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1 UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES / AVM PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU PSICOMOTRICIDADE: Contribuições para mobilização de emoções reprimidas Amanda Arêdes dos Santos ORIENTADOR: Profª.Ms.Fátima Alves orientador) Rio de Janeiro 2016 DOCUMENTO PROTEGIDO PELA LEIDE DIREITO AUTORAL

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES / AVM

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

PSICOMOTRICIDADE: Contribuições para mobilização de emoções reprimidas

Amanda Arêdes dos Santos

ORIENTADOR: Profª.Ms.Fátima Alves orientador)

Rio de Janeiro 2016

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UTORAL

2

UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES / AVM

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

Apresentação de monografia à AVM como requisito parcial para obtenção do grau de especialista em Psicomotricidade. Por: Amanda Arêdes dos Santos

PSICOMOTRICIDADE: Contribuições para mobilização de emoções reprimidas

Rio de Janeiro 2016

3

AGRADECIMENTOS

Agradeço, em primeiro lugar, a Deus pelo sopro da vida. Em segundo,

aquela que me permitiu existir e ser: minha mãe Sandra Arêdes, por sua

dedicação, empenho e carinho, sempre ao meu lado em todos os momentos de

nossas vidas e principalmente por seus exemplos, fundamentais para que me

tornasse o ser humano que sou e a profissional que sou, pois só sou o que sou

por sua causa. Serei eternamente grata a seu amor incondicional e seus

sacrifícios incessantes e incansáveis.

À Profª Ms Fátima Alves pela dedicação, paciência e orientação

quanto à realização deste trabalho, incentivando, acreditando e auxiliando de

maneira perspicaz na execução desta tarefa.

Aos professores que passaram pela minha vida, principalmente

aqueles que permanecerão nela, pela ampliação de horizontes e possibilidades

de compreensão do mundo, pois de forma pertinente mostram que tudo pode ser

relativizado e questionado.

E finalmente à minha família, ao namorado e amigos pela

compreensão dos momentos de reclusão, ausência e escassez de convívio.

4

DEDICATÓRIA

Dedicado à minha mãe, que é mãe e pai, me deu

a vida e lutou por mim, estando ao meu lado em

todos os momentos, orientando e dando suporte

necessário para meu crescimento.

5

RESUMO

A presente pesquisa tem por objetivo contribuir para a compreensão

das questões psíquicas que podem surgir através da manipulação corporal e

também como instrumento de trabalho destas emoções reprimidas, surgindo

como ferramenta de mobilização emocional. Pretende-se ainda compreender

sobre de que forma a psicomotricidade pode auxiliar a Psicologia a trabalhar no

individuo suas emoções reprimidas, além de esclarecer e apontar as

contribuições da psicomotricidade para o saber da psicologia. Ademais, buscará

entender a relação entre corpo, emoções e sintomas (psicossomática) e

determinar e orientar os tipos de estratégias de trabalho corporal para

mobilização emocional.

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METODOLOGIA

Esta pesquisa, a qual busca apontar sobre a possível contribuição da

psicomotricidade ao trabalho da psicologia clínica, no que concerne à

metodologia de análise utilizada, será estritamente bibliográfica, documental,

através de análise de livros, publicações de pesquisas e/ou artigos compatíveis

com o sugerido, a fim de que desta forma possa-se discorrer eficiente e

consistentemente sobre o tema proposto.

Considera-se que um trabalho teórico, que se propõe a elucidar sobre

os conceitos e problemas dos quais partiu sua formulação, é imprescindível para

o avanço do conhecimento e aplicabilidade de um novo olhar sobre a atuação

do profissional em questão.

Desse modo, a proposta programática das atividades pertinentes à

confecção deste estudo orienta a organizar-se primeiro na leitura de obras de

teor da psicomotricidade, partindo, dentre outras, das elaborações teóricas de

Alves (2011), pois se acredita ser necessário compreender sobre essa teoria, a

fim de embasar o assunto a ser discorrido, e também sobre obras da psicologia,

por ser importante contextualizar sobre o que esta ciência entende sobre corpo,

afeto e trabalho corporal, tendo como base os textos de Reich (1998) e Freud

(1996), como exemplo.

Após, serão expostos estudos sobre a história do corpo com objetivo

de esclarecer sua importância para uma possível manipulação emocional, a

saber Lowen (1977) e, e também através de leitura de artigos De Mendes (2010).

Na próxima etapa, utilizando os itens elencados acima, haverá a

tentativa de demarcar os atravessamentos e intersecção entre a

psicomotricidade e a psicologia clínica para, por fim - mediante análise de toda

contribuição teórica e prováveis intervenções clínicas do psicólogo que poderá

usar de ferramentas psicomotoras para mobilização dos sentimentos embotados

7

no sujeito de sua análise - concluir sobre os benéficos de tal medida na promoção

e prevenção de desajuste emocional e de apropriação emocional.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 09

CAPÍTULO I

O corpo e o inconsciente – Sobre a psicomotricidade e a psicologia 12

CAPÍTULO II

A história do corpo: compreensões sobre a construção da noção de corpo

como instrumento de trabalho 19

CAPÍTULO III

Corpo, emoção e sintoma: o trabalho corporal para mobilização emocional. 28

CONCLUSÃO 38

BIBLIOGRAFIA 42

ÍNDICE 44

9

INTRODUÇÃO

Matthew Quick, um autor estadunidense de romances, dentre suas obras

literárias, escreveu um livro chamado “O Lado Bom da Vida”. Nele, o

personagem principal Pat Peoples, um professor que acaba de sair de uma

instituição psiquiátrica, onde acredita ter passado apenas alguns meses, e

embora não consiga se lembrar o motivo que o fez permanecer este tempo por

lá, sabe apenas que sua mulher Nikki, pediu que ficassem um período

separados. Então, Pat, ao sair desse “lugar ruim” encontra sua vida bagunçada:

um pai que não fala com ele, uma esposa que o evita – da qual deve permanecer

distante – e uma memória repleta de lapsos.

Nesse ínterim, ele se torna viciado em exercícios físicos e precisa encarar

uma realidade não muito promissora. Os amigos evitam comentar o que

aconteceu antes da internação, Pat sofre de delírios auditivos e surtos de

violência, além do mais tem diagnóstico de bipolaridade. Encontra-se em

acompanhamento psicológico, pois está determinado a reorganizar a situação e

reconquistar sua mulher. Ele crê em finais felizes e no lado bom da vida.

Desacreditado por todos, menos por sua mãe, em um jantar na casa de

seu melhor amigo, o personagem conhece Tiffany, uma recém-viúva e que

também faz tratamento psicológico. Ela passa a segui-lo em suas corridas e os

dois viram amigos.

A partir disso, Tiffany terá um papel fundamental e de grande importância

na história de Pat. Ambos têm problemas psicológicos e precisam de auxilio

profissional; ademais, um entende o outro pois passam pelas mesmas

dificuldades. Tiffany tenta ajudá-lo a alcançar seu objetivo, porém impõe como

condição que ele a ajude também, sendo seu parceiro num concurso de dança.

É neste ponto da história em que a maior mudança na vida de Pat ocorre.

Através da dança, do movimento do corpo, ele constrói uma relação de troca e

cumplicidade, de aceitação da sua subjetividade. Foi por meio do afeto, do

acolhimento da sua idiossincrasia, da mobilização corporal, que os sintomas

emocionais e psíquicos foram sendo mobilizados e estabilizados.

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Tanto a Psicomotricidade quanto a Psicologia apostam no afeto como

instrumento de trabalho. O ato psicomotor está no dia-a-dia, presente nas

relações cotidianas. Muitas vezes necessita de um olhar atento e repleto de

afetividade para ser percebido e vivenciado.

Tal como propõe esta pesquisa, o livro nos faz refletir sobre a importância

da psicomotricidade no campo clínico de atuação da psicologia por mostrar a

importância do movimento corporal para abarcar os sintomas reprimidos e trazer

à tona as emoções embotadas, promovendo assim mudanças consistentes e

duradouras.

É sobre este tema que este estudo irá dissertar, na tentativa de

compreender sobre tal mecanismo de mudança e a utilização e contribuição da

psicomotricidade para um autoconhecimento e mobilização de emoções

embotadas, no intuito de assim como aconteceu com o personagem supracitado,

promover saúde psíquica e ajustamento emocional através do movimento

corporal.

A psicomotricidade é uma ciência relativamente recente, como veremos a

diante, criada a partir de influência científica de diversos campos de

pensamentos e teorias de vários ramos como a biologia, psicanálise e a

psicologia, e surge com o intuito de trabalhar o corpo e compreendê-lo. Relatos

sobre a importância do trabalho com o corpo aparecem na história da sociedade

muito antes desta se firmar como um saber.

Houve uma época em que o pensamento acerca da relação entre mente

e corpo era dicotômica, ou seja, eram compreendidos de forma distinta e

distante, impossibilitando qualquer relação entre as duas esferas. O presente

trabalho de pesquisa indireta, por meio de estudo bibliográfico, se propõe a tentar

evidenciar a relação íntima e interrelacionada entre tais instâncias, através do

olhar da psicomotricidade como meio de atuação.

Intenciona ainda propor uma nova contribuição ao campo de atuação da

psicologia clínica, visto que defende a possibilidade de, com intermédio da

psicomotricidade, acessar os conteúdos emocionais não manifestos

conscientemente, por meio da fala, que podem vir a se instaurar no indivíduo, no

corpo, como sintoma.

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Ao longo dos capítulos expostos a seguir, pretende-se refletir sobre a

capacidade do uso de estimulação corporal para mobilizar esses sentimentos e

emoções reprimidos a fim de evitar a psicossomática e trazer tais embotamentos

da psique à tona, à consciência, para que sejam trabalhados de maneira eficiente

no setting terapêutico.

12

CAPÍTULO I

O CORPO E O INCONSCIENTE – SOBRE A

PSICOMOTRICIDADE E A PSICOLOGIA

O papel desempenhado pelo corpo no campo terapêutico tem sido

objeto de estudo e propostas de pesquisa da saúde, que desejam entender o

corpo como mediador da relação entre o mundo interno (mente) e o externo

(expressão), ou seja, como este pode ser utilizado como instrumento de auxílio

terapêutico a fim de trazer os conteúdos da psique à tona, sendo manifestados

pelo corpo de forma consciente e, assim, proporcionando uma consciência

corporal que passa a possibilitar uma expressão fluida das emoções reprimidas,

evitando que se instaure como doença, seja mental ou física.

Acredita-se que, por meio do trabalho com o corpo, da manipulação

corporal, as emoções reprimidas podem ser mobilizadas e reconfiguradas,

possibilitando uma nova forma de análise do conteúdo inconsciente. A

psicomotricidade surge nesse campo como mediador importante, visto ser “uma

ciência-encruzilhada, (...) uma técnica em que se cruzam e se encontram

múltiplos pontos de vista, e que utiliza as aquisições de (...) ciências” como

biologia, linguística, sociologia, psicanálise e psicologia e seu objeto de estudo

é “o indivíduo e suas relações com o corpo (...), mas, que além disso, é uma

terapia, (terapia psicomotriz) que dispõe-se a desenvolver as faculdades

expressivas do indivíduo” (COSTE, 1978, p.09).

A psicomotricidade entende o indivíduo como um ser emocional,

motor e cognitivo e, dessa forma, trabalha o sujeito como um todo. Assim como

a psicologia, considera as funções cognitivas, motoras, emocionais e as

interações psicossociais necessárias para um bom desenvolvimento integral do

ser. E, através do movimento corporal, pode ser considerada um instrumento na

busca de consciência cognitiva e com finalidades expressivas destas. A

psicologia entende que as vicissitudes inconscientes não manifestas tendem a

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se instaurar no corpo como sintoma. Dessa forma, encontramos uma interseção

significativa entre os dois saberes.

Tal interseção se faz importante nesta pesquisa visto tratar-se de uma

tentativa de apontar as contribuições da psicomotricidade ao trabalho do

psicólogo, que necessita auxiliar seu paciente/cliente a encontrar um ponto de

equilíbrio entre os conteúdos manifestos de seu consciente e os não manifestos,

que podem por tanto ser suprimidos e tal energia voltada para o corpo, como

sintoma.

A psicomotricidade fornece “uma nova concepção radicalmente nova

do corpo e obriga a pensar as estruturas “psicossomáticas” (...) em termos (...)

do conjunto de símbolos corporais (“linguagem do corpo”)” (COSTE, 1978, p.09).

Esclarece que “não se trata de justapor a alma e o corpo (...), mas de deslocar a

problemática cartesiana e reformular as relações entre a alma e o corpo”,

colocada muitas vezes em oposição. Na prática, a psicomotricidade “empenha-

se em superar essa oposição: o homem é seu corpo” (COSTE, 1978, p.09), pois

“é um ser falante, que fala de seu corpo e seu corpo fala por ele. Esse é o objetivo

da reeducação psicomotora, isto é, desenvolver o aspecto comunicativo do

corpo” (COSTE, 1978, pp.09 e 10).

A psicologia entende não haver uma separação entre mente e corpo.

A psicomotricidade também, dada sua visão holística (integradora) do ser

humano. Compreende-se assim o corpo como fonte de acesso às emoções.

Esta pesquisa propõe pensar num sentido inverso ao da “somatização”, em que

se acredita que os conteúdos não manifestos poderão ser reprimidos no corpo,

e pretende discutir as maneiras pelas quais tocar o corpo possibilita acessar e

liberar as emoções reprimidas e inconscientes, auxiliando no processo

terapêutico.

É no corpo onde as dificuldades de comunicação entre o meio interno

e externo do sujeito são condensadas e expressas. O médico e terapeuta

Rüdiger Dahlke, juntamente com o psicólogo Thorwald Dethlefsen (2010),

compreende a doença por um novo prisma, de forma construtiva. As doenças

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têm significado simbólico e indicam conflitos não resolvidos na alma. A pessoa

acometida pela doença estaria, assim, dando um passo em direção ao

amadurecimento, ao autoconhecimento, em busca de sentido, compreensão do

sintoma e, por fim, em direção da libertação. Portanto, afirma ser preciso decifrar

o significado da doença, de forma gradativa.

Queremos dizer com isso que, com o resgate desse processo de

conhecimento é conferida uma nova visão positiva acerca do sintoma, surgindo

como oportunidade de compreender o que falta no sujeito, ou seja, o que o corpo

“está falando”. Sendo um meio simbólico de expressão do corpo, a doença é um

estado do sujeito e indica uma desarmonia da consciência manifestando-se no

corpo como sintoma: “o sintoma é um sinal e um transmissor de informação”

(DAHLKE, 2000, p.17). São expressões físicas de conflitos da consciência e

necessitam de atenção e interpretação a fim de que, através da tomada de

consciência de tais aspectos desconhecidos, haja a mobilização destas energias

e assim o sintoma desapareça.

O professor português de neurociência, Antônio Damásio (2000),

afirma que todos os seres humanos, independente de cultura, nível social e

econômico, tem emoção. A saber:

A menção da palavra emoção em geral traz à mente uma das assim chamadas emoções primárias ou universais: alegria, tristeza, medo, raiva, surpresa ou repugnância. As emoções primárias facilitam a discussão do problema, mas é importante notar que existem muitos outros comportamentos aos quais se apôs o rótulo “emoção”. Eles incluem as chamadas emoções secundárias ou sociais, como embaraço, ciúme, culpa ou orgulho, e também o que denomino emoções de fundo, como bem-estar ou mal-estar, calma ou tensão. O rótulo “emoção” também foi aplicado a impulsos e motivações e a estados de dor ou prazer (DAMÁSIO, 2000, p.103)

O impacto destas emoções, que são voltadas para a fora, é visível e

expressável, sejam quais forem as causas e suas nuances – sutis ou não,

refinadas ou não –, é expressa por intermédio do que é privado, ou seja, dos

sentimentos, mas que “o impacto integral e duradouro dos sentimentos requer a

consciência, pois somente em conjunção com o advento de um sentido do self

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os sentimentos tornam-se conhecidos pelo indivíduo que os tem” (DAMÁSIO,

2000, pp.73 e 74). Supõe-se que “o estado de sentir não implica,

necessariamente, que o organismo que sente tem plena consciência da emoção

e do sentimento” (DAMÁSIO, 2000, p.74) e que a consciência está alicerçada na

representação de corpo.

Tal representação, se dá no corpo por meio de contração muscular da

face para assumir um aspecto relacionado à felicidade ou tristeza, como

exemplo, ou mesmo de órgãos internos como coração acelerado. Diferente das

emoções, os sentimentos provocados por estas não são necessariamente

compreendidos e percebidos conscientemente.

A construção da identidade forma-se num processo de reorganização

e construção da autoconsciência. Um dos objetivos da psicoterapia é, dentre

outros, o fortalecimento da autoconsciência e individuação. Busca colaborar na

estruturação da autenticidade própria e pessoal do indivíduo, auxiliando a este

se reconhecer no mundo. Porém a sociedade cobra uma grande capacidade de

autorregular as emoções, impondo um autocontrole sobre a expressão dos

sentimentos, cabendo ao sujeito reprimir seus ímpetos.

Ademais, tal hábito acaba por adormecer o indivíduo, tornando-o

gradativamente menos consciente de seus sentimentos e desejo. Os prejuízos

à saúde psíquica podem variar dependendo do estilo de vida e idiossincrasias.

Tanto com crianças, adolescentes e adultos “sob o peso da educação, aprende-

se a negar as necessidades do corpo e seus desejos, a mascarar as suas

exigências” (COSTE, 1978, p. 47). A anulação da individuação, se dá através da

impossibilidade de dar sentido aos fatos e sentimentos ocorridos.

Segundo Rocha (2011), o comportamento, objeto de estudo da

psicologia, pode ser determinado e influenciado pela emoção e esta pode

desencadear um ato motor voluntário ou involuntário. Nesse contexto, aponta a

consonância entre os saberes da psicologia e da psicomotricidade, pois

“psicomotricidade é uma ciência que tem por objetivo o estudo da relação entre

o pensamento e a ação, envolvendo a emoção, atende a todas as áreas que

trabalham com o corpo e com a mente do ser humano” (ROCHA, 2011, p.52) e

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objetivando facilitar o acesso às emoções e desenvolvimento global através da

motricidade em busca de um crescimento e equilíbrio emocional.

A causa principal dessa descompesação física, que aparece no corpo

está na esfera emocional da pessoa, ligada portanto à sua mente, aos seus

sentimentos, à sua afetividade. As relações entre o corpo e a mente são mais

próximas do que costumamos imaginar e os mecanismos inconscientes são

muito presentes nessa ligação

Atualmente, no campo da psicologia, percebe-se uma habitual

tentativa de reduzir o psíquico ao comportamento, pouco se busca compreender

o que está por detrás da expressão fenomenológica do sintoma, assim

depreciando o seu contexto subjetivo. Em contrapartida, um novo movimento

teórico busca entender o sintoma por expressão de aspectos inconscientes da

mente, isto é, é através do sintoma que o corpo representa os conteúdos

represados e não verbalizados, um tipo de narração do corpo sobre os

problemas psíquicos não elaborados. “Os sintomas podem ser considerados a

forma física de expressão dos conflitos e, através do seu simbolismo, tem a

capacidade de mostrar aos pacientes em que consistem seus problemas”

(DETHLEFSEN, 2000, p. 07).

O corpo tende então a servir como um caminho para acesso aos

conteúdos não manifestos pelo método tradicional, ou seja, pela narrativa. É por

meio desta sinalização corporal dos conteúdos manifestos que o conteúdo

velado e não narrado da psique vem sendo compreendido como uma forma

singular de possibilidade de que a psique não seja calada.

Em muitas situações clínicas, essas expressões negligenciadas da

mente produzem situações paradoxais, visto não serem raros os casos em que

nos deparamos com pacientes cujas queixas e sintomas permanecem refratários

a todo esse processo resultante da impossibilidade de identificação das

dinâmicas etiológicas das queixas e da sintomatologia. Diante dessa

impossibilidade de identificar e nomear a cerne da queixa, o sintoma tende a

retornar.

17

Neste ponto, fica clara a necessidade e importância não apenas de

reconhecer, mas, sobretudo, de compreender e tratar em sua plenitude os

fenômenos relacionados às interações entre mente e corpo. Os psicomotricistas

buscam descrever e explicar as relações causais entre ambos. Esse hábito

busca compreender que as manifestações ou queixas voltadas ao corpo são

apenas uma das modalidades possíveis de expressão psíquica, indicando uma

fonte de sofrimento humano.

Movimento é uma noção complexa, “um termo genérico, que abrange

indistintamente os reflexos, os atos motores conscientes ou não, normais ou

patológicos, significantes ou desprovidos de significado” (COSTE, 1978, p35). A

psicomotricidade busca através de projeto motor proporcionar intencionalidade

aos atos, pois assim é possível trazer consciência ao gesto motor, pois os

movimentos “envolvem o conjunto da personalidade (...) é determinado, contudo,

por motivações que lhe são próprias” (COSTE, 1978, p.37/38).

O trabalho psicomotor entende a comunicação como uma função

essencial na reeducação psicomotora. “Uma vez que a psicomotricidade leva em

conta o aspecto comunicativo do ser humano, do corpo e da gestualidade, ela

resiste a ser uma educação mecânica do corpo (...). Os gestos querem dizer

algo, o corpo tem um sentido que pode ser interpretado” (COSTE, 1978, p.39).

Segundo Coste (1978), a linguagem corporal é construída através da

tentativa de elucidar os signos gestuais e a significação que pretende emitir,

podendo todos os gestos, atitudes e comportamentos corporais serem passiveis

de interpretação. Entende linguagem corporal “ou linguagem do corpo o conjunto

de atitudes e comportamentos que têm um sentido para outrem, ou para um

suposto interlocutor” (COSTE, 1978, p. 42).

Sobre o lugar, o papel e a importância da linguagem corporal em

relação à linguagem verbal, “o corpo não é apenas um auxiliar do verbo, uma

espécie de semáforo reproduzido por gestos e a fala (...) é um lugar original de

significações específicas e, (...) produto e gerador, ao mesmo tempo de signo”

(COSTE, 1978, p. 46).

18

A psicologia entende que o sintoma é uma espécie de antítese da

psique, pois se apresenta no corpo como um espelho do que falta ser

confrontado no inconsciente, como algo que precisa ser entendido no processo

de estruturação dos polos consciente e inconsciente, onde o que surge como

sintoma é o que falta ser elaborado pela psique. Aparece para designar um

sentido em função de outro, ou seja, como uma narrativa corporal, onde por

intermédio do sintoma, a psique se expressa. De acordo com Dethlefsen (2000),

corpo é palco dos acontecimentos da alma. A doença é o grito de uma alma

agredida e o meio de expressão do corpo é linguagem simbólica.

Trata-se, pois, como papel do psicoterapeuta ajudar a descobrir o que

a agride. Tal ato é possível por este auxiliar o sujeito a tomar consciência de

seus atos, de suas possibilidades e limites.

Por meio da percepção sobre a importância da mútua atuação entre

psicomotricidade e psicologia – visto ambas permitirem o desenvolvimento das

potencialidades expressivas do paciente/cliente –, e através da libertação das

emoções inscritas em seu corpo e do reconhecimento corporal é possível

proporcionar a desconstrução de simbologias da psique e assim poder colaborar

para a abertura do indivíduo rumo à comunicação com o outro, viabilizando a

sociabilização e a interação social.

É através da manipulação corporal, objeto de atuação da

psicomotricidade e da mobilização da emoção contida neste corpo que o trabalho

do psicólogo se constrói. Com o objetivo de proporcionar ao sujeito crescimento

e autoconhecimento de seus mecanismos de repressão, esse olhar para o corpo

poderá trazer benefício à busca por equilíbrio emocional.

19

CAPÍTULO II

A HISTÓRIA DO CORPO: COMPREENSÕES SOBRE A

CONSTRUÇÃO DA NOÇÃO DE CORPO COMO

INSTRUMENTO DE TRABALHO

O conceito de corpo é natural e cultural e, assim, abre uma gama

diferenciada de posicionamentos teóricos, filosóficos e antropológicos. Não

somente enquanto resultado de componentes orgânicos, o corpo se revela

também enquanto aspecto social, cultural, psicológico, religioso, dentre outros.

Está presente como motivador dentro das relações quotidianas, portanto permite

a comunicação através de gestos, signos de linguagem, vestimentas, além de

permitir, por meio da subjetividade, produzir sentidos, afeto, emoções e troca

com o outro e o meio que o cerca.

Objetivando entender o papel do corpo no processo terapêutico como

possível instrumento de acesso às emoções reprimidas, é necessário que se

compreenda o caminho percorrido por este no campo psi. Para tal é

imprescindível uma breve circulação pela história, a fim de observar o modo

como o corpo foi pensado e sentido neste contexto.

Considerando como um marco da compreensão da função do corpo

no palco terapêutico, e início de um novo olhar sobre este, começaremos com a

noção da psicanálise, seu olhar e contribuição, acerca da histeria, que surge num

momento histórico de extrema repressão sexual e cultural, momento em que o

corpo passa a pedir ajuda de modo taxativo e a provocar a atenção dos médicos

em busca de auxílio e estudo.

Após, buscaremos entender a visão de Wilhelm Reich acerca do

processo de encouraçamento corporal oriundo da suposta repressão sexual e

terminaremos com uma análise da psicossomática e sua visão sobre o papel do

corpo no processo de adoecimento e as influências das emoções reprimidas

diante deste mecanismo.

20

2.1. A Histeria

A histeria1 foi, na Europa do século XIX, conhecida como a doença do

momento e acometia principalmente mulheres. Por ser considerada um enigma,

chamou a atenção de médicos visto não possuir um referencial anatômico, ou

seja, uma sintomatologia regular que remetesse a lesões orgânicas identificáveis

pela anatomia patológica.

O médico Jean-Martin Charcot (1825-1893), um eminente

neurologista, é o primeiro a introduzi-la no campo das perturbações fisiológicas

do sistema nervoso e, dessa forma, possibilita a procura por novas formas de

intervenção clínica, dentre as quais a hipnose, que vai se apresentar como a

mais importante neste momento histórico. Era através da sugestão hipnótica que

o médico podia obter um conjunto de sintomas histéricos bem definidos e regular,

tendo por objetivo o controle da crise histérica.

Na tentativa de entender profundamente o evento histérico, Charcot

elabora a “Teoria do Trauma” e nele compreende que o trauma levaria a pessoa

a um estado hipnótico permanente podendo ser apresentado corporalmente

como sintoma.

Tais acometimentos histéricos e estudos sobre o caso incitaram o

médico e neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939) a buscar mais

conhecimento sobre o tema. Percebendo que o procedimento proposto por

Charcot eliminava o sintoma, mas não a raiz do problema, a causa, Freud

encontrou no método de Josef Breuer (1842-1925), médico austríaco que

descobriu através da indução à recordação de experiências traumatizantes, um

novo método: a “Terapia da Conversa”, cuja possibilidade de compreensão sobre

a histeria mostrou-se mais clara. O método propunha que, por intermédio da

hipnose, o paciente remontasse a pré-história psíquica da doença para que

1 Histeria: uma psiconeurose onde os conflitos emocionais inconscientes aparecem na forma de

uma severa dissociação mental ou como sintomas físicos (conversão) e dentre os sintomas clássicos havia manifestações de tosse, sensação de sufocação, reações dramáticas, paralisia dos membros, desmaios, mutismos repentinos e outros. (CABRAL, 1971, p.178)

21

pudesse ser identificado o acontecimento traumático através da descarga do

afeto (emoção) que estava ligado a esse evento.

Segundo Freud (1996), para que uma lembrança reprimida fosse bem

elaborada e, portanto, não se apresentasse no corpo como sintoma, era preciso

que o afeto recalcado durante o evento traumático fosse extrapolado da forma

mais clara e com maior riqueza de detalhes possíveis. Para isso, sugeriu que o

indivíduo extrapolasse o afeto através da reação (expressão linguística ou

movimento) e indicou que se compreendesse então toda a classe de reflexos

voluntários e involuntários – das lágrimas aos atos de vingança – nos quais os

afetos eram ab-reagidos2, pois quando a reação (ato motor) era reprimida, o

afeto (emoção) permanecia vinculado à lembrança.

Freud (1996), juntamente com Breuer (1842-1925), indicam que a

histeria tem pontos fundamentais e que devem ser considerados: os sintomas

histéricos fazem sentido; evidenciam a existência de um evento traumático

(trauma) que provocara a doença, sendo ligado a impulsos libidinais reprimidos;

e a lembrança desse trauma e sua ab-reação seriam a porta para a cura.

Freud, ao iniciar suas pesquisas sobre as manifestações do

inconsciente, passou a permitir que seus pacientes falassem livremente o que

lhes viesse à cabeça sem repressão – método que denominou de associação

livre – tornando-se o primeiro médico a voltar seu olhar (e a escuta) à linguagem

do inconsciente. Por intermédio da narrativa, começou a perceber a importância

e o significado dos sintomas que costumavam emergir quando a mente

consciente não estava no controle das situações.

2.2. A Psicanálise

A psicanálise surge a partir da descoberta do inconsciente e,

principalmente, após o encontro de Freud com a histeria e, principalmente, com

2 Ab-reação: frequentemente empregada por Freud como sinônimo de catarse. É uma remoção

de obstáculos emocionai à livre expressão de ideias e sentimentos reprimidos, mediante a revivência do material reprimido através de afetos e conversas que se desenrolam num quadro exclusivamente terapêutico (CABRAL, 1971, p.17)

22

a histérica. Em uma cultura extremamente patriarcal, o mesmo dá voz à mulher

que se encontrava histérica e doente, ou seja, uma parcela da sociedade

excluída e menosprezada, enxergando nela uma manifestação psíquica, isto é,

uma maneira de dar significado ao corpo e ao mundo.

Constitui-se enquanto ciência por meio de um arcabouço de

conhecimento teórico que a sustenta e se desenvolve através de seus princípios

fundamentais, sem os quais não seria reconhecida: “o princípio básico da

psicanálise, o seu elemento fundador, a partir do qual todos os outros são

gerados e com o qual mantém relação de dependência, é o princípio da

existência de processos anímicos inconscientes, ou seja, a existência de um

inconsciente dinamicamente ativo” (MENDES, 2010, p.1356).

Nesse ponto, passa a ser importante compreender de que forma o

inconsciente funciona, a sua dinâmica e a maneira como se relaciona com o

consciente. Assim surge o “segundo ponto fundamental da teoria psicanalítica:

a hipótese de que o inconsciente está, em relação à consciência, dinamicamente

reprimido, isto é, o inconsciente não pode chegar à consciência porque algo o

detém (...), uma dinâmica de forças antagônicas em luta permanente” (MENDES,

2010, p.1356).

A teoria levantada por Freud acerca da existência no inconsciente de

aspectos reprimidos, busca entender qual o conteúdo que o inconsciente reprime

para assim trazer à consciência tais fatos e proporcionar com isso a fluidez das

emoções reprimidas e atreladas a estes aspectos. Essa busca leva-o ao conceito

de sexualidade, onde observa sobre o corpo ser zona erógena e fonte de prazer

e que a maioria dos pensamentos reprimidos seriam de cunho sexual.

O médico, ao avançar seus estudos, identifica que por meio do

complexo de édipo3, o desenvolvimento da função sexual passa a ser

3 O complexo de Édipo: uma fase do desenvolvimento psicossexual infantil, entre os 3-5 primeiros

anos da criança, tem papel fundamental na formação da personalidade e na orientação do desejo humano. Considerado o complexo nuclear das neuroses. Desempenha as funções de: definição quanto a escolha do objeto amoroso; acesso à genitalidade, na medida em que a simples maturação biológica não o garante, e efeitos sobre a estruturação da personalidade. (CABRAL, 1971, p.17)

23

considerado um novo ponto fundamental na obra psicanalítica, e encontra maior

esclarecimento, abrindo para a psicanálise a discussão entre biologia e cultura.

Acredita ser no descompasso entre o desejo e a impossibilidade de sua

realização que se chega ao que Freud denominou de sepultamento do Complexo

de Édipo, no sentido de que diante da impossibilidade de completude do ato

(desejo contra realização), ocorre o abandono dos desejos edipianos.

Segundo a teoria freudiana, é através das complexas relações que o

indivíduo cria durante a sua existência que o ser humano constitui-se. É por meio

dessas relações que a vida psíquica surge, e são permeadas por conflitos. Há

um embate de forças psíquicas por trás destes conflitos, como o desejo e a

censura, que deixam marcas no psiquismo, podendo voltar em determinadas

atitudes e atos. “Toda manifestação incomum, ou mesmo o modo de ser do

sujeito, aponta seu percurso ao longo da sua história de vida, ou seja, de suas

relações com Outrem” (FREUD, 1986).

2.3. As Couraças Corporais

Discípulo de Freud, Wilhelm Reich (1897-1957) foi um psicanalista

austríaco, e que, a partir da Psicanálise, desenvolveu uma nova abordagem

terapêutica na qual, inclui as intervenções corporais, além das intervenções

verbais, de fundamentação psicanalítica. Inicialmente chamada de

Vegetoterapia Caractero-Analítica e posteriormente de Orgonoterapia,

atualmente é conhecida como Psicoterapia Reichiana.

Reich foi responsável por trazer o corpo para a compreensão do

processo psíquico, ao compreender que as formas de subjetivação de nosso

momento social favorecem adoecimentos psíquicos. É considerado um

importante desbravador no estudo dos fenômenos psicossomáticos e suas

descobertas não se limitam a explicar o envolvimento psíquico nas doenças

24

orgânicas, mas também o envolvimento de disfunções corporais no caráter

neurótico e nas psicopatologias.

Para Reich (1998), a formação do caráter nasce como um modo

definido de superação do complexo de Édipo, e está diretamente ligado às

condições sociais que predominam e sujeitam à sexualidade infantil. Sendo

assim, juntamente apresentam-se desejos genitais intensos e um ego fraco, que

por medo de punição (social), é recalcado, como medida de prevenção e

proteção, represando assim os impulsos.

A tentativa de manter o controle, através de medidas para amparar o

medo, resulta na transformação e restrição do ego “gerando os primeiros sinais

do caráter” (MENDES, 2010, p.1356). As primeiras restrições do ego, apesar de

o fortalecerem, por meio da tentativa de evitar as situações perigosas e por ele

estimuladas, não são suficientes para domar as pulsões4, assim “o ego precisa

enrijecer-se para ter a certeza de que as barreiras estão cimentadas, fazendo

com que a defesa assuma um caráter cronicamente operante e automático”

(MENDES, 2010, p.1356).

Reich (1989) acredita que as reações típicas das pessoas, tornam-se

resistência à descoberta do inconsciente, e são determinantes na formação de

caráter, visto serem necessárias para consolidar e preservar o modo de reação

delas desde seu estabelecimento, constituindo-se num mecanismo automático,

independente da vontade do consciente – o encouraçamento.

De acordo com Maluf (1999), Reich volta sua atenção não somente

ao conteúdo narrado, mas também na forma do discurso, “desejando identificar

os mecanismos de defesa e as resistências ao trabalho terapêutico” (MALUF,

1999, p.111), analisava também aspectos implícitos do discurso, como “o jeito

de falar, tom de voz, postura, gestual, expressões faciais e apontava essas

4Pulsão: Processo dinâmico que consiste numa pressão ou força que faz o organismo tender para um objetivo. Segundo Freud, uma pulsão tem a sua fonte numa excitação corporal; o seu objetivo ou meta é suprimir o estado de tensão que reina na fonte pulsional; é no objeto ou graças a ele que a pulsão pode atingir suas metas (LAPLANCHE,2004, P.394)

25

expressões corporais para que o sujeito tomasse consciência deles” (MALUF,

1999, P111).

Solicitando que o paciente modificasse esses aspectos corporais

durante as sessões e ao perceber a dificuldade que os mesmos encontravam

em atender o que lhes era pedido, Reich indicava que o terapeuta passasse “a

intervir ativamente no corpo do indivíduo por meio de massagem e da posição

de movimentos e expressões faciais” (MALUF, 1999, p. 112).

O trabalho diretamente sobre os espasmos musculares crônicos o

ajudou a descobrir que “a dissolução destes gerava ab-reações emocionais

espontâneas, respostas vegetativas e o afloramento de memorias reprimidas”

(MALUF, 1999, P.112). Desta forma, concluiu que “esses espasmos musculares

eram o componente somático dos mecanismos de defesa do ego. Estava assim

descoberta a couraça muscular” (MALUF, 1999, P.112). E tal descoberta é de

suma importância, visto elucidar acerca da existência dos “distúrbios somáticos

crônicos subclínicos que são parte integrante da estrutura neurótica do caráter”.

(MALUF, 1999, p. 112)

Assim, passa a ficar clara a relação entre os sentimentos e as funções

corporais. Sabendo-se que “todo sentimento envolve um significado psíquico, e

também um impulso a se expressar pelo corpo. A couraça é um conjunto de

mecanismos corporais alterados que mantém reprimidos os impulsos e as

emoções; e o significado psíquico deles permanece vinculado a essas alterações

corporais”. (MALUF, 1999, p. 112)

Assim, continua Maluf (1999):

Esta descoberta permite uma nova compreensão do mecanismo de produção de doenças orgânicas. A couraça é um conjunto de disfunções corporais pré-sintomáticas que forma a base para que, com o passar do tempo, se desenvolvam as doenças. Assim, a doença orgânica não é a alteração de um órgão que surge subitamente num organismo previamente sadio. O organismo já tinha sua função alterada em nível subclínico. A doença surge quando os impulsos e emoções reprimidos são reativados, exigindo a intensificação da couraça, que resulta na lesão

26

do órgão e na manifestação de sintoma. (MALUF, 1999, p. 113)

2.4. A Análise Bioenergética

A análise bioenergética é uma abordagem terapêutica, desenvolvida

por Alexander Lowen (1910-2008), psicanalista estadunidense de orientação

freudiana que se dedicou a ampliar os estudos de Reich. Baseia-se na teoria

Caractero-analítica do autor supracitado e preocupa-se em auxiliar o indivíduo a

reencontrar-se com seu corpo e, através de um equilíbrio psicofísico, a tirar o

máximo proveito de sua vida pulsante, levando-o a uma consciência corporal.

Segundo Lowen (1977), a análise bioenergética tem como objetivo

proporcionar ao sujeito se abrir para a vida, para o outro, para o amor. Sendo

assim, com o intuito de desfazer a estagnação de energia vital (libido), e desta

forma desfazer (acessar) a couraça corporal, é necessário utilizar o movimento

corporal pois “ao se utilizar das técnicas posturais, dos movimentos e dos toques

corporais, o indivíduo é levado à uma espécie de regressão consciente”

(LOWEN, 1977, p. 54).

Portanto, conclui-se que as doenças manifestadas no corpo

(somatização) originam-se na repressão das libidos, sendo o prazer, a emoção,

o sentimento – quando reprimido – acumulados como energia agressiva de

origem libidinal no corpo, ocasionando deformações físicas ou mesmo distúrbios

psicossomáticos.

Através da liberação da energia (emoção) reprimida é possível, por

meio de trabalho corporal, provocar o alívio das dores que incidem no corpo e a

bioenergética visa reviver as tensões reprimidas, como meio de mobilização de

tais emoções. Por isso, a bioenergia é também considerada um instrumento de

facilitação de desenvolvimento da personalidade a fim de levar o sujeito ao

autoconhecimento e à autonomia na relação consigo, com o mundo e com o

outro – objeto de trabalho da psicomotricidade e também da psicologia –,

proporcionando um maior equilíbrio psicoemocional.

27

Freud, Reich e Lowen, através de seus estudos e pesquisas, nos

ajudam a compreender como o trabalho com o corpo foi tomando forma dentro

do setting terapêutico e como a construção do entendimento sobre sua

importância para a mobilização de emoções reprimidas foi se estabelecendo e

assim ajudou a utilizá-lo como instrumento terapêutico em busca da estruturação

emocional do paciente/cliente.

28

CAPÍTULO III

CORPO, EMOÇÃO E SINTOMA: O TRABALHO

CORPORAL PARA MOBILIZAÇÃO EMOCIONAL

A psicomotricidade relacional de Lapierre e Aucouturier entende o

corpo como expressão de desejos e pulsões, passando a exercer uma atitude

menos embasada no pensamento abstrato e mais no concreto – no corpo. Busca

construir e proporcionar um lugar de liberdade e não julgamentos para que assim

as expressões das tensões psíquicas possam vir a manifestarem-se no corpo.

Para Lapierre (1984), a psicomotricidade relacional abre um vasto

campo de experiência para a relação humana por meio de diversas

possibilidades de vivências corporais. Na tentativa de alcançar a globalidade do

ser humano, que supera seu corpo físico, entende a existência de um corpo

relacional: corpo das fantasias, emocional, tônico, da sexualidade, da imagem

corporal e do relacionamento interpessoal.

A ação preventiva da saúde é um dos objetivos da

psicomotricidade relacional que através de instrumentos facilitadores de

comunicação trabalham as dificuldades psico-afetivas ao incentivar a pessoa a

vivenciar diferentes possibilidades de movimentos corporais.

Utilizando o lúdico como como ferramenta de trabalho e de prevenção

visto entender que brincando o sujeito acessa os conteúdos reprimidos sem que

haja manipulação destes, ou seja, sem que haja interferência do consciente, e

dessa forma pode o sujeito entrar em contato com seus processos afetivos por

meio da observação de sua forma de lidar com seu próprio corpo, com sua forma

de se relacionar o outro e com o mundo.

O lúdico facilita a comunicação do inconsciente com o consciente, ao

permitir que o sujeito exteriorize sua expressividade subjetivamente e o

reconheça sua imagem corporal, que é o correspondente à totalidade e

unificação premente das impressões posturais e sensibilidades orgânicas.

29

O acesso ao movimento, a permissão de uma expressividade

idiossincrática, liga o sujeito ao seu desejo interno e o reconecta consigo, por

auxiliá-lo a se descobrir. Por meio de práticas e atividades que desenvolvam a

coordenação motora, o equilíbrio, a respiração, o ritmo, visa integrar e

conscientizar o indivíduo como um ser que sente, pensa e age, que se comunica

de forma tanto verbal e quanto não-verbal.

A psicomotricidade relacional é a expressividade subjetiva como um

todo e pode ser considerada uma abordagem psicossomática pois busca atuar

no corpo, na sua expressão, e não no sintoma. Sendo assim, é importante que

o sujeito sinta e perceba seu corpo para que possa representa-lo, ou seja,

“desenvolva também o seu esquema corporal, que surge como a condição

necessária à adesão de um sujeito ao seu corpo” (SANTOS, 2004, p.5).

Para representar o corpo é importante que o indivíduo o sinta e o

perceba, uma vez que é a partir das experiências que a imagem do corpo é

formada, sendo fundamental que tais experiências sejam as mais ricas possível

a fim de que as ações sofridas e resultantes sejam produtivas e satisfatórias.

“Quando estas vivencias (...) impedirem a expressividade do sujeito, poderá

formar um encouraçamento (...). Neste sentido a psicomotricidade se apresenta

como meio de prevenção das couraças musculares” (SANTOS, 2004, p.5)

Dahlke (2014) afirma que “a criança vem ao mundo (...) com a

necessidade fundamental de ser amada, de amar a si e ao próximo” (DAHLKE,

2014, p.21). O amor é o principal fundamento vital da alma dos seres humanos,

principalmente o materno – o amor incondicional, sendo somente sob este

fundamento possível enraizar os pilares da saúde, pois “quando não recebem

amor, choram e chamam atenção com sua infelicidade em forma de doenças

psíquicas e psicossomáticas. No entanto quando desfrutam do amor, sentem-se

felizes para se desenvolverem livremente de acordo com suas potencialidades”

(DAHLKE, 2014, p.21).

As crianças são a base da sociedade, e podem ajudar a compreender

os princípios de quadros clínicos e, afirma Dahlke (2014), “tudo se constrói sobre

elas” (DAHLKE, 2014, p.21). É o comportamento social que nos transforma em

30

seres humanos e através da brincadeira as crianças vão experimentando as

vivências sociais e desta forma “deveria brincar muito para desenvolver a própria

criatividade e seu respectivo modo de expressar-se (...) aprendem por imitação

e devem ser estimuladas nesse sentido” (DAHLKE, 2014, p.22).

É por meio dos gestos simbólicos, presentes na origem da

representação, onde a imitação realiza a transição entre as fases do

desenvolvimento sensório-motor e o mental. Desta forma, o fortalecimento da

esfera cognitiva, permite que a imitação ceda lugar à representação. Nas

brincadeiras, a criança aguça sua percepção, com o objetivo de compreender

aspectos do seu meio.

Brincar possibilita à criança fabricar e construir objetos novos, assim

transformá-los. Importantes para o desenvolvimento cognitivo, motor e afetivo,

as brincadeiras auxiliam no desenvolvimento afetivo, cognitivo e motor, além de

auxiliar à criatividade e na preparação emocional em situações futuras.

Nos lembra Dahlke que “o amor dos pais estabelece a autoestima e

capacita para o amor” (DAHLKE, 2014, p.23), além disso, aponta para a

importância de que a criança receba limites e perceba seu espaço bem

demarcado, não determinado por ela, mas por seus pais, “pois do contrário, esse

espaço poderia perder suas margens e, por conseguinte, fazer com que as

crianças se perdessem:

“Os pequenos devem saber que seus pais estão prontos para ajudá-los e disponibilizar para eles o espaço para o aprendizado. Contudo, eles já têm de aprender na infância a responsabilidade por seu modo de ser e por suas ações, de acordo com sua idade, pois, do contrário, como poderão fazê-lo na adolescência e como adultos? A responsabilidade tem de ser dosada com cuidado e ser assumida de acordo com a idade. Senão, a atitude da criança conservará a seguinte projeção: se os pais não são os culpados, então o são os parceiros, a sociedade, o Estado ou o destino. Quando as estruturas infantis de vitimização permanecem, a vida corre o risco de decorrer de modo pueril, e a passagem para a idade adulta fica bloqueada” (DAHLKE, 2014, p.23).

Percebemos, através das concepções de Dahlke, o quanto a

psicomotricidade pode contribuir para que tais aspectos sejam trabalhados. Por

31

intermédio da educação psicomotora, e da psicomotricidade relacional, pode ser

possível acessar a criança interna do adulto e este, de tal forma, poderá aprender

ou reaprender a se relacionar consigo e com o outro. Os sentimentos e vivencias

experimentados na infância permanecem no inconsciente como marcas

mnemônicas, e através da mobilização corporal pode-se acessar estas questões

inacessíveis através da narração.

Pensando a brincadeira como forma de contato e acesso aos

aspectos não desenvolvidos pelo sujeito ao longo da sua vida, ao chegar na fase

adulta, seja o mesmo, no momento, deficiente ou carente de habilidades

integradoras e autorreguladoras de suas emoções, a psicomotricidade oferece

uma porta de acesso ao autoconhecimento, surgindo como processo criativo e

de ressignificação. E considerando o afeto um dos principais instrumentos de

contato, pode-se reestabelecer limites e consciência de si e do mundo (outros).

Tanto a narrativa quanto os afetos, não ressignificados e articulados

à vivência corporal relacional, podem vir a resultar em impressões somato-

psíquicas. A criança nasce envolto em um mundo de sensações onde a partir

das quais se constituem os primeiros referenciais, as primeiras imagens

inconscientes do corpo. Neste ponto percebemos a importância do contato

corporal, do afeto presente nas relações entre a criança e seus cuidadores.

Através do trabalho psicomotor tais bloqueis aparecem, pois por mais

que as dificuldades de compreensão de seus esquemas corporais escape da

consciência, o corpo expressa o prazer e o desprazer, resultado de nossas

experiências relacionais vividas ao longo do tempo.

Muitos chegam a idade adulta com uma imagem maltratada de si

mesmos, constituída em relação com outrem. A Psicologia e a Psicomotricidade

objetivam à reestruturação de uma imagem corporal saudável e positiva, no

sentido de aceitação e reconhecimento, uma vez que esta é mutável. A

reestruturação e a ressignificação serão potencializadas por meio de atividades

adequadas, trabalhando a afetividade, as sensações, através do lúdico, de

atividades corporais e da arte, ajudando, desta forma, ainda mais a minimizar o

seu sofrimento psíquico.

32

Neste sentido, pode-se refletir sobre o quanto as atividades voltadas

para a expressão da criatividade e do desenvolvimento podem ser uma saída

para a instauração do esquema corporal e da imagem corporal, visto que podem

potencializar a expressão dos sentimentos e que, por sua vez, podem levar o

indivíduo a descoberta e atribuição de sentido às representações simbólicas.

Por meio da psicomotricidade relacional, que compreende a imagem

corporal como uma organização psíquica inconsciente, e consequente das

relações estabelecidas pelo sujeito com os outros, pauta suas práticas nas

relações afetivas, visa à autonomia afetiva e cognitiva do sujeito. Daí a

importância da imagem corporal e do esquema corporal para a elaboração do

referencial teórico da Psicomotricidade.

Estudos em psicologia apontam para a relação entre as nossas ações

e emoções, pois acredita-se que o raciocínio também é construído

relacionalmente e que envolve tanto o emocional quanto a subjetividade do

sujeito, de modo que não é possível dissociar a racionalidade da emoção.

Entretanto, é necessário compreender que nossas ações apenas determinam

um sentido se permeadas por uma prática reflexiva, ou seja, é importante tomar

consciência de nossos sentimentos e emoções para compreendermos nossas

ações, e isto implica analisar nossos pensamentos.

O ato reflexivo precisa estar embasado no respeito por si e pelo outro.

Inferimos com isto que quando as dificuldades na convivência com o outro

aparecem, uma rigidez emocional se mostra presente e, estas indicam que não

há uma boa compreensão do quão relacional e capaz de mudanças um ser

humano é.

A atividade psicomotora propõe a estruturação e a autonomia

saudável do sujeito. Focando as potencialidades de cada um, percebe e interage

com o corpo como meio de relação e de expressão de sentimentos e de desejos,

e como instrumento de integração entre o consciente e o inconsciente. Esta

prática baseia-se no discurso da Psicanálise, pois, como nas associações livres,

não há julgamento moral nas sessões de Psicomotricidade Relacional, o

33

paciente/cliente movimenta e expressa-se livremente sem ser julgado positiva

ou negativamente.

Neste momento de entrega corporal o importante é haver

consonância entre o corpo e o afeto, a expressão corporal e o seu

comportamento relação com o outro/ambiente/objeto. Anne e André Lapierre

esclarecem:

As atividades lúdicas integram movimentos, sentimentos e pensamentos, e permitem o acesso ao mundo simbólico e imaginário, permitindo uma (re)significação do real. Montano observa ainda: A Psicomotricidade Relacional contém e é contida pela ludicidade e ambas se mesclam quando propõem cuidar do desenvolvimento humano através do corpo, que integra diferentes funções, habilidades, estados emocionais e padrões relacionais e tônicos. Ambos estão cuidando da constituição e reorganização das estruturas corporais, emocionais e cognitivas que formam a criança [...] (MONTANO, 2007, p. 106).

O médico e psicólogo francês Henri Paul Hyacinthe Wallon (1879-

1962), ao estudar a criança – objeto de seus estudos – designa a inteligência

como o principal componente do desenvolvimento infantil, e entende que a vida

psíquica é formada por três dimensões que atuam e coexistem de forma

integrada: a motora, a afetiva e a cognitiva, e que o sujeito, em seu processo de

evolução, depende de sua capacidade biológica e do ambiente, isto é, ele nasce

com recursos orgânicos, porém é o meio que o permitirá desenvolver suas

potencialidades.

Montano (2007) indica que de acordo com Wallon, a afetividade é

manifesta de três maneiras: através da emoção, do sentimento e da paixão, que

evoluem e surgem por todas as etapas do desenvolvimento, até a vida adulta.

Considerada como a primeira expressão da afetividade, a emoção não é

controlada pela razão por ser ativada de forma orgânica. Já o sentimento surge

quando se adquire a capacidade de narrar sobre o que lhe afeta e a paixão é

identificada quando este estabelece um autocontrole sobre o que lhe afeta em

função de um objetivo.

34

O médico compreende o lúdico como um recurso de vital importância

para liberação do fluxo de energia, seja na criança quanto no adulto, pois “o

brincar não é essencialmente aquilo que exige esforço, em contraposição à

labuta cotidiana, pois uma brincadeira ou um jogo pode exigir e liberar

quantidades bem mais consideráveis de energia do que uma tarefa obrigatória”

(MONTANO, 2007, p.55).

A unicidade entre as dimensões motora, afetiva e cognitiva e os

pressupostos teóricos e práticos da Psicomotricidade Relacional nos oferece

subsídios para a compreensão da relevância das atividades corporais lúdicas

para o processo terapêutico, uma vez que concebe o sujeito na sua totalidade e

visa a superação da visão dicotômica entre corpo e mente, ao desejar

reestruturar a história corporal-afetiva, concebendo-o em todas as dimensões –

cognitiva, afetiva, emocional e motora.

A análise corporal, ou a verbal, visam, segundo Lapierre (1997),

possibilitar acesso a aspectos do inconsciente, e interpretar os seus conteúdos

recalcados5 para em seguida amenizar o sofrimento psíquico. Apesar de

distinguir a análise corporal de outras abordagens psicanalíticas, encontra como

ponto de convergência entre elas o fato de possuírem as mesmas metas e

métodos, pois “A análise corporal da relação, como a psicanálise freudiana,

repousa sobre a rememoração, sobre a reatualização, pela transferência, das

lembranças esquecidas, repelidas no inconsciente” (LAPIERRE, 1997, p. 59).

Entretanto, postula que a expressão corporal se aproxima mais do

inconsciente que a linguagem verbal, “em suas manifestações tônicas,

espontaneidade e primariedade de suas reações, se aproxima mais do

inconsciente do que a linguagem verbal” (LAPIERRE, 1997).

A teoria psicanalítica foi basal para a Psicomotricidade Relacional, por

primar pela relação com o outro – os encontros corporais vivenciados –, com os

conteúdos projetivos, fantasmáticos e simbólicos, advindos desta relação,

5 Recalque: No sentido próprio, operação pela qual o sujeito procura repelir ou manter, no inconsciente, representações (pensamentos, imagens, recordações) – ligadas a uma pulsão – suscetível de proporcionar prazer por si mesma – ameaçaria provocar desprazer relativamente a outras exigências (LAPLANCE e PONTALIS, 2004, p. 430)

35

religando-os às relações originais. Estas relações influenciam nos processos de

estruturação da sociabilização e da personalidade das pessoas no seu ambiente,

e são encontros carregados de emoção.

A origem dos sintomas psicomotores – distúrbios despontados no

corpo sem alguma aparente relação com alterações neurológicas ou orgânicas

–, foi encontrado por Lapierre (1997) nessas relações. São, segundo o autor, as

relações tônicas afetivas encadeadoras das experiências originais, sendo esta

uma clara influência walloniana ao reconhecer a estruturação afetiva proveniente

da história relacional de cada um, que tem início com a função simbólica.

O ato psicomotor, consegue transformar as experiências que foram

vividas passivamente em um ato motor (ativo), trazendo à consciência algo que

foi reprimido, convertendo assim a experiência traumática em uma nova

experiência ressignificada, podendo dar às experiências originais um novo

desfecho representando, simbolicamente, suas ansiedades e fantasias. E, pelo

fato de não se poder exigir associações livres deste sujeito, uma vez que o

conteúdo reprimido não veio à consciência por intermédio da narrativa, durante

o processo de análise, a mobilização corporal corresponderia a expressões

verbais, ou seja, surgiria no setting como expressão simbólica dos conflitos

inconscientes. Analogamente, ao movimentar o corpo sem direcionamento e

regras, os conteúdos inconscientes de seu psiquismo seriam liberados assim

como acontece nas associações livres, podendo o analista auxiliar o

paciente/cliente a desvendar o sentido da ação (ato motor).

Importante ressaltar a importância do corpo do terapeuta no trabalho

corporal:

A psicoterapia se efetua na sobreposição de duas áreas do brincar, a do paciente e a do terapeuta. A psicoterapia trata de duas pessoas que brincam juntas. Em consequência, onde o brincar não é possível, o trabalho efetuado pelo terapeuta é dirigido então no sentido de trazer o paciente de um estado em que não é capaz de brincar para um estado que o é. [...] Em outros termos, é a brincadeira que é universal e que é própria da saúde: o brincar facilita o 62 crescimento e, portanto, a saúde; o brincar conduz aos relacionamentos grupais; o brincar pode ser uma forma de comunicação na psicoterapia;

36

finalmente a psicanálise foi desenvolvida como forma altamente especializada do brincar, a serviço da comunicação consigo mesmo e com os outros (WINNICOTT apud CABRAL, 2001, p. 40).

O psicomotricista não atua apenas como espectador, ele serve como

companheiro simbólico, assume uma postura de alguém que não domina tudo,

que não sabe tudo, assumindo uma postura de respeito ético à diferença, à

criatividade, aos afetos, a relação que se estabelece, sobretudo a fim de criar um

espaço de possibilidade de autonomia e autoconhecimento e autorregulação,

intervindo o mínimo possível, porém relembrando algumas regras básicas e

primordiais, trabalhadas no início das atividades: não machucar a si mesmo e

nem ao outro, respeitar e cuidar do seu próprio corpo e do outro.

A implicação do corpo do terapeuta durante o trabalho é condição

essencial da educação psicomotora, devendo o mesmo ter compreensão da

importância de se ter disponibilidade do uso do seu próprio corpo como

ferramenta participante e atuante no contexto terapêutico, onde adquire um

significado simbólico, análogo e transferencial.

É através da transferência6 terapêutica bem estabelecida que os

conteúdos recalcados poderão vir à tona, não apenas no sentido de

rememoração, mas com o intuito da revivência do sintoma e tomada de

consciência de tais eventos. O inconsciente não é uma instância cronológica,

onde os eventos traumáticos e reprimidos são registrados conforme forem

acontecendo, sendo assim, o sintoma é considerado um substituto de um desejo

reprimido independente do momento histórico pessoal que tenha ocorrido.

Segundo Reich, “o analista está sempre à mercê das oscilações da

transferência e move-se em terreno incerto para tornar o paciente capaz de

análise” (REICH, 1998, pp. 52 e 53) e respeitar a forma de expressão do mesmo.

É importante compreender os jeitos de manifestações do ego, “que difere de um

caráter para o outro, mesmo quando os conteúdos das experiências são

6 Transferência: um deslocamento onde o desejo inconsciente se exprime e disfarça nos materiais fornecidos (...)"deslocamento" de um afeto de uma representação que está no inconsciente. (LAPLANCE e PONTALIS, 2004, p. 430)

37

semelhantes, pode ser remontada às experiências infantis, da mesma maneira

que o conteúdo dos sintomas e das fantasias” (REICH, 1998, p.53).

Para Reich (1998) não se deve fazer distinção entre as neuroses

crônicas (existentes desde a infância) e as neuroses agudas (as que surgiram

mais tarde) pois são irrelevantes uma vez que apenas “quando o caráter

neurótico se exacerba sintomaticamente, é que a pessoa sente que está doente”

(REICH, 1998, p. 55), sendo assim, a utilização do corpo como instrumento de

conscientização das emoções reprimidas, surge mais uma vez como

possibilidade para conhecimento próprio de modo que “ o indício da resistência

de caráter não está naquilo que o paciente diz e faz, mas no modo como fala e

age” (REICH, 1998, p.59).

A Psicomotricidade Relacional tem como alicerce prático o jogo livre,

que não é apenas uma recreação, mas a forma primeira de atuar, de descobrir

o mundo, os outros e objetos, e principalmente o seu próprio corpo. O lúdico é

próprio da natureza humana e uma atividade que deve ser considerada salutar

por potencializar a criatividade e individuação, próprio da natureza do ser

humano.

38

CONCLUSÃO

Reconhecer e potencializar a individuação significa acolher a

idiossincrasia do sujeito, possibilitando-o ser o que é, com os próprios padrões

autênticos de respostas. Para permitir que as especificidades, necessárias à

individuação, sejam solidificadas na psique do paciente/cliente e, então, possam

ser trabalhados durante a terapia, favorecendo a assimilação destes pontos para

que ocorra a transposição para a sua vida e transforme sua atitude com relação

às suas próprias histórias.

O poder criativo da análise e, por consequência do movimento

corporal, para a compreensão dos aspectos reprimidos na psique e

reavivamento da imaginação elucida a respeito do quão essencial são as

imagens internas e esquema corporal para a vida do sujeito. O

terapeuta/psicomotricista deve estar atento a essas manifestações e procurar

auxiliar o paciente na reconexão do lado sombrio (aspectos inconscientes) entre

as partes dissociadas da psique, ou seja, auxiliar a tomada de consciência

destes aspectos.

O psicólogo facilita o contato com a enfermidade emocional ao

oferecer meios para entendimento de alguns padrões comportamentais, através

da capacidade de significação por meio dos símbolos que surgirão durante a

expressão e manipulação corporal, para uma melhor compreensão dos

sofrimentos e das síndromes da psique, possibilitando abandonar a doença em

busca da “cura”.

Como expressão simbólica, o tamponamento do sintoma, através da

repressão das emoções, não é considerado algo criativo no processo analítico

porque ao interromper a expressão do mecanismo doente e reprimido da psique,

faz calar a expressão simbólica do inconsciente. O ideal é que o

terapeuta/psicomotricista busque compreender a função do sintoma dentro do

processo criativo e constituinte do sujeito, uma vez que o mesmo é entendido

como uma forma de expressão narrativa do inconsciente de algo “esquecido”

39

pela psique. É como se o sintoma fosse o grito, um pedido de socorro e, portanto,

uma expressão narrativa inconsciente através do instrumento que encontra para

manifestar-se: o corpo. O corpo é o palco para tal manifestação e através do

sintoma é possível compreender aspectos constituintes da subjetividade da

pessoa.

O sintoma é entendido como um símbolo e, como tal, o processo

terapêutico se caracteriza como uma negociação continua sobre a compreensão

dos sintais, a ampliação do significado da doença e possibilita ao paciente,

mediante o trabalho com o corpo, criar e recriar seus modelos de realidade além

de fornecer compreensão sobre novas possibilidades de ação, isto é,

ressignificar suas experiências.

O processo terapêutico é considerado como uma negociação de

interpretação entre pessoas. O papel do terapeuta, neste contexto, é contribuir

para que o paciente/cliente assimile suas experiências subjetivas de aflição

através da compreensão de que o conteúdo reprimido pode vir a ser

transformado pelo movimento do corpo.

O trabalho com o corpo auxilia no entendimento dos mecanismos

funcionais do indivíduo, e a interpretação dos símbolos expressos neste ato é

uma experiência central para o trabalho do analista, pois surge no contexto

terapêutico como modo de preencher as lacunas que podem vir a ser ocupadas

pelo sintoma, agindo como instrumento fundamental para os complexos

envolvidos neste processo.

A capacidade de diálogo interior, um dos objetivos do trabalho

terapêutico, é um dos critérios básicos para o desenvolvimento psicológico e

resulta na ampliação da consciência sobre os mecanismos repressores

presentes na constituição psíquica de cada um. É por meio dessa confrontação

– consciente / inconsciente – que não precisa e nem deve ser conscientizada em

todos os detalhes, que a psicoterapia atua, e com isso consegue conduzir o

indivíduo a um nível de existência, a uma outra personalidade – nova e autentica

– e proporciona a ele a constante ampliação da consciência.

40

A manipulação corpora, entendido neste caso como um instrumento,

funciona como facilitadora do trabalho de integração dos conteúdos

inconscientes para o campo consciente, que para serem entendidos como tal,

deverão passar pela atenção autorização do consciente deve conceder a seu

lado antes inconsciente a permissão de permanência em seu campo de domínio.

O analista deve ter noção de que tais características não são apenas

intelectuais, mas vinculadas à vivencia psíquica, passam pela vivência individual,

integrando todas as manifestações da sua subjetividade.

A psicomotricidade relacional percebe o corpo como lugar de

expressão de desejos e pulsões, e assim procura embasar sua atuação menos

no pensamento abstrato e mais no concreto – no corpo. E para que se

manifestem no corpo, as expressões das tensões, busca edificar e harmonizar o

ambiente num lugar de liberdade e não julgamentos. Em suas pressuposições

teóricas e práticas determina uma unicidade entre a motricidade e inteligência,

entre a ação e o pensamento, integra a importância da expressividade corporal

para o desenvolvimento do homem, sendo o corpo concebido como centro de

integração psicocorporal.

No presente estudo procurou-se a compreensão sobre a contribuição

da psicomotricidade como instrumento de mobilização de emoções reprimidas e

deste modo auxilio ao trabalho do psicólogo como possibilidade de promover o

encontro de um sentido à vida do sujeito, como caminho para entrar

reconhecimento e integração dos aspectos represados pela psique, além do

reconhecimento do papel que exerce dentro do processo terapêutico.

Pelo exposto até aqui, percebe-se a fecundidade dos conhecimentos

da psicomotricidade para uma reflexão atual sobre a prática corporal e para a

superação de uma visão dicotômica de corpo e mente que ainda encontra-se

arraigada em algumas atuações terapêuticas, o que significa uma atuação

voltada para a integração de todas as dimensões do ser, focando a dimensão

afetiva, corporal e a lúdica, sem priorizar a dimensão cognitiva, neste sentido

compreendendo-as como partes e fundamentais para o desenvolvimento de um

ser autêntico, autônomo e expressivo.

41

De tal forma, esta teoria se articula com este estudo, que

principalmente objetivou a percepção e investigação da relevância das

atividades corporais lúdicas no setting terapêutico. Como hipótese propôs-se o

fato de que se descontrua a percepção dicotômica entre corpo e mente, não mais

separando as atividades corporais das atividades intelectuais, por meio de uma

prática pautada na globalidade.

A partir dos subsídios teóricos oferecidos ao longo desta pesquisa foi

possível constatar a relevância do lúdico, do afeto e do corpo para a análise

subjetiva. A temática do corpo não deve ser ignorada na prática psicológica, visto

ser por meio do corpo em movimento, do lúdico, que expressão dos sentimentos

pode se dar e o sofrimento causado por conflitos pessoais poderão ser

minimizados.

Analisar os sintomas e problemas na estrita maneira como aparecem,

permite apenas uma compreensão superficial, que não atinge o ponto crucial de

mobilização, de acordo com Lowen (1977), e a arte da análise é interpretar

corretamente as expressões do sujeito que podem ser intuitivamente

adivinhadas “graças ao uso de uma técnica que pode circundar o exterior rígido,

a fim de alcançar o âmago biológico” (LOWEN, 1977, p.134).

42

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ÍNDICE

FOLHA DE ROSTO 02 AGRADECIMENTOS 03 DEDICATÓRIA 04 RESUMO 05 METODOLOGIA 06 SUMÁRIO 08 INTRODUÇÃO 09

CAPÍTULO I

O corpo e o inconsciente – Sobre a psicomotricidade e a psicologia 12

CAPÍTULO II

A história do corpo: compreensões sobre a construção da noção de corpo como instrumento de trabalho 19

2.1. A Histeria 20

2.2. A Psicanálise 21

2.3. As Couraças Corporais 23

2.4. A Análise Bioenergética 26

CAPÍTULO III

Corpo, emoção e sintoma: o trabalho corporal para mobilização

emocional 28

CONCLUSÃO 38 BIBLIOGRAFIA 42 ÍNDICE 44