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Érico Nogueira é um poeta recessivo; ainda mais recessivo porque jovem. E explica-se: seu uso de rimas e de formas fixas, assim como suas leituras, remetem os leitores imediatamente ao passado da arte poética, de modo proposital e calculado.

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DOIS

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Impresso no Brasil, agosto de 2010

Copyright © 2010 by Érico Nogueira

Os direitos desta edição pertencem a

É Realizações Editora, Livraria e Distribuidora Ltda.

Caixa Postal: 45321 · 04010 970 · São Paulo SP

Telefax: (5511) 5572 5363

[email protected] · www.erealizacoes.com.br

Editor

Edson Manoel de Oliveira Filho

Gerente editorial

Bete Abreu

Revisão

Jessé de Almeida Primo

Ricardo Jensen

Liliana Cruz

Capa e projeto gráfico

Mauricio Nisi Gonçalves / Estúdio É

Pré-impressão e impressão

Prol Editora Gráfica

Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer

reprodução desta edição por qualquer meio ou forma, seja ela

eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro

meio de reprodução, sem permissão expressa do editor.

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Érico Nogueira

DOIS

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PREFÁCIO

Érico Nogueira, o oposto

por Dirceu Villa . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

DOIS

Entre as ruínas, ai, de arco e busto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 23

Na minha “alcova” – nome ultrapassado. . . . . . . . . . . . . . . . . 24

Com pernas bambas, tripas formigando. . . . . . . . . . . . . . . . . 25

Instrui – a mente não –, instrui o instinto. . . . . . . . . . . . . . . . 26

À luz que pesa e se derrama . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

O instinto bruto, como a pedra. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 28

Ouvir “quantos matizes há no trópico”. . . . . . . . . . . . . . . . . . 29

Ao meio-dia andava pela estrada. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 30

Porque o contentamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Coloca, tonto, vai, os pés na água. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32

Mármor que jaz, que não traduz. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33

O que te dão, que brota e não exige . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 34

Alguém passava por ali . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35

Quando o dia se apaga, dentro e fora. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36

Densidade ofegante na planície. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

S U M Á R I O

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E dois pássaros sobre um espantalho. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38

A destreza do impulso, e o pensamento. . . . . . . . . . . . . . . . . . 39

Serrotes, chaves, chaves e martelos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40

É terrível que a lava não corroa o . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

Se dois (ou mais de dois) se relacionam. . . . . . . . . . . . . . . . . . 42

DEU BRANCO

É sempre assim: bater o ponto de saída. . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

Mas que dormir, que nada, é a vida na janela. . . . . . . . . . . . . 46

Dizer “yo tengo miedo” ou “no, no puedo, gracias”. . . . . . . 47

Presépio mais bonito, visto do avião. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 48

“Vai pra Delfos” – um sino, um martelo, sei lá. . . . . . . . . . . . 49

Tanta página branca, papel de primeira. . . . . . . . . . . . . . . . . . 50

Roma, enfim – chego bem, só que tarde demais. . . . . . . . . . . 51

“No dia do Juízo” – mas que coisa louca. . . . . . . . . . . . . . . . . 52

Agora, da janela deste táxi, Roma. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53

CODA

ARRIVEDERCI . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 57

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É R I CO N O G U E I R A , O O P O STO

Érico Nogueira é um poeta recessivo; ainda mais recessi-

vo porque jovem. Não no Brasil apenas, mas no Ocidente,

hoje. E explica-se: seu uso de rimas & de formas fixas, assim

como suas leituras, remetem os leitores imediatamente ao

passado da arte poética, de modo proposital & calculado,

porque Nogueira não é nada ingênuo. É o oposto do tipo de

poesia que Marjorie Perloff critica negativamente no ensaio

“‘Modernism’ at the Millennium”, no qual localiza o uso já

frouxíssimo do chamado vers libre, diluído desde o início de

sua prática nos anos 1870, na França, até se tornar a base de

composições nas quais “uma voz genérica de lírico ‘sensível’

contempla uma faceta de seu mundo e faz observações so-

bre ele, compara presente e passado, divulga certa emoção

recôndita, ou chega a um novo entendimento da situação”.

Perloff demonstra que o verso em que isso vem escrito é

low-key, poesia se aproximando não da música – como no

célebre dictum de Walter Pater – mas do jornalismo, ao que

Perloff ainda acrescenta: “e é uma forma igualmente inócua

e efêmera”.1 É a poesia clichê daquele que olha lírica & infor-

malmente por sua janela & faz observações mornas. A maior

parte da poesia que se escreve há alguns anos.

1 Marjorie Perfloff, 21st-Century Modernism (The “New” Poetics). Malden, Blackwell Publishers, 2002, p. 160-65.

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Por outro lado, Nogueira não é também o que Perloff está

defendendo naquele texto: a crítica estadunidense fala em

readymades, esculturas de palavras (pensando, é provável,

nos Calligrammes de Apollinaire), explorações zaúm & etimo-

logias, & permutações sintáticas steinianas. Basicamente, o

repertório mais afiado das vanguardas modernas. Nogueira

não aprecia a maior parte do modernismo, & é provável que

aprecie ainda menos o que têm sido os últimos anos da es-

crita de poesia. Lê Teócrito & Calímaco no original (estuda

o primeiro em seu doutorado), assim como Virgílio & Horá-

cio, Tasso & Goethe; traduziu pedaços de Góngora & Petrar-

ca, &, mais próximo em língua & tempo, foi muito amigo

de Bruno Tolentino, poeta brasileiro que ele admira, & que

desgostava da poesia moderna & contemporânea no estilo

o tempora o mores.2 A mente de Nogueira – se pudermos nos

permitir uma psicologia muito verdadeira a afrontar uma

concepção muito ordinária & mesquinha de realidade – vê

como seus contemporâneos aqueles poetas, com quem se

mede & a quem emula, como fez na primeira parte de seu

livro anterior, de estreia, O Livro de Scardanelli (2008), seguin-

do os passos de Hoelderlin.

2 Em todo o caso, a poesia de Nogueira não é como a de Bruno Tolentino. Também, por outro lado, não tem conexões com a da chamada geração 45, na qual o esforço reativo antimoderno engessava a forma em uma mímica do passado já imitadíssima no antepassado. A paródia, o modo de citar & aludir de Nogueira são mais complexos, & a crise que aponta não é vaidade ferida nem lamúria. Para não dizer, também, como é mais elástico o seu uso da língua.

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Mas há que se observar: Nogueira não é um passadista puro

& simples, daqueles que nós, sempre modernos, gostamos

de descartar sem o menor esforço. A diferença é que aqueles

“passadistas puros & simples” não são poetas, são verseja-

dores apegados a uma mania de fazer versos, que calham de

ser coisa vetusta, muitas vezes solene, como as coisas velhas

apenas reeditadas se propõem a ser para resgatar um sonho

de dignidade perdida. A poesia de Nogueira apresenta duas

dificuldades peculiares: uma, a de produzir poesia de base

antiga, hoje; outra, a de como leremos essa poesia. Não pre-

tendo dar respostas completas ou finais – o tema é comple-

xo & ainda em desenvolvimento –, mas ensaiar minha visão

de ambas as coisas na leitura deste livro.

Sobre produzi-la, notamos como está aparente o confron-

to & o atrito entre sua mente & aquilo que tem diante

dos olhos: sua poesia sofre a atacar seus objetos, retro-

cede para negá-los, avança em reconhecer que está dian-

te de uma incontornável decadência, faz ironias sutis &

refrações obscuras, ganha superioridade temporária em

relação à época, prossegue avaliando cautelosamente seus

cacos. É uma poesia feita da escrita poética histórica, &

do agudo sofrimento de relacionar aquela arte com esses

fragmentos de civilidade & beleza reinterpretados por um

mundo que lhe parece aviltado por comércio & má cul-

tura comercial: como pressuposto, o dilema é insolúvel.

Mas, faltando solução, sabemos que em geral a única res-

posta costuma ser a poesia.

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E aí entra o “como leremos essa poesia”. Não é possível lê-la

como lemos a poesia antiga que Nogueira venera: ela não é

antiga. Como muitos modernos pesaram perdas & ganhos

da época em que se vive, também ela se reporta à ruína do

tempo (que põe em tudo a marca de seus dentes, ou de sua

dentadura postiça), mas Nogueira o faz, em específico, de

um modo irredutível quanto ao manejo do verso histórico.

Escrevo “histórico” dizendo descendente do sentido tradi-

cional – aquilo que se traz – de outros tempos. Se alguns au-

tores cedem a forma ao molde das flutuações de percepção

(& isso é muito recente, & com muito recente esclareço que

estou pensando em algo a partir do fim do século XVIII),

Nogueira impõe à percepção o molde que a história da tra-

dição já proporcionou àquela mesma percepção, em poesia.

Isso nos diz algo importante sobre como lê-lo.

Aquela ideia de Theodor Adorno – que, resumindo muito

grosseiramente, diria que a poesia de uma época a revela

mesmo que seja à revelia, isto é, mesmo que o poeta deter-

mine dar-lhe as costas – é muito útil para ler um lado da

poesia de Nogueira, pois ele dá as costas a esta época feita

de encontros desencontrados: vai a Roma, por exemplo, &,

como Janus Vitalis & uma longa tradição que o imitou, não

vê Roma em Roma. Assinala a ausência em vez de registrar

o que se estabeleceu na ausência, porque não admite a tro-

ca pobre que encontra. Sabemos que a História de nossas

glórias humanas (se se permitir ao menos uma letra maiús-

cula diferencial no contexto) é coisa epidítica, elogiosa, que

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os feitos se multiplicam & se desdobram na amplificação

de seus efeitos. Nogueira sabe disso melhor do que eu, mas

propõe um “& se”, que nos convida a nunca aceitar menos.

É uma aposta muito arriscada, tem muito de ideal (Das

Ideal, quero dizer) & de resultados desiguais. Mas ele está

disposto, me parece claro, a bancá-la. Como?

O olho cego, que só sabe ler

Esse verso, de um dos poemas que os leitores têm em mãos,

é um exemplo da ironia (muitas vezes a saudável autoironia)

que investe de engenhosa contradição o seu sentido: aquele

que só sabe ler é um cego. Nogueira sabe que seria fácil ler

sua poesia como mera macaqueação3 de gestos antigos, & é

desse saber que suas ironias se multiplicam contra a expec-

tativa de um leitor acomodado em rótulos, como quem se

acomoda em almofadas & não quer mais se mexer. Propõe

educar inicialmente o instinto – em grego pensaríamos, com

Aristóteles, aisthemata, os sentidos, a percepção –, atento à

plasticidade múltipla da linguagem que capta as coisas.

Não importa que maneje, preciso, versos de seis, oito, dez,

doze sílabas: devemos perceber como Nogueira não os escreve

antiquados, mas numa sutil orquestração sonora que por ve-

zes os torna doces, às vezes ríspidos; às vezes nos surpreende

3 Como o Diabo ou os velhos pintores, scimmia di Dio, também duplos de Deus, numa leitura que tenha Deus. E no centro, como o sol.

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com um staccato quase provençal, o que Dante aprendeu com

os provençais para as rime petrose; às vezes, sentencioso como

os poetas gnômicos gregos; às vezes tem rimas imprevisíveis;

às vezes, banalíssimas; & sempre numa poesia feita de coisas

muito objetivas, astuta, mesmo quando está propondo algo,

no limite, abstrato. Sua regularidade é apenas a parte mais

saliente de seus versos hábeis: neles, a variedade métrica & as

divisões rítmicas compõem uma arte muito viva, intensamen-

te móvel, muito concentrada no que diz. E o que Nogueira

diz é algo com que realmente se importa, o que não é pouco

quando um dos métodos mais comuns de se tornar o poeta

da semana é apenas fazer uma pose legal.

Sob a poesia de Érico Nogueira, declaradamente, aqui, es-

tão as Römische Elegien [Elegias Romanas] de Goethe, como,

sob elas, estavam os Elegiarum Libri Quatuor [Quatro Livros

de Elegias] de Propércio: ambas as coleções, como sabeis, de

poesia erótica ricamente elaborada. Dois, portanto, se deve

entender não apenas dessas sombras que deixam suas pistas

na poesia de Nogueira, como também dois corpos em ínti-

mo entendimento. O preceito propõe Roma como no últi-

mo verso da primeira elegia de Goethe, de equilíbrio clássico

no paralelismo dos hemistíquios, que diz que sem o amor

“o mundo não seria o mundo, nem Roma seria Roma”:4

condicionada pelo gênero elegíaco romano, exercido como

4 Wäre die Welt nicht die Welt, wäre denn Rom auch nicht Rom. In: Johann Wolfgang von Goethe, Gedichte (Kommentiert von Erich Trunz). München, C. H. Beck, 2007, p. 157.

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os poetas do período de Augusto o exerceram, a cidade é

convertida num locus poético que se recria a cada investida,

& por isso as elegias do alemão são romanas.5 Seu metro é

o dístico elegíaco (“Das Distichon”, cf. Schiller), imitado em

alemão do latim de Ovídio, Propércio & Tibulo: basicamen-

te, um hexâmetro & um pentâmetro.

Na maior parte das vezes, Nogueira desdobra a exemplar

dualidade do dístico em quartetos, que respondem pelo as-

pecto “muito vivo, intensamente móvel”, de que falei linhas

atrás. Se pensarmos no comentário de Erich Trunz, em sua

edição dos Gedichte, sobre a diversidade da métrica nos dísti-

cos de Goethe, temos um efeito análogo.

Mas Dois é outra coisa, naturalmente: os versos com o corte

de quadras rimadas, ora parelhas, ora cruzadas; de quinti-

lhas & sextilhas; e mesmo uma terzina (paródia do Canto I

do “Inferno” da Commedia), se apoiam em metros familiares

da poesia de língua portuguesa & criam um efeito de veloci-

dade & multiplicidade muito diverso do andamento menos

inquieto do dístico elegíaco, & mesmo de um corte gené-

rico fiel às raízes pela filiação métrica, & mesmo ainda de

uma placidez6 clássica, que de modo superficial se poderia

esperar ao conjunto dos poemas. E esse é ainda outro en-

tendimento possível para o título: por um lado, temos um

poeta que exerce as formas fixas antigas; por outro, temos

5 Estou perfeitamente ciente do intermezzo italiano de Goethe. Mas sejamos mais sutis.

6 Não é pejorativo. Uso o termo com seu sentido latino de concordado, resol-vido, decidido.

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esse mesmo poeta reconfigurando seus usos de um modo

impossível àquela tradição, embora suposto nela.

Como coda, ou “cauda” do livro, lemos uma paráfrase da

balada “Perch’i’ non spero di tornar giammai”, de Guido

Cavalcanti (c. 1250-1300), que já foi reinterpretada por, por

exemplo, T. S. Eliot no começo de “Ash Wednesday” [Quarta-

feira de cinzas, 1930]: Because I do not hope to turn again, & por

Haroldo de Campos também, quando escreveu “Baladeta à

moda toscana”, que começa em seu adeus à Lira Paulistana.

Cavalcanti produziu aquela balada de exílio, oportunamen-

te adaptada para o soggiorno italiano de Nogueira, que, por

um efeito curioso, se reapropria de uma lira paulistana nessa

“Musiqueta”, empregando linguagem que busca recuperar a

fala paulista na distância. Com o que vamos a outro subtí-

tulo, particularizando.

A língua, o verso

Ainda no início de seu ano italiano, enriquecendo seu dou-

torado na universidade “La Sapienza”, em Roma, é impor-

tante fazer notar um aspecto dos novos poemas: o ouvido

atento à fala, como já se podia notar mesmo no primeiro

livro, vem especificamente desdobrado nos poemas de Dois,

sobretudo em “Deu branco”, no qual – se lembramos o que

o próprio Nogueira tem dito em tom de diário de viagem

em seu blog Ars Poetica – sente-se o desejo do poeta em fixar

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a mobilidade de registro da fala do português brasileiro &

paulista, captada em gírias, interjeições, elipses, frases feitas

& de sabedoria popular. É nesse poema & na já mencionada

“musiqueta” que temos alguns lances novos, de uma veloci-

dade de percepção & um agenciamento de informações &

línguas diferentes, em coisa de dois ou três versos em segui-

da, que põem a poesia de Nogueira dentro de um vertigino-

so registro de simultaneidade perceptiva, até aqui exceção

em sua poesia. Um exemplo notável:

Por consideração, vai, leva simesta alma que a visão do inferno mata;em testamento lego-te um rubime “as penas com que amor tão mal me trata”;Por dó que seja, à supramencionadaforja, força um rompante e“je suis votre servante” ououtra frase de efeitodiz-lhe com a mão no peito;pirita? – é por amor.

– em que Guido Cavalcanti se transforma surpreendente-

mente numa espécie de Jules Laforgue que conhecesse o par-

nasianismo brasileiro.

Também é interessante fazer notar sua perícia versificató-

ria, já aludida antes, em um período tão blasé da escrita do

verso,7 no qual as pessoas acham que para escrever poesia

7 Obviamente, não sugiro que todos passem às formas fixas. Mas são bem poucos os que demonstram reinventar a escrita da poesia, ou mesmo entender

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basta juntar umas palavras recortadas na página com a dis-

tribuição espaçada & escritas em jargão misturado de tese

de linguística & reles autobiografês de sussurro ou grito. É

saudável ler alguém (como também outros, de outras for-

mas8) tão livre dos clichês de época, tão decididamente o

oposto dela e da expectativa pobre & inane da maioria de

seus praticantes, & do vício mecanicamente discursivo &

quase iletrado de muitos críticos.

Como poeta, em nada me pareço com meu caro Érico No-

gueira. Os novos poetas brasileiros – que não apenas não

se configuram como uma geração, como também não são

um movimento – se permitem uma diferença pacífica & in-

teressada, que períodos mais beligerantes afastavam. Leio

sua poesia com verdadeiro prazer & algum desconcerto,

pois o que não nos desconcerta não nos interessa também.

Busco compreendê-lo &, nessa busca, me afeiçoo de seu en-

genho variado, compondo uma poesia tão batalhadora de

seus amores distantes no tempo, amores que, não obstante

o escrevermos diferente, partilho com ele. A cultura literá-

ria não tem apenas uma voz, & isso é um ótimo sinal. Dois

é um livro vivo, de escrita admirável, & é bom vê-lo ainda

com a tinta fresca.

alguns de seus mecanismos mais sutis. Em geral, assumem que o verso livre é aquilo a que a crítica de Perloff se endereçava, citada no começo deste texto: uma informalidade banal.

8 Devemos lembrar o fato bizarro & notável de que a crítica tem estado total-mente cega, há mais de dez anos, à poesia que se escreve no país.

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Este modesto prefácio pretende apenas ter cumprido a in-

cumbência de auxiliar no saboreio deste livro, com o qual

deixo os leitores, esperando não ter dito demasiado.

Gaudete.

Dirceu Villa,

abril de 2010.

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D O I S

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Denn der Könige Zwist büssten die Griechen, wie ich.

Goethe

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1.

Entre as ruínas, ai, de arco e busto,

eu busco ouvir além do meio físico:

ouvir o que se entrega a um alto custo

a quem, como eu, é carne e pouco espírito.

Se me surgisse em riste ou em decúbito

a via donde vim e vou com gosto,

meu coração tão flácido, de súbito,

levantaria sangue para o vôo.

Ou seja: o espírito, que tenho pouco,

e vou perdendo quanto mais existo,

onde estará, se Roma é este poço

de secreções e beijos de granito?

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2.

Na minha “alcova” – nome ultrapassado;

e assim é “Roma” e o método antiquado

que uso pra falar do que me passa –,

na minha alcova, se a doutrina é baça,

o ato é claramente executado.

Ainda assim, o quanto sobrevivo

de me doar a uma e outra estátua

vai-me instruindo o tônus e o tino:

aquele quando aprendo o que me mata

e este quando o que me mata ensino.

Viver o que nos mata todos vivem,

saber vivê-lo, sim, é ave rara:

saber que o pensamento não atinge

senão se o corpo queime sem fuligem

voando como ensina a sua tara.

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3.

Com pernas bambas, tripas formigando

e pele purulenta fica sempre

quem ante a nádega, ou o flanco,

ao tronco só consente

que chegue ao lado, perto, quase, rente.

A mão que fica à-toa, sem saber

o grau das curvaturas que pressente;

a língua tão sobressalente

falando sem lamber;

e o olho cego, que só sabe ler:

que uso podem ter naquele jogo

que é mais preciso quanto mais é tosco?

Então educa a tua mente

para aprender do corpo

o quanto é seu o mundo à sua frente.

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