do tático ao estratégico - monografia gyssele mendes
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL
DEPARTAMENTO DE ESTUDOS CULTURAIS E MÍDIA
GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE MÍDIA
Do tático ao estratégico: reflexões sobre a cultura de consumo, lixo e
invisibilidade a partir do estudo de caso do personagem Tião Santos
Gyssele Fábia Mendes Pereira
Orientadora: Profª. Drª. Ana Lúcia da Silva Enne
Niterói, dezembro de 2011.
GYSSELE FÁBIA MENDES PEREIRA
Do tático ao estratégico: reflexões sobre a cultura de consumo, lixo e
invisibilidade a partir do estudo de caso do personagem Tião Santos
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel
em Estudos de Mídia.
Orientadora: Profª. Draª Ana Lúcia da Silva Enne
Niterói, dezembro de 2011.
II
GYSSELE FÁBIA MENDES PEREIRA
Do tático ao estratégico: reflexões sobre a cultura de consumo, lixo e
invisibilidade a partir do estudo de caso do personagem Tião Santos
Monografia apresentada ao Curso de Graduação em
Estudos de Mídia da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção do Grau de Bacharel
em Estudos de Mídia.
15 de dezembro de 2011.
BANCA EXAMINADORA
Profª. Drª. Ana Lúcia da Silva Enne – Orientadora
UFF
Profª. Drª. Carla Barros
UFF
Profª. Drª. Mariana Baltar
UFF
Niterói, dezembro de 2011.
III
Agradecimentos
Agradeço imensamente à professora, orientadora e amiga, Ana Enne, por toda a
dedicação, paciência, carinho, amizade e cuidado que teve comigo durante esses anos de
graduação. O contato que tive com suas aulas e seu modo de ensinar foram decisivos para os
caminhos que tomei em Estudos de Mídia. As orientações, sempre atentas e proveitosas,
foram essenciais para o desenvolvimento desta monografia e do meu projeto de mestrado.
Para além da vida acadêmica, seus ensinamentos transformaram minha visão de mundo e não
há agradecimento que dê conta disso.
Aos professores e colegas de Estudos de Mídia, que me acompanharam nessa jornada
desconstruindo minhas certezas a cada aula e pensamento compartilhado, dando forma à vaga
ideia que tinha sobre o curso e sobre a vida.
Aos meus pais, Jane e Luiz, e aos meus avós, Andrelina, Manoel e Terezinha, pelo
apoio (quase) incondicional à ideia (que era) maluca de me debandar para tão longe atrás de
algo que nem eu mesma sabia explicar. Mesmo de longe, me acompanharam a cada conquista,
com palavras de carinho e apoio que só me motivaram ainda mais.
À Casa Verde, um lugar mágico, palco de minha própria reciclagem e que me trouxe
pessoas sem as quais é difícil viver hoje.
IV
Resumo
Esta monografia visa a compreender os deslocamentos observados nos discursos
produzidos por e sobre Tião Santos, personagem central do documentário Lixo Extraordinário
(Lucy Walker, Karen Harley e João Jardim, 2009) e para além deste. Investigaremos as falas
do personagem no filme e em situações pós filme, como palestras e propagandas que
protagoniza, aplicando os conceitos de táticas e estratégias de Michel de Certeau.
Para isso, se faz necessária a discussão acerca das relações de produção de sentido em
torno do “universo do descartável”, enquanto construção sociocultural inserida numa lógica
do consumo. Os signos de impureza e poluição simbólica que demarcam esses espaços e
sujeitos que convivem com o lixo geram efeitos de invisibilidade e marginalidade, solapando
os demais sentidos que permeiam esse ambiente. A partir desse contexto, veremos como são
negociadas as múltiplas significações do descartável em Lixo Extraordinário, assim como são
reapropriadas por Tião Santos nos embates discursivos que trava.
De um modo geral, este trabalho buscará mapear as práticas discursivas em torno do
universo do descartável, fazendo uma análise da cultura da mídia com recorte na categoria
audiovisual e refletindo sobre a complexa relação entre sociedade, cultura e mídia. Além de
mostrar o lixo como um invenção cultural, queremos destacar as ressignificações e
reapropriações realizadas pelos “sujeitos descartáveis”, tipologia que adotamos para os
indivíduos que vivem no e do lixo, socialmente invisíveis, representados nesta monografia por
Tião Santos.
Palavras-chave
Produção de sentido – Cultura de consumo – Lixo – Documentário – Tião Santos
V
Sumário
Introdução______________________________________________________________ 7
Capítulo 1 – As relações de produção de sentido acerca do universo do descartável na cultura
de consumo_____________________________________________________________11
1.1 – A configuração de espaços e sujeitos indesejáveis na cultura de consumo__12
1.2 – Por uma outra etapa da vida social das coisas: as relações entre morte e universo
do descartável _____________________________________________________18
1.3 – A “vida” do lixo: fetichismo da mercadoria e visibilidade midiática_______21
Capítulo 2 - As reconfigurações dos sentidos do descartável em Lixo Extraordinário____24
2.1 – Problematizando o gênero discursivo documentário____________________25
2.2 – Impureza, poluição e perigo articuladas em Lixo Extraordinário__________30
2.3 – Projeto social ou estratégia de marketing?____________________________33
Capítulo 3 – Do tático ao estratégico: os deslocamentos discursivos de Tião Santos_____39
3.1 – A produção artificial de sentidos nas trajetórias e projetos individuais______40
3.2 – As táticas e astúcias no personagem Tião Santos_______________________42
3.3 – A sociedade não nos vê como lixo: a consolidação do lugar estratégico do sujeito
Tião Santos________________________________________________________46
Considerações Finais______________________________________________________50
Bibliografia_____________________________________________________________52
VI
Introdução
O ato de consumir sempre esteve presente nas sociedades humanas como modo de
reprodução sociocultural dos sujeitos1. Tal ato se inscreve num circuito do consumo que na
contemporaneidade vai desde a exploração dos recursos naturais que serão enviados para as
linhas de produção industrial, passando pela distribuição desses produtos acabados nos locais
designados para sua compra e consumo, como shoppings e hipermercados, até chegar a sua
etapa final, o descarte nos aterros e lixões. Nessa última fase do ciclo, há um “universo do
descartável”, que compreende estes espaços e sujeitos demarcados pela presença do lixo,
pouco visto pelas perspectivas sociocultural2 e da comunicação.
A maior parte dos estudos realizados sobre o lixo procuram analisá-lo a partir da visão
da saúde pública e do meio ambiente. Nessas pesquisas, são ressaltados alguns aspectos
sociais, mas os sujeitos não são vistos como ativos nesse processo, capazes de negociar e agir
de modo a mudar suas situações, parecem escondidos por trás das porcentagens que
incrementam as estatísticas dos problemas sociais no país. Assim, esta monografia busca
pensar os discursos produzidos pelo personagem Tião Santos, central no documentário Lixo
Extraordinário (Lucy Walker, Karen Harley e João Jardim, 2009), enquanto líder e voz
autorizada construída por esta mesma mídia audiovisual nos discursos que tangenciam o
filme, como por exemplo, em questões relacionadas ao lixo, meio ambiente, desenvolvimento
sustentável e reciclagem.
Nos interessa entender de que forma Tião adquire visibilidade através do
documentário e é projetado para além dele. Nesse processo de construção de sua imagem,
Tião negocia suas posições identitárias com o descartável, com a identidade de catador, pois é
na sua experiência com o lixo que se baseia sua autoridade. A nossa proposta está relacionada
ao movimento imbricado e instável entre estrutura e sujeitos estruturantes, não tomando-os
como categorias fechadas, mas em constante reconfiguração. De catador a figura
internacionalmente conhecida, seja por meio das obras de Vik Muniz, seja por meio da sua
1 A antropóloga Lívia Barbosa inicia o livro Sociedade de consumo (2004) questionando o rótulo de
“consumo” nas expressões sociedade e cultura de consumo. Uma vez que o ato de consumir sempre esteve
presente nas sociedades humanas, o que tornaria a sociedade contemporânea, pós anos 60, uma sociedade de
consumo? A partir disso, a pesquisadora apresenta um quadro teórico dos estudos sobre o consumo, inclusive no
Brasil, comentado no decorrer deste projeto.
2 José Carlos Rodrigues (PUC/RJ) aponta em seu livro Higiene e Ilusão – O lixo como invento social (1995) que o estudo do lixo é focado em seu aspecto técnico, a cargo de urbanistas e sanitaristas, deixando de
lado sua dimensão simbólica. O referido livro de Rodrigues nasce do projeto de pesquisar as significações do
lixo na comunidade da Rocinha, tratando de sua perspectiva histórica e cultural.
imagem estampada em latinhas de Coca-Cola, propomos que o deslocamento discursivo aí
observado seja visto por meio dos conceitos de táticas e estratégias de Michel de Certeau.
Lixo Extraordinário é uma produção brasileira e inglesa, sendo filmado entre agosto
de 2007 e maio de 2009. O filme documenta o processo de produção da série fotográfica
Pictures of Garbage, de Vik Muniz, artista plástico e fotógrafo brasileiro radicado em Nova
York há quase 30 anos. Em busca de novos materiais e perspectivas para a composição do
projeto, associado a uma intenção social, Muniz “descobre” o Jardim Gramacho, através de
Fábio Ghivelder, seu assistente. Escolhe seis fotografias para sua série de trabalhos e os
fotografados se tornam personagens do filme: Ísis, Tião, Irmã, Zumbi, Suelem e Magda. A
partir das imagens, o artista propõe o trabalho de elaborar quadros que ganham forma no seu
preenchimento com material reciclável. As criações são vendidas e o dinheiro arrecadado
revertido para a ACAMJG – Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim
Gramacho, da qual Tião é presidente.
Nosso interesse em pesquisar o universo do descartável e o consumo foi despertado
numa cena do referido documentário. Um grupo de catadores de materiais recicláveis vai
identificando, a partir da análise do lixo no aterro, classes sociais e estilos de vida associados
àquela mercadoria descartada. Observam um sapato e o relacionam a uma “mulher
executiva”, pegam um saco de lixo e dizem que é “lixo de pobre”, porque “a sacola é
pequena”, definem determinados objetos como sendo de classe média, etc. Esta cena nos fez
refletir sobre como é possível inferir aspectos da sociedade e cultura brasileira tendo o lixo
como eixo norteador das práticas socioculturais, assim como das posições identitárias
assumidas pelos sujeitos localizados no seu entorno.
Dessa forma, para pensarmos este processo de construção cultural optamos pela
tipologia “sujeitos descartáveis”, que se refere aos indivíduos que vivem no e do lixo,
delimitando as posições identitárias que vamos tratar nesta pesquisa. Os processos de
formação identitária tendo como eixo o descartável são complexos e vão muito além da
configuração de uma categoria socialmente invisível. O lixo traz uma gama de relações que
não são observadas quando este se encontra em seu estado simbólico e temporal de
mercadoria, forma valorizada numa sociedade e cultura de consumo.
No caso da sociedade e cultura brasileira3, ressaltamos que sua constituição se deu
3 Não estamos considerando aqui que haja uma única cultura brasileira ou mesmo desconsiderando a
construção narrativa da ideia de nação no Brasil. O uso no singular se refere aos imaginários e representações
compartilhados e reapropriados pelas diversas culturas escondidas na expressão “cultura brasileira”,
muito atravessada por um comportamento tido como medieval nas questões relacionadas ao
lixo. O antropólogo José Carlos Rodrigues atenta para os colonizadores que aqui chegaram,
ainda imersos num mundo anterior ao capitalista. Manifestações como o carnaval, por
exemplo, traço da cultura brasileira, tinha nos dejetos um componente essencial no mundo
medieval, como a utilização de urina e fezes pelos padres para benzer a população nos
cortejos. O que hoje provavelmente nos causaria asco, era tratado com deboche, jocosidade,
apontando para outras mentalidades e sensibilidades nas questões relacionadas à poluição.
Para realizar nosso estudo, organizamos esta monografia em três capítulos.
Inicialmente trataremos das questões relacionadas ao lixo e ao consumo, buscando desvendar
as múltiplas significações do descartável marcado discursivamente por signos de impureza e
pela poluição simbólica. Tais associações geram efeitos de marginalidade e invisibilidade
social, investindo de poderes e perigos estes espaços e sujeitos que convivem diariamente
com o lixo.
O universo do descartável, ao ser representado via mídia, é inserido num regime de
valor e visibilidade que confere o estado de mercadoria, de objeto de desejo a ser consumido
àquilo que antes estava jogado no esquecimento, deslocando sentidos que pareciam
acomodados. Para discutir as ideias referentes ao lixo e à poluição, nos basearemos
inicialmente nos livros Higiene e Ilusão – O lixo como invento social (1995), de José Carlos
Rodrigues e Pureza e Perigo (1991), da antropóloga Mary Douglas.
Desta forma, trataremos o lixo como uma construção cultural, buscando desnaturalizar
as dicotomias a este atribuídas. A exclusão e a interdição que o lixo promove ganham o campo
do simbólico e como afirma Rodrigues, “na raiz, a higiene não é, portanto, uma questão de
microbiologia: podemos fazer a desinfecção que quisermos, podemos aniquilar germes e
bactérias, não eliminaremos o problema mágico da sujeira” (1995, p. 85).
Em nosso segundo capítulo, discutimos as questões relacionadas ao gênero discursivo
documentário. Para isso, entendemos o produto audiovisual inserido numa cultura da mídia,
auxiliados por Douglas Kellner, e nos apoiamos em Bill Nichols que levanta uma série de
questões quanto à forma de representação do cinema documental, por vezes confundida com o
mundo histórico. Partindo disso, fazemos uma análise de Lixo Extraordinário, buscando
delinear as reconfigurações dos sentidos do descartável produzidas pelo filme.
Por fim, no capítulo três, apontamos os deslocamentos observados nas falas de Tião
intensificados pelo desenvolvimento e usos do aparato midiático.
Santos, como personagem do documentário e para além deste. Investigaremos suas falas no
filme, relacionando-as ao uso das táticas como mecanismos de inserção quase invisíveis na
disputa discursiva. Em seguida, apresentaremos argumentos que mostram o seu lugar de fala
legitimado e estrategicamente posicionado pós filme, utilizando como exemplo principal o
seu pronunciamento em duas palestras realizadas em 2011. Entendemos que o alargamento no
campo de possibilidades de ação de Tião é fruto do agenciamento da mídia, a partir do seu
lugar de postulação de poder, articulado a uma ação tática por parte do personagem nos
espaços conquistados.
De um modo geral, este trabalho buscará mapear as práticas discursivas em torno do
universo do descartável, fazendo uma análise do campo midiático com recorte na categoria
audiovisual e refletindo sobre a complexa relação entre sociedade, cultura e mídia. Além de
mostrar como são construídos os sentidos do lixo, queremos destacar as ressignificações e
reapropriações realizadas pelos sujeitos descartáveis, invisíveis até então.
1 – As relações de produção de sentido acerca do universo do descartável na
cultura de consumo
Neste capítulo, apresentaremos os múltiplos sentidos atribuídos ao universo do
descartável, assim como as disputas que se dão em torno da sua significação, ressaltando o
seu caráter de invento sociocultural. Acreditamos que longe de se findar na etapa do descarte,
o lixo aí presente levanta uma série de questões pouco abordadas nos estudos socioculturais,
assim como é pouco observado o universo do descartável à sua volta, mesmo sendo o lixo o
mais abundante produto da sociedade contemporânea, segundo Zygmunt Bauman (2007, p.
17).
Organizamos esta parte da monografia da seguinte forma: inicialmente,
compreenderemos como se configuram os espaços e sujeitos indesejáveis na cultura de
consumo, recorrendo aos textos de Lívia Barbosa, Don Slater, Mary Douglas, Bauman e José
Carlos Rodrigues. A atribuição dos signos de impureza e poluição simbólica ao universo do
descarável geram efeitos de marginalidade e invisibilidade que, além de se sobreporem aos
demais sentidos em disputa, atuam de modo a restringir os discursos produzidos por e sobre
os “sujeitos descartáveis”.
A partir da ideia de vida social das coisas de Arjun Appadurai, propomos que a etapa
do descarte seja vista como mais uma fase na trajetória das mercadorias, carregada de
simbolismos que a diferem dos demais percursos do consumo na sociedade. Ao serem
representados via mídia, esses espaços e sujeitos no entorno do lixo são inseridos em um
regime de valor e visibilidade que lhes confere vida e voz por meio do processo de
fetichização, afastando temporariamente os signos que antes demarcavam negativamente esse
ambiente. Dessa forma, evidenciamos o deslocamento dos sentidos acerca do universo do
descartável.
De sujeitos invisíveis e indesejáveis à personagens do cinema documental, os “sujeitos
descartáveis” passam a ser vistos e percebidos quando se tornam objetos de consumo. Temos
então o embaçamento das fronteiras entre sujeito e mercadoria, tema que será explorado no
decorrer deste capítulo. Como veremos em Bauman, se tornar objeto de consumo é uma das
premissas para se tornar consumidor na cultura de consumo.
1.1 – A configuração de espaços e sujeitos indesejáveis na cultura de consumo
De acordo com a antropóloga Lívia Barbosa (2004), o rótulo “consumo”, nas
expressões “sociedade de consumo” e “cultura de consumo”, apontaria tanto para uma forma
particular de consumo presente na sociedade contemporânea quanto para um arranjo social
específico, com valores, instituições e personagens sociais fabricados para atender às novas
demandas. A antropóloga aponta que são escassos os trabalhos que abordam o consumo no
Brasil e a sociedade brasileira como uma sociedade de consumo4. Segundo ela, nos estudos
brasileiros o foco recai sobre as perdas e ausências da “autenticidade”, a erosão cultural
promovida pelo consumo individualista e desenfreado, recorrendo pouco a outros temas
pertinentes ao contexto social do país (ibidem, p. 61).
Num panorama mais geral, o consumo se mostra como um campo de investigações
complexo, abarcando várias atividades, atores e um conjunto de bens e serviços amplos. Lívia
Barbosa e Colin Campbell desenvolvem no texto “O estudo do consumo nas Ciências Sociais
contemporâneas” (2006) uma definição abrangente do que é o consumo:
Assim, na sociedade contemporânea, consumo é ao mesmo tempo um processo social que
diz respeito a múltiplas formas de provisão de bens e serviços e a diferentes formas de
acesso a esses mesmos bens e serviços; um mecanismo social percebido pelas ciências sociais como produtor de sentido e de identidades, independentemente da aquisição de um
bem; uma estratégia utilizada no cotidiano pelos mais diferentes grupos sociais para definir
diversas situações em termos de direitos, estilos de vida e identidades; e uma categoria
central na definição da sociedade contemporânea. (Barbosa; Campbell, 2006, p. 26)
Reforçando tais ideias, observamos que, assim como propõe Don Slater no livro
“Cultura de consumo e modernidade” (2002), ao discutir o consumo devemos nos voltar para
“como os processos, objetos e ideologias consumistas podem atuar como mediações, áreas de
trabalho cultural” (ibidem, p. 7), que são reconfiguradas a partir das disputas que se dão pelo
poder de atribuir sentidos. Slater busca compreender a maneira como se articularam as
experiências modernas que resultaram na cultura de consumo contemporânea.
Segundo o autor, a cultura do consumo vem sendo relançada como produto acadêmico
4 Lívia Barbosa e Laura Gomes realizaram pesquisa no Instituto Universitário de Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro (Iuperj) e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UFRJ (Museu Nacional) em busca de teses que tratassem da temática consumo e encontraram poucos trabalhos. Barbosa cita ainda que “a
determinados grupos sociais como, por exemplo, é o caso dos negros, lhes é negado inteiramente o status de
consumidores” (2004, p. 60).
ou político desde o século XVI, além de existir como um problema para os críticos sociais,
uma ideologia para a população e uma realidade para a burguesia desde o início do século
XIX (ibidem, p. 23). Em relação às formas anteriores de consumo, a cultura do consumo
contemporânea se distingue por ter se tornado o modo dominante de reprodução cultural
desenvolvido no Ocidente, baseando-se em práticas, instituições, infraestrutura, experiências e
sujeitos consolidados na modernidade. Para Slater, a cultura do consumo adquire o sentido de
cultura de consumo na modernidade, designando um acordo em que as relações sociais são
mediadas pelo consumo e daí derivadas.
Os moldes da cultura do consumo foram reavaliados na modernidade a partir da
articulação de três fatores, destacados por Slater: novos registros históricos que oferecem
evidências consideráveis de um recente “mundo de mercadorias” em expansão no início do
período moderno; o surgimento e a disseminação social do sistema da moda para um público
consumidor ampliado; e as novas formas de empresa e de organização comercial,
configurando novas infraestruturas de consumo na modernidade. O consumo é redefinido em
relação ao comércio no século XVIII que, por sua vez, passa a fornecer imagens e conceitos
pelos quais a sociedade é compreendida (2002, p. 29).
Don Slater nos mostra que a década de 20 surge como o primeiro período consumista,
resultado de um longo processo, iniciado em 1880 com o surgimento de um sistema de
produção em massa cada vez mais dedicado a produzir bens de consumo (ibidem, p. 22). É
nesse período que as regras modernas referentes aos modos como os objetos de consumo
devem ser produzidos, vendidos e assimilados pela vida cotidiana ganham força.
O exemplo mais significativo desse processo é a ascensão do modelo fordista de
produção, seriado e em massa, para atender mercados consumidores cada vez mais amplos
geográfica e socialmente. Assim, o consumo era percebido tanto como um instrumento de
ordem social e de satisfação privada, quanto como uma dissolução social e ruptura cultural.
Essa disputa demonstra os embates em torno da própria ideia de consumo que, por um lado, é
visto negativamente como desperdício e destruição e, por outro, representa o fruto do trabalho
e da realização.
Slater ressalta que os anos 80 representaram a redescoberta do consumo, adotando o
consumidor como o novo herói moderno, comportamento percebido na juventude yuppie
desse período. É inegável a influência da teorias neoliberais da era Reagan5, que viam no
5 Para uma discussão aprofundada do assunto, recomendamos o estudo empreendido por Douglas
consumo o motor da prosperidade, uma ferramenta proeminente para administrar a
estabilidade econômica e política e a recompensa por abraçar o sistema. Desse modo, o
consumidor é construído como o modelo obrigatório para todas as relações sociais e exemplos
de dinamismo e liberdade cívicos (ibidem, p. 20).
De acordo com o autor, a década de 80 anunciou a subordinação da produção ao
consumo sob a forma de marketing, condensando o valor de uso e de troca das mercadorias
sob a imagem da marca, discussão que retornaremos adiante, com o apoio de Isleide
Fontenelle. As posições na cultura de consumo nesse período foram construídas como reações
aos movimentos contestatórios dos anos 50 e 60. O grande tema do período é, segundo Slater,
o administrativismo econômico, por meio da teoria keynesiana e do estatismo previdenciário
(2002, p. 20).
O autor elabora linhas gerais para a compreensão da cultura de consumo, atentando
para suas características principais. Primeiro, a cultura de consumo seria marcada pela noção
de que as práticas sociais, valores culturais, projetos e identidades são organizados e
orientados para e pelo consumo. Como segundo e terceiro aspectos, Slater aponta para as
relações de mercado que mediam o consumo moderno, constituindo relações que tendem a ser
universais e impessoais, retratando um campo de liberdade em que todos podem ser
consumidores, ao mesmo tempo em que devem ser consumidores.
Outra característica apontada é a identificação entre liberdade e escolha/vida privada,
que confere ao consumidor a imagem sedutora de liberdade e demonstra a centralidade da
noção de indivíduo no consumo. A construção da ideia de necessidades ilimitadas e desejos
insaciáveis, que atuam como formas de manutenção da ordem e do progresso econômico,
evidenciam a convivência com éticas ambíguas. De um lado, tem-se o planejamento racional,
a disciplina e a labuta, de outro, a promoção de paixões e desejos, refletindo uma tendência
hedonista de consumo, característica apontada também por Colin Campbell.
A cultura de consumo se apresenta como meio privilegiado para negociação de
identidades e status numa sociedade pós-industrial, dada a liberdade de escolha do indivíduo
associada ao consumo, citada acima. Por fim, Slater afirma que a cultura de consumo
representa a importância crescente da cultura no moderno exercício do poder. Para o autor, o
consumo moderno surgiu inicialmente no ideal de uma sociedade liberal e comercial, formada
Kellner no livro “A cultura da mídia” (2006), relacionando as produções de sentido de filmes como Rambo e Top
Gun à ascensão das teorias neoliberais conservadoras na era Reagan nos EUA. Com isso, Kellner evidencia o
lugar estratégico ocupado pela mídia na construção dos imaginários e visões de mundo contemporâneos.
por indivíduos livres e de associações fluídas.
Reforçando Slater, recorremos à tese de doutorado de Sandra Silva (2010), que destaca
três aspectos nas complexas transformações históricas que possibilitaram o surgimento de
uma cultura e sociedade de consumo: o surgimento de uma ética romântica, que vai resultar
num hedonismo moderno marcado pela busca incessante do desejo e não pela sua satisfação,
havendo portanto, uma mudança na concepção das fontes do prazer; a crescente
individualização do consumo, que anteriormente era controlado por leis suntuárias, com o
status social sendo determinante nos estilos de vida dos grupos sociais e vice-versa; e a
substituição do consumo de pátina, onde o status advinha das marcas do tempo, por exemplo,
pelas gerações que determinada mobília permanecia numa família, pela lógica da moda, que
constrói outras formas de inclusão e exclusão, imperando a obsolescência e o gosto pela
novidade. Para a nossa pesquisa interessa sublinhar a primeira mudança citada por Silva,
referente à alteração nas concepções de prazer com o surgimento do hedonismo moderno.
O sociólogo Georg Simmel escreve “Psicologia do Coquetismo”, em 1909, onde
analisa o fenômeno da paquera, refletindo também acerca das relações entre desejo e
consumo. Em Simmel, o coquete despertaria o desejo e o prazer por meio de um jogo de
recusa e entrega. Para ele, não é “apenas a atração de uma coisa à venda que determina o
preço que aceitamos pagar; inúmeras vezes, ao contrário, é apenas o fato de que é pedido
certo preço, de que sua aquisição não é fácil, requer esforços e sacrifícios, que nos torna a
coisa atraente e desejável” (Simmel, 1993, p. 94). Assim, o jogo do desejo, e também o do
consumo, estaria voltado para a manutenção constante do desejar como a fonte do próprio
prazer, enquanto sua satisfação representaria a morte desse desejo.
Em “Turistas e Vagabundos” (1999), Bauman também defende a ideia de que a
“promessa e a esperança de satisfação” são sempre mais intensas e atraentes do que a
necessidade dada por satisfeita (idem, p. 89). A partir do ponto de vista da mobilidade social
propagada numa sociedade que se diz globalizada, Bauman elabora dois tipos sociais
contemporâneos, os turistas e os vagabundos. Para ele, o mundo do consumo seria voltado
para os turistas, que possuem mobilidade e recursos para a transposição dos limites
geográficos e culturais, “passando por uma série de episódios higienicamente isolados do seu
passado e também do seu futuro” (Bauman, 1999, p. 96). Como faces de uma mesma moeda,
os vagabundos seriam os despossuídos da escolha de mover-se, os indesejáveis, que volta e
meia são removidos dos espaços que ocupam.
O que podemos perceber nos dois sociólogos, um pensando a sociedade do início do
século XX e outro a do final do XX e início do século XXI, é a permanência da centralidade
do desejo nas questões relacionadas ao consumo. Queremos atentar para o seguinte trecho:
Tanto o turista como o vagabundo foram transformados em consumidores, mas o vagabundo é um consumidor frustrado. Os vagabundos não podem realmente se permitir as
opções sofisticadas em que se espera que sobressaiam os consumidores; seu potencial de
consumo é tão limitado quanto seus recursos. Essa falha torna precária a sua posição social.
Eles quebram a norma e solapam a ordem. São uns estraga-prazeres meramente por estarem
por perto, pois não lubrificam as engrenagens da sociedade de consumo, não acrescentam
nada à prosperidade da economia transformada em indústria de turismo. São inúteis, no
único sentido de “utilidade” em que se pode pensar numa sociedade de consumo ou de
turistas. E por serem inúteis são também indesejáveis. Como indesejáveis, são naturalmente
estigmatizados, viram bodes expiatórios. Mas seu crime é apenas desejar ser como os
turistas... sem ter os meios de realizar os seus desejos como os turistas (BAUMAN, 1999, p. 104-105).
O indesejável seria o excluído da sociedade de consumo, uma vez que para este
arranjo social o desejado é também algo próximo do visível. O não desejado se aproximaria
então da invisibilidade, da quase inexistência. Aproximando as questões de Bauman às
nossas, o universo do descartável seria o lugar por excelência dos tipos “vagabundos”,
indesejáveis e invisíveis. À título de exemplo, vale relembrar uma cena de “Lixo
Extraordinário” que nos mostra alguns dos sentidos constantemente atribuídos ao lixo e aos
“sujeitos descartáveis” que aí convivem.
Enquanto busca pelo local em que desenvolveria seu novo projeto artístico e social,
usando como material de trabalho o lixo, Vik Muniz assiste um vídeo na internet que retrata o
Aterro Metropolitano de Gramacho, se interessando pelo lugar. Impressionada com as
imagens, a esposa do artista plástico questiona se as pessoas daquele lugar aceitariam realizar
sua proposta, ao que Vik responde “(...) devem ser as pessoas mais rudes em quem podemos
pensar. São todos drogados. É o fim da linha. (…) É pra onde vai tudo que não é bom.
Incluindo as pessoas”.
Neste trecho percebem-se que são atribuídos ao lixo os sentidos de invisibilidade, o
“fim da linha”, aquilo que é considerado sem valor ou utilidade, morto. Os sujeitos
localizados em torno desse lixo são igualmente considerados descartáveis pela sociedade e a
eles são atribuídos características marginais de antemão, como “drogados” e “rudes”. Mas
como foram construídos tais sentidos? Como o lixo e a poluição que o demarca foram sendo
associados àquilo do qual se deve tomar cuidado, exigindo certa distância, quando sabe-se que
antes do século XVIII, por exemplo, o fedor característico do lixo, hoje signo de impureza,
era considerado terapêutico e afastador das pestes e doenças?
Em Higiene e Ilusão (1995), o antropólogo José Carlos Rodrigues parte da perspectiva
do lixo como um invento social, uma construção cultural da modernidade. Para ele, o
processo de fragmentação do amálgama medieval levaria a separações antes não encontradas
nestas sociedades. As cisões que foram se construindo, por exemplo, entre mundo natural e
divino, esferas pública e privada, espírito e matéria, campo e cidade, seriam condições
preliminares para o surgimento da noção de lixo, de dejeto, de algo residual. Assim, ligados a
essas fragmentações, foram se constituindo domínios de saberes voltados para as novas
preocupações que daí surgiam, como a microbiologia, que geralmente é a ordem discursiva
com que o lixo e as questões de higiene são tratados.
A relação entre sujeira física e sujeira moral se estabelece após o século XVIII e a
relação disso com a pobreza, com a marginalidade social, somente após o século XIX. A partir
desta ideia, instituíram-se graus de hierarquia social e justificativas para a separação,
classificação e higienização das camadas populares. Estes corpos, por sua vez, passaram a ser
disciplinados por mecanismos de controle social e auto-controle, cada vez mais exigentes com
relação às regras e códigos de poluição.
A antropóloga Mary Douglas trata em seu livro Pureza e Perigo (1991) da construção
das noções de impureza na sociedade burguesa, quando o “discurso médico assolando o
caráter simbólico das manifestações ritualísticas” (1991, p. 26) vai conferindo poderes e
perigos à esses signos. Isso está intimamente ligado à concepção de civilização que se tornava
dominante, à medida em que a burguesia ascendia como classe social protagonista da
modernidade e buscava se distinguir do que considerava “primitivo”, da “idade das trevas”.
As reflexões sobre impureza, segundo Douglas, levam às discussões acerca da “ordem
e a desordem, o ser e o não-ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte” (1991, p. 9).
Dessa forma, aquilo que é tido como impuro é associado também ao sujo, à poluição e à
anomia, ao desordenado, posto em oposição ao que representaria a pureza e o aceite social.
Estar à margem significa estar em ligação com o perigo, tocar numa fonte de poder. (…)
Quando o indivíduo não tem lugar no sistema social, quando é, numa palavra, marginal,
cabe aos outros, parece, tomarem as devidas precauções, precaverem-se contra o perigo. O
indivíduo marginal nada pode fazer para mudar a sua situação. Na nossa própria sociedade,
observamos uma atitude análoga em relação aos seres marginais. (DOUGLAS, 1991, p.74)
Douglas contribui para elucidar as múltiplas significações atribuídas ao descartável,
que ao mesmo tempo é fonte de perigo e poder e que, portanto, exigiria cuidados. Quando se
trata de lixo, não nos preocupamos em ordená-lo ou selecioná-lo, mas pensamos no lugar
mais apropriado para o seu descarte, distantes dos olhares e olfatos domésticos.
José Carlos Rodrigues afirma que diferente do que costumamos pensar, o problema da
poluição em nossa sociedade é uma questão de magia, não de higiene, portanto, antes de
caráter simbólico do que associado ao discurso da microbiologia. Rodrigues completa: “O
medo de poluição funciona apenas em uma direção: quem está no alto jamais polui quem está
embaixo (…) quanto mais próximo do centro de poder, mais distante da sujeira; quanto mais
periférico em relação ao centro de poder, tanto mais íntimo com a sujeira” (1995, p. 96).
No documentário Lixo Extraordinário podemos perceber a permanência dos sentidos
associados à poluição simbólica do lixo, como a associação com a marginalidade social, que
configura espaços e sujeitos indesejáveis, como se estivessem mesmo mortos diante da
sociedade e do poder público. No entanto, a mídia, como um espaço de disputa por
visibilidade e, portanto, de poder, promove uma mudança neste paradigma quando
espetaculariza o universo do descartável nas telas, reinserindo-o no ciclo do consumo, agora
como produto cultural. Se o lixo representa o indesejável, quando midiatizado, este passa a
ocupar o lugar do desejável novamente, da mercadoria a ser consumida.
1.2 – Por uma outra etapa da vida social das coisas: as relações entre morte e
universo do descartável
O antropólogo Arjun Appadurai nos mostra no texto “Introdução: Mercadorias e a
Política de Valor” (2008) uma abordagem da circulação de mercadorias nas sociedades que,
para ele, seriam tipos particulares que se distinguiriam de produtos, bens, objetos e artefatos.
Em sua definição, as mercadorias são como coisas que, numa determinada fase de suas
carreiras e em um contexto delimitado, preenchem requisitos simbólicos, classificatórios e
morais que condicionam a sua trocabilidade. Esses valores iriam muito além do valor de troca
puramente econômico, abarcando também tipos de trocas como as permutas e os presentes.
Appadurai nos ajuda a entender que as mercadorias circulam em diferentes arenas
socioculturais e essa variedade de contextos produz o vínculo entre o estado simbólico e o
ambiente social em que se encontram a mercadoria. O antropólogo propõe “concentrar-se em
toda a trajetória, desde a produção, passando pela troca/distribuição, até o consumo” (idem, p.
27). Acreditamos ser importante acrescentar outra fase da vida social das coisas, assim como
outra arena social de disputa a ser observada, o descarte.
Em certa fase de suas trajetórias, as coisas seriam dotadas de potencial mercantil,
inserindo-se em regimes de valor que possibilitariam suas trocas e fluxos, constituindo seu
estado de mercadoria. Seguindo esse pensamento, em algum momento de sua circulação,
essas mercadorias se tornariam descartáveis, inicialmente sem valor social de uso ou troca e
geralmente destinadas aos aterros sanitários e “lixões”, distanciados dos grandes centros
urbanos e alocados nas periferias.
Entretanto, se no conceito de Appadurai as mercadorias se diferenciariam dos bens,
objetos e artefatos, no universo do descartável tais distinções são abafadas pelos signos da
impureza e da desordem. Não importa muito o que ali está presente, podem ser sofás, restos
de comida, souvenirs, obras de arte, mas sabe-se que sua presença não é desejada e que por
isso estão ali. As diferenças que singularizariam tais mercadorias, conferindo-lhes uma
trajetória, uma história, parecem sumir no lixo e o aspecto que prevalece é o de sua
descartabilidade, diretamente associada à poluição simbólica. Retornaremos a esta
constatação mais a frente, a partir de outro ponto de vista.
O pensamento contemporâneo relativo ao lixo está embasado nos saberes higienistas
que ascendem na modernidade, contrários ao comportamento medieval, que passa a ocupar o
lugar do que não deve ser reproduzido socialmente. Nesse jogo de tensões e distinções, ao
lixo cabe o lugar do invisível, do morto, assim como aos espaços e sujeitos que o cercam. O
sociólogo Zygmunt Bauman, no texto “Cultura do lixo”6, observa que na infinitude não há
descartável e, portanto, tal característica só seria possível a partir da ideia de finitude. Na vida
líquido-moderna, essa lógica se adensaria e tudo nasceria com a marca da morte iminente.
Se a vida pré-moderna era uma recitação diária da duração infinita de todas as coisas, com
exceção da existência mortal, a vida líquido-moderna é uma recitação diária da
transitoriedade universal. Nada no mundo se destina a permanecer, muito menos para
sempre. Os objetos úteis e indispensáveis de hoje são, com pouquíssimas exceções, o
refugo de amanhã. Nada é necessário de fato, nada é insubstituível. Tudo nasce com a
marca da morte iminente, tudo deixa a linha de produção com um “prazo de validade
afixado”. (BAUMAN, 2005, p. 120)
Para José Carlos Rodrigues, lixo e morte estão profundamente relacionados, seja
porque o que vai para o lixo é aquilo considerado morto ou porque morrer é mais ou menos
6 BAUMAN, Z. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
como ir para o lixo, daí uma das angústias em torno de ambos os fenômenos (1995, p. 12). No
universo medieval, os cemitérios, povoados por sepulturas coletivas, se situavam no centro da
vida social, no entorno das igrejas, onde também aconteciam as festas, os rituais e o comércio.
O antropólogo cita ainda que não há registros históricos de reclamações do mau cheiro dos
cadáveres.
Com a separação entre rural e urbano, a preocupação neste segundo espaço passa a ser
com a ordenação das coisas, tarefa de urbanistas e higienistas. No final do século XVIII, é
iniciado o movimento de remoção dos cemitérios das cidades, transferidos para as periferias
urbanas e, paralelo a isso, surgem os primeiros projetos de limpeza pública que possuíam a
mesma finalidade: transportar os dejetos para longe das novas moradias e olfatos burgueses.
Ao se referir ao caso brasileiro, Rodrigues atenta para os “colonizadores” que aqui
chegaram, ainda imersos num mundo anterior ao capitalista. As produções de sentido sobre o
lixo se deram de forma bastante imbricada, uma vez que a cultura brasileira se constituiu
atravessada por componentes atribuídos às sociedades medievais neste aspecto e todo o
projeto de higienização da modernidade se constrói no sentido de diferenciar-se do
comportamento medieval. Dessa forma, Rodrigues nos apresenta diferentes mentalidades e
sensibilidades no tratamento das questões relacionadas à poluição, desnaturalizando tais
relações.
Na contemporaneidade, percebemos que o movimento de remoção do lixo permanece
como forma de manter o bem estar dos seus membros, como afirma Bauman:
Numa sociedade líquido-moderna, a indústria de remoção de lixo assume posições
de destaque na economia da vida líquida. A sobrevivência dessa sociedade e o bem
estar de seus membros dependem da rapidez com que os produtos são enviados aos
depósitos de lixo e da velocidade e eficiência da remoção dos detrimentos. Nessa
sociedade, nada pode reivindicar isenção à regra universal do descarte e nada pode
ter permissão de se tornar indesejável. (BAUMAN, 2007, p. 9)
Dada a obsolescência gerada pela cultura de consumo, industrial e comercial, o lixo se
tornou o produto mais abundante na contemporaneidade, como nos mostra Bauman no livro
Vida Líquida (2007). Para ele, os desafios da vida líquido-moderna são a remoção do lixo e a
necessidade de se manter como objeto de consumo, desejado e visível para não ser descartado
ou deixado para trás. Na sociedade de consumidores, ninguém pode deixar de ser um objeto
de consumo.
1.3 – A “vida” do lixo: fetichismo da mercadoria e visibilidade midiática
Appadurai, ao conceituar mercadoria, afirma que seria necessária a sua inserção em
regimes de valor que condicionariam sua trocabilidade, constituindo seu estado de
mercadoria. Entendemos que a cultura de consumo, ao atribuir caráter simbólico distinto aos
objetos – o fetiche – por meio dos seus dispositivos institucionais, nos permite interpretar o
fetiche da mercadoria como um regime de valor específico, que confere aos objetos valores
simbólicos e morais.
A partir do conceito de fetiche da mercadoria trabalhado por Marx, a pesquisadora
Isleide Fontenelle, no livro “O nome da marca – McDonald's, fetichismo e cultura
descartável” (2002), discute o funcionamento do fetichismo das imagens na sociedade
contemporânea, tomando a marca como evidencia de uma sociedade cada vez mais imagética
e espetacularizada, onde o universo simbólico que envolve determinada mercadoria se
condensa nesse signo.
Para Fontenelle, o fetichismo não é uma invenção do capitalismo, no entanto, é a partir
de seu surgimento que o conceito marxista ganha a conotação de artifício, aparência (2002, p.
281). Mais do que representar uma empresa por trás do signo, a marca carregaria consigo
estilos de vida, modos de consumo e visões de mundo, amplamente difundidos e
representados pelos meios de comunicação, conferindo determinado capital simbólico a quem
a esta se afilia, além de fornecer valores às mercadorias que a constituiriam como
mercadorias.
A pesquisadora afirma que na contemporaneidade “a marca parece perverter o próprio
fetiche – uma espécie de “fetichização do fetiche”: as pessoas deixam de se referir às coisas e
passam a se referir às imagens sobre as quais essas próprias coisas se constroem” (ibidem, p.
285). Essa afirmação pode ser melhor compreendida se pensarmos na cena que descrevemos
na introdução desta monografia, onde os catadores de Gramacho “tipologizam” o lixo que
lidam, conferindo estilos de vida, classes sociais e modos de consumo, tendo como referencial
as representações das mercadorias e às imagens a que estão vinculadas culturalmente.
Retomando a discussão anterior, onde constatamos que a poluição simbólica do lixo
parece prevalecer àquilo que o singularizaria, notamos que esses catadores ao tipologizarem o
lixo que convivem, estabelecendo classificações e enxergando no que nos é amorfo, “vida”,
nos mostram que o fetiche da mercadoria permanece no lixo. Se anteriormente afirmamos que
a poluição simbólica do lixo prevaleceria sobre o caráter fetichista da mercadoria, ou seja, a
morte se sobreporia à vida no lixo, percebemos que, como Appadurai cita, os diferentes
contextos sociais por onde circulam as mercadorias criam vínculos simbólicos temporais,
assim como as reapropriações dos sujeitos neste processo. Ao ordenarem o lixo, os “sujeitos
descartáveis” estão deslocando os valores simbólicos que permeiam este universo, se
reapropriando daquilo que supõe-se não ter vida ou utilidade.
Acreditamos que com os “sujeitos descartáveis” acontece um processo análogo. Se
partimos da ideia de que tais espaços e sujeitos descartáveis são invisíveis socialmente, estes
parecem ganhar visibilidade diante da sociedade através do processo de fetichização que
passam, em nosso caso, via documentário. Esses sujeitos ganham voz quando se inserem num
regime de valor que os transformam em mercadoria, ampliando seus campos de possibilidades
de ação e de visibilidade. Assim, este universo é reinserido no ciclo do consumo, desta vez
sob a forma de produto cultural, espetacularizado e fetichizado pela cultura da mídia.
Temos em disputa as múltiplas significações do lixo, ora associado aos signos de
impureza, à poluição simbólica, o que nos leva aos sentidos de invisibilidade, marginalidade e
morte, ora associado aos estilos de vida que representam quando no estado de mercadoria, ao
seu caráter fetichista. Tal “vida” pode lhes permitir outra forma de inserção nas disputas
discursivas que se dão em torno do lixo7, como pretendemos mostrar no estudo de caso do
personagem Tião Santos.
Mostramos até aqui as diferentes significações atribuídas ao universo do descartável e
como estes sentidos vão se deslocando à medida em que são reconfigurados pelos agentes
sociais envolvidos neste processo. Em determinada etapa de sua vida social, as mercadorias
são valorizadas por estarem inseridas em regimes de valor que conferem capital simbólico a
quem desta se apropria. Quando lixo, a mercadoria parece adquirir uma forma descartável que
7 Entendemos que a inserção desses sujeitos se dá em diferentes graus e que as representações midiáticas não
garantem por si só visibilidade às questões do universo do descartável. No estudo de caso que propomos
nesta pesquisa, elegemos Tião Santos como um caso ímpar nesse universo. Nos interessa perceber de que
forma Tião se apropria do descartável à sua volta e a partir de sua experiência concreta com o lixo, é
construído e se constrói como autoridade na questão. Em nosso terceiro capítulo, mostraremos como, a partir de Lixo Extraordinário, o campo de possibilidades de ação de Tião Santos se amplia, permitindo seu
deslocamento do campo tático para o campo estratégico nas disputas discursivas em torno do lixo, com o
suporte teórico do historiador Michel de Certeau.
se sobrepõe aos outros sentidos, sendo relacionada primordialmente à marginalidade e
invisibilidade social, categorias discursivas “perigosas”.
Compreendemos que somente a visibilidade concedida pela mídia não é capaz de
ressignificar esse universo do descartável. O jogo discursivo é mais complexo e abarca
também as reapropriações destes sujeitos aí inseridos. Através de suas visões de mundo e
experiência com o lixo, percebemos que o fetiche permanece na mercadoria descartável,
dando-lhe uma trajetória social, conferindo-lhe vida e embaralhando as fronteiras entre os
estados simbólicos temporais das mercadorias.
No capítulo seguinte, pensaremos em como são construídos os sentidos do universo do
descartável no documentário Lixo Extraordinário. Como as relações e deslocamentos que
apontamos até aqui, entre lixo, poluição simbólica, fetichismo e morte, são reconfiguradas na
produção de sentido do filme e posteriormente reapropriadas pelo seu personagem principal,
Tião Santos.
2 – As reconfigurações dos sentidos do descartável em Lixo Extraordinário
“Every film is a documentary. Even the most whimsical of
fictions gives evidence of the culture that produced it and
reproduces the likenesses of the people who perform
within it”.8
A citação acima introduz a nossa discussão atentando para um estudo sociocultural dos
produtos audiovisuais. Partindo dessa premissa, compreendemos que na contemporaneidade a
mídia ocupa um lugar chave nas produções de sentido, conformando imaginários
compartilhados e posições identitárias dos atores e grupos sociais. Longe de serem isentos,
tais sentidos produzidos possuem caráter ideológico, representando os interesses e valores de
quem o enuncia.
Como discutimos no capítulo anterior, o universo do descartável, que compreende esse
sujeitos e espaços em torno do lixo, é marcado discursivamente por signos de impureza que
contribuem para a posição marginal que este universo ocupa na sociedade. Nesta parte da
monografia, buscamos perceber como são produzidos os sentidos do descartável no
documentário Lixo Extraordinário.
Para isso, discutiremos o gênero audiovisual documentário como prática discursiva,
produtora de sentidos e mundos, entendendo que as características desta categoria influenciam
diretamente na percepção do produto audiovisual, uma vez que este gênero é consumido,
primordialmente, como fonte de conhecimento (Baltar, 2010). Tendo isso em mente,
passaremos à análise de Lixo Extraordinário, relacionando-o aos aspectos discutidos no
primeiro capítulo, como a poluição simbólica e a inserção dos sujeitos descartáveis em
regimes de valor e visibilidade, através das representações midiáticas.
Tais representações são responsáveis pela inserção temporária destes sujeitos e
espaços em uma posição de visibilidade no circuito do consumo, conferindo-lhes o estado de
8 NICHOLS, Bill. Introduction to documentary. Bloomington: Indiana University Press, 2001.
mercadoria, objetos de desejo e consumo. Mostraremos como, inicialmente, o documentário
reforça os sentidos de invisibilidade e marginalidade, enfatizando os signos de impureza
atribuídos ao lugar e após as primeiras experiências com o universo em torno do Aterro
Metropolitano do Jardim Gramacho, as histórias de vida e visões de mundo dos “sujeitos
descartáveis” passam a ser exploradas, descobrindo-se então o “extraordinário” do lixo.
A partir da representação da transformação do lixo em arte e de Vik Muniz em relação
àquele ambiente, são mostradas as mudanças que a proposta do artista plástico possibilitou na
trajetória de vida dessas pessoas. No entanto, entendemos também que tais estratégias se
configuram de modo complexo, atravessadas por discursos que não são explicitamente
representados no filme, mas que poderão ser percebidos em outras fontes, por exemplo, em
seu material de divulgação.
2.1 - Problematizando o gênero discursivo documentário
Douglas Kellner apresenta no livro A cultura da mídia (1995) um estudo que pretende
fornecer ferramentas teóricas para a interpretação, análise e crítica dos complexos textos
midiáticos, percebidos pelo autor tanto como terrenos de disputa de discursos fundamentais na
construção do tecido cotidiano, quanto como ecos da vivência contemporânea. Com foco na
mídia norte-americana e sua cultura, entre o começo dos anos 80 e o começo dos anos 90,
Kellner afirma que, dado o processo de globalização e exportação da cultura dos EUA, seu
estudo poderia elucidar formas dominantes da cultura de consumo e da mídia em outros
lugares do mundo. Assim, a compreensão das formas de cultura veiculada pela mídia
auxiliaria no entendimento da sociedade contemporânea, nos níveis macro e micropolíticos.
Constituída por sistemas de rádio e reprodução de som, filmes e seus modos de
distribuição, imprensa e sistemas de televisão, além do universe digital, a cultura da mídia é a
cultura da imagem, que explora a visão e a audição, jogando com emoções, sentimentos e
ideias que criam identificações e são reapropriados pelos indivíduos nas suas construções
identitárias e de visões de mundo. A cultura veiculada pela mídia é, segundo Kellner, um
modo de tecnocultura, que na mescla entre tecnologia e cultura, produz novas formas e
configurações de sociedade, onde mídia e tecnologia tornam-se princípios organizadores.
Produzida de acordo com códigos e convenções sociais, a cultura da mídia é industrial e
comercial, voltada para o lucro e almejando grande audiência, por isso a necessidade de
refletir assuntos e preocupações sociais.
Em nosso trabalho, compreendemos os documentários como produtos audiovisuais da
cultura da mídia, indissociável da cultura de consumo, o que nos permite fazer um estudo a
partir da mídia que aponte também características da sociedade e cultura em que vivemos.
Além disso, como gênero discursivo específico o cinema documental levanta uma série de
questões quanto a sua forma de representação, muitas vezes confundida com a realidade
concreta do mundo.
O pesquisador Bill Nichols considera que todo filme é um documentário, mas os tidos
como "não-ficcionais"9, chamados por ele de documentary, se baseiam nos discursos do real
ou discursos de sobriedade, autorizados como construtores de realidades sociais que, por sua
vez, são legitimadas e compartilhadas quando representadas via mídia. Para ele, o
documentário apresentaria similaridades fotográficas e auditivas do mundo, expondo os
pontos de vista dos sujeitos produtores através da defesa de um argumento, implícita ou
explicitamente10
. Acreditamos que, construídos dessa forma, os documentários estabelecem
contratos de leitura em que são percebidos como fontes confiáveis de informação e
conhecimento sobre a realidade social que se vive.
Entretanto, a "realidade" ali representada é tão produto de sistemas significantes em
disputa quanto o próprio documentário que pretende se referenciar nela. Em La
representación de la realidad (1997), Nichols reforça que
El documental, como otros discursos de lo real, conserva una responsabilidad residual de
describir e interpretar el mundo de la experiencia colectiva, una responsabilidad que en
modo alguno es una cuestión menor. Es más, conjunta estos otros discursos (de ley, familia,
educación, economía, política, Estado y nación) en la construcción auténtica de una
realidad social (NICHOLS, 1997, p. 40)
9 No livro Introduction do documentary (2001), Nichols define dois tipos de filmes: os “wish-fulfillment”,
onde se encaixariam as narrativas ficcionais, e os voltados para representação social, tidos como não-
ficcionais, que abarcariam documentários como Lixo Extraordinário. Apesar dessa divisão didática, Nichols
considera que todo filme é documental e ficcional.
10 “En resumen, el documental nos ofrece representaciones o similitudes fotográficas y auditivas del mundo. El
documental representa los puntos de vista de individuos, grupos o entes que van desde un realizador solitario como Flaherty hasta el gobierno de un Estado pasando por la cadena CBS. El documental también expone
una representación, o una defensa, o una argumentación, acerca del mundo explícita o implícitamente”.
(NICHOLS, 1997, p. 154)
Neste sentido, acreditamos que considerar o gênero documentário como representação
de uma realidade social, sem problematizar as formações discursivas que o envolvem e que
deste despontam, seria cair na armadilha da representação, que tende a naturalizar questões
social e culturalmente construídas. Para Nichols, os documentários seriam parte dessas
formações discursivas, representando o prazer e o poder, as ideologias e as utopias, os sujeitos
e as subjetividades de forma tangível (1997, p. 39). Para uma definição mais complexa acerca
da categoria documentário, o autor propõe que este seja discutido nas instâncias do realizador,
espectador e texto.
No que se refere ao aspecto do realizador, Nichols observa que mesmo representando
as ideologias dos sujeitos e instituições por trás de sua realização, o que "el documentalista no
puede controlar plenamente es su tema básico: la historia” (1997, p. 43). Os cineastas não
têm como prever as performances dos sujeitos que filmam, no entanto, possuem o poder de
editar tais informações de modo a construírem os discursos e argumentos a que se afiliam.
Quanto ao texto documental, o pesquisador aponta para o tratamento dos sons e
imagens como evidências que remetem ao mundo histórico, a algo exterior à narrativa, em
vez de serem elementos de uma trama. Tais evidências são exploradas pelo documentário a
fim de garantir-lhe estatuto de real. Em Lixo Extraordinário, por exemplo, percebemos que a
poluição simbólica que demarca o universo do descartável é utilizada como elemento de
identificação com determinada realidade social que o filme busca representar.
Em Introduction to documentary (2001), Nichols questiona quais seriam os problemas
éticos centrais para o cinema documental, afirmando que “For non-fiction, or documentary,
the answer is not quite so simple. “People” are treated as social actors: they continue to
conduct their lives more or less as they would have done without the presence of a camera.
They remain cultural players rather than theatrical performers” (2001, p. 5). Assim, a
construção dos personagens nos documentários como “personagens da vida real”, agentes
sociais ativos no mundo concreto, também contribui para a verossimilhança com o mundo
conhecido pelo espectador, a terceira instância proposta por Nichols. Os documentários se
esforçam no sentido de construir um argumento capaz de convencer e engajar seus
consumidores.
Como afirmamos anteriormente, as expectativas criadas em torno do gênero
documentário se referem à sua relação com o real, sendo geralmente consumidos como meio
de informação e conhecimento. Tais expectativas partem tanto de pistas do texto documental
quanto das experiências dos sujeitos receptores, que associam o que é visto e ouvido como
pertencentes ao mundo concreto.
Inserido nas disputas discursivas pelo poder de significar o mundo, o documentário,
assim como todo discurso, está sujeito a mecanismos internos e externos de controle, como
define Michel Foucault em A ordem do discurso (1999). Para ele, o discurso seria coagido de
três formas: limitando poderes, dominando aparições aleatórias e selecionando os sujeitos que
falam. Além disso, o “discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas
de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar”
(Foucault, 1999, p.10). Através do discurso, seriam conjurados os poderes e perigos aos
sujeitos que destes se apropriam.
Assim, Foucault atribui papel fundamental para o discurso na constituição dos sujeitos
sociais, uma vez que os enunciados posicionam estes sujeitos. Porém, diferente do “louco”
foucaultiano, que é reconhecido através do discurso e submetido a uma separação e rejeição
discursiva, os “sujeitos descartáveis” não estão submetidos aos processos de exclusão
somente quando o seu discurso é proferido e percebido como marginal. Nestes sujeitos, o
estigma está à flor da pele e ele não precisa ser ouvido para ser classificado. As marcas que
produzem essa exclusão são visíveis e gritantes, visibilizadas nos documentários, ao nosso
ver, como modos de reafirmação da representação do real ali pretendida11
. Ao explorar os
signos da poluição simbólica que geram efeitos de invisibilidade social, Lixo Extraordinário
se utiliza daquilo que produz marginalidade para, através da inserção desses espaços e sujeitos
no regime de visibilidade midiática, produzir o efeito de transformação que é admitido como
intenção do filme.
A fim de entender as diversas formas de representação no documentário, que agem por
diferentes estratégias e formações discursivas, Bill Nichols elabora seis tipos de
documentários, como sub-gêneros das representações realizadas: poético, expositivo,
participativo, observativo, reflexivo e performático. Ele alerta para o fato de que tais
11 Muitas vezes, mesmo inseridos em um projeto de representação do real, tais construções discursivas
encontram resistências por parte de alguns dos sujeitos supostamente representados. Para fins de exemplo,
tomamos a reportagem Lixo Extraordinário divide opiniões no Jardim Gramacho, veiculada pelo site do jornal
O Globo em 27 de fevereiro de 2011. A matéria trata da estrutura montada em Gramacho para que os moradores
pudessem acompanhar a cerimônia de entrega do Oscar (Lixo Extraordinário concorria à estatueta de “Melhor
Documentário”). Ao serem entrevistados, dois catadores de materiais recicláveis dizem que não se sentiram
representados pelo filme, “que não representa a realidade de quem trabalha no Aterro” e que é “uma porcaria”. Nossa intenção aqui é assinalar os conflitos representacionais presentes em torno do documentário e não discutir
se este representa a realidade do Aterro ou não. Partimos do pressuposto de que toda narrativa é uma ficção e a
realidade é inapreensível.
modalidades constituem estruturas de afiliação maleáveis, reapropriadas pelos sujeitos
envolvidos e que vão surgindo nas disputas por representação à medida em que os modos
anteriores não satisfaziam os desejos de representação de determinada época.
Podemos associar os embates pela configuração das formas de representação no
documentário com o texto Dominante, residual e emergente (1979), de Raymond Williams,
que aprimorando o modelo de luta por hegemonia gramsciano, observa que na cultura podem
ser apontados aspectos hegemônicos, que constituem as práticas culturais dominantes em
certo período; aspectos emergentes, que corresponderiam às práticas contra-hegemônicas; e
aspectos residuais, que seriam os resquícios de formas de cultura anteriores, ativos na atual
ordem social. Tais elementos estariam em constante disputa e reconfiguração pelos agentes
sociais.
Retomando as definições de Nichols, acreditamos que Lixo Extraordinário seja
hegemonicamente construído nos moldes performáticos do documentário, mas possuindo
características dos sub-gêneros participativo e observativo, por exemplo, ao registrar o
cotidiano do bairro e do aterro, buscando representar como vivem as pessoas cercadas pelo
lixo e que dele retiram sua sobrevivência. Nichols, a respeito dos documentários
performáticos, afirma que
Meaning is clearly a subjective, affect-laden phenomenon. A car or gun, hospital or person
will bear different meanings for different people. Experience and memory, emotional
involvement, questions of value and belief, commitment and principle all enter into our understanding of those aspects of the world most often addressed by documentary: the
institutional framework (governments and churches, families and marriages) and specific
social practices (love and war, competition and cooperation) that make up a society (…).
Performative documentary underscores the complexity of our knowledge of the world by
emphasizing its subjective and affective dimensions. (NICHOLS, 2001, p. 31)
O modelo performático explora as experiências e visões de mundo dos sujeitos
documentados, evidenciando questões relacionadas à memória e construção das performances
sociais, pondo em questão o próprio texto documental. A dimensão dos afetos e sensações
atuam como mecanismos de engajamento dos consumidores, além de atuarem como reforço
dos argumentos do filme, um certo lugar de "convencimento pela lágrima".
Tais características podem ser observadas em Lixo Extraordinário, por exemplo, na
cena em que Tião Santos relata que foi assaltado e o pagamento dos catadores da ACAMJG
fora todo levado. As imagens se concentram nos choros de Tião e Glória, funcionária da
associação, enquanto Tião declara que sente vontade de desistir, que não tem vontade de
permanecer ali. As representações das dificuldades passadas pelo grupo de catadores torna
ainda mais evidente a posterior transformação na vida dessas pessoas, ideia defendida pelo
filme.
A discussão apresentada até aqui busca a problematização da categoria discursiva
documentário, no que se refere aos modos de representação adotados pelo gênero e as
relações de produção de sentido que o constituem. Nas próximas seções, veremos de que
forma Lixo Extraordinário ressignifica o universo do descartável, utilizando tais sentidos
como estratégia discursiva na defesa do seu argumento.
Dentre as múltiplas significações e leituras possíveis acerca do universo do descartável
trabalhadas pelo filme, destacamos três sentidos, em torno dos quais organizaremos as partes
seguintes deste capítulo. Inicialmente, notamos que há uma exploração dos signos de
impureza atribuídos ao lixo, como a desordem e a poluição. Após o contato com o grupo de
catadores, o descartável passa a ser significado como meio de sobrevivência e conformador de
visões de mundo. Por fim, o lixo se transforma em arte, adquirindo status de mercadoria,
movimento análogo ao que acontece na representação dos sujeitos.
2.2 – Impureza, poluição e perigo articuladas em Lixo Extraordinário
Lixo Extraordinário começa com uma entrevista de Vik Muniz no Programa do Jô. O
apresentador Jô Soares introduz Muniz como sendo “sem dúvida, um dos maiores artistas
plásticos da atualidade e [que] dá “vida” ao lixo. Abusa de matérias primas inusitadas e tem
arrastado multidões para suas exposições” e inicia a entrevista perguntando como Vik
começou essa ligação com o lixo. A resposta parece vir na cena seguinte, quando é
representado o carnaval carioca, com imagens de corpos suados, ao som dos enredos de
samba na Sapucaí, fantasias e coreografias, tudo sob o olhar fascinado e curioso do artista.
Relembrando nosso primeiro capítulo, o antropólogo José Carlos Rodrigues nos atenta
para a relação entre manifestações festivas como o carnaval e o lixo. No mundo medieval, o
que hoje consideramos dejetos, exerciam papel fundamental nesses espaços. Rodrigues utiliza
como exemplo a "festa dos bobos", onde os padres usavam excrementos ao invés de incenso e
benziam com urina, num universo onde tais gestos eram tratados com riso e deboche (1995, p.
32). No documentário, representante da visão moderna de mundo, o lixo ocupa o lugar do que
restou do espetáculo, do descartável a ser recolhido pelas empresas de limpeza urbana
responsáveis.
Depois dessa introdução o filme retorna a 1998, mostrando uma palestra de Vik, onde
narra como chegou à Nova York12
. Em seguida, os espectadores são levados a um
supermercado, onde Vik recorda da época em que trabalhava num lugar parecido fazendo a
limpeza das lixeiras de material orgânico, que carregavam os “piores materiais possíveis”,
como ele descreve. Paralela à documentação do projeto artístico e social, no filme é contada a
trajetória de vida de Vik Muniz, de limpador de lixeiras a expositor no Museum of Modern Art
– MoMa, um dos mais respeitados museus contemporâneos.
Após essa primeira insinuação da presença do lixo na história de Vik, são apresentadas
as intenções do artista em relação ao projeto que está sendo documentado. Ele diz que está
numa fase de querer se afastar do ciclo das belas artes, por ser muito exclusivo e restrito, e
que gostaria de “ser capaz de mudar a vida de um grupo de pessoas com o mesmo material
que elas lidam todo dia”. Enquanto as imagens mostram Vik recolhendo o lixo de seu estúdio,
a fala do artista continua “E não um material qualquer. A ideia para a próxima série é
trabalhar com o lixo. Quando falamos em transformação, esta é a matéria da arte,
transformar material em ideia. Eu não sei, este é o começo de uma ideia, eu só tenho o
material e tenho de ir em busca de uma imagem”.
Na procura pelo local em que vai desenvolver seu projeto, Vik assiste a um vídeo no
YouTube sobre o Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho, indicado por Fábio Ghivelder, o
diretor do seu estúdio no Rio de Janeiro. Enquanto Vik e Fábio conversam, vão surgindo
aspectos quanto ao aterro, como a grande quantidade de lixo que o local recebe e o fato de ser
cercado por favelas comandadas pelo tráfico, deixando a entender que deverão ser tomados
alguns cuidados em relação aos perigos que acompanham os signos de violência e impureza
ali presentes. Além disso, Fábio também alerta Vik sobre “a própria estabilidade das pessoas,
elas são excluídas da sociedade. Algumas passam a noite ou a semana inteira por lá. Vai ser
difícil”, mas que mesmo assim deveriam tentar por acreditarem na capacidade de
transformação que podem levar à vida dessas pessoas.
12 Vik conta que ao separar uma briga de trânsito na cidade de São Paulo, fora confundido por uma das
pessoas envolvidas e acabou por tomar um tiro na perna. Por sorte, como ele mesmo define, “ele [o atirador] era rico e me deu algum dinheiro. Foi assim que eu comprei a passagem para vir para os EUA em 1983”. Aqui
percebemos, mesmo que surperficialmente, a violência sendo associada ao Brasil, signo que será explorado em
outros momentos do filme.
A voz de Vik Muniz vai se construindo como norteadora do documentário, dando a
entender por vezes que ele ocupa o papel de documentarista, o olhar sobre o qual o filme se
apoia. Mas Vik também é personagem, tendo sua história de vida contada, a casa da infância e
família mostradas, assim como os demais personagens do filme. Ora documentarista, ora
personagem, o artista representa uma posição ambígua. Na cena citada acima, onde Vik define
seus objetivos com relação ao projeto, estes se tornam os objetivos do próprio documentário,
que passa então a representar a transformação na vida de um grupo de catadores através do
lixo que lidam cotidianamente.
A conversa que Vik tem com Janaína, sua esposa, já comentada em nosso primeiro
capítulo, traz outros elementos para nosso estudo. Enquanto assistem o vídeo sobre
Gramacho, Janaína pergunta como ficará a saúde de Vik, já que o trabalho seria desenvolvido
ao longo de dois anos e o aterro não parecia um lugar exatamente seguro para se trabalhar.
Vik responde que os catadores não questionam isso, ao que Janaína retruca "mas nós
questionamos", demarcando claramente as fronteiras entre "eles", os rudes e excluídos que
vivem em meio ao lixo sem se preocupar com os perigos que ali habitam, e "nós", os sujeitos
esclarecidos que conhecem e questionam estes perigos.
As imagens seguintes passam a representar a cidade do Rio de Janeiro, mostrando em
primeiro plano as favelas e por trás de todas aquelas casas desorganizadas e distribuídas pelas
encostas dos morros, o espectador vai descobrindo a "cidade maravilhosa" através da famosa
tomada panorâmica da Zona Sul do Rio, a partir da vista do Cristo Redentor. A beleza
cinematográfica da cidade incorpora a estética das favelas, fundamental na busca pela
verossimilhança com o mundo histórico na produção de sentido do documentário.
Ao chegarem no Jardim Gramacho, Fábio e Vik se surpreendem com as casas de
papelão e lona, a falta de infraestrutura pública, as indústrias de reciclagem, os catadores e
muito lixo espalhado por todo o caminho, tanto que Fábio afirma que ali é a “terra do lixo”.
Eles são recebidos por Lúcio, o administrador do aterro, que lhes apresenta o lugar.
Caminhando pelo lixo em busca das imagens para a confecção dos quadros, Vik escuta um
dos catadores falar: “estão filmando pro mundo animal”. O comentário é tratado com riso e
nas falas seguintes Vik afirma que “não é tão ruim quanto eu pensava. Sério. Estamos no
maior aterro sanitário do mundo e as pessoas batem papo, não vejo gente deprimida,
parecem orgulhosos do que estão fazendo”. O fator humano, que num primeiro momento não
fora percebido abafado pelos signos de impureza que permeiam aquele espaço e sujeitos,
parece encantar e a vida surge diante dos olhos estrangeiros ali.
Vik observa os modos com que se organizam os catadores em meio à desordem do
aterro. Lúcio define que ali é uma “bolsa de valores do lixo”, onde a demanda é ditada pelas
indústrias de reciclagem no seu entorno. As imagens exploram o lixo, chorume, porcos,
urubus, caminhões descarregando montanhas de materiais descartáveis e os catadores
avançando em busca de algo reaproveitável. Muniz pergunta a Lúcio se “O lixo que sai da
mansão do milionário se mistura aqui com o que sai da favela, do Complexo do Alemão?”,
atentando tanto para uma suposta “democracia” do lixo, visto como essa mistura quase
indistinta de classes, quanto para a anomia e desordem daquele espaço. Em outro momento,
enquanto os catadores estão revirando o lixo e classificando-o, o artista diz “e pensar que
vocês já fuçaram o meu lixo”, evidenciando uma fronteira e reafirmando o lugar do “outro”
descartável.
As imagens do aterro muitas vezes são mais lentas, um tempo arrastado, assim como o
tempo dos vagabundos na tipologia de Bauman. O cotidiano do bairro é representado com
crianças brincando na rua, em meio à infraestrutura improvisada, porcos e lixo, focando os
signos de impureza, a poluição simbólica e a exclusão social. Depois de apresentadas as
personagens principais que fornecerão as imagens que Vik utilizará em sua série de trabalhos,
ele aparece caminhando no aterro com a câmera pendurada no corpo, visto através do calor
produzido pelo fogo e passando a ideia de uma miragem, numa representação típica dos
heróis cinematográficos.
As ideias iniciais apresentadas em Lixo Extraordinário nos remetem a uma percepção
da reiteração do lixo como elemento perigoso, assim como os sujeitos no seu entorno, rudes,
drogados, marginais. Compreendemos que desta forma o documentário está construindo a
imagem daquilo que será transformado através do projeto de Vik Muniz, representado como o
salvador daquele grupo de pessoas.
2.3 - Projeto social ou estratégia de marketing?
As primeiras impressões do filme são construídas a partir do ponto de vista de Vik.
Depois de narrar a trajetória do artista plástico e introduzir o local em que ele desenvolveria
seu projeto, o filme passa a contar a vida dos seis catadores fotografados e escolhidos como
modelos para as peças: Ísis Garros, José Carlos Lopes (Zumbi), Sebastião Santos (Tião),
Leide Silva (Irmã), Magna Santos e Suelem Dias. Suas experiências e visões de mundo vão
sendo relatadas à medida em que vão se envolvendo com o projeto. Percebe-se que no
decorrer do documentário há a tentativa de se construir uma solidariedade entre Vik e o grupo
de catadores. Como citamos anteriormente, ele começa dizendo que quer se afastar das belas
artes, que quer devolver um pouco do que a vida lhe deu, mas algumas pistas deixadas pelo
filme nos permitem outras leituras.
O documentário busca delinear os processos de transformação e superação dos
personagens, salientando suas experiências e visões de mundo e “humanizando” o
lixo/sujeitos ai encontrados. A dimensão humana parece amenizar o horror e o perigo do lixo.
A representação das condições em que os personagens de Gramacho vivem é explorada a
partir da narração das suas histórias de vida e com a transformação do lixo em arte, evidencia-
se também o extraordinário do lixo, que são os próprios catadores.
Nas cenas em que são confeccionados os retratos com o material reciclável recolhido
pelos catadores no galpão em Parada de Lucas, Vik atua como o refinador da atividade dos
demais personagens, acompanhado de seu assistente Fábio, indicando do alto do andaime
onde devem ser colocados os materiais, quais preenchimentos devem ser mudados,
representado com certo distanciamento e como o olhar que controla a situação. Por mais que o
filme tente passar a ideia de que é um trabalho coletivo, motivação contida na fala de Vik ao
afirmar que gostaria que os catadores vissem as obras como feitas por eles e não pelo artista
consagrado, as imagens apontam para outros sentidos que não são ditos explicitamente pelos
personagens. Como nos lembra Nichols, as palavras nos encobrem as imagens, assim como as
imagens encobrem as palavras e sua associação produz ideologias13
.
Quando os catadores concluem o trabalho (igualmente pago como pagam as indústrias
de reciclagem pelo material recolhido no aterro), as obras são inseridas no círculo das belas
artes, dos museus respeitados e leilões restritos, de onde Vik queria se afastar, mas que traz
prestígio e reconhecimento ao seu trabalho, já que no discurso oficial ele continua sendo o
autor da série Pictures of Garbage, não os catadores que trabalharam na sua confecção. Nesse
sentido, o filme atua também como portfólio e projeção midiática para Vik Muniz.
13 NICHOLS, Bill. La representación de la realidad. Barcelona: Paidós, 1997.
Após a venda do quadro Marat-Sebastião num leilão em Londres, é mostrada a
comemoração com os catadores, onde Ísis fala que gostaria de brindar com o seu “patrão”, se
referindo a Vik. É apenas um detalhe em meio à festa, mas que podemos ler como uma outra
relação que se estabeleceu entre Vik e os catadores, diferente da solidariedade e proximidade
exploradas na construção do documentário.
A fim de complementar o entendimento acerca das produções de sentido do Lixo
Extraordinário, consideramos interessante ressaltar alguns trechos do press-kit14
de
divulgação do documentário, por nos fornecer informações relativas à realização e
distribuição/divulgação do filme que podem nos ajudar a complexificar nossa pesquisa. O
filme é assim sintetizado na apresentação deste material:
“O documentário Lixo Extraordinário relata a trajetória do lixo dispensado no Jardim
Gramacho, maior aterro sanitário da América Latina localizado na periferia de Duque de
Caxias (RJ), até ser transformado em arte pelas mãos do artista plástico Vik Muniz e seguir
para prestigiadas casas de leilões internacionais. (…) Segundo o dicionário “lixo” significa qualquer material considerado inútil, supérfluo, e/ou sem valor, gerado pela atividade
humana. Antes de chegar ao Jardim Gramacho, Vik Muniz e os diretores do documentário
não esperavam encontrar nada muito diferente disso, mas se surpreenderam ao conhecer
pessoas cativantes, cheias de dignidade, como Tião, jovem presidente da ACAMJG
(Associação de Catadores do Aterro Metropolitano de Jardim Gramacho), ou Zumbi,
catador que resgata os livros do lixão e acabou montando uma biblioteca com os
exemplares”. (Press-kit, p. 4)
Percebe-se o protagonismo de Vik no filme, como aquele responsável pela
transformação representada. Como já foi discutido, por mais que o artista intencionasse a
distância dos círculos prestigiados das artes, a negociação com esse campo é essencial para o
reconhecimento do seu trabalho, assim como também é capaz de dar visibilidade aos espaços
e sujeitos descartáveis. É intrigante pensar na expectativa da equipe de produção do
documentário que imaginava encontrar coisas sem valor ou utilidade num espaço composto
também por sujeitos. O que tal ponto nos atenta é para a sobreposição dos signos de impureza
e da poluição simbólica do descartável frente aos outros sentidos possíveis para esses espaços
e sujeitos.
Particularmente, o que nos surpreende não é o fato de se enxergar vida nestes sujeitos,
até porque isso deveria ser uma premissa não uma descoberta, mas o fato de serem percebidos
com “vida”, através do fetichismo da mercadoria, os detritos materiais, os bens de consumo
descartados. Como afirmamos em nosso primeiro capítulo, ao serem inseridos no estado de
14 Material disponível no site www.lixoextraordinario.net. Acessado em 28/10/2011.
mercadoria simbólico e temporal, esses sujeitos adquirem visibilidade equivalente a ganhar
“vida”, processo análogo ao que acontece com os objetos. Assim, tais sujeitos somente se
tornam visíveis a partir de sua passagem pelo estado de mercadoria valorizada e desejada
culturalmente.
No cartaz de divulgação do filme15
, retirado do site oficial, o nome de nenhum dos
catadores aparece em primeiro plano, somente o de Vik Muniz, dos diretores e produtores,
acompanhados da frase de Vik “O momento em que uma coisa se transforma em outra é o
momento mais bonito”. Apesar da imagem do cartaz ser a fotografia de Tião Santos na
banheira como Marat, a identificação que se gera é com a obra de Vik, não com o universo
dos catadores e suas questões sociais. Entendemos isso como uma estratégia de marketing que
toma a imagem do artista consagrado como marca do filme, de modo a chamar a atenção e
vendê-lo.
Assim, Lixo Extraordinário é vendido como a documentação do trabalho de Vik
Muniz com um grupo de catadores e não como um documento das lutas cotidianas ou da
desigualdade de um país, que ficam em segundo plano. A desigualdade social aqui é utilizada
como um “pé na realidade”, uma verossimilhança que interessa ser produzida e explorada
pelo gênero discursivo. Partindo disso, percebemos que há um conflito entre o que é
produzido discursivamente no documentário e a forma como é divulgado e distribuído. No
documentário temos um discurso de cunho social, voltado para a transformação através da
arte de uma categoria invisível e desfavorecida, enquanto que no segundo temos a promoção
do trabalho do artista plástico e fotógrafo, trazendo o reconhecimento e a visibilidade para as
suas obras e trajetória.
Reforçando a ideia de que o documentário é também uma estratégia mercadológica,
recortamos uma parte da entrevista de João Jardim, co-diretor do filme, disponível no referido
press-kit, onde ao ser questionado de que forma enxerga a questão do documentário ser falado
em inglês e português, mesmo com a maioria dos personagens sendo brasileiros, responde:
Acho uma evolução importante do ponto de vista de mercado, é válido os filmes brasileiros
também poderem se utilizar da língua inglesa para penetrar no resto do mundo. Quase todas
as cinematografias no mundo fazem isto em determinados projetos, não tem porque nós não
fazermos, especialmente em projetos claramente voltados para o mercado. (Press-kit, p. 13)
15 O cartaz está disponível para download no endereço: http://www.lixoextraordinario.net/downloads.php.
Acessado em 20/11/2011.
A intenção mercadológica do filme não anula qualquer intenção social. O que
queremos mostrar é que as relações de produção de sentido em Lixo Extraordinário se dão de
forma mais complexa do que quando nos prendemos aos discursos do filme. Como já
dissemos, se por um lado temos um discurso que se diz voltado para as questões sociais, por
outro temos um discurso voltado para o mercado cultural, não explicitado no filme.
Ao fim do projeto os catadores relatam o que mudou em suas vidas a partir deste
trabalho e aí são demonstradas as transformações intencionadas no documentário. Os
personagens de Gramacho afirmam que passaram a se ver de outra forma, que passaram a
enxergar beleza neles mesmos, melhorando a autoestima do grupo. Num desses relatos, Ísis
conta que pediu a Fábio para trabalhar no galpão, mediante um salário, porque ela não
gostaria de voltar para o lixo, o que representaria voltar à invisibilidade daquele lugar. Após
essa cena, são mostrados Vik, Janaína e Fábio discutindo essa mudança na vida dos catadores,
como eles lidarão com o fim do projeto e o retorno ao lixo. Fábio relata que inicialmente via
os catadores como pessoas felizes no aterro, mas que depois da experiência no projeto eles
esqueceram de Gramacho e não querem voltar, mostrando também os conflitos que surgem
dessa transformação.
Apesar do espaçado período de filmagem (entre 2007 e 2009), o filme nos mostra uma
construção linear dando saltos no tempo a fim de elaborar uma continuidade de argumentos,
uma vez que é tal encadeamento discursivo que produz os sentidos do documentário. Neste
capítulo buscamos mapear algumas tensões presentes no âmbito da produção de sentido de
Lixo Extraordinário, entendendo que como categoria discursiva, o documentário claramente
limita poderes, domina aparições e seleciona os sujeitos que falam.
Lixo Extraordinário também desloca os sentidos do universo do descartável ao mudar
as representações do próprio lixo. Inicialmente, as imagens do lixo são marcadas por
impurezas, sujas, causam distanciamento e asco. Já nas peças fotografadas, o lixo aparece
higienizado, tratado, conserva seu caráter de descartável, de "cacareco", mas é um lixo
diferente daquele mostrado no começo do filme. Além de ser transformado em obra de arte, o
lixo passa por um processo de higienização na sua representação, aparecendo mais clean e
agradável aos olhos burgueses.
Projeto social ou estratégia de marketing, o documentário consegue criar ambas as
expectativas. No decorrer desta pesquisa, nos deparamos com reportagens sobre o filme em
que este é visto como um projeto social transformador de sujeitos, mas como vimos no
material de divulgação do filme, o caráter mercadológico e comercial é ressaltado e a carreira
de Vik é projetada, afinal, o filme é também um portfólio do artista. Ao mesmo tempo em que
se promove, Vik também garante a visibilidade, mesmo que temporária, destes espaços e
sujeitos invisíveis até então.
Dentre os "sujeitos descartáveis" representados, destacamos o caso de Tião Santos,
indubitavelmente o mais visível dos catadores envolvidos no projeto e que consegue se
manter na mídia para além do filme, trazendo à tona as questões sociais vivenciadas no
Jardim Gramacho. Tomando como ponto de partida sua participação no filme, analisaremos
em nosso próximo capítulo as táticas e estratégias utilizadas nas disputas discursivas em que
Tião se insere, mostrando o deslocamento que ocorre nesse processo.
3 – Do tático ao estratégico: os deslocamentos discursivos de Tião Santos
Neste capítulo, pretendemos fazer um estudo de caso do “personagem da vida real”
Tião Santos, principal personagem de Gramacho no filme Lixo Extraordinário, observando o
deslocamento que ocorre em seu lugar de fala. Se antes Tião era um catador invisível,
pertencente a uma categoria indesejada, hoje ele ocupa uma posição autorizada nos discursos
em torno do universo do descartável, embasada na sua experiência de vida com o lixo. A sua
permanência na mídia, diferente dos outros personagens de Gramacho, assim como as
distintas posições nessa ocupadas, nos permitem levantar questões acerca do jogo discursivo
aí presente.
Entre a invisibilidade e o reconhecimento público, temos a mídia como instável espaço
de disputa. Desse modo, adotamos o documentário como ponto de partida da trajetória
discursiva que queremos tratar por considerarmos que a visibilidade midiática concedida a
Tião, via filme, ampliou seu campo de possibilidades de ação, visto aqui como um
deslocamento do espaço tático para o espaço estratégico de fala. De acordo com Certeau
(1998), no jogo entre os “fortes” e os “fracos”, as táticas seriam os “modos de fazer com” dos
fracos, que resistiriam através dos recursos que estivessem disponíveis. Já as estratégias
seriam próprias dos fortes, que deteriam o poder de significar e constituiriam os poderes
preliminares aos saberes.
Para demonstrar o deslocamento de Tião por esses espaços, dividimos o capítulo da
seguinte forma: inicialmente discutiremos as questões relacionadas ao projeto individual e a
ilusão biográfica, apontando para o tratamento dos acontecimentos da vida em seus contextos
específicos, evitando a visão do sujeito linear e cronológico. Em seguida, serão investigadas
as falas do personagem no documentário, relacionando-as ao uso das táticas como
mecanismos de inserção quase invisíveis na disputa discursiva. Por fim, mostraremos como
Tião passa a ocupar um lugar de fala legitimado e estrategicamente posicionado, partindo de
suas falas em palestras realizadas pós filme, a campanha de marketing da Coca-Cola, dentre
outros exemplos.
O deslocamento observado será apresentado como fruto do agenciamento da mídia, a
partir do seu lugar de postulação de poder, articulado a uma ação tática por parte do
personagem nos espaços conquistados. Dessa forma, buscamos evidenciar não só o lugar de
construção de mundo que a mídia ocupa, mas também a capacidade de ação dos sujeitos que
se encontram subjugados a uma estrutura social cada vez mais excludente.
3.1 – A produção artificial de sentidos nas trajetórias e projetos individuais
Consideramos que ao tratar de uma trajetória individual, como em nosso estudo de
caso, devemos inicialmente problematizar as questões que envolvem a construção narrativa
biográfica. O relato de vida opera de forma a conferir sentido linear aos acontecimentos
vividos, que por sua vez são diversos e convivem tanto com o projeto racional do indivíduo
orientado para uma finalidade específica, quanto com a dimensão do acaso, do imprevisível.
Para nos ajudar nesta discussão, utilizaremos dois textos: “A ilusão biográfica” (1996), de
Pierre Bourdieu, e “Trajetória individual e Campo de possibilidades” (2003), de Gilberto
Velho.
Velho escreve seu texto no começo dos anos 70, apresentando as tensões entre jovens
e adultos de uma comunidade de açorianos que vai para os EUA em busca do american
dream. Os conflitos se dão entre o projeto individual e o campo de possibilidades que se abre
para esses jovens nesse novo contexto, marcado pela efervescência dos movimentos de
contracultura e pela própria ascensão da categoria de juventude na sociedade, e os laços
tradicionais afetivos com os quais precisam negociar na constituição dos seus papéis sociais.
O projeto individual é visto por Velho como uma conduta organizada para atingir
finalidades específicas, formulada e implementada dentro de um campo de possibilidades de
construção de si. Como ele afirma, “(…) a construção de identidades básicas subordina-se a
constelações culturais singulares e a conjuntos de símbolos delimitáveis. O que está em jogo é
um processo histórico abrangente e a dinâmica das relações entre os sistemas culturais com
repercussões na existência de indivíduos particulares” (2003, p. 39). Dessa maneira, Velho
atenta para os contextos sociais em que são produzidas as trajetórias individuais, buscando o
conceito de campo de possibilidades em Georg Simmel, sociólogo alemão que já no início do
século XX tratava de tais questões.
O campo de possibilidades corresponderia a dimensão sociocultural em que os
projetos interagem com outros e são construídos. As variáveis desse campo vão de acordo
com os paradigmas culturais compartilhados. Em uma sociedade onde o consumo e a mídia se
tornaram a principal forma de mediação cultural, o ser visível e desejado como mercadoria de
consumo adquire maior flexibilidade nas produções de si e no seu campo de possibilidades do
que o sujeito marginal e estigmatizado, que possui amarras sociais mais determinantes, porém
não fixas.
Os indivíduos portam diferentes projetos individuais, por vezes contraditórios e que
ganham consistência no delineamento dos seus objetivos e finalidades, destaca Velho. A
realização destes projetos está condicionada à interação e ao jogo com outros projetos,
individuais ou coletivos, assim como à dinâmica dos campos de possibilidades em que estão
inseridos.
A reflexão do autor gira em torno da utilização dos conceitos de projeto e campo de
possibilidades na análise de trajetórias e biografias como expressões do quadro sócio-histórico
de determinada época, mas sem esvaziá-las de suas peculiaridades. Assim, as transformações
individuais se dariam ao longo do tempo e contextualmente.
Podemos associar o pensamento de Velho com a ideia de ilusão biográfica, de Pierre
Bourdieu. Para Bourdieu, o relato da vida é confundido no senso comum com a própria vida.
Isso implica em sufocar a diversidade e as incoerências dos episódios experienciados em prol
da narrativa linearizada, como se os acontecimentos constituíssem um todo ordenado, uma
trajetória e uma história do indivíduo. Segundo Bourdieu,
Produzir uma história de vida, tratar a vida como uma história, isto é, como o relato
coerente de uma sequência de acontecimentos com significado e direção, talvez seja
conformar-se com uma ilusão retórica, uma representação comum da existência que
toda uma tradição literária não deixou e não deixa de reforçar. (BOURDIEU, 1996,
p. 185)
A vida só ganharia sentido linear e cronológico na narrativa. O encadeamento de
acontecimentos da vida é uma produção artificial de sentidos, instituída ao ser conferido um
nome próprio ao indivíduo que, como assinala Bourdieu, “é o atestado visível da identidade
do seu portador através dos tempos e dos espaços sociais (..) a forma por excelência da
imposição arbitrária que operam os ritos de instituição” (ibidem, p. 187). Para ele, toda
biografia é totalizante e sua singularização se daria a partir da instituição do nome próprio.
Para Bourdieu, a trajetória individual tenderia a universalizar as experiências ao
representar uma série de posições ocupadas sucessivamente por um mesmo agente num
espaço. No entanto, o sujeito teria várias faces numa mesma biografia e a vida não obedeceria
à lógica de um conjunto de acontecimentos sequenciais. Dessa maneira, o autor propõe que,
ao se tratar de uma biografia, sejam percebidas as brechas, negociações e incoerências entre
os episódios de vida. Isso representa o enfraquecimento da ideia de projeto e a atenção à
dimensão do acaso.
Tanto Bourdieu quanto Velho nos apontam para a busca das incoerências na fictícia
construção linearizada da vida, situadas dentro de um campo de relações de forças desiguais.
As trajetórias individuais devem ser vistas em seu contexto e os acontecimentos biográficos
observados como colocações e deslocamentos nos diversos espaços sociais.
No caso da representação midiatizada de Tião Santos, percebemos que a ideia de
projeto permanece como uma série sucessivas de acontecimentos que culminam no
reconhecimento e visibilidade do personagem, levado para fora das telas e do espaço de
marginalidade a que estava destinado. No documentário, sua história de vida é explorada de
modo a construí-lo como um sujeito sofrido e visionário, superador das adversidades da vida
por meio do universo das táticas. Apontaremos as incoerências e brechas na trajetória de Tião
nos diferentes contextos socioculturais em que circula, assim como as negociações realizadas
nas suas construções. O passado de catador não é descartado e legitima os discursos
produzidos por e sobre Tião Santos.
3.2 – As táticas e astúcias no personagem Tião Santos
Para Michel de Certeau, as estatísticas funcionalistas deixaram de fora das análises a
riqueza das práticas cotidianas, que seriam os usos, os “modos de fazer com”, essenciais na
compreensão das disputas que se dão em torno das produções de sentido. No texto “Fazer
com: usos e táticas” (1998), Certeau explica os conceitos de táticas e estratégias, como
“modos de fazer com” que operam de maneira distinta.
As táticas seriam marcadas pela ausência do poder, de um “próprio”. Já as estratégias
teriam meios de instituir algo como um “próprio” e de significar os diversos campos da vida
social. Por agora, vamos nos ater às táticas e à sua relação com o universo do descartável
representado em Lixo Extraordinário.
Certeau define tática como
(…) a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então
nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autonomia. A tática não tem
por lugar senão o do outro. E por isso deve jogar com o terreno que lhe é imposto tal
como o organiza a lei de uma força estranha. Não tem meios para se manter em si
mesma, à distância, numa posição recuada, de previsão e de convocação própria: a tática é movimento “dentro do campo de visão do inimigo”, como dizia von Büllow,
e no espaço por ele controlado. (CERTEAU, 1998, p. 100)
A partir desse conceito, podemos afirmar que os sujeitos inseridos no universo do
descartável, como os representados em Lixo Extraordinário, se adequam aos “modos de fazer
com” táticos, negociando com o que está ao seu alcance. A leitura e o contato de Tião com o
pensamento de Maquiavel através do livro “O Príncipe”, recolhido por Zumbi no aterro,
exemplifica isso. O catador diz que foi muito importante essa leitura, porque era o momento
em que ele estava se tornando um líder na associação. A partir das condições disponíveis, Tião
se apropriou de um conhecimento e agiu sobre o contexto em que estava inserido.
A primeira aparição de Tião Santos no documentário é num protesto pela categoria dos
catadores de material reciclável, em frente à prefeitura de Duque de Caxias, como líder da
Associação dos Catadores do Aterro Metropolitano do Jardim Gramacho (ACAMJG). Em
meio aos gritos de “O catador organizado, jamais será pisado”, ele empunha o megafone e
diz:
Estamos aqui representando os 3 mil catadores do Jardim Gramacho. Até hoje a
coleta seletiva não foi implantada, até hoje o muro não foi construído, agora pra
lotear e querer vender o terreno que o senhor doou com um compromisso com o
Ministério Público! Foi construído um fórum de reciclagem sem um centavo da
prefeitura, graças à organização dos catadores. E agora o senhor tá ignorando,
fingindo que a gente não existe!
O campo de possibilidades de Tião nessa situação é restrito, condicionado por signos
de impureza que remetem à invisibilidade e à marginalidade. Nessa fala, o personagem
explicita o lugar do invisível ao qual os sujeitos catadores estão designados, especialmente
diante do poder público, ideia reforçada no decorrer do documentário pelas imagens da falta
de infraestrutura e miséria do Jardim Gramacho.
Após a representação da militância política do personagem nas causas do lixo e do
bairro, é promovido o encontro entre Tião e Muniz na sede da ACAMJG, da qual é presidente.
Nessa conversa, o catador explica o processo de criação da associação, dizendo que “quando a
gente começou a pensar em fazer esse negócio, todo mundo ficava debochando. É, maluco,
isso não vai dar em nada...”. Mesmo com a falta de apoio, o personagem ressalta que foi
insistente e que por causa das ações do movimento de catadores, o governo implementou o
sistema de esgoto e o asfalto no bairro.
Enquanto caminham pelo aterro, Vik avista uma banheira e decide fotografar Tião
como o Marat Assassiné, pintado por Jacques-Louis David em 1793. Após a produção da
fotografia, a cena seguinte revela que a associação foi assaltada e o dinheiro que pagaria os
catadores é levado. Tião, abatido, desabafa: “A gente fica até pensando se vale a pena certas
coisas. Acho que num vale... tem hora que dá vontade de desistir de tudo aqui dentro já. Dá
vontade de ficar aqui não”. Nessa situação, o discurso anterior da luta constante e insistente dá
lugar ao desânimo e à falta de perspectiva. Para o documentário, a estratégia de explorar as
incoerências e brechas nas trajetórias dos personagens interessa para a defesa do seu
argumento e para o estabelecimento de conexões com o mundo vivenciado pelo espectador.
As imagens seguintes são os catadores de Gramacho, dentre estes os seis personagens
que tiveram suas fotografias escolhidas para compor a série Pictures of Garbage,
preenchendo com material reciclável seus retratos projetados no chão de um galpão. Depois
de prontas, as montagens são mostradas aos catadores. Tião, ao se ver e sentir-se representado
na obra Sebastião - Marat, solta “Caraca, maluco, tá eu igualzinho. Caramba, cara, nunca
imaginei eu numa obra de arte”. O quadro foi escolhido para ir à venda num leilão em
Londres e acabou se tornando a imagem de divulgação do filme, assim como Tião se tornou
seu garoto-propaganda.
A peça é vendida por cerca de R$ 74 mil e Tião, emocionado, diz que “Tudo valeu a
pena. Tudo que eu fiz até hoje valeu muito a pena”. Essa afirmação universaliza toda a
experiência de Tião, uma vez que converge suas situações biográficas para o momento em que
os conflitos e incoerências são recompensados com a venda do quadro. A cena segue com a
pergunta de Vik: “Por que você tá aqui?” e Tião responde: “porque um dia eu e um amigo
sonhamos em fundar uma associação. Fundou a associação, não sonhava nem nada véi,
ninguém acreditava na gente, nem minha família. Ninguém acreditava em mim. Eu tô muito
feliz, cara. Deus foi muito bom comigo, Deus foi maravilhoso”, ao que Muniz retruca: “Não,
você é que é forte”. A dimensão do projeto e de uma trajetória individual vitoriosa ganha
força. Notamos que, no âmbito das ações táticas, a formulação de um projeto de vida
permanece como a finalidade da própria vida, mesmo em um campo de possibilidades pouco
flexível.
De Londres, Tião liga para sua mãe avisando da venda e revela: “Aqui é que nem eu
fosse um pop star”. O deslocamento discursivo do personagem começa a ser evidenciado. O
seu reconhecimento e inserção num regime de valor e visibilidade lhe permitem afirmar que
se parece com um pop star, modelo de construção que remete à cultura da mídia. Tião se
transforma em obra de arte, mercadoria vendável que recicla os sentidos do descartável,
atribuindo beleza e status simbólico naquilo que antes causava distanciamento e incômodo.
Já no final do filme, o líder de Gramacho aparece em duas entrevistas. A primeira é
realizada na estreia da exposição dos quadros feitos a partir do lixo no Museu de Arte
Moderna do Rio de Janeiro, falando que “Vale a pena você se organizar para que defenda não
só a posição dos catadores como uma categoria de trabalhadores na área da reciclagem, como
também ser hoje uma obra de arte. Então vale a pena”. O catador ressalta seu lugar de luta na
defesa da categoria social, se aproveitando da oportunidade em que teve voz e destacando os
dois campos imediatos que estão em negociação: o universo do descartável, a identidade de
catador que adota, e a sua representação via arte, midiatizada no cinema documental.
A participação de Tião no filme é encerrada com a entrevista concedida ao Programa
do Jô, em maio de 2009, onde ele demarca claramente seu espaço e posição numa atitude que,
ao nosso ver, é mais estratégica do que tática. Ao convocar Tião para o palco, Jô Soares se
refere à categoria como “catadores de lixo”. Assim que tem a oportunidade, Tião o corrige:
“Posso fazer uma correção, Jô? A gente não é catador de lixo, a gente é catador de material
reciclável. Lixo é aquilo que não tem reaproveitamento, material reciclável sim”. Levando em
consideração os argumentos de Foucault, de que o discurso é o instrumento pelo qual se luta e
o objeto em disputa, tem-se nesse posicionamento de Tião uma demonstração do embate pelo
poder de nomeação.
Ao defender a categoria de catadores de “material reciclável” e não de “lixo”, Tião
está não só buscando reconhecimento da categoria de trabalhadores, mas também
questionando as marcas discursivas que tratamos aqui como conformadoras dos discursos
produzidos por esses sujeitos invisíveis, como os signos de impureza e a poluição simbólica.
Tião, que antes ocupava uma posição quase invisível na estrutura social, se apropria das “artes
do fraco” para agir sobre o espaço controlado pela estratégia, garantindo sua visibilidade e
legitimidade em determinados discursos.
Ao mesmo tempo em que promove uma mercadoria, no caso um produto audiovisual,
Tião é também a mercadoria a ser promovida, o objeto a ser consumido. É nesse
embaçamento de fronteiras entre sujeito e mercadoria, que evidenciamos o deslocamento dos
sentidos do descartável. De sujeito invisível à personalidade midiatizada, a visibilidade
concedida a Tião e as posteriores mudanças em sua trajetória de vida só foram possíveis a
partir da inserção desse sujeito no regime de valor e visibilidade da mídia, passando por um
processo de fetichização e remercadorização, como discutimos em nosso primeiro capítulo.
3.3 – A sociedade não nos vê como lixo: a consolidação do lugar estratégico do
sujeito Tião Santos
Apresentamos anteriormente as modalidades de ação tática nos discursos produzidos
por e sobre Tião Santos, enquanto personagem do documentário Lixo Extraordinário. Propõe-
se agora um olhar sobre a trajetória pós filme do “personagem da vida real” em questão, onde
ressaltamos os espaços estratégicos de ação. Entendemos que ao ser projetado para além do
cinema, Tião passa a representar uma série de vozes silenciadas, se consolidando como agente
autorizado nos discursos que envolvem o lixo e as questões socioambientais daí decorrentes.
Essa mudança implica em conflitos e negociações que trataremos a seguir.
Para Certeau, o “ato de falar é um uso da língua e uma operação sobre a língua” (1998,
p.97). A natureza dessas operações estaria ligada também a uma relação de poder, definindo
as redes em que se inscrevem e delimitando as circunstâncias, assim como Foucault sugere
nos mecanismos de controle do discurso. Dessa forma, Certeau diz que as estratégias
constituem o
cálculo (ou a manipulação) das relações de força que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma
cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar de ser suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem
gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças (os clientes ou os
concorrentes, os inimigos, o campo em torno da cidade, os objetivos e objetos da
pesquisa, etc). (CERTEAU, 1998, p.99)
A estratégia tem o poder de instituir algo como próprio, de selecionar e conferir
autoridade de fala aos sujeitos selecionados. Através da visibilidade adquirida via mídia, Tião
passa a falar não só por Gramacho ou pelas questões apresentadas no filme, mas pela
categoria de forma ampla. Como ele mesmo comenta em entrevista dada ao Nós da
Comunicação16
,
A minha responsabilidade hoje é maior, então eu tenho que falar não mais pensando só em Gramacho, não pensando só na questão do filme, mas pensando no contexto
geral que vai desde a implantação da coleta seletiva como política pública,
respeitando e valorizando o trabalho dos catadores, como também a importância da
valorização desse trabalho. (Informação verbal)
Tião se apropria do discurso socioambiental e da representação da categoria de
catadores. Quando corrige o termo “catador de lixo”, utilizado por Jô Soares, a visibilidade
que este ato traz é bastante simbólica, se tornando uma referência constante no discurso de
Tião em outros eventos e situações em que participa assumindo a posição de autoridade
discursiva. Isso fica ainda mais claro na próxima fala, retirada da palestra no Congresso RH-
Rio 201117
: “A sociedade que nos via como um lixo, hoje já questiona como pode contribuir
com o nosso trabalho e isso é muito animador”. Tião passa a falar de um outro lugar que não
mais o do invisível. Se antes os catadores eram invisíveis perante a sociedade, agora haveria
uma boa vontade por parte da estrutura social em colaborar com o trabalho dos catadores.
Essa fala, além de servir como modelo do deslocamento discursivo que destacamos nessa
monografia, levanta outra questão.
Como vimos anteriormente com Mary Douglas, as marcas de impureza foram
construídas cultural e socialmente, demarcando espaços de fala e de marginalidade social. Na
expressão de Tião, a sociedade teria mudado seu pensamento acerca do lixo e dos sujeitos
catadores. No entanto, os signos de impureza, as restrições discursivas e a poluição simbólica
continuam em Gramacho, interferindo nos campos de possibilidades de quem lá sobrevive.
O sujeito Tião Santos tem autoridade para entrar no auditório de uma universidade ou
de um hotel de luxo, ser ouvido e tratado como um “igual” (mesmo que aparentemente) pela
16 A entrevista foi concedida durante o Congresso de Gestão de Pessoas - RH Rio, em maio de 2011, disponível
em http://www.youtube.com/watch?v=RaLMuZNrfO0 . Acessado em 03/12/2011.
17 A palestra pode ser consultada nos seguintes endereços: http://www.abrhrj.org.br e
http://sustentabilidadeesociedade.com. Acessados em 03/12/2011.
classe média e alta predominante nesses espaços. O sujeito catador que não teve acesso à
visibilidade e às oportunidades aproveitadas por Tião, provavelmente não teria esse mesmo
tratamento. Seria bem possível que até mesmo sua entrada não fosse permitida nesses
ambientes, sendo o catador uma figura indesejável que, assim como o lixo que lida, é mantido
à distância dos espaços burgueses higienicamente organizados.
Atualmente, não é preciso que Tião vá à prefeitura de Duque de Caxias protestar por
coleta seletiva. A visibilidade midiática dada ao personagem e à causa dos catadores de
material reciclável de Gramacho permite que ele aja de maneira muito mais abrangente do
que antes e com o respaldo de uma autoridade inexistente antes de Lixo Extraordinário. Hoje,
Tião Santos é o coordenador nacional de logística do “Limpa Brasil”18
, movimento
internacional que promove discussões e ações sobre as políticas de descarte de resíduos
sólidos e sustentabilidade, além de ser convidado como palestrante em diversos eventos e
participar de campanhas publicitárias.
Como a campanha Cada garrafa tem sua história, lançada pela Coca-Cola em agosto
de 2011 para divulgar os projetos de sustentabilidade que financia, a ACAMJG, uma das
instituições apoiadas pela empresa, é representada por Tião. A história do presidente da
associação é contada nas latas de refrigerante, distribuídas para toda a América Latina. A
campanha também veicula vídeos com cada representante dos projetos apoiados, que são
disponibilizados pela Coca-Cola no YouTube.
Esse exemplo nos remete ao pensamento de Appadurai, discutido em nosso primeiro
capítulo, referente à vida social das coisas. Em determinada parte de sua trajetória, os objetos
adquirem o status simbólico de mercadoria, se tornando objetos de desejo e consumo. A
afirmação de que cada garrafa tem sua história, associada aos relatos de vida que vêm
impressos nas latas, apontam para a biografia daquela mercadoria. Assim, é atribuída à lata de
Coca-Cola uma história de vida, positivando a marca, ao mesmo tempo em que confere a Tião
o status temporal de mercadoria.
Na lata de Coca-Cola, a figura de Tião se forma a partir do seu relato de vida,
associando sua imagem às experiências com o lixo. Tal jogo simbólico reafirma a ideia de que
as negociações com o universo do descartável permanecem nas construções do personagem
18 Mais informações sobre o Programa Limpa Brasil – Let's do it podem ser obtidas no site:
http://www.limpabrasil.com/site/ . Acessado em 03/12/2011.
do nosso estudo, mesmo no espaço da estratégia. Nessa campanha, a história de Tião é
contada dessa maneira:
Comecei a frequentar o aterro sanitário de Gramacho, no Rio de Janeiro, quando eu
era criança. Eu tinha 8 anos e levava comida para minha mãe e meus dois irmãos que
trabalhavam lá, mas não me deixavam catar lixo. Eu ficava brincando com os outros
meninos. Só comecei a trabalhar lá para dar um complemento na renda, bem mais
tarde. Geralmente sábado à noite, quando eu não estudava. Sofri muito preconceito por ser catador e filho de catadora. No colégio, principalmente, porque eu sempre
achei importante estudar. Eu sempre falava para minha mãe: 'eu não gosto de catar
lixo'. Eu não tinha noção da importância do meu trabalho. Na verdade a gente não é
catador de lixo, a gente é catador de material reciclável. Lixo é aquilo que não tem
reaproveitamento, material reciclável sim. O catador é quem movimenta toda essa
cadeia da reciclagem, é o elo principal da sustentabilidade. Você percebe que se o
Brasil recicla tanto hoje em dia é por causa dos catadores. Eu tive consciência disso
depois que eu e um amigo criamos a Associação dos Catadores de Jardim Gramacho,
que é apoiada pela Coca-Cola. Todo mundo debochava. Ninguém acreditava. Mas aí
aquele trabalho solitário, nas ruas, para matar a fome, passou a ser coletivo. Passou a
ter valor. Tanto valor que a gente virou obra de arte, virou documentário. Fomos parar até na festa do Oscar! Às vezes fico pensando quando vai dar meia-noite e a
carruagem vai voltar a ser abóbora, mas não dá. Esse meu conto de fadas não
termina. Valeu a pena tudo o que eu sonhei. Onde existia um fim eu vi um começo.
Hoje minha vida é muito boa. Quando você bebe um produto da Coca-Cola você se
torna parte das milhares de histórias de otimismo como a minha. Tião Santos -
Presidente da Associação dos Catadores do Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro.
De acordo com esse relato, o valor e a visibilidade dada aos catadores é fruto do
trabalho desenvolvido por eles e as representações na mídia são tratadas como uma
consequência desse processo. Sem desconsiderar o trabalho anterior da categoria, acreditamos
que tenha ocorrido outro processo. A partir da representação dos catadores e do lixo na mídia,
as reivindicações e posicionamentos desse grupo social puderam se tornar públicos e visíveis.
O reconhecimento e valor a que Tião se refere, em nossa leitura, são fruto do processo de
fetichização dos espaços e sujeitos em torno do lixo.
Tião Santos se utilizou de uma brecha midiática e agiu taticamente sobre esta, de
acordo com os interesses em jogo. Ao mesmo tempo em que ele reinventava sua luta a partir
das oportunidades que surgiam, se inserindo nos espaços disponíveis, outros discursos
também se apropriavam dele segundo estratégias próprias. Nesse jogo em constante
reconfiguração, Tião se utilizada das diferentes modalidades de ação, garantindo visibilidade
às questões que defende como líder do movimento de catadores de materiais recicláveis.
4 – Considerações Finais
Como é possível identificar “vida” na mercadoria em seu estado descartável e não
enxergar vida nos sujeitos que sobrevivem no e do lixo? Esse foi o questionamento que deu
início à pesquisa para essa monografia. Duas cenas de Lixo Extraordinário foram
fundamentais para tal formulação: os catadores classificando o lixo a partir de estilos de vida
e classes sociais; e a constatação inicial de Vik Muniz acerca de Gramacho como o “fim da
linha”, o lugar para onde vai “tudo que não é bom, inclusive as pessoas”. Por um lado, temos
a atribuição de uma vida social aos objetos que estão ali e que, supostamente, não possuiriam
valor nenhum. Por outro lado, os sujeitos que deveriam ser vistos como a vida possível no
universo do descartável, são dotados de características negativas que geram efeitos de
invisibilidade social.
Com a ajuda de Appadurai, atentamos para a observação da etapa do descarte como
mais uma fase da vida social das coisas, repleta de sentidos em disputa e reconfiguração. Essa
multiplicidade de construções acerca do lixo é abafada sob os signos de impureza e poluição
simbólica, produzindo marginalidade e invisibilidade que atuam como restrições discursivas
aos sujeitos aí localizados. Tais signos dificultam a percepção do lixo como um invento
sociocultural e dos embates presentes nas suas significações, ideia que é ressaltada por José
Carlos Rodrigues.
O percurso realizado até aqui procurou, dentre outros objetivos, evidenciar o
embaçamento das fronteiras entre sujeito e mercadoria na cultura de consumo, reforçada e
reapropriada pela cultura da mídia. Em nossas discussões, mostramos que os “sujeitos
descartáveis” só se tornam visíveis e adquirem vida diante da sociedade ao passarem pelo
processo de fetichização, que confere à categoria descartável o status simbólico e temporal de
mercadoria. Desse modo, esses sujeitos são ressignificados, via documentário, como objetos
de consumo. A necessidade de se manter como objeto visível e desejado, consumível, é
pressuposto para se tornar consumidor, nos indica Bauman.
A representação desses sujeitos no cinema documental nos traz outras implicações. O
gênero discursivo documentário é consumido primordialmente como fonte de informação e
conhecimento, se baseando nos discursos do real e numa realidade social construída de acordo
com seus interesses, que atua reforçando o estatuto de real do documentário. No caso de Lixo
Extraordinário, identificado em nosso segundo capítulo como próximo do sub-gênero
performático, as experiências e histórias de vida relatadas pelos personagens humanizam e
fetichizam esses sujeitos, ao mesmo tempo em que o documentário as utiliza como estratégia
para manutenção da realidade que visa tratar.
A aparente inserção social desses sujeitos e a percepção de que eles também possuem
uma vida com sonhos, projetos e experiências, tanto quanto a minha ou a sua, foi possibilitada
em grande parte pela apropriação midiática segundo interesses de mercado, mas não só por
isso. Somada à ação de estratégia da mídia, as reapropriações e astúcias empregadas pelos
“sujeitos descartáveis” nos espaços a que tinham acesso, compõem um cenário mais
complexo desses jogos discursivos.
Como vimos em Certeau, as práticas cotidianas se mostram como ricos elementos de
análise das disputas discursivas. As reapropriações e os “modos de fazer com” dos “fracos”,
que lançam mão das astúcias nos espaços controlados pela estratégia, atentam nosso olhar
para as práticas de resistência e da construção identitária dos “sujeitos descartáveis”. O
personagem que escolhemos para nosso estudo de caso nos permite visualizar a complexidade
dessas relações em disputa.
A legitimidade dos papéis sociais de Tião é embasada na sua experiência de vida com
o lixo. Como nos mostraram Bourdieu e Velho, os episódios da vida, ao serem relatados, são
encadeados de modo linear e cronológico, produzindo sentidos artificiais que destacam a
dimensão do projeto em detrimento dos acasos e incoerências. A partir disso, ressaltamos a
exploração desses sentidos no documentário, na campanha de marketing que protagoniza e
nos discursos do próprio Tião.
Da invisibilidade do lixo à lata de Coca-Cola, Tião Santos representa tanto a
construção de uma autoridade discursiva pela cultura da mídia, quanto a capacidade de ação
tática dos sujeitos na busca pela visibilidade às suas questões e causas. O alargamento no seu
campo de possibilidades proporcionou a mobilidade entre as diferentes modalidades da ação e
negociação.
Num panorama geral, essa monografia busca tratar da complexa relação entre
sociedade, cultura e mídia, esclarecendo algumas das estratégias e táticas em jogo.
Entendemos que nosso trabalho é também mais uma representação possível para o universo
do descartável, não única ou definitiva. Se em alguns momentos recorremos à afirmações
categóricas, foi no intuito de demarcarmos as limitações de nossa pesquisa, abrindo espaço
para as críticas e releituras.
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