dois mundos em um sÓ...de “selvageria” do indígena, capaz de “produzir pequenos barcos em...

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1 DOIS MUNDOS EM UM SÓ: portugueses e africanos em Moçambique colonial (1929) LEANDRO ANTONIO GUIRRO Introdução No dia 09 de junho de 1928, o jornal O Brado Africano, produzido por nativos na capital moçambicana, publicou uma chamada com intuito de obter ajuda para o desenvolvimento de um projeto idealizado pelo “amigo” José dos Santos Rufino. Segue, abaixo, parte do referido texto: [..]Há mais de um ano que aquele nosso amigo, tendo lançado a público a patriótica iniciativa de publicação dos álbuns de propaganda, vem insistentemente pedindo a quem possua ou possa obter fotografias de quaisquer assuntos interessantes da Província, o favor de lhes cederem nem que seja por empréstimo- com o fim de reunir o maior número possível de elementos para dar realização à referida iniciativa. Era de esperar, pois, que especialmente os amadores fotográficos, fazendo gosto em ver as suas produções fotográficas numa publicação que visa especialmente tornar conhecidas lá fora as belezas naturais de Moçambique, a sua riqueza e o nosso esforço colonizador pondo mesmo de banda quão patriótico seria o seu gesto acudissem ao apelo, diligenciando, cada um por si, apresentar o maior número de fotografias interessantes e o melhor que a sua habilidade pudesse produzir. Tal, porém, infelizmente, não se verificou. Apenas dois ou três em toda a província quiseram ou souberam compreender o valor do trabalho em organização e corresponderam ao apelo como lhes foi possível ( O Brado Africano, Lourenço Marques, p.3, 26 ago. 1928.). Mesmo com dificuldades em conseguir participação dos moradores locais, a iniciativa comentada pela folha concretizou-se no ano seguinte. Os registros fotográficos cedidos por terceiros ou encomendados a um fotógrafo particular estão divididos em 10 álbuns que mostram o cotidiano de Lourenço Marques (capital) e dos distritos de Gaza, Inhambane, Quelimane, Tete e Cabo Delgado. O último volume da coleção trata especificamente dos usos e costumes praticados pelos chamados indígenas. De modo geral, as imagens captam a inter- relação cotidiana das pessoas em espaço público, enaltecem a infraestrutura das cidades, apontam o sucesso de atividades econômicas e formulam uma sensação de bem-estar e Doutorando em História. UNESP/Assis. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Brasil.

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DOIS MUNDOS EM UM SÓ: portugueses e africanos em Moçambique colonial (1929)

LEANDRO ANTONIO GUIRRO

Introdução

No dia 09 de junho de 1928, o jornal O Brado Africano, produzido por nativos na

capital moçambicana, publicou uma chamada com intuito de obter ajuda para o

desenvolvimento de um projeto idealizado pelo “amigo” José dos Santos Rufino. Segue,

abaixo, parte do referido texto:

[..]Há mais de um ano que aquele nosso amigo, tendo lançado a público a

patriótica iniciativa de publicação dos álbuns de propaganda, vem insistentemente

pedindo a quem possua ou possa obter fotografias de quaisquer assuntos

interessantes da Província, o favor de lhes cederem – nem que seja por empréstimo-

com o fim de reunir o maior número possível de elementos para dar realização à

referida iniciativa. Era de esperar, pois, que especialmente os amadores

fotográficos, fazendo gosto em ver as suas produções fotográficas numa publicação

que visa especialmente tornar conhecidas lá fora as belezas naturais de

Moçambique, a sua riqueza e o nosso esforço colonizador – pondo mesmo de banda

quão patriótico seria o seu gesto – acudissem ao apelo, diligenciando, cada um por

si, apresentar o maior número de fotografias interessantes e o melhor que a sua

habilidade pudesse produzir. Tal, porém, infelizmente, não se verificou. Apenas dois

ou três – em toda a província – quiseram ou souberam compreender o valor do

trabalho em organização e corresponderam ao apelo como lhes foi possível ( O

Brado Africano, Lourenço Marques, p.3, 26 ago. 1928.).

Mesmo com dificuldades em conseguir participação dos moradores locais, a iniciativa

comentada pela folha concretizou-se no ano seguinte. Os registros fotográficos cedidos por

terceiros ou encomendados a um fotógrafo particular estão divididos em 10 álbuns que

mostram o cotidiano de Lourenço Marques (capital) e dos distritos de Gaza, Inhambane,

Quelimane, Tete e Cabo Delgado. O último volume da coleção trata especificamente dos usos

e costumes praticados pelos chamados indígenas. De modo geral, as imagens captam a inter-

relação cotidiana das pessoas em espaço público, enaltecem a infraestrutura das cidades,

apontam o sucesso de atividades econômicas e formulam uma sensação de bem-estar e

Doutorando em História. UNESP/Assis. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho

Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil.

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progresso. Entretanto, não deixam de transparecer a visão dos colonizadores a respeito dos

nativos.

Entitulado Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique, o conjunto

de fotografias reflete o olhar colonizador de seu editor, José dos Santos Rufino, e de seus

colaboradores, tenente Mário Costa (autor dos textos introdutórios) e padre Vicente do

Sacramento, sobre o caminho que os indígenas deveriam percorrer até alcançarem a cidadania

(SILVA, 2013: 12). Sendo assim, o propósito basilar das reflexões traçadas ao longo do artigo

é indagar particularidades da vivência de colonos portugueses em Moçambique, sua interação

com o ambiente criado pelo sistema colonial e posicionamento diante dos habitantes

originários da terra (particularmente os considerados indígenas). Acima de tudo, interessa

compreender os parâmetros sociais que foram capturados nas fotografias ou representados nas

mesmas.

Mundo português: passado glorioso e presente progressista.

Álbuns como os referidos acima são “um tipo de publicação no qual a imagem é

predominante e assume um papel ativo na construção de sentidos, articulando-se, ao invés de

submeter-se aos textos e legendas” (LIMA; CARVALHO, 1997: 19). Neste caso específico,

esta construção passa pela revitalização e idealização acerca do passado. Vários são os

registros de monumentos públicos criados para homenagear e rememorar expedições militares

que obtiveram êxito (Figura 1), bem como personalidades que se destacaram no processo de

colonização (Figura 2).

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Além disso, a existência do Museu Provincial (Figura 3), em Lourenço Marques,

demonstra que o governo não era relapso quanto à preservação da memória e da cultura. O

prédio é tradado na coleção de fotografias como um dos locais que precisam ser visitados

tanto por moradores da cidade quanto por turistas.

Figura 2- Estátua de Antonio Ennes, o

saudoso comissário da Província de

Moçambique, que foi um grande mestre e o

mais distinto colonial do nosso tempo.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos da

Colônia de Moçambique, vol.3, p. 10.

Figura 1- Recordando um passado

glorioso: Obelisco comemorativo das

Expedições a Kwamba e Mataca

(1898-1899) construído junto ao

Grêmio Militar.

Fonte: Álbuns fotográficos e

descritivos da Colônia de

Moçambique, vol.3, p. 44.

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Ao frisar a existência de construções que

preservam a memória da ação colonizadora em Moçambique, os organizadores dos álbuns

fotográficos deixam transparecer a crença em uma corrente ideológica em voga no período

tratado, a “missão histórica de colonizar e civilizar”. A exacerbação de que essas duas tarefas

específicas caberiam historicamente ao homem português servia de argumento para

fundamentar e legitimar o direto de ocupação dos territórios e submissão dos nativos africanos

(ROSAS, 2001: 255). O museu, assim como o censo e o mapa tonaram-se fundamentais na

“criação de imagens do Estado Colonial em relação à história e ao poder”

(ANDERSON,2008: 254). O artefato bélico registrado na varanda do Museu Imperial, o

obelisco em homenagem às missões militares bem sucedidas ou a estátua de um antigo

comissário da província materializam as lembranças sobre a imponência dos lusitanos diante

dos africanos e, ao mesmo tempo, reforçavam a concepção de que caberia aos colonos,

guiados pelo governo, levar adiante a empreita iniciada pelos seus antecessores. Segundo

Anderson (2008: 251), “era precisamente a reprodutibilidade cotidiana infinita de suas

insígnias que revelava o verdadeiro poder do Estado”. De certo modo, o passado endossava o

Figura 3- Varanda do Museu Provincial

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos

da Colônia de Moçambique, vol.2, p. 63.

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presente e os aparelhos estatais erigidos nas possessões africanas representavam a

continuidade dos esforços portugueses em construir um império além-mar.

Todavia, por mais relevante que fosse,

nem tudo se resumia ao já acontecido. O

contemporâneo também precisava ser

ressaltado e, inegavelmente, os Álbuns

Fotográficos e Descritivos da Colônia de

Moçambique forneceram indícios para se

entender o dia a dia na colônia. Mesmo que a

área rural seja lembrada e comentada, é o

espaço urbano o alvo principal das câmeras. As construções e pessoas nas cidades são

captadas em detalhes pelos fotógrafos,

notadame

nte em

Lourenço Marques.

Saúde e educação, temas caros especialmente à

população carente de recursos financeiros, são áreas cuja

assistência social se faz mais necessária. Talvez por essa

razão, as escolas (Figura 4) e hospitais públicos (Figura

5) sejam enfatizados nos álbuns.

Figura 4 - Escola Municipal Paiva

Martins / Nova Escola Central 1º de

Janeiro.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos

da Colônia de Moçambique, vol.2, p. 50.

Figura 5 - Hospital Miguel Bombarda: uma

das enfermarias para crianças.

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Os setores de comunicação e transporte também têm espaço nas páginas da

publicação. Telégrafo (Figura 6), ferrovia (Figura 7) e náutica (figura 8) são tratados como

sinônimo de opulência e progresso.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos da Colônia

de Moçambique, vol.2, p. 57.

Figura 6 - Uma seção da central

telegráfica.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos da

Colônia de Moçambique, vol.2, p. 48.

Figura 7 - O Depósito de Máquinas dos

C. F. L. M.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos da

Colônia de Moçambique, vol.2, p. 72.

Figura 8 – O vapor português “Angola”

da C. N. N., ao largar o Cais, a caminho

de Lisboa.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos da

Colônia de Moçambique, vol.2, p. 86.

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Oliva (2009: 42) afirma que a exaltação dos avanços tecnológicos implantados em

solo africano seria uma forma de revelar os “benefícios” da presença europeia no continente,

mesmo considerando-se que a maioria das obras realizadas estivesse endereçada ao

acomodamento dos lusitanos e barateamento da exploração realizada por eles. Henriques

(2004: 55), por sua vez, lembra que essa questão traz em seu bojo a autoafirmação de

distinção dos colonizadores em relação aos nativos. As cidades, as ferrovias, os barcos a

vapor, etc, poderiam revelar a pretensa superioridade europeia em comparação com o estado

de “selvageria” do indígena, capaz de “produzir pequenos barcos em troncos de árvores e

aldeias de palha”. Desta forma, a oportunidade de conviver com a “civilização” lusa e

compartilhar de seu progresso seria um presente aos africanos (Henriques, 2004: 431).

O sentimento de superioridade transformava-se, muitas vezes, em prerrogativa para

demarcar territórios, como pode ser observado no caso registrado na fotografia a seguir.

As legendas criadas para cada fotografia são relevantes. Elas podem conter tanto

informações que contribuem para o entendimento do que foi registrado, quanto indícios sobre

o imaginário do fotógrafo e da própria sociedade acerca do objeto, pessoa ou paisagem

eternizada pela câmera. Fotografia e legenda formam um todo indissociável, parte de um

mesmo corpo. Tal qual referido por Benjamim, “deve intervir a legenda, introduzida pela

fotografia para favorecer a literalização de todas as relações de vida e sem a qual qualquer

construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa”. (BENJAMIM,

Figura 9 - Teatro Gil Vicente: uma

popular casa de espetáculos

genuinamente portuguesa.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos

da Colônia de Moçambique, vol.3, p. 75.

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1994: 107). Os textos que acompanham as fotografias podem ajudar na compreensão das

mesmas ao marcar dados explicativos, como local, data, identificação dos fotografados, nome

do fotógrafo, dentre outros. Porém, eles ainda podem conter informações mais profundas, tal e

qual no caso da fotografia acima.

A menção “genuinamente portuguesa” carrega consigo uma carga simbólica que

relaciona automaticamente o teatro às práticas culturais lusitanas. Indiretamente, cria-se uma

referência de modernidade ancorada na tradição europeia ligada às peças teatrais que confere

distinção entre os lusos e os africanos. O grupo de pessoas em frente ao prédio parece

demarcar um território próprio ocupado por aqueles que são reconhecidamente portugueses e

preservam seus costumes mesmo longe de sua terra natal. As manifestações culturais

europeias, as construções urbanas erigidas pelo governo português e o desenvolvimento

tecnológico são incorporados pelos colonos como sinônimos de modernidade diante da

população nativa moçambicana e transfigurados em instrumentos de coerção e autenticação

de poder. Isto se torna mais contundente quando se averigua especificamente as opiniões dos

europeus acerca dos africanos e se observa as comparações feitas sobre as formas de viver de

cada um.

O Mundo africano: pobreza, exotismo e barbárie.

O décimo volume dos Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique é

direcionado estritamente para a descrição dos autóctones. Na obra podem ser encontradas

fotografias como a que assinala a existência de 15 mulheres enlaçadas a um único homem

(Figura 10). Na introdução do mesmo documento há

uma extensa explanação desdenhosa dos

organizadores sobre a organização do trabalho nativo na qual a incumbência de cultivar a

terra cabe ao sexo feminino, enquanto os homens passam o tempo “descansando e bebendo”.

Para os autores, que se intitulam “podres de civilização”, a conduta dos indígenas mostra-se

imoral e imprópria.

Figura 10 - Um régulo do Sábié que tem

"apenas"...15 mulheres.

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A projeção de avanço luso configura-se pela junção de elementos materiais e

imateriais. Vida urbana, obras de engenharia, casamento monogâmico firmado nos preceitos

católicos, subserviência feminina, dentre outras, são características associadas diretamente à

perspectiva de progresso e civilização. Aquilo que foge desse protótipo é aludido no discurso

colonizador como folclórico, exótico e até animalesco. Estabelece-se um juízo de valor que

apregoa a superioridade portuguesa em detrimento dos nativos africanos. Tal julgamento

sinaliza, instantaneamente, as posições ocupadas por cada grupo no âmbito social.

Silva se lembra de mais um detalhe que vem a calhar. Segundo ela,

Resta ainda acrescentar que, no respeitante às populações, as fotografias falam

tanto pelo que mostram como pelo que não mostram. No seu conjunto não

aparecem, por exemplo, os portugueses/europeus humildes, ou mesmo pobres, que

também habitavam os espaços retratados (SILVA, 2014: 75).

Em geral a disposição das fotografias e seu conteúdo sugerem que pobreza e

“imoralidade" seriam fardos carregados apenas pelos nativos, ainda imaturos e necessitados

da ajuda europeia para se transformarem e atingirem o patamar vivenciado pelos colonos.

Todavia, o cotidiano citadino suplanta a ordem imposta pelo desenvolvimento moderno e sua

tentativa de distribuir os signos, objetos e pessoas em lugares específicos. A imagem seguinte

(Figura 11) possibilita a visualização deste ponto.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos da

Colônia de Moçambique, vol.10, p. 05.

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Os dois primeiros (da esquerda para a direita) aparecem na cidade utilizando

vestimentas e ornamentos característicos de suas culturas. Há, inclusive, um tom jocoso e

depreciativo na legenda em relação ao homem que figura no centro da imagem, supondo que

o ocorrido pode gerar indisposição com a polícia fora da época da realização do carnaval. O

modo de porta-se dos indivíduos em evidência parece ser entendido como folclórico e

inoportuno para a vida na cidade. Já o terceiro personagem da cena surge como um

contraponto, pois está usando trajes característicos da indumentária europeia. A calça, os

sapatos, a gravata, o cinto, a camisa de mangas longas, aproximam o africano do modelo de

cidadão proveniente do velho continente e indicam uma apropriação de elementos culturais

típicos do colonizador.

Esta atitude gera comentários dos editores dos álbuns fotográficos:

Os usos e costumes de uma raça estranha são sempre curiosos. Grotescos, não!

Porque tão grotesco é o preto que se apresente numa cidade africana onde a

percentagem de brancos supercivilizados abunda, de smoking ou de casaca, calça

larga, botas de polimento, bengala pendente do braço... e de guarda-chuva aberto,

possivelmente sem chuva ou ainda sem sol – como o “Dandy‟ branco que nas ruas

de uma cidade europeia supercivilizadíssima, passeia o seu casaquinho curto,

Figura 11- "Páshiça" - o "galego"

africano. Condutor de "Ricshaw" com

os ornamentos esquisitos usados por

"colegas" estrangeiros, mas que a

polícia de Lourenço Marques não parece

disposta a permitir...fora da época

carnavalesca. um "monhé" africano.

Fonte: Álbuns fotográficos e descritivos da

Colônia de Moçambique, vol.10, p. 16.

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demasiado curto, e a calça de meio metro de diâmetro cobrindo-lhe o sapato e

tocando no solo e usando mais para rotular a moda, um monóculo desconcertante

em vidro de vidraça. (Álbuns fotográficos e descritivos da Colônia de

Moçambique,vol.10, p. 7)

Percebe-se que a postura não agrada os responsáveis pela produção das imagens. Cria-

se uma dupla rejeição: tão ou mais “estranho” que os costumes dos africanos é o fato de eles

se revestirem de europeus em sua terra de origem. As cidades construídas pelos portugueses

facilitaram o convívio com os primeiros habitantes da região e a defesa da tese de que os

europeus seriam portadores de uma “supercivilização” desclassificou as formas de viver dos

colonizados. Entretanto, as manifestações culturais africanas não deixaram de se apresentar

cotidianamente, mesmo em uma situação de subordinação econômica e social.

Considerações Finais

Os Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colônia de Moçambique são exemplos da

propaganda feita por Portugal acerca de suas colônias. Eufóricos e elogiosos quanto à

iniciativa governamental e particular de desbravar novas terras e estender os limites nacionais,

exprimiram peculiaridades do pensamento racista europeu. Atribuindo-se o papel de detentor

da civilidade, os lusitanos frequentemente desmereceram os modos de vida dos africanos e

justificaram suas ações por meio da alegação de que seriam portadores e produtores do

progresso nos territórios africanos.

O resgate da tradição ibérica, as obras coloniais e, principalmente, o contraponto com

os hábitos dos nativos substanciaram a elaboração ideológica da existência de um mundo

lusitano em terras africanas e dificultaram a expressão daqueles que estavam fora desse

círculo. Mas o contato cotidiano rompeu com muitas das barreiras criadas entre europeus e

africanos e proporcionou situações em que a ordem imposta pôde ser transgredida ou

reformulada.

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Referências bibliográficas

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ROSAS, Fernando. História de Portugal: o Estado Novo (1926-1974). Lisboa: Editorial

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