do que eu falo quando falo de corrida

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Murakami

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    Folha de Rosto

    Haruki Murakami

    Do que eu falo quando eu falo de

    corrida Um relato pessoal

    TraduoCssio de Arantes Leite

  • CrditosCopyright 2007 by Haruki MurakamiTodos os direitos desta edio reservados Editora Objetiva Ltda.Rua Cosme Velho, 103Rio de Janeiro RJ Cep: 22241-090Tel.: (21) 2199-7824 Fax: (21) 2199-7825www.objetiva.com.brTtulo em inglsWhat I Talk About When I Talk About RunningPublicado originalmente no Japo com o ttulo Hashiru Koto Ni Tsuite Kataru Toki Ni Boku NoKataru KotoA presente traduo foi feita a partir da edio norte-americana, traduzida do japons por PhilipGabriel.CapaRetina_78Crdito de imagem da pgina 5Masao KageyamaRevisoAna Julia CuryTas MonteiroTamara SenderCoordenao de e-bookMarcelo XavierConverso para e-bookAbreus System Ltda.

    CIP-BRASIL. CATALOGAO-NA-FONTESINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJM944dMurakami, Haruki Do que eu falo quando eu falo de corrida [recurso eletrnico] : um relato pessoal / HarukiMurakami ; traduo Cssio de Arantes Leite. - Rio de Janeiro : Objetiva, 2012.recurso digitalTraduo de: What I talk about when I talk about runningFormato: ePubRequisitos do sistema: Adobe Digital EditionsModo de acesso: World Wide Web127p. ISBN 978-85-7962-138-3 (recurso eletrnico)1. Murakami, Haruki, 1949-. 2. Experincias de vida. 3. Maratona. 3. Livros eletrnicos. I. Leite,Cssio de Arantes. II. Ttulo.12-2539 CDD: 895.635CDU: 821.521-3

  • Haruki Murakami, 1983

  • Prefcio

    Sofrer opcional

    Existe um ditado sbio que diz o seguinte: um cavalheiro de verdadenunca fala a respeito das mulheres com quem terminou umrelacionamento ou sobre quanto ele paga de imposto. Na verdade, isso uma grande mentira. Acabei de inventar. Desculpe! Mas se existissemesmo um ditado como esse, acho que uma terceira condio para serum cavalheiro seria manter a boca fechada sobre o que voc faz paramanter a forma. Pelo menos assim que eu penso.

    Como todo mundo sabe, no sou nenhum cavalheiro, ento nodeveria nem estar preocupado com isso, para comeo de conversa.Mas, mesmo assim, co um pouco hesitante sobre escrever este livro.Talvez isso soe um pouco como fugir da raia, mas este um livro sobrecorrer, no um tratado sobre como ser uma pessoa saudvel. No estouaqui tentando dar conselhos do tipo Certo, pessoal vamos corrertodos os dias para carmos saudveis!. Em vez disso, este um livrono qual juntei meus pensamentos sobre o que correr signicou paramim como pessoa. Apenas um livro em que pondero sobre vrias coisase penso em voz alta.

    Somerset Maugham certa vez escreveu que em cada barbear resideuma losoa. Eu no poderia estar mais de acordo. Por mais mundanaque uma ao possa parecer, que nela tempo suciente e ela setornar um ato contemplativo, meditativo, at. Como escritor, ento, ecomo um corredor, no acho que escrever e publicar um livro commeus pensamentos pessoais sobre correr me faa desviar muito demeu caminho usual. Talvez eu seja apenas um tipo de sujeitoexcessivamente meticuloso, mas no consigo captar grande coisa arespeito do que quer que seja sem deitar meus pensamentos porescrito, de forma que tenho de fato que pr mos obra e escreverestas palavras. De outro modo, jamais saberia o que correr signicapara mim.

    Certa vez, eu estava num quarto de hotel em Paris lendo oInternational Herald Tribune quando topei com uma matria especialsobre maratona. Havia entrevistas com inmeros maratonistas famosose foi-lhes perguntado que mantra especial passava por suas cabeaspara mant-los animados durante uma corrida. Que perguntainteressante, pensei. Fiquei impressionado com todas as coisas

  • diferentes que aqueles corredores pensam quando correm os 42,195quilmetros. Isso s vem provar quo extenuante de fato umamaratona. Se voc no ca repetindo um mantra de algum tipo para simesmo, nunca vai sobreviver.

    Um corredor contou a respeito de um mantra que seu irmo maisvelho, tambm corredor, lhe ensinara, e sobre o qual ele reetia desdeque comeara a correr. Ei-lo aqui: a dor inevitvel. Sofrer opcional.Digamos que voc esteja correndo e comece a pensar: Cara, que dor,no aguento mais. Sentir dor uma realidade inescapvel, mascontinuar ou no suportando algo que cabe ao corredor. Isso emgrande parte resume o aspecto mais importante da realizao de umamaratona.

    J faz cerca de dez anos que tive a ideia de escrever um livro sobrecorrida, mas ao longo do tempo tentei uma abordagem depois da outrasem nunca de fato parar e escrever. Correr meio que um tema vago,antes de mais nada, e achei difcil imaginar exatamente o que deveriadizer a respeito dele.

    A certa altura, contudo, decidi que deveria apenas escreverhonestamente sobre o que penso e sinto quanto a correr, e me ater aomeu prprio estilo. Percebi que era o nico modo de seguir em frente, ecomecei a escrever o livro, trecho aps trecho, no vero de 2005,terminando-o no outono de 2006. Excetuando alguns lugares quemenciono de textos anteriores que escrevi, a maior parte deste livroregistra meus pensamentos e sensaes em tempo real. Uma coisa quenotei foi que escrever honestamente sobre correr e escreverhonestamente sobre mim mesmo so quase a mesma coisa. Entosuponho que no haja problema em ler isto como uma espcie derelato pessoal centrado no ato de correr.

    Apesar do fato de que eu jamais chamaria parte alguma deste livrode filosofia propriamente dita, ele realmente contm certa quantidadedo que pode ser rotulado como lies de vida. Talvez no sejam grandecoisa, mas so lies pessoais que aprendi ao pr meu corpoefetivamente em movimento, descobrindo, assim, que sofrer opcional. Pode acontecer de essas lies no se prestarem ageneralizaes, mas justamente porque o que apresentado aqui soueu, o tipo de pessoa que sou.

    AGOSTO DE 2007

  • Um

    5 DE AGOSTO DE 2005 KAUAI, HAVAQuem ousa rir de Mick Jagger?

    Estou em Kauai, no Hava, hoje, sexta-feira, 5 de agosto de 2005. O diaest incrivelmente claro e ensolarado, sem uma nuvem no cu. Comose o conceito de nuvens nem sequer existisse. Vim para c no m dejulho e, como sempre, alugamos uma casa em um condomnio. Pelasmanhs, quando est fresco, permaneo sentado minha mesa,escrevendo todo tipo de coisa. Como agora: estou escrevendo isto, umtexto sobre correr que posso perfeitamente elaborar conforme desejo. vero, ento naturalmente faz calor. O Hava costuma ser chamado deilha do vero eterno, mas como ca no hemisfrio norte, razoveldizer que existem quatro estaes de algum tipo. O vero um poucomais quente que o inverno. Passo um bocado de tempo em Cambridge,Massachusetts, e, comparado a Cambridge de clima to quente,mido e pesado com todos aqueles tijolos e concreto que chega aoponto de ser uma espcie de tortura , o vero no Hava umverdadeiro paraso. No h necessidade de ar-condicionado por aqui apenas deixe a janela aberta e uma brisa refrescante vai entrar. Aspessoas em Cambridge sempre cam surpresas quando ouvem falarque passo os meses de agosto no Hava. Por que voc quer passar overo num lugar quente daqueles?, o que me perguntaminvariavelmente. Mas elas no sabem como . Como os constantesventos alsios vindos do nordeste tornam os veres frescos. Como a vida feliz por aqui, onde podemos desfrutar de horas ociosas, lendo umlivro sombra de rvores ou, se a ideia nos vier cabea, descendosem nem precisar trocar de roupa para um mergulho na baa.

    Desde que cheguei ao Hava tenho corrido cerca de uma hora tododia, seis dias por semana. Faz dois meses e meio agora que retomeimeu antigo estilo de vida em que, a menos que seja totalmenteimpossvel, corro todos os dias. Hoje corri por uma hora e dez minutos,escutando em meu walkman dois lbuns do Lovin Spoonful Daydream e Hums of the Lovin Spoonful que gravei em um MiniDisc(MD).

    No momento meu objetivo aumentar a distncia percorrida, demodo que velocidade no vem tanto ao caso. Contanto que eu possacorrer uma certa distncia, isso tudo que importa. s vezes, corro

  • rpido quando sinto vontade, mas, se aumento o ritmo, diminuo aquantidade de tempo que corro, e a ideia deixar que a exaltao quesinto no m de cada corrida dure at o dia seguinte. o mesmo tipo deabordagem que creio ser necessria quando estou escrevendo umromance. Paro todo dia bem no momento em que sinto que possoescrever mais. Feito isso, o dia de trabalho seguinte transcorresurpreendentemente bem. Acho que Ernest Hemingway fazia algumacoisa parecida. Para seguir em frente, preciso manter o ritmo. Isso omais importante em projetos de longo prazo. Assim que vocestabelece o ritmo, o resto vem a reboque. O problema conseguirfazer com que a roda que girando a uma determinada velocidade echegar a esse ponto exige o mximo de concentrao e esforo de quea pessoa capaz.

    Choveu um pouco enquanto eu corria, mas foi uma chuva agradvele refrescante. Uma nuvem pesada se avolumou acima de mim, vindado oceano, e a chuva amena caiu por algum tempo, mas depois, comoque lembrando, Ai, esqueci que eu tinha umas coisas pra fazer!, elase afastou rapidamente sem nem sequer olhar para trs. E ento o solinclemente voltou, queimando a terra. um padro climtico muitofcil de assimilar. Nada de confuso ou ambivalente sobre ele, nem amais leve insinuao metafrica ou simblica. No caminho, passei poroutros corredores, homens e mulheres em nmero relativamente igual.Os mais cheios de energia chispavam pela pista, cortando o ar como setivessem ladres em seus calcanhares. Outros, acima do peso, bufavame resfolegavam, os olhos semicerrados, os ombros cados como seaquilo fosse a ltima coisa no mundo que gostariam de estar fazendo.Parecia que uma semana antes seus mdicos lhes haviam informadoque tinham diabetes e advertido a comearem a se exercitar. Estou emalgum ponto entre as duas coisas.

    Adoro escutar o Lovin Spoonful. A msica deles tem qualquer coisade casual e jamais pretensiosa. Escutar essa msica relaxante metraz de volta lembranas dos anos 1960. Mas nada muito especial. Sefossem fazer um lme sobre minha vida (s pensar nisso j me deixaassustado), essas seriam as cenas que cariam jogadas no cho da salade edio. Podemos deixar esse episdio de fora, explicaria o editor.No ruim, mas meio comum e no diz grande coisa. Esse tipo delembrana despretensiosa, lugar-comum. Mas para mim so todassignicativas e valiosas. Conforme cada uma dessas lembranasperpassa minha mente, tenho certeza de que inconscientementesorrio, ou manifesto um ligeiro franzido na testa. Por mais lugares-comuns que possam ser, o acmulo dessas lembranas levou a umresultado: eu. Eu aqui e agora, no litoral norte de Kauai. s vezes,

  • quando penso na vida, me sinto como um destroo deriva que foiparar numa praia.

    Enquanto corro, os ventos alsios soprando da direo do farollanam as farfalhantes folhas de eucalipto por cima de minha cabea.

    Passei a morar em Cambridge, Massachusetts, no m de maio desteano, e correr tem sido mais uma vez o eixo central de minha rotinadiria desde ento. Estou correndo seriamente, agora. Com seriamentequero dizer sessenta quilmetros por semana. Em outras palavras, dezquilmetros por dia, seis dias por semana. Seria melhor se eu corressesete dias, mas tenho de considerar os dias de chuva, e dias em que otrabalho me mantm ocupado demais. H alguns dias, tambm, emque francamente me sinto cansado demais para correr. Levando tudoisso em conta, deixo um dia por semana livre. Assim, com sessentaquilmetros por semana, cubro duzentos e sessenta quilmetros todoms, o que para mim meu padro de correr seriamente.

    Em junho segui exatamente esse plano, correndo duzentos esessenta quilmetros em cima da pinta. Em julho aumentei a distnciae cobri trezentos quilmetros. Mantive a mdia de dez quilmetrosdirios, sem deixar um nico dia livre. No quero dizer que percorriprecisamente dez quilmetros por dia. Se eu corro quinze quilmetrosnum dia, no dia seguinte corro apenas cinco. (Meu ritmo de corrida emgeral de dez quilmetros por hora.) Para mim, isso denitivamentecorrer a um ritmo srio. E desde que vim para o Hava eu mantenhoesse ritmo. J faz muito tempo que sou capaz de correr distncias comoessas e manter esse tipo de programa fixo.

    Existem vrios motivos por que, a certa altura de minha vida, pareide correr seriamente. Antes de tudo, minha vida foi cando muitoocupada, e tempo livre se tornou cada vez mais um artigo de luxo.Quando eu era mais novo, no que tivesse todo o tempo livre quequeria, mas pelo menos no tinha tantas tarefas diferentes quantotenho agora. E no sei por qu, mas quanto mais velho voc ca, maisocupado voc . Outro motivo foi que passei a me interessar mais portriatlo do que por maratonas. Triatlo, claro, envolve nadar e pedalar,alm de correr. A parte da corrida no um problema para mim, mas am de dominar as outras duas modalidades da competio tenho dedevotar grande parte do tempo a treinar natao e ciclismo. Tive decomear do zero com a natao, reaprendendo a forma correta denadar. Aprendi tambm as tcnicas corretas de pedalar e treinei osmsculos necessrios. Tudo isso demandou tempo e esforo e, comoresultado, me restou menos tempo para dedicar corrida.

    Provavelmente, o principal motivo, contudo, foi que em certo

  • momento eu simplesmente me cansei do esporte. Comecei a correr nooutono de 1982 e venho correndo desde ento por quase vinte e trsanos. Ao longo desse perodo treinei quase diariamente, disputandopelo menos uma maratona todo ano vinte e trs, at o momento ,e participei de mais provas de longa distncia ao redor do mundo doque sei dizer. Corridas de longa distncia, porm, combinam comminha personalidade, e de todos os hbitos que adquiri ao longo davida, devo dizer que esse tem sido o mais til, o mais signicativo.Correr sem intervalo por mais de duas dcadas tambm me tornoumais forte, tanto fsica como emocionalmente.

    A questo que no sou muito dado a esportes de equipe. simplesmente assim que eu sou. Sempre que jogo futebol ou beisebol na verdade, desde que me tornei adulto isso cou cada vez mais raro, no me sinto vontade. Talvez seja porque no tenho irmos, masjamais fui capaz de participar do tipo de jogo que envolve outrosjogadores. Tambm no sou muito bom em esportes de um contra um,como tnis. Gosto de squash, mas em geral, quando se trata de umjogo contra alguma outra pessoa, o aspecto competitivo me deixadesconfortvel. E quanto s artes marciais, tambm, no contemcomigo.

    No me levem a mal no sou totalmente anticompetitivo. apenas que, por algum motivo, nunca me importei muito se derroto osoutros ou se perco deles. Esse sentimento permaneceu um tantoinalterado depois que cresci. No faz diferena o campo de atuao derrotar algum simplesmente no meu barato. Interesso-me muitomais por atingir os objetivos que xei para mim mesmo, de modo que,nesse sentido, corridas de longa distncia caem como uma luva parauma disposio de esprito como a minha.

    Corredores de maratona compreendero o que quero dizer. No nosimportamos de fato se derrotamos este ou aquele corredor particular.Corredores de primeiro nvel, claro, visam superar seus rivais maisprximos, mas para o corredor mediano, do dia a dia, a rivalidadeindividual no uma questo de suma importncia. Tenho certeza deque existem corredores comuns cujo desejo de derrotar um rivalparticular os incita a treinar com mais anco. Mas o que acontece seseu rival, seja por que motivo for, abandona a competio? Suamotivao pela corrida desaparece ou pelo menos diminui, e ca difcilpara eles continuar correndo por muito mais tempo.

    Os corredores mais comuns so motivados por um objetivoindividual, mais do que qualquer outra coisa: a saber, um tempo quedesejam bater. Assim que consegue bater esse tempo, um corredor vaisentir ter atingido o objetivo a que se props, e se no conseguir,

  • sentir que no o fez. Mesmo que no consiga fazer o tempo queesperava, contanto que tenha o sentimento de satisfao de ter feitoseu melhor e, possivelmente, ter feito alguma descobertasignicativa sobre si mesmo no processo , ento isso umarealizao em si, um sentimento positivo que ele pode levar consigopara a corrida seguinte.

    O mesmo pode ser dito a respeito de minha prosso. Na ocupaode romancista, at onde sei, no existe isso de vencer ou perder. Talvezo nmero de exemplares vendidos, prmios recebidos e elogios dacrtica sirvam como parmetros externos para a realizao literria,mas nenhum deles importa de fato. O crucial que o que voc escreveatinja os padres que estabeleceu para si mesmo. O fracasso em atingiressa marca no algo cuja explicao voc possa fornecer facilmente.Quando se trata das outras pessoas, sempre possvel aparecer comuma justicativa razovel, mas no d para tapear a si mesmo. Nessesentido, escrever romances e correr maratonas inteiras so atividadesmuito semelhantes. Basicamente, o escritor tem uma motivaosilenciosa, interior, e no busca validao em coisas que sejam visveisexternamente.

    Para mim, correr tanto um exerccio como uma metfora.Correndo dia aps dia, colecionando corridas, pouco a pouco elevo meupatamar, e cumprindo cada nvel aprimoro a mim mesmo. Pelo menos nisso que deposito meu empenho dia aps dia: elevar meu prprionvel. No sou um grande corredor, de modo algum. Estou mais paraum nvel comum ou, antes, mediano. Mas isso no vem ao caso. Aquesto se melhorei ou no em relao ao dia anterior. Em corridasde longa distncia, o nico oponente que voc tem de derrotar vocmesmo, o modo como voc costumava ser.

    Desde que z quarenta anos, porm, esse sistema de autoavaliaomudou gradualmente. Pondo em termos simples, no sou mais capazde melhorar meu tempo. Creio ser inevitvel, considerando minhaidade. A certa altura, todo mundo atinge seu pico fsico. Existemdiferenas individuais, mas quase sempre o divisor de guas o incioda segunda dcada de vida no caso dos nadadores, o m da segundadcada para os boxeadores, e a metade da terceira dcada para osjogadores de beisebol. algo pelo qual todos temos de passar. Umavez perguntei a um oftalmologista se algum j escapara da presbiopiaao car mais velho. Ele riu e disse: Ainda no conheci ningum. amesma coisa. (Felizmente, o pico para artistas variaconsideravelmente. Dostoievski, por exemplo, escreveu dois de seusromances mais importantes, Os demnios e Os irmos Karamazov, nosltimos anos de sua vida, antes de morrer com a idade de sessenta

  • anos. Domenico Scarlatti escreveu 555 sonatas de piano durante suavida, a maioria delas quando tinha entre cinquenta e sete e sessenta edois anos.)

    Meu pico como corredor veio no m de minha quarta dcada devida. Antes disso, meu objetivo era perfazer uma maratona completaem trs horas e meia, um ritmo de exatamente um quilmetro a cadacinco minutos, ou uma milha em oito. s vezes, eu baixava esse tempode trs horas e meia, s vezes no (com mais frequncia, no). De ummodo ou de outro, era capaz de correr uniformemente uma maratonamais ou menos nessa quantidade de tempo. Mesmo quando eu achavaque arruinara tudo completamente, ainda assim chegava em trs horase quarenta. Mesmo se no houvesse treinado muito ou no estivesse namelhor forma, passar de quatro horas era inconcebvel. As coisascontinuaram nesse patamar estvel por algum tempo, mas nodemorou para comearem a mudar. Eu treinava tanto quanto antes,mas achava cada vez mais difcil baixar o tempo de trs horas equarenta minutos. Estava levando cinco minutos e meio para corrercada quilmetro, e pouco a pouco eu me aproximava da marca dequatro horas para terminar a maratona. Francamente, foi uma espciede choque. O que estava acontecendo? No pensei que fosse por estarcando velho. No dia a dia, nunca senti que estivesse candosicamente mais fraco. Mas independentemente de quanto eu negasseou tentasse ignorar o fato, os nmeros pioravam, passo a passo.

    Alm do mais, como eu disse antes, eu me tornara mais interessadoem outros esportes, como triatlo e squash. S correr o tempo todo nopodia fazer bem para mim, imaginei, decidindo que seria melhoracrescentar variedade minha rotina e desenvolver um regime fsicomais abrangente. Contratei uma treinadora de natao particular quecomeou comigo pelo bsico, e aprendi a nadar mais rpido efacilmente do que antes. Meus msculos reagiram ao novo ambiente, emeu fsico comeou a mudar visivelmente. Enquanto isso, como umamar vazante, meus tempos de maratona continuaram, de forma lentamas inquestionvel, a piorar. E descobri que j no gostava de corrertanto quanto antes. Uma fadiga permanente se abriu entre mim e amera ideia de correr. Uma decepo com o pensamento de que todo omeu trabalho duro no valera a pena, de que havia alguma coisaobstruindo meu caminho, como uma porta que antes permanecerausualmente aberta e agora de repente era batida em minha cara.Chamei essa condio de runners blues, melancolia de corredor.Entrarei em detalhes mais tarde sobre que tipo de melancolia era essa.

    Faz dez anos desde a ltima vez em que morei em Cambridge (o que

  • aconteceu de 1993 a 1995, no tempo em que Bill Clinton ainda erapresidente). Quando avistei o rio Charles outra vez, um desejo de correrse apossou de mim. Em geral, a menos que uma grande mudanatenha ocorrido, rios sempre parecem iguais, e o rio Charles emparticular parecia absolutamente idntico. O tempo passara, alunoshaviam chegado e partido, eu envelhecera dez anos e literalmentemuita gua passara por baixo da ponte. Mas o rio continuava o mesmo.Suas guas ainda uam de modo rpido e tranquilo na direo doporto de Boston. A gua encharca a linha costeira, fazendo o capim devero crescer espesso, o que ajuda a alimentar as aves aquticas, e orio corre languidamente, sem parar, sob as pontes antigas, reetindonuvens no vero e balanando com banquisas no inverno e ruma emsilncio para o oceano.

    Depois que acabei de desfazer as malas, que me adequei aosrgidos padres envolvidos numa mudana para c e me acomodei vida em Cambridge, acabei retomando o hbito de correr seriamentemais uma vez. Respirando o revigorante, estimulante, ar fresco damanh, senti novamente a alegria de correr em solo familiar. O som demeus passos, minha respirao e batidas, tudo se misturava em umnico ritmo polifnico. O rio Charles um ponto sagrado para asregatas, e sempre h algum remando nele. Gosto de disputar com osremadores. Na maior parte das vezes, claro, os barcos so maisrpidos. Mas quando um skiff simples que est na gua, consigocompetir com seu remador em p de igualdade.

    Talvez por abrigar a Maratona de Boston, Cambridge cheia decorredores. A pista de jogging ao longo do Charles se estendeinnitamente, e, se voc quiser, pode correr por horas. O problema que os ciclistas tambm a utilizam, de modo que preciso car atentos bicicletas que se aproximam zunindo por trs. Em vrios lugares,tambm, h buracos na pavimentao, e preciso tomar cuidado parano tropear, e existem placas de sinalizao com que voc podetrombar, fazendo com que veja algumas estrelas em sua corrida. Nomais, uma pista excelente.

    s vezes, quando corro, escuto jazz, mas em geral rock, j que abatida do rock o melhor acompanhamento possvel para o ritmo dacorrida. Minhas preferncias vo de Red Hot Chili Peppers, Gorillaz eBeck a bandas mais antigas como Creedence Clearwater Revival e osBeach Boys. Msicas com o ritmo mais simples possvel. Um monte decorredores hoje em dia usa iPods, mas eu prero meu MD player, com oqual j estou acostumado. um pouco maior que um iPod e no cheganem perto de armazenar a mesma quantidade de coisas, mas paramim serve bem. A essa altura da vida, no quero misturar msica e

  • computadores. Assim como no bom misturar amigos e trabalho, esexo.

    Como mencionei, em julho corri trezentos quilmetros. Choveu doisdias nesse ms, e passei dois dias viajando. E houve alguns dias emque o tempo estava mido e quente demais para correr. De modo que,pesados os prs e contras, correr trezentos quilmetros no foi tomau. Nada mau. Se correr duzentos e sessenta quilmetros em umms pode ser considerado correr seriamente, ento trezentosquilmetros deve ser considerado correr rigorosamente. Quanto maiseu corro, mais perco peso, tambm. Em dois meses e meio, perdi cercade trs quilos, e a gordura incipiente que comecei a ver em torno dabarriga desapareceu. Imagine-se fazendo uma visita ao aougue,comprando trs quilos de carne e carregando para casa. Voc pegou aideia. Eu tinha emoes conitantes quanto a carregar esse peso extracomigo todos os dias. Se voc mora em Boston, cerveja Samuel Adams(Summer Ale) e Dunkin Donuts so parte essencial da vida. Masdescobri para meu deleite que at mesmo essas indulgncias podiamser compensadas com o exerccio constante.

    Talvez parea um pouco tolo algum com a minha idade dizer issoabertamente, mas apenas quero ter certeza de que os fatos a seguirvo car bem claros: sou o tipo de sujeito que gosta de estar sozinhoconsigo mesmo. Para dizer de um modo mais agradvel, sou o tipo depessoa que no acha um sofrimento car s. No acho que passar umaou duas horas correndo sozinho todos os dias, sem falar com ningum,alm de passar quatro ou cinco horas sozinho em minha mesa, sejadifcil nem chato. Tenho essa tendncia desde que era mais novo,quando, caso tivesse escolha, preferia car sozinho lendo um livro ouconcentrado ouvindo msica a estar na companhia de algum. Semprefui capaz de pensar em coisas para fazer quando estou sozinho.

    Mesmo assim, depois de ter me casado muito jovem (eu estava comvinte e dois), gradualmente me acostumei a viver com outra pessoa.Depois que sa da faculdade fui dono de um bar, ento aprendi aimportncia de estar com outros e a questo bvia de que nopodemos sobreviver sem a companhia alheia. Pouco a pouco, ento,embora talvez interpretando a coisa a meu prprio modo particular, pormeio da experincia pessoal descobri como ser socivel. Olhando emretrospecto para essa poca, hoje, consigo ver que dos vinte aos trintaminha viso de mundo mudou, e amadureci. Ao meter o nariz em todosos tipos de lugar, conquistei as habilidades prticas de que precisavapara viver. Sem esses dez duros anos no acho que eu teria escritoromances e, mesmo que tentasse, no teria sido capaz de faz-lo. No

  • que a personalidade das pessoas mude assim to dramaticamente. Odesejo que h em mim de permanecer sozinho no mudou. Eis por quea hora e pouco que passo correndo, preservando um tempo s meu, emsilncio, importante para me ajudar a manter o bem-estar mental.Quando estou correndo, no preciso conversar com ningum e notenho de escutar ningum falando. Tudo que tenho a fazer olhar apaisagem que passa por mim. Essa uma parte de meu dia sem a qualno consigo viver.

    Muitas vezes me perguntam no que penso quando corro. Em geral,as pessoas que perguntam isso nunca correram longas distncias.Sempre reito sobre a pergunta. O que exatamente penso quandoestou correndo? No fao a menor ideia.

    Em dias frios, acho que penso um pouco sobre quanto est frio. Enos dias quentes, em como faz calor. Quando estou triste penso umpouco sobre a tristeza. Quando estou feliz, penso um pouco sobre afelicidade. Como j mencionei, lembranas aleatrias me vm cabea, tambm. E ocasionalmente, muito difcil, srio, tenho umaideia para usar em um romance. Mas na verdade quando corro nopenso em quase nada que seja digno de mencionar.

    Apenas corro. Corro num vcuo. Ou talvez eu deva me colocar deoutra forma: corro a m de conquistar um vcuo. Mas, como seria de seesperar, um pensamento ocasional vai invadir esse vcuo. A cabea deuma pessoa no consegue se manter um vazio completo. As emoeshumanas no so fortes ou consistentes o bastante para sustentar umvcuo. O que quero dizer que o tipo de pensamentos e ideias queinvadem minhas emoes quando corro permanece subordinado a essevcuo. Na falta de contedo, eles no passam de pensamentosaleatrios que giram em torno desse vcuo central.

    Os pensamentos que me ocorrem quando estou correndo so comonuvens no cu. Nuvens de todos os tamanhos diferentes. Elas vm evo, enquanto o cu continua o mesmo cu de sempre. As nuvens someras convidadas que passam e vo embora, deixando o cu para trs.O cu existe ao mesmo tempo em que no existe. Possui substncia eao mesmo tempo no. E ns meramente acolhemos essa vastaexpanso e nos deixamos embriagar.

    Estou no m da casa dos cinquenta, agora. Quando era novo, nuncaimaginei que o sculo XXI chegaria de fato e que, piadas parte, eufaria cinquenta anos. Na teoria, claro, uma verdade bvia quealgum dia, se nada acontecesse, o sculo XXI chegaria e eu faria cincodcadas de vida. Quando eu era jovem, pedir que me imaginasse comcinquenta anos era to difcil quanto me pedir para imaginar,concretamente, como era o mundo aps a morte. Mick Jagger uma vez

  • alardeou que Prero morrer a continuar cantando Satisfaction quandoestiver com quarenta e cinco anos. Mas agora ele tem mais desessenta e continua cantando Satisfaction. Algumas pessoas achamisso engraado, talvez, mas no eu. Quando era novo, Mick Jagger noconseguia se imaginar com quarenta e cinco anos. Quando eu eranovo, era igual. Como posso rir de Mick Jagger? De jeito nenhum.Aconteceu apenas de eu no ter sido um cantor de rock, na juventude.Ningum se lembra das coisas estpidas que eu provavelmente dissena poca, de modo que nunca vo poder cit-las, jogando de volta naminha cara. a nica diferena.

    E agora eis-me aqui vivendo nesse mundo inimaginvel. Parecemesmo muito estranho, e no sei dizer se sou afortunado ou no.Talvez no faa diferena. Para mim e para todo mundo,provavelmente essa minha primeira experincia comenvelhecimento, e as emoes que estou sentindo, tambm, sosensaes em primeira mo. Se fosse alguma coisa que eu houvesseexperimentado antes, ento talvez fosse capaz de compreender maisclaramente, mas essa a primeira vez, ento no posso. Por ora tudoque est a meu alcance postergar quaisquer juzos minuciosos eaceitar as coisas como elas so. Assim como aceito o cu, as nuvens e orio. E h tambm qualquer coisa de cmico em relao a isso, algo quea pessoa no quer descartar completamente.

    Como j mencionei antes, competir contra outras pessoas, seja na vidadiria, seja em meu campo de trabalho, simplesmente no o estilo devida que busco. Perdoem-me por armar o bvio, mas o mundo feitode todos os tipos de pessoa. Outros tm seus prprios valores pelosquais se pautar, e o mesmo verdadeiro para mim. Essas diferenasdo origem a discrdias, e a combinao dessas discrdias pode darorigem a desentendimentos ainda maiores. Como resultado, s vezesas pessoas so criticadas injustamente. Isso algo que no precisanem ser dito. No nada agradvel ser malcompreendido ou criticado;na verdade, uma experincia dolorosa que magoa profundamente.

    medida que envelheo, contudo, pouco a pouco vou percebendoque esse tipo de sofrimento e mgoa uma parte necessria da vida.Se voc pensa a respeito, precisamente por serem diferentes umasdas outras que as pessoas so capazes de criar seus prprios eusindependentes. Tomem a mim como exemplo. precisamente minhacapacidade de detectar determinados aspectos de uma cena queoutras pessoas no conseguem, de sentir de forma diferente dos outrose de escolher palavras que so diferentes das deles que me permiteescrever histrias que sejam minhas e de mais ningum. E por causa

  • disso temos a extraordinria situao em que no poucas pessoas leemo que escrevi. Ento o fato de que eu sou eu e nenhum outro um dosmeus maiores recursos. A mgoa emocional o preo que a pessoadeve pagar a fim de ser independente.

    nisso que basicamente acredito, e vivi minha vida segundo esseprincpio. Em determinadas reas, busquei ativamente a solido.Sobretudo para algum em minha linha de trabalho, a solido , maisou menos, uma circunstncia inevitvel. s vezes, porm, esse sensode isolamento, como cido espirrando de uma garrafa, podeinconscientemente corroer o corao da pessoa e dissolv-lo. Podemosver isso, ainda, como uma faca de dois gumes. Isso me protege, mas aomesmo tempo me dilacera por dentro. Acho que a meu prprio modotenho conscincia desse perigo provavelmente, por intermdio daexperincia , e por isso que to constantemente mantenho meucorpo em movimento, em alguns casos forando-me at o limite, a mde curar a solido interior que sinto e coloc-la em perspectiva. No tanto um ato intencional, mas, antes, uma reao instintiva.

    Deixe-me ser mais especfico.Quando sou injustamente criticado (de meu ponto de vista, pelo

    menos), ou quando algum que tenho certeza de que capaz de mecompreender no o faz, corro mais do que o usual. Ao correr mais, como se eu pudesse exaurir sicamente essa parcela de meudescontentamento. Isso tambm me faz perceber mais uma vez quantosou fraco, quo limitadas so minhas capacidades. Eu tomoconscincia, sicamente, desses aspectos de inferioridade. E um dosresultados de correr um pouco mais alm do que normalmente corro me tornar um pouco mais forte. Se estou com raiva, dirijo essa raivapara mim mesmo. Se passo por uma experincia frustrante, eu a usopara me aperfeioar. Esse o modo como sempre vivi. Absorvosilenciosamente as coisas que sou capaz, liberando-as mais tarde, e omais transformadas possvel, como parte do o narrativo em umromance.

    Acho que a maioria das pessoas no aprovaria minhapersonalidade. Talvez existam alguns poucos muito poucos, imagino que se impressionem com ela, mas s muito raramente algum aaprecia. Quem poderia mostrar sentimentos amistosos, ou qualquercoisa nesse nvel, em relao a uma pessoa que no se compromete;que, em vez disso, sempre que um problema surge, se tranca sozinhanum armrio? Mas ser possvel a um escritor prossional conquistar oapreo das pessoas? No fao ideia. Talvez em algum lugar do mundoseja. difcil generalizar. Eu, pelo menos, que escrevi romancesdurante vrios anos, consigo apenas imaginar algum que goste de

  • mim em um nvel pessoal. Ser objeto da desafeio de algum, serodiado e desprezado, no sei por que me parece mais natural. No queeu que aliviado quando isso acontece. Assim como tambm no mesinto feliz por no gostarem de mim.

    Mas essa outra histria. Vamos voltar s corridas. Retomei outravez meu velho estilo de vida de corredor. Comecei a correr seriamentee agora estou correndo rigorosamente. O que isso pode signicar paramim, agora que estou em vias de me tornar um sexagenrio, ainda nosei dizer. Mas acho que alguma coisa vai signicar. Talvez nadaprofundo, mas deve haver alguma signicao. Seja como for, agoraestou correndo para valer. Vou deixar para pensar depois no que podesignicar tudo isso. (Postergar o ato de pensar a respeito de algumacoisa uma de minhas especialidades, uma habilidade que aprendi acultivar com o passar dos anos.) Dou uma limpada nos tnis de corrida,passo um pouco de protetor solar no rosto e no pescoo, acerto orelgio e ponho o p na estrada. Com os ventos alsios soprando emminha cara, uma gara branca voando acima de mim, suas patasdevidamente alinhadas conforme cruza o cu, escuto uma de minhasantigas bandas prediletas, Lovin Spoonful.

    Quando corria, um pensamento me veio cabea: mesmo que meutempo na corrida no melhore, no h muito que eu possa fazer arespeito. Fiquei mais velho, e o tempo cobra seu tributo. No culpa deningum. Essas so as regras do jogo. Assim como um rio corre para omar, car velho e diminuir o ritmo fazem parte do cenrio natural, etenho de aceitar o fato. Talvez no seja um processo dos maisdivertidos, e o que descubro como resultado talvez no seja l muitoagradvel. Mas que escolha tenho, anal? A meu prprio modo,apreciei minha vida at aqui, mesmo que no possa dizer que aapreciei plenamente.

    No estou tentando me vangloriar nem nada disso quem cargas-dgua iria se vangloriar de uma coisa dessas? , mas no sou umapessoa das mais brilhantes. Sou o tipo de sujeito que precisa vivenciaralgo sicamente, tocar de fato em algo, para adquirir uma percepoclara da coisa. Seja l o que for, a menos que eu veja com meusprprios olhos, no vou car convencido. Sou uma pessoa do tipo fsico,no intelectual. Claro que sou dotado de inteligncia, em certa medida ao menos acho que sou. Se no tivesse nenhuma, no poderiaescrever romances. Mas no sou desses que funcionam puramente nabase da teoria ou da lgica, tampouco algum cuja fonte de energiaderiva da especulao intelectual. Somente quando receboefetivamente um fardo fsico e meus msculos comeam a gemer (e svezes gritar) que a agulha do meu compreensimetro d um pulo e

  • sou enm capaz de captar alguma coisa. Desnecessrio dizer, leva umbocado de tempo, mais esforo, atravessar cada estgio, passo a passo,e chegar a uma concluso. s vezes, leva mais tempo do que deveria, ena altura em que me conveno, j tarde demais. Mas o que se podefazer? o tipo de pessoa que sou.

    Quando corro digo a mim mesmo para pensar em um rio. E nuvens.Mas em essncia no estou pensando em uma coisa. Tudo que fao continuar correndo em meu prprio vcuo aconchegante, caseiro, meusilncio nostlgico. E isso uma coisa maravilhosa. Digam as pessoas oque disserem.

  • Dois

    14 DE AGOSTO DE 2005 KAUAI, HAVADicas para se tornar um romancista corredor

    dia 14 de agosto, um domingo. Hoje de manh corri uma hora equinze minutos, escutando Carla Thomas e Otis Redding em meu MDplayer. tarde nadei 1.300 metros na piscina e ao anoitecer nadei napraia. E depois disso vim jantar cerveja e peixe no restauranteHanalea Dolphin, nos arredores da vila de Hanalea. O prato que estoucomendo se chama walu, um tipo de peixe branco. Foi preparado paramim no carvo, e eu o tempero com molho de soja. Oacompanhamento espetinho de legumes, alm de uma grandesalada.

    At o momento, em agosto, completei cento e cinquentaquilmetros.

    J faz muito tempo que comecei a correr diariamente. Para ser maisespecfico, foi no outono de 1982. Eu estava com trinta e trs anos.

    No muito antes disso, eu cuidava de uma espcie de clube de jazzperto da estao Sendagaya. Pouco depois da faculdade na verdade,eu andava to ocupado com empregos secundrios que ainda mefaltavam alguns crditos para me formar e, ocialmente, continuavasendo um estudante , abri um pequeno clube na entrada sul daestao Kokubunji e o mantive por cerca de trs anos; quandocomearam a reconstruir o prdio em que eu estava, mudei para umanova localizao, mais prxima ao centro de Tquio. Esse novo lugarno era muito grande, nem muito pequeno, tampouco. Tnhamos umpiano de cauda e espao suciente apenas para espremer um quinteto.Durante o dia servamos caf, e noite funcionava um bar. Servamosuma comida bem decente, tambm, e nos ns de semana haviaapresentaes ao vivo. Esse tipo de clube de jazz com msica ao vivoainda era uma coisa bastante rara na poca, de modo queconquistamos uma clientela xa e o lugar andava bem,financeiramente.

    A maioria das pessoas que eu conhecia havia previsto que o bar noiria para a frente. Imaginavam que um estabelecimento tocado comouma espcie de hobby no funcionaria, que algum como eu, bastanteingnuo e muito provavelmente sem a menor aptido para gerenciar

  • um negcio, no seria capaz de fazer com que desse lucro. Bem, suasprevises falharam completamente. Para dizer a verdade, eu tambmno me achava com grande aptido para o negcio. Apenas percebi,porm, que como o fracasso estava fora de cogitao, tinha de dar tudode mim. Minha nica fora sempre foi o fato de que trabalho duro e soucapaz de aguentar um bocado, sicamente. Estou mais para um cavalode carga que um cavalo de corrida. Cresci numa casa de funcionriospblicos, ento no sabia grande coisa sobre a vida de empreendedor,mas felizmente a famlia de minha esposa era dona de um negcio, demodo que sua intuio natural foi de grande valia. Por maior que fossea carga que este cavalo pudesse puxar, eu jamais teria conseguidochegar l sem alguma ajuda.

    O batente em si era pesado. Eu trabalhava de manh at tarde danoite, quando cava exausto. Passei por todo tipo de experinciadolorosa, coisas sobre as quais precisei quebrar a cabea, e um montede decepes. Mas trabalhei feito louco e nalmente comecei a tirar osuciente para contratar outras pessoas a m de me ajudar. E medida que me aproximava dos trinta anos, nalmente fui capaz defazer uma pausa para respirar. Para abrir o bar eu tomara emprestadotodo o dinheiro que pude em todos os lugares dispostos a meemprestar dinheiro, e j havia devolvido praticamente tudo. As coisascomeavam a assentar. At ento, tudo se resumira merasobrevivncia, a manter a cabea acima da linha dgua, e no mesobrava espao para pensar em mais nada. Eu sentia ter atingido o altode uma escada ngreme e dado em um espao razoavelmente aberto, etinha conana de que, como chegara at l so e salvo, seria capaz delidar com quaisquer futuros problemas que pudessem surgir, esobreviver. Tomei flego, olhei vagarosamente em torno, relanceei osdegraus que havia superado at ento e comecei a contemplar oestgio seguinte. Os trinta anos estavam logo ali. Eu ia chegar a umaidade em que no podia mais ser considerado jovem. E, meio que donada, tive a ideia de escrever um romance.

    Posso apontar o exato momento em que me ocorreu pela primeiravez que eu seria capaz de escrever um romance. Isso foi por volta deuma e meia da tarde de 1 de abril de 1978. Eu estava no estdio deJingu nesse dia, sozinho no campo, tomando cerveja e assistindo aojogo. O estdio de Jingu cava a uma caminhada de distncia do meuapartamento na poca, e eu era um torcedor razoavelmente el dosYakult Swallows. Fazia um dia perfeito de primavera, sem uma nuvemno cu, com uma brisa clida soprando. Na poca, no haviaarquibancadas para sentar, somente um barranco verdejante. Euestava sentado na grama, bebericando uma cerveja gelada,

  • ocasionalmente olhando para o cu e apreciando preguiosamente ojogo. Como sempre acontecia com os Swallows, o estdio no estavamuito cheio. Era a temporada de abertura e o time recebia o HiroshimaCarp. Lembro que Yasuda arremessava para os Swallows. Era umarremessador atarracado, forte, dono de uma bola curva maligna. Eleeliminou facilmente os rebatedores adversrios no incio do primeiroinning e, no m do inning, o primeiro rebatedor dos Swallows era DaveHilton, um jovem jogador americano recm-chegado ao time. Hiltonrebateu a bola pela linha esquerda do diamante. O craque do bastoacertando a bola na veia ecoou por todo o estdio. Hilton facilmentechegou primeira base e depois segunda. E foi nesse exato momentoque um pensamento me ocorreu: Sabe de uma coisa? Eu podia tentarescrever um romance. Consigo me lembrar at hoje do cu aberto, dasensao da grama fresca, do som prazeroso do basto indo deencontro bola. Alguma coisa caiu do cu naquele instante e, seja l oque tenha sido, eu a peguei.

    Nunca tive a pretenso de me tornar um romancista. Apenas sentiesse desejo premente de escrever um romance. Nenhuma imagemconcreta a respeito do que eu queria escrever, simplesmente aconvico de que se eu escrevesse naquele momento eu poderiaproduzir alguma coisa que achasse convincente. Quando pensei emsentar em minha escrivaninha em casa e comear a escrever, me deiconta de que nem sequer possua uma caneta-tinteiro decente. Entofui loja Kinokuniya em Shinjuku e comprei um mao de papel e umacaneta-tinteiro Sailor de cinco dlares. Um pequeno investimentofinanceiro de minha parte.

    Essa era a primavera de 1978, e no outono eu terminara meumanuscrito de duzentas pginas em um papel japons prprio. Assimque terminei, me senti timo. No tinha ideia do que fazer com oromance no momento em que o nalizei, mas meio que me deixei levarpelo impulso inicial e encaminhei o livro para um concurso deescritores inditos de uma revista literria. Enviei o manuscrito semtirar uma cpia, de modo que aparentemente no dei grandeimportncia caso ele no fosse selecionado e sumisse para sempre.Esse foi o livro publicado sob o ttulo de Oua o vento cantar. Eu estavamais interessado em chegar ao m do trabalho do que em saber se iriaou no um dia ser publicado.

    Nesse outono o eterno perdedor Yakult Swallows venceu a liga edepois derrotou o Hankyu Braves no campeonato nacional japons.Fiquei realmente empolgado e fui a vrios jogos no estdio Korakuen.(Ningum nunca imaginou que o Yakult ganharia, ento j haviamreservado o estdio local, o Jingu, para jogos de beisebol universitrios.)

  • De modo que me lembro dessa poca com muita clareza. Foi umoutono particularmente deslumbrante, com um sol maravilhoso. O cuestava perfeitamente claro e, aos meus olhos, as rvores ginkgo dianteda Galeria Memorial Meiji nunca haviam se mostrado mais douradas.Esse foi meu ltimo outono antes de chegar aos trinta.

    Na primavera seguinte, quando recebi um telefonema de um editorna Gunzo contando-me que meu romance entrara para a short list, euhavia esquecido completamente minha participao no concurso.Andara muito ocupado com outras coisas. No incio, no fazia ideia doque ele estava falando. Mas o romance ganhou o prmio e foi publicadono vero. O livro foi razoavelmente bem-recebido. Eu estava com trintaanos e, sem entender de fato o que se passava, de repente me virotulado como um novo e promissor escritor. Fiquei um bocadosurpreso, mas as pessoas que me conheciam estavam ainda maissurpresas.

    Depois disso, enquanto continuava a tocar meu negcio, escrevi umsegundo romance de tamanho mediano, Pinball, 1973, e, enquantotrabalhava nele, terminei alguns contos e traduzi alguma co de F.Scott Fitzgerald. Tanto Oua o vento cantar como Pinball, 1973 foramindicados para o prestigioso Prmio Akutagawa, ao qual, segundodiziam, eram fortes concorrentes, mas no fim nenhum dos dois ganhou.Mas, para dizer a verdade, no me importei nem um pouco. Se eutivesse ganhado teria me atolado em entrevistas e sesses deautgrafos e tive medo de que isso pudesse interferir no trabalho noclube.

    Todos os dias por trs anos cuidei de meu clube de jazz fazendocontas, checando listas de provises, escalonando pessoal, atendendoeu mesmo atrs do balco, na preparao de coquetis e cozinhando,fechando as portas a altas horas da madrugada e s depoisescrevendo em casa, na mesa da cozinha, at pegar no sono. Eu sentiacomo se estivesse vivendo a vida por duas pessoas. Fisicamente, tododia era duro, e escrever romances e tocar um negcio ao mesmo tempome trouxeram todo tipo de problemas. O comrcio de servios signicaque voc tem de aceitar qualquer um que passar pela porta. Voc obrigado a cumprimentar todo mundo com um sorriso estampado norosto, a menos que seja algum realmente pavoroso. Graas a isso,porm, conheci todo tipo de gente e travei algumas amizades compessoas pouco convencionais. Antes de comear a escreverdevidamente, entusiasticamente, at, absorvi uma variedade deexperincias. Na maior parte, creio que as apreciei, bem como todo oestmulo que me trouxeram.

    Pouco a pouco, porm, me vi desejando escrever um tipo mais

  • substancial de romance. Com os dois primeiros, basicamente desfruteido processo de escrever, mas havia partes que no me agradavam.Tanto em um como em outro s fui capaz de escrever em jorros,roubando uns bocados de tempo aqui e ali meia hora aqui, uma horaali , e, como estava sempre cansado e me sentia correndo contra orelgio enquanto escrevia, em nenhum momento pude me concentrar.Com esse tipo de abordagem intermitente fui capaz de escreveralgumas coisas frescas e interessantes, mas o resultado estava longede ser um romance complexo ou profundo. Eu sentia ter recebido umaoportunidade maravilhosa de me tornar um romancista coisa queno acontece todos os dias , e surgiu um desejo natural de levar issoo mais longe que pudesse e produzir o tipo de romance com o qual mesentiria realizado. Eu sabia que era capaz de escrever algo numa escalamaior. E, depois de dedicar ao assunto muita reexo, decidi fechar onegcio por algum tempo e me concentrar somente em escrever. Nesseponto, minha renda com o clube de jazz era maior do que minha rendacomo romancista, uma realidade qual eu tinha de me resignar.

    A maioria das pessoas que eu conhecia foi completamente contraminha deciso, ou ento lanou dvidas a respeito. Seu negcio estindo bem agora, diziam. Por que no deixa simplesmente quealgum cuide dele por algum tempo enquanto voc vai e escreve seusromances? Do ponto de vista do mundo isso faz perfeito sentido. E amaioria das pessoas provavelmente achava que eu no conseguiria mermar como escritor prossional. Mas eu no era capaz de seguir seusconselhos. Sou o tipo de pessoa que precisa se comprometertotalmente com seja l o que zer. Eu simplesmente no podia meocupar de uma atividade criativa como escrever um romance enquantoalgum outro cuidava do clube de jazz. Eu tinha de dar o mximo demim. Se fracassasse, conseguiria aceitar. Mas eu sabia que se fizesse ascoisas com empenho apenas parcial e elas no se concretizassem,sentiria remorso para sempre.

    Apesar das objees de todo mundo, vendi meu negcio e, emboraum pouco constrangido com isso, pendurei a plaquinha de romancistana porta e me dispus a viver da escrita. S quero ter uns dois anoslivres para escrever, expliquei para minha esposa. Se no funcionar,sempre podemos abrir um pequeno bar em algum outro lugar. Aindasou novo e sempre podemos recomear as coisas. Tudo bem, eladisse. Isso foi em 1981 e ns ainda devamos uma soma considervel,mas projetei dar meu melhor e ver o que acontecia.

    Parei para escrever meu romance e no outono viajei a Hokkaido poruma semana para fazer pesquisa. Em abril seguinte completei Caandocarneiros. Imaginei que seria fazer ou morrer, ento dei tudo de mim.

  • Esse romance era muito mais longo que os dois precedentes, de escopomaior, e muito mais centrado em uma histria.

    Quando encerrei o livro, quei com a forte sensao de ter criadomeu prprio estilo de escrita. Todo o meu corpo vibrava com opensamento de quo maravilhoso e difcil ser capaz de sentar minha escrivaninha, sem me preocupar com o tempo, e me concentrarem escrever. Existiam veios ainda adormecidos dentro de mim, senti, eagora eu podia de fato me imaginar ganhando a vida como romancista.De modo que, no m das contas, a ideia estratgica de abrir um novobar nunca se concretizou. s vezes, porm, mesmo hoje, penso comoseria agradvel ter um barzinho para cuidar em algum lugar.

    Os editores da Gunzo, que estavam procura de alguma coisa maiscomercial, no gostaram nem um pouco de Caando carneiros, e melembro da falta de entusiasmo com que o livro foi recebido. Me pareceque, na poca (que dizer ento de agora, eu me pergunto), meuconceito de romance era um tanto inortodoxo. Os leitores, porm,pareceram adorar o novo livro, e esse fato me deixou mais feliz do quetudo. Ali foi meu genuno ponto de partida como romancista. Acho quese tivesse continuado a escrever o tipo de romances instintivos queterminara quando gerenciava meu bar tanto Oua o vento cantarcomo Pinball, 1973 , em pouco tempo terminaria em um beco semsada.

    Mas surgiu um problema com minha deciso de me tornar umescritor prossional: a questo de como me manter sicamente emforma. Tenho tendncia a ganhar peso se no fao nada. Cuidar do barexigia trabalhar duro todos os dias e, desse modo, pude me mantersem engordar; mas, assim que me sentei diante da mesa escrevendotodos os dias, meu nvel de energia gradualmente declinou e comecei aganhar uns quilinhos. Eu fumava demais, tambm, concentrando-meno trabalho. Na poca, fumava sessenta cigarros por dia. Meus dedosestavam todos amarelos e meu corpo inteiro fedia a fumaa. Isso nopode estar me fazendo nada bem, decidi. Se eu queria ter uma vidalonga como romancista, precisava encontrar um modo de manter umpeso saudvel.

    Correr tem muitas vantagens. Em primeiro lugar, voc no precisade ningum mais para fazer isso, e no precisa de nenhumequipamento especial. No precisa ir a nenhum lugar especial parafaz-lo. Contanto que disponha de um par de tnis de corrida e umaboa pista ou rua, pode continuar correndo enquanto sentir vontade.Jogar tnis completamente diferente. Voc precisa se deslocar atuma quadra, e precisa de algum para jogar com voc. Nadar algoque d para fazer sozinho, mas mesmo assim necessrio ir at uma

  • piscina.Depois que fechei meu bar, achei que mudaria meu estilo de vida

    completamente, ento nos mudamos para Narashino, na Prefeitura deChiba. Nessa poca, o lugar era bastante rural, e no havia instalaesesportivas decentes nas proximidades. Mas havia estradas. Havia umabase das Foras de Autodefesa Japonesas ali perto, de modo que asestradas eram mantidas em boas condies para seus veculos. Efelizmente havia tambm um campo de treinamento nos arredores daUniversidade Nihon, e, se eu fosse cedo pela manh, poderia usarlivremente ou talvez eu deva dizer tomar emprestado sem permisso a pista de l. Desse modo, no precisei pensar muito a respeito deque esporte escolher no que eu tivesse grande escolha quandodecidi comear a correr.

    No demorou muito para que eu tambm parasse de fumar. Largaro cigarro foi uma espcie de resultado natural de correr todo dia. Nofoi fcil largar, mas no dava para continuar fumando e correndo aomesmo tempo. O desejo natural de correr cada vez mais se tornou umapoderosa motivao para me impedir de voltar a fumar, e uma grandeajuda em superar os sintomas da abstinncia. Deixar o cigarro foi umtipo de gesto simblico de despedida da vida que eu costumava levar.

    Nunca achei ruim a corrida de longa distncia. Quando estava naescola, no dava muita bola para as aulas de educao fsica, e sempreodiei o Dia do Esporte. Isso acontecia porque as coisas me eramimpostas. Nunca suportei que me forassem a fazer alguma coisa queeu no queria fazer, em um momento em que no queria fazer. Sempreque eu era capaz de fazer algo de que gostava, porm, quando euqueria faz-lo, e do modo como queria, eu dava tudo de mim. Comono era dos mais atlticos ou coordenados, nunca me destaquei nostipos de esporte em que as coisas so decididas numa frao desegundo. Corrida e nado de longa distncia combinam mais com minhapersonalidade. Sempre fui meio que consciente disso, o que talvezexplique como consegui incorporar a corrida em minha vida diria semmaiores traumas.

    Se me for permitido fazer um breve desvio do assunto, acho queposso dizer o mesmo a respeito de mim e dos estudos. Desde a pr-escola at a faculdade, nunca me interessei por coisas que era foradoa estudar. Eu dizia a mim mesmo que era algo que devia ser feito, demodo que no me mostrava um relaxado completo e conseguia iradiante na faculdade, mas em nenhum momento achava que estudarera empolgante. Como resultado, embora minhas notas no fossem dotipo que a gente precise esconder das pessoas, no me lembro de emmomento algum ter recebido elogios por uma nota boa ou por ser o

  • melhor em qualquer coisa. Somente comecei a apreciar o estudodepois que passei pelo sistema educacional e me tornei um assimchamado membro da sociedade. Se alguma coisa me interessava, e eupodia estud-la com meu prprio ritmo e abord-la do modo quemelhor me aprouvesse, eu era bastante eciente em adquirirconhecimento e habilidades. A arte da traduo um bom exemplo.Aprendi por conta prpria, pelo mtodo prtico. Leva um bocado detempo para adquirir uma habilidade dessa forma, e voc precisa passarpor uma srie de tentativas e erros, mas o que aprende no sai mais dasua cabea.

    A melhor coisa quanto a me tornar um escritor prossional era que eupodia ir para a cama cedo e me levantar cedo. Quando cuidava do bar,muitas vezes no podia dormir at quase amanhecer. O bar fechava meia-noite, mas ento eu tinha de fazer limpeza, vericar os recibos,sentar e conversar, tomar uma bebida para relaxar. Depois de tudo isso,sem que voc se d conta, j so trs da manh e o nascer do sol estlogo ali. Muitas vezes eu sentava diante de minha mesa, escrevendo,quando a luz comeava a surgir do lado de fora. Naturalmente, quandoeu enfim acordava, o sol j estava bem alto no cu.

    Depois que fechei o bar e iniciei minha vida de romancista, aprimeira coisa que ns e por ns quero dizer minha esposa e eu zemos foi mudar completamente nosso estilo de vida. Decidimos queera melhor ir para a cama pouco depois de escurecer e acordar com oraiar do dia. Na nossa concepo, isso era natural, o tipo de vidarespeitvel que as pessoas viviam. Havamos fechado o clube, de modoque decidimos tambm que a partir dali s nos encontraramos com aspessoas que queramos ver e, na medida do possvel, passaramos semos demais. Sentamos que, por algum tempo, pelo menos, podamosnos permitir essa modesta indulgncia.

    Foi uma mudana de rumo crucial do tipo de vida aberta quedurara sete anos para uma vida mais fechada. Creio que levar esse tipode existncia aberta por um perodo foi uma boa coisa. Aprendi ummonte de lies importantes durante esse tempo. Foi minha verdadeiraescola. Mas no d para manter esse estilo de vida para sempre. Assimcomo na escola, voc entra, aprende alguma coisa e ento chega ahora de sair.

    Ento minha vida nova, simples e regular comeou. Eu acordavaantes das cinco e ia para a cama antes das dez. As pessoas rendemmais em horrios diferentes do dia, mas eu denitivamente sou do tipomatinal. nessa hora que consigo me concentrar e terminar algumtrabalho importante que tenho para fazer. Depois disso, me dedico a

  • tarefas que no exigem grande concentrao. Ao m do dia eu relaxo eno trabalho mais. Leio, escuto msica, co tranquilo e tento ir cedopara a cama. Graas a isso, fui capaz de escrever com ecincia nosltimos vinte e quatro anos. um estilo de vida, contudo, que nopermite muita vida noturna, e s vezes seu relacionamento com asoutras pessoas se torna problemtico. Tem gente que at mesmo seenfurece com voc porque o convida para ir a algum lugar ou fazeralguma coisa e voc vive recusando.

    Costumo pensar no modo como, exceto quando jovem, vocprecisa realmente estabelecer prioridades na vida, imaginando em queordem deve dividir seu tempo e sua energia. Se no consegueestabelecer esse tipo de sistema em uma certa idade, vai perder o focoe sua vida ca em desequilbrio. Estabeleci como prioridade nmeroum levar o tipo de vida que permite que eu me concentre na escrita,sem ter de socializar com todas as pessoas que esto em torno de mim.Eu sentia que o relacionamento indispensvel que devia construir emminha vida no era com uma pessoa especca, mas com um nmeroinespecco de leitores. Na medida em que pudesse estabelecer umavida diria de modo que cada obra fosse um aperfeioamento emrelao anterior, ento muitos de meus leitores receberiam de bomgrado fosse l que vida eu escolhera para mim mesmo. Acaso no seresse meu dever como romancista, e minha prioridade mxima? Minhaopinio no mudou com o passar dos anos. No posso ver o rosto demeus leitores, ento em certo sentido esse relacionamento humano de um tipo conceitual, mas tenho persistido em considerar esserelacionamento conceitual, invisvel, como a coisa mais importante emminha vida.

    Em outras palavras, impossvel agradar todo mundo.Mesmo quando cuidava de meu bar eu seguia a mesma poltica.

    Um monte de fregueses frequentava o lugar. Se um em cada dezgostava de l e dizia que voltaria, isso era o suciente. Se um em cadadez se tornava um fregus regular, ento o negcio sobreviveria. Emoutras palavras, no importava se nove em cada dez pessoas nogostavam do meu bar. Perceber isso tirou um peso de meus ombros.Mesmo assim, eu tinha de me certicar de que a nica pessoa quehavia gostado realmente havia gostado. E, para fazer com quecontinuasse gostando de fato, eu tinha de tornar minha losoa epostura bem ntidas, e pacientemente seguir nessa postura,independentemente do que acontecesse. Isso foi o que aprenditocando um negcio.

    Depois de Caando carneiros, continuei a escrever com a mesmaatitude que desenvolvera como proprietrio de um comrcio. E a cada

  • obra o nmero de meus leitores aumentava. O que me deixava maisfeliz era o fato de ter um monte de leitores devotados, os repetidoresum em dez, a maioria deles jovens. Eles aguardavam pacientementepelo meu livro seguinte e o compravam e liam assim que chegava slivrarias. Esse tipo de padro gradualmente tomando forma foi, paramim, uma situao ideal, ou pelo menos muito confortvel. No hnecessidade alguma de ser um corredor top de linha na literatura. Euseguia escrevendo o tipo de coisa que queria escrever, exatamente domodo como queria escrever, e se isso me permitia viver uma vidanormal, no podia pedir mais nada. Quando Norwegian Wood vendeumais que o esperado, a posio confortvel em que eu me encontravafoi forada a mudar um pouquinho, mas isso aconteceu um pouco maistarde.

    Quando comecei a correr, eu era incapaz de fazer longas distncias.Tudo que eu conseguia era correr por cerca de vinte ou trinta minutos.Esse tanto me deixava arfando, com o corao martelando e as pernastremendo. Mas era de se esperar, uma vez que no me exercitava defato havia um longo tempo. No comeo, tambm me sentia um poucoconstrangido de que as pessoas da vizinhana me vissem correndo amesma sensao que tive ao ver pela primeira vez o ttulo romancistacolocado entre parnteses depois de meu nome. Mas conformecontinuei a correr, meu corpo passou a aceitar o fato de que eu estavacorrendo, e pude gradualmente aumentar a distncia. Eu comeava aadquirir a forma fsica de um corredor, minha respirao se tornavamais regular, e meus batimentos caram mais espaados. A questoprincipal era menos a velocidade ou a distncia do que correr todos osdias, sem um dia de descanso.

    Assim, do mesmo modo que minhas trs refeies dirias juntocom meu sono, o trabalho domstico e a escrita , correr foiincorporado minha rotina cotidiana. medida que se tornava umhbito natural, fui me sentindo cada vez menos constrangido arespeito. Entrei em uma loja de esportes e comprei material de corrida,alm de tnis decentes que se prestassem adequadamente ao meupropsito. Comprei um relgio com cronmetro, tambm, e li um livrode corridas para iniciantes. assim que voc se torna um corredor.

    Vendo em retrospecto hoje, acho que a coisa mais afortunada detodas foi que nasci com um corpo forte e saudvel. Isso tornou possvelpara mim correr a uma frequncia diria por quase um quarto desculo, competindo em diversas corridas nesse meio-tempo. Nuncahouve um momento em que minhas pernas doessem tanto que eu nopudesse correr. No costumo fazer muito alongamento antes de

  • comear, mas nunca me machuquei, nunca me contundi, nem queidoente uma vez sequer. No sou um grande corredor, masdenitivamente sou um corredor forte. Esse um dos pouqussimostalentos de que posso me orgulhar.

    O ano de 1983 foi passando e participei pela primeira vez emminha vida de uma corrida de rua. No era muito longa cincoquilmetros , mas pela primeira vez tive um nmero pregado emmim, me vi em meio a um grande grupo de outros corredores e escuteio grito ocial: s suas marcas, preparar, j! Depois que terminou,pensei: Ei, no foi assim to ruim! Em maio eu estava em uma corridade quinze quilmetros em volta do lago Yamanaka e, em junho,querendo testar at onde era capaz de ir, dei voltas em torno do PalcioImperial, em Tquio. Contornei o complexo sete vezes, totalizando 36quilmetros, a um ritmo bastante razovel, e no achei to difcilassim. Minhas pernas no doeram nem um pouco. Talvez eu pudessemesmo correr uma maratona, conclu. Foi somente mais tarde quedescobri pelo modo mais difcil que a parte mais rdua de umamaratona comea depois do trigsimo sexto quilmetro.

    Quando vejo fotos minhas da poca, ca bvio que ainda no tinhao fsico de um corredor. No havia corrido o suciente, no construraos msculos necessrios, e meus braos eram nos demais, minhaspernas, muito esquelticas. Fico perplexo ao pensar como conseguiacorrer uma maratona com um corpo daqueles. Quando voc mecompara nessas fotos com o modo como estou agora, pareo umapessoa completamente diferente. Aps anos e anos correndo, minhamusculatura mudou por completo. Mas mesmo ento eu podia sentir asmudanas fsicas acontecendo dia aps dia, o que me deixavarealmente feliz. Eu sentia que, apesar de ter passado dos trinta anos,ainda restavam algumas possibilidades para mim e meu corpo. Quantomais eu corria, mais o meu potencial fsico se revelava.

    Eu costumava ter propenso a ganhar alguns quilos, mas por voltadessa poca meu peso se estabilizou onde deveria. Exercitando-metodo dia, eu naturalmente atingi meu peso ideal, e descobri que issoajudava minha performance. Junto com isso, minha dieta comeoutambm a mudar gradualmente. Passei a comer sobretudo legumes,tendo peixe como principal fonte de protena. Nunca gostei muito decarne, de qualquer maneira, e essa averso se tornou ainda maispronunciada. Cortei o arroz e o lcool e comecei a usar todo tipo deingrediente natural. Doces no foram um problema, uma vez quenunca liguei muito para isso.

    Como eu disse, se no fao alguma atividade fsica, tendo aengordar. Minha mulher o contrrio, j que pode comer quanto quiser

  • (ela no come acar em excesso, mas sempre foi incapaz de recusarum docinho), nunca se exercita e mesmo assim no engorda. Ela notem nenhuma gordura extra. A vida no justa, foi o que sempre meocorreu. Algumas pessoas podem ralar como burros de carga e nuncaatingir seus objetivos, enquanto outras os conquistam sem um mnimoesforo.

    Mas quando penso a respeito, ter o tipo de corpo que ganha pesofacilmente talvez seja uma bno disfarada. Em outras palavras, seno quero engordar tenho de dar duro todo dia, prestar ateno no quecomo e cortar as extravagncias. A vida pode ser difcil, mas, contantoque voc no poupe esforos, seu metabolismo melhorarenormemente com esses hbitos, e voc terminar muito maissaudvel, para no dizer mais forte. Em certa medida, pode atretardar os efeitos da velhice. Mas pessoas que conseguem manter opeso naturalmente, sem se preocupar com o que fazem, no precisamse exercitar ou cuidar da dieta a m de continuar em forma. No existemuita gente disposta a sair de sua rotina para adotar determinadoshbitos enfadonhos quando no tem necessidade. Eis por que, emmuitos casos, sua fora fsica se deteriora com a idade. Se voc no fazexerccio, seus msculos naturalmente se enfraquecem, assim comoseus ossos. Alguns de meus leitores talvez sejam o tipo de gente queganha peso facilmente, mas o nico modo de compreender o que justo de fato adotar uma viso das coisas a longo prazo. Pelos motivosacima expostos, acho que esse aborrecimento fsico deve ser encaradocom uma viso positiva, como uma bno. Devemos nos considerarsortudos pela luz vermelha ser to claramente visvel. Claro, nemsempre fcil enxergar as coisas sob esse prisma.

    Acho que esse ponto de vista se aplica tambm ao trabalho doromancista. Escritores que nascem com um talento natural podemescrever romances vontade, independentemente do que faam ouno faam. Como gua de uma nascente, as frases simplesmentebrotam, e com pouco ou nenhum esforo esses escritores terminamuma obra. Ocasionalmente, voc encontra gente assim, mas,infelizmente, eu no me incluo nessa categoria. Nunca vi nenhumanascente por perto. Tenho de martelar a pedra com um cinzel e cavarum profundo buraco antes de conseguir localizar a fonte dacriatividade. Para escrever um romance, tenho de exigir muito de mim,sicamente, e despender um bocado de tempo e esforo. Toda vez quecomeo um romance novo, sou obrigado a escavar um novo buracoprofundo. Mas como tenho mantido esse estilo de vida por muitos anos,tornei-me bastante eciente, tanto tcnica como sicamente, em abrirum buraco na rocha dura e localizar um novo veio dgua. Assim, to

  • logo noto uma fonte de gua secando, posso mudar imediatamentepara outra. Se uma pessoa que se apoia em uma nascente natural detalento de repente descobre que exauriu sua nica fonte, ela se vencrencada.

    Em outras palavras, vamos ser francos: o mundo no justo. Masmesmo numa situao injusta, acho que possvel buscar uma espciede justia. Claro, isso pode demandar tempo e esforo. E talvezacontea de no parecer valer a pena tanto trabalho. Cabe a cada umdecidir se sim ou no.

    Quando conto para as pessoas que corro todos os dias, tem gente queca muito impressionada. Voc deve ter uma tremenda fora devontade, s vezes escuto. Claro que agradvel receber um elogioassim. Muito melhor do que ser motivo de desprezo, com certeza. Masno acredito que seja apenas fora de vontade que capacite a pessoa afazer alguma coisa. O mundo no assim to simples. Para dizer averdade, eu nem acho que exista grande correlao entre o hbito decorrer todo dia e essa coisa de ter ou no fora de vontade. Creio quefui capaz de correr durante mais de vinte anos por um motivo simples:isso me cai bem. Ou pelo menos porque no acho assim to doloroso.Os seres humanos naturalmente continuam a fazer as coisas de quegostam, e param de fazer as que no gostam. Vamos admitir quealguma coisa prxima da vontade desempenhe um pequeno papelnisso. Mas por mais determinada que seja a pessoa, por mais que possaodiar a ideia de perder, se no for uma atividade da qual realmentegosta, no vai continuar nela por muito tempo. Mesmo que o faa, noseria nada bom para essa pessoa.

    por esse motivo que nunca recomendei a corrida para os outros.Fao questo de nunca dizer algo como: Correr timo. Todo mundodevia tentar. Se algum tem interesse em corrida de longa distncia,deixe por sua prpria conta, que um dia a pessoa comear a correrporque decidiu faz-lo. Se no tiver interesse, todos os argumentos domundo no iro persuadi-la. Ser maratonista no um esporte paraqualquer um, assim como escrever romances no trabalho paraqualquer um. Ningum nunca recomendou nem desejou que eu virasseum romancista pelo contrrio, houve quem tentasse me dissuadirdisso. Ocorreu-me que eu fosse um, e foi isso que z. Igualmente, apessoa no corre porque algum recomendou. As pessoas basicamentese tornam corredoras porque essa sua propenso.

    Mesmo assim, algum pode ler este livro e dizer: Ei, vouexperimentar correr um pouco, e depois descobrir que gosta. E claroque isso seria maravilhoso. Como autor do livro, eu caria muito feliz se

  • isso acontecesse. Mas as pessoas tm seus prprios gostos e antipatias.Algumas so mais afeitas a correr em maratonas, outras, ao golfe,outras, a jogos de azar. Sempre que vejo alunos em uma aula deginstica sendo obrigados a correr uma longa distncia, sinto penadeles. Forar pessoas que no tm o menor desejo de correr, ou queno so sicamente aptas para tal, um espcie de tortura semsentido. Sempre penso em aconselhar os professores a no obrigartodos os alunos dos ensinos fundamental e mdio a cumprir ummesmo percurso, mas duvido que algum me d ouvidos. assim queas escolas so. A coisa mais importante que jamais aprenderemos naescola o fato de que coisas importantes no podem ser aprendidas naescola.

    Por mais que correr longas distncias seja uma coisa que me caia bem,claro que existem dias em que me sinto meio letrgico e no querocorrer. Na verdade, acontece com frequncia. Em dias assim, tentopensar em todo tipo de desculpa plausvel para fugir do compromisso.Uma vez, entrevistei o corredor olmpico Toshihiko Seko, logo depoisque ele se aposentou das pistas e virou tcnico de equipe dacompanhia S&B. Eu perguntei a ele: Um corredor no seu nvel algumavez sente que no est disposto a correr tal ou tal dia, tipo, hoje novou correr e vou car dormindo mais um pouco? Ele olhou para mim eento, numa voz que deixava cristalinamente claro como achava apergunta estpida, respondeu: Claro. O tempo todo!

    Agora, me lembrando disso, posso ver que pergunta mais idiota foiessa. Acho que mesmo na poca eu sabia como era idiota, maspresumo que quisesse ouvir a resposta diretamente de algum docalibre de Seko. Eu queria saber se, apesar do abismo que nos separavaem termos de fora, de quantidade de exerccio que podemos executare de motivao, quando amarramos os tnis de corrida cedo pelamanh nos sentimos exatamente do mesmo jeito. A resposta de Sekoconstituiu um grande alvio para mim. Em ltima anlise, somos todosiguais, pensei.

    Sempre que me sinto pouco disposto a correr, eu me pergunto amesma coisa: Voc consegue ganhar a vida como romancista,trabalhando em casa, fazendo seu prprio horrio, ento no precisaencarar baldeaes no metr lotado ou participar de reuniesmaantes. No percebe como tem sorte? (Pode acreditar, perguntomesmo.) Comparado a isso, correr uma hora pela vizinhana no nada, certo? Sempre que vejo um metr lotado e reunies inndveis,isso me devolve toda a motivao de que preciso e ento calo os tnise saio para correr sem reclamar. Se no conseguir dar conta disso,

  • penso, vai ser bem-feito pra mim. Digo isso tendo plena conscincia deque h muita gente que prefere andar em um metr lotado ecomparecer a reunies a ter de correr uma hora todos os dias.

    Em todo caso, foi assim que comecei a correr. Trinta e trs anos essaera minha idade na poca. Ainda jovem o bastante, embora no maisum homem jovem. A idade com que Jesus Cristo morreu. A idade comque Scott Fitzgerald comeou a decair. Essa idade talvez seja um tipode encruzilhada na vida. Foi nessa idade que comecei minha vida decorredor, e foi meu tardio, embora verdadeiro, ponto de partida comoromancista.

  • Trs

    1 DE SETEMBRO DE 2005 KAUAI, HAVAAtenas no meio do vero Correndo 46,2 quilmetros pela

    primeira vez

    Ontem foi o ltimo dia de agosto. Durante esse ms (trinta e um dias),corri um total de 350 quilmetros.

    Junho 251 quilmetros (56 quilmetros por semana)Julho 300 quilmetros (70 quilmetros por semana)

    Agosto 350 quilmetros (80 quilmetros por semana)

    Meu objetivo a Maratona de Nova York, no dia 6 de novembro.Tive de fazer alguns ajustes a m de me preparar para ela; at aqui,tudo bem. Comecei estabelecendo uma programao de corrida cincomeses antes da hora, aumentando, por etapas, a distncia que corro.

    O clima de Kauai em agosto maravilhoso, e a chuva no meatrapalhou um dia sequer. Quando choveu, foi uma ducha alegre ques fez refrescar meu corpo superaquecido. O clima no litoral norte deKauai geralmente bom no vero, mas uma coisa rara acontecer depermanecer assim rme por tanto tempo. Graas a isso, fui capaz decorrer quanto quis. Me sinto em boa forma; assim, mesmo que pouco apouco eu aumente a distncia percorrida, meu corpo no se queixa.Nesses trs meses fui capaz de correr livre de dores, sem contuses,sem me sentir muito cansado.

    O calor do vero tampouco acaba comigo. No fao nada deespecial para manter meu nvel de energia elevado durante o vero.Acho que a nica coisa especca que fao tentar no tomar muitabebida gelada. E comer mais frutas e legumes. Quando se trata daalimentao, no meu caso, o Hava o lugar ideal para morar, poisconsigo um monte de frutas frescas manga, mamo papaia, abacate simplesmente atravessando a rua. S que no como essas coisaspara me prevenir contra indisposies por causa do calor, mas porquemeu corpo naturalmente pede por elas. Ser ativo todos os dias tornamais fcil escutar essa voz interior.

    Um outro modo que tenho de me manter saudvel tirando umcochilo. E eu cochilo um bocado, na verdade. Em geral, co sonolentologo depois do almoo, me jogo no sof e pego no sono. Trinta minutosdepois estou completamente desperto. Assim que acordo, meu corpo

  • no fica preguioso e minha mente est totalmente clara. Isso no sul daEuropa o que eles chamam de uma siesta. Creio que aprendi ocostume quando morei na Itlia, mas talvez a memria estejasimplesmente me tapeando, j que sempre adorei tirar sonecas. Sejacomo for, sou o tipo de pessoa que, assim que ca sonolenta, conseguepegar no sono em qualquer lugar. Denitivamente um bom talentopara se ter, se voc deseja permanecer com sade, mas o problema que s vezes eu caio rapidamente no sono em situaes em que nodeveria.

    Perdi algum peso, tambm, e meu rosto parece mais bronzeado. uma sensao agradvel ver seu corpo passar por essas mudanas,embora certamente elas no aconteam to rapidamente como quandoeu era jovem. Mudanas que costumavam levar um ms e meio agoralevam trs. A quantidade de exerccio de que sou capaz est emdeclnio, assim como a eccia de todo o processo, mas o que se podefazer? S posso aceitar, e me virar com o que tenho mo. Uma dasrealidades da vida. Alm do mais, no acho que deveramos julgar osvalores da vida por quo ecientes eles so. A academia em que malhoem Tquio tem um pster que diz: Msculos so difceis de conseguire fceis de perder. Gordura fcil de conseguir e difcil de perder.Uma dolorosa realidade, mas uma realidade, mesmo assim.

    E assim agosto deu adeus (e parecia mesmo que acenava), setembrochegou e meu estilo de treinamento passou por outra transformao.Nos trs meses at agora, eu estava basicamente treinando paraaumentar a distncia, sem me preocupar com mais nada, masapertando constantemente o passo e correndo o mais forte queconseguia. E isso me ajudou a aumentar a fora como um todo: minharesistncia cresceu, meus msculos caram maiores, foi um estmulotanto fsico como mental. A tarefa mais importante aqui era deixar quemeu corpo soubesse sem a menor sombra de dvida que correr toforte apenas parte da trajetria. Quando digo deixar que meu corposoubesse sem a menor sombra de dvida estou falandogurativamente, claro. Por mais que voc comande seu corpo paraobter um desempenho, no conte com ele para obedecerimediatamente. O corpo um sistema extremamente prtico. Vocprecisa deix-lo experimentar a dor intermitente por algum tempo, eento ele vai entender onde voc quer chegar. Como resultado, eleaceitar (ou no) de bom grado a quantidade maior de exerccio que obrigado a fazer. Depois disso, voc muito gradualmente aumenta olimite mximo da quantidade de exerccio que pratica. Fazer issogradualmente importante para que voc no queime todos os

  • cartuchos.Agora que setembro chegou e faltam apenas dois meses para a

    corrida, meu treinamento est entrando em um perodo de sintoniana. Por meio de ajustes nos exerccios s vezes mais longos, svezes mais curtos, s vezes suaves, s vezes fortes , fao umatransio da quantidade de exerccio para a qualidade. A questo atingir o pico de exausto cerca de um ms antes da corrida, de modoque um perodo crtico. A m de conseguir algum progresso, tenho deescutar atentamente o feedback fornecido por meu corpo.

    Em agosto pude me acomodar em um lugar s, Kauai, e treinar,mas em setembro terei de fazer longas viagens, voltar ao Japo edepois ir do Japo a Boston. No Japo estarei ocupado demais para meconcentrar em correr do jeito como vinha fazendo. Devo ser capaz decompensar por no correr tanto, porm, estabelecendo um programade treinamento mais eficiente.

    Eu preferia mesmo no precisar falar sobre isso preferiria mil vezesme esconder no fundo de um armrio , mas a ltima vez que corriuma maratona foi horrvel. J participei de um monte de corridas, masnunca de uma que terminou to mal.

    Essa corrida aconteceu na Prefeitura de Chiba. Mais ou menos at ovigsimo nono quilmetro eu estava correndo numa toada bastanteboa, e tinha certeza de estar conseguindo um tempo decente. Minharesistncia estava muito bem, ento eu no tinha dvida de que teriaforas para terminar o restante da corrida sem problemas. Mas no exatomomento em que pensava isso, minhas pernas subitamente pararamde seguir ordens. Comecei a sentir cimbras, e elas pioraram de talforma que no pude mais correr. Tentei alongar, mas a parte posteriorde minhas coxas no parava de tremer, e nalmente senti umacimbra que travou tudo irremediavelmente. No dava nem para carde p e, antes que me desse conta, eu me agachava ao lado da rua. Jhavia tido cimbras em outras corridas, mas, contanto que mealongasse por algum tempo, cerca de cinco minutos era tudo de quemeus msculos necessitavam para voltar ao normal e para que euvoltasse corrida. Mas agora, por mais que o tempo passasse, ascimbras no iam embora. A certa altura, julguei estar melhor ecomecei a correr outra vez, mas as infalveis cimbras voltaram. Entoos ltimos cinco quilmetros ou algo assim eu tive de fazercaminhando. Essa foi a primeira vez que andei numa maratona, em vezde correr. At ento, para mim se tornara um ponto de honra que,independentemente de quo difceis as coisas cassem, eu nuncaandaria. Anal, uma maratona um evento de corrida, no um evento

  • de caminhada. Mas, nessa corrida em particular, at andar foi umproblema. O pensamento cruzou minha mente algumas vezes de quetalvez eu devesse desistir e pegar carona em um dos nibus circularesdo evento. Meu tempo vai ser uma porcaria, de qualquer jeito, pensei,ento por que no jogar logo a toalha de uma vez? Mas abandonar acorrida era a ltima coisa que eu queria fazer. Eu podia me aviltar aponto de rastejar, mas cruzaria a linha de chegada com meu prprioesforo.

    Outros corredores continuavam passando por mim, mas euavanava mancando, fazendo uma careta de dor. Os nmeros em meurelgio digital continuavam impiedosamente avanando. O ventosoprava do oceano, e o suor em minha camisa ficou gelado e me deixoumorrendo de frio. Aquela era uma corrida de inverno, anal de contas.Podem acreditar: d um frio dos diabos manquitolar pela rua com ovento aoitando voc, vestido apenas com camiseta regata e shorts.Seu corpo esquenta consideravelmente quando voc corre, e voc nosente o frio; quei em choque ao perceber como o ar estava geladoassim que parei de correr. Mas o que senti, muito mais do que o frio, foio orgulho ferido, e que viso lamentvel era eu mancando pelo circuitode corrida. Faltando quase dois quilmetros para a linha de chegada,minhas cimbras nalmente cessaram e pude correr novamente. Troteilentamente por algum tempo at retomar o ritmo, depois disparei notrecho nal o mais rpido que pude. Meu tempo, porm, foi de fatopssimo, como eu previa.

    Existem trs motivos para o meu fracasso. Falta de treino. Falta detreino. E falta de treino. Foi isso, numa expresso. Falta de me exercitarde uma forma abrangente, alm de no diminuir meu peso. Sem queeu me desse conta, eu desenvolvera uma espcie de atitude arrogante,convencido de que apenas uma quantidade mediana de treinamentobastava para realizar um bom trabalho. A barreira que divide aconana salutar do orgulho prejudicial muito na. Quando eu erajovem, podia ser que apenas uma dose mediana de treinamento fossesuciente para que eu corresse uma maratona. Sem forar demais notreino, eu poderia ter conado na energia que j armazenara paraterminar a prova e fazer um bom tempo. Mas, infelizmente, j no soumais jovem. Estou chegando quela idade em que voc s obtm defato aquilo pelo qual pagou.

    Quando corria nessa corrida, senti que nunca mais ia querer passarpor aquilo outra vez. Morrer de frio e me sentir um lixo? No, obrigado.Bem ali, decidi que antes da minha maratona seguinte eu voltaria parao bsico, comearia do zero, e faria o melhor possvel. Iria treinarmeticulosamente e redescobrir do que eu era sicamente capaz.

  • Apertar todos os parafusos soltos, um a um. Fazer tudo isso e ver o queaconteceria. Esses eram meus pensamentos enquanto eu arrastavaminhas pernas com cimbras pelo vento gelado, um corredor depois dooutro passando por mim.

    Como j disse, no sou um tipo de pessoa muito competitiva.Imagino que, at certo ponto, s vezes difcil evitar a derrota.Ningum vence o tempo todo. Na estrada da vida voc no pode irconstantemente pela faixa mais rpida. Mesmo assim, eu certamenteno quero car cometendo os mesmos erros sempre e sempre. Melhoraprender com meus erros e pr essa lio em prtica da prxima vez.Enquanto eu ainda tiver a capacidade de fazer isso.

    Talvez esse seja o motivo pelo qual, enquanto treino para a prximamaratona a Maratona de Nova York , tambm esteja escrevendoisto. Pouco a pouco vou me lembrando de coisas que aconteceramquando eu era um corredor iniciante, h mais de vinte anos. Repassaras memrias, reler o dirio simples que mantive (nunca fui capaz deescrever um dirio regular por muito tempo, mas mantenho sem faltameu dirio de corredor) e retrabalh-las na forma de um ensaio ajuda areetir sobre o caminho percorrido e redescobrir os sentimentos quetive na poca. Fao isso no s como uma advertncia, mas tambmcomo um encorajamento para mim. Tambm espero que sirva dedespertador para a motivao que, em algum ponto ao longo docaminho, ficou adormecida. Estou escrevendo, em outras palavras, parapr meus pensamentos em algum tipo de ordem. E vendo emretrospecto em ltima anlise, sempre em retrospecto isto podemuito bem acabar sendo um tipo de relato centrado no ato de correr.

    Isso no signica que o que me interessa neste exato momento sejaescrever uma histria pessoal. Estou muito mais preocupado com aquesto prtica de como terminar a Maratona de Nova York daqui adois meses, com um tempo um pouco mais decente. A tarefa principalque se apresenta diante de mim neste exato momento como possotreinar a fim de conseguir isso.

    Em 25 de agosto, a revista americana Runners World veio fazeruma sesso de fotos comigo. Um jovem fotgrafo chamado Greg veioda Califrnia e passou o dia me clicando. Sujeito entusiasmado, eletrouxe um ba de equipamento de avio at Kauai. A revista meentrevistara antes, e as fotos eram para acompanhar a matria. Ao queparece no existem muitos romancistas maratonistas (existem outros, claro, mas no muitos), e a revista estava interessada em minha vidacomo Running Novelist. A Runners World uma revista muitopopular entre os praticantes de corrida americanos, ento imagino que

  • um monte de corredores vai me cumprimentar quando eu estiver emNova York. Isso me deixou ainda mais tenso, pensando em como noposso nem sonhar em me sair muito mal na maratona.

    Vamos voltar para 1983. Uma era hoje nostlgica, quando Duran Durane Hall and Oates lideravam as paradas.

    Em julho desse ano viajei para a Grcia e corri por conta prpria deAtenas cidade de Maratona. Essa foi a direo oposta percorridapelo mensageiro da antiga batalha, que comeou em Maratona e foipara Atenas. Decidi correr no sentido contrrio porque imagineicomear bem cedo em Atenas, antes da hora do rush (e antes que o arcasse demasiadamente poludo), sair da cidade e ir direto paraMaratona, o que me ajudaria a evitar o trnsito pesado. No eranenhuma corrida ocial e eu corria sozinho, ento naturalmente nopodia contar com ningum para remanejar o trfego s por minhacausa.

    Por que fui to longe para correr 42 quilmetros por conta prpria?Uma revista masculina me convidara a viajar para a Grcia e escreverum relato sobre a viagem. Era um evento de mdia ocialmenteorganizado, com o patrocnio do Ministrio do Turismo grego. Ummonte de outras revistas tambm patrocinavam a viagem, quecompreendia as tpicas visitas tursticas para ver runas, um cruzeiropelo mar Egeu etc., mas uma vez que isso houvesse se encerrado,minha passagem cava em aberto para eu permanecer quanto tempoquisesse e fazer o que bem entendesse. Esse tipo de pacote tursticono me interessava, mas gostei realmente da ideia de car por minhaprpria conta depois disso. A Grcia o lar do percurso de maratonaoriginal, e queria muito conhec-lo pessoalmente. Imaginei que seriacapaz de correr pelo menos parte dele. Para um corredor novato comoeu, seria definitivamente uma experincia empolgante.

    Pera, pensei. Por que s uma parte? Por que no correr a distnciatoda?

    Quando sugeri isso aos editores da revista, eles gostaram da ideia.Ento terminei correndo minha primeira maratona completa (ou algoprximo disso) tranquilamente, sozinho. Nada de multido, nada de fitana linha de chegada, nada de aplausos calorosos das pessoas ao longodo caminho. Nada disso. Mas por mim tudo bem, uma vez que isso erao percurso da maratona original. O que mais eu poderia desejar?

    Na verdade, se voc corre direto de Atenas para Maratona, isso nocorresponde extenso de uma maratona ocial, que de 42.195metros. cerca de um ou dois quilmetros a menos. Descobri isso anosdepois, quando participei de uma corrida ocial que seguia o percurso

  • original, comeando em Maratona e terminando em Atenas. Como sabequalquer um que acompanhou a transmisso pela tev da maratonanos Jogos Olmpicos de Atenas, depois que os corredores saram deMaratona, a certa altura entraram por uma rua transversal esquerda,passaram por runas nada conhecidas e voltaram pista principal. Foiassim que completaram a distncia extra. Na poca, contudo, eu notinha conscincia disso, e achava que correr direto de Atenas atMaratona corresponderia extenso olmpica, quando na verdade eramquarenta mil e tantos metros. Mas ao entrar em Atenas z algunsdesvios, e como o hodmetro da van que me acompanhou mostravaque o veculo andara quarenta e dois quilmetros, presumi que eucorrera alguma coisa muito perto de uma maratona completa. No queisso interesse grande coisa, tanto tempo depois.

    Era o meio do vero em Atenas quando corri. Quem j esteve na cidadenessa poca sabe que o calor pode ser inacreditvel. Os moradores, amenos que se vejam obrigados, evitam sair tarde. As pessoas nofazem coisa alguma, apenas se mantm sombra para conservar asforas. Somente quando o sol se pe que saem s ruas. Praticamenteos nicos que voc v andando ao ar livre numa tarde de vero naGrcia so turistas. At os cachorros deitam na sombra e no movemum msculo. Voc precisa car olhando para eles por um bom tempopara ter certeza se esto mesmo vivos. quente assim. Correr quarentae dois quilmetros num calor desses nada mais, nada menos, quepura loucura.

    Quando contei a alguns gregos meu plano de correr sozinho deAtenas a Maratona, todos disseram a mesma coisa: Isso loucura.Ningum em juzo perfeito pensaria em fazer uma coisa dessas. Antesde chegar, eu no fazia ideia de como era quente o vero em Atenas,ento me mostrei um tanto despreocupado a respeito. Tudo que eutinha a fazer era correr os quarenta e dois quilmetros, imaginei, s mepreocupando com a distncia. A temperatura em nenhum momentome passou pela cabea. Assim que cheguei a Atenas, contudo, faziaum calor to infernal que comecei a sentir medo. Eles tm razo,pensei. S sendo maluco pra fazer uma coisa dessas. Mesmo assim,tomei a de