do outro lado do espelho (psicografia carlos antonio baccelli - espírito inácio ferreira)

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  1 DO OUTRO LADO DO ESPELHO Inácio Ferreira; psicografado por Carlos Antônio Baccelli. Votuporanga, SP Carlos Antônio Baccelli Inácio Ferreira Índice "DO OUTRO LADO DO ESPELHO" Primeira Parte 1 - REMINISCÊNCIAS 2 - INTROSPECÇÃO INEVITÁVEL 3 - DIÁLOGO FRANCO 4 - VELHOS AMIGOS 5 - ODILON E ALCEU 6 - QUESTIONANDO O IDEAL 7 - MELHORANDO 8 - NOS PAVILHÕES 9 - OUTRAS EXPERIÊNCIAS 10 - FAZENDO O POSSÍVEL 11 - INCAPAZ DE EXPLICAR 12  SITUAÇÂO CONJUGAL 13 - COM MINHA MÃE 14 - NECESSIDADE DE ESQUECER 15 - NOVA SURPRESA 16 - SEXO 17 - O TEMPO PASSA 18 - VOLTANDO AO SANATÓRIO 19 - MITOLOGIA E REENCARNAÇÀO 20 - PERIGOSOS SOFISMAS 21 - LOBOS E OVELHAS 22 - MAIS TEMPO 23 - COM O DR. BEZERRA 24 - ESCLARECENDO DÚVIDAS 25 - MEDIUNIDADE Segunda Parte 26 - PAULINO GARCIA 27 - APREENSÃO E EXPECTATIVA 28 - PLANO DE AÇÃO 29 - CONSCIÊNCIA E PASSADO 30 - ESQUECIMENTO 31 - COMENTÁRIOS À MARGEM 32 - PREPARATIVOS INICIAIS 33 - SOBREVIVÊNCIA DA FÉ 34 - ÊXITO APARENTE 35 - A CAMINHO DA CROSTA 36 - SEGUIDOS DE PERTO 37 - PSICOMETRIA

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    DO OUTRO LADO DO ESPELHO

    Incio Ferreira; psicografado por Carlos Antnio Baccelli.

    Votuporanga, SP

    Carlos Antnio Baccelli

    Incio Ferreira

    ndice

    "DO OUTRO LADO DO ESPELHO"

    Primeira Parte

    1 - REMINISCNCIAS

    2 - INTROSPECO INEVITVEL

    3 - DILOGO FRANCO

    4 - VELHOS AMIGOS

    5 - ODILON E ALCEU

    6 - QUESTIONANDO O IDEAL

    7 - MELHORANDO

    8 - NOS PAVILHES

    9 - OUTRAS EXPERINCIAS

    10 - FAZENDO O POSSVEL

    11 - INCAPAZ DE EXPLICAR

    12 SITUAO CONJUGAL

    13 - COM MINHA ME

    14 - NECESSIDADE DE ESQUECER

    15 - NOVA SURPRESA

    16 - SEXO

    17 - O TEMPO PASSA

    18 - VOLTANDO AO SANATRIO

    19 - MITOLOGIA E REENCARNAO

    20 - PERIGOSOS SOFISMAS

    21 - LOBOS E OVELHAS

    22 - MAIS TEMPO

    23 - COM O DR. BEZERRA

    24 - ESCLARECENDO DVIDAS

    25 - MEDIUNIDADE

    Segunda Parte

    26 - PAULINO GARCIA

    27 - APREENSO E EXPECTATIVA

    28 - PLANO DE AO

    29 - CONSCINCIA E PASSADO

    30 - ESQUECIMENTO

    31 - COMENTRIOS MARGEM

    32 - PREPARATIVOS INICIAIS

    33 - SOBREVIVNCIA DA F

    34 - XITO APARENTE

    35 - A CAMINHO DA CROSTA

    36 - SEGUIDOS DE PERTO

    37 - PSICOMETRIA

  • 2

    38 - NO INTERIOR DA TERRA

    39 - SERES ELEMENTAIS

    40 - CENAS DANTESCAS

    41 - ETERNA NOITE

    42 - A PALAVRA DO DRAGO

    43 - O RESGATE DE TORQUEMADA

    44 - ALCANANDO A SUPERFCIE

    45 - CONSTATANDO A REALIDADE

    46 - DOUTRINA E VIVNCIA

    47 - A FILOSOFIA DAS TREVAS

    48 - MEDIUNIDADE NO ALM

    49 - VENCENDO BARREIRAS

    50 - DESPEDIDAS

    "DO OUTRO LADO DO ESPELHO"

    Do outro lado do Eterno Espelho da Vida, o homem sempre se deparar com a imagem real de si mesmo.

    Liberto dos contornos ilusrios da matria, os seus autnticos traos intelecto-moral se lhe acentuaro no

    esprito.

    A voz da conscincia lhe falar sem qualquer subterfgio e ele no conseguir, por mais tempo, ignorar a

    Verdade.

    Em vo, no confronto consigo mesmo, intentar subtrair-se contemplao da prpria realidade, que os

    interesses subalternos e as convenincias o fizeram olvidar.

    Ao choque da morte fsica, ao qual, sem dvida, se submete incontvel nmero de vezes, ao longo das vidas

    sucessivas, o homem gradualmente desperta e, aos poucos, comea a se enxergar em sua essncia, tomando

    as rdeas do destino nas mos.

    longo e ngreme o caminho a ser percorrido.

    A obra do aperfeioamento ntimo resultado de esforo intransfervel.

    No existem favorecimentos indbitos na Lei de Evoluo, que a ningum isenta da necessidade de aprender

    custa da experincia vivenciada.

    Este livro, cujas anotaes aqui reunimos, sem nenhuma pretenso literria, almeja to-somente demonstrar

    que, de fato, a morte nada mais para o homem que o desdobramento natural da existncia humana, no

    operando milagres de transformao em quem no transpire o suficiente para se renovar luz do Evangelho

    do Cristo.

    Incio Ferreira

    Uberaba - MG, 12 de outubro de 2001.

    REMINISCNCIAS

    Deixei, por fim, o corpo em conseqncia de grave crise de enfisema pulmonar. O cigarro, ao longo do tempo,

    fizera o seu trabalho. Haviam sido inteis todas as minhas tentativas para deixar de fumar. Nos ltimos dias,

    porm, eu nem podia falar em cigarro. Creio que tudo fazia parte de uma preparao para que, alm da morte,

    o desejo de fumar no me atormentasse. Digo-lhes, no entanto, que tive de lutar muito; vezes sem conta levava

    a mo aos bolsos, procurando os cigarros de palha que costumava guardar no jaleco. Desencarnar operao

    das mais simples; difcil esquecer os velhos hbitos. Confesso-lhes que, de certa forma, eu me sentia perdido,

    hesitando entre partir e ficar. No era tanto apego aos bens, que eu sabia no mais me pertencerem - eu havia

    me despojado de quase todos eles ainda em vida -, mas a insegurana de quem se sente numa encruzilhada.

    Nos momentos de agonia, enquanto tentava respirar com o auxlio do balo de oxignio, via diversos vultos

    ao meu lado, semblantes amigos que eu podia identificar; todavia, nos recessos do ser eu me sentia a ss - a

    ss com o que eu fizera de mim mesmo, ao longo de uma existncia que poderia ter sido mais profcua.

    Sentindo que no adiantava continuar resistindo, encorajei-me nas preces dos amigos que oravam em silncio,

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

  • 3

    ao redor do meu leito, e entreguei-me. Pude notar quando os laos que me mantinham preso ao corpo se

    afrouxaram. A conscincia entrou numa espcie de turbilho e senti-me caindo para dentro de mim.

    Imagens de mim mesmo comearam cleres, a desfilar diante dos olhos que eu havia cerrado para o mundo.

    O conhecimento esprita adquirido a peso de ingentes sacrifcios me assessorava na inevitvel introspeco.

    Sem exagero, afirmo-lhes que a minha condio de mdico psiquiatra de nada me valeu naquela hora: sequer

    me veio lembrana, em forma de socorro, pelo menos uma das teorias dos grandes luminares da Psicanlise.

    Um medo cada vez maior da verdade - do confronto inevitvel comigo - foi, aos poucos, se apossando de mim.

    Eu no havia sido to benemrito quanto me consideravam!

    A considervel distncia, mas como se ainda permanecesse de ouvidos colados ao corpo, pude escutar quando

    o mdico chamado s pressas, sentenciou:

    Acabou!

    Quando eu o ouvi dizer que tudo estava consumado, comecei, estranhamente, a me sentir mais leve ainda. Eu

    me compararia, naquela situao, a uma pluma soprada em rodopios pelo vento. Onde estaria o cho, que eu

    no conseguia tocar?!

    Devagar fui me tranqilizando, buscando concentrar esforos na orao. Eu me sentia frgil - mais frgil do

    que propriamente enfraquecido. Instante algum, eu perdera a conscincia; sem dvida, mais tarde, me

    entregaria aos braos de indispensvel sono reparador, mas, querendo observar tudo, eu me mantinha alerta.

    Queria experimentar por mim todas as fases do fenmeno. O que conhecia, exausto, na frtil bibliografia

    esprita, desejava saber por mim mesmo. Afinal, segundo creio aquela era a primeira vez em que deixava o

    corpo com alguma lucidez. Cansara de doutrinar espritos nas sesses de desobsesso, que desvinculados da

    vida fsica, no conseguiam se situar no espao e no tempo.

    No quero exauri-los com as minhas narrativas e procurarei ater-me apenas ao essencial. Talvez quem esteja

    me lendo estas palavras formule o questionamento:

    Mas o qu? O grande Incio Ferreira embaraado depois da morte?! Inacreditvel!

    DO OUTRO LADO DO ESPELHO

    Em primeiro lugar, responder-lhe-ei que nunca me considerei maior que a minha prpria estatura fsica, que,

    de fato, no era l essas coisas, mormente quando comecei a me curvar depois dos sessenta. Em seguida,

    dirlhe-ei que a chamada morte nos cria maiores embaraos que a vida, porque no logramos evitar o

    desapontamento que nos acomete. Eu cria na vida depois da morte, mas, no fundo, tinha esperana de que as

    coisas no fossem to rigorosas assim para os eternos sobreviventes.

    Depois da prpria vida, a morte a mais sbia inveno do Criador. De repente, eu estava sem nada, sem

    minha funo de Diretor-Mdico do Sanatrio Esprita de Uberaba, cargo que ocupei por mais de cinqenta

    anos; sem minha biblioteca com minha coleo de livros raros - que no dava, no emprestava e no vendia -

    sem meus hbitos de velho e sem meus chinelos.

    O que h de ser, doravante? - questionei, esperando que algum surgisse para interceder em meu benefcio.

    No pensem que tenha sido recepcionado no limiar do Alm-Tmulo por um sqito de espritos iluminados.

    Os que, aos poucos foram aparecendo, no passavam de amigos, alguns deles, antigos pacientes meus e

    criaturas simples que, vez ou outra, eu pudera beneficiar. Dos meus familiares, apenas minha me viria me

    ver, mais tarde. Isto, talvez por ter sido ela o nico esprito que verdadeiramente me tolerara. Esta uma outra

    faceta da minha personalidade: reconheo que excedia em meus pontos de vista, levado, quem sabe, pela

    posio que ocupava. O esprita tem a mania de se julgar sempre com a verdade. Eu me acreditava coberto de

    razo em tudo: a ltima palavra deveria ser sempre a minha. Meu Deus, quanta iluso! A vaidade um mal

    terrvel.

    Quando pude conversar com algum que se postou ao meu lado e segurou as minhas mos entre as suas,

    dando-me certa segurana, identifiquei Dona Maria Modesto Cravo, que me falou, abrindo um sorriso:

    Incio, seja bem-vindo entre ns. Fique tranqilo: voc no est sozinho no Umbral!

    Com a respirao ainda algo ofegante e aqueles meus olhos de peixe morto - ainda agora, pasmem consigo ver

    a minha expresso de moribundo. Caoei, tentando descontrair-me:

    Estamos juntos no Umbral, no ?

    Dona Modesta, como a chamvamos me acariciou a fronte empastada de suor e emendou:

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

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    Onde que poderamos estar Incio?! No temos asas para voar alm e as encostas do abismo so

    escorregadias para que sejam escaladas!

    Como fui? - quis saber, sem, no entanto, muita conscincia do que indagara.

    Quanto travessia, tudo bem.

    E quanto ao resto?

    Voc sabe que eu no tenho esta resposta, Incio - redargiu com triste inflexo de voz.

    De fato, eu queria saber o que apenas me seria possvel saber por mim mesmo. No fundo, estava procura de

    uma opinio que divergisse da minha, pois, se a conscincia no me efetuava tantas acusaes, tambm no

    me liberava de todo. Falhara sim, e muito. Quanto mais depressa admitisse os meus equvocos, mais depressa

    me colocaria em condies de repar-los.

    Aps Dona Maria Modesto Cravo, divisei o Manoel Roberto da Silva, o Joaquim Telsforo de Oliveira, o

    Antnio Logogrifo, o Alceu de Souza Novaes, o Odilon Fernandes. Irmos de ideal esprita e companheiros

    maons diversos, cujos nomes no consigo listar agora, vieram me dar s boas-vindas.

    INTROSPECO INEVITVEL

    Nos instantes em que permanecia sozinho, tentando recuperar a fora nas pernas no creiam que todos os

    espritos saiam do corpo volitando, a introspeco se fazia inevitvel. Por que eu no aproveitara melhor o

    meu tempo? Por que, aps ter feito alguma coisa no campo da literatura e das obras assistenciais, eu me

    acomodara? Por que no investira mais no futuro to prximo?

    Rememorando cada trecho do caminho que percorrera, no conseguia impedir que, por vezes, algumas

    lgrimas me aflorassem aos olhos. Eu estava vivo - isto, efetivamente, era tudo -, mas era um candidato ao

    recomeo. Vejam vocs: mal tendo concludo uma etapa do percurso, do longo percurso evolutivo, j comeava

    a esboar novos planos. Eu no alcanara as estrelas! Quantos confrades vivem imaginando que a simples

    condio de esprita nos seja um passaporte para as Regies Superiores!

    Foi num desses dias, em que o meu olhar se perdia no horizonte pela janela entreaberta, que recebi a grata

    visita do Padre Sebastio Bernardes Carmelita - o nico que eu tolerara na Terra. Adepto da Doutrina, sem,

    no entanto, renunciar batina, o Padre, como era hbito seu, quando visitava os convalescentes, pousou a

    destra sobre a minha fronte e, aps breve orao, perguntou-me:

    Como est voc, meu filho?

    Um pouco melhor, Padre - respondi, sem disfarar o desalento.

    No, Incio - disse-me no dilogo que se seguiu entre ns -, est bem melhor que merecemos. Voc precisa

    recuperar o bom-humor. O trabalho nos espera. Quantos, na retaguarda, permanecem na expectativa de

    nossas mos! Seria justo esperar que os anjos descessem da Altura para socorr-los? Somos simples elos da

    cadeia evolutiva, Incio, voc sabe disto. O que encontramos depois da morte o que fizemos de ns. s vezes,

    como o nosso caso, o esprito trabalha muito o exterior e se esquece de trabalhar o interior.

    No sei Padre, se este o caso do senhor, mas com certeza o meu.

    Por favor, Incio, no me chame mais de Padre. Continuo tendo grande respeito pela Igreja, qual, sem

    dvida, a Humanidade deve, por sculos, a defesa dos postulados cristos, mas, agora, no lhe integro os

    quadros. O rtulo, Incio, um problema, mesmo o rtulo de esprita. A Verdade desconhece fronteiras e o

    Amor no se circunscreve. A rigor, religio na Terra ainda significa limites ao pensamento. O homem est to

    preso matria, que no consegue viver sem classificar as coisas.

    O senhor tem razo - redargi, sem saber ao certo a forma de trat-lo. A conveno um problema:

    enclausura-nos a mente de tal maneira, que nos impede de perceber tudo que nos foge capacidade de

    definio.

    Deixe-me mais vontade, Incio, e tambm no me trate de senhor, afinal de contas, voc est com aparncia

    mais velha do que eu. Chame-me de irmo ou simplesmente "Carmelita". Deste Outro Lado da Vida, o ttulo

    nada significa. Alis, o que escondemos atrs do convencionalismo humano inconfessvel. Irmo

    Carmelita - chamei-o assim, por fim -, pelo menos o Espiritismo no nos cria iluses, no ? As iluses que,

    porventura, temos, devemo-las a ns, voc no concorda?

    Sem dvida. Aqueles que conseguem verdadeiramente assimilar o esprito da Doutrina se libertam.

    Infelizmente, porm, a ignorncia ainda grassa nos meios espritas. Existem muito que se consideram espritos

    missionrios, mdiuns investidos de elevado mandato na Terra.

    Admito que, por vezes, eu tambm pensava assim: que eu era melhor que aquele senhor que, todos os

    domingos, passava defronte minha casa, de tero na mo, rumo Igreja de Santa Teresinha, ou que o sangue

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

  • 5

    esprita que me corria nas veias me conferia mais pureza ao corpo do que o sangue protestante ao corpo de

    um adepto de Lutero.

    Insanidade, Incio, insanidade.

    Perturbao, obsesso, insanidade.

    E que pode perdurar alm da morte e acompanhar o esprito em sua volta ao corpo, por sculos.

    No querendo, talvez, que eu me desgastasse, o Irmo Carmelita, antes de se retirar, concluiu:

    Voltaremos a tocar neste assunto depois, Incio. Vamos com calma. No nos esqueamos de que conosco

    somente h dois mil anos, o Evangelho est apenas comeando. Do ponto de vista espiritual, ainda nos

    situamos na Idade Mdia. As fogueiras da Inquisio no se apagaram totalmente. Os conflitos religiosos

    podero induzir o homem a uma guerra sem precedentes na Histria. O fanatismo loucura.

    Quando o Irmo Carmelita se retirou, aps servir-me ligeiro copo com gua os meus lbios ainda estavam

    muito ressequidos, fiquei pensando na importncia da f raciocinada. Fora do conhecimento que a Doutrina

    Esprita nos confere, a vida careceria de fundamento, pelo menos para mim. O Espiritismo nos alarga os

    horizontes mentais e nos predispe aceitao da Verdade, sem vincul-la exclusivamente a si. Todavia o

    Espiritismo estava apenas comeando, pois outras doutrinas filosficas, como o Hindusmo e o Islamismo, por

    exemplo, estavam h sculos trabalhando a mente humana. Assim mesmo, nos templos espritas, o estudo da

    Doutrina se mostrava escasso, prevalecendo mais prtica do mediunismo no intercmbio com as entidades

    espirituais de pequena elevao.

    Imerso nestas reflexes, adormeci - adormeci e sonhei que, em Paris, na Frana, eu era um dos aristocratas que

    se divertiam com o chamado fenmeno das mesas girantes. Sempre de cigarro preso aos lbios, em baforadas

    constantes e ricos anis nas mos, as quais espalmava sobre mesa circular, acompanhava atnito, a linguagem

    das pancadas que enumeravam, letra a letra, o alfabeto. Nem se comentava ainda de Allan Kardec, o gnio

    que, sob a inspirao do Mundo Superior, codificaria e apresentaria o Espiritismo ao mundo, dando-lhe foros

    de cincia. Curioso que, quando "O Livro dos Espritos" foi lanado, em 1857, os sales parisienses se

    esvaziaram: as entidades espirituais como que se retiraram, depois de concluda a tarefa de que vieram

    participar; no entanto o fruto de sua presena passou a ser ridicularizado pelos opositores da Nova Revelao.

    O mundo moral que se nos descortinou, desde os inusitados fenmenos de Hydesville, definitivamente no

    nos interessavam. Na Frana, o Prof. Rivail, que adotara o pseudnimo celta de Allan Kardec, era tido por

    muitos como um misantropo, um homem excessivamente solitrio e introvertido, ao qual muitos, inclusive eu,

    no deram crdito; contudo, maneira que se propagara o Cristianismo, emergindo das catacumbas, o

    espiritismo, superando as prprias expectativas de seu codificador, fazia adeptos em toda parte, mormente

    nas camadas sociais menos favorecidas e ns, pseudo-sbios de antanho e apreciadores do bom vinho francs,

    ignorvamos que estvamos vivenciando uma poca urea para a humanidade, fadada a modificar as nossas

    mais arraigadas concepes da verdade - da verdade, que sempre ns, os mortais, consideramos definitiva em

    nossos parcos conhecimentos.

    DILOGO FRANCO

    No outro dia pela manh, acordei um tanto mais disposto, sem que, contudo vontade de fumar tivesse me

    abandonado. Os amigos no estranhem se insisto no assunto, mas eu me sentia como se o meu corpo espiritual

    ainda reclamasse a presena da nicotina. Olhava para mim, apalpava-me, percebia o meu rosto refletido no

    espelho e tinha a impresso de que todos os meus rgos estavam intactos, dentro de mim. Tudo,

    evidentemente relativo, aos olhos dos homens encarnados, eu no passaria de um ser etreo, impondervel,

    mas aos meus prprios olhos, era ainda um ser humano, sem tirar nem pr.

    Estava tentando dar um jeito nos cabelos ou no que me havia sobrado deles, quando a figura simptica de

    Manoel Roberto adentrou o quarto.

    Como vai, doutor Incio? - cumprimentou-me com alegria, feliz por reencontrar-me. - Est se sentindo um

    pouco melhor?

    Respiro com um pouco de dificuldade, mas percebo que as minhas melhoras esto se acentuando - respondi,

    no contendo o mpeto de abra-lo. Nos ombros do querido companheiro de tantas refregas na terra, eu me

    permiti chorar pela primeira vez, extravasando toda aquela angstia represada. Chorei sem timidez alguma,

    com as lgrimas me saltando dos olhos, como se de repente, eu me sentisse de novo uma criana indefesa. As

    lgrimas costumam operar verdadeiros milagres: aps aquela incontida crise de pranto, eu me sentia um tanto

    mais aliviado; as lgrimas me haviam devolvido a certeza de que eu era um ser humano e no um anjo.

  • 6

    Tranqilize-se, doutor - disse-me o velho amigo, tentando me deixar menos constrangido. - Deste outro lado

    da vida, todos choramos, quando, em reconhecendo a grandeza de Deus, verificamos, sem necessidade de que

    algum nos diga algo, quanto deixamos de fazer no mundo. Choramos quando reencarnamos, choramos

    quando desencarnamos.

    Sim, gente, somos gente.

    E o que se faz por aqui?

    Quase o mesmo que se fazia na terra. Digamos doutor, que num prdio de muitos andares, estamos agora

    no andar imediatamente superior ao poro.

    No pude deixar de sorrir. Eu em verdade j supunha tudo aquilo, mas estava em busca de uma confirmao.

    Tambm, ainda no havia afastado de todo a suspeita de estar sendo vtima de uma alucinao. Tudo era

    possvel. Na condio de mdico psiquiatra, o que eu vira no me colocava em condies de desacreditar de

    nada.

    O que nos espera? - indaguei ao diligente amigo, que pacientemente, me esclarecia, enquanto me auxiliava

    a trocar de roupa, livrando-me daquela espcie de camisolo. Trabalho, trabalho constante e ininterrupto.

    Dando-me o brao, antes que eu desse seqncia s minhas indagaes ingnuas, Manoel Roberto me

    conduziu ao meu primeiro passeio no jardim daquela instituio que me abrigava.

    A gente pensa que de tanto lidar com doidos, acabou enlouquecendo junto, no ?

    Eu tambm passei por isto - respondeu o devotado enfermeiro-chefe do sanatrio esprita de Uberaba, que

    durante tantos anos, me auxiliara com extrema lealdade.

    Caminhando eu um tanto vacilante, percorremos alamedas floridas, e o ar, entrando em lufadas nos pulmes,

    parecia me renovar s foras. Sentamo-nos num banco prximo. Ou vocs, meros mortais, imaginariam que

    esprito no se senta, no come, no dorme? Talvez isto acontea nos andares superiores, mas no com quem

    acabou de sair do poro. Instintivamente, tornei a levar as mos aos bolsos, na esperana de, quem sabe,

    encontrar pelo menos um ltimo cigarro.

    Doutor, esquea - falou Manoel Roberto, que igualmente houvera sido um fumante inveterado.

    Mas o cigarro distrai o pensamento.

    Atrapalha o pensamento, isto sim. Alm de acumular toxinas no crebro, impede o esprito de ser mais

    prtico no aproveitamento do tempo.

    Ficando em silencio por instantes, notei que a paisagem em torno faiscava, como se tudo ali fosse mais

    brilhante, feito de certa matria diferente.

    Aproveite doutor, para fixar na mente s diferenas que o senhor vai observando. Em breve, no ter mais

    elementos de comparao. Tudo por aqui lhe ser to material, que, aos poucos, se esquecer da materialidade

    da vida no mundo. A gente vai perdendo a referncia. Logo nos integramos tanto nas coisas deste mundo, que

    uma espcie de amnsia, em relao existncia fsica que tivemos, vai aos acometendo: a terra passa a ser

    coisa do passado. Sabemos, evidentemente, que o planeta povoado e que deixamos por l muitos entes

    queridos, mas no temos cabea para conservar certos detalhes. Apenas os que se aproximam de uma nova

    encarnao e os que operam espiritualmente rente crosta conseguem se situar melhor. difcil de explicar

    isto. Existem espritos em nosso habitar que desconhecem completamente o que se passa l em baixo. No

    pensam em descer, pensam em subir.

    Enquanto falvamos, percebi que um vulto feminino se aproximava com andar elegante, por entre as flores.

    VELHOS AMIGOS

    Modesta! - exclamei ao ver a querida amiga de tanto tempo. - voc est to bem: mais jovem e elegante como

    sempre!

    Agradeo-lhe a generosa observao. Todavia procuro portar-me sempre com aparncia simples e natural,

    como convm na vida espiritual. Quanto s expresses de tratamento, voc faz bem em continuar suprimindo

    o dona. Deixo, porm, deciso dos demais irmos nossos tratar-me como melhor lhes convenha.

    Pensando bem - concordei com a respeitvel irm -, os ttulos que na Terra tanto significam, j, aqui, tm

    valor bem relativo ou mesmo nenhum. Afinal, a verdadeira superioridade moral e no social. Concorda?

    Sim, o convencionalismo uma priso. Realmente, valemos pelo que somos e no pelo que fomos. Voc no

    mais Diretor do Sanatrio. Esquea. Agora com eles, os que ficaram. No podemos tambm ficar presos,

    indefinidamente, a determinado compromisso.

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

  • 7

    Tenho me preocupado: no fiz o que devia ter feito, antes de desencarnar. Nos ltimos tempos, apegueime

    bastante ao cargo - confessei.

    Todos erramos, no ? A gente precisa lutar muito para que a parte humana no venha a sufocar a espiritual

    - confortou-me ela.

    Eu andava cansado, triste, deprimido. Vocs partiram todos e eu vivi muito. Mdicos novos, situaes novas,

    problemas novos.

    Faremos o possvel para auxili-lo - redargiu Dona Modesta. Alis, temos feito o possvel, no , Manoel?

    Sim, de quando em quando, aparecemos por l, no com a freqncia com que nos reclamam presena,

    mas aparecemos.

    At voc j apareceu, Incio, depois de morto.

    Como?! Eu no tenho nenhuma lembrana. Estou-me sentindo impossibilitado at de caminhar por aqui.

    Pois , com menos de um ms de desencarnado, ao que bem estamos sabendo, voc j estava dando

    comunicao. O pessoal andava saudoso de sua presena e, depois, todos o tm na conta de esprito elevado.

    No, isto no possvel! - comentei, esperando que os solcitos interlocutores me inteirassem melhor do

    assunto.

    E no foi mistificao, nem animismo - aparteou o companheiro, deixando-me mais curioso ainda.

    A mediunidade, Incio - explicou Dona Modesta -, possui nuances pouco estudadas pelos nossos irmos.

    Todavia como possvel um esprito dar comunicao sem o saber? - questionei estupefato.

    A inconscincia na mediunidade no um estado que diga respeito apenas aos mdiuns. Deste Outro Lado

    da Vida, muitos so conduzidos s casas espritas e falam sem prvio conhecimento da situao em que se

    encontram - alguns, inclusive, no possuem noo do prprio desenlace.

    Sei disto, no entanto o que houve no meu caso?

    Os amigos reunidos evocaram a sua presena.

    E eu compareci sem o saber?

    No, com voc no foi assim. A mente do mdium rastreou o seu psiquismo. s vezes, quando o esprito

    no vai ao mdium, o mdium pode ir ao esprito, Doutor - sintetizou Manoel Roberto.

    De certo modo, embora tivesse deixado o corpo, o seu psiquismo pairava no ambiente do Sanatrio.

    E o mdium conseguiu expressar com clareza o meu pensamento?

    Em linhas gerais, sim. Digamos que, no especfico, no.

    O que foi que eu falei?

    Fez algumas recomendaes evanglicas, agradeceu.

    S isto?

    Exatamente o que voc teria feito, no ?

    Depois de refletir por alguns segundos, respondi a questo formulada pela distinta amiga:

    Hoje, com certeza, eu teria dito um pouco mais.

    Manoel Roberto sorriu e perguntou:

    Adiantaria?

    E, se eu no mudei as coisas enquanto ainda estava por l...

    O problema, Incio, que ns achamos que o Evangelho est endereado aos outros e no a ns. Voc tem

    razo, Modesta - concordei. - Quando eu dava as minhas broncas pelos corredores do Sanatrio, deveria

    bronquear comigo mesmo: a responsabilidade maior era minha, mas os outros que eram relapsos e safados.

    Bem - disse o amigo que me levara a rpido passeio -, precisamos voltar; por hoje, voc j teve o suficiente.

    Aquele voc dito por Manoel Roberto, me soara algo desrespeitoso aos ouvidos - ele nunca me chamara assim.

    Naquele momento eu me senti descendo de vez da ctedra a que me habituara; aos poucos, a morte estava me

    nivelando. Percebendo a reao que eu, em vo, tentara disfarar, Dona Modesta esclareceu: Incio, tente

    esquecer o mais rpido possvel que voc foi doutor, que dirigiu o Sanatrio por mais de cinqenta anos, que

    o seu sobrenome - Ferreira - no tem qualquer significado por aqui e que o seu nome um simples sinal de

    identificao. Apoiando a destra no ombro de Manoel Roberto, disse envergonhado: Voc me perdoe meu

    irmo. Para mim, apesar de nossa grande amizade, voc continuava sendo meu subalterno.

    O exerccio me cansara. De fato, aquilo tudo estava sendo muito para mim, no entanto eu precisava me

    despojar das iluses que haviam sobrevindo morte do corpo. Conduzindo-me para dentro do quarto, o

    antigo auxiliar me acomodou na cama e saiu. Como eu estava me sentindo frgil! Como eu pudera imaginar

    que algum tipo de pompa me acompanharia alm da morte?! No fundo, quase todos acreditamos que teremos

    uma recepo diferenciada no Mais Alm. Permitam-me o trocadilho: teremos, sim, uma decepo

    diferenciada. Eu que havia sido sempre to rigoroso com os comunicados medinicos, combatendo com

  • 8

    veemncia o que rotulava de mistificao, agora nem dono dos meus pensamentos estava me sentindo. Onde

    encontrar uma escora que me preservasse do desequilbrio mental iminente? Comecei a comparar aquele meu

    estado ntimo com a situao psquica dos doentes que tratara, sem que, no entanto, estivesse com o

    diagnstico correto de seus problemas. Imvel no leito, praticamente consumido pelos pensamentos que me

    esfogueavam o crebro, eu s enxerguei salvao no Amor. Era simples: eu precisava amar abrir o corao,

    submeter-me verdade, estar disposto a recomear. O amor me garantiria a paz e me induziria, sem conflitos,

    aceitao de tudo. Adormeci e, pela primeira vez, depois de muitos e muitos anos, adormeci tranqilo.

    ODILON E ALCEU

    Quando despertei, o Sol brilhava l fora e os pssaros cantavam no arvoredo. Eu no lhes saberia explicar a

    sobrevivncia do princpio espiritual que habita o corpo dos pssaros e dos animais em geral. O certo, porm,

    que a dimenso espiritual onde me encontrava no era destituda da presena deles. Algumas espcies de

    pssaros, animais e plantas eram extremamente parecidas com as da Terra; apenas no observei na colnia

    que me acolhera, aps a morte do corpo, a existncia de rpteis e insetos.

    As moscas, que tanto me atormentavam em meus achaques de velho (eu dizia aos amigos que acendia um

    cigarro atrs do outro com o propsito de espant-las), no existiam por ali. Posteriormente, eu haveria de

    encontr-las nas regies espirituais das camadas concntricas mais prximas do orbe. Retomando o

    pensamento que me embalara o sono na noite anterior, eu me sentia mais encorajado. Do ponto de vista

    intelectual e moral, eu estava me sentindo uma nulidade; olhando para dentro de mim, quase nada encontrava

    que me desse sustentao. A iluso que criamos e que os outros nos ajudam a alimentar a respeito de ns

    mesmos uma coisa pavorosa! Eu, infelizmente, acabei acreditando que era um psiquiatra famoso, autor de

    muitas obras, polemista destemido e sem papas na lngua, que estimava criticar a Igreja e seus sacerdotes. De

    repente, passou-me pela cabea, de relance, como que querendo ficar comigo, o pensamento de que se eu, o grande Incio estava me vendo naquela situao, como no deveriam estar se arranjando os padres, depois da

    morte. Confesso-lhes que no pude conter certo sorriso em meus lbios; no entanto procurei depressa

    afugentar aquelas idias: a minha paz no poderia se alicerar na infelicidade alheia; eu estava numa situao

    de precariedade, para me vangloriar do que quer que fosse. Decepcionado, pois, afinal de contas, as estradas

    do Mundo Espiritual no se abriram para mim, conduzindo-me s estrelas, conforme quase todo esprita

    espera e acha que merece, conclu que, de fato, eu deveria me submeter realidade e aceitar que eu no passava

    de um homem comum. Este, sem dvida, um dos maiores problemas que enfrentamos no Alm-Tmulo:

    convencermo-nos, convencermo-nos sinceramente de que nada somos. Imerso em semelhantes reflexes, notei

    quando a porta do quarto se descerrou e dois antigos companheiros de labuta doutrinria na Terra o

    adentraram.

    Alceu e Odilon! - exclamei, comovido.

    Ambos haviam feito parte do pequeno grupo que me amparou nos meus instantes derradeiros no corpo, mas

    naquele estado de semi-transe agnico, no pude fixar o semblante de todos.

    Incio - disse Alceu, adiantando-se e me ofertando o aconchego de um abrao fraterno -, vejo que voc est

    bem melhor!

    Sim - confirmou Odilon, descontraindo-se.

    No est nada mais se parecendo com um defunto.

    Estou me sentindo mais forte - aduzi, quando pude controlar o embargo na voz. - que apenas as pernas

    esto um pouco fracas.

    Onde esto as suas asas? - caoou Alceu, revelando a velha habilidade de articulista irnico.

    Ainda vo crescer - respondi, olhando para os meus prprios ombros com um muxoxo.

    Por enquanto, no passamos de simples lagartas, no Doutor? - acudiu Odilon, com elegncia. Deixando

    a brincadeira de lado - observou Alceu, na conversa que se desdobrou por alguns minutos -, ainda vamos ter

    que comer muita folha de amoreira para nos transfigurarmos em falenas.

    Eu que o diga!

    Gente, no vamos filosofar agora. A vida est a, radiante e bela, e o trabalho nos espera - o trabalho de nossa

    prpria edificao ntima! Que aventura fantstica! Quanto a descobrirmos em ns mesmos! O que o

    sofrimento, seno um instante fugaz, diante do que nos espera na imensidade?! Nada, nada pode nos afetar,

    principalmente a morte, que, em verdade, a mais preciosa colaboradora da vida. Se no morrssemos, no

    sairamos do lugar. A morte nos arranca do comodismo mental.

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

  • 9

    Quando comeamos a criar o limo, a morte nos faz rolar ladeira abaixo, esmerilando-nos as arestas. Voc

    um otimista incorrigvel, Odilon - comentei mais animado.

    O entusiasmo uma fora contagiante.

    O Odilon sempre o mesmo, Incio: nada o abala. Tenho conversado com ele sobre os meus problemas,

    aqueles que voc j conhece do seu consultrio de analista.

    Alceu, em essncia, as nossas imperfeies espirituais tm uma nica causa: a nossa prpria ignorncia

    quanto capacidade de super-las. As nossas mazelas se rotulam com nomes diferentes, mas, em verdade,

    qualquer inclinao infeliz da personalidade originasse-nos da mesma fonte. Quem conta uma mentira,

    prejudicando algum, to culpado quanto aquele que silencia a verdade.

    Calma, Odilon - retruquei, no resistindo -, que esta profisso o meu ganha-po. Voc, que era dentista no

    mundo, agora virou psiquiatra?

    Sorrimos os trs juntos, embora o semblante de Alceu no escondesse a preocupao com, digamos, os seus

    equvocos de interpretao.

    Quem somos para dizermos que os outros cometem erros? Qual o elemento aferidor que utilizamos para

    tanto, sendo que no conseguimos aplic-los em ns? Mas, diga-me, Doutor, disse Odilon, com o propsito de

    mudar o rumo da conversa - quais as notcias da Terra? O senhor deve ter muitas novidades, no?

    Que nada! - respondi, olvidando a minha condio de desencarnado (no pensem vocs que seja fcil

    aprender a pensar na condio de morto; at a gente se acostumar com a idia de que morreu.), em minha

    opinio, vai de mal a pior: polticos corruptos, autoridades omissas, religiosos interesseiros. O mundo est se

    transformando numa grande sinagoga - o Senhor, desta vez, vai ter mais trabalho para expulsar os vendilhes

    do templo.

    Ora, Doutor! Eu estou falando srio. E os nossos irmos espritas?

    Alguns poucos - pouqussimos - fazendo pela maioria. Voc sabe: somos egressos da Igreja; a idia de Cu

    fcil ainda est na nossa cabea. Estamos Odilon, copiando os cristos at nos conflitos que acabaram

    deturpando o Cristianismo. Enquanto os adversrios da Doutrina brigam com a gente, estamos unidos, mas

    quando param de implicar conosco, arranjamos confuso interna. centro esprita contra centro esprita,

    mdium contra mdium. Se os nossos opositores descobrirem que a melhor ttica a de nos deixarem livres

    deles, teremos problemas.

    E o Sanatrio?

    Estou com receio que termine fechando as portas. E terei culpa nisto. O Sanatrio passou a respirar com os

    meus pulmes e eu fiquei velho. Fiquei velho, sem perceber e sem admitir que tinha ficado. Eu era o dono,

    sem nunca ter sido. Impunha a minha vontade e no respeitava decises de Diretoria.

    Mas o Sanatrio sempre foi voc, Incio. - aparteou Alceu, com o propsito de aliviar-me.

    Agora reconheo que no deveria ter sido assim. Eu fazia questo que as pessoas confundissem a imagem

    do Sanatrio com a minha vaidade. Medo de perder o que me garantia a subsistncia. No fundo, simples

    ambio de poder. Nos ltimos dias, estirado aqui nesta cama, tenho, inclusive, repensado a palavra idealismo.

    O senhor tem razo quanto ao idealismo, doutor. De fato. - ia dizendo Odilon, a quem interrompi. Meu

    caro, lembrando a observao da Modesta, j no se justifica voc continuar me tratando por Doutor e senhor,

    no acha?

    Bem, Doutor. Quero dizer Incio. - sorriu um tanto embaraado. Na verdade, eu sempre quis ser mais ntimo

    de voc.

    Agora, ento, vamos nos entender melhor, sem tal barreira das chamadas convenes humanas, no ?

    QUESTIONANDO O IDEAL

    Neste aspecto do idealismo, voc tem razo, Incio - continuou Odilon. - Vez por outra, carecemos mesmo

    de repensar o ideal. A falta de vigilncia, o tempo todo, permite que quando no estamos de prontido, os

    nossos hbitos condenveis do passado se nos infiltrem na personalidade. Desalojar o homem velho de seu

    habitai milenar no tarefa simples.

    Por vezes - continuei -, eu me levantava, com o propsito de chegar ao Sanatrio pela manh e mudar tudo;

    no entanto, no percurso que cumpria da minha casa at l, eu j me esquecia. Raciocinando com estranhas

    idias, que com certeza, me eram inspiradas pelas Trevas, retrocedia em meus propsitos de renovao e de

    descentralizao do poder. Se os outros no eram melhores do que eu, haveriam de fazer pior; na minha

    PaulaSublinhado

  • 10

    concepo, eles estavam simplesmente querendo me colocar para correr e eu os fazia correr antes. Por favor,

    vocs, os amigos que se derem o trabalho de ler estas minhas singelas anotaes, em benefcio de vocs

    mesmos, no discordem de mim; deixem-me com as minhas reflexes. O que aqui estou colocando no papel

    a minha confisso autntica - confisso esta que, um dia, cada um de vocs sentir necessidade de fazer.

    Sabe Incio - ponderou Alceu -, ouvindo-o em seu depoimento espontneo, eu no me sinto encorajado a

    nada dizer. Consultando a conscincia, esprita convicto que fui e sou, percebo que nada fiz e nada tenho feito

    pela Causa que abraamos. Espiritismo, para mim, apesar das perseguies que soframos, era apenas uma

    ocupao intelectual - inspirao para os meus artigos e palestras. Faltou-me tambm idealismo. Servir com

    desinteresse - aparteou Odilon - um desafio. Estou, evidentemente, me referindo aos interesses que

    poderamos traduzir por uma segunda inteno revelada e no do sublime interesse que objetiva to-somente

    o bem do prximo. Ningum se movimenta sem um anseio. O ideal um interesse de ordem mais elevada;

    exclui todo sentimento de egosmo. O homem idealista capaz de se sacrificar, mas o interesseiro, no.

    Nesta altura, digamos, de nossa terapia em grupo, chegou Antnio Logogrifo, humilde e abnegado

    companheiro de nossas lides doutrinrias. Ao v-lo caminhando com desembarao, perguntei:

    Onde est bengala, Logogrifo?

    Deixei-a, Doutor - respondeu sem se afetar. - Continuo claudicando, mas o problema agora j no nas

    pernas.

    Mais um. - disse, olhando significativamente para Alceu e Odilon Fernandes. Ante

    os amigos a sorrirem, Logogrifo indagou:

    Mais um o qu?

    Mais um com problemas existenciais, drama de conscincia, remorso, frustrao; enfim, mais um com essa

    gama toda de aflies que por aqui, deste Outro Lado da Vida, parecem se generalizar.

    E no h jeito de ser diferente, Doutor. Conhecendo o que conhecemos l embaixo e no termos feito nada.

    Perdemos uma chance de ouro. Bem que os espritos nos alertavam.

    Por falar em espritos - questionei, virando-me para Odilon -, mesmo! Por onde andam eles? Ainda no

    estive com nenhum dos que se comunicavam conosco nas sesses do Sanatrio.

    Esto cuidando da vida - respondeu-me o companheiro, que havia sido o melhor doutrinador que eu j vira

    atuar numa sesso de desobsesso. - Com exceo dos nossos Mentores, com os quais, oportunamente, voc

    se avistar, esto todos eles trilhando os seus caminhos. Alguns subiram, alguns desceram, alguns se

    distanciaram.

    E ns, por que estamos juntos? - insisti.

    porque ainda temos algo nos esperando o esforo conjunto. Mas no se iluda: na hora aprazada seguiremos

    caminho. Iremos nos apartar?

    Sim e no. Espiritualmente, no ideal que nos entrelaa e ao qual temos procurado responder, no nos

    separaremos; porm, do ponto de vista fsico...

    Do ponto de vista fsico?

    Sim, meu caro, do ponto de vista fsico ou geogrfico, ou, se voc preferir, de espao e de tempo. Mas voc

    no se preocupe, porque no nos perderemos. O Excelso Senhor sempre nos permitir respirar no clima de

    algumas de nossas afeies. Nunca estaremos completamente a ss. No entanto - observou Odilon -,

    escutemos o que Logogrifo ter para nos dizer ainda.

    O corpo espiritual pesado. Eu podia sentir quanto ele me oprimia o esprito: para transmitir um simples

    passe em um doente, tinha que arrast-lo de um bairro a outro, sempre mancando de uma perna. Um sono

    irresistvel me impedia de trabalhar mais e a viso prejudicada por catarata no me deixava ler.

    Permita-me, Logogrifo, acrescentar a questo da alimentao - observou Alceu, ainda demonstrando certa

    obesidade. - O habito alimentar chega a ser fator determinante para a lucidez do esprito. Ingerimos tantas

    toxinas, que vivemos de crebro obnubilado.

    No seu caso, Alceu - glosei o amigo a quem conhecia de sobejo -, alguns quilos a mais impediram que voc

    se tornasse um homem mais vaidoso. Voc se lembra? Cabelos e bigodes bem aparados, sempre trajando terno

    e gravata, perfumes caros, passos firmes.

    Sem dvida, voc tem razo. Tivesse sido eu um homem de melhor silhueta, provvel que nem esprita

    seria - um refinado solteiro, dono de colgio.

    Sorrimos e Logogrifo prosseguiu:

    E a cor da minha pele? Os senhores acham que no me incomodava ser negro? Acham que eu no notava

    certo preconceito seu, com relao a mim?

    O devotado mdium curador tocara num ponto crucial.

    PaulaSublinhado

  • 11

    Afinal de contas, qual a cor de Deus? Se Deus no tem cor, nome, sexo ou qualquer outro tipo de

    diferenciao, quem teria sido o primeiro a eleger a raa branca como superior s demais? Preciso dizer a vocs

    que, ainda hoje, eu no saberia definir a cor dos espritos - h espritos de todas as cores possveis e imaginveis,

    espritos das mais diversas tonalidades de cores; olhando para mim e procurando algum ponto de referncia,

    do ponto de vista da cor, eu no me defino: no sei se sou branco, se sou negro, se sou vermelho, se sou amarelo

    ou ainda incolor. Estou mais para incolor, plido como sempre fui.

    Logogrifo, j que voc tocou no assunto, preciso confessar uma coisa que no me sai da cabea - encorajeime

    a dizer. - Certa tarde de sol causticante, descendo por uma rua muito empoeirada, eu avistei voc, que vinha

    claudicando com a sua bengala e, segundo deduzo, suando as bicas por baixo daquele palet que voc no

    tirava. Temendo ter que lhe dar carona desacelerei o carro, esperei voc dobrar uma esquina e depois continuei.

    Fiquei com remorso; aquilo me atormentou o resto do dia, mas, infelizmente, agi assim. Peo que voc me

    perdoe ignorncia, j que estamos aqui nos penitenciando.

    Ora, Incio -, veio Odilon em meu socorro -, do que fazemos de errado no mundo, isto o de menos.

    Melhorando no imaginem os amigos que eu esteja exagerando, quando me refiro s avaliaes que efetuamos

    de ns na Vida Maior. Muitos, ante o remorso que nos pesa na conscincia, costumamos sair procura

    daqueles aos quais algo ficamos devendo, para pedir-lhes que nos desculpem e que nos favoream com a

    oportunidade do reajuste. claro que estou me referindo aos que, de certa forma, j nos encontramos

    esclarecidos, pois, nas regies espirituais mais densas, ainda predominam o ressentimento e o desejo de

    vingana. Mais tarde, eu teria a chance de mediar muitos encontros entre vtimas e verdugos, entre familiares

    que haviam se desentendido no mundo, cnjuges que desertaram dos compromissos afetivos, irmos que se

    tornaram inimigos por questes de herana. Enquanto no reparamos o erro, a conscincia no nos libera para

    seguirmos adiante. Algo que no sei explicar nos imanta ao passado. No h quem tenha se equivocado que,

    por aqui, no se sinta preso ao campo terrestre. Muitos dos encontros referidos que intermediei

    reaproximaram espritos distantes que, ento, traaram planos para novas incurses evolutivas no corpo

    material.

    Os dias passavam com rapidez e, com as minhas melhoras se acentuando, j conseguia sair sozinho do quarto

    e caminhar pelos extensos e arejados corredores da instituio hospitalar que me abrigava. Meu Deus, como

    so insondveis os vossos desgnios! - exclamava, em silncio, tentando colocar as idias em ordem. Eu estava

    ali, convalescente, feio de um dos muitos pacientes que tratara no Sanatrio; vitima de uma loucura

    pacifica, percebia que entre mim e os meus ex-pacientes no existia grande diferena. A minha sensao de

    impotncia era tamanha, que eu me sentia cada vez menor. De fato, eu precisava, o mais depressa possvel,

    esquecer o que havia sido. Enquanto guardasse excessiva lembrana de mim, a depresso no me deixaria.

    No entanto, sem que eu pudesse precisar de onde vieram, pensamentos de reverncia pela vida comearam a

    desabrochar em mim. Uma onda de novos sentimentos, a pouco e pouco, foi tomando conta do meu ser. Eu

    estava pensando apenas com a Verdade, deixando o Amor fora de minhas cogitaes. Sim, eu era importante

    e portador da Chama Divina; no era importante pelo que havia sido, mas pelas possibilidades infinitas do

    que deveria ser. Deus tinha projetos especialssimos para mim. Onde eu me encontrava, naquele exato

    momento, era o ponto central do Universo. O que existia de errado estava dentro de mim e no fora. Onde

    que eu estava colocando a minha capacidade de amar e de ser til? Eu carecia de retomar o trabalho. Lembrei-

    me de Andr Luiz, de suas narrativas em "Nosso Lar", quando, aps certo perodo de refazimento nas regies

    mais prximas da Crosta, o ex-cientista desencarnado, experimentando incontida necessidade de servir, no

    hesita em recomear limpando vmitos no Alm, simples servial, candidato a enfermeiro. Olhando ao meu

    redor, no tive dificuldades para localizar uma vassoura que parecia minha espera. Sem pedir permisso

    para ningum (creio, inclusive, que semelhante ordem no me seria dada), tomei-a e segui na direo de

    extenso ptio e comecei a varrer folhas e flores que haviam cado. Fiquei feliz: eu estava recomeando como

    gari! Quantas vezes, observando os homens da limpeza pblica no mundo, eu cheguei a invej-los na tarefa

    que executavam com esmero!

    Devagar, varri todo o trecho que me propusera limpar, naquele meu primeiro dia de trabalho. Eu estava

    cansado e com fome. Indo para dentro do quarto, em l chegando, encontrei minha disposio pequena

    bandeja. Ao invs da taa de vinho do Porto e do po com azeite e atum gratinado, um copo de refresco

    energizante, de sabor indefinido, algumas pequenas bolachas semelhantes a hstias, que desapareciam em

    contato com a saliva, e duas drgeas de elementos florais que, segundo me disseram, cooperariam na

    desintoxicao do organismo espiritual. Digo-lhes que, aos poucos, eu me esqueceria da necessidade de comer.

    proporo que as minhas ocupaes intelectuais aumentavam, a fome diminua. Vrias vezes recordei-me

    do que dissera Jesus, quando afirmou que o seu alimento era fazer a vontade do Pai. Ao final da tarde, recebi

    a visita de um dos mdicos da instituio, que me informou que eu j estava apto para ter alta.

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

  • 12

    No outro dia, de manh, eu poderia me sentir liberado.

    Arrumarei as minhas coisas e partirei - disse-lhe, sem muita noo do que dissera.

    Que coisas? - perguntou-me ele, sorrindo. Meio

    sem jeito, retruquei:

    O senhor tem razo. Voc

    tem para onde ir?

    Tenho alguns amigos, mas tambm no sei se eles tm casa. Por aqui, nada propriedade de ningum - falei

    bem humorado.

    No bem assim. Tudo, de fato, nos pertence, mas temos aqueles que nos dirigem. Aqui impera o socialismo.

    Impera a solidariedade, mas...

    Mas?!

    Temos alguns focos de resistncia. O interesse pessoal tambm sobrevive morte do corpo.

    Vou precisar trabalhar - comentei tmido, qual se fosse um profissional recm-formado, com o diploma

    debaixo do brao.

    Trabalho o que no falta - respondeu. - Analisando a sua ficha, vejo que voc tem alguma experincia.

    Se eu pudesse ficar at definir melhor a situao.

    Est bem. No h problema, desde que no pense em salrio no final do ms.

    Nunca fui muito de gastar.

    Com um leve tapinha em meu ombro, o mdico se despediu, dizendo:

    Amanh, pela manh, voc me procure. Temos muita gente internada nos pavilhes. Voc comear por l.

    Quando ele saiu, deliberei tomar uma chuveirada. Ou vocs tambm acham que, deste Outro Lado da Vida, a

    gua perde uma de suas principais funes? Debaixo da ducha fria, quase gelada, notei que a gua possua

    certas propriedades eltricas que me refaziam as foras.

    No outro dia, mais bem disposto e otimista, sem nenhum padrinho para me advogar a causa, apresentei-me

    no gabinete do colega que estava minha espera.

    Voc dormiu exatamente sete horas, quarenta e dois minutos e trinta e oito segundos. - foi o que ele me disse

    em saudao, apontando-me uma poltrona aveludada e convidando-me a sentar. - E, pelo que estou sabendo

    nos seus ltimos tempos na Terra, eram constantes as suas queixas de insnia.

    Estou sem relgio - ironizei, procurando corresponder fraterna provocao.

    Quem dorme, fica fora da vida. - prosseguiu o jovem e annimo doutor.

    Vou tentar dormir menos esta noite.

    No precisamos, a rigor, mais que de alguns minutos de refazimento.

    Mas a noite foi feita para dormir.

    Que noite?!

    NOS PAVILHES

    O devotado mdico, por quem eu haveria de criar particular afeio, conduziu-me aos pavilhes e explicou:

    Temos aqui, Incio, dezenas de irmos em processo de refazimento: dormem, acordam, tornam a dormir. A

    maioria foi resgatada pelas nossas equipes socorristas que operam nas regies das sombras; quase todos so

    candidatos a breve renascimento no corpo, todavia carecem de ter, tanto quanto possvel, as suas condies

    melhoradas. O dilogo a terapia mais indicada. O dilogo que nos conduza retomada de ns mesmos.

    Desencarnaram sem maior preocupao com as realidades da vida alm da morte.

    Permita-me uma indagao - falei, ouvindo-o empregar terminologia esprita. - O senhor adepto do

    Espiritismo?

    Pare agora de me tratar por senhor, Incio. Somos irmos, e voc est de aparncia mais acabada do que a

    minha. Por que a pergunta?

    Voc se referiu desencarnao, logo.

    Isto no tem importncia alguma. Eu poderia empregar os termos desvinculao, liberao. No, no sou

    esprita, nem catlico, nem budista. No gosto de rotulagens. Acredito em Deus e procuro servi-Lo. A verdade

    universal. A confuso do mundo gira em torno de religio. Prefiro ficar com as palavras de Jesus, sem vnculo

    religioso de qualquer espcie. Os meus pais eram protestantes. Respeito memria deles, mas, quando

    comecei a estudar Medicina, j se falava na histria da ressurreio, do juzo final. Deixemos este assunto para

    PaulaSublinhado

  • 13

    l. Creio que tudo possvel: a mente humana que cria a iluso ou a realidade. Entendo que o Espiritismo

    uma das escolas mais avanadas, em termos de espiritualidade na Terra, mas...

    No leve a mal a minha pergunta - ponderei, verificando que no perdera a mania de fazer proslitos para

    a Doutrina.

    No se preocupe Incio. Foi bom tocarmos no assunto. Lidando com os irmos que se encontram nos

    pavilhes, voc verificar o estrago que a religio causou na mente deles. A vida depois da morte no deve ser

    um assunto apenas pertinente f. Eu no sei se o esprito leva mais tempo para deixar de ser incrdulo ou se

    para se corrigir das distores do fanatismo religioso. No existe religio superior Verdade e ao Amor.

    Precisando sair, o novo amigo que encontrara me disse:

    Ao p de cada leito, voc encontrar uma ficha que resume os dados do paciente. Alguns so portadores de

    graves leses no corpo espiritual e devero, no momento oportuno, se submeter s cirurgias reparadoras.

    Cirurgia no perisprito?

    Como no? O corpo espiritual um organismo vivo. claro que a mente base de tudo, inclusive da sade

    fsica, porm, enquanto no aprendemos o seu domnio. O que uma simples drgea, meu caro, seno energia

    condensada em forma de medicamento? Os elementos qumicos que constituem o corpo material so os

    mesmos que entram na constituio do corpo espiritual. Vocs, espritas, por exemplo, no se utilizam da

    tcnica do passe, que uma transformao de energia, com o propsito de atuar em nvel perispiritual? Deus

    mora na intimidade das clulas, tanto quanto se faz presente no tomo e ambos, tomo e clula, uma

    representao microscpica do Universo. Voc j notou?

    Eu estava impressionado. Com poucas palavras, o companheiro entrelaara cincias quase inconciliveis no

    mundo! A Qumica com a Fsica, a Fsica com a Filosofia, misturando o concreto com o abstrato. Bem, preciso

    ir - anunciou, deixando-me na entrada de um dos pavilhes.

    Ao ver aquelas camas enfileiradas - mais de quarenta s naquele pavilho -, monologuei em voz alta:

    Meu Deus! Vai comear tudo de novo.

    Homens e mulheres, jovens e velhos, ali se encontravam acamados, cuidados por um sem-nmero de

    atenciosos enfermeiros. Suave musica ambiente, uma valsa de Strauss, tocada naquele momento, impregnava

    o recinto de tranqilidade. Eu nunca conseguira fazer com que a terapia da msica funcionasse no Sanatrio

    e nem que imperasse nos quartos a limpeza que observava ali.

    De inicio, percorri em silncio o pavilho, observando atentamente os pacientes. Vrios me pareciam em sono

    profundo; outros, de olhos arregalados, fitavam um ponto qualquer no teto. Vi diverso com feridas abertas no

    perisprito. Um deles, o que me pareceu o pior, tinha uma chaga na tmpora - provavelmente, havia cometido

    suicdio.

    Parando prximo ao leito de um senhor que apresentava uns setenta de idade, li a prancheta: "Deixou o corpo

    h mais de quinze anos; formao catlica; recusa-se a aceitar que no esteja no Cu; apresenta crises de

    demncia no definidas. Data de internao .

    A ficha do paciente informava que ele estava internado na instituio havia dois anos, sem apresentar quase

    nenhuma melhora.

    Aproximei-me da cabeceira do leito e chamei-o pelo nome:

    Lus! Lus! Acorde. Voc precisa despertar - insisti, pousando a destra espalmada sobre o seu trax.

    No perca mais tempo, meu irmo. Onde que voc est? Onde que voc vive? Onde voc se refugiou?

    Assustando-me, aquele senhor abriu os olhos e me segurou pelo jaleco, dizendo:

    Finalmente, finalmente um sacerdote para dar-me a extrema-uno! Absolva-me, padre, dos meus pecados.

    Eu quero ir para o Cu. Outro tipo de vida depois da morte, no me interessa. J tentaram me dizer o contrrio.

    Mentiram para mim. Isto deve ser um pesadelo: Eu, morto h mais de quinze anos?! Mentira!

    Ser confundido com um padre era tudo o que eu no queria, apesar da semelhana entre as nossas profisses

    - um consultrio psiquitrico e um confessionrio diferem muito pouco.

    Acalme-se, Lus - falei, tentando esclarecer. Eu no sou um Padre; sou apenas um irmo interessado em

    socorr-lo.

    Eu no preciso de mdico; eu no estou louco! Eu quero um Padre. Onde puseram o meu tero? Reze

    comigo uma ave-maria.

    Confesso-lhes que eu no poderia satisfaz-lo, ainda que fosse um simples pai-nosso. Eu no era um homem

    de orao - ainda mais orar em voz alta. Eu sempre entendi a prece como sendo uma elevao espontnea do

    pensamento, que dispensasse as palavras.

  • 14

    Meu irmo, retome a lucidez. Qual o motivo de tanto apavoramento? Por que o receio da morte? Voc

    precisa enfrentar a realidade. Se Aceite como . Deus no um Pai vingativo.

    Estava eu ali falando de Deus com um paciente psiquitrico. Intil a divergncia entre a Psicanlise e a

    Religio; F e Cincia se misturariam sempre. Eu no tinha teorias mdicas que pudessem valer-me naquele

    instante. Aquele homem no queria um diagnstico - ele queria a cura! Eu poderia mudar de nomenclatura,

    mas, no fundo, seria a mesma linguagem.

    Realidade? - questionou Lus, com olhos que me fitavam, mas no me viam. - De que realidade voc esta

    falando? Da sua, no ? E a minha como fica?

    OUTRAS EXPERINCIAS

    O senhor que deixara o corpo, iludido quanto ao que o esperava alm da morte, crendo na possibilidade de

    fcil acesso a regies celestiais, voltara a dormir. Em vo, chamei-o, na tentativa de traz-lo conscincia. Com

    certeza, Lus haveria de permanecer naquele estado ainda por longo tempo. Onde se refugiara ele? Naquele

    instante, no pude deixar de experimentar certo desalento, semelhante ao que me acometia quando, no

    Sanatrio, recebia de volta no outro dia, o paciente que tivera alta. O trabalho de reconstruo intima precioso,

    mas as recadas acontecem com facilidade; enquanto no nos distanciarmos o suficiente do mal, estaremos

    merc de sua influncia. Quase ningum estava disposto a cooperar na recuperao do doente mental,

    principalmente os seus familiares, que no raro, por comodismo e indiferena, preferiam esquec-los nos

    hospitais psiquitricos. Lembro-me que por vezes, eu precisava acionar a polcia para que os responsveis

    pelos pacientes com alta fossem busc-los. No outro dia pela manh, chegavam com os doentes de volta,

    proferindo improprios e acusaes.

    Dei mais alguns passos adiante e me deparei com um enfermo que revelava certa lucidez; embora imvel,

    notei que o seu olhar no se perdia no vazio. Aproximei-me e pude ler no seu pronturio: "Antnio Jos;

    desencarnou h mais de quatro anos; esprita convicto; apresenta graves dramas de conscincia".

    Antnio Jos, eu sou Incio, seu irmo - apresentei-me. - Estou aqui para lhe ser til. Tambm sou esprita.

    Virando-se para mim lentamente, o confrade recolhido naquela ala do grande hospital, constitudo de vrios

    pavimentes, falou com dificuldade:

    Tenho a impresso de que o conheo. O senhor j esteve aqui?

    No - respondi -, este est sendo meu primeiro dia de trabalho. Talvez voc me conhea de alguma fotografia.

    Por qu? O senhor era to importante assim?

    Percebendo que, na nsia de auxiliar cometera um despropsito, tentei consertar:

    No quis dizer isto. Os delinqentes tambm so muito fotografados.

    Como o senhor disse mesmo que se chama? - interrogou, buscando clarear a memria. Incio.

    Incio de qu?

    J tive o meu sobrenome cassado por aqui - brinquei, querendo ganhar-lhe a confiana -, mas era um

    sobrenome comum: Ferreira.

    Ferreira, Incio. O senhor, porventura, ser o famoso Doutor Incio Ferreira?

    O Espiritismo que me deu fama, no a Medicina.

    O senhor no se recorda de mim? - indagou, mais vontade. - Eu morava na regio de Uberaba.

    (Compreendam os caros leitores que, por questes bvias, omiti a verdadeira identidade do nosso

    personagem).

    Voc me desculpe, mas lidar com tanta gente e depois, eu era desorganizado; o meu fichrio era o retrato da

    desordem.

    Ouvi muito falar do seu hospital e ansiava por uma consulta. Tive problemas srios.

    Ganhando coragem, o amigo continuou:

    Fui esprita e mdium - mdium curador. Abri um centro em minha casa e comecei a receber os doentes.

    Possua um exemplar de "O Evangelho Segundo o Espiritismo" e outro de "O Livro dos Espritos", mas nunca

    os lia. Eu tinha - permita-me dizer - uma mediunidade fantstica: enxergava e escutava os espritos com

    extrema naturalidade. Dinheiro no me tentava, mas mulheres. O senhor pode adivinhar o que houve, no ?

    O assdio era muito grande. Solteiro e relativamente jovem, no consegui me conter. As entidades espirituais

    que me assessoravam tentaram me alertar, mas no lhes dei ouvidos - o senhor sabe: esprito no tem corpo

    de carne. Acabei me envolvendo com uma mulher casada, esposa de um rico fazendeiro de Gois. Ele

    descobriu e mandou dois capangas no meu encalo.

    PaulaSublinhado

  • 15

    Neste trecho da narrativa, o companheiro teve uma crise de vmito que precisei acudir. Ele expelia uma

    substncia escura que - pasmem! - parecia ter um movimento prprio. Mais tarde, vim, a saber, tratar-se de

    matria mental elaborada por ele mesmo que se lhe alojava no estmago. Ele vomitava o seu arrependimento!

    Algo refeito da crise que o acometera, Antnio Jos prosseguiu:

    Era madrugada e bateram porta de casa. Pensando tratar-se de algum necessitado fora de hora, fui atender.

    Todos sabiam que eu morava sozinho, num bairro afastado de pequena cidade do interior de So Paulo. Eles

    me espancaram, me amordaaram e me castraram!

    Agora, quem estava para ter uma crise de vmito era eu. Puxei um banco prximo e procurei relaxar. Um dos

    enfermeiros que serviam no pavilho, reparando o mal sbito de que eu fora vtima, trouxe-me um copo com

    gua gelada - gua ultra natural que tomei como quem estivesse tomando um copo de vitalidade, de princpio

    vital liquefeito - digamos assim.

    No se preocupe - esclareceu-me o atendente. - Os primeiros dias de pavilho so difceis. Depois, ao que

    estamos informados, voc est retomando o trabalho relativamente depressa.

    Agradeci e fiz fora para me recuperar. Eu estava envergonhado.

    Pode prosseguir - voltei ao paciente, o qual, naquela situao, eu no sabia se era eu ou se era ele.

    Se o senhor preferir, continuaremos mais tarde - redargiu preocupado com meu abatimento.

    No, no. Continue.

    Castraram-me e jogaram sal grosso nos testculos dilacerados. Urrei de dor feito um animal ferido. Berra

    porco! Berra! - gritava um deles aos meus ouvidos, exibindo o meu rgo genital nas mos. Agora voc ser

    uma mocinha troava o outro, com o faco sujo de sangue encostado na minha garganta.

    Efetuando pequena pausa, o infeliz prosseguiu:

    No pude ver mais nada. Desmaiei. A dor, no entanto, no me deixou ficar muito tempo naquele estado.

    Antes que o dia amanhecesse, sa de casa correndo. Peguei um dinheiro que tinha guardado e fui para

    Ribeiro Preto, arranjando carona num caminho leiteiro. No quis subir na bolia: fui carroceria. Para

    resumir, digo ao senhor que fiz de tudo para abafar o episdio. Despistei a polcia e no quis,

    compreensivelmente, levar o caso adiante. Procurei um mdico, mas no havia o que ser feito. Naquela poca,

    no se cogitava de cirurgia plstica; tudo que foi possvel se resumiu em combater a infeco.

    Com lgrimas silenciosas a lhe escorrerem no rosto, Antnio Jos concluiu:

    Voltei para minha cidade e comecei a beber. Virei um mendigo. As mais diferentes verses para o meu caso

    corriam de boca em boca. Algumas pessoas me humilhavam com rtulos preconceituosos. Um dia, no

    suportando mais tamanho sofrimento, atirei-me nas guas de um rio e, como no sabia nadar...

    Fitando-me com profunda tristeza, arrematou:

    Este Doutor Incio Ferreira, o meu drama. Fui esprita e mdium e ca deste jeito. Ainda me sinto um

    homem mutilado. A conscincia me cobra tanto, pelo que fiz, que nem espao para odiar o mandante de tal

    atrocidade eu tenho.

    FAZENDO O POSSVEL

    Mas, sendo esprita, Antnio Jos - comecei a dizer-, voc sabe que semelhante mutilao no lhe pode

    atingir o corpo espiritual.

    Sei disto - respondeu-me -, mas o meu problema mental; o suicdio agravou a minha situao.

    Para mim, apenas o renascimento. Alguns mdicos daqui j me explicaram que preciso melhorar um pouco,

    antes de tentar a bno do esquecimento na reencarnao. Estou convencido de que o corpo de carne ser o

    meu curativo.

    O seu suicdio tem atenuante.

    Sim, desespero e loucura, alcoolismo e obsesso, no entanto no posso me eximir da responsabilidade, pois

    fui eu que comecei tudo.

    Tenha calma (diante de certos problemas da vida, curioso, no conseguimos fugir dos velhos chaves do

    Evangelho, aos quais recorremos, quando sucumbimos intelectualmente). - Repeti: Tenha calma. Deus no nos

    desampara. Tente esquecer o que houve.

    Sei que a sua inteno a melhor possvel, mas responda-me: Esquecer como? Eu no sei agora o que me

    di mais: se a minha invigilncia afetiva, se a humilhao que sofri, se o meu gesto tresloucado que recrimino

    incessantemente, ou se, ainda, o fracasso na condio de mdium esprita que fui. Outra coisa que est me

  • 16

    preocupando muito e, talvez, nisto o senhor possa me ajudar: eu no tenho psiquismo de mulher e temo

    renascer prejudicado em minha condio de homem. O que o senhor acha?

    O caso, para mim, era deveras difcil. Afinal de contas, Antnio Jos no havia cometido to grande crime

    assim. Meu Deus! Como um simples erro de clculo pode comprometer uma construo inteira. Perto daquele

    drama, eu no tinha problema algum. Como somos egostas, at quando sofremos!

    Diante do meu silncio, o amigo insistiu:

    O que diz? No pude me consultar com o senhor na Terra; estou me consultando agora.

    No me chame mais de Doutor e nem de senhor - retruquei, procurando uma posio mais cmoda diante

    do caso. No passo de um irmo, e, prometo, vamos encontrar junto um caminho. Voc possui atenuantes.

    Quais?

    Voc no envolveu a mulher do fazendeiro: a mulher que se prevaleceu da prpria condio social para

    envolv-lo. Eu sei o que seja lidar com uma mulher insinuante e cheirando a perfume num consultrio. Pela

    primeira vez, Antnio esboou leve sorriso.

    Voc engraado - disse. - Se voc fosse Deus, haveria de resolver tudo da maneira mais simples, no ?

    As nossas travessuras no so feitas por maldade e ningum essencialmente mau; tudo obra da ignorncia.

    Mas a questo sou eu, Incio; ningum me acusa: eu que no me perdo. Temo renascer e repetir os

    mesmos erros. Eu gostaria de retomar a tarefa de ser mdium e ter oportunidade de continuar fazendo o bem

    aos outros.

    Quanto a isto, veremos, se bem que os mdiuns que conheci e que conheo so todas as almas

    comprometidas no campo da afetividade. Eles no gostam que se fale, mas verdade. Eu no sei onde a

    carncia de sexo ou o excesso de sexo est implicado com a mediunidade. Deve ser coisa da Kundaline. O

    companheiro abriu um sorriso um pouco maior.

    O seu bom-humor me faz bem, Incio. Volte mais vezes para conversar comigo.

    Estarei sempre por aqui, no pavilho dos loucos - exagerei, sem conter a vontade de fazer uma piada. - A

    nica diferena entre mim e vocs que eu sou um louco que anda e vocs so loucos acamados...

    Eu no agentava tratar de um problema srio por muito tempo, sem esculachar com ele. A auto -piedade

    terrvel e a auto-recriminao excessiva um mal de difcil cura.

    Incio - indagou-me Antnio Jos, antes que eu me retirasse -, voc acredita que eu poderei ser pai no

    mundo?

    Evidentemente que sim - respondi, procurando me conter. - Nem que seja de filhos que no tenham pai...

    Eu, por exemplo, Antnio, nunca pude ter filhos, e no foi por falta de tentativas, hem? No me interprete de

    maneira equivocada. No tive filhos, mas tive muitos gatos... Eu nunca vi gatas parirem tanto quanto pariam

    na minha casa e no Sanatrio...

    Deixando o novo amigo que fizera um tanto mais animado, sa do pavilho e procurei respirar a longos haustos

    o ar balsmico daquela manh de primavera. Digo-lhes que o meu dilogo com ele fizera maior bem a mim

    mesmo. Na tentativa de anim-lo, aos poucos eu me redescobria - redescobria aquele Incio mais jovial que os

    constantes achaques de um corpo fsico em desgaste quase haviam feito desaparecer. No havia motivo algum

    para tristeza; viveramos eternamente e estvamos fadados felicidade...

    A dor, por mais contundente, era irreal - estmulos indispensveis ao progresso espiritual. Todas as fases da

    vida eram igualmente importantes: a infncia, a juventude, a madureza e o fenmeno da morte to necessrio

    quanto o da vida fsica. O homem carecia de ser flor e fruto, para voltar a ser semente. Se alterssemos as

    nossas concepes estreitas da existncia, tudo haveria, aos nossos olhos, de ganhar um novo significado. No

    adiantava ficar choramingando. Graas a Deus, o resto de depresso decorrente do meu declnio fsico e

    psicolgico, nos ltimos tempos de minha trajetria no mundo, estava me deixando. Imerso nestas reflexes,

    percebi a presena de Odilon Fernandes ao meu lado.

    Incio, amigo! - saudou-me com efuso. O que voc fez que remoasse tanto? Voc j se viu hoje no

    espelho? Como est bem disposto!...

    Instintivamente, levei a mo ao rosto procurando por minhas antigas rugas e apalpando os msculos das

    bochechas, que, pela falta dos dentes que extrara, haviam se tornado flcidos.

    Uai, Odilon! No que voc tem razo?... Estou sentindo a pele mais macia e lisa. Por acaso, voc tem um

    espelho consigo? - perguntei ansioso.

    No, mas venha comigo - convidou o companheiro. - Temos uma fonte prxima, em cujo espelho de gua

    poder se fitar.

    Tal qual Narciso, n? - gracejei.

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

  • 17

    Nem tanto a beleza dele, mas, com certeza, a mesma vaidade - no deixou Odilon por menos.

    Quando me olhei na superfcie polida do diminuto lago formado pelas guas cristalinas da fonte, levei um

    susto: aquele no era eu, ou, por outra, era eu, mas por volta dos meus 50 de idade, se tanto, em face dos

    longevos 84 anos que tinha, ao desencarnar. As rugas que me haviam sulcado o rosto, como uma gleba de

    terra que o arado rasgara, haviam desaparecido... Rapidamente, abri a boca e, completamente pasmado, eu,

    que ainda me acreditava um morto de dentadura, pude reparar todos os meus dentes perfeitos.

    Veja Odilon! - exclamei, mostrando a arcada dentria ao amigo.

    Sem manchas de nicotina, Incio - emendou o antigo professor da Faculdade de Odontologia -, e sem

    piorria...

    INCAPAZ DE EXPLICAR

    Eu seria incapaz de explicar aquele fenmeno de embriognese espiritual que protagonizava. Mesmo o esprita,

    e principalmente ele, est longe de todas as respostas; aos poucos, eu percebia que os nossos questionamentos

    no Mundo Maior, a respeito das origens da vida, transcendem as perquiries humanas. Ao invs de respostas

    definitivas, multiplicam-se quase ao infinito as nossas indagaes. certo que a dvida central - a imortalidade

    do ser - no mais nos acabrunha, porm, contrapartida, o campo de investigao se nos amplia de tal forma,

    que nos deixa basbaques. Se pudssemos, por obra da imaginao, escutar Scrates, o inesquecvel sbio grego,

    em observao concernente verdade alm da morte, por certo registraramos sentena semelhante que ouso

    lhe conferir autoria: S sei que continuo no sabendo nada . Diante do que depressa aprendi, notei ser intil

    solicitar de Odilon qualquer esclarecimento; convinha que ocupasse o amigo com questes mais ponderveis,

    deixando para mais tarde qualquer elucubrao de carter filosfico em torno do meu sbito rejuvenescimento.

    Imagino que este trecho de minhas narrativas esteja causando estranheza e, por que no dizer, suscitando

    inveja em quantos, homens e mulheres, andam na Terra, atrs da fonte da eterna juventude.

    Como , Incio, voc no vai mais deixar de se olhar no espelho das guas? - perguntou o companheiro,

    interrompendo os meus devaneios.

    Por que, Odilon, o mesmo no aconteceu com voc? - indaguei, tornando a mim. - A sua aparncia prossegue

    idntica de seus ltimos tempos no corpo.

  • 18

    Prefiro conservar-me assim - respondeu. - Os amigos que deixei no mundo me evocam a presena com esta

    fisionomia; no pretendo decepcion-los e, depois, quero continuar envelhecendo junto com a Dalva. Voc

    tem razo - ponderei. - As fotos que o mostram mais jovem no irradiam a mesma aura. No que eu tenha

    qualquer preferncia, mas a figura de Odilon que todos reverenciam como voc est.

    , mas no pretendo ficar assim - avisou. - Quando a querida esposa vier ambos vamos nos submeter a uma

    plstica - ainda mais sendo de graa como . Mas, conte-me, Incio, - inquiriu, com o propsito de abordar

    tema mais positivo. - Como foi o seu dia nos pavilhes?

    Vou me adaptar, ou melhor, me readaptar. Voc sabe, nos ltimos anos, eu j havia perdido a prtica.

    Preencher aquela papelada toda me tomava tempo; sequer sabia por onde andava o meu estetoscpio.

    A Medicina, mormente a Medicina Psiquitrica, tem se afastado de suas finalidades, no acha?

    Quase que completamente - concordei. - Os mdicos, com raras e nobres excees, s pensam em dinheiro.

    Nada de estudar o paciente e escut-lo. Deixam tudo por conta dos remdios, ou dos espritos, e isto quando

    acreditam nuns e noutros. Infelizmente, dispensando a intuio, muitos no sabem nem prescrever: dopam o

    paciente e vo para casa, com a conscincia do dever cumprido.

    Tenho, da parte deles, Incio, os nossos irmos mdicos, registrado queixas contra os espritas. Alegam

    serem incuos os passes e as reunies medinicas.

    Odilon, eu e voc conhecemos os dois lados da questo. O problema que nem os mdicos e nem os mdiuns

    levam em considerao o carma do paciente. Existe um limite de atuao de ambas as partes no processo

    teraputico. Na verdade, ningum cura ningum. Isto ainda mais se evidencia com os doentes

    psicologicamente afetados. O Mestre enunciava com propriedade a cada um dos que eram diretamente

    beneficiados pelo seu poder curador - os cegos, os paralticos, os leprosos, os obsedados: "A tua f te salvou!".

    Transferir responsabilidades fcil. aquela questo do idealismo que j discutimos. Quem no se entrega de

    corpo e alma ao que faz no obtm xito. Os centros espritas tm formado mdiuns, mas esto longe de formar

    companheiros que faam da mediunidade um apostolado.

    o problema das profisses em geral - emendei. - A palavra idealismo quase no faz parte do discurso dos

    professores universitrios aos seus aprendizes. No podemos generalizar, mas, se as escolas tm diplomado

    milhares de professores, os educadores so poucos. O mercado de competio inconseqente.

    Infelizmente, Incio, infelizmente sentenciou Odilon no dilogo que no se interrompeu -, o homem em

    breve vai ter que capitular. No existe sada. Os extremos acabam sendo instrumentos de reverso social; os

    excessos sempre anunciam transformaes inevitveis. Grandes conflitos se desenham para a Humanidade.

    No sou nenhum profeta apocalptico.

    No precisa se justificar, Odilon. As leis da vida funcionam com preciso matemtica: o que se planta o

    que se colhe. No difcil deduzir o que esteja espreita do homem, ante as perspectivas do Terceiro Milnio.

    Caso ele no mude, caso ele no repense a sua trajetria, a Humanidade sofrer. A guerra ser inevitvel e os

    valores da civilizao estaro ameaados. As conquistas da Cincia, as pesquisas com o genoma, os

    medicamentos ultra-sofisticados em fase de industrializao. E, coisa pavorosa- aduzi -, com tanto progresso,

    a Religio no seu primitivismo.

    Tudo avanou Incio, menos a Religio; ainda no samos da Idade Mdia. No fosse o esforo de Allan Kardec.

    Esforo ignorado propositadamente pelos que constituem maioria em matria de crena. Fazem questo de

    espalhar que o Espiritismo mais uma seita, confundindo-o com a Umbanda, o Candombl e outros cultos

    afro-brasileiros. De nossa parte, nenhuma critica a nenhum deles. Toda e qualquer manifestao de f nos

    merece respeito.

    Mas, como o assunto se desviara de novo, Odilon insistiu:

    Incio, fale-me: como foi a sua manh com os nossos irmos, que agora so igualmente pacientes seus?

    Alguma surpresa?

    No, nenhuma. Apenas impressionei-me com o caso do nosso Antnio Jos.

    Ah! Ento voc j esteve com ele? Sim,

    mantivemos um longo entendimento.

    Quadro doloroso e complexo.

    Podemos interceder?

    O bem sempre pode fazer algo em favor de quem quer que seja. Faremos juntos, uma visita a ele.

    Amanh?

    Sim, Incio, amanh. Aproveite o resto do dia para se refazer. No fique convencido: remoado por fora,

    necessita de fortalecer-se por dentro. E, depois, voc est praticamente solteiro por aqui, no? Ou ainda se

    considera casado?

  • 19

    SITUAO CONJUGAL

    A pergunta do amigo Odilon, feita em tom de brincadeira, mexera comigo, pois desde que parti, deixando

    sozinha a companheira com a qual me consorciara, a minha situao conjugal do Outro Lado da Vida me

    parecia indefinida. Sem ter tempo para uma anlise mais acurada do meu problema afetivo, respondi: No

    sei Odilon, no sei. O que voc me diz? O esprito solteiro, vivo ou casado? - devolvi a indagao, tentando

    ganhar tempo para auscultar melhor o mundo de mim mesmo.

    A sua dvida, Incio, sintomtica - respondeu o companheiro, na conversa que, ficando interessante, adiou

    o meu descanso da tarde.

    Como assim?

    Os que se sentem verdadeiramente vinculados a um corao que permanece pulsando na retaguarda no

    hesitam em se definir sentimentalmente.

    Creio que, em verdade, no me casei; oficializei uma unio que, na prtica, no se consumou. Ambos ramos

    sozinhos e de temperamento difcil. Como no tinha herdeiros diretos...

    O casamento de almas, no de corpos ou de interesses.

    Sei disto, Odilon, mas eu alimentava a esperana de que vissemos nos abrandar; tnhamos muitos gostos

    em comum: cigarros e gatos, principalmente.

    Isto no o bastante. - reticenciou o fraterno interlocutor, que me dava oportunidade de abordar uma das

    mais srias questes que eu trouxera da Terra.

    Fui o culpado de muita coisa - confessei. - Talvez, no fundo, eu no quisesse uma esposa, mas uma

    enfermeira para cuidar de minha blis.

    No existia uma alta cumplicidade entre vocs?

    S no que nos interessava aos dois: a luta pela sobrevivncia. Contra um adversrio comum, nos unamos e

    tramvamos.

    Voc se arrepende de ter se casado?

    No; arrependo-me de ter sido o consorte ranzinza que fui. E, depois, a diferena de idade entre ns era

    considervel.

    Efetuando pequena pausa, prossegui:

    Eu no queria deixar herana para o Governo. Fiz jus minha aposentadoria e pagava religiosamente os

    meus impostos. Casei-me com a idia de que estivesse resgatando um compromisso crmico com a

    companheira que me aceitou; creio que nunca lhe disse que a amava.

    duro para uma mulher nunca escutar uma declarao de amor dos lbios do marido. Voc tem razo. No

    fui honesto para com os meus sentimentos.

    E ela o amava?

    No sei, mas, pelo menos, foi digna o tempo todo em que esteve comigo. Dirigia a nossa casa como ningum

    e nunca me permitiu ficar em falta de alguma coisa.

    Como voc, Incio, a considera hoje?

    Feito a uma irm h quem muito fiquei devendo.

    Ento, meu amigo - sentenciou Odilon -, voc um esprito solteiro e por aqui, no faltar quem venha a

    pretend-lo, ainda mais agora que remoou.

    Querendo me aprofundar no tema, ao qual procurei dar uma redao descontrada nestas pginas, com o

    propsito de no ferir suscetibilidades, perguntei:

    Casamo-nos depois de mortos?

    Casarmo-nos, propriamente, no, mas reencontramos afetos mais verdadeiros. A maioria dos vnculos

    conjugais no mundo so ligaes de prova, diferenas crmicas que necessitam ser equacionadas. Jesus Cristo

    nos fala no Evangelho que os bem-aventurados no se casam nem so dados em casamento. Mas quem lhe

    disse Incio, que somos anjos? Onde atualmente nos encontramos domiciliados, a vida prossegue em um sem-

    nmero de convenes que sobrevivem. Do ponto de vista mental, no temos como nos organizar por aqui de

    uma maneira muito diversa. O nosso apego a certos valores no se modifica assim.

    Quero uma resposta mais direta, Odilon - insisti. - Casamo-nos, ou no, deste Outro Lado da Vida?

    Se esta a sua preocupao, no existem padres para oficializar a unio.

    Que alivio! - exclamei. - Para mim, a sociedade dos mortos continuava sob o jugo da Igreja.

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

  • 20

    No, fique tranqilo. A unio genuna dispensa qualquer formalidade.

    Quer dizer ento...

    Que a tendncia natural do casamento formalizado por qualquer religio desaparecer.

    Isto ainda vai demorar muito - redargi.

    Sim, com certeza, e ainda bem que demora. O homem ainda no est preparado para ser livre. Com

    jeito de quem nada quer voc vai aprofundando no assunto, no ?

    Esta uma questo das mais transcendentes! Criado para ser livre, o homem no sabe ser livre com

    responsabilidade. Com a sua liberdade de escolha, apenas tem forjado cadeias para si mesmo.

    Odilon - indaguei -, voc, que conhece o meu caso, diria que eu brinquei com os sentimentos da companheira

    que me tolerou por tanto tempo?

    O que voc mesmo me diz, Incio? - devolveu-me a pergunta.

    No, a conscincia no me acusa disto. Apenas lamento termos tido tantas arestas no relacionamento. Mas

    - observei intrigado - por que voc no me responde nada com objetividade? Quase toda questo que lhe

    propus, foi-me endereada de volta.

    Quem somos ns, os considerados mortos, para ajuizarmos a conduta alheia? No encontramos por aqui

    quem nos absolva ou nos condene. Os que apontam o dedo em riste para os outros esto na tentativa de ocultar

    os prprios equvocos. A conscincia o Tribunal Divino instalado por dentro de ns. Para a sua paz ntima,

    a minha opinio nenhum significado teria, concorda?

    Sim, concordo, pois, embora de solteiro no Alm, como voc me rotulou, sinto que no saldei o meu dbito

    inteiramente, com a mulher que desposei.

    A nossa situao de atraso espiritual to alarmante, que, no raro, na nsia de quitarmos uma divida

    contramos outras.

    No sei quem, certa vez, disse que necessitamos aprender a ser magnnimos na vitria.

    Que vitria, Incio?! Toda aquela que no logramos sobre ns mesmos tem o nome de fracasso.

    Quem acredita estar se impondo aos outros apenas est se submetendo s prprias deficincias.

    COM MINHA ME

    Aps o esclarecedor dilogo com Odilon, fui para o quarto e, ainda me sentindo sem aquela vitalidade,

    procurei descansar. As horas avanavam cleres e, para dizer a verdade, eu havia perdido completamente

    noo do tempo. Se algum perguntasse, eu no saberia dizer em que ms estvamos que dia da semana era

    aquele. Desde que deixara o corpo, eu no mais vira sequer um calendrio.

    Com tantas constataes na cabea e tentando me adaptar ao novo ambiente que, de fato, era novo para mim,

    no pude evitar dirigir o meu pensamento para a Terra: com a fora da imaginao, percorri o meu antigo

    sobrado, detendo-me na biblioteca, como se estivesse verificando a presena de cada livro nas prateleiras que

    o cupim ia destruindo aos poucos. Mentalmente, fui ao Sanatrio e tentei me ver em minha mesa de trabalho,

    que, at ento, ningum se atrevera a ocupar, caminhei pelos corredores e procurei rememorar a face de cada

    companheiro dos ltimos tempos. Curioso o fenmeno: sem sair do lugar, eu estava l! Seria aquilo o que se

    dava o nome de dom da ubiqidade! Quando a saudade comeou a apertar, deliberei voltar a mim mesmo e

    retomar o controle das emoes.

    Em lapso de tempo relativamente curto, muita coisa estava acontecendo. Sem que eu pudesse conter o curso

    das idias, de repente, vi-me no cemitrio, em que o meu corpo havia sido sepultado; algo como que ainda me

    imantava minha antiga forma fsica. Pensei no tmulo que, previdente, tempos atrs eu mesmo mandara

    construir - o tmulo que, antes, abrigara os restos mortais de minha querida e inesquecvel me, D. Maric.

    Por onde andaria o esprito de minha me? Ningum ainda me falara nada a respeito dela. De formao

    catlica, certamente estaria numa regio diferente do Plano Espiritual, constitudo de dimenses que se

    interpenetram. A figura carinhosa de minha me demorou-se em minha mente e, sem que eu soubesse explicar

    - alis, o muito que no sei explicar do que sucede deste Outro Lado da Vida o atestado mais eloqente de

    minha mais completa ignorncia -, tive-a diante de mim, como se a minha lembrana dela a tivesse

    materializado no quarto.

    Sorrindo-me, a querida genitora, que sempre me aceitara a condio de esprita em silncio e que tivera uma

    vida de grande renncia, saudou-me:

    Incio, meu filho, finalmente pude v-lo!

    Mame, mas como senhora est bem! Estarei vendo uma miragem?

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

    PaulaSublinhado

  • 21

    No, filho, sou eu mesma, a sua me Maric. No pude vir antes. Quis que voc me visse diferente. De fato,

    a minha velha me havia se transfigurado: - no estava j curvada pelo peso da idade; j no mostrava tantas

    rugas no rosto; havia readquirido o brilho nos olhos e trajava-se de maneira elegante.

    Diante de minha me to moa, eu me envergonhei. Num timo, desfiaram pela minha mente os meus atritos

    com ela na maneira rude com que, por vezes, a tratava. O homem no pode mesmo se considerar num patamar

    social superior, que comea a oprimir os semelhantes. Como era dependente de mim, eu me julgava no direito

    de repreend-la. Talvez, em parte, agisse assim por timidez; eu me sentia incapaz de abra-la e de beij-la.

    Todos os dias, saindo de sua casa nos fundos da minha, a boa velhinha vinha me ver; quando eu adoecia e me

    recolhia ao pavimento superior, ela subia as escadas com dificuldade, para me abenoar e verificar se nada

    estava me faltando.

    Mame - disse-lhe -, a senhora me perdoe.

    Perdoar o qu, Incio?! Eu o compreendia. As suas lutas eram muito grandes. No podia entender os seus

    assuntos e, ento, me calava. Eu o reparava to assoberbado, que me resignava a orar por voc, temendo pela

    sua integridade.

    E eu a supunha intelectualmente inferior.

    Era e continuo sendo meu filho. Tenho conscincia disto. Por vezes, tentava folhear um dos seus livros, mas

    os temas envolvendo Psiquiatria e Espiritismo no me entravam na cabea e, depois, aquela sua arenga com

    os padres.

    Como nos equivocamos, no , mame?

    s quase o que fazemos na Terra, meu filho: equivocarmos-nos! Achamos que somos mais que os outros.

    Lamentvel engano! - disse, num suspiro.

    Por vezes, eu chego a pensar que a vida da senhora era intil. Entenda-me: intil para o seu esprito: a

    senhora no saa de casa, no lia, no se interessava pelos acontecimentos. A senhora mal chegava ao porto,

    mame!

    Mas eu pensava Incio, pensava e orava. Trabalhava com o pensamento, vagueando a incomensurveis

    distncia