do imagético da estética armorial à sua ambiência sonora no ciclo de canções visagem de nelson...

Upload: eblima02

Post on 06-Mar-2016

6 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Este trabalho propõe a composição de três imagens mentais e suas descrições sonorascomo subsídio para uma abordagem interpretativa do ciclo de canções Visagem de NelsonAlmeida. Cada imagem está conformada segundo a análise das metáforas empregadas por ArianoSuassuna no trecho do Folheto XLIV do Romance d’A Pedra do Reino, musicado na referida obra.Uma vez assimiladas por cada performer, acreditamos na contribuição efetiva para a performancecoletiva no intuito de garantir os caráteres cênico e pictórico sugeridos pelo compositor.

TRANSCRIPT

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    Do imagtico da esttica Armorial sua ambincia sonora no ciclo de canes Visagem de Nelson Almeida

    MODALIDADE: COMUNICAO

    Virginia Cavalcanti Santos Universidade Federal do Rio Grande do Norte [email protected]

    Dr. Rucker Bezerra de Queiroz Universidade Federal do Rio Grande do Norte [email protected]

    Resumo: Este trabalho prope a composio de trs imagens mentais e suas descries sonoras como subsdio para uma abordagem interpretativa do ciclo de canes Visagem de Nelson Almeida. Cada imagem est conformada segundo a anlise das metforas empregadas por Ariano Suassuna no trecho do Folheto XLIV do Romance dA Pedra do Reino, musicado na referida obra. Uma vez assimiladas por cada performer, acreditamos na contribuio efetiva para a performance coletiva no intuito de garantir os carteres cnico e pictrico sugeridos pelo compositor.

    Palavras-chave: Armorial. Imagem mental. Ambincia sonora. Performance. Cano Brasileira.

    Title of the Paper in English: From the Imagery of Armorial Aesthetics to its Sonorous Ambience in Nelson Almeida's Songs Cycle Visagem

    Abstract: The present work proposes the creation of three mental pictures and their aural description as a means to the development of an interpretative approach to Nelson Almeida's song cycle Visagem. Each picture is shaped after an analysis of the metaphors used by Ariano Suassuna in an excerpt of Folheto XLIV in Romance dA Pedra do Reino, set to music in the aforementioned work. Once assimilated by each performer, we believe in an effective contribution to group performance in order to ensure the scenic and pictorial aspects suggested by the composer.

    Keywords: Armorial. Mental picture. Sonorous Ambience. Performance. Brazilian art song.

    1. Introduo Sem se ater rigidamente ideia de eruditizao da arte popular brasileira

    preconizada na ocasio da criao do Movimento Armorial, quase que completamente emancipado dos moldes rtmicos e de timbre que remetem msica moura e ibrica, o compositor pernambucano Nelson Almeida compe em 1996 o ciclo de canes Visagem para formao camerstica de canto (soprano), viola, violoncelo e clarone/clarinete.

    O texto escolhido foi A Visagem da Moa Caetana, trecho extrado do Folheto XLIV do Romance dA Pedra do Reino e o Prncipe do Sangue do Vai-e-Volta, de Ariano Suassuna, que descreve uma sentena de morte num percurso ilustrado por smbolos e vocabulrio da esttica literria Armorial, repleto de neologismos e emprstimos metafricos.

    O ciclo formado por trs peas sem ttulos, enumeradas como Cano 1,

    Cano 2 e Cano 3, com texto em forma de prosa. Essa obra requer dos intrpretes o domnio das tcnicas de execuo tradicional, estendida e livre, necessrias para alimentar efeitos e conformar texturas sonoras.

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    Este artigo pretende oferecer aos performers referncias de sonoridades para interpretao dessa msica, tendo como subsdio de fundamentao o depoimento do prprio compositor sobre seu processo criativo. Como suporte para a contextualizao do ambiente a que se refere o texto construmos um conjunto de imagens que podem induzir a compreenso do conceito desses sons a que chamamos Som Armorial Contemporneo e propomos aqui um ponto de partida para a discusso sobre uma esttica musical Neo Armorial.

    2. O compositor e o poeta Nelson Almeidai um compositor pernambucano reconhecido como um dos

    expoentes de sua gerao e sua obra erudita profundamente comprometida com as estticas musicais contemporneas. Grande parte do seu processo composicional baseado na idealizao de sons que descrevam imagens e na utilizao de sons do cotidiano. Apesar de se considerar antes um Surrealista que um Armorialista, outras composies suas como Vitrais, para fagote solista, cordas e percusso, e Xilogravuras, para berimbau pernambucano solista, flauta, obo, clarinete, piano e cordas seguem o mesmo processo composicional e esto repletas de elementos que nos fazem questionar se essa msica no poderia ser chamada de Neo Armorial. Seu interesse em Msica Eletroacstica e na Msica Textural trazem para suas composies solicitaes para a execuo que abrangem desde a extrapolao de significado da escrita musical at a necessidade de cada instrumentista abrir mo de sua

    individualidade sonora para fazer parte de uma camada de textura. Sua experincia no universo musical Armorial a partir da fase Romanalii proporcionou-lhe contato com os mentores do Movimento e com seus principais compositores e intrpretes.

    Ariano Suassunaiii era Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, escritor, poeta e dramaturgo, conhecido como o principal idealizador do Movimento Armorial. Sua primeira pea foi Uma Mulher Vestida de Sol (1947) e a que lhe rendeu projeo nacional foi o Auto da Compadecida (1955), considerada um cone do teatro moderno brasileiro pela crtica especializada. Tambm se dedicou criao de prosa de fico, onde se destacam o Romance dA Pedra do Reino e o Prncipe do Sangue do Vai-e-Volta (1971) e a Histria dO Rei Degolado nas Caatingas do Serto ao Sol da Ona Caetana (1976), classificados por ele mesmo como romance armorial-popular brasileiro.

    3. O imagtico da esttica Armorial n'A Visagem da Moa Caetana Lanado no Recife, em 18 de outubro de 1970, com a realizao de um concerto e

    uma exposio de artes plsticas, o Movimento Armorial props-se a realizar uma arte

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    brasileira erudita a partir das razes populares da cultura do pas. Os sertes de Pernambuco e da Paraba e seus personagens so os nutrientes dessa profcua criao artstica coletiva.

    Mesmo sem nos atermos a discutir seus interesses filosficos ou ideolgicos, cabvel apontar que o Movimento Armorial tem como mais notvel caracterstica a

    reinterpretao do cotidiano sertanejo por um prisma fantstico e muitas vezes Surreal. O nome Armorial traduz o desejo de ligao com o passado herldico conjunto

    de insgnias, brases, estandartes e bandeiras da cultura brasileira. O movimento reuniu inicialmente a literatura, a xilogravura e a msica. Esta ltima restaura a tradio do repente, o uso da viola de cantador e da rabeca, e tem como principais referenciais de sonoridade as escalas modais, as melodias melismticas mouras, e o timbre rstico e estridente.

    O Cordel conto ou crnica, escrito em versos e muitas vezes tambm cantado, considerado Literatura Popular foi a maior referncia para a produo literria de Suassuna,

    no somente para a maneira da escrita como tambm para a permissividade imaginativa criadora dos neologismos e as transfiguraes to caractersticas de sua obra. Tem forte ligao com a linguagem oral e, segundo o prprio escritor, pode ser identificada em cinco ciclos: o heroico, o maravilhoso, o religioso ou moral, o satrico e o histrico. Como poeta de

    romances de visagens, profecias, e assombraes citando os termos do prprio escritor no Romance Suassuna usa de grande inventividade, emprstimos metafricos literrios de

    carter ontolgico e liberdade de imaginao Surreal para criar situaes e personagens. Assim descreve a Moa Caetana transformando-se na Ona Caetana:

    No mesmo instante comeou a perder a sua forma de mulher e a assumir a de Ona malhado-vermelha. A cobra-coral cujo nome Vermera, que lhe serve de colar e nunca larga seu pescoo, enroscava-se ali, ferindo o ar de vez em quando com sua lngua bipartida. Enquanto isso, as trs aves-de-rapina da Morte pousavam sobre ela e, cravando-lhe as garras, comearam a penetrar em seu corpo na sua pele, na sua carne, no seu sangue, nos seus ossos primeiro as garras, depois os ps, as pernas, at que os prprios corpos das cinco passassem a ser um corpo s, com seis asas e cinco cabeas. (SUASSUNA, 1977: p.80)

    De acordo com Viviane Andrade e Helena Martins em sua anlise da identidade das metforas literriasiv no texto do Romance dA Pedra do Reino, a liberdade de emprstimo metafrico de Suassuna tamanha que, no raramente, ele chega a criar novas palavras e expresses que constituem um novo vocabulrio. Ateremo-nos aqui especificamente s metforas empregadas no folheto que Nelson Almeida toma como libreto.

    Apresentamos a seguir os textos das trs canes. Em cada um sublinhamos as

    palavras que carregam significado metafrico e que esto agregadas numa construo de

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    carter Surreal, que sero decifradas em um segundo momento para que, a partir delas, possamos propor as imagens mentais visuais e musicais.

    Cano 1 Na estrofe que forma essa cano, Almeida extrai do texto original todos os termos iniciados com letra maiscula, levando a crer, conforme sua compreenso,

    que as palavras assim grafadas so conceitos importantes para Suassuna. Apesar da relao de afinidade de significado entre os substantivos, no h nenhuma coerncia na disposio deles

    nem inteno de se compor uma frase. O texto musicado o seguinte:

    Sentena Tabuleiro Fogo / Lajedos Jaguar Suuarana / Cacto Pssaro Tocha de Macambira. Efmero Heroico Reis Coroa / Cavaleiro Busca Dama Anjos / Sol Divino Gavio. Sol Estrela / Inconcebvel Fronteira. Ona-Malhada Divino. Viola Priso. Cadeia Patbulo Machado Estigma Serpentes. Campo Sonho Dias / Seus dias para sempre destroados.

    Cano 2 Nesta cano Almeida utiliza a primeira metade do texto original organizado em trs estrofes, construindo, na primeira, uma profecia macabra e sanguinria; na

    segunda, uma saudao ao que vai perecer; e na terceira, outra saudao repleta de aluses nobreza e ao que transcende o humano. Apesar de construes sintticas completas, nem

    sempre elas carregam sentido objetivo, pois Suassuna emprega adjetivos incongruentes aos objetos. Neste folheto, nota-se a alegorizao da morte atravs da figura da Moa Caetana, que grava a fogo numa parede, com o simples apontar do dedo indicador, a seguinte profecia:

    A Sentena j foi proferida. Saia de casa e cruze o Tabuleiro pedregoso. S lhe pertence o que por voc for decifrado. Beba o Fogo na taa de pedra dos Lajedos. Registre as malhas e o pelo fulvo do Jaguar, o pelo vermelho da Suuarana, o Cacto com seus frutos estrelados. Anote o Pssaro com sua flecha aurinegra e a Tocha incendiada das macambiras cor de sangue.

    Salve o que vai perecer: o Efmero sagrado, as energias desperdiadas, a luta sem grandeza, o Heroico assassinado em segredo, o que foi marcado de estrelas tudo aquilo que, depois de salvo e assinalado, ser para sempre e exclusivamente seu.

    Celebre a raa de Reis escusos, com a Coroa pingando sangue; o Cavaleiro em sua Busca errante, a Dama com as mos ocultas, os Anjos com sua espada, e o Sol malhado do Divino com seu Gavio de ouro. (SUASSUNA, 1971: p. 306)

    Cano 3 Assim como na Cano 2, a ltima cano utiliza a segunda metade do texto original organizado pelo compositor trs estrofes onde Suassuna anuncia o fim inadivel e irremedivel. A referncia final ao sonho traz de volta a premissa inicial do captulo que, desde a primeira cano, a frase que mais carrega um sentido objetivo.

    Entre o Sol e os cardos, entre a pedra e a Estrela, voc caminha no Inconcebvel. Por isso, mesmo sem decifr-lo, tem que cantar o enigma da Fronteira, a estranha regio onde o sangue se queima aos olhos de fogo da Ona-Malhada do Divino.

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    Faa isso, sob pena de morte! Mas sabendo, desde j, que intil. Quebre as cordas de prata da Viola: a Priso j foi decretada! Colocaram grossas barras e correntes ferrujosas na Cadeia. Ergueram o Patbulo com madeira nova e afiaram o gume do Machado.

    O Estigma permanece. O silncio queima o veneno das Serpentes, e, no Campo de sono ensanguentado, arde em brasa o Sonho perdido, tentando em vo reedificar seus Dias, para sempre destroados. (SUASSUNA, 1971: p. 306)

    Recorrendo aos tipos de metforas sugeridos pela Teoria Cognitiva da Metfora Literria de Lakoff e Turner, que considera que a expresso metafrica literria ou potica no est na linguagem e sim na forma de pensar, reconhecemos no texto o emprego dos

    recursos de metforas Imagticas, Estruturais e Ontolgicas. Este ltimo que promove a comparao por conceitualizao, tratando ideias, aes e emoes como substncias, objetos ou entidades para compreender abstraes a maneira de personificar, alegorizar e coisificar to recorrente na literatura Armorial. No exemplo do trecho o Sonho perdido, tentando em vo reedificar seus Dias, para sempre destroados o sonho uma entidade capaz de aes e os dias so um objeto que se quebra.

    Para identificarmos os elementos significantes fundamentais da linguagem Armorial, agrupamos as palavras do texto com sentido semelhantes norteando ideias relativas a honra, sangue, realeza ou nobreza de carter, humanidade, religio, aspectos terrenos e etreos, morte, e batalha. As palavras sonho, sono e decifrado tm uma conotao Surrealista de transcendncia da realidade e atribuem ao texto um contorno de fantstico e declaradamente descompromissado com a lgica.

    Andr Breton, em seu Manifesto Surrealista, argumenta:

    Eles (os loucos) colhem grande reconforto em sua imaginao e apreciam seu delrio o bastante para suportar que s para eles seja vlido. E, de fato, alucinaes, iluses, etc. so fonte de gozo nada desprezvel. (BRETON, 1924: p. 2) SURREALISMO, s.m. Automatismo psquico puro pelo qual se prope exprimir, seja verbalmente, seja por escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausncia de todo controle exercido pela razo, fora de toda preocupao esttica ou moral. (BRETON, 1924: p. 11)

    4. Construo de imagens mentais Como continuidade ao pensamento do antroplogo ingls Francis Galton sobre

    imagens mentais meramente visuais, Oliver Sacks difunde a ideia das imagens mentais musicais. Segundo ele se o indivduo capaz de reproduzir mentalmente uma situao visual

    marcada por contornos, contraste, cor e luz, ele tambm capaz de inferir a ela outros atributos sinestsicos como movimento, odor, temperatura, gosto e, por que no?, som.

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    A expectativa e a sugesto podem intensificar notavelmente a imaginao musical e at produzir uma experincia quase perceptual. [...] As imagens mentais propositais, conscientes, voluntrias, envolvem no s os crtices auditivo e motor, mas tambm regies do crtex frontal ligadas escolha e ao planejamento. Essas imagens mentais deliberadas so claramente fundamentais para os msicos profissionais. (SACKS, 2007: p. 45)

    Ento, de posse das associaes de ideias a que nos remetem os termos destacados no libreto, possvel propor uma descrio pictrica e sonora para a construo de imagens mentais. Essas imagens visuais e musicais podem ser um direcionador de grande valia para que os intrpretes busquem sonoridades capazes de descrever o contexto inspito deste serto.

    Seguindo o pensamento de Michel Foucaultv sobre o uso da dissociao de significados de semelhana e similitude presentes na obra pictrica de Ren Magritte, entendemos que no ciclo Visagem possvel estabelecer uma narrativa em trs camadas

    superpostas e simultneas dispostas da seguinte maneira: CAMADA 1: A cantora representa a Moa Caetana.

    CAMADA 2: A Moa Caetana (cantora) observa os eventos e interage com as personagens do calvrio, interpretadas pelos demais instrumentistas.

    CAMADA 3: A cantora e os instrumentistas descrevem o cenrio e as cenas.

    Assim como em uma pintura, essa disposio de camadas est organizada numa hierarquia de profundidades, sendo a terceira a mais esttica e a primeira a mais dinmica. Ainda que o compositor sugira relaes entre instrumentos ou instrumento e canto, a segunda camada a menos comprometida com a realidade das outras narrativas. Ela depende da

    liberdade imaginativa de cada msico, da capacidade individual de assimilar as imagens propostas e da vontade de participar da narrativa extrapolando sua funo meramente musical.

    No Romance todo o imagtico do sonho-realidade de Quaderna personagem principal do enredo est focado na figura da mulher-ona e no texto desconexo que queima na parede branca da biblioteca. No ciclo de canes, ao utilizar apenas o recorte do texto referente sentena de morte, Almeida exclui a personagem Quaderna da narrativa e suas observaes do cenrio desaparecem. mister que os msicos saibam que para ele que o texto proclamado, levando em considerao que ele est em outro plano da realidade e que

    no precisa fazer parte da cena nem dos cenrios. Entendemos que a narrativa conta com personagens que percorrem um calvrio

    pelos trs cenrios, rezando e sempre ouvindo a proclamao do arauto. Chamamos de Cena a movimentao que interliga as imagens e propomos aqui uma breve interpretao dela.

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    Os quadros, sugeridos para cada cano, chamaremos de Cenrio. Eles permitiro que, apesar da probabilidade de cada instrumentista imaginar a cena de acordo com suas referncias pessoais anteriores, seja possvel conduzi-los a assimilar um mesmo conjunto de informaes que uniformize preocupaes estticas que podem variar em funo do

    idiomatismo dos instrumentos ou da voz e das exigncias tcnicas de execuo como timbre, microafinao, dinmica, ritmo, acentuao e articulao.

    CENA: Nobres homens e mulheres que carregam a marca dos condenados caminham sob o sol, da priso para o local da execuo, rezando para Deus.

    CENRIO DA CANO 1: Pedras, calor, onas escondidas entre os cactos, um carcarvi que canta, macambiras vermelhas floridas. Todas as cores (cinza, bege, laranja, vermelho e amarelo) se confundindo sob o sol inclemente. O som spero de um pensamento de irritao. O som delicado e duradouro da complacncia do Divino. O chamado cantado de uma me sertaneja ou uma lembrana da viola. O desespero da priso: tilintares metlicos constantes. Um sonho sereno de ainda se estar vivo despertado bruscamente aos gritos.

    CENRIO DA CANO 2: Um caminho onde se v uma casa sobre o lajedo, sangue que escorre pelos veios entre as pedras, emaranhados de vegetao seca, a pelagem

    vermelha de uma ona, cactos com frutos espinhosos, um carcar que passa voando rpido e flores vermelhas das macambiras. Gritos graves e estridentes de desespero. Uma voz que grita e perde o tnus. Rudos dos movimentos da serpente. Marcao de passos e rufo de tambores.

    CENRIO DA CANO 3: O local de priso, cercado por barras de ferro e trancado com correntes enferrujadas; e o de execuo, onde se v um patbulo e um machado afiado. O entorno destes lugares um descampado com muitos corpos ensanguentados. Um aboio. Tentativas cansadas de orao. Ondas de refrao translcidas do calor no solo. Ondas interminveis. Passos da uma ona e o rudo do afiar do machado. Respirao. Gritos.

    A xilogravura a seguir um exemplo pictrico muito prximo ao que concebemos

    para as canes e est repleta de representaes da ambincia do serto Armorial. Nela a sensao das camadas de eventos pode ser percebida pelo movimento centrfugo da irradiao

    do sol no terceiro plano, pela estaticidade da vegetao e dos animais que se confundem com ela no segundo plano, e pelo deslocamento das pessoas e do co no sentido da esquerda para a

    direita da imagem. Esse quadro originalmente preto e branco e, mesmo se valendo apenas das diferenas de texturas, ainda assim possvel identificar a clarido e o queimor do sol, o aspecto ferino da caatinga e da sua fauna com cores terrosas e mescladas, e a inteno dos transeuntes de desbravar o percurso apesar dos obstculos.

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    Figura 1: Xilogravura de Jos Miguel da Silva, 2004: Bezerros/PE. Nesta imagem esto representados o sol pungente e que domina todo o plano de fundo; uma pedra e a vegetao espinhosa e densa, habitada por duas

    aves de rapina, uma serpente e um lagarto; e em primeiro plano Lampio, Maria Bonita e um co.

    5. Consideraes finais Para o compositorvii esse mecanismo de materializao do conjunto imagtico do

    texto e de suas imaginaes sonorasviii em objetos pictricos reais seria um complemento do processo composicional. Ele relatou que na ocasio da primeira execuo do ciclo por um grupo de cmara na Keele University (Reino Unido, 1996), o resultado sonoro em termos tcnicos era irrepreensvel mas ele no reconhecia a msica que havia composto. Apesar do emprego de um vocabulrio ento j conhecido de tcnicas tradicional, estendida e livre, idiomticas para os instrumentos e a voz, os intrpretes no tinham afinidade com o contexto scio-geogrfico daquelas sonoridades. A falta do sotaque da fala nordestina tambm era uma

    questo fontica que interferia na prosdia e na inteno dramtica do canto. Nelson Almeida considera que o ciclo Visagem foi estreado como obra completa no dia 24 de outubro de 2013 em recitalix no Mini-Auditrio II do Centro de Artes e Comunicao da Universidade Federal de Pernambuco, interpretado por Crisstomo Santos (clarineta/clarone), Svio Santoro (viola), Nilson Galvo Jr (violoncelo) e esta autora (mezzo-soprano), sob sua prpria regncia.

    Para que uma imagem seja mais que uma mera recordao bastante associar a ela um enredo que a contextualize, e fundamentado nessa dinmica que acreditamos na possibilidade de influenciarmos o intrprete na maneira de utilizao dos recursos sonoros inerentes ao seu instrumento na busca do Som Armorial Contemporneo.

  • XXV Congresso da Associao Nacional de Pesquisa e Ps-Graduao em Msica Vitria 2015

    Referncias:

    ALMEIDA, Nelson C. Portfolio of Musical Compositions: ('Presepio', 'Xilogravuras', 'Palmares', 'Visagem', 'A Nau', 'Sertoes', 'Quadro Quaderna'). Keele University: 1999. Disponvel em . Acesso em: 18/10/2013. ALMEIDA, Nelson C. Entrevista de Virginia Santos em 11.09.2014. Recife. udio. Laboratrio de Informtica do Departamento de Msica da UFPE. ANDRADE, Viviane Lucy Vilar de. MARTINS, Helena Franco. Sobre a Identidade da Metfora Literria: uma anlise do Romance dA Pedra do Reino e o prncipe do sangue do vai-e-volta. Veredas on line, Temtica, Juiz de Fora: p. 202-220, fev. 2011. Disponvel em . Acesso em: 23/04/2014. BRETON, Andr. Manifesto do Surrealismo (1924). Disponvel em . Acesso em: 23/04/2014. FOUCAULT, Michel. Isto no um Cachimbo. 6a Edio. So Paulo: Paz e Terra, 2014. O SERTOMUNDO DE SUASSUNA. Douglas Machado. Direo de Douglas Machado. Dvd, 80 min. Teresina: Trinca Filmes, 2003. SACKS, Oliver. Alucinaes Musicais: Relatos sobre a msica e o crebro. 2a Edio. So Paulo: Companhia das Letras, 2012. SANTOS, Idelette. Em Demanda da Potica Popular. So Paulo: Editora Unicamp, 2009. SUASSUNA, Ariano. Romance d'A Pedra do Reino e o Prncipe do Sangue do Vai-e-volta. 14a Edio. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olimpio Editora, 2014.

    Notas

    i Biografia e discografia disponvel em: . Acesso em:

    20/10/2013. ii Terceira fase do Movimento Armorial, a partir de 1975, segundo a classificao de Idelette Muzart Fonseca

    dos Santos. SANTOS, 1999: p. 31. iii

    Biografias e bibliografia disponveis em: . Acesso em: 26/10/2014.

    iv Baseada na Teoria Geral da Metfora, de George Lakoff e Mark Jonhson, e nas hipteses cognitivistas

    levantadas por George Lakoff e Mark Turner. v Analisando as obras Reprsentation (1962) e Dcalcomanie (1966) de Magritte. FOUCAULT, 1973: p. 58.

    vi Tipo de ave de rapina amarela e preta, que habita a caatinga.

    vii Entrevista com o compositor Nelson Almeida sobre seu contato com a msica Armorial, suas referncias

    sonoras, seu processo composicional e sua concepo para a interpretao do ciclo Visagem. Recife, 11 de setembro de 2014.

    viii Expresso utilizada pelo compositor Nelson Almeida sobre seu processo composicional.

    ix Vdeo disponvel em: . Acesso em: 05/12/2014.