanholas moviam-se cada vez com mais dificuldade e baixas, e as

que tentavam socorrer a posição de Uad Lau só podiam avançar por Gomara.

124

Primo de Rivera decidiu, então, abandonar todas as posições situadas a este de

Tetuan, concentrar as tropas na cidade e esperar até que se desse o desembarque em

Alhucemas. Para isso, devia retirar-se as tropas das posições avançadas de Xauen e,

uma vez todas reunidas, formar uma coluna que abandonasse a cidade e juntasse as

unidades dispersas por outros postos, disseminados pelo caminho.

No dia 17 de novembro, deu-se a saída de Xauen. Previamente, para evitar

situações como a de Annual, retiraram-se das posições menores que haviam sido

fustigadas durante semanas. Era uma noite sem lua, que favorecia a marcha pacífica,

embora dura. Ao amanhecer, os legionários foram atacados pelo fogo das espingardas,

mas a coluna conseguiu chegar a Dar Akoba. No segundo dia, os legionários

protegeram a saída de uma coluna até Xeruta, onde existia uma simples fortificação

espanhola. Chovia durante o trajeto e não havia tendas de campanha para passar a noite.

Na terceira jornada, com o mesmo temporal, a coluna chegou a Zoco el Arabaa. A

chuva havia enlameado o terreno. Os soldados mal podiam avançar, as carroças ficavam

atoladas, o gado não queria continuar. As baixas eram numerosas; o coronel Serrano

Orive morreu. Tiveram que permanecer vários dias nesta posição, defender-se dos

ataques mouros e efetuar várias saídas para atacar o inimigo, até Castro Girona ordenar

a retirada para Ben Karrich, já na linha de proteção de Tetuan, que Primo de Rivera

havia marcado com uma série de posições fortes para deter a harca inimiga na planície.

Houve várias centenas de mortos espanhóis. As posições do Lau haviam caído e alguns

dos seus defensores foram feitos prisioneiros por Abd el Krim, que se considerava já

senhor da zona; finalmente, conseguiu-se prender El Raisuni, que morreria dois meses

depois.

125

NOTAS

Capítulo 1 1 Mahmoud Abdelmoula, Puissance y décadence de l’Empire ottoman et la Régence de Tunis des origines à 1867, p.48, citando M.H. Chérif. 2 Abdallah Laroui, Historia del Magred, p.244. 3 Charles André Julien, Historia de l’Afrique du Nord. Des origines à 183, Payot, p.649. 4 Emilio Sola, Argelia, entre el desierto y el mar. 5 Víctor Morales Lezcanos, Historias de Marruecos, p.111. 6 Serafín Estébanez Calderón, Obras completas. Manual del oficial en Marruecos, p.322. 7 Ibid., p. 474. Capítulo 2 1 Pedro Antonio de Alarcón, Diario de un testigo de la guerra de África, volume I, p.43 2 Carlos Yriarte, Recuerdos de la Guerra de África. Bajo la tienda, p.16 3 Pedro Antonio de Alarcón, op. cit., volume I, p.149. 4 Yriate, op. cit., p.47 5 Ibid., p.79. 6 Gaspar Núñez de Arce, Recuerdos de la guerra de África. Miscelánea literaria, p.221. 7 Yriate, op. cit., p.229. 8 J. Gavira, El viajero español por Marruecos D. Joaquín Gatell (El Caid Ismail), p.25. Gavira reproduz o Diario completo de Gatell. 9 Ibid., pp.122 e 123.

10 José María Burga, Recuerdos marroquíes del moro vizcaíno, p.14

11 Cristóbal Benítez, Viaje a Timbouctou, p.9

12 Ibid., pp.82 e 83 13 Ibid., p.139

126

14 Julio Cervera Baviera, Expedición al interior del Marruecos, pp. 14 e 15.

15 Ibid., p.73

16 Congreso Español de Geografia Colonial y Mercantil, volume I, p.45.

17 Francisco Coello, Intereses de España en Marruecos, p.8.

18 Ibid., p.30

19 Adolfo Llanos Alcaraz, Melilha. Historia de la campaña de África en 1893-1894, pp.58-59.

20 Rodrigo Soriano, Moros y cristiano. Notas de un viaje (1893-1894), p.295.

21 José Boada y Romeu, Allende el Estrecho, p.551.

Capítulo 3 1 Teniente coronel X.L., Un episodio de la campaña de Melilha, p.4. 2 Manuel Corral Caballé, Crónica de la guerra de África, volume I, pp.352-353. 3 Carlos Martínez de Campos, España bélica. Siglo XX, p.73.

4 De Torcy, Les espagnols au Maroc en 1909, p.73. 5 Eduardo Gallego Ramos, La campaña del Rif de 1909, p.147.

6 Capitão X, Verdades amargas, La campaña de 1909 en el Rif, p.199. 7 Eladio Amigó, Marruecos. Ideario político-militar, p.13. 8 José Luis Villanova Valero, Los interventores. La piedra angular del Protectorado español en Marruecos, p.92 9 Luis Antón del Olmet, Tierra de promisión. (Catecismo de la raza), p.70-71. 10 La guerra en África, de R. J. Frisch, traduzido por Francisco Echagüe e Felipe Navarro e publicado em espanhol, em 1913. De la guerra en África, do general Yussuf, foi traduzido por Juan Prats e publicou-se em espanhol em 1913. 11 María Rosa de Madariaga, En el Barranco del Lobo, p.78. 12 A. Serra Orts, Recuerdos de la guerra del Kert de 1911-12, pp.171-172.

127

13 Manuel L. Ortega, El Raisuni, p.146. 14 Carlos Federico Tessainer y Tomasich, El Raisuni. Aliado y enemigo de España, p.162 Capítulo 4 1 F. Gómez Hidalgo, Marruecos. La tragedia prevista, p.158. 2 María Rosa de Madariaga, op. cit,. p.131. 3 Martínez de Campos, op. cit., pp.219-220. 4 Dámaso Berenguer Fuster, Campañas en el Rif y Yebala, p.3 5 Ibid., p.5 6 Ibid., p.34 7 Ricardo Burguete, La guerra y el hombre, p.42 8 Eduardo Pérez Ortiz, De Annual a Monte Arrauit y diez y ocho meses de cautiverio, p.81 9 Luis Rodríguez de Viguri y Seoane, op. cit., pp.59-60. 10 Juan Pando Despierto, Historia secreta de Annual, p.307. 11 Indalecio Prieto, Con el rey o contra el rey, volume I, p.146. 12 Ibid.,p.191. 13 Germain Ayache, La guerre du Rif, pp.151. 14 Francisco Hernández Mir, Del desastre a la victoria, p.47. Este autor foi um jornalista conhecido que cobriu todas as guerras marroquinas desde 1893. São fruto das suas experiências vários livros e romances, La tragedia del cuota. Em 1921, foi correspondente na guerra do jornal diário madrileno La Libertad. 15 Luis de Oteyza, Abd el Krim y los prisioneiros, pp.94-95. 16 Pérez Ortiz, op. cit., Sigfredo Sainz Gutiérrez, Con el general Navarro. En operaciones. En el cautiverio, Francisco Basallo, Memorias del cautiverio.