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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU INSTITUTO A VEZ DO MESTRE AUTONOMIA DOCENTE: DA CONSCIÊNCIA A CONQUISTA DIÁRIA Por: Luciana Pedretti Loubak Orientadora: Profª. Narcisa Castilho Melo São Gonçalo, RJ 2011 DOCUMENTO PROTEGIDO PELA LEI DE DIREITO AUTORAL

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

AUTONOMIA DOCENTE: DA CONSCIÊNCIA A CONQUISTA

DIÁRIA

Por: Luciana Pedretti Loubak

Orientadora: Profª. Narcisa Castilho Melo

São Gonçalo, RJ

2011

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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES

PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU

INSTITUTO A VEZ DO MESTRE

AUTONOMIA DOCENTE: DA CONSCIÊNCIA A CONQUISTA

DIÁRIA

Apresentação de monografia ao Instituto A Vez do Mestre

– Universidade Candido Mendes como requisito parcial

para obtenção do grau de especialista em

Psicopedagogia Institucional.

Por: Luciana Pedretti Loubak

AGRADECIMENTOS

À Professora Narcisa Castilho Melo por sua atenção e intervenções sempre

pertinentes.

Aos profissionais da educação da rede municipal de ensino da cidade de

Niterói – RJ, onde atuo como pedagoga há cinco anos; por me fazerem

enxergar as “entrelinhas” de um processo

DEDICATÓRIA

Ao incondicional e subversivo amor de Deus que experimentou a exclusão para

incluir; o cárcere para promover libertação e a submissão e a obediência para

promover a verdadeira liberdade e autonomia.

Àquele por quem minha alma é decididamente cativa, e quanto mais cativa e

dependente, mais livre.

Ao David, meu companheiro constante, amado e amigo e a Ana Letícia e Luiza,

nossos presentes e promessas.

A todos os professores que fazem do seu ofício um instrumento de liberdade

responsável e possível e a Desirée, por entre tantas coisas me fazer saber que

não estou só, pois há mais loucos vivendo de maneira coerente com suas

crenças do que imaginamos

EPÍGRAFE

“Desconfiei do mais trivial na aparência singelo,

E examinei, sobretudo, o que parece habitual.

Não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem

sangrenta; de confusão organizada, de arbitrariedade consciente; de

humanidade desumanizada; nada deve parecer natural, nada deve parecer

impossível de mudar.”

(B.Brecht)

RESUMO

O presente estudo se propõe a analisar o conceito de autonomia nas práticas docentes e de uma maneira mais ampla na esfera educacional. Tendo em vista a dimensão social que tal conceito encerra e os processos constitutivos a ela associados.

Para tanto transitamos por um caminho que vai desde a gênese da formação e constituição histórica da identidade deste profissional no Brasil; o entrelaçamento com os principais pressupostos teóricos que fundamentam o conceito de autonomia como aquisição coletiva e política e não como uma condição nata; até o papel atual do Estado, da mentalidade socioeconômica vigente bem como das políticas publicas de ensino enquanto constituintes de um processo que tem favorecido a ausência de uma emancipação nas práticas educativas e conseqüentemente da ação autônoma do professor no sentido lato, social e coletivo de sua profissionalidade.

A autonomia docente abrange uma dimensão cujo compromisso vai alem da esfera pessoal legitimando-se, fundamentando-se e mantendo-se no campo profissional onde precisa estar comprometida indubitavelmente com os processos coletivos, ou seja, com o outro favorecendo-lhe a emancipação, a criticidade, a reflexão e a conseqüente ação transformadora e libertária.

METODOLOGIA

As elucidações abordadas neste estudo onde o foco é a discussão a dimensão

social da autonomia e os processo a ela associados foram elaborados a partir do

auxilio técnico da pesquisa bibliográfica que segundo autores como Andrade (1999),

Gil (1991), Severino (2000) abrange a leitura, análise e interpretação de todo o

repertório de produção textual que deve ser submetido ao um processo de triagem

visando fornecer a elaboração não só de um plano de leitura como de anotações e

fichamentos que servirão de base teórica para fundamentação do estudo.

Trata-se, resumidamente de enquadrar a problematização de uma temática e

submetê-la a referenciais teóricos já publicados e analisados à luz de suas

contribuições culturais e científicas.

Alem da observação em loco do espaço público escolar e da figura do

professor em suas multifacetadas ações e intervenções. Suas interações e práticas

reveladas no campo simbólico e teórico; analisando as tessituras da trajetória

relacional do professor com sua própria formação, com ideais de profissionalismo e

com as expectativas do seu papel, construídas histórica, social, político e

culturalmente.

Os principais autores que fundamentam este estudo são: José Contreras,

Paulo Freire, Jean Piaget e Kant. A importância de linha de pesquisa adotada vem de

encontro à complexidade da temática e à relevante produção já existente nas obras

dos autores descritos acima.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 9

CAPÍTULO I - Resgatando o processo histórico – A formação docente no Brasil

...................................................................................................................................... 11

CAPÍTULO II - Autonomia para Piaget e Freire ....................................................... 19

CAPÍTULO III – Identidade e Autonomia: Uma Dimensão Social ............................... 26

3.1 – Profissionalismo e Profissionalidade .............................................................. 32

CONCLUSÃO .............................................................................................................. 38

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................................ 40

9

INTRODUÇÃO

O presente estudo busca elucidar a dimensão social da autonomia como

o mecanismo de uma construção coletiva, e não apenas individual. Tem,

portanto, a intenção de analisar a profissionalidade docente e, assim, identificar

as múltiplas interfaces de um processo carregado por diversas dimensões,

saberes e construções, formativos e históricos.

O que nos interessa explorar neste trabalho é a autonomia enquanto

“práxis docentes”. Sabemos que o conceito da palavra autonomia possui os

mais diversos sentidos, podendo tornar-se um tema amplo e até impreciso. Por

isso, observaremos este conceito sob a perspectiva das práticas educacionais,

observando o espaço de sala de aula e as relações que se dão no espaço

escolar como lócus privilegiado, não só da observação, como de uma

intervenção formativa de uma possível prática autônoma.

Qual a implicação da constituição autônoma, ou da ausência da mesma,

numa prática educacional que visa a emancipação dos sujeitos, a formação

cidadã e a consolidação de um efetivo processo de ensino-aprendizagem? Por

certo, este processo deverá estar alicerçado em pilares democráticos e

libertários de ação. No entanto, cabe-nos reconhecer as inúmeras dificuldades

de consolidação destes preceitos, validados por nossa própria limitação

histórica, marcada pelo que alguns autores denominam por “inexperiência

democrática” ou “ilusão democrática”, o que redundou na consubstanciação de

um cenário onde a autonomia não é encontrada com frequência e naturalidade,

nas consciências e exercícios docentes.

O destaque sobre a atuação do professor se dá, neste estudo, em

detrimento de outros atores educacionais, porque o ofício de ensinar sob a

perspectiva da emancipação requer consciência, autonomia e

responsabilidade, e só pode ser responsável e autônomo quem é capaz de

decidir e defender não apenas o seu próprio profissionalismo, mas a educação

propriamente dita, como um processo amplo e transformador.

10

No primeiro Capítulo, tratamos da implicação formadora da profissão

docente focando a construção de uma história pontuada por lacunas no que diz

respeito à deficiências na formação profissional tanto em termos de

constituição ideológica quanto técnicas e o quanto este cenário trouxe e ainda

traz implicações na construção de uma pratica autônoma docente.

Já no segundo Capítulo aponta para as confluências no pensamento de

dois teóricos que embora possuam abordagens distintas sobre o conceito de

autonomia complementam-se convergindo percepções sobretudo no que diz

respeito à concepção de homem como sujeito de suas ações. Embora

foquemos a análise deste Capítulo sob a perspectiva teórica de Piaget e Freire

também transitamos sobre outros teóricos e suas concepções no sentido de

levantar as convergências que derivam de seus pensamentos e teorias.

O último Capítulo encerra a centralidade de todo este estudo: A

perspectiva social e coletiva da autonomia, o papel do Estado e das Políticas

Públicas na respectiva constituição deste conceito e os desdobramentos de

uma profissionalidade que precisa ser diariamente refletida, reconstituída,

reelaborada e resignificada.

11

CAPÍTULO I

RESGATANDO O PROCESSO HISTÓRICO: A

FORMAÇÃO DOCENTE NO BRASIL

[...] não basta dizer que a educação é um ato político, assim como não basta dizer que o ato político é também um ato educativo. É preciso assumir realmente a politicidade da educação. Não posso pensar progressista se entendo o espaço da escola como algo meio neutro, com pouco ou quase nada a ver com a luta de classes em que os alunos são vistos apenas como aprendizes de certos objetos do conhecimento, aos quais empresto um poder mágico. (FREIRE, 1995. P. 46)

Segundo o dicionário Bueno (2007, p.103), a autonomia define-se por

faculdade de se governar por si mesmo; direito ou faculdade de se reger por

leis próprias; emancipação; independência;

A autonomia é o oposto de heteronomia, que é quando uma pessoa é

governada por outra. Falar de autonomia, ainda que em diferentes esferas, é

transitar no campo da objetividade, mas também da subjetividade, da

ingenuidade à criticidade das práticas; é falar de consciência e também de sua

ausência. É olhar para o passado buscando respostas que consolidem uma

transformação no presente, mas nunca utilizando esse passado como bengala

para o conformismo. Ou seja, falar de autonomia é transitar na polaridade de

conceitos, percorrendo seus extremos e assumindo um ônus e os bônus de um

processo que urge não apenas ser inaugurado nas práticas docentes, mas

consolidado, mantido e conquistado diariamente. Como bem disse Paulo Freire

(2006), “quem forma se forma e re-forma ao formar, e quem é formado, forma-

se e forma o ser formado.”

Para tanto, é fundamental recorrer à gênese da formação docente no

Brasil, a fim de encontrar explicações que, pelo menos, teoricamente, nos

dêem conta do por que a autonomia é um conceito tão pouco compreendido e

encontrado nas práticas docentes.

12

Para se entender a importância do papel do professor e sua formação,

faz-se necessário resgatar a trajetória histórica da educação brasileira e suas

influências.

Compreender a Educação no Brasil requer o conhecimento de diversas

correntes filosóficas e educacionais, pelas quais passou a educação nestes

últimos séculos, sem deixar de incluir as motivações políticas e econômicas

que nos transpassaram. Além de todo caldeirão cultural em que estamos

imersos.

Gadotti (2006) faz alusão às inúmeras influências que sofremos direta ou

indiretamente na formação das múltiplas teorias mundiais.

O pensamento pedagógico brasileiro veio deslanchar no final do século

XIX, com o Iluminismo, trazido por alguns intelectuais europeus. Esse

pensamento se auto-afirmou no século XX, mais precisamente na década de

20, com a implementação da primeira reforma educacional, como enfatiza o

referido autor.

Gadotti (2006), afirma que esse pensamento ficou muito definido em

duas tendências, ainda bastante difundida nas escolas brasileiras: a tendência

liberal e a progressista.

Seria pontual destacar algumas décadas que se tornaram expoentes nos

reflexos e desdobramentos da mentalidade e da prática docente nos dias

atuais e as implicações a ela associadas, sobretudo o que diz respeito às

entrelinhas das políticas educacionais, não excluindo dessa discussão as

determinações e orientações que os organismos internacionais nos impuseram

e ainda impõem, principalmente quando se trata de países a eles

economicamente subordinados.

Década de 70: Pensamento profundamente tecnicista e mecanizado.

Formação de mão-de-obra técnica.

Os anos 80 representaram a tentativa de ruptura, pelo menos teórica, do

pensamento tecnicista, predominante até então. Deu-se maior ênfase na

formação do educador, destacando o caráter sócio-histórico dessa concepção

13

e o desenvolvimento de uma formação profissional que portasse e permitisse o

desenvolvimento da consciência crítica e emancipadora em educação.

Os anos 90 podem ser intitulados como a década dos embates entre

concepções de educação e formação, ou “Década da Educação”, pois

representavam o aprofundamento das políticas neoliberais em resposta aos

problemas colocados pela crise do capitalismo, desde os anos 70.

A educação e a formação dos professores ganham nessa década,

importância estratégica para a realização de reformas educativas, eis algumas

delas: Educação para Todos, Plano Decenal, Parâmetros Curriculares

Nacionais, Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, para a

Educação Superior, para a Educação Infantil, para a Educação de Jovens e

Adultos, Educação Profissional e Tecnológica, Avaliação do SAEB (Sistema

Nacional de Avaliação da Educação Básica), Exame Nacional de Cursos

(PROVÃO), ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), descentralização,

FUNDEF (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e

Valorização do Magistério), Lei da Autonomia Universitária, Novos Parâmetros

pra IES. Todas essas medidas objetivavam adequar o Brasil a uma nova ordem

e mentalidade que depositava na avaliação e nos mecanismos de qualidade

total, a chave mestra, que abriria caminhos para todas as políticas: de

formação, de financiamento, de descentralização e digestão de recursos.

No desenvolvimento e na implementação das políticas educacionais

neoliberais, há “qualidade da educação”, assumida como bandeira pelos

diferentes setores governamentais e empresariais, adquire importância

estratégica como condição para o aprimoramento do processo de acumulação

de riquezas e o aprofundamento do capitalismo. A concepção tecnicista da

educação, que alcançou grande vigor no pensamento educacional da década

de 70, sendo criticada e rebatida na década de 80, retorna sob nova roupagem

no quadro das reformas educativas em curso.

Nesta política de expansão, entram em cena os cursos normais

superiores, que são balizados por organismos internacionais, sendo mais

caracterizados como espaços de treinamento que de formação propriamente

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dita e ampla. Tais institutos possuem um caráter mais técnico e

profissionalizante. A reformulação dos cursos dos profissionais da educação,

em particular os Referenciais Curriculares para Formação de Professores

(1999), no parecer nº 115/99, que criou os Institutos Superiores de Educação e

as Diretrizes Curriculares para Formação Inicial de Professores para Educação

Básica em Nível Superior (2001), são reformas que fazem parte de “um pacote”

de orientações oficiais ajustes curriculares flexibilizantes, tendo em vista a

adequação do Ensino Superior às novas demandas, oriundas do processo de

reestruturação produtiva, que objetiva adequar currículos à novos perfis de

concepção pedagógica e a novos profissionais, um verdadeiro risco e

retrocesso, se levarmos em consideração o nivelamento curricular que tal

reforma causou, colaborando para a formatação da educação e reduzindo os

processos mais amplos de formação.

Vivemos nos dias atuais, os desdobramentos e reflexos desses múltiplos

processos históricos em educação. É importante refleti-los constantemente,

sabendo que é pela apropriação da condição crítica de educadores que são

possíveis as transformações. É bom lembrar as palavras de Karl Marx: “Os

homens fazem sua própria história, mas não a fazem sob circunstâncias, e sim

sob aquelas com que se defrontam diretamente legadas e transmitidas pelo

passado.”

Como é possível observar, nossa história educacional e de formação do

exercício da docência é uma verdadeira colcha de retalhos, tecida por várias e

diferentes nuances, e embora tenhamos absorvido as influências dessas

tendências, sejam elas pedagógicas, filosóficas ou sociológicas, temos um

sistema educacional ainda muito arraigado no pensamento pedagógico

tradicional, na qual uma das principais características reside no papel do

professor, que continua sendo detentor do saber, característica que foi herdada

da nossa educação jesuítica.

Discutir o papel do professor no contexto atual exige que façamos uma

reflexão a partir da sua formação docente.

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Paulo Freire destaca a importância de educar para libertar e promover o

ser humano que é um ser histórico e, portanto, necessita instrumentalizar-se de

criticidade, ética e autonomia para tornar-se sujeito de seu próprio destino,

rompendo diariamente com o processo de desumanização, condição na qual

somos expostos.

Neste sentido, ele aponta para um saber e fazer pedagógico que milite a

favor do permanente exercício da auto-reflexão crítica, condição que permite

ao educador a necessária leitura crítica da realidade, papel intransferível

daquele que educa e é educado, como também ler o outro e a si próprio e

manter uma curiosidade fundamentada, buscando desenvolver uma postura

pesquisadora.

Cabe lembrar que essa reflexão sobre a política docente deve levar em

conta diversos fatores: o contexto histórico, social e cultural; a formação inicial;

a instituição formadora, bem como o programa de ensino.

Com a implantação da LDB (Lei 9394/96), que determina um prazo de

dez anos para os professores serem graduados, para que possam continuar

trabalhando na Educação Básica (ensino fundamental, especificamente), houve

um aumento significativo de faculdades particulares que estão a todo preço

“vendendo” pacotes promocionais de cursos de formação docente. Ora,

questionamos: que tipos de profissionais estão sendo formados? De que forma

esses profissionais estão contribuindo para a melhoria da educação? Se eu

não tiver uma boa formação, como vou formar bem meu aluno?

No que diz respeito à organização do ensino e do currículo, são visíveis

as contradições existentes, implementa-se a reforma, muitas vezes para

atender as perspectivas sociais, políticas e econômicas, e não preparam os

sistemas educacionais para operacionalizá-los.

Sem falar da forma como muitos referenciais curriculares são elaborados

por municípios por vezes sem efetiva participação da comunidade local

docente e discente. Fruto de assessorias financiadas a peso de ouro e escrito

por profissionais que desconhecem a realidade local e suas principais

necessidades demandas.

16

Entre tantos questionamentos ainda há crescente desvalorização do

profissional da educação que também perpassa questões salariais.

Exige ainda desse profissional a descoberta dos limites da própria

pratica, que significa perceber a existência de lacunas a serem preenchidas.

Exige buscar uma visão ampliada e diversificada dos saberes; realizar pratica e

teoria; num movimento necessário e contínuo. Por fim, exige entender-se como

educador e não um conjunto isolado de técnicas e competências,

compreendendo diariamente a dimensão social e política no qual está imerso.

Pois só conhecendo meu universo posso enfrentá-lo. Se nego ou decido negar

e desconhecer os caminhos e descaminhos do exercício docente, nego a

própria história e anulo qualquer possibilidade de transformação e mudança.

Segundo Vasquez,

“Se teoria não muda o mundo, só pode contribuir para transformá-lo. Ou seja, a condição de possibilidade − necessária, embora não suficiente − para transitar conscientemente da teoria prática e, portanto, para que a primeira (teoria) cumpra uma função prática, é que seja propriamente uma atividade teórica, na qual os ingredientes cognoscitivos e teológicos sejam intimamente, mutuamente considerados.” (VASQUEZ, 1968,p.207)

Todo esse panorama de déficit na formação docente encontrado no

transcorrer do cenário educacional do Brasil, justifica o que Bottega chama de

“ilusão de formação”, uma vez que estando os processos de formação

atrelados à questões políticas, funcionais, administrativas, este constitui-se

mais por seu resultado e validade quantitativa do que pelo conhecimento no

processo. Considerando que as concessões advindas da formação, em grande

parte, não chegam a ser consolidadas, já que os professores buscam

respostas práticas e prontas e cursos onde os formadores possuam um “saber

fazer”, ou seja: dêem as receitas. Esse tipo de formação estaria mais

caracterizado por treinamento do que propriamente por formação ampla, crítica

embasada e calçada na pesquisa.

É importante reconhecer a formação em serviço como uma condição

não única, mas fundamental para o estabelecimento de uma prática docente

crítica e autônoma. Daí a importância das concepções teóricas trabalhadas

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nesta formação nortearem a práxis docente e não somente aprofundarem as

questões instrumentais e técnicas da prática educativa. Professores e gestores

demonstram mais interesse por formações essencialmente técnicas, ou seja:

receitas do fazer pedagógico do que propriamente o aprofundamento de

concepções teóricas e linhas de pesquisa. A mentalidade econômica do uso e

desuso, do medialismo, do pré-cozido, pré-pronto, do descartável parece ter

alcançado nossos fazeres.

Na busca pela segurança da acertabilidade, ou da pseudo ilusão da

mesma, professores, gestores e até pais sentem-se seduzidos e atraídos

diariamente às prateleiras das “facilidades” educacionais. Um contexto

divergente à formação mais aprofundada do profissional da educação também

ajuda a conduzi-lo ao não aprofundamento: tempo escasso para leituras,

compreensão equivocada e divulgada quase como crença comum no meio

educacional sobre a dissonância entre teoria e prática; busca por algo que dê

sentido ou resposta imediata aos desafios do cotidiano docente. Até falta de

condições financeiras para “equipar-se” teoricamente conduzem professores a

respostas “práticas e pré-prontas” da prática pedagógica.

E por falar em dissonância entre teoria e prática, discurso comum até

nos meios acadêmicos há de se considerar urgentemente seu caráter

indissociável.

É certo que o dualismo teoria e prática vem sendo trabalhado e até

mesmo discutido como ambivalente e não covalentes, como de fato o são ou,

pelo menos, deveriam ser.

Teoria e prática estão profundamente imbricadas, não havendo peso de

maior valor de uma em detrimento da outra. Pois, será a atividade teórica que

irá possibilitar o conhecimento e a intervenção na realidade, possibilitando sua

gradual transformação, formando, de fato o professor, e não apenas treinando-

o?

Neste pequeno capítulo foram pontuadas apenas alguns déficits na

formação docente. Sabemos que é apenas a ponta do iceberg. Como

apropriar-se enquanto educador de concepções e valores autônomos se a

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história e os fatos comprovam que vivemos numa inexperiência democrática?

Como atribuir o conceito de autonomia a uma quase nata condição do

indivíduo? Na verdade, estamos falando de um conceito que é construído

socialmente e, sem sombras de dúvidas, é gerado, conscientizado, apreendido,

discutido, conquistado nos processos amplos de formação educacional, social

e cultural e, portanto, coletivos e democratizados.

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CAPÍTULO II

AUTONOMIA PARA PIAGET E FREIRE

“Não é livre o indivíduo que está submetido à coerção da tradição ou da opinião dominante, que se submete de antemão a qualquer decreto da autoridade social e permanece incapaz de pensar por si mesmo. Tampouco é livre o indivíduo cuja anarquia interior impede-o de pensar e que, dominado por sua imaginação ou por sua fantasia subjetiva, por seus instintos ou por sua fantasia subjetiva, e por sua afetividade, é jogado de um lado para o outro entre todas as tendências contraditórias de seu eu e seu inconsciente. É livre, em contrapartida, o indivíduo que sabe julgar, e cujo espírito crítico, o sentido da experiência e a necessidade de coerência lógica colocam-se a serviço de uma razão autônoma, comum a todos os indivíduos e independente de toda autoridade exterior.” (PIAGET,1996,p.136).

Ao estabelecer análises comparativas entre as concepções de

autonomia advindas do pensamento Piagetiano e Freireano, encontramos mais

confluências que dissonâncias, sobretudo no que diz respeito à ideia de que o

homem é sujeito de sua ação, pois suas teorias, apesar de distintas, dialogam.

Daí a justificativa de destacar esses dois teóricos, uma vez que tantos outros

dão suporte a ideia da autonomia como Vygotsky, Maturana, Varella, Leffa,

Bothn.

É importante destacar que apesar de suas especificidades, todos esses

autores comungam da percepção de que o homem, em suas práticas

relacionais, desenvolve o isolamento, não produz o conhecimento, não integra

este homem ao todo cooperativo e, consequentemente, autônomo.

Portanto, os processos de cooperação e autonomia estão não só

interligados, como imbricados, ou melhor: trazem em seus núcleos os

substratos para a aquisição da verdadeira autonomia. O que nos leva a concluir

que a vivência desse conceito parte de uma experiência coletiva, ou seja,

social, para um plano mais individualizante. A reflexão crítica, a tomada de

consciência autônoma, a liberdade de ação, nascem de ações cooperativas e

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se constroem coletivamente para alcançar a esfera individual e, por fim,

desaguar seus reflexos e frutos novamente da coletividade.

Cooperação e autonomia, portanto, estão mais que interligadas. São

simbioticamente dependentes.

O desenvolvimento da autonomia é um dos principais objetivos desse

complexo e múltiplo sistema chamado educação. Como bem nos lembra

Brandão (1985), “A educação do homem existe por toda a parte e muito mais

do que a escola, é o resultado da ação de todo o meio sociocultural sobre os

seus participantes. É o exercício de viver e conviver o que é educar.”

Ou seja, é um exercício de cooperação, afeto, consciência, crítica,

trocas, a fim de não só desenvolver, mas manter uma postura autônoma frente

à própria vida.

Para Piaget, a autonomia não está relacionada com o isolamento como

defendem os teóricos comportamentalistas assim como Shkinner. Na verdade,

Piaget entende que o pensamento autônomo e lógico operatório decorre de

práticas cooperativas, relacionais.

No entender de Piaget, ser autônomo significa estar apto a

cooperativamente construir o sistema de regras morais e operatórias

necessárias à manutenção de relações permeadas pelo respeito mútuo.

Jean Piaget caracterizava “Autonomia como a capacidade de

coordenação de diferentes perspectivas sociais com o pressuposto do respeito

recíproco.”

Para Piaget, a constituição do principio de autonomia se desenvolve

juntamente com o processo de desenvolvimento da autoconsciência. No início,

a inteligência está calcada em atividades motoras, centradas no próprio

indivíduo, numa relação egocêntrica de si para si mesmo. É a consciência

centrada no eu. Nessa fase, a criança joga consigo mesma e não precisa

compartilhar com o outro. É o estado de anomia. A consciência dorme, diz

Piaget, ou é o indivíduo da não consciência. No desenvolvimento e na

complexificação das ações, o individuo reconhece a existência do outro e

21

passa a reconhecer a necessidade de regras, de hierarquia, de autoridade. O

controle está centrado no outro. O indivíduo desloca o eixo de suas relações de

si para o outro, numa relação unilateral, no sentido, então, da heteronomia. A

verdade e a decisão estão centradas no outro, no adulto. Neste caso, a regra é

exterior ao indivíduo e, por conseqüência, sagrada. A consciência é tomada

emprestada do outro. Toda consciência da obrigação ou do caráter necessário

de uma regra supõe um sentimento de respeito à autoridade de outro. Na

autonomia, as leis e as regras são opções que o sujeito faz na sua convivência

social pela autodeterminação. Para Piaget, não é possível uma autonomia

intelectual sem uma autonomia moral, pois ambas se sustentam no respeito

mútuo, o qual, por sua vez, se sustenta no respeito a si próprio e

reconhecimento do outro como ele mesmo.

A falta de consciência do eu e a consciência centrada na autoridade do

outro inviabilizam a cooperação, pois anula a visibilidade do outro individuo

como sujeito; parafraseando Freire, como sujeito político e histórico capaz de

modificar seu destino e o de outros.

“Na medida em que os indivíduos decidem com igualdade − objetivamente ou subjetivamente, pouco importa −, as pressões que exercem sobre os outros se tornam colaterais. E as intervenções da razão, que Bovet tão justamente observou, para explicar a autonomia adquirida pela moral, dependem, precisamente, dessa cooperação progressiva. De fato, nossos estudos tem mostrado que as normas racionais e, em particular, essa norma tão importante que é a reciprocidade, não podem se desenvolver senão na e pela cooperação. A razão tem necessidade da cooperação na medida em que ser racional consiste em ‘se’ situar para submeter o individual ao universal. O respeito mútuo aparece, portanto, como condição necessária da autonomia, sobre o seu duplo aspecto intelectual e moral. Do ponto de vista intelectual, liberta a criança das opiniões impostas, em proveito da coerência interna e do controle recíproco. Do ponto de vista moral, substitui as normas da autoridade pela norma imanente à própria ação e à própria consciência, que é a reciprocidade na simpatia.” (PIAGET, 1977,p. 94,grifo nosso).

Como afirma Kamii, seguidora de Piaget:

“A essência da autonomia é que as crianças se tornam capazes de tomar decisões por elas mesmas. Autonomia não é a mesma coisa que liberdade completa. Autonomia significa ser capaz de considerar os fatores relevantes para decidir qual

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deve ser o melhor caminho da ação. Não pode haver moralidade quando alguém considera somente o seu ponto de vista. Se também consideramos o ponto de vista de outras pessoas, veremos que não somos livres para mentir, quebrar promessas ou agir irrefletidamente.” (KAMII, 1998,grifo nosso.).

Kamii também situa a autonomia numa perspectiva social, ou seja, de

vida grupal. Para ela, a aquisição da autonomia significa que o indivíduo será

capaz de autogovernar, sendo exatamente o contrário de heteronomia, quando

o indivíduo é governado pelos outros.

Ser autônomo significa então, emancipar-se emancipando. Decidir agir

da forma mais coerente e melhor para todos, não somente numa perspectiva

individual. “Não pode haver moralidade quando se considera apenas o próprio

ponto de vista.” (Kamii,1998). Até porque, ouso completar, como bem disse o

poeta, “o ponto de vista é apenas a vista de um ponto.”

Piaget pensou o desenvolvimento humano como um fenômeno

psicológico e social. Defender a corrente interacionista assim como Vygotsky,

onde o homem desenvolve-se como fruto de múltiplas vivências com o outro e

com o meio. Entendia, assim como Freire, que a autonomia é vital para que

esse desenvolvimento seja pleno e resultante de um processo de maturação.

E, por falar em Freire, há nestes dois teóricos mais confluências que

dissonâncias, pois o segundo sobre o qual nos debruçaremos nas próximas

linhas tinha como centralidade do seu pensar e de sua prática uma educação

para liberdade, onde a autonomia e a cooperação são conceitos centrais, eixos

norteadores.

Autonomia, para Freire, é uma elaboração conceitual que está

intimamente ligada ao amadurecimento do ser. Um processo constante,

permanente, um “vir a ser” que se constitui em escolhas e opções diárias e

práticas. Não se trata de algo pronto, conquistado, mas de uma conquista

diária, refletida, crescente com o outro e consigo mesmo enquanto sujeito e

como coletividade, com visão ao pleno exercício da cidadania.

Para Freire, a autonomia não é dissociada da identidade, já que a

mesma se dá a partir da construção do sujeito com a realidade e com o outro,

23

num caminho inter e intra relacional. A autonomia também não se dá descolada

dos fatos sócio histórico culturais, pois é tomando consciência através dos

processos educativos formais e informais do nosso estado permanente de

inacabamento e incompletude que os sujeitos se organizam coletivamente e

individualmente para alcançarem a cidadania e conseguirem vez e voz.

Como educador, ao formar, estou formando-me. A prática revela que

muitos professores ainda se entendem como meros transmissores de

conhecimento. Como essas identidades docentes foram e estão sendo

formadas? E mais: como estão formando e para quê? Para a conformidade,

para a passividade? Estão, como dizia Foucault, “docilizando os corpos e as

mentes”?

Freire apontava para uma educação autônoma que desse um sentido de

utilidade existencial consciente ao indivíduo e sua coletividade, não uma

existência carregada de ausência perceptiva da história e da política, servindo

apenas a interesses das manobras.

Falar em utilidade existencial, em ter e fornecer e escolher de ser capaz

de transmitir e imprimir um sentido consciente, responsável e cooperador à

vida em sociedade nos remete a história dos Índios das Seis Nações

“Há muitos anos nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os Índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque, alguns anos mais tarde, Benjamin Franklin adotou o costume de divulgá-la.

... Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de coração.

Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações tem concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficaram ofendidos ao saber que a vossa ideia de educação não é a mesma que a nossa.

... Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e

24

construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.

Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão, oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns de seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos deles, homens.” (BRANDÃO, 1985, p.9)

Como estamos construindo nosso processo identitário como

educadores, cidadãos? Considerando que interesses? Percorrendo que

caminhos? Apropriando-nos da lógica individualizante ou agindo em função da

coletividade e nos enxergando como parte dela?

Há pelo menos dois milênios, Jesus dizia: “Não vos conformeis com este

mundo, mas transformai-vos para que experimenteis a boa, perfeita e

agradável vontade de Deus.”

Sua revolução foi baseada na arma mais paradoxa que o mundo já viu.

O amor. Ele não precisou de armamento, venceu no silêncio de um gesto

incondicional de amor: a cruz. Seus conterrâneos, que esperavam um Rei

articulado, politicamente forte e que os livrassem do domínio romano, e não

perceberam que a verdadeira revolução acontecia num cenário carregado de

excluídos sociais: dois ladrões, uma ex-prostituta, um ex-coletor corrupto de

impostos e centenas de pessoas que não tinham vez e voz. O amor é a maior

revolução! O amor nega o conformismo, a exclusão, a negação. Antes,

transforma, emancipa, promove autonomia, se regozija com o bem do outro,

com suas conquistas e crescimento.

Com raras exceções não vemos escolas e profissionais da educação

dispostos a fazerem essa escolha diária, às vezes árdua, mas possível.

Vemos unidades públicas de ensino fechando as portas à voz da

comunidade. Elaborando seus “Projetos Político-Pedagógicos” sem a

participação da e fala de seus maiores representantes: a comunidade local.

Professores elaborando seus planos de aula sem conhecerem efetivamente

seus alunos, sua realidade, seus sonhos que aparecem, em parte, por um frágil

reflexo, recortados pela organização escolar e curricular. Quem são estes

25

sujeitos e o que pensam de si mesmos? Há de se fazer urgente uma

pedagogia para além dos muros da escola e de sua “anti e pseudo proteção”?

Há de se escolher uma pedagogia do afeto, da inclusão, da libertação para

todos os alunos, professores, gestores, escola, para que experimentemos qual

seja a boa, perfeita e agradável vontade do Deus inclusivo?

Não é à toa que o autor da pedagogia mais libertária que conhecemos

declarou em seus escritos que antes de conhecer Marx, conheceu Jesus.

26

CAPÍTULO III

IDENTIDADE E AUTONOMIA: UMA DIMENSÃO SOCIAL

“A educação requer responsabilidade; e não se pode ser responsável se não se é capaz de decidir, seja por impedimentos legais ou por falta de capacidades intelectuais e morais. Autonomia, responsabilidade e capacitação são características tradicionalmente associadas a valores profissionais que deveriam ser indiscutíveis na profissão de docente. E a profissionalização pode ser, nessa perspectiva, uma forma de defender não só os direitos dos professores, mas da educação.” (CONTRERAS, 2002, p.73)

Essa citação parece denotar toda a alma desse estudo. Não se

desenvolve uma educação emancipadora, nem tão pouco uma “prática crítica”

e reflexiva sem responsabilidade, ética e capacidade (intelectual e moral) de

decisão. Quando algo que deveria ser intrínseco ao exercício docente não é

tão pomo relativizado ou percebido no meio escolar, não só a profissionalidade

do professor compromete-se (entendendo o termo profissionalidade em seu

aspecto maior: de expressão dos valores, pretensões e qualidades contidos

nesse ofício) e não somente a restrição das reivindicações do âmbito salarial.

Pois é certo que pensar a profissionalidade pelo viés referencial da defesa da

crítica, da reflexão, do posicionamento político e social e da formação contínua

desse ofício é também militar e lutar ainda com mais propriedade e consciência

em favor da melhoria das condições salariais e estruturais em que vivem os

professores.

Como todo o destino dos processos educacionais, não somente o

professor é diretamente envolvido, mas também a escola como um todo: seus

alunos, responsáveis, comunidade local. Enfim, toda educação.

Se fosse possível uma analogia à temática descrita neste estudo, seria

sobre o funcionamento de um corpo humano onde tudo encontra-se

visceralmente ligado. Diríamos que o que aparentemente simboliza um

27

pequeno ferimento no dedo “mindinho” assume, inevitavelmente, a proporção

de uma septicemia, comprometendo o funcionamento de todo um corpo.

A utilização deste exemplo não tem a pretensão de elucidar o processo

educacional como algo corporativista, mas já não é possível descansar na

inocência de que a autonomia tão necessária ao exercício da docência crítica e

reflexiva seja um ato ou uma escolha meramente individual, sem consequência

para a coletividade.

A formação contínua de uma identidade comprometida com a

emancipação dos sujeitos tem uma implicação individual sim, mas, sobretudo,

coletiva.

No primeiro capítulo deste estudo, elucidamos as condições histórico-

sociais nas quais o Brasil se desenvolve, que sempre proporcionaram e

mantiveram a exclusão. A análise dessa questão por historiadores e cientistas

sociais mostra claramente que todas as condições de cidadania, princípio

básico da democracia, foram negadas à maior parte da população brasileira no

decorrer da evolução histórica do país. A história brasileira, mesmo no seu

período republicano, sempre foi marcada por ditaduras, não propiciando o

desenvolvimento de um ser autônomo, uma vez que o ambiente autoritário que

as caracterizou produz seres formados sobre o obedecer, não sobre o

construir.

A “inexperiência democrática” é reforçada por um tipo de educação que

não integra o homem num impulso de democratização, pois conforme afirma

Freire (2006,p.105): “... ditamos regras. Não trocamos ideias. Discursamos

aulas. Não debatemos ou discutimos temas. Trabalhamos sobre o educando.

Não trabalhamos com ele.” É uma prática pautada no poder sobre os alunos e

não com os alunos.

A ausência de uma prática pedagógica mais democratizada, o que, na

sua extensão, pode ser entendida como uma prática democratizadora, impede

a estruturação de uma prática autônoma, tanto no que se refere à ação do

professor, quanto no que diz respeito à ação do aluno. O que talvez fosse

importante destacar é que isso acaba se tornando uma “via de mão dupla”, pois

28

da mesma forma que a inexperiência democrática não possibilita a formação

da autonomia, o indivíduo que não desenvolve sua autonomia também não

fortalece mecanismos individuais e sociais que possibilitem, a ele e ao outro,

uma prática democrática.

Em outras palavras, enquanto a inexperiência democrática não

possibilita o exercício da prática autônoma, a ausência de uma educação

baseada numa proposta de construção da autonomia compromete a

construção de uma sociedade mais igualitária, equitativa, sustentando ainda

mais a inexperiência democrática. Nesse sentido, o exercício da democracia e

da autonomia assumem uma cumplicidade.

A identidade do professor se forma marcada por experiências anti-

democráticas e, portanto, anti-autônomas. Como consequência dessa

formação, o professor parece assumir uma postura perigosamente adaptativa,

perdendo progressivamente sua curiosidade e espírito investigativo.,

acomodando-se ao recebimento de “receitas prontas” de um fazer não

constituído com seus pares alunos, responsáveis e gestores. Esses últimos,

por sua vez (sem generalizar), não se apropriam de sua função de mediadores.

Cabe observar que, quando estamos falando do movimento reflexivo do

professor, bem como do exercício crítico do aluno como constitutivos da

autonomia, não podemos excluir os processos mediacionais necessários à

aprendizagem, seja do professor, seja do aluno. Assim, não se trata de uma

relação de “causa e efeito”, como se a autonomia pudesse decorrer

“naturalmente” da reflexão e da crítica ou, até mesmo, como se a crítica e a

reflexão decorressem “naturalmente” da prática cotidiana do professor e do

aluno. Todos esses processos que se efetivam mediante uma intencionalidade

pedagógica e psicopedagógica, sendo mediados, portanto, por um referencial

teórico, por um grupo de estudos, por um projeto político pedagógico, por uma

proposta de formação continuada em serviço, ou seja, a autonomia não

decorre espontaneamente da reflexão e da crítica do professor ou do aluno.

Para isso, é necessária uma mediação pedagógica intencional.

29

Uma escola que se proponha emancipadora deve propiciar condições

que permitam a todos os atores envolvidos no processo educacional, o

exercício da escolha responsável, da tomada de decisões éticas e

cooperadoras, da afetividade nas relações, possibilitando assim, práticas e

vivências autônomas.

É fundamental que o mediador ou os processos mediadores tenham

embutido leitura e visão profunda dos aspectos sociais e de suas implicações

na formação da identidade docente, com vias às transformações das próprias

condições (intelectuais e morais) de efetivação de seu trabalho.

O que exige do mediador e dos processos formativos uma postura

dialógica, intersubjetiva, pesquisadora, inconformada, política, reflexiva com o

mundo, com o outro e consigo mesmo.

Mesmo para Kant, que ainda percebia a autonomia como uma ação

mais individualizada, destacava que a mesma não estava isolada no próprio

indivíduo e, portanto, fechada em si mesmo e vinculada a uma dimensão de

moralidade e preocupação com fazer o bem. Ora, quem faz o bem, o faz a

outro, ou seja, mesmo neste conceito individualizado de autonomia pode-se

enxergar a possibilidade de uma construção a partir da moralidade, que não é

um ato isolado, mas coletivo e, portanto, social. Daí a ênfase na dimensão

social da autonomia.

Kant afirmava que:

“liberdade e autonomia são inseparáveis como o são da moralidade, que fundamenta as ações dos seres racionais. Então, autonomia é o fundamento da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional.” (CONTRERAS, 2002, p.79)

O situar de Kant pelos conceitos de identidade relacionado à autonomia

remete-nos a uma condição extremamente inter e intra subjetiva, pois explicita

que a conquista desse nível possível de autonomia não se materializa ou se

explica apenas no campo das representações externas, mas na essência da

formação individual dessa identidade.

30

Portanto, autonomia pode ser pensada como emancipação e não ocorre

distanciada da coletividade. Autonomia só existe quando atitude coletiva opõe-

se a controle e regulação decorrentes das práticas neoliberais. Está também,

ligada a ideia de auto-suficiência, auto-sustentação, auto-gestão. A

emancipação é o processo histórico de conquista e exercício da qualidade de

ator consciente e produtivo. Trata-se da formação do sujeito capaz de se definir

e de ocupar espaço próprio, recusando-se a ser reduzido a objeto. É no espaço

intersubjetivo que o individuo toma ao sentir suas possibilidades e

determinações que despertam para a consciência da autonomia. A

necessidade da relação, do vinculo e da convivência que favorecem a

radicalização. A emancipação verdadeira, requer uma atitude dialógica que

possibilite a recriação cultural, via cidadania democrática, e configurando-se na

necessária relação entre autonomia e identidade, na medida em que a

sociedade/comunidade são construídas a partir de concepções, ideais,

diálogos e possibilidades democráticas conquistadas com a autonomização

dos sujeitos, das instituições e das relações sociais.

Se entendermos que a identidade é um vínculo sócio-econômico-cultural

só possível, portanto, no contexto histórico, assumimos a necessidade do

outro, da coletividade, que passa também a significar e qualificar as ações e

relações e, da mesma forma, a exigir compreensão, reciprocidade,

comprometimento e envolvimento.

Não podemos desejar ou viver a dimensão da autonomia numa esfera

unicamente individual, pois, somos seres relacionais.

Também não é possível dissociar autonomia de identidade, pois

estaríamos, diretamente, comprometendo a incursão dos contextos dos

sujeitos, das históricas, dos fins em que são realizadas ações de autonomia.

Perde-se então, o caráter humanizador das relações, instituindo-se a ditadura

do pensar, do agir, das ideias e até dos sonhos. Daí a importância do papel

intransferível, iluminador e possibilitador da escola; é claro, sem encarcerá-la

ou reduzi-la a uma perspectiva puramente redentora, mas apresentando-a,

31

sobretudo, como local difusor de possibilidades, de sonhos, de afeto, de

inclusão, de autonomia e consequente e consciente cidadania.

Como bem nos lembrava o mestre Paulo Freire em sua simplicidade

complexificada: “escola é lugar de gente feliz”.

O poder da representação, ou da chamada e experimentada democracia

representativa, impede as vozes e impossibilita ideias, dificultando a

consciência e a apropriação da autonomia. Essa representatividade está

presente naquilo que Bourdieu nomeia por agenciadoras sociais, uma delas, a

escola, que não forma para a liberdade e para a vivência da condição de

sujeitos, capazes de alterarem sua história e a do outro. Na verdade, a escola

tem formado corpos dóceis, mentes passivas e desconhecedoras da

importância das suas escolhas como cidadãos, consumidores e sujeitos

históricos.

Identidade leva à participação, que conduz à autonomia. Portanto, está

na participação, na troca de ideias, no assumir o posicionamento na conquista

diária da vez e voz que está a realização da autonomia, sua segurança e a

possibilidade de mantê-la e difundi-la em prol da coletividade, da comunidade,

para o exercício pleno da cidadania.

32

3.1 – Profissionalismo e Profissionalidade

“O saber docente não é formado apenas da prática, sendo também nutrido pelas teorias da educação. Dessa forma, a teoria tem importância fundamental na formação dos docentes, pois dota os sujeitos de variados pontos de vista para uma ação contextualizada, oferecendo perspectiva de análise para que os professores compreendam os contextos históricos, sociais, culturais, organizacionais e de si próprios como profissionais.” (PIMENTA, 2005, p. 24)

Muito se fala sobre profissionalismo. Que características enquadram-se

em nosso caso? Professor como um mau ou bom profissional? É uma

conceituação que perpassa juízos de valores, baseados no censo comum, ou

há de fato aspectos fundamentados nos quais precisamos debruçar com mais

zelo e atenção?

Um dos exercícios mais praticados pelos antropólogos, pesquisadores é

a prática do distanciamento, ainda que imersos naquele contexto.

É preciso pensar o que estamos pensando como educadores,

desnaturalizar o que parece natural. Como afirma Perrenoud:

“Todos nós refletimos na ação e sobre a ação e nem por isso nos tornamos profissionais reflexivos. É preciso estabelecer a distinção entre a postura reflexiva do profissional e a reflexão episódica de todos nós sobre o que fazemos.” (PERRENOUD,2002, p.13, grifo nosso),

O que nos leva a concluir que a condição de profissional reflexivo exige-

nos uma postura específica à observação e prática de algumas competências

intransferíveis ao exercício da profissão.

Perrenoud, Freire, e tantos outros apontam para a formação de um

docente que não somente seja instrumentalizado a refletir sobre sua prática,

mas capaz de agir sobre ela, gerindo todas as transformações que sejam

33

necessárias para alcançar esse fim. A postura reflexiva sem ação não garante,

nem tampouco é suficiente, para enfrentar as múltiplas complexidades e

desafios do ato de educar, educando-se.

É possível pagar o preço que a autonomia exige, é preciso decidir em

favor da emancipação individual e coletiva. Se toda ação gera uma ação, o

refletir precisa produzir o agir. Sem generalizarmos, vemos hoje o exercício da

docência e da gestão educacional comprometidos com interesses e arranjos

pessoais, favorecendo o individualismo em detrimento do bem estar comum. É

preciso não abrir mão da coerência e não negociar valores inegociáveis.

Por certo, falar de profissionalismo docente não trata-se de elencar uma

lista de procedimentos, uma receita pré-construída, mas sim percorrer o

caminho do “querer fazer”, que se constrói diariamente, não esquecendo

jamais que a linha que divide a posição de vítima da posição de algós, é

extremamente tênue. Não cabe ao educador uma postura vitimizada e

conivente com a legitimidade da opressão.

Inicialmente, o processo reflexivo inaugura-se numa perspectiva mais

individualizante, mas progressivamente, ganha um status coletivizado que

aponta uma direção adequada em favor da emancipação e de uma construção

coerente diante da imensa pluralidade de significados que encerra o conceito

de qualidade profissional na docência.

Segundo Contreras (1990, p.16), “a primeira dimensão da

profissionalidade deriva do fato de que o ensino supõe um compromisso de

caráter moral pra quem realiza.” Ou seja, independente das mazelas

contratuais ou do ofício, quem escolhe ser professor tem um compromisso com

a emancipação e o desenvolvimento do aluno. E essa obrigação moral é papel

intransferível de quem milita e abraça a educação, tanto no que diz respeito ao

currículo oficial como ao currículo oculto. Sendo ainda mais específicos: tanto a

conteúdos intelectuais (didáticos), quanto a conteúdos relacionais. Todo esse

repertório passa pela implicação moral e educacional, imprimindo no professor

uma urgente necessidade de adaptação a novas circunstâncias e da busca

34

contínua por formas de realizar sua prática de maneira coerente com os seus

valores profissionais.

A segunda dimensão, que aponta Contreras, perpassa o compromisso

com a comunidade. Uma vez que o exercício docente é permeado por um

compromisso moral e educacional, isto, indubitavelmente, envolve o outro;

deriva de um processo relacional. Como já nos apontava a concepção Kantiana

de autonomia, está imbricado de implicações éticas e morais. Como bem nos

lembra Contreras,

“A moralidade não é um fato isolado, mas, ao contrário, um fenômeno social, produto de nossa vida em comunidade, na qual é preciso resolver problemas que afetam a vida das pessoas e seu desenvolvimento e que precisam elucidar o que é moralmente adequado para cada caso. Neste sentido, a moralidade não é apenas uma questão pessoal, é também uma questão política (Hargreaves, 1994b). A educação não é um problema da vida privada dos professores, mas uma ocupação socialmente encomendada e responsabilizada publicamente.” (CONTRERAS, 2002, p.79)

Reconhecemos que esse processo é uma via de mão dupla, pois a

comunidade também tem o dever de fazer valer sua consciência autônoma

pública na resolução de conflitos e dilemas sociais. Não há outro caminho para

encontrar soluções frente à pluralidade das tramas sociais e educacionais,

senão a partir de uma prática ética e autônoma da escola e da comunidade.

Observemos o seguinte exemplo: efetivamente, quantas escolas enxergam o

projeto político pedagógico de sua unidade como um documento vivo, e o

constroem com participação comunitária? Quantas escolas priorizam a

presença e o compromisso de decisão dos responsáveis através da formação

dos conselhos escola/comunidade, não apenas convocando os pais

pontualmente nas apresentações de efemérides? Este é um exercício árduo,

mas possível, se desejamos, enquanto educadores, desenvolver uma

consciência e uma prática cidadã. E, mais do que isso, sermos continuamente

afetados e compromissados por essa perspectiva.

Já a terceira dimensão, é a da competência profissional. Essa terceira

dimensão seria uma espécie de pilar de sustentação para as outras duas, pois,

tanto a obrigação moral quanto o vínculo com a comunidade requerem

35

competência profissional. Todo trabalho exige domínio de habilidades e

técnicas que instrumentalizem o profissional em suas práticas. Porém,

transitamos e tratamos de um ofício por demais complexo e singularizado, que

necessita ser constantemente refletido, reelaborado, reescrito e partilhado

numa contínua dinâmica analista de trocas objetivas e subjetivas e permeadas

por princípios normativos, legais e valorativos. Como aponta Contreras:

“A competência profissional é uma dimensão necessária para o desenvolvimento do compromisso ético e social, porque proporciona os recursos que a tornam possível. Mas, é ao mesmo tempo, a consequência destes compromissos, posto que se alimenta das experiências nas quais se devem enfrentar situações de dilemas e conflitos nos quais está em jogo o sentimento educativo e as consequências da prática escolar. Da mesma maneira, podemos dizer que a competência profissional é o que capacita o professor para assumir responsabilidades, mas que dificilmente pode desenvolver sua competência sem exercitá-la.” (CONTRERAS ,2002, p. 85):

É importante que o professor desenvolva uma capacidade reflexiva tanto

no que diz respeito a conhecimento profissional em relação aos conteúdos de

sua profissão, bem como sobre os contextos que estão no entorno de sua

prática. O espaço educacional precisa ser lido como um lugar de intervenções

constantes.

Mesmo que o professor observe as competências aqui descritas, tenha

uma postura pesquisadora, tanto no que diz respeito a conteúdos (didáticos),

quanto ao contexto que o envolve, e ainda conte com ações mediadoras

consistentes e coerentes e passe por processos de formação contínua, não

será possível desenvolver competências, como bem cita o autor acima, sem

exercitá-las. O censo comum, por vezes carregado de sabedoria, já nos

adverte: “o hábito faz o monge”. Se entendemos que teoria e prática são

covalentes, e não ambivalentes, temos que escolher vivenciar esse exercício,

para que, de fato, seja efetiva a transformação da prática educativa de cada

dia.

Não poderíamos encerrar este capítulo que discute exatamente sobre a

aquisição da autonomia nas tecituras dos processos de profissionalismo sem

tocar num aspecto que coíbe, limita e encarcera a autonomia do professor e da

36

escola. Por que mentalidade as políticas publicas de ensino são regidas? Nos

permitimos aqui, fazer um recorte educacional que facilite a análise da

autonomia e da profissionalidade docente enquanto conceito social na esfera

pública de ensino.

Se fizermos uma breve incursão histórica pelas reformas educacionais

que o nosso país viveu, veremos presente o discurso e as ações de uma

mentalidade tecnocrata que justifica os problemas educacionais a partir do viés

administrativo. Temos Secretários, Ministros da Educação que tem formação

acadêmica em economia, medicina e tantas outras áreas. Estes profissionais

criam e reelaboram reformas, ditam referenciais e pensam o processo

educacional apenas de forma administrativa e técnica, resituando a educação

num campo por demais simplista face à demanda da complexidade que essa

área de conhecimento, ou melhor, essa ciência, exige e requer. Poucos são

os que militam nas esfera macro da educação que são, por formação,

educadores. E o pior: ainda somos, enquanto professores, agradecidos por

estarmos sofrendo a ingerência direta de “áreas nobres” do conhecimento, e

“desfrutar”, ainda que ilusoriamente, do “status” que advém dessa

circunstância, mesmo que para isso, paguemos o preço de embarcar com

bilhete único em uma classe mais que econômica no bonde da educação que

leva a um lugar de invisibilidade social e política.

Vivemos enquanto educadores, uma permanente crise da lida, e somos

defraudados em muitas questões centrais e periféricas referentes a salários,

condições de trabalho, valorização e outros. Que pelo menos reste o status de

alcançar um papel de destaque no meio educacional: o de ser gestor. Mas,

gerir para quê? Para transformar e emancipar ou para utilizar-se de seu

“pseudo” para reforçar as relações anti-democráticas na qual ele próprio foi

formado e submetido?

Questões como as concepções de qualidade total em educação, não

trazem nada de novo que não tenha sua gênese, seu DNA nas compreensões

tecnocratas e mercadológicas de um sistema capitalista que enfatiza a

37

descartabilidade, o lucro exacerbado e o progressivo processo de

desumanização a despeito da emancipação dos sujeitos.

A escola e as relações tecidas em seu bojo não podem ser

compreendidas como uma mera soma de interesses particulares, clientelistas e

corporativistas, onde a esfera do fazer político restrinja-se apenas a funções

técnicas de âmbito administrativo. Todos os atores educacionais e pessoas

envolvidas neste processo precisam e devem estar ligados de maneira tal que

pensem o currículo oficial e oculto, as dinâmicas e imprevisibilidades do

cotidiano escolar, o administrativo de maneira interligada e indissociada nesta

complexa organização chamada escola.

“O trabalho do professor não pode portanto,ser compreendido à margem das condições sócio-políticas que dão credibilidade à própria instituição escolar. Não se pode falar de autonomia sem uma clara consciência do papel social e político que a escola desempenha e como este se concretiza em cada passo.Isso significa não só uma compreensão sociológica de como a escola contribui ou pode contribuir para a igualdade ou desigualdade social. Significa também uma compreensão de como o ensino deve procurar dotar todos os alunos de recursos culturais e intelectuais socialmente equivalentes e internamente plurais.” (CONTRERAS,2002 p :273)

Isso tudo advém da convicção e busca por um processo mais

democrático na educação e, por isso mesmo, mais autônomo. É preciso

lembrar Rubem Alves, que diz: “é necessário aprender a linguagem do amor,

das coisas belas e das coisas boas, para que o corpo se levante e se disponha

a lutar”.

38

CONCLUSÃO

Este trabalho se propôs discutir e elucidar a importância do conceito de

autonomia como braço de uma aquisição social e, por consequência,

democrática na formação das práticas docentes.

Ninguém nasce autônomo, nem tão pouco predisposto a. Ao contrário:

nos construímos autônomos a partir do outro, das relações intra e inter

subjetivas. Desta reflexão, deriva a convicção e, por fim, a ação, inaugurando o

processo democrático da educação, onde a autonomia profissional é

construída juntamente com a social, ou seja: estão profundamente interligadas

e são indissociáveis.

Educadores que escolhem e decidem ir além da mera postura reflexiva,

mas a agregam a uma ação efetiva, acabam por construir cotidianamente uma

prática emancipadora, crítica, humanizadora e capaz de responder de maneira

emocionalmente inteligente e positiva às inúmeras possibilidades e

complexidades do cotidiano escolar e do sistema educacional brasileiro.

Neste sentido, este estudo aponta e compila reflexões que merecem,

pelo seu teor de relevância crítica, serem aprofundadas, na intenção de refletir

e, como instrumento mediador, intervir nos caminhos e descaminhos da escola,

entendendo-a como uma organização que poderá contribuir e favorecer tanto a

igualdade, como a desigualdade social.

A autonomia no exercício da docência deve portar um caráter

cooperador, e não corporativista, pois este último atua pontualmente na defesa

de interesses pessoais e individuais, não a favor do bem coletivo.

39

Estudar autonomia na formação da identidade e da profissionalidade do

professor, é, antes de tudo, retirar este conceito de uma perspectiva comum e

simplista de uma esfera meramente representativa e facilmente encontrada nos

discursos pedagógicos e que, muitas vezes, serve para encobrir tensões,

interesses, pretensões e perpetuar manipulações, tanto no que diz respeito ao

exercício da docência e suas intervenções, quanto ao domínio das políticas

educacionais.

Dissecar e refletir dialogicamente as ambigüidades, equívocos e

complexidades contidas nesse conceito, desvela muito do que, por certo,

precisamos nos apropriar e viver quanto se almeja uma prática educativa

emancipadora.

40

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