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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP Raphael Ricardo de Faro Passos Do evento ao fato: o realismo peirceano como intersecção entre o real, o signo e o direito MESTRADO EM DIREITO SÃO PAULO 2016

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC-SP

Raphael Ricardo de Faro Passos

Do evento ao fato: o realismo peirceano como intersecção entre o real, o signo

e o direito

MESTRADO EM DIREITO

SÃO PAULO

2016

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Raphael Ricardo de Faro Passos

Do evento ao fato: o realismo peirceano como intersecção entre o real, o signo

e o direito

MESTRADO EM DIREITO

Dissertação apresentada à Banca Examinadora

da Pontifícia Universidade Católica de São

Paulo, como exigência parcial para obtenção do

título de Mestre em Filosofia do Direito, sob a

orientação da Professora Dra. Clarice Von

Oerzten de Araújo.

SÃO PAULO

2016

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Banca Examinadora:

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À minha esposa e fiel escudeira de todas as

horas pela paciência, amor e instigação a ser

sempre o melhor de mim, e ao meu filhinho,

ainda no seu primeiro ano de vida, de quem

tirei horas preciosas de convívio, mas quem

no meu coração esteve em todos os momentos

dessa trajetória como objeto de profunda

inspiração.

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O todo da ciência é nada mais do que um

refinamento do pensamento cotidiano. É por

essa razão que o pensamento crítico não pode

possivelmente estar restrito ao exame de

conceitos do seu específico campo. Ele não

pode proceder sem considerar criticamente um

problema mais difícil, o problema de analisar a

natureza do pensamento cotidiano.

(Albert Einstein)

Quando dentro do útero do tempo, tudo que de

novo retrocede ao caos será restaurado e, o

caos é o grau sobre o qual a realidade é escrita.

(Autor desconhecido)

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma tem mil faces secretas sob a face

neutra e te pergunta, sem interesse pela

resposta, pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

(Calor Drummond de Andrade)

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RESUMO

Trata-se de estudo referente a evento e/ou fato como ponto de partida para interseção entre

realidade, signo e direito. O estudo se erige com pés firmes no realismo peirceano para

encontrar confluências em diversas escolas realistas, passando pela Antiguidade, Idade

Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea. O modelo filosófico é instigado, igualmente,

pelas ideias de Merleau-Ponty e Lacan, máxime, no que se refere ao olhar que é o

entrelaçamento entre o homem e a natureza, donde também surge uma correlação simbiótica

do signo com o mundo sensível num embaralhamento de camadas na perspectiva das

categorias ceno-pitagóricas peirceanas da primeiridade, segundidade e terceiridade. Disso

eclode o parâmetro filosófico de que, no palco do signo, há uma espécie de gravação que

nele resta do objeto da realidade, o que desencadeia um processo de gravação semeiótico ad

infinitum de signo para signo, implicando, para fins de um dualismo meramente dogmático-

pedagógico, a contemplação de signos gravadores e signos gravados e, igualmente, de uma

realidade semeiótica (que é uma realidade do signo) e de uma summa realidade (que é uma

realidade na qual estão os eventos do mundo). O modelo filosófico é aplicado ao fenômeno

jurídico visualizado na perspectiva do signo ou aglomerado de signos (signos jurídicos), em

um panorama de signo gravador (jurídico) e signo gravado (da linguagem cotidiana). Nesse

contexto, tendo em vista a tendência, pela qual se conclui, de a linguagem cotidiana se

prolongar ao objeto da summa realidade, por conta de um continuum de investigação na

experiência objetivo-multidimensional, que é o expediente que permite a comunicação do

jurídico aos sujeitos de direito na sociedade de direito, tem-se que uma mais adequada teoria

a gravar o fenômeno jurídico seria aquela que se designa “teoria semeiótico↔estesiológica

do direito”. Dela exsurge que o direito é um fenômeno semeiótico↔estesiológico donde

signos jurídicos tendem, em um continuum, a um entrelaçamento com a summa realidade, o

que autoriza uma comunicação jurídica eficaz socialmente, sobrevivendo o direito

simbioticamente como ingrediente social e, como consequência, possibilitando-se a

perseguição do ideal de uma justiça convencionada.

Palavras-chave: Evento, Fato, Realidade, Verdade, Signo, Direito.

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ABSTRACT

The present study refers to event and/or fact as the phenomenological basis for an

intersection between reality, sign and the law. The study arises firmly grounded on Peirce’s

realism alongside introspections on diverse schools of realism, passing through antiquity,

the Middle Ages, modern and contemporary periods. The philosophical model is instigated,

equally, by the ideas of Merleau-Ponty and Lacan, principally in reference to the gaze that

is the interrelationship between man and nature. From there emerges a symbiotic

relationship between the sign and the sensitive world in a shuffling of layers relating to

Peirce’s ceno-pythagorean categories of firstness, secondness, thirdness. As such, the

philosophical parameter appears in order to show that, in terms of sign, there is a sort of

imprinting phenomenon of the object onto the subject, deriving from it, an imprinting

process that goes on ad infinitum from one sign to the other. That entails two types of signs:

imprinting signs and imprinted signs and also two sorts of reality: semeiotic reality (reality

of the sign) and summa reality (reality where the events are). The philosophical model is

then applied to the law seen as language – a collection of signs (legal signs), which are

viewed as imprinting legal signs over the imprinted signs of the ordinary language. In such

a context, as the conclusion is that ordinary language extends to the object of summa reality

as a result of a continuum of investigation in the sensitive experience, which will be the

foundation that will allow legal communication between those who are subject to the law,

the findings were that a more adequate theory to describe the legal phenomenon is a so-

called “semeiotical↔esthesiological legal theory”. As a reslt of it, the work’s hypothesis is

that the law is an esthesiological-semeiotical phenomenon, from which signs tend, in a

continuum, to be interrelated to the summa reality, allowing legal communication to be

efficiant and, ultimately, the survival of the law in a symbiotic manner to be seen as a social

ingredient.

Keywords: Event, Fact, Reality, Truth, Sign, Law.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................. 10

PARTE 1 – REALISMO JURÍDICO .............................................................................. 15

1.1 Fundamentos Filosóficos do Realismo Jurídico ........................................................ 16

1.1.1 Realismo Platônico (Idade Antiga) ....................................................................... 16

1.1.2 Realismo Aristotélico (Idade Antiga).................................................................... 25

1.1.3 Realismo Escotista (Idade Média) ......................................................................... 31

1.1.4 Realismo Kantiano (Idade Moderna) .................................................................... 51

1.1.5 Realismo Peirceano (Idade Contemporânea) ........................................................ 69

1.1.5.1 Prime matter e Haecceitas no Escotismo Versus Primeiridade, Segundidade e

Terceiridade no Realismo Peirceano ................................................................ 75

1.1.5.2 Semeiótica e suas Divisões, Correspondências com Kant e Compreensão Inicial

de Realidade e Verdade .................................................................................... 85

1.1.6 Merleau-Ponty e a Ideia de Entrelaçamento – o Quiasma entre Sujeito e Objeto

(Idade Contemporânea) ......................................................................................... 91

1.1.7 Giro Especulativo (Idade Contemporânea) ........................................................... 95

1.2 Escolas Estadunidense e Escandinava do Realismo Jurídico .................................. 102

1.2.1 Realismo Jurídico Estadunidense ........................................................................ 106

1.2.2 Realismo Jurídico Escandinavo........................................................................... 114

1.3 Realismo Jurídico no Sistema Jurídico Brasileiro ................................................... 122

PARTE 2 – REALIDADE E VERDADE JURÍDICAS ............................................... 127

2.1 Realidade Jurídica e Convenção no Direito ............................................................. 127

2.2 Verdade Jurídica....................................................................................................... 134

2.3 Signo, Proposição e Norma ...................................................................................... 141

2.4 Interpretação e Aplicação no Domínio do Direito ................................................... 158

PARTE 3 – SIGNOS JURÍDICOS ................................................................................ 165

3.1 Signos Gravadores e Signos Gravados (Teoria Semeiótico↔estesiológica de

Gravação): Papel da Semeiótica como Ferramenta de Compreensão do Fenômeno

Jurídico ..................................................................................................................... 167

3.2 Significado e Significante dos Signos Jurídicos: Papel da Semiologia como

Ferramenta para Compreensão do Direito ............................................................... 173

3.3 Substância e Forma dos Signos Jurídicos ................................................................ 181

3.4 Signos Jurídicos com Função Prescritiva, Impositiva, Cogente e Realizativa ........ 190

3.5 Papel da Sintaxe Gramatical para Fins da Interpretação das Regras de Direito ...... 197

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PARTE 4 – EVENTO VERSUS FATO NO PALCO DO DIREITO ......................... 201

4.1 Fato Jurídico na Lei e Jurisprudência....................................................................... 201

4.2 Fato Jurídico na Dogmática Jurídica ........................................................................ 219

4.3 Narrativas Judiciais .................................................................................................. 226

4.4 Diferença entre Evento e Fato na Linguagem Jurídica ............................................ 231

4.5 Fato Jurídico sob a Perspectiva da Diferença entre Objetos, Eventos e Fatos ......... 244

4.6 Evento, Fato Jurídico, Crença Jurídica e Provas ...................................................... 250

4.7 Crítica à Expressão Fato Jurídico ............................................................................. 266

PARTE 5 - DIREITO, TEMPO E PASSADO .............................................................. 278

5.1 Limitação Temporal e Direitos Subjetivos .............................................................. 279

5.2 O Fim do Jogo Jurídico (Prescrição, Decadência e Preclusão) ................................ 291

5.3 O Fim do Jogo Jurídico (Irretroatividade e Anterioridade) ..................................... 301

6 CONCLUSÃO ............................................................................................................... 306

REFERÊNCIAS................................................................................................................311

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INTRODUÇÃO

O presente estudo refere-se à inquietação do autor acerca da realidade do fenômeno

jurídico e da participação de evento e fato na determinação do que se chama positividade

social do direito. A problemática, portanto, erige-se a partir do fenômeno social para se

contestar a indagação de como poderia o direito – compreendido no seu aspecto semeiótico

(peirceano), gravar na sua positividade social a realidade “como ela é”.

Disso nasce o título que nomeia o estudo: “do evento ao fato: o realismo peirceano

como intersecção entre o real, o signo e o direito”, por meio do qual se objetiva abraçar toda

a problemática da inquietação em foco.

Nesse chão, perseguem-se, em uma investigação de pretensão científica, os

parâmetros de uma perspectiva simbiótica do fenômeno jurídico com vistas a, na

interdisciplinaridade, clarificar sua participação, com orientação objetiva, do que se chama

summa realidade, da qual deve partir a estruturação do edifício jurídico e para a qual deve

voltar em um processo contínuo de atualização.

Todo percurso científico principia-se pela eleição de um método. Tendo em vista que

o ferramental teórico mais firme utilizado para mecanizar a textualização presente se apoia

na teoria peirceana, desta emerge o método que se utiliza: o método abdutivo.

A instrução de sua utilização parte do próprio Peirce (CP 2.96), de quem se grava a

abdução como método que permite iniciar novas ideias. Suas peculiaridades envolvem, em

um silogismo abdutivo, a gravação (na nomenclatura que aqui se cunha) de eventos em suas

premissas, os quais autorizarão uma similaridade (semelhança) com o evento a ser gravado

(Peirce fala em representado) na conclusão.

Nesse método, não se leva a afirmar positivamente na conclusão, mas a uma

inclinação de que nesta há uma gravação (Peirce fala em representação) de um evento que é

o evento objeto das premissas. A linha é a de que a conclusão grava um evento que se une

por semelhança à realidade.

As premissas, no caso do método abdutivo, são de sorte comprobatória, é dizer, são

elas que levam à inclinação da conclusão, mas como em um “silogismo sempre em

suspenso”, como deve ser em qualquer ciência, eis que as premissas (abdutivas) servirão

para que, por meio da investigação científica, possa-se, num continuum, ligar-se cada vez

mais à realidade, mas já se admitindo que a conclusão será sempre falível e atualizável.

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Os fundamentos que permitem as premissas no silogismo abdutivo originam-se do

realismo peirceano capilarizado por introspecções realistas em Platão, Aristóteles, Scotus e

Kant, bem como com confluências em Merleau-Ponty, Lacan e Žižek, para falar das “escolas

filosóficas”. No âmbito jurídico, há uma encontro com Holmes, Pound e Llewellyn – no

palco da escola realista estadunidense, bem como com Ross e Olivecrona, no altar da escola

realista escandinava.

A semiologia saussuriana é ferramenta de contraponto com o que aqui se chama

semeiótica (peirceana), opção de nomenclatura utilizada para diferenciar essa ciência de

outras ciências chamadas “semióticas”, mas que não têm o mesmo objeto de estudo, eis que

o da semeiótica seria mais amplo.

A semeiótica se aplica para fazer prevalecer uma visão realista sobre o nominalismo,

digladiando-se aqui com temas centrais, como a questão dos universais e particulares,

proposições, verdade, realidade, tempo e espaço.

A construção dogmática tem influência relevante da linguística pottieriana, máxime,

no que respeita à diferença entre significado sintático e significado semântico, usando-se,

igualmente, noções do estruturalismo jakobsoniano. No que toca aos universais e

particulares, Strawson é base firme e contraponto importante para fazer prevalecer a visão

peirceana sobre realidade.

Na dogmática nacional, há exploração de argumentos relativos a temas jurídicos

plurais, tais quais: fato jurídico; interpretação do direito; aplicação do direito; prescrição;

decadência; preclusão; coisa julgada; orientações jurisprudenciais, entre outros, apoiados em

Pontes de Miranda, Miguel Reale, Tercio Sampaio Ferraz Jr., Willis Santiano Guerra Filho,

Clarice von Oertzen Araujo, Paulo de Barros Carvalho, entre outros.

Especificamente em relação ao tema do evento e do fato, a incursão é profunda na

origem das palavras, englobando noções problemáticas de etimologia, com apontamentos

em diferentes línguas para fins de se demonstrar o percurso etimológico de evento e fato na

história até se alcançar a gravação linguística prevalecente no português.

A fundação firme solidificada pela filosofia, semeiótica, semiologia e linguística

autoriza uma visualização mais “evidenciada” ou com orientação objetiva (base empírica,

materialismo) dos fenômenos jurídicos.

Faz-se uso de um dualismo, o qual se justifica somente para fins dogmático-

pedagógicos, entre summa realidade (summa rerum) e realidade semeiótica (interssígnica)

e, igualmente, entre evento absoluto e evento semeiótico, para fazer diferençar a perspectiva

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externa do absoluto da realidade (summa realidade e evento absoluto) da perspectiva

semeiótica ou que se refere a signos (realidade semeiótica e evento semeiótico).

Outra distinção que se faz diz respeito ao meio de gravação do signo. Trata-se do

meio fisíco-semeiótico como sendo aquele canal do signo na perspectiva da palavra escrita,

por exemplo, mas também do meio psíquico-semeiótico como sendo o ponto de contato do

signo no altiplano da mente.

Ao se usar a predicação “semeiótico”, isso se faz não para predicar uma ciência, mas

sim como atributivo de signo – do grego σημεῖον (sēmeion). A visão que se quer fazer

prevalecer, no entanto, é aquela referente ao signo numa compreensão ampla que abarca,

tanto os signos escritos, falados e gestuais, como o signo na perspectiva do pensamento

(mente), aqui particularmente na sua faceta que permite conhecimento. Isso autoriza um

estudo ampliativo que não se restringe à linguagem, expandindo a visualização do direito

para dimensões além-fronteiriças do direito como linguagem.

No que se refere ao termo summa realidade, a ideia por detrás da nomenclatura

summa realidade é gravar a realidade num sentido de absoluto. “Summa” do latim

(OXFORD LATIN DICTIONARY, 1968, p. 1867) como summa rerum (a totalidade da

matéria), no sentido de “todo”, “totalidade”.

Nesse contexto, dentro do edifício do direito, o ponto de partida é o fenômeno

jurídico na perspectiva do que se chamou signo jurídico, mas com orietação objetivo-

multidimensional. A visualização que se tem de signo jurídico é, pois, ampliativa, não se

restringindo ao texto de lei. O estudo principia-se do signo jurídico em sua multiplicidade

de dimensões. Signo jurídico escrito, falado, gestual, bem como o pensamento jurídico numa

extensão que se acomoda no que se refere aqui a conhecimento jurídico.

A perspectiva de partida do signo que se tem aqui bebe na fonte da tríade peirceana,

porém, em uma linha que a aproxima dos elementos vislumbrados por Scotus, como é o caso

da haecceitas escotista, eis que se percebe o signo (e também o signo jurídico), igualmente,

no plano de uma “entidade positiva” – a qual determina a natureza daquilo ao qual ela

pertence. Nesse contexto, como se a summa realidade (summa rerum) necessitasse de uma

carga positiva – uma carga de positivação.

Dizer que o ponto de partida é o signo não significa que o panorama seja nominalista,

eis que aqui se quer privilegiar uma orientação objetiva – realismo empírico. Sabe-se que

uma das formas de comunicação do jurídido se faz fortemente com base no substrato

semeiótico, o qual, no entanto, para o que aqui se defende, nasce de uma experiência

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objetiva, o que implica uma perspectiva que vai muito além do signo numa visão de signo

escrito, por exemplo.

O além-fronteiras do signo como experiência objetiva se baseia na ideia de

entrelaçamento que se destaca da teoria de Merleau-Ponty, com confluências em Lacan e

Žižek. Essa ideia exsurge para visualizar o homem como prolongamento do objeto e vice-

versa na diferença entre olho e olhar, no sentido de que esse olhar é justamente a intersecção

desse prolongamento, o quiasma, o coito que há no que se observa e o observador.

Disso decorre dizer que resta no observador, como numa simbiose, uma porção da

summa realidade. Há, pois, uma espécie de gravação. Daí, também, isso se estender ao signo,

cujo fundamento é uma ideia do homem, no sentido de que ali, igualmente, aparece algo

impresso, algo gravado. No signo jurídico, em uma ontologia indireta, também, pois, haveria

uma porção do real, sem a qual a comunicação jurídica não seria possível e, portanto, a

sobrevivência do direito em sociedade como fenômeno social que é.

Dessa visualização, coloca-se que o signo jurídico é uma espécie de signo gravador

e que o signo da linguagem cotidiana é um signo gravado. Em um, uma linguagem

gravadora e, em outro, uma linguagem gravada, que encontram meio e fim no

entrelaçamento com o objeto da summa realidade.

Isso se coaduna com o método abdutivo que se elege, eis que é chão firme nesse

estudo a noção de que realidade não é somente aquilo que é externo (summa realidade ou

realidade absoluta), mas também aquilo que é semeiótico, de modo que é possível, no

método abdutivo, investigar cientificamente a partir de signos, sem prejuízos de método e

resultado, tendo-se, ainda assim, uma orientação objetiva do que se estuda.

A ideia, no estudo, é edificar crença científica em direção de que o direito, nas

múltiplas perspectivas mencionadas, é organismo vivo que necessariamente tem de se

correlacionar, em alguma instância, com a summa realidade, a qual, no entanto, não deve ser

refletida no direito, devendo o direito, em verdade, gravá-la.

Outra ferramenta que se explora aqui para estudar o fenômeno jurídico é a ideia de

significado semântico e significado sintático, demonstrando-se, com base em Pottier, que a

díade saussuriana (significante e significado) pode ser ampliada, de modo que no significado

do signo há outra díade – a do significado semântico e do significado sintático, concepções

que podem ser aplicadas com acuidade para auxiliar no estudo do direito, máxime, no que é

relativo às ideias de vigência, eficácia, hierarquia, competência e capacidade de agentes,

entre outros tópicos.

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Com tudo isso e sob a justificativa de que há dispersão científico-jurídica sobre o

tema na atual dogmática, objetiva-se uma contribuição à comunidade jurídica, a qual possa

fazer desvendar, ou auxiliar em direção a essa finalidade, qual é a correlação necessária do

direito com a realidade, por que ela deve existir com vistas à efetividade e eficácia das regras

jurídicas (signos jurídicos), e por qual motivo isso atende aos anseios da sociedade de direito

com mira firme, a partir de um direito como organismo simbiótico, na busca de uma justiça

convencionada – não com olhar intrassistêmico, mas sim com um tempero interdisciplinar,

extrassistêmico e interepistêmico.

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PARTE 1 – REALISMO JURÍDICO

Nesta primeira parte do estudo, tem-se por objetivo abarcar o tema da realidade

extralinguística, o que aqui se designa “summa realidade” ou “realidade absoluta”, como um

ponto de partida para conhecer a realidade semeiótica, a qual está relacionada com o signo

em sentido amplo (não somente linguagem), e dentro da qual está, como espécie do gênero,

a realidade jurídica.

Nesse contexto, adentrar-se-á no tema do realismo como corrente de pensamento

filosófico – o que aqui se chama “realismo filosófico”, encontrando suporte, principalmente,

no realismo peirceano para as explicações que se fazem, desenvolvendo-se o estudo até se

cuidar do que se designa “realismo jurídico”, o qual envolve o que se chama “escola

estadunidense” e “escola escandinava” do realismo jurídico.

No desenvolvimento dos temas, diversos outros subtemas serão tratados nas

subdivisões que se fizerem necessárias, dentre as quais se pode destacar: função de verdade

aplicável à realidade jurídica e extrajurídica sob a perspectiva da concepção de verdade no

realismo peirceano; diferença da posição realista em relação à posição nominalista;

posicionamento de realidade (jurídica) e verdade (jurídica) dentro da fenomenologia

peirceana na divisão de primeiridade, segundidade e terceiridade; convenção na linguagem

cotidiana e na linguagem jurídica; proposição lógica, científica, jurídica e cotejo com as

normas jurídicas; e aplicação e interpretação no domínio do direito.

Para principiar o estudo, vê-se necessária uma investigação histórica, ainda que breve

e limitada temporalmente, do realismo como corrente filosófica, a qual não tem o objetivo,

desde já se esclarece, de esgotar com ares finalísticos um estudo histórico do realismo

filosófico, mas tão somente, como restará claro na sequência, tratar de algumas “escolas”

realistas de importância para o presente texto, desde a antiguidade até a idade

contemporânea.

Roga-se aqui por paciência, eis que se trata de estudo longo, mas absolutamente

necessário para fincar firmemente os pés na filosofia da realidade, trazendo compreensão

que é imprescindível para que, mais adiante, trate-se do tema do realismo jurídico e, pois, de

sua aplicação aos temas duros de importância para a dogmática nacional.

Diga-se, antes de começar, que o estudo filosófico pretende construir a fundação do

edifício do realismo jurídico com fundamento peirceano, de modo que a seleção dos textos

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de pesquisa e autores é “tendenciosa”, eis que mira aprontar o caminho para clarificações

relativas aos usos e concepções peirceanas de realidade.

Por esse motivo que desde Peirce se desceu a Scotus e desse, irremediavelmente, a

Aristóteles e Platão. A doutrina kantiana é utilizada como um contraponto, tendo em vista a

importância especial da “Crítica da Razão Pura” para a construção do pensamento peirceano

e também de óbvias aproximações possíveis de se fazer com Kant acerca do tema da

realidade em um corte, como se verá, que se apoia mais no que se chama seu “realismo

empírico” do que na sua lógica transcendental.

1.1 Fundamentos Filosóficos do Realismo Jurídico

As divisões por época levadas a efeito na sequência jazem em parênteses após os

nomes das “escolas” do realismo de que se falará. A divisão se baseia na seguinte

nomenclatura: a) Idade Antiga (compreende-se de cerca de 4000 a.C. até 476 d.C., quando

ocorre a queda do Império Romano do Ocidente); b) Idade Média (entre o ano de 476 d.C.

até 1453, quando ocorre a conquista de Constantinopla pelos turcos otomanos e,

consequentemente, a queda do Império Romano do Oriente); c) Idade Moderna (é

considerada de 1453 até 1789, quando da eclosão da Revolução Francesa; d) Idade

Contemporânea (compreende-se de 1789 até aos dias atuais).

Os fundamentos filosóficos em direção ao realismo jurídico se fincam em algumas

escolas do realismo que aqui se designa “filosófico”. Não se teve a pretensão de esgotar o

tema, apresentando todas as escolas do realismo, mas tão somente aquelas que, para fins do

presente estudo, pareceram melhor fundamentar o realismo peirceano, o qual serve de viga

mestra para sustentação do edifício científico que aqui se pretende construir.

1.1.1 Realismo Platônico (Idade Antiga)

Traçar um apanhado histórico de determinada linha de pensamento é demasiado

complexo e não diz com o conteúdo precípuo do presente trabalho, de modo que o que se

faz aqui, no que diz respeito ao realismo, é uma tentativa de análise histórica a qual já nasce

frustrada.

Nesse contexto, quer se principiar pelo realismo platônico, máxime, pela diferença

em Platão do “realismo in re” (ou realismo moderado) e “realismo ante rem” (realismo

extremo). O estudo é baseado em excelente artigo de Guy Hamelin, publicado no Jounal of

Ancient Philosophy.

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O embate mais que secular no palco da filosofia entre realistas e nominalistas

circunda a compreensão de universais e particulares, “entidades” que devem ser

previamente, ainda que de maneira breve, entendidas pelos leitores para que se possa seguir

o estudo do realismo platônico.

Nesse contexto, da maneira breve antecipada, diga-se que universal, segundo

Abbagnano (1998, p. 982), pode ter um significado objetivo no sentido de indicar “uma

determinação qualquer, que pode pertencer ou ser atribuída a várias coisas” e um significado

subjetivo no sentido de indicar “a possibilidade de um juízo (que diga respeito ao verdadeiro

ou falso, ao belo e ao feio, ao bem e ao mal etc.) ser válido para todos os seres racionais”.

Interessa aqui o primeiro significado. Nesse piso, Abbagnano (1998, p. 982) traz que

o universal pode ser vislumbrado sob duas perspectivas: a ontológica e a lógica. No que diz

respeito à primeira, universal “é a forma, a ideia ou a essência que pode ser partilhada por

várias coisas e que confere às coisas a natureza ou o caráter que têm em comum”. No que

diz respeito à segunda, é “o que, por sua natureza, pode ser predicado de muitas coisas”.

Nesse contexto, traga-se ainda o exemplo de Bates (2010, p. 3) do qual se podem

extrair explicações fecundas. Pense-se no crepúsculo e em uma rosa. Visualize-se que podem

ser vistos juntamente em um entardecer e que são ambos vermelhos. Assim, se o crepúsculo

e a rosa compartilham o mesmo tom de vermelho, então essa cor vermelha é um universal.

“Aquele tom existe [...] no crepúsculo e também num distinto, desvinculado objeto, a rosa,

ao mesmo tempo”.

A questão que se põe para compreensão dos universais refere-se à circunstância de

ser o tom de vermelho na rosa o mesmo tom de vermelho do crepúsculo ou simplesmente

um tom de vermelho semelhante em ambos. Bates (2010, p. 3) explica que a recorrência de

semelhanças elas mesmas não implica por si só a existência de universais.

Para notar a existência de universais, segundo Bates (2010, p. 4), é preciso se

perguntar se a semelhança entre coisas pode estar ao mesmo tempo em vários lugares. Se

uma moeda e um relógio são comparados, eventuais semelhanças compartilhadas não

permitem que essas entidades (moeda e relógio) estejam, em relação à eventual semelhança

compartilhada, em mais de um lugar ao mesmo tempo. O mesmo não se pode dizer de uma

cor. A cor pode estar em mais de um lugar e em várias entidades compartilhadas ao mesmo

tempo.

Outro ponto a se notar em relação aos universais é que um universal não é uma parte

menor de uma parte maior. Bates (2010, p. 4) traz que os universais têm uma capacidade de

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localização múltipla como característica principal. As peças de um quebra-cabeça não são

uma parte própria do todo que é o quebra-cabeça, ou seja, o mesmo quebra-cabeça em

localizações desvinculadas, mas sim partes diferentes, que pertencem a um todo, em

localizações desvinculadas.

Relativamente aos particulares, tem-se, em Lalande (1999, p. 797), para o que

interessa aqui, que particular é aquilo “que não pertence a todos os indivíduos de uma

espécie considerada, mas apenas a alguns deles ou mesmo a um só”. Além disso, Lalande

(1999, p. 797) traz que, em lógica, particular “é a proposição que diz respeito a alguns

indivíduos (indeterminados) de uma classe, ou mesmo a um só, se não for determinada”.

Não se quer adiantar nesse momento o sentido lógico de universal e particular, eis

que será devidamente tratado quando se estudar aqui o tema das proposições. Feita essa

introdução ao tema dos universais e particulares, volta-se ao realismo platônico.

Nesse contexto, traga-se que Hamelin (2009, p. 1) atenta para a circunstância de que

os autores mediáveis nomeiam a concepção de Platão acerca de universais de ante rem. Se

um universal é ante rem é porque ele é anterior na realidade e na existência aos particulares.

Aqui os universais seriam “coisas” transcendentes de existência anterior à dos particulares.

Aqui, segundo Hamelin (2009, p. 1), os universais seriam como que modelos matemáticos,

cujas formas ideais podem ser compreendidas pelo intelecto e podem se encontrar, de

maneira imperfeita, no mundo dos sentidos”. Um exemplo seria a forma geométrica do

círculo que não depende da existência de um círculo perfeito no mundo sensível.

Aqui haveria, segundo Hamelin (2009, p. 2), um “realismo extremo” em Platão,

diante do qual universais seriam o mesmo que as ideias que lhes dão fundamento, das quais

participariam os particulares correspondentes, por exemplo, “a Idéia de homem é a realidade

universal da qual participam todos os homens individuais”.

Hamelin (2009, p. 2) atenta para a circunstância de que “Ideia” nesse contexto:

não se refere a uma ideia subjetiva, enquanto noção ou conceito mental

individual. Em vez disso, trata-se de uma Ideia objetiva, independente da

minha mente, que constitui toda a realidade, da qual participam indivíduos

correspondentes. Daí o termo “realismo”, não epistemológico, mas, sim,

ontológico, melhor descrito pela expressão “realismo dos universais” (Destacou-se).

Hamelin (2009, p. 2) aponta que a subsunção única do realismo platônico ao dito

“realismo ante rem” não é verdadeira, haja vista que na obra de Platão podem ser

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encontradas, ao menos duas concepções de universais: a dita “ante rem” e uma outra

chamada “in re” (no sentido de que se refere à coisa real).

Para apoiar a diferenciação entre o realismo in re e o realismo anti rem, Hamelin se

socorre de dois textos de Platão: Mênon (diálogo de Platão, no qual o autor se ocupa da

virtude) e Fédon (diálogo de Platão que retrata a morte de Sócrates, obra mais tardia na

cronologia do autor).

Analisando os escritos de Platão, com base na narrativa de Hamelin, extraiu-se, na

sequência, os seguintes trechos de Mênon (PLATÃO, 2001, p. 19) para suportar o que está

por vir:

MEN. Podes dizer-me, Sócrates: a virtude é coisa que se ensina? Ou não é

coisa que se ensina mas que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que

se adquire pelo exercício nem coisa que se aprende, mas algo que advém

aos homens por natureza ou por alguma outra maneira?

[...]

Eu próprio, em realidade, Mênon, também me encontro nesse estado. Sofro

com meus concidadãos da mesma carência no que se refere a esse assunto,

e me censuro a mim mesmo por não saber absolutamente nada sobre a

virtude. E, quem não sabe o que uma coisa é, como poderia saber que

tipo de coisa ela é? Ou te parece ser possível alguém que não conhece

absolutamente quem é Mênon, esse alguém saber se ele é belo, se é rico

e ainda se é nobre, ou se é mesmo o contrário dessas coisas? Parece-te

ser isso possível?

[...]

SO. Uma sorte bem grande parece que tive, Mênon, se, procurando uma só

virtude, encontrei um enxame delas pousado junto a ti. Entretanto, Mênon,

a propósito dessa imagem, essa sobre o enxame, se, perguntando eu,

sobre o ser da abelha, o que ele é, dissesses que elas são muitas e

assumem toda variedade de formas, o que me responderias se te

perguntasse: "dizes serem elas muitas e de toda variedade de formas e

diferentes umas das outras quanto ao serem elas abelhas? Ou quanto

a isso elas não diferem nada, mas sim quanto a outra coisa, por

exemplo quanto à beleza, ou ao tamanho, ou quanto a qualquer outra

coisa desse tipo? Dize: que responderias, sendo interrogado assim?

MEN. Eu, de minha parte, diria que, quanto a serem abelhas, não

diferem nada umas das outras.

SO. Se então eu dissesse depois disso: "nesse caso, dize-me e isso aqui,

Mênon: aquilo quanto a que elas nada diferem, mas quanto a que são

todas o mesmo, que afirmas ser isso?" Poderias, sem dúvida, dizer-me

alguma coisa?

MEN. Sim, poderia.

SO. Ora, é assim também no que se refere às virtudes. Embora sejam

muitas e assumam toda variedade de formas, têm todas um caráter

único, <que é> o mesmo, graças ao qual são virtudes, para o qual, tendo

voltado seu olhar, a alguém que está respondendo é perfeitamente possível,

penso, fazer ver, a quem lhe fez a pergunta, o que vem a ser a virtude. Ou

não entendes o que digo?

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MEN. Acho que entendo sim. Contudo, ainda não apreendo, como quero

pelo menos, aquilo que é perguntado. (Destacou-se).

Fundamentado em Mênon, Hamelin (2009) explica que ali dois conceitos

fundamentais do realismo platônico na linha in re podem ser identificados: o de não-

diferenciação essencial e essência compartilhada.

A alegoria da abelha trazida por Sócrates no texto para explicar o que é virtude a

Mênon clarifica de maneira salutar o que se quer significar por realismo in re (ou realismo

moderado). Para Sócrates, a circunstância de ser abelha é imanente a todas as abelhas, é

dizer, trata-se de uma essência compartilhada pela classe das abelhas, sendo o mesmo que

dizer que, em relação à circunstância de serem abelhas, elas (abelhas) não diferem, o que

implica aqui uma não-diferenciação essencial.

É por isso que Hamelin (2009, p. 5) aponta que: “A essência ou a substância da abelha

é imanente às abelhas ou está in re, o que faz com que as abelhas não difiram ou não se

distingam umas das outras”.

Aqui o interpretado é que, em Mênon, Platão atribui ao universal o predicado de ser

único e geral a todos os seres (caráter único ou geral), mas que não é exatamente, por tal

motivo, necessariamente separado dos seres como particulares1.

Para entender isso, é preciso compreender o uso da palavra grega , a qual, na

versão ao português que aqui se utilizou do texto platônico, foi vertida como “caráter único”,

mas também pode ser compreendida como “caráter geral”, tendo ainda diversas outras

versões possíveis em Platão.

Nesse específico, Hamelin (2009, p. 6) esclarece que em Mênon a palavra grega

ganha o sentido de realidade não sensível que não tem diferença ontológica com os

indivíduos que recebem a sua natureza e o seu nome dela.

Hamelin (2009, p. 6) esclarece que “receber sua natureza” diz com uma “causa

ontológica” do universal em relação ao particular, sendo que “receber seu nome” diz com

uma “causa epônima” (no sentido de que empresta o nome) do universal em direção ao

particular.

Isso quer dizer que a causa ontológica e a causa epônima em relação a um particular

em Mênon não se diferenciam, de modo que se pode dizer que a natureza ou substância do

1 O uso do itálico se deve à distinção de alguns termos em relação a outros por conta de serem utilizados (os

que estão em itálico) com sentido diferente do habitual.

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particular corresponde à definição do universal (lógico), ou como diz Hamelin (2009, p. 7)

“definir uma abelha na sua realidade particular também é definir uma espécie animal”.

De maneira muito mais simples, a conclusão aqui é que, trazendo a alegoria das

abelhas, abelhas na sua realidade (in re) de abelha (particular) não são distintas entre si, eis

que a elas se pode atribuir um caráter comum ( ), que é o seu universal (realidade não

sensível).

Portanto, corresponde dizer, em Mênon, que abelhas possuem uma natureza real

comum e um caráter universal comum, eis que universal e particular não são completamente

independentes. Segundo Hamelin (2009, p. 7), essa não diferenciação dos particulares

(como no caso das abelhas) leva à identidade (no universal), constituindo a problemática

básica dos universais e a fundamentação da teoria realista. Aqui, os particulares que

possuem uma característica comum por conta do universal são, pois, iguais entre si nessa

medida.

Finalmente, diga-se que Hamelin (2009, p. 6) aponta que o uso de em Mênon

se harmoniza com o uso da palavra grega no mesmo texto. A palavra grega

pode encontrar em português o uso de “substância”, sendo que em Mênon, conforme o autor

em questão, tem o sentido de realidade inteligível imanente aos seres sensíveis particulares

e concretos.

Vista a questão sob o ângulo do realismo in re (realismo moderado) no Mênon de

Platão, passa-se agora a analisar a problemática sob o ponto de vista do dito realismo ante

rem (realismo extremo na obra Fédon do mesmo Platão).

Veja-se abaixo trecho em Fédon que autoriza sacar a razão pela qual se trata de um

realismo ante rem (PLATÃO, 1972, p. 115):

EQUÉCRATES:

- E também a nossa, dos que lá não estivemos, mas que ouvimos agora o

teu relato! Dize-me, porém: como prosseguiu a conversa?

FÉDON:

- Se não me engano, depois de haverem concordado com ele nesse ponto

e admitido a existência real de cada uma das ideias, e igualmente que

os demais objetos, que delas participam, delas também recebem as

suas denominações, Sócrates perguntou o seguinte:

- Se disseres que Símias é maior do que Sócrates, mas menor do que Fédon,

não terás dito, acaso, que em Símias se encontram essas duas coisas:

grandeza e pequenez?

- Sim.

- Mas, na realidade - não é? - reconheces que nesta frase: "Símias é

maior do que Sócrates", o modo por que a linguagem se exprime não

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corresponde à verdade e que indubitavelmente não pertence à

natureza de Símias o ser maior, pelo simples fato de ser Símias, mas

sim pela grandeza, na medida em que a possui, e tampouco se pode

dizer que seja maior do que Sócrates porque Sócrates é Sócrates, mas

unicamente porque Sócrates participa da pequenez, em relação à

grandeza dele?

- Efetivamente assim é.

- E, da mesma forma, também Fédon não o ultrapassa pelo simples fato de

ser Fédon, mas sim porque Fédon possui grandeza em comparação com a

pequenez de Símias?

- De fato.

- Ora, temos que Símias é chamado pequeno e também grande; está

entre os dois: submete sua pequenez à grandeza de um, para que este

o ultrapasse, enquanto que o outro apresenta uma grandeza que

ultrapassa sua pequenez. (Destacou-se).

Conforme aponta Hamelin (2009, p. 9), o uso da palavra grega aqui tem outra

aplicação, absorvendo o sentido de realidade não sensível, que constitui toda a realidade, da

qual os seres sensíveis são desprovidos, o que implica dizer que “somente a Ideia é real e

possui uma verdadeira existência, enquanto que os particulares que participam dela são

apenas participações, que sobrevivem, por assim dizer, por procuração”.

Segundo Hamelin (2009, p. 9), a substância ( ) dessa Ideia em Fédon tem o

sentido de “natureza ou essência de uma coisa, enquanto essa essência está concebida como

sendo ontologicamente diferente das realidades nomeadas a partir dela”.

Aqui uma diferença salta aos olhos no cotejo que se pode fazer com os sentidos que

foram atribuídos em Mênon, é dizer, há uma separação da Ideia com o sensível, pois que a

substância que com ela se harmoniza é diferente da realidade sensível, de modo que aqui o

universal não precisa corresponder em nenhum grau necessariamente com os particulares,

a exemplo do que se pode dizer das Ideias matemáticas, como no caso do círculo geométrico

não ter de corresponder ao círculo sensível, como mencionado anteriormente. Aqui, pois,

um realismo extremo (ou ante rem).

Ao se isolar o universal num reino autônomo (realismo ante rem) em relação ao

particular, acaba-se por remontar, igualmente, à separação da filosofia em domínios

diferentes trazida pelos estoicos, é dizer, na divisão em domínio físico, lógico e estético.

Ao se focar na diferença entre o domínio físico e lógico da filosofia estoica,

evoluindo-se para como se desenvolveram as teorias linguísticas contemporâneas,

principalmente aquelas baseadas numa visão nominalista, notar-se-á que elas se

fundamentam no domínio lógico da filosofia estoica, o que difere da evolução que se verifica

nas teorias científicas modernas, como no caso da física, química etc.

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Isso, em termos de teoria da linguagem, causa uma imensa diferença de visualização,

máxime, no que toca à verdade lógica, a qual, como traz Yngve (1996, p. 17), não precisaria

encontrar evidência no sentidos para se estabelecer dentro do domínio lógico da filosofia

estoica.

Esse tipo de aproximação do tema dos universais e particulares dentro da teoria da

linguagem causa impactos contemporâneos importantíssimos, permitindo a formação de

verdades que não necessitariam encontrar piso na realidade sensível, o que também se

justifica sob o olhar do realismo ante rem no Fédon de Platão, mas o que diferiria da

visualização do tema no Mênon de Platão.

Nesse contexto de diferentes aproximações realistas em Mênon e Fédon, Hamelin

(2009, p. 10) esclarece que há, pois, uma realidade das Formas imanentes (realismo in re) e

uma realidade das Formas separadas (ante rem), clarificando que Forma tem o sentido de

caracteres gerais ( ).

No realismo in re, especificamente, conforme já apontado, tais caracteres gerais

(Forma) terão a função dupla ontológica e epônima, de modo que nomear algo deve implicar

uma relação ontológica com tais caracteres gerais (função ontológica), sendo que, se

constatada a presença dessa Forma (caracteres gerais) em um particular, poder-se-á nomeá-

lo segundo essa Forma.

Nessa linha, dito de outra forma: nomear é também, pois, corresponder caracteres

gerais (causa epônima) em uma dada coisa (particular), sendo que elementos de uma classe

(universal) também precisam encontrar correspondência ontológica.

Portanto, a verdade ontológica de uma coisa, sua substância ou essência, depende

(como causa epônima), nessa linha de pensamento, da correção da denominação, de modo

que, conforme aponta Hamelin (2009, p. 10), “somente o ouro verdadeiro pode ser chamado

ouro”. Aqui causa epônima e causa ontológica acabam por se confundir, pois a ontologia

dependerá da nomeação.

Finalmente, segundo traz Hamelin (2009, p. 11), Sócrates defendeu, essencialmente,

duas teses filosóficas, as quais se tornaram pedra mestre para o desenvolvimento da filosofia,

é dizer, o discurso indutivo e a definição universal.

Segundo o autor, essas metodologias socráticas têm por finalidade alcançar um

significado universal que, “talvez, não seja imanente nos particulares sensíveis, mas também

não está separado em um outro mundo” (HAMELIN, 2009, p. 12).

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Essa é a visão socrática que, segundo Hamelin (2009, p. 12), aparece em Mênon, ou

seja, não há uma separação absoluta do universal em relação ao particular, o que se

distingue do que se pode verificar no Fédon, no qual a percepção é de um universal abstraído

que é separado do sensível.

Porém, dessa dicotomia aparente, Hamelin (2009, p. 12) conclui que “o uso do

exemplo das abelhas, no Mênon, para esclarecer o que é virtude é, certamente, mais

figurativo e concreto, mas parece conduzir Platão, por outro lado, a defender um realismo in

re dos universais”.

A explicação disso parece se erigir da própria alegoria das abelhas utilizada por

Platão no Mênon, eis que ao fazer uso de uma relação entre gêneros e espécies naturais,

reforçou-se mais, conforme aponta Hamelin (2009, p. 12), uma aceitação de uma “existência

real” dos particulares do que por intermédio de objetos ideais que correspondem

materialmente apenas imperfeitamente, como é o caso dos objetos matemáticos.

Entretanto, o que se pode verificar da percepção de Hamelin (2009) é que a separação

(em mundos diferentes) dos universais em relação aos particulares implica que a existência

dos primeiros não depende da existência dos últimos, o que poderia ser extraído de Fédon,

levando o realismo platônico, como tem prevalecido na visão tradicional, a um realismo ante

rem.

Essa visão tradicional do realismo platônico pode ser confirmada em Bunnin (2004,

p. 591), o qual esclarece que “o realismo platônico argumenta que universais existem num

reino deles próprios e são mais reais que os objetos sensíveis, os quais nunca são

completamente instanciados na experiência cotidiana”.

Porém, Hamelin batalha contra essa compreensão do pensamento platônico,

justificando-se em Mênon, como se viu, para trazer que essa visão tradicional do pensamento

platônica pode ser contestada no sentido de que, ao se utilizar do exemplo da relação entre

gêneros e espécies naturais (alegoria da abelha), o que exsurge é que o universal depende

em alguma instância do particular (em relação ao ser abelha – como gênero, as abelhas –

como espécies, não se distinguem entre si), de modo que não estaria o universal, ao menos

do que se pode depreender do Mênon, em um reino isolado, havendo, pois, um certo trânsito

entre reinos, do que decorre se tratar de um realismo in re e não ante rem.

Tal visão pode ser assemelhada, em certa medida, ao realismo aristotélico, no que

diz respeito aos universais in re, como se verificará na sequência.

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Antes disso, importa dizer que a explanação sobre a diferenciação entre realismo in

re e realismo ante rem em Platão se justifica em uma visualização para fins do fenômeno

jurídico, na medida em que aqui o que se quer sustentar é que, diante do fenômeno jurídico

deve haver uma correlação entre a realidade jurídica (tipo de realidade semeiótica) e o que

aqui se chama summa realidade ou realidade absoluta.

Desse modo, não seria possível falar em universais (signo jurídico geral e potencial)

e particulares (signo jurídico particular ou singular separados em domínios diferentes, eis

que, se assim fosse, o direito seria mera vontade do legislador e/ou da autoridade competente

para o gravar sem fundamentação na vontade social e na realidade subjacente – a summa

realidade.

Portanto, a visão de um realismo in re em Platão com a visualização de universais,

por sua vez, também in re, esses entendidos como aqueles que, em alguma medida,

correspondem com particulares, não precedendo estes, como se pode sacar de Fédon, mas

sim se conformando a eles em algum grau, como se pode extrair de Mênon, implica que as

os signos gerais e potenciais (visualizados como universais) gravados pelo legislador, em

verdade, em alguma medida, têm de encontrar correspondência na summa realidade. Trata-

se, pois, de uma quetão de correlação.

1.1.2 Realismo Aristotélico (Idade Antiga)

O realismo aristotélico, segundo Bunnin (2004, p. 591), defende que “o universal não

tem uma existência separada propriamente, mas é uma estrutura embutida nas coisas (um

universal in re)”.

Para Faria (1986, p. 69), Aristóteles posiciona-se em apoio à plausibilidade de uma

ciência sobre o real concreto no sentido de que seria “possível conhecer o que é o real

concreto e mutável por meio de definições e conceitos que permanecem inalterados”.

Nessa linha, segundo Faria (1986, p. 69), para Aristóteles, o universo seria um todo

ordenado segundo leis constantes e imutáveis, de modo que tal ordem imutável regeria a

natureza e o que nela ocorre, mas também a política, moral ou estética. “Antecedendo, como

fundamento, as diversas ciências que se interessam por diversos aspectos do ser, existe uma

ciência ‘primeira’, a Sabedoria (depois designada como Metafísica), que estuda o Ser e

procura enunciar essa ordem subjacente e que torna inteligíveis todos os fenômenos”.

Em trecho de Metafísica, Aristóteles (apud FARIA, 1986, p. 71) critica Platão

trazendo que:

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A mais importante questão que devemos colocar seria a de perguntar

enfim que socorro as ideias trazem para os entes sensíveis [...]. Com

efeito, elas não são para esses seres a causa de nenhum movimento e

de nenhuma mudança. Também não trazem nenhum concurso para a

ciência dos outros seres [...] nem para explicar a sua existência, pois

não são nem ao menos imanentes às coisas que delas participam; se

fossem imanentes, talvez pudessem assemelhar-se a causas dos seres,

como o branco é a causa da brancura no ser branco, entrando em sua

composição [...]. Por outro lado, os outros objetos não podem tampouco

provir das ideias, em qualquer dos sentidos em que se entende

ordinariamente essa expressão de. — Quanto a dizer que as ideias são

os paradigmas e que as outras coisas participam delas, isso não passa

do uso de palavras destituídas de sentido, e de metáforas poéticas. Onde então se trabalha com os olhos fixos nas ideias? Pode acontecer, com

efeito, que algum ser exista e se torne semelhante a um outro, sem que por

isso tenha sido modelado a partir desse outro [...]. Além disso, teríamos

diversos paradigmas do mesmo ser e, por conseguinte, diversas ideias

desse ser; por exemplo, para o homem teríamos o animal, o bípede, e ao

mesmo tempo também o homem em si. Além do mais, as ideias não serão

paradigmas apenas dos seres sensíveis, mas também das próprias

ideias, e, por exemplo, o gênero, enquanto gênero, será o paradigma

das espécies contidas nele: a mesma coisa será portanto paradigma e

imagem. E depois pareceria impossível que a substância fosse

separada daquilo de que ela é substância. Como então as ideias, que

são a substância das coisas, seriam separadas das coisas? (Destacou-

se).

Como se verifica do trecho de Metafísica, Aristóteles nega a possibilidade de ideias

serem a causa das coisas, de modo que somente poeticamente seria admitido dizer que coisas

participam de ideias, do que se conclui que as causas do ser são causas das ideias acerca

desse ser.

Desse modo, quais seriam as causas do ser? Em trecho de Metafísica, Aristóteles

(apud FARIA, 1986, p. 73-74) tem uma explicação:

É manifesto que a ciência que buscamos adquirir é a das causas primeiras

(pois que dizemos que conhecemos cada coisa somente quando

acreditamos conhecer sua causa primeira). Ora, as causas se dizem em

quatro sentidos. Num sentido, por causa entendemos a substância

formal ou quididade (com efeito, a razão de ser de uma coisa se reduz

em última análise à noção desta coisa, e a razão de ser primeira é causa

e princípio); num outro sentido, ainda, a causa é a matéria ou

substrato; num terceiro sentido, o princípio de onde parte o

movimento; em um quarto, enfim, que é oposto ao terceiro, é a causa

final ou bem (pois o bem é o fim de toda geração e de todo movimento).

(Destacou-se).

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O que se nota é que a causa do Ser em uma medida ou outra se confunde com sua

substância, conceito este de fundamental importância para compreender a teoria aristotélica.

Nesse contexto, para fins da definição de Ser em relação à sua substância, em trecho de

Metafísica, Aristóteles (apud FARIA, 1986, p. 75) traz o seguinte:

O Ser se toma em múltiplos sentidos, segundo as distinções que fizemos

anteriormente, no Livro das Múltiplas Acepções [livro V da Metafísica]:

num sentido, significa isto que a coisa é, a substância, e, em outro

sentido, significa uma qualidade, uma quantidade ou um dos outros

predicados deste tipo. Mas, entre todas estas acepções do Ser, é claro

que o Ser em sentido primeiro é o “isto que é a coisa”, noção que não

exprime nada além da própria substância. Com efeito, quando dizemos

de que qualidade é tal coisa determinada, dizemos que é boa ou má, mas

não que tem três côvados, ou que é um homem: quando, ao contrário,

exprimimos isto que ela é, não dizemos que é branca ou quente, nem que

tem três côvados, mas que é um homem ou um deus. As outras coisas só

são chamadas seres porque são ou quantidades do Ser propriamente

dito, ou qualidades, ou outra afecção deste ser, ou alguma outra

determinação deste gênero. Também se poderia perguntar se o

passear, o sentir-se bem, o estar sentado são ou não são seres; e da

mesma forma em qualquer outro caso análogo: pois nenhum destes

estados tem por si mesmo naturalmente uma existência própria, nem

pode ser separado da substância, mas se há aí algum ser, será antes

isto quem passeia que é um ser, isto que está sentado, isto que se sente

bem. E estas últimas coisas nos parecem muito mais seres, porque há

sob cada uma delas um sujeito real e determinado: este sujeito é a

Substância, é o indivíduo, que é certamente o que se manifesta em tal

categoria, pois o bem ou o [sentado] nunca é dito sem ele. É, portanto,

evidente que é por meio desta categoria que cada uma das outras

categorias existe. Por conseguinte, o Ser em sentido fundamental, não

tal modo do Ser, mas o Ser falando em sentido absoluto, não poderia

ser senão a Substância [...]. Em verdade, o objeto eterno de todas as

pesquisas, presentes e passadas, o problema sempre em suspenso: o que é

isto, o Ser?, consiste no mesmo que perguntar: o que é isto, a substância?

[...] É por isso que, para nós também, o objeto principal, primeiro, e por

assim dizer único, de nosso estudo deve ser a natureza do Ser tomado neste

sentido. (Destacou-se).

Acerca dessa substância, esclarece Faria (1986, p. 74-75):

Por diversas vezes em sua Metafísica, Aristóteles afirma que o Ser pode

ser dito em diferentes sentidos: é, portanto, um conceito análogo. O

primeiro desses sentidos, o mais fundamental, o que corresponde mais

de perto àquilo que o Ser é em si mesmo, é a substância (ousia). A

substância pode, por sua vez, ser simples (Deus) ou composta (os

demais seres). A ciência do Ser é, portanto, a ciência do Ser imóvel e

perfeito, substância absolutamente simples — Deus — e, ao mesmo

tempo, ciência dos entes compostos, os entes da natureza, que estão em

permanente movimento. Enquanto ciência do Ser, a Filosofia é uma

ciência da substância. A substância é o indivíduo uno em si mesmo e

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separado dos demais. (Destacou-se).

Portanto, a filosofia cuida, em última análise, de estudar a substância, essa

composição primeira e última de todos os seres. Nessa altura, o que deve ser trazido ao

debate, pois, diz respeito a ser essa substância, simples ou composta, um particular ou um

universal, fazendo uma correspondência e contraposição do realismo aristotélico com o

realismo platônico explicado anteriormente.

Nesse contexto, deve-se explorar a concepção de universal em Aristóteles, sem,

como já mencionado, esgotar a complexidade e extensão que o tema cuidaria, eis que é

somente auxiliar na historicidade dos fundamentos que aqui são construídos. Com essa

finalidade, aponta-se que, em Metafísica, Aristóteles (2002, p. 345-349) trata do tema do

universal nos seguintes trechos extraídos diretamente do original vertido ao português:

Diz-se que substância tem significado (1) de substrato, (2) de essência, (3)

do conjunto de ambos e (4) de universal.

[...]

Ora, alguns consideram que também o universal é, em máximo grau, causa

e princípio de algumas coisas. Por isso devemos discutir também este

ponto.

(a) Na realidade, parece impossível que algumas das coisas predicadas no

universal sejam substâncias. Com efeito, a substância primeira de cada

indivíduo é própria de cada um e não pertence a outros; o universal,

ao contrário, é comum: de fato, diz-se universal aquilo que, por

natureza, pertence a uma multiplicidade das coisas.

[...]

(h) Ademais, chama-se substância o que não é referido a um substrato; o

universal, ao contrário, sempre se predica de um substrato.

[...]

d) E depois, é impossível e também absurdo que um ser determinado

ou uma substância, caso derive de alguma coisa, não derive de outra

substância e de outros seres determinados, mas de uma qualidade. Se

fosse assim, o que não é substância, mas pura qualidade, seria anterior

à substância e àquele ser determinado. Mas isso é impossível: as

afecções não podem ser anteriores à substância nem pela noção, nem

pelo tempo, nem pela geração: se o fossem, elas deveriam também ser

separáveis dela.

[...]

f) E, em geral, se o homem é substância e se são substâncias todas as

coisas que se entendem nesse sentido, segue-se que nenhuma das partes

compreendidas na noção delas pode ser substância de alguma coisa,

nem pode existir separada delas, em outra coisa; quero dizer o

seguinte: não pode haver um <gênero> animal além das espécies

animais particulares, e o mesmo vale para todas as partes contidas nas

definições.

(g) Dessas reflexões fica evidente que nada do que é universal é

substância e nada do que se predica em comum exprime algo

determinado, mas só exprime de que espécie é a coisa. Se não fosse

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assim, além de muitas outras dificuldades, surgiria também a do

“terceiro homem”. (Destacou-se).

Nesses trechos de Metafísica, apresenta-se clara a crítica de Aristóteles a Platão no

que diz respeito à sua concepção tradicional de que os universais estariam contidos em um

reino separado do reino dos particulares.

Para Aristóteles, universal não é substância, mas uma qualidade/predicado. Para ele,

em crítica à Ideia de Platão, não há existência em reino separado do reino dos particulares,

ou melhor, onde se pode encontrar a substância no sentido mais amplo e aristotélico do

termo pode-se predicar, sendo que tal predicação é o próprio universal.

Assim é, eis que o universal em Aristóteles pertence a uma multiplicidade de coisas

e, se a um termo geral se refere, é porque não pode ser uma substância determinada. Nesse

piso, universal tem sempre algo de indeterminado na predicação que lhe faz possível, eis

que a generalização, por óbvio, foge ao particular para poder definir sua “pertencibilidade”

ao gênero.

O universal aristotélico é, pois, um gênero, mas que de modo nenhum está separado

dos particulares (substância), eis que não pode haver um gênero além das espécies

particulares, e o mesmo valendo para todas as partes contidas nas definições do gênero,

como apontou Aristóteles.

Quando se fala em homem como universal (todos os homens) é para exprimir tão

somente que fulano A ou B pertencem à espécie dos homens (todos os homens), não se

atribuindo, em absoluto, substância, a partir do universal homem, a fulano A ou B, pois não

há substância na generalização.

Ao se falar de fulano A ou B, há uma determinação, pois substâncias são

determinadas. Ao se dizer que fulano A é homem, atribui-se ao sujeito um predicado, mas

debaixo do véu do predicado há um sujeito real – a substância, a qual não está no universal

in actu.

Poderia estar, por assim dizer, em potência, pois que não se pode predicar sobre

alguma coisa que não se conhece, ainda que o conhecimento não seja físico. Nem se pode

dizer de um homem que é feito de plástico, eis que esse predicado não pode predicar um a

tal sujeito, pois que denotar um homem de plástico não implica denotar um ser que pertença

à classe dos homens, que são seres feitos de carne e osso – é um particular que não pertence

àquele universal.

Pode-se falar de uma estrela distante, mas somente na medida em que a conheça,

ainda que nunca se tenha estado lá, ainda que nunca se tenha tocado suas propriedades.

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Alguma característica dessa estrela deve-se conhecer para chamá-la “estrela”, caso contrário,

nem ao menos se poderia falar sobre ela.

Plutão era chamado planeta e depois foi renegado à classe dos planetas anões. O que

houve com Plutão? Absolutamente nada! Houve que não se conheciam todas as

características de Plutão, de modo que ele foi denotado a pertencer à classe dos planetas, em

um momento, sendo que, posteriormente, foi renegado à classe dos planetas anões por não

reunir todas as características para ser denotado à classe dos planetas.

O que não se pode dizer é que não se conhecia Plutão absolutamente, motivo pelo

qual ele teria sido erroneamente classificado. Algumas características de Plutão eram

conhecidas, mas não todas. Se algumas eram conhecidas, dá-se direito a se falar de Plutão.

Agora, não se dá direito a se falar de algo cujas características não são, em absoluto,

conhecidas, mesmo que não se afaste a possibilidade desse algo existir, ser real.

Em Aristóteles, o que se verifica, pelo que aqui se interpreta, é que ele se distancia

do realismo ante rem que se pode verificar no Fédon de Platão, aproximando-se do realismo

in re do Mênon, eis que seus universais são, ao fim e ao cabo, em certa medida, universais

in re.

Faz-se correspondência com a alegoria das abelhas do Mênon. O “ser abelha”, em

relação às abelhas, é compartilhado por todas elas, de modo que se trata de uma característica

comum a todos os particulares que pertencem à classe das abelhas.

Porém, isso não quer dizer que o gênero abelha (o ser abelha que é compartilhado)

seja separado totalmente do particular (uma abelha de certo tamanho e cor). O universal in

re é um padrão comum das coisas que se pode falar, pois se conhece alguma característica

delas.

Como alertado por Aristóteles, no trecho já apresentado da Metafísica, atribuir

predicados a substâncias em relação às quais não há um padrão comum compartilhado no

universal é admitir o problema do terceiro homem e não pode haver um <gênero> animal

além das espécies animais particulares, e o mesmo vale para todas as partes contidas nas

definições.

Ora, se o universal (gênero) não há além dos particulares (espécies), isso implica

que não há uma separação entre universal e particular tão restrita como poderia

apregoar Platão em Fédon, eis que seria admitir que um terceiro homem há (algo como

um homem de plástico ou um Plutão que é ao mesmo tempo planeta e planeta anão).

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Isso feriria de morte um dos princípios mais caros à filosofia aristotélica – o princípio

da não-contradição: “é impossível que o mesmo atributo pertença e não pertença ao mesmo

tempo ao mesmo sujeito, e na mesma relação” (FARIA, 1986, p. 73).

Bem, como se nota, o universal in re aristotélico é outro exemplo, ao lado do realismo

in re que se pode sacar do Mênon de Platão, da ligação entre universal e particular. No

domínio do direito, como se quer aqui defender, essa conexão é absolutamente necessária

sob pena de se conter no signo geral e potencial do legislador a gravação de “terceiros

homens” ou gêneros que não encontram correspondência com particulares do mundo.

Gravação de universais com tais características romperia a dinâmica necessária, a

qual se pretende ter como fundamentação desse trabalho no sentido de que deve haver uma

uma correlação “real” entre universais e particulares, a qual é a base do realismo que aqui

se escuda.

1.1.3 Realismo Escotista (Idade Média)

Para se compreender o que se chama aqui realismo escotista, é preciso estabelecer

antes a que escola filosófica e que contexto histórico Duns Scotus pertencia: a escolástica.

A escolástica é definida por Bunnin (2009, p. 622) como:

A filosofia dominante no mundo intelectual medieval. Começou no quinto

século com o influenciador comentário sobre os trabalhos lógicos de

Aristóteles por Boécio, e durou [até] o meio do século dezessete. O apogeu

da escolástica aconteceu do século onze até o século treze, quando as

universidades de Paris e Oxford foram fundadas e a filosofia ocidental

tradicional reproduzida ela mesma por meio da leitura e comentários sobre

o trabalho dos autores antigos principalmente Aristóteles, cujos trabalhos

eram traduzidos ao Latim nesse período. O mais festejado expoente da

filosofia escolástica, quem também produziu mais comentários sobre

Aristóteles, foi Thomas de Aquino. Outros proeminentes escolásticos

incluíam Abelardo, Buridan, Duns Scotus, William de Ockham e Suárez.

A maior característica da escolástica é tentar conciliar o conflito entre

a razão e a fé, tornando o pensamento Grego, especialmente da

doutrina de Aristóteles, consistente com a teologia Cristã, e por

empregar a filosofia para dar suporte à teologia. (Destacou-se).

Nesse piso, a preocupação dos escolásticos, entre eles Duns Scotus, era adaptar o

pensamento grego, principalmente de Aristóteles, à teologia cristã. Nesse contexto, diga-se

que a leitura de Duns Scotus para fins do presente trabalho se justifica, haja vista a

importância de seu pensamento no que diz respeito ao realismo peirceano, o qual é uma das

bases científicas firmes utilizadas para se alcançar as conclusões do presente trabalho.

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O ponto alto do realismo escotista é o designado “princípio da individuação”, o qual

autoriza ressaltar diferenças específicas entre coisas, tornando-as individuais. Partindo do

pressuposto da existência do universal, surge a problemática acerca dos mecanismos ou

princípios a serem manejados para fins de se permitir a individualização das coisas. É a essa

problemática que a teoria da individuação de Scotus procura trazer luz.

A problemática do universal já foi introduzida anteriormente quando se falou do

realismo platônico. Lembre-se aqui que haveria um objeto não linguístico que é comum a

outros objetos. Se alguém diz que A é fraco e B é forte e é possível atribuir fraqueza e força

a outros indivíduos, isso implica que o atributo (predicado) que se confere a A e B é um

atribuível a outros sujeitos e que possui uma mesma “semanticidade”. Essa multiplicidade é

um universal não do atributo em si, mas do todo de objetos não linguísticos para os quais o

atributo pode ser predicado.

Isso lembra a ideia de Platão no sentido de um “algo” objetivo, multiforme, com

significação de “ideia objetiva”. É o mesmo que dizer que o universal não está na linguagem

em si, mas na objetividade multiforme do real, ao qual a linguagem como atributo pode ser

predicada. Algo próximo do significado semântico na linguística de Pottier, o qual será

explicado mais adiante neste estudo.

Ao se trazer a visão sobre os universais dentro do embate entre realistas e

nominalistas, o que se pode dizer é que a diferença fundamental é que um nominalista traria

que “força” e “fraqueza” são apenas termos da lógica, considerados sintaticamente em uma

sentença como predicado de um sujeito sem correspondência objetiva.

Nesse contexto, deve-se girar para dizer que, para os realistas, em verdade, “força” e

“fraqueza” são predicados de propriedades comuns numa objetividade multiforme. Essas

propriedades predicadas pela linguagem são as universais, mas não só pela linguagem o são.

O ponto de controvérsia aqui pode se erigir da referência à linguagem em câmbio à

referência às coisas em si. Explica-se: a “semanticidade”, por exemplo, nas palavras “para”

e “para” pode ser distinta conforme sua sintaxe – uma pode ser preposição e outra terceira

pessoa do singular do presente do indicativo.

Quando se foca somente na representação (aspecto linguístico-sintático), o que se

tem sob o olhar é uma predicação. Se, no entanto, há um giro analítico para se olhar a

propriedade naturalmente considerada, ou seja, lançam-se os olhos menos sobre a linguagem

e mais sobre a ontologia da coisa, o que se verifica é que propriedades podem ser comuns

na lei natural, diante de uma causação.

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No entanto, segundo Bates (2010, p. 10), Scotus não chama tais propriedades comuns

na causação da lei natural de universais, mas sim de naturezas comuns. Misturando-se a cor

vermelha com a cor verde tem-se amarelo. Aqui o que há é uma causação proveniente de

uma relação entre propriedades de coisas.

Conforme traz Bates (2010, p. 10), Scotus chamou isso de geração unívoca. Nela

não há relação de predicados na sintaxe da linguagem, mas sim relação de propriedades na

natureza das coisas. Assim, vermelho com verde gerar amarelo é um tipo de causação de

geração unívoca. Pó cósmico gera estrelas que se volvem pó cósmico que gera mais estrelas

em uma geração unívoca. Há uma natureza comum nessa sucessão generativa.

Sobre o tema, Scotus (1973, p. 401) traz:

28 Ademais:

Mesmo se nenhum intelecto existisse, fogo ainda geraria fogo e destruiria

água. E haveria alguma real unidade de forma entre o gerador e o gerado,

de acordo com a qual unidade de geração unívoca ocorreria. Porque o

intelecto que considera um caso de geração não faz a geração unívoca, mas

a reconhece como unívoco. (Destacou-se).

No exemplo do fogo gerando fogo, o que se verifica, segundo Scotus, é que fogo-

gerador e fogo-gerado, ou criador e criatura, possuem algo em comum – uma “real unidade

de forma”. Isso é a natureza comum.

Além disso, Scotus traz que não é o intelecto que “cria” a geração unívoca das coisas

em sua natureza comum, reconhecendo somente sua ocorrência como tal. Aqui já se vê com

força uma visão realista de Scotus em comparação com uma visão nominalista, haja vista

que contempla a geração das coisas fora do intelecto.

É preciso lembrar que a discussão que Scotus trava tem por objetivo provar a

distinção pessoal nos anjos, o que ele decidiu fazer baseado na distinção individual nas

substâncias materiais. A pedra de toque da discussão gira em torno da causa que permite a

individuação em coisas – o princípio da individuação escotista. Na linha escolástica, Scotus

aplica o pensamento grego, com contornos próprios, à teologia cristã.

Um dos problemas que Scotus enfrenta para provar seu princípio da individuação diz

respeito à diferença do real em relação ao numérico, bem como em relação à oposição entre

coisas. Quando se trata de uma coisa, o que resta é saber o que de real existe nesse número

da coisa. Outro problema é saber a diferença entre quando se aponta para “essa” coisa e

quando se aponta para “aquela” coisa. O esseísmo (thisness) e qual o seu impacto em relação

à realidade é uma das perguntas a serem respondidas.

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Sobre o tema, Scotus (1973, p. 400) deduz:

23 Além disso, em sexto:

Pois, se toda unidade real é numérica, então toda diversidade real é

numérica. Mas, o consequente é falso, pois toda diversidade numérica, na

medida em que é numérica, é igual, - e assim tudo seria igualmente

distinto; e, então, segue-se que o intelecto não poderia mais abstrair

algo comum de Sócrates e Platão, do que de Sócrates e da linha, e

qualquer universal seria uma pura ficção do intelecto. (Destacou-se).

Para resolver o problema, Scotus (1973, p. 401) se fundamenta em Aristóteles,

trazendo que, “porque uno e múltiplo, o mesmo e o diverso são opostos; ora, quantas vezes

se disser um dos opostos, tantas se dirá também o outro; portanto, a cada unidade

corresponde sua própria diversidade”.

Além disso, conclui que (SCOTUS, 1973, p. 401):

25 Prova-se em segundo, pois cada extremo de qualquer diversidade é em

si uno, e no modo pelo qual é uno em si, no mesmo modo parece ser diverso

do outro extremo, de modo que a unidade de um extremo parece ser

por si a razão da diversidade do outro extremo.

26 Confirma-se também de outro modo, pois, se só há nesta coisa a

unidade real numérica, qualquer unidade que estiver nesta coisa é, por

si, una em número; portanto, este e aquele, de acordo com toda a

entidade neles, são primeiro diversos, pois são diversos que não se

reúnem de nenhum modo em nada de "uno".

27 Confirma-se também, pelo fato de que a diversidade numérica é

este singular não ser aquele singular, suposta, no entanto, a entidade de

cada extremo. Ora, tal unidade cabe necessariamente ao outro extremo.

(Destacou-se).

O que quer parecer justificar Scotus é que uma espécie de “esseísmo” é que é a

própria razão de existência da oposição “daquela” outra coisa, o que implica a diversidade

em número entre coisas.

O singular dá razão ao plural e a oposição à posição, de modo que é na diferença,

inclusive em número, que se podem individualizar coisas, ainda que naturezas comuns se

possam atribuir entre elas. Coisas, para Scotus, tem substância material e é desta, também,

que se pode partir para a individuação.

Nesse contexto, segundo Bates (2010, p. 14), Scotus trata as substâncias materiais

das coisas como “todos mereológicos com partes próprias, uma da qual é a forma e a outra

da qual é a natureza comum”.

Um exemplo pode elucidar as coisas. Pense-se em um carro. Carros têm substâncias

materiais. Carros têm características parecidas, mas ao mesmo tempo diferentes. São feitos

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de partes parecidas e ao mesmo tempo diferentes. Têm formas parecidas e ao mesmo tempo

diferentes.

Focando na forma, um carro de fórmula 1 tem uma formatação diferente em suas

linhas em comparação a um carro de passeio. A forma de uma coletividade de carros é uma

forma geral aplicável aos carros que os diferencia, por exemplo, das linhas que formam uma

moto. A forma substancial não é a forma coletiva dos carros que os diferencia da forma das

motos, mas a forma particular do carro de fórmula 1 que o diferencia de um carro de passeio,

por exemplo.

Nesse piso, nos termos do que expõe Bates (2010, p. 14), Scotus distingui uma forma

substancial de uma natureza comum. Forma substancial seria um constituinte – uma parte

mesma, de uma substância material, sendo que a essência da coisa seria a natureza comum.

Segundo Bates (2010, p. 61), no escotismo a forma da substância é diferente da sua

essência, sendo que é somente essa última a qual se pode referir como substância material,

lembrando-se que Scotus mesmo somente fala em natureza e não natureza substancial, sendo

forma substancial um termo usado por Bates.

Para Scotus, naturezas comuns são essências, o que se opõem a formas singulares.

Conforme aponta Bates (2010, p. 61), para ele há naturezas substanciais nas coisas que são

diferentes de formas substanciais. Naturezas substanciais são o que constitui as formas

substanciais, sendo que estas últimas são “a forma da parte” de uma substância material. Ao

contrário, uma natureza substancial é “a forma de um todo” de uma substância material.

Na sua teoria, Scotus enxerga as entidades do mundo material nem como universal

nem como particular. Segundo Bates (2010, p. 22), Scotus sustenta que as entidades são

comuns, é dizer, tem uma natureza comum e isso não é nem universal e nem particular.

Sobre a natureza comum, Bates (2010, p. 22) traz que:

Uma natureza comum é um ser real, uma entidade nas coisas às quais

ela pertence como uma parte própria. Scotus pensa que apenas sendo

indiferente – dela mesma nem universal nem particular, mas

potencialmente ambos – ela pode realizar a díspare tarefa alocada a

ela, ou seja, ser um poder ativo causal nos particulares, e um princípio

da compreensão humana, tarefas que ele argumenta nem um universal

nem um particular poderiam sozinhos realizar. (Destacou-se).

Como se verifica, a ideia de uma natureza comum em Scotus se confunde com a

“existência” material de entidades nas coisas como parte própria dessas coisas. Essa

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entidade, que é materialmente própria à coisa e comum em coisas diferentes, para Scotus,

não é nem universal e nem particular, mas potencialmente tanto universal como particular.

Nesse contexto, Scotus (1973, p. 407) traz que:

38 Disto, fica clara a refutação do dito que "o intelecto [...] faz a

universalidade nas coisas", pelo fato de que pode ser dito de toda

"qüididade" [quod quid est] existente na imagem que é tal que não lhe

repugna estar em outro, e pelo fato de que desnuda a "qüididade" [quod

quid] existente na imagem, - pois, em qualquer lugar que esteja antes de

ter o seu objetivo no intelecto possível, seja na coisa seja na imagem, tenha

ser certo ou deduzido pela razão (e, assim, não por alguma luz, mas sempre

seja tal natureza por si à qual não repugna ser em outro), ainda não é tal ao

qual caiba em potência próxima ser dito do que quer que seja, mas só está

em potência próxima no intelecto possível.

Há, portanto, na coisa um "comum", que não é de si este, e, por

conseguinte, não lhe repugna de si o não-este. Mas, tal comum não é

universal em ato, pois falta aquela indiferença de acordo com a qual o

universal é, de uma maneira completa, universal, de acordo com a

qual, a saber, o mesmo, por alguma identidade, é predicável de

qualquer indivíduo, de tal modo que qualquer um seja ele. (Destacou-

se).

A ideia de Scotus acerca do “comum” nas coisas que não é nem universal e nem

particular é complexa. Ele parece fazer crer que a predicação às coisas possível desde o

universal é diferente da natureza comum das coisas2. Esta é mais densa que o universal,

implicando diferença nas coisas, pois é comum acerca de uma unidade real e não de várias

delas.

Além disso, para Scotus (1973, p. 408):

39 Em relação à segunda objeção - de Damasceno - digo que do modo pelo

qual na divindade o "comum" é realmente uno, deste modo o comum não

é realmente uno nas criaturas. Lá, com efeito, "comum" é singular e

individual, pois a própria natureza divina é de si esta, e deste modo

fica claro que nenhum universal é realmente uno nas criaturas; pois

sustentar isto, seria sustentar que alguma natureza criada não-

dividida é predicada de muitos indivíduos por uma predicação que diz

"isto é isto", assim como se diz que o Pai é Deus e o Filho é o mesmo

Deus. Nas criaturas, porém, há algum comum uno em unidade real,

menor que a unidade numérica, e este "comum" não é assim um

comum que seja predicável de muitos, ainda que seja assim um comum

que não lhe repugna3 ser em algo distinto daquilo no que é. (Destacou-

se).

2 “Coisa” nesse trabalho tem o uso de objeto físico. 3 Entede-se aqui que o que Scotus quer dizer com “não repugnar” é “ser compatível”.

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Assim, a natureza comum é uma entidade da substância material das coisas, mas

menos densa que a unidade numérica do singular, mas mais densa do que um universal, pois

implica certa diferenciação nas coisas.

Explorando-se a substância material, ou seja, na perspectiva da matéria, há dois

conceitos importantes aplicáveis ao escotismo que precisam ser examinados: o conceito de

prime matter e de forma substancial.

Nesse contexto, Bates (2010, p. 46) traz que a prime matter é “uma coisa básica sem

reais características particulares como cor e peso, mas com a potencialidade de ter tais reais

características. [...] vai junto com a forma da substância material para fazer possível que a

substância como um todo venha a existir”.

Bates (2010, p. 46) traz que a prime matter “subjacente a uma forma de substância

pode existir sem aquela forma, e sem qualquer forma em absoluto”. Prime matter é um

substrato para a geração de substâncias, mas não é substância em si.

Dentro da substância material encontram-se prime matter de uma lado e forma

substancial de outro. A diferença está no que se compartilha. O exemplo dado por Bates

(2010, p. 46) é fecundo.

Adaptando-se um pouco o exemplo de Bates, pense-se que João e Maria têm corpo

e alma cada qual de um lado em uma divisão imaginária. Uma linha relacionada ao corpo de

João e Maria, sendo João e Maria humanos – uma substância material, desceria até a prime

matter compartilhada, ou seja, a materialidade do corpo de João e Maria.

Do outro lado da divisão imaginária (lado da alma), uma outra linha também

imaginária desceria até a essência compartilhada dentro da forma substancial, ou seja, sua

humanidade. Do lado da alma há forma substancial e no lado do corpo há prime matter.

A materialidade descende do corpo e a humanidade descende da alma. Da primeira

decorre e se compartilha a prime matter das substâncias materiais e da segunda decorre e se

compartilha a essência, dentro da forma substancial, das substâncias materiais. Os

compartilhamentos são diferentes e prime matter não se confunde com forma substancial.

Visto isso e seguindo sua linha de raciocínio acerca da natureza das substâncias

segundo Scotus, Bates (2010, p. 58) traz que isso têm sua própria unidade separada do

intelecto, de modo que não se confunde com o conceito de universais, o qual é produzido

pelo intelecto.

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Nos termos de Bates (2010, p. 43), Scotus assevera que a experiência do

conhecimento de uma coisa ou de uma qualidade é uma noção mais geral do que o objeto

primeiro e não pode ser atribuída à faculdade dos sentidos:

Podemos ver esse homem ou aquele homem, mas não podemos ver ou

escutar o universal humano, não importa quão longe por quanto tempo

procuremos. Do mesmo modo, quando alguém vê uma superfície

vermelha, a vermelhidão da superfície não é um universal, porque ela

tem uma localização definida num lugar e a um tempo. O que quer

que seja que sentimos têm condições individuais materiais, existindo

em um lugar ou a um tempo, o qual não pode pertencer a um universal.

Mais uma vez, nenhuma faculdade de sentido pode carregar alguma coisa

fora do seu alcance.

[...]

cognição de universais de alta ordem, como o conceito de ser, está fora do

alcance de qualquer sentido. O que sentimos é sempre apenas esse e aquele

ser.

[...]

enquanto o estado de compreensão pode ser apenas realmente

universal, nenhuma parte material de um indivíduo pode ser

realmente universal. Se alguma parte material de um indivíduo pudesse

conhecer um universal ela teria a capacidade de processar o real universal.

Scotus presumi que nenhuma parte material tem essa potencialidade, já que

toda parte material deve ser individual ao invés de universal. Partes

materiais não podem evitar estarem localizadas num lugar definido e

a um tempo definido, e o que quer que seja que esteja localizado deve

ser individual. (Destacou-se).

Nesse contexto, o que se depreende é que universais não podem ser partes materiais

de coisas, haja vista que universais não estão em um lugar definido a um tempo definido e

somente coisas materiais individualizáveis podem assim estar.

Bates (2010, p. 44) traz, ainda, que: “O que se sustenta é que o objeto da cognição

intelectual humana deve ser uma entidade incorpórea. Como ‘toda outra forma é estendida’

em um ser humano, esse objeto imaterial ‘não pode ser nada diferente da alma intelectual”.

Portanto, o que se tem, segundo Scotus, é que o estado de compreensão é universal,

o que não se confunde com um estado material de coisas, porque estados materiais de coisas

não podem ser universais, sendo que o que permite esse conhecimento do mundo é uma

espécie de alma intelectual.

Bates (2010, p. 58) esclarece que o uso de “unidade” feito por Scotus é diferenciado

do sentido comum, eis que contempla uma universalidade e uma singularidade como

unidades. Para ele, a singularidade, no entanto, é uma unidade maior do que a universalidade.

Para entender isso, diga-se que se alguém pensa em uma unidade de uma coisa

qualquer que pode ter uma coletividade, essa singularidade é uma unidade. Volte-se ao

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exemplo da abelha no Mênon de Platão. Uma abelha é um singular, ou um tipo de unidade

– uma singularidade. Porém, o universal “abelha” – a circunstância de ser abelha, não pode

ser uma singularidade – um tipo de unidade singular.

Como se disse, a circunstância de ser abelha é multilocal e multitemporal, v.g.: há a

abelha A que é amarela clara e grande e há a abelha B que é mais escura e pequena. Tanto

abelha A como abelha B compartilham a circunstância de ser abelha, mas a abelha A não se

estende à abelha B; são singularidades diferentes.

Pense-se que o todo maior não é o universal que se espalha pelas abelhas A e B, mas

sim a própria abelha A e a própria abelha B como singularidades, pois uma pequena parte

comum espalhada e dispersa é menor e menos densa que uma grande parte do todo que é a

abelha na sua singularidade.

É nessa linha que Scotus (1973, p. 402) explica que:

30 Assim também, [...] alguma unidade real está na coisa, sem nenhuma

operação do intelecto, menor que a unidade numérica ou que a

unidade própria do singular, "unidade" que é da natureza de acordo

consigo mesma, - e de acordo com esta "unidade própria" da natureza,

na medida em que é natureza, a natureza é indiferente à unidade da

singularidade; portanto, não é, de si, una, naquela unidade, a saber,

na unidade da singularidade. (Destacou-se).

Como se nota, para Scotus a unidade própria da natureza não é exatamente uma

unidade da coisa numericamente estabelecida, eis que se refere a algo menor em relação à

própria singularidade da coisa, tratando-se de “algo” precedente à coisa em si.

É por isso que Scotus (1973, p. 403) traz que esse “algo”:

32 [...] ainda que nunca seja realmente sem algum destes, de si não é algum

destes, mas é naturalmente anterior a todos estes, - e de acordo com a

prioridade natural é "aquilo que é" por si objeto do intelecto, e por si,

como tal, é considerado pelo metafísico e é expresso pela definição; e

as proposições "verdadeiras do primeiro modo" são verdadeiras em razão

da qüididade assim tomada, pois nada é dito "por si no primeiro modo"

acerca da qüididade a não ser o que esteja incluído nela essencialmente, na

medida em que ela é abstraída de todos estes, que são naturalmente

posteriores a ela. (Destacou-se).

Como se vê, no trecho acima, Scotus trata de um “algo” (como unidade da natureza)

que é precedente ao singular numa proporção numérica deste, de modo que, o que se pode

dizer, é que se refere a um “algo” a priori de certo modo que permite o intelecto conhecer

as coisas.

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Scotus (1973, p. 404) fulmina da seguinte forma:

33 Com efeito, ainda que ela seja inteligida sob a universalidade como sob

o modo de a inteligir, a universalidade não é parte do seu conceito

primeiro, pois não é conceito do metafísico, mas do lógico, (com efeito,

o lógico considera as segundas intenções, aplicadas às primeiras de

acordo com ele próprio). Portanto, a primeira intelecção é "da

natureza", de maneira que não é co-inteligido nenhum modo, nem

aquele que é seu no intelecto nem aquele que é seu fora do intelecto;

ainda que a universalidade seja o modo de inteligir deste inteligido,

não é o modo inteligido! (Destacou-se).

Ainda sobre a diferença da universalidade e da singularidade, Scotus aponta para

uma primeira intelecção da “natureza das coisas” que não está nem dentro nem fora, mas

que é o modo de inteligir da universalidade, mas não o que este “modo de inteligir” é como

objeto.

Assim, a primeira intelecção que é possível é aquela possível pelo metafísico porque,

pelo que se interpreta aqui de Scotus, é da natureza das coisas e a priori. Já a segundo

intelecção que autoriza uma universalidade não é como é possível por conta do metafísico,

mas sim do lógico, eis que aplica a segunda intelecção à primeira intelecção numa operação.

Exsurge aqui clara uma associação com a primeiridade peirceana que será explicada

mais adiante, como essa qualidade da coisa que permite uma segunda intelecção, que é do

lógico e não do metafísico, e que autoriza, de um modo ou de outro, entrelaçar-se com uma

realidade.

Scotus (1973, p. 404-405) conclui da seguinte forma:

34 E assim como, de acordo com este ser, a natureza não é de si universal,

mas a universalidade advém a esta natureza segundo sua primeira razão,

segundo a qual é objeto, - assim também na coisa exterior, onde a

natureza está com a singularidade, esta natureza não é, de si,

determinada à singularidade, mas é naturalmente anterior à própria

razão que a restringe àquela singularidade, e, na medida em que é

naturalmente anterior àquilo que a restringe, não lhe repugna ser sem

aquilo que a restringe. E assim como o objeto no intelecto teve verdadeiro

ser inteligível de acordo com esta anterioridade dela e a universalidade,

assim também na coisa a natureza tem um verdadeiro ser real externo

à alma de acordo com aquela entidade, - e de acordo com aquela

entidade tem uma unidade que lhe é proporcional, que é indiferente à

singularidade, de tal modo que não repugna de si àquela unidade que seja

colocada com qualquer unidade de singularidade (logo, entendo deste

modo que "a natureza tenha uma unidade real menor que a unidade

numérica"); e ainda que não a tenha de si, como se fosse interna à razão

da natureza (pois "eqüinidade é somente eqüinidade", de acordo com

Avicena no livro V da Metafísica), aquela unidade é uma afecção própria

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da natureza de acordo com sua primeira entidade, e, por conseguinte, nem

é por si "esta" intrinsecamente, nem de acordo com a entidade própria

necessariamente incluída na própria natureza de acordo com a primeira

entidade dela. (Destacou-se).

Bem, vale a pena um esclarecimento detalhado para fixar a compreensão. Scotus quer

significar que a unidade de uma natureza substancial (como a abelha A ou B), conforme

aponta Bates (2010, p. 58), é real e intermediária entre um universal e um ser singular, sendo

chamada no escotismo, também, de comunidade, de modo que “natureza comum se refere

apenas a naturezas substanciais com unidades intermediárias, uma unidade não tão

indiferente como aquela dos universais, não tão particular como aquela dos indivíduos

singulares”. Trata-se de uma via terceira entre o universal e o particular.

Scotus (1973, p. 405-406) traz isso de forma esclarecedora:

36 Além disso, Damasceno no cap.8: "É preciso saber que uma coisa é ser

considerado na coisa e outra na razão e no pensamento. Portanto, e em

particular, certamente em todas as criaturas, considera-se a divisão das

hipóteses na coisa (na coisa, com efeito, Pedro é considerado separado de

Paulo), - mas considera-se a comunidade e reunião, só no intelecto, pela

razão e pelo pensamento (com efeito, inteligimos no intelecto porque

Pedro e Paulo são de uma única natureza e possuem uma única

natureza comum)"; "Com efeito, estas hipóteses não são em si recíprocas,

mas cada uma é individualmente partida, isto é, separada segundo a coisa".

E depois: "De fato, na santa e supersubstancial Trindade ocorre o contrário:

com efeito, lá considera-se na coisa um único comum", "mas depois no

pensamento, o dividido". (Destacou-se).

Assim, para Scotus, no singular há uma separação que é da coisa em si e diferente de

coisa para coisa, mas somente no intelecto é que é possível inteligir a “comunidade”, a

“natureza comum” das coisas.

Nesse contexto, traga-se na linha de Bates (2010, p. 86) que as naturezas comuns no

escotismo deixam um problema de difícil solução em relação à individuação das coisas. O

problema aqui é de causação, eis que se erige da circunstância de que, baseado na natureza

comum, naturezas substanciais não são nem universais e nem singulares.

Se assim o é, se indivíduos têm uma natureza comum, mas essa natureza não pode

ser mensurada numericamente em termos de unidade, como se pode dizer que um indivíduo

é unitariamente diferente de outro, é dizer, possuem substâncias diferentes entre si?

Essa interrogação é difícil de contestar, porém, no escotismo é possível encontrar

uma resposta elucidadora. Um exemplo é sempre fecundo para clarificar as coisas, o qual é

adaptado de Bates (2010, p. 86). Pense-se que Einstein é um indivíduo e Copérnico também.

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Pense-se que há uma natureza comum entre eles na linha da forma substancial, conforme

exemplo de João e Maria já mencionado acima, ou seja, o que lhes é comum é a

“humanidade”, a qual não é nem universal, nem particular e nem mesmo real.

Se Einstein fosse o mesmo em relação à sua natureza comum, ele não seria um

particular, pois natureza comum, como se disse, não pode ser particular, mas ele seria

comum – comunidade. Porém, mesmo comum, Einstein é um ser humano particular, eis que

Einstein não é o mesmo que Copérnico, inclusive numericamente distinto em relação a esse.

Então, o que se tem no caso é que, ao fim e ao cabo, não se pode dizer verdadeiramente

que Einstein é o mesmo em relação à sua natureza comum.

Bem, se Einstein é diferente de Copérnico, inclusive numericamente e, por tal

motivo, justifica-se que é numericamente um ser particular, qual é a causa da singularidade

de Einstein ou, em outras palavras, o que causa a individualidade de uma natureza

substâncial?

Ora, já se disse anteriormente que a unidade de uma natureza substancial é real e

intermediária entre um universal e um ser singular, sendo chamada no escotismo de

comunidade. Trata-se de uma via terceira entre o universal e o particular.

Portanto, a causa da singularidade proveniente da natureza comum, ou da

comunidade, é, em verdade, uma “unidade acidental de singularidade ou uma unidade

acidental de universalidade”.

Porém, deve-se, necessariamente, procurar a causa da singularidade, a qual adiciona

alguma coisa acima da natureza a que pertence. Que é essa coisa adicionada à natureza da

singularidade estabelecida pela comunidade? Que causa a natureza comum receber o

acidente da singularidade? Ou melhor: que causa a individuação em substâncias materiais?

Acerca do tema, Scotus (1973, p. 409-410) traz:

41 E pelo que foi dito, fica claro em relação ao argumento principal, pois

o Filósofo refutava aquela ficção que atribui a Platão, a saber, que "este

homem" existente por si - o qual é considerado como "idéia" - não

pode ser por si universal para todo homem, pois "toda substância

existente por si é própria àquilo da qual é", isto é: ou é por si mesma

"própria", ou "é tornada própria" por algo que a restringe,

restringente que tendo sido posto não pode estar em outro, ainda que

não lhe repugne de si estar em outro, - e esta explicação também é

verdadeira, falando-se da substância na medida em que é tomada como

natureza; e assim segue-se que a idéia não será substância de Sócrates,

pois nem sequer é natureza de Sócrates, - pois, não é por si própria,

nem apropriada a Sócrates, de tal modo que esteja somente nele, mas

também está em outro, de acordo com o mesmo [Platão]. Mas se se

toma a substância como substância primeira, então é verdade que

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qualquer substância é, por si, própria àquilo do que é e, então, segue-

se muito mais que aquela idéia - que é posta como "substância

existente por si" - não pode ser substância de Sócrates ou de Platão

deste modo; ora o primeiro membro é suficiente a este propósito.

(Destacou-se).

Scotus (1973, p. 410) adiciona ao mencionado, ainda, o seguinte:

42 Para a confirmação da opinião, é claro que a comunidade e a

singularidade não estão para a natureza como o ser no intelecto e o ser

verdadeiro fora da alma, pois a comunidade cabe à natureza fora da

alma, e semelhantemente a singularidade, - e a comunidade cabe por

si à natureza, mas a singularidade cabe à natureza por algo que a

restringe na coisa; mas a universalidade não cabe à coisa por si. E

assim concedo que se deve procurar a causa da universalidade, mas não se

deve procurar outra causa da comunidade além da própria natureza; e

tendo sido colocada a comunidade na própria natureza de acordo com

sua própria entidade e unidade, é preciso necessariamente buscar a

causa da singularidade, que adiciona algo àquela natureza da qual é.

(Destacou-se).

Nesse contexto, volta-se, então, às perguntas: que causa a individuação em

substâncias materiais? Que restringe a natureza na coisa, permitindo a singularidade? Que é

isso que adiciona algo à natureza, autorizando a particularização de coisas?

Bem, como se viu acima, está-se falando da “humanidade” de Einstein e Copérnico,

isto é, está-se na linha descendente do lado da alma dos dois indivíduos, conforme exemplo

já detalhado de João e Maria, sendo que tal “humanidade” se relaciona com a forma

substancial dos dois seres individuais.

Assim, segundo Bates (2010, p. 87), a resposta às interrogações acima é que a causa,

o “algo” que se adiciona, aquilo de restringe, autorizando a individuação das coisas se dá

por uma entidade, uma primitiva haecceitas (ou thisness), o que se gravará aqui também por

presentidade em homenagem à segundidade peirceana que será estudada mais adiante. É ela

que restringe (aprisiona) a natureza comum ou comunidade na particularidade. É ela que

aponta para a coisa, que denota a coisa, que permite dizer “essa coisa”. É ela que aplica um

“esseísmo” à coisa para individualizá-la.

Nesse piso, deve-se retomar mais uma vez o exemplo de João e Maria, para, a partir

dele, traçar-se duas grandes linhagens: uma a partir da matéria das coisas e outra a partir da

forma das coisas.

Nessa dinâmica, será possível vislumbrar ao final da linhagem da matéria das coisas

a prime matter de que já se cuidou mais acima e no final da linhagem da forma a haecceitas

que se acabou de falar. Então, diante do processo de individuação, que circula por universal

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e particular, a circulação se dá por essas duas linhagens. A ilustração abaixo fala por si só e

é essa a visualização explicativa que aqui se tem da correlação em Scotus entre universal e

particular:

Figura 1 – Correlação em Scotus de universal e particular

Nesse contexto, diga-se que Bates (2010, p. 61) traz que no escotismo um universal

somente pode existir no intelecto, conforme se representa na ilustração acima. “Não pode

existir nos singulares, e não pode existir sozinho, separado dos singulares e fora do intelecto.

Isso não quer dizer que não haja algo de universal no particular e algo do particular no

universal em termos de correspondência, eis que o que está nos particulares, para Scotus, é

o comum – a comunidade.

Pela ilustração acima, verifica-se ainda que na linhagem da forma, descendo desde a

indiferença do universal (quase sem densidade nenhuma), alcança-se a haecceitas, que é

justamente essa “entidade” que adiciona à natureza das coisas para individualizá-las.

A ideia de haecceitas encontra possíveis correspondências, pelo que aqui se

interpreta, no realismo peirceano, máxime no que toca às categorias ceno-pitagóricas de

Peirce, as quais serão estudadas mais adiante nesse trabalho.

Na outra linhagem, conforme ilustração acima, descendo pela matéria da coisa,

deságua-se na prime matter. Lembre-se que a prime matter no escotismo é uma coisa básica

sem reais características particulares como cor e peso, mas com a potencialidade de ter tais

reais características. [...] vai junto com a forma da substância material para fazer possível

Haecceitas Prime

matter

Universal

Naturezas

materiais Forma

Natureza

comum ou

Comunidade

Particular

Forma

substancial

Fonte: Elaborado pelo autor

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que a substância como um todo venha a existir. Lembra muito a primeiridade peirceana, a

qual será estudada, como já se disse, mais à frente nesse trabalho.

Com a ideia de prime matter na mente, fica mais fácil entender o papel protagonizado

pela haecceitas. Se a prime matter escotista tem a potencialidade de ter características

particulares, há outra entidade que permite que essas características se individualizem.

A intepretação que aqui se expõe é que essa entidade é a haecceitas – ela permite que

uma potência de cor se torne hic et nunc presente – permite, pois, a presentidade de

potências em substâncias materiais. Seria possível usar a palavra “existência” aqui

também, haja vista que a haecceitas atribui à potência da prime matter escotista

“existência”.

Haecceitas ao cabo é uma entidade que serve para fins de individualização nas

coisas. Ela restringe o que há de comum nas coisas do mundo para sua singularidade ser

possível. Se assim o é, é porque já se parte de um princípio, qual seja, que coisas podem ser

individualizadas. Que, então, permite o acidente da singularidade? Bem, como já se disse,

um princípio de causação especial que encontra na haecceitas tal acidente à singularidade.

Aristóteles já teria resolvido há muito tempo o problema da causação no acidente da

singularidade com seu princípio fundamental de que: “é impossível que o mesmo atributo

pertença e não pertença ao mesmo tempo ao mesmo sujeito, e na mesma relação”.

Sua resolução do problema parece partir de universais no sentido de predicação

(formal) e propriedades (material). Se Jesus é humano, Jesus não pode ser não humano ao

mesmo tempo. Se isso se presume (ser não humano ao mesmo tempo que humano), então há

uma contradição, o que fere de morte o princípio fundamental aristotélico.

Para aplicar o exemplo acima ao escotismo, caso se adote que Jesus não humano

pode “existir” sem ferir o princípio básico da não-contradição aristotélico, o que se verifica

é, em certa medida, a aceitação de que se pode considerar um Jesus como mera potência de

ser humano – algo que não é humano, mas tem a potencialidade de ser.

Tal indagação parece improvável aos olhos comuns, pois seria o mesmo que dizer

que “César tem a potencialidade de atravessar o Rubicão” é o mesmo que “César atravessou

o Rubicão”. Nesse caso, a “potencialidade” seria o mesmo que a “existência”, eis que, do

contrário, ter-se-ia que admitir a “existência” de dois Césares ou, o que seria pior, de um

“real” e outro transcendental (algo como um Jesus dos céus).

Segundo Bates (2010, p. 96-97), no entanto, Scotus aceita a noção de algo meramente

potencial, esclarecendo que, em verdade, um indivíduo meramente potencial está

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completamente individualizado. Scotus (apud BATES, 2010, p. 97) baseia sua resposta

numa hierarquia categorial. Para ele “o ser da existência não tem suas próprias diferenças

outras que não as diferenças do ser da essência”.

A hierarquia categorial de Scotus, segundo Bates (2010, p. 97), se baseia no modelo

da árvore de Porfírio, “exaustivamente mapeando a estrutura inteligível da realidade em

termos de gênero, espécies e individuais, sem se referir à atual existência”.

Porfírio, como traz Barnes (2003, p. 109), não propriamente tratava de uma árvore,

mas mais de uma cadeia. Porfírio utiliza o termo “substância” ( ) de Aristóteles na sua

versão de substância absoluta diferente de substância relacional, como na seguinte cadeia:

Substância------Corpo------Vivo Corpo------Animal------Racional Animal-----Homem-----

Sócrates e Platão e o resto.

Modernamente, conforme aponta Barnes (2003, p. 110), a árvore foi desenhada da

seguinte maneira:

Figura 2 – Árvore de Porfírio

Fonte: Barnes (2003, p. 110)

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Fundamentado na árvore de Porfírio, Scotus (apud BATES, 2010, p. 98), sustenta

que, tendo em vista que a categoria hierárquica (gênero, espécie, indivíduos) permanece a

mesma, ainda que considerado o meramente potencial, “a ‘atualidade’ não individualiza seus

membros”.

“Atualidade” ou “existência”, pois, não são o mesmo que haecceitas, pois não

servem ao propósito de individuação de coisas. Nesse contexto, traz Bates (2010, p. 104)

que:

o que faz uma substância um individual é uma positiva, não-acidental

entidade que é simples, sem natureza dela mesma e a complexidade

intrínseca que ter uma natureza implica para aqueles indivíduos para a qual

ela pertence. [...] Scotus chama essas “entidades individuais”

escrevendo delas “…Existem certas entidades positivas que per si

determinam a natureza” Eu devo usar um termo mais familiar,

“haecceitas”, para Scotus “finalística específica diferença”. (Destacou-

se).

A divisão baseada na árvore de Porfírio (gênero, espécie, indivíduos) parece

solucionar, no escotismo, o problema da individuação entre singulares, convivendo com o

problema das potencialidades que são reais, principalmente, levando em consideração o

conceito já explicado de natureza comum que está impregnado na teoria escotista.

Um exemplo pode melhor elucidar a solução apontada. Pense-se que o homem A e

o homem B são diferentes substâncias singulares (espécies) de um gênero de substâncias C.

Como o homem A e o homem B são espécies de um gênero C, eles são diferentes espécies

A e B, mas têm, ao mesmo tempo, algo compartilhado (algo comum) por conta da

“pertencibilidade” ao gênero C. Lembrem-se: a circunstância de ser abelha independe de

“ser” abelha em A ou em B – tem uma comunidade, uma natureza comum. Essa comunidade

não é materialmente haecceitas, mas sim prime matter.

A diferença entre eles, no entanto, não está na natureza (comunidade) do homem A

e do B. Há algo mais primitivo que os diferencia, que restringe (aprisiona) a comunidade, a

qual se origina da prime matter, em um singular. Esse “algo” não é uma negação e não se

relaciona diretamente com “atualidade” ou “existência”.

Por não ser uma negação, decorre que esse “algo” é um “positivo”. Esse positivo é

uma dada “entidade” – “entidade positiva”, a qual determinará a natureza daquilo ao qual

ela pertence. Ora, essa “entidade positiva”, a qual determina a natureza de algo, restringindo

a natureza comum nesse algo e, ao mesmo tempo, pertence a esse algo, chama-se haecceitas

(ou, como se traduziu aqui, presentidade).

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Com base na árvore de Porfírio, usando-se, ainda, o exemplo do homem A e B, numa

correlação entre haecceitas e prime matter, tem-se que a prime matter é a materialidade

desses homens A e B, sendo que sua humanidade é que é a haecceitas, conforme a seguinte

ilustração:

Figura 3 – Árvore de Porfírio em Scotus

Humano (substância material)

Corpo (corpóreo – matéria substancial) Alma (incorpóreo – forma substancial)

Ser mortal/Materialidade (prime matter) Imortalidade/Humanidade (haecceitas)

Noone (2003, p. 120) explica com propriedade o descrito na composição acima com

base na árvore de Porfírio:

Scotus compara o papel determinante do princípio de individuação, como

ele o concebe, com específicas diferenças de inter-relação com outros itens

na árvore de Porfírio: a diferença específica pode ser comparada com o

que está abaixo dela, o que está acima dela, e o que está adjacente a ela

na árvore de Porfírio. Se a diferença específica é vista com referência

com o que está abaixo dela, é dizer, a natureza específica, a natureza

específica determinada ou informada pela diferença específica é tal

que não resta mais aberta à multiplicidade no nível do específico; é

determinada a ser aquela espécie e não outra. Da mesma forma, a

diferença individual determina o indivíduo de tal modo que não resta

mais aberto a uma maior multiplicidade numérica, mas é determinado

a ser esse indivíduo e não outro; é dizer, não é instanciável. Se a

diferença específica é vista em referência ao o que está acima dela,

podemos dizer que ela contrasta o gênero à espécie, como ato relativo

à potência representada pelo gênero. Assim, também, podemos dizer

que a diferença individual funciona de tal modo com referência à natureza

específica, porém com uma importante e digna de nota qualificação. No

caso da diferença específica e do gênero uma determinação formal é

adicionada a uma formal determinação, mas no caso da diferença

individual uma forma não é adicionada a uma forma; ao invés disso, a

adição vem da realidade mesma da forma propriamente dita – a

entidade individual é a expressão última da forma da coisa – e o

Fonte: Elaborado pelo autor

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composto que é o resultado não é constituído em ser quididativo, mas

em o que Scotus chama ser material ou ser contraído. Finalmente, se

compararmos a diferença específica com os itens adjacentes a elas na

árvore de Porfírio, é dizer, outras diferenças específicas, podemos

dizer que toda diferença específica última, enquanto que

simultaneamente dá aos itens na espécie uma certa característica

diferenciadora e constitui os itens nas espécies no ser que elas têm, é,

no entanto, diversa das outras diferenças. Consequentemente, quando

perguntamos o que é comum ao racional e irracional no que se refere

à divisão dos animais, a resposta apropriada, se desejamos evitar um

regresso ao infinito, é que compartilham nada, mas são simplesmente

diversos. Igualmente, as diferenças individuais são primariamente e

simplesmente diversas, embora os indivíduos constituídos por aquelas

diferenças sejam itens que compartilham a mesma natureza específica,

apenas tanto quanto os itens nas diferentes espécies compartilham no

gênero apesar do fato que eles são cada [um] constituídos nas suas espécies

respectivas por diferenças que são primariamente diversas. (Destacou-se).

A pergunta que resta, no entanto, e parece óbvia, é como se pode diferenciar,

conforme exemplo acima, prime matter4 e haecceitas. Quer parecer, conforme pontua Noone

(2003, p. 121), que a diferença é formal ou lógica.

Um lógico pode distinguir, mas não um metafísico, por assim dizer, ou seja,

formalmente pode-se trazer que prime matter é diferente de haecceitas, de modo que a

prime matter não estaria incluída na descrição formal de um indivíduo quanto à

haecceitas e haecceitas não estaria incluída na descrição formal de um indivíduo quanto

à prime matter.

É possível chamar Einstein mortal, mas não se pode dizer que Einstein é

“humanidade”, ainda que seja por meio da humanidade que Einstein possa ser chamado

mortal. A natureza de Einstein é una numericamente somente sob uma perspectiva

denotativa (esse Einstein).

Quando se diz que Einstein é mortal, essa “mortalidade” física (materialidade) é uma

natureza relacionada à prime matter. A humanidade de Einstein, no entanto, é haecceitas e

não contém formalmente na sua descrição a diferença individual de Einstein (Einstein-

mortalidade) e vice-versa.

Porém, Einstein, o qual pode ser considerado uno numericamente, sob uma

perspectiva meramente denotativa, contém uma Einstein-mortalidade (prime matter) e uma

humanidade (haecceitas).

4 Ressalta-se que “prime matter” não é um termo propriamente de Scotus, mas sim um termo usado por Bates.

Scotus utiliza-se de “matéria” simplesmente para falar da mesma coisa.

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Como conclusão, faz todo sentido a aproximação do tema trazida por Noone (2003,

p. 122), o qual aponta o realismo escotista como moderado, tendo se baseado em articulações

suportadas por mínimas fundações ontológicas, o que se deve à circunstância de Scotus ter

caracterizado “seu princípio da individuação como formal, mas distinguindo dois tipos de

formas: forma quididativa capaz de múltiplas instancializações e forma individual, formas

únicas que funcionam como fontes de atualidade, mas não são comunicáveis”.

Malgrado a longa digressão necessária, nota-se que o tema do realismo escotista é

fundamento evidente para suportar o realismo peirceano que se especificará mais adiante e

que serve de base firme para a construção científica aqui posta.

No que diz respeito ao domínio jurídico, quer parecer claro, igualmente, que as

noções de prime matter e haecceitas com base no escotismo podem ser facilmente aplicadas.

O princípio da individuação escotista parece se assemelhar, como mecanismo, sobremaneira

à incidência, interpretação e aplicação de regras jurídicas gerais e abstratas (aqui chamadas

signos jurídicos gravadores potenciais e gerais) formativas de regras jurídicas individuais e

concretas (aqui chamados signos gravadores particulares ou singulares).

No direito, a prime matter se assemelharia aos eventos gravados (semeioticamente)

pela autoridade competente mediante a interpretação e aplicação dos signos gravadores

potenciais e gerais gravados pelo legislador como de possível ocorrência.

A haecceitas seria o que autorizaria a formação da singularidade ou particularidade

a partir do signo gravador potencial e geral. Esta entidade positiva, seria, no direito, a sua

própria positividade – a função cogente-prescritiva-impositiva-realizativa do direito, a qual

autorizaria sujeição pelos sujeitos de direito e individualização do signo gravador potencial

e geral (evento gravado de possível ocorrência) em signo gravador particular ou singular, o

qual grava o evento da summa realidade já ocorrido.

Haecceitas é que autoriza o juiz dizer que esse direito se aplica e se impõe a esse

sujeito de direito individualmente por conta de um signo gravador potencial e geral (regra

geral e abstrata). O signo gravador potencial é aquele usado pelo legislador para gravar a

comunidade da prime matter em relação ao evento da summa realidade em linguagem

jurídica e com efeitos de direito. Gravar é imprimir semeioticamente um evento potencial e

geral em particular ou singular.

É por isso que quando o legislador do signo gravador potencial e geral (regra geral

e abstrata) grava um evento da summa realidade passível de gerar efeitos de direito, em

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verdade, ele o grava nos limites da linguagem potencial e geral para que tais efeitos possam

ser produzidos particularmente quando assim se permitir com base na experiência sensível.

Esse legislador, pois, grava o que há de comunitário acerca de um evento passível

de consequências de direito – acerca de sua prime matter. Essa comunidade da prime matter

gravada é um tipo de convenção, como se verificará mais adiante quando se detalhar o tema

específico.

O signo gravador potencial e geral do legislador, então, por meio da haecceitas, se

particulariza com base na experiência sensível que uma mente jurídica ou grupo delas

permite diante de uma investigação também jurídica, gravando em um signo gravador

particular ou singular um evento particularizado ou singularizado da summa realidade.

1.1.4 Realismo Kantiano (Idade Moderna)

A ideia desse tópico é aproximar a teoria kantiana a um realismo empírico. O estudo

se baseia no excelente trabalho de Paul Abela, em seu “Kant’s Empirical Realism”, o qual

tenta afastar o rigor do chamado “idealismo transcendental” de Kant no sentido de que

espaço e tempo seriam independentes da sensibilidade, para dar espaço à possibilidade de

uma interpretação de Kant em direção à permissibilidade de um realismo empírico.

Abela (2002, p. 15) traz que:

Idealismo transcendental é a teoria geral de Kant. A teoria geral estrutura

um vasto conteúdo, espalhando 20 anos de trabalho e todos os três Críticas.

Como uma grande mansão, ela inclui muitos quartos, contemplando o

tratamento Kantiano relacionado ao conhecimento, moralidade e

estética. O realismo empírico é um dos quartos nessa mansão. Esse

quarto contém a análise Kantiana das condições necessárias para o

conhecimento do mundo familiar dos objetos empíricos. (Destacou-se).

Para compreender o realismo empírico kantiano, é preciso, em primeiro lugar,

compreender a parte da teoria kantiana que trata do idealismo transcendental (sua teoria

geral) para, assim, fazer-se o contraponto. Nesse sentido, veja-se como se expressa Audi

(1999, p. 463):

Kant apresentou seu idealismo transcendental como preferível a todas as

alternativas explicações que ele conhecia sobre a possibilidade de

conhecimento matemático e o status metafísico de espaço e tempo.

Diferentemente do empirismo, ele permitia necessárias reivindicações no

seu domínio; diferentemente do racionalismo, libertava o desenvolvimento

desse conhecimento dos procedimentos da mera análise conceitual; e

diferentemente dos Newtonianos isso era feito sem dar a espaço e tempo

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um status misterioso como algo absoluto ou predicado de Deus. Com

qualificações prósperas, a doutrina de Kant da identidade transcendental

de espaço e tempo pode ser compreendida como uma radicalização da ideia

moderna de qualidades primárias e secundárias. Como outros têm

sustentado que as qualidades da cor sensível e som, por exemplo,

podem ser intersubjetivamente válidas e objetivamente baseadas

enquanto existentes apenas como relativas em relação a nossa

sensibilidade e não atribuíveis a objetos nelas mesmas, então Kant

propôs que o mesmo deveria ser dito acerca dos atributos espaço-

temporais. A doutrina de Kant, no entanto, é diferente, eis que não é

uma hipótese empírica que deixa acessível a nós outros teóricos e não-

ideias atributos para explicar experiências particulares. É mais uma

teoria metafísica que enriquece as explicações empíricas com uma

estrutura a priori, mas dispensa qualquer explicação para aquela

estrutura propriamente dita outra que não a declaração de que essa

jaz na “constituição” da sensibilidade humana como tal.

[...]

Mesmo quando estruturadas por formas puras de espaço e tempo, as

representações sensíveis não rendem conhecimento até que sejam

compreendidas em conceitos e esses conceitos são combinados no

julgamento. De outra forma, somos deixados com meras impressões,

espalhadas numa não inteligível “multiplicidade” ou multiforme; nas

palavras de Kant, “pensamentos sem conteúdo são vazios, intuições

sem conceito são cegas”. Julgamentos requerem conceitos e intuições;

não é apenas quaisquer relações de conceitos, mas eles trazidos de

maneira agrupada de uma maneira particular, uma unidade

“objetiva”, de modo que um conceito é predicado de outro, por

exemplo, “todos os corpos são divisíveis” – e isso se aplica “a certas

aparências que se apresentam a nós,” por assim dizer, são intuitivas.

Porque qualquer julgamento envolve uma unidade de pensamento que

pode ser prefixada pela frase “Eu penso”, Kant fala de todas as

representações, na extensão de que elas podem ser julgadas por nós,

como sujeitas a uma necessária unidade de apercepção. (Destacou-se).

A tal unidade de apercepção kantiana, a qual, pelo que aqui se interpreta, refere-se a

essa estrutura a priori que dispensa demonstração empírica e jaz na constituição da

sensibilidade humana, não é nem conceitual nem intuitiva (no sentido de aparência). Isso se

deve à circunstância de que uma apercepção não pode ser conceitual, pois anterior ao

conceito de alguma coisa que se percebe, e não pode ser intuitiva na linha kantiana, eis que

uma aparência se percebe e uma apercepção é falta total de percepção.

É, pois, metafísica, algo como uma intuição antes da aparência para conhecimento

do universo, similar ao que jaz por traz do princípio metodológico da navalha de Ockham

em direção ao julgamento, mas uma formulação metafísica postular na linha do que baseou

a navalha de Ockham, pois que, se é só intuição, sem aparência ou qualquer nível de

percepção, é intuição do quê? De um conceito? Qual é, então, a aparência de um conceito?

Como se percebe um conceito a priori? Bem, não se percebem conceitos e não se pode ser

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intuitivo acerca deles, então, estaria ele (conceito), conforme traz Kant, na constituição da

sensibilidade humana.

Seguindo-se o idealismo transcendental kantiano na linha explicitada, guardar-se-ia

pouco lugar para um realismo empírico. Porém, como defende Abela, esse realismo empírico

pode ser defendido na doutrina kantiana em direção à admissão de uma realidade exterior.

Segundo Abela (2002, p. 30), para que o realismo empírico kantiano seja possível, é

preciso combater o modelo epistêmico cartesiano, eis que tal modelo “efetivamente nos

distancia do imediato acesso aos objetos. O que experimentamos diretamente [segundo esse

modelo] são nossas determinações internas: ideias na mente, não objetos no mundo”.

Kant (apud ABELA, 2002, p. 30), acerca disso, traz:

Assim, eu não posso realmente perceber coisas externas, mas apenas

inferir sua existência da minha percepção interna, na medida em que

eu considero isso como o efeito de alguma coisa externa é a causa próxima.

Porém, agora a inferência de um dado efeito à sua causa determinada é

sempre incerta, já que o efeito pode ter nascido de mais de uma causa.

Nesse sentido, na relação de percepção a essa causa, sempre

permanece duvidoso se a causa é interna ou externa, de modo que quer

todas as ditas percepções externas são um não mero jogo do nosso

senso interno ou quer eles estejam relacionados a objetos externos

reais como sua causa. (Destacou-se).

Esse talvez seja um dos problemas mais fundamentais na disputa entre realismo e

nominalismo, é dizer como é possível articular a existência de objetos externos à mente se o

acesso a eles se dá por meio de conceitos (dizer que conceitos são mentais é tautológico)?

O problema pode estar na herança cartesiana do pensamento ocidental, a qual acaba

por conceber realidade como mediação entre ideia na mente e objeto externo, o que se

caracteriza pela dicotomia entre referido (na mente) referente (externo).

Abela (2002, p. 31) traz com propriedade que “o que começou em Descartes como

uma tentativa de chegar a um indubitável conhecimento do mundo externo acaba,

ironicamente, com a recusa da possibilidade de qualquer referência a uma realidade

independente”.

A questão que deve ser colocada em foco diz respeito ao formalismo que pode ser

atribuído ao idealismo transcendental kantiano na linha de que o conhecimento

transcendental é um conhecimento a priori em relação à estrutura da experiência e qual seu

papel para combater o ideal cartesiano que parece fundamentar o idealismo empírico.

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Segundo Abela (2002, p. 46), a distinção entre realismo empírico e idealismo

empírico, baseado no pensamento kantiano, é da qual deve-se partir. A premissa que difere

é que no ideal cartesiano tem-se representações internas determinadas por objetos externos

putativos, sendo que em Kant o que se sustenta é que “a experiência interna em geral é

possível apenas por meio de uma experiência externa em geral”.

Para Abela (2002, p. 46), o idealismo empírico “deriva a existência de objetos do que

é dado primitivamente no conteúdo da percepção: vendo a subjetiva base de representação

[dado o conteúdo mental] como uma suficiente base para suportar inferências a objetos

correspondentes”.

O realismo empírico kantiano, no entanto, afasta-se de uma determinação a partir do

que é dado (a priori). Como aponta Abela (2002, p. 46), “ao invés de derivar a existência de

objetos, o realismo empírico demanda o imediato envolvimento de relações de referência

como uma condição para um conteúdo interno determinado”.

Kant (1998, p. 327), acerca do tema, traz:

Idealismo assumiu que a única experiência imediata é a experiência

interna, e que a partir disso coisas externas poderiam apenas ser inferidas,

mas, apenas de maneira incerta, como sempre que se inferem causas

determinadas de dados efeitos, já que a causa das representações que

talvez falsamente imputamos às coisas externas pode também jazer em nós.

Ainda assim, aqui está provado que a experiência externa é que é

realmente imediata, e que só por seu intermédio é possível, não a

consciência da nossa própria existência, mas a sua determinação no

tempo, isto é, a experiência interna. É claro, a representação Eu sou, a

qual expressa a consciência que pode acompanhar todo pensamento, é

aquela que imediatamente inclui a existência de um sujeito nela mesma,

mas ainda não inclui a sua cognição, de modo que tampouco é cognição

empírica, é dizer, experiência; pois, para tanto se requer uma intuição,

além do pensamento de algo existente, e aqui, intuição interna, com

referência à qual, ou seja, ao tempo, o sujeito tem de ser determinado;

para isso são exigidos absolutamente objetos exteriores; por

conseguinte, a experiência interna só é possível mediatamente, e

apenas através da experiência externa. (Destacou-se).

Do que se depreende das palavras de Kant, o que se tem é que somente a experiência

externa é que é realmente imediata, de modo que qualquer experiência interna, ou seja,

experiência por intermédio da mente, tomará lugar de maneira mediata em relação ao mundo

externo. Isso quer dizer que experimentar algo mentalmente, ou seja, um conceito que se

apresenta na mente, é um mecanismo que se faz com supedâneo em algo que está externo ao

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conceito, o que implica a referência a um referente e, pois, o dual referido e referente, mas

com o referente sendo do mundo real.

O ponto de diferenciação, para que se enfatize, diz com a diferença do substrato dado,

em relação a qual, para o idealista empírico é a priori e para o realista empírico é algo que,

ao menos imediatamente, relaciona-se com a realidade externa e é apenas indiretamente

dependente de conteúdos mentais.

Conforme aponta Abela (2002, p. 47): “Kant contrasta esse modelo com a demanda

do realista empírico pela presença imediata de objetos e seus poderes como condição para

determinada representação centrada no sujeito”.

A questão que se coloca em relação ao idealismo empírico em contraste com o

realismo empírico refere-se ao papel das sensações como núcleo duro que suportará o

conhecimento humano acerca dos objetos do mundo e a participação do julgamento nesse

processo.

Pode-se rebater o idealismo empírico com base no exemplo trazido por Abela (2002,

p. 50). Nesse contexto, quando alguém observa um tomate vermelho em cima da mesa, não

há somente a ação do olho (sentido) sobre o tomate que implica sua existência para o sujeito,

mas, mais do que isso, há algo além do sentido que implica a observação do tomate vermelho

sobre a mesa. Trata-se do julgamento de que há um tomate vermelho sobre a mesa e que se

está vendo aquele tomate vermelho. Faz-se um juízo.

Quando uma criança de um ano de idade aponta para um balão inflável e diz “bola”

isso é uma coisa. Porém, é uma coisa totalmente diferente quando uma criança de três anos

que, presenciando a cena, diz “não é uma bola é um balão”. Para uma criança de um ano de

idade, o balão inflável tem forma de bola e, portanto, é uma bola. Para a criança de três anos

de idade, o julgamento é ampliativo, há mais conhecimento adquirido sobre o que é uma

bola, de modo que balão e bola são coisas diferentes. Esse julgamento está além do olho que

vê o balão inflável.

Dessa forma, vê-se que no julgamento se está além do sentido da visão, eis que a

própria percepção racional de que o tomate (objeto) está sobre a mesa vem junta, por assim

dizer, com a percepção de que se está vendo esse objeto. Se o objeto fosse tocado, haveria

uma percepção de que se está tocando o objeto e, essa percepção, não é somente sentido do

corpo, mas algo que permite que o próprio sentido seja percebido como sentido

racionalmente, algo como um “julgamento perceptivo ou empírico”.

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O ponto de diferença com o idealismo empírico parece jazer na circunstância de que

não se trata apenas de um sentido (que é a causa), o qual permitirá que se agrupem conteúdos

mentais já presentes e que foram amontoados pelo hábito.

É mais do que isso. No “julgamento perceptivo” há, conforme pontua Abela (2002,

p. 51), um papel do julgamento que apresenta ao sujeito algo para pensar a respeito da coisa

que se “julga”. Afirmam-se que coisas são de um jeito ou de outro.

É mais do que uma presentidade da coisa, como se verifica na segundidade como

categoria ceno-pitagórica na teoria peirceana, como será visto mais adiante, eis que não

apenas implica “atualidade” à coisa que se “julga”, mais do que isso, o julgamento permite

dizer ser a coisa de um certo modo, para uma certa função, com determinadas características

diferenciadoras etc.

O que há aqui é uma afirmação acerca de uma coisa com orientação objetiva

por meio do pensamento – por meio de um julgamento perceptivo acerca da coisa que

se percebe mentalmente. Nos termos que pontua Kant (2001, B 142):

Quando, porém, atento com mais rigor na relação existente entre os

conhecimentos dados em cada juízo e a distingo, como pertencente ao

entendimento, da relação segundo as leis da imaginação reprodutiva (que

apenas possui validade subjetiva), encontro que um juízo mais não é do

que a maneira de trazer à unidade objetiva da apercepção

conhecimentos dados. A função que desempenha a cópula "é" I nos juízos

visa distinguir a unidade objetiva de representações dadas da unidade

subjetiva. Com efeito, a cópula indica a relação dessas representações

à apercepção originária e à sua unidade necessária, mesmo que o juízo

seja empírico e, portanto, contingente, como, por exemplo, o seguinte:

os corpos são pesados. Não quero com isto dizer que estas representações

pertençam, na intuição empírica, necessariamente umas às outras, mas

somente que pertencem umas às outras, na síntese das intuições, graças

à unidade necessária da apercepção, isto é, segundo princípios da

determinação objetiva de todas as representações, na medida em que

daí possa resultar um conhecimento, princípios esses que são todos

derivados do princípio da unidade transcendental da apercepção. Só

assim dessa relação surge um juízo, ou seja, uma relação

objetivamente válida, que se distingue suficientemente de uma relação

destas mesmas representações, na qual há validade apenas subjetiva,

como por exemplo a que é obtida pelas leis da associação. Em

conformidade com estas últimas diria apenas: quando seguro um corpo,

sinto uma pressão de peso, mas não que o próprio corpo seja pesado; o que

é o mesmo que dizer que ambas estas representações estão ligadas no

objeto, isto é, são indiferentes ao estado do sujeito, e não apenas juntas na

percepção (por muito repetida que possa ser). (Destacou-se).

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Do que se extrai aqui do pensamento kantiano, verifica-se que não se trata o

julgamento de mera associação de conteúdos pré-estabelecidos na mente, abstraindo o

concreto (como pressuposto), como poderia atestar o idealista empírico.

O julgamento é perceptivo – um juízo objetivamente orientado, o qual deriva da coisa

objetivamente considerada. As representações de objetos “reais” são relações de

representações objetivamente orientadas na mente.

A relação objetivamente orientada é válida ou não na medida da sua orientação

objetiva. Quando se diz que o sol produz calor, há uma relação objetivamente orientada na

representação do sol na síntese das intuições, o que se verifica em relação à unidade

transcendental da apercepção, a qual é transcendental porque inesgotável, o que não implica

que a relação não seja mais do que uma relação de representações meramente mentais.

O calor do sol na pele do sujeito cognoscente que tem uma relação mental

objetivamente orientada não é uma relação de representações meramente mentais associadas

nos lindes da mente cognoscente. Há uma unidade de apercepção originária que permite a

relação na síntese da intuição com determinação objetiva.

A diferença de aproximações do tema entre o idealista empírico e o realista empírico,

reforce-se, jaz no dado pressuposto. Para o primeiro, há “determinações primitivas” e

“determinações derivadas”, sendo as primeiras relacionadas ao hábito proveniente das

experiências sensoriais (são subjetivas) e as segundas relacionadas à representação

produzida a partir das primeiras de maneira ficta (são também subjetivas), o que afasta o

objetivismo por completo.

A diferença de aproximação parece repousar no ponto de partida do conhecimento e,

para os idealistas empíricos, em uma diferenciação entre ideias, pensamentos e o que Hume

(1999, p. 96) chamou de impressões:

Aqui, portanto, podemos dividir todas as percepções da mente em duas

classes ou espécies, as quais são distintas pelos seus diferentes graus de

força e vivacidade. As menos fortes e vivas são comumente

denominadas PENSAMENTOS ou IDEIAS. As outras espécies querem

um nome na nossa língua, e em muitas outras; Eu suponho, porque não era

um requisito para nenhum propósito além do filosófico, classificá-las

debaixo de um termo geral ou denominação. Vamos, portanto, usar um

pouco de Liberdade, e chamá-las IMPRESSÕES; empregando essa

palavra no sentido de alguma coisa diferente do usual. Pelo termo

impressão, então, eu quero dizer todas nossas mais vivas percepções,

quando ouvimos, ou vemos, ou sentimos, ou amamos, ou odiamos, ou

desejamos, ou queremos. E impressões são distintas de ideias, as quais

são as menos vivas percepções, das quais somos conscientes, quando

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refletimos sobre qualquer daquelas sensações ou movimentos acima

mencionados.

[...]

Porém, nosso pensamento parece possuir essa liberdade ilimitada, a

qual encontramos, diante de uma mais próxima verificação, que ele

está realmente confinado dentro dos estreitos limites, e que todo esse

poder criativo da mente vale nada mais do que a faculdade de compor,

transpor, aumentar, ou diminuir os materiais fornecidos a nós pelos

sentidos e experiência. Quando pensamos acerca de uma montanha

dourada, nós apenas juntamos duas ideias consistentes, ouro, e

montanha, com as quais estávamos anteriormente familiarizados. Um

cavalo virtuoso pode ser concebido; porque, do nosso próprio sentimento,

podemos conceber a virtude; e isso podemos unir à figura e forma de um

cavalo, o qual é um animal familiar para nós. Em resumo, todos os

materiais do pensamento são derivados ou do nosso sentimento

externo ou do nosso sentimento interno: A mistura e composição

destes pertence à mente e à vontade. Ou, para me expressar na

linguagem filosófica, todas nossas ideias ou mais frágeis percepções

são cópias de nossas impressões ou mais vivas percepções.

[...]

A ideia de Deus, como significando um ser infinitamente inteligente,

sábio e bom, nasce da reflexão sobre operações da nossa mente, e do

aumento, sem limite, daquelas qualidades de bondade e sabedoria.

Podemos continuar esse exame pela extensão que quisermos; onde

sempre encontraremos, que toda ideia que examinamos é uma cópia

de uma impressão similar. (Destacou-se).

Hume esclarece que as ideias e pensamentos são apenas uma derivação ou cópias das

impressões, as quais dizem respeito ao contato empírico do homem com as coisas do mundo,

de modo que a transcendência do pensamento não é senão uma ilusão, pois que a imaginação

não é nada além do que esticar dados já empiricamente conhecidos de uma forma ou de

outra.

A pedra de toque aqui, na linha de Hume, é que tanto determinações primitivas

(impressões) como derivadas (ideias e pensamentos) são criações mentais do sujeito. Há

somente um subjetivismo implícito e explícito nas coisas, de modo que a experiência é

somente uma relação mental sem correspondência física necessária, o que forma a realidade

somente por meio de uma pressuposição de conteúdos regulares na mente do sujeito

cognoscente.

Nesse contexto, diga-se que puras sensações (impressões) não são nada sem o

determinismo que o julgamento lhes aplica. São algo como mera potência e mera potência

sem determinação não implica conhecimento do objeto.

Segundo Abela (2002, p. 53), o que há no pensamento kantiano, diferentemente, é

uma prioridade do julgamento, sem o qual estados sensoriais crus não implicam

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conhecimento da coisa, ou seja, não são objetivamente orientados, eis que não há

objetivismo sem um juízo sobre o objeto. No exemplo de Hume da montanha dourada,

conforme já transcrito, veja-se que não há efetivamente uma cópia das impressões, mas

um juízo referente a um uso linguístico no caso metafórico da coisa real “montanha” e

do predicado “dourada”.

As impressões primeiras quase apáticas não são ingrediente do conhecimento do

objeto, “representam apenas a maneira como objetos afetam os sujeitos cognoscentes”. Não

representam experiência, mas “são uma qualidade-quantidade de matéria de experiência em

potência.”

Pippin (1982, p. 33) traz com precisão esse enfoque do pensamento kantiano relativo

ao realismo empírico:

Como já vimos, o mais importante aspecto da descrição é a alegação de

Kant que, considerado como uma multiplicidade, sensações não podem em

nenhum sentido ser consideradas um modo de conhecimento, ou

representações determinadas em absoluto. Relação a um objeto é alguma

coisa que deve ser sempre estabelecida por meio da compreensão do

julgamento, e isso deve ser sempre estabelecido apenas porque nenhuma

relação imediata a objetos é contida nessa sensação. Ele está também

alegando, mais genericamente, consciência sensorial não pode ser

considerada uma consciência de nada complexo ou determinado em

absoluto. Uma multiplicidade é tão determinada apenas quando

“pensada” em um determinado modo, quer quando nós apenas

notamos os conteúdos subjetivos do sentido interno, quer quando

queremos alguma relação com o objeto externo. Isso, de qualquer

modo, parece ser a força da constante caracterização da sensação

como apenas a “maneira em relação à qual somos afetados pelos

objetos”, e da alegação de Kant que isso fornece a mera matéria da

experiência. (Destacou-se).

Em uma possível comparação com Scotus, poder-se-ia trazer que essa mera matéria

da experiência, se concebida metafisicamente, pode ser vista em cotejo com a prime matter,

algo que precede, mas que necessariamente se coloca em direção da substância material,

alçando-lhe aa status de objetivamente orientada. Se algo é objetivamente orientado, quer

parecer óbvio que tal premissa implica o reconhecimento de que há algo além da

representação – um percepto.

Conforme Abela (2002, p. 59) esclarece, a preocupação kantiana diz respeito à

segurança que se pode atribuir às representações diante “da multiplicidade da intuição ser

intrinsicamente indeterminada”, de modo que o direcionamento representacional deve

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priorizar o julgamento, afastando uma conexão da crença com algo que seja alheio ao

julgamento como impressões (sensações puras).

Nessa linha, conforme aponta Abela (2002, p 59), a aproximação do tema feita por

Kant dever ser vislumbrada diante da aquisição de conhecimento como um processo que se

abre e se fecha, “o qual se movimenta de uma inicial determinação definida pela vontade a

maiores níveis de representação determinada”.

Conforme esclarece Bird (1962, p.57), esse movimento em Kant é horizontal:

Ele fala de maneira geral do que é dado aos sentidos como indeterminado

até que a compreensão é capaz de determinar, ou discriminar entre o que é

percebido. Similarmente, ele fala de “determinar” e “determinação” como

contribuição específica, a qual a compreensão torna conhecimento [...]. O

contraste entre objetos do sentido e compreensão é, portanto, melhor

expresso com termos tais quais indeterminado e determinado,

indiscriminado e discriminado, ou não descrito e descrito, objetos e

aparências. A distinção familiar entre o que é estritamente dado e o

que é inferido ou construído a partir desse material básico, não é

exatamente o que Kant tem em mente.

[...]

É, portanto, importante distinguir percepção de concepção, natural

consequentemente desenhar uma distinção específica entre a não

descrita ou indiscriminada multiplicidade da aparência e sua

descrição em termos de, ou discriminação dentro de, diferentes tipos

de objeto percebido. Distinguir o sentido de “aparência” desse jeito é

não permitir qualquer questionamento sobre a possibilidade de

especificação desse sentido por meio de descrições empíricas

ordinárias do que percebemos. Kant raramente usa o termo “fenômeno”,

mas fala, no entanto, das coisas que conhecemos e investigamos como

aparências. É inteiramente natural, desde que esse termo cubra

indiscriminadamente todas as coisas que dizemos que percebemos, e não

para se referir a alguma categoria favorecida dessas coisas das quais outras

coisas, tais quais objetos materiais, podem ser inferidos ou construídos. A

construção kantiana não é “vertical”, de um nível inferior a um nível

superior de descrições, mas “horizontal”, de uma multiplicidade

indiscriminada de sentido a itens discriminados dentro dela.

(Destacou-se).

As “impressões” de Hume, por assim dizer, em Kant, são equivalentes à aparência,

com a diferença de que em Kant tudo que se diz percebido é “aparência”. Ao distinguir a

aparência de sua descrição em termos de diferentes tipos de objetos percebidos, Kant não

enxerga aí a diferenciação clássica entre o que é dado e o que é inferido como em uma

visualização que vem de baixo para cima, do mundo natural para a mente representacional.

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Sua visão é, por assim dizer, “plana”, eis que parte do modelo lateral do

indeterminado ao determinado – multiplicidade indiscriminada (aparência) à discriminação

conceitual por meio da experiência.

Como traz Abela (2002, p. 60), em um “julgamento empírico”, o objeto de

julgamento (a aparência) deve ser considerado como local para que predicados sejam

atribuídos por meio da experiência em relação ao objeto.

É bem complicado sustentar uma visão da representação kantiana como sendo

objetivamente orientada como quer Abela, haja vista que o processo de dedução

transcendental em Kant parece se afastar disso. Veja-se o seguinte trecho retirado de Kant

(2001, B 34):

Sejam quais forem o modo e os meios pelos quais um conhecimento se

possa referir a objetos, é pela intuição que se relaciona imediatamente com

estes e ela é o fim para o qual tende, como meio, todo o pensamento. Esta

intuição, porém, apenas se verifica na medida em que o objeto nos for

dado; o que, por sua vez, só é possível, [pelo menos para nós homens],

se o objeto afetar o espírito de certa maneira. A capacidade de receber

representações (receptividade), graças à maneira como somos afetados

pelos objetos, denomina-se sensibilidade. Por intermédio, pois, da

sensibilidade são-nos dados objetos e só ela nos fornece intuições; mas

é o entendimento que pensa esses objetos e é dele que provêm os

conceitos. Contudo, o pensamento tem sempre que referir-se,

finalmente, a intuições, quer diretamente (directe), quer por rodeios

(indirecte) [mediante certos caracteres] e, por conseguinte, no que

respeita a nós, por via da sensibilidade, porque de outro modo nenhum

objeto nos pode ser dado. O efeito de um objeto sobre a capacidade

representativa, na medida em que por ele somos afetados, é a sensação.

A intuição que se relaciona com o objeto, por meio de sensação, chama-

se empírica. O objeto indeterminado de uma intuição empírica chama-

se fenômeno. Dou o nome de matéria ao que no fenômeno corresponde

à sensação; ao que, porém, possibilita que o diverso do fenômeno possa

ser ordenado segundo determinadas relações dou o nome de forma do

fenômeno. Uma vez que aquilo, no qual as sensações unicamente se

podem ordenar e adquirir determinada forma, não pode, por sua vez,

ser sensação, segue-se que, se a matéria de todos os fenômenos nos é

dada somente a posteriori, a sua forma deve encontrar-se a priori no

espírito, pronta a aplicar-se a ela e, portanto, tem que poder ser

considerada independentemente de qualquer sensação. (Destacou-se).

É difícil ler esse trecho da teoria kantiana e ainda assim sustentar uma objetivação

na orientação das representações no modelo de aquisição de conhecimento kantiano, porém,

não há de se perder as esperanças.

Primeiro, é preciso vislumbrar como se apresenta o modelo, o que será facilitado com

o desenho abaixo:

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Figura 4 – Diferenciação do caminho a priori e a posteriori em Kant

Fenômeno

Em primeiro lugar, a compreensão das palavras kantianas, pelo que aqui se interpreta,

vai em direção de que a multiplicidade do objeto em si, por ser inesgotável, só pode ser

indeterminável, é dizer, o objeto das sensações, as quais são o meio de contato (algo como

canal), são objetos indeterminados, os quais levam o nome de fenômenos.

Do fenômeno duas entidades podem ser abstraídas: a matéria e a forma. A matéria é

aquilo do fenômeno que a sensação toma contato. A capacidade de receber representações

de fenômenos se chama sensibilidade e o efeito que um objeto impacta em tal capacidade

denomina-se sensação. O efeito que a matéria impacta na sensibilidade ocorre

“aposterioristicamente”.

A outra entidade dos fenômenos é a forma. Bem, o que se entende por forma em

Kant, segundo o texto acima, é uma entidade que precede a matéria, eis que não possibilita

contato por meio da sensação e, se a sensação não pode travar contato com ela, o que se

deduz é que deve ser considerada aprioristicamente.

O pressuposto aqui é simples: se o fenômeno é objeto indeterminado, quer dizer que

“algo” permite uma determinação do pensamento. Se esse “algo” não é sensação e, só a

sensação é que é a posteriori, isso quer dizer que esse algo é a priori, o que Kant chamou de

forma.

Kant chama a intuição de empírica, eis que se trata de uma intuição de sensação ou

por sensação. Isso quer dizer, na interpretação que aqui se atribui às suas palavras, que, se a

intuição é necessariamente empírica, deve ser objetivamente orientada pelo que ele

chamou “matéria” (do fenômeno).

No modelo de indeterminação determinação kantiano há, no entanto, uma

entidade chave, a qual permite deduzir relações determinadas da indeterminação do

fenômeno (objeto indeterminado) – a forma. Bem, quer parecer óbvio que uma forma só

pode ser determinada, eis que se fosse indeterminada forma não teria.

Forma

(determinação)

Matéria

(Indeterminação) Sensação

Matéria

Conceito

Intuição

empírica

Pensamento Intuição

pura Sensibilidade

A PRIORI

A POSTERIORI

Fonte: Elaborado pelo autor

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Se isso é assim, tal implica que a determinação da forma segue ao pensamento, por

via da intuição pura, permitindo ao sujeito cognoscente um conceito da multiplicidade

disforme, v.g.: trata-se de ferramenta utilizada para comer – um garfo. Se a forma é do

sujeito, então o pensamento é subjetivamente orientado por ela.

Talvez com esse raciocínio permita-se uma visão realista empírica em Kant sem, ao

mesmo tempo, violentar a dedução transcendental de sua teoria, haja vista que a separação

em matéria e forma acomoda uma orientação objetiva (por meio da intuição empírica) e

uma orientação puramente subjetiva (por meio da forma e intuição pura).

Trazendo isso para o escotismo, é credenciável dizer, nas devidas proporções, que há

uma similaridade entre prime matter (Scotus) e matéria (Kant), bem como com haecceitas

(Scotus) e forma (Kant).

Com isso, sendo a intuição objetivamente orientada (empiricamente pela

matéria do fenômeno), isso quer dizer que o pensamento e o conceito também o são,

ainda que indiretamente. Portanto, algum ingrediente objetivamente orientado há no

pensamento, de modo que determinação e indeterminação não são de todo diferentes

ao final.

Não haveria, pois, nessa percepção do realismo empírico que se pode atribuir a Kant,

um radicalismo do ponto de partida, podendo-se dizer que as sensações são objetivamente

orientadas e, se assim o são, é porque não se abstrai totalmente o objeto em si como algo

dado, mas sim, considera-se sua indeterminação na multiplicidade inesgotável das coisas em

si como fenômeno e isso não é algo dado ou a priori, mas sim a posteriori como o próprio

Kant traz.

Admitindo-se que há um dado a posteriori que a sensibilidade a partir do fenômeno

permite sensibilizar, isso quer dizer que a summa realidade (realidade absoluta externa) não

se presume pressuposta por completo, o que definitivamente parece, pelo que aqui se

interpreta, ser uma forma de realismo ainda que moderada.

Trata-se, assim, certamente, na visão kantiana, de um mundo de aparências, mas isso

não quer dizer que a intuição não possa ser empiricamente orientada por uma matéria do

fenômeno, a qual é, certamente, de uma forma ou de outra, partícipe da summa realidade.

Porém, como se adiantou no desenho anteriormente apresentado, Kant não atribui o

conhecimento somente a uma intuição empírica das coisas, a continuação da leitura de sua

estética transcendental dá conta de uma outra forma de intuição – a intuição pura (KANT,

2001, B 35):

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Chamo puras (no sentido transcendental) todas as representações em

que nada se encontra que pertença à sensação. Por consequência, deverá

encontrar-se absolutamente a priori no espírito a forma pura das intuições

sensíveis em geral, na qual todo o diverso dos fenômenos se intui em

determinadas condições. Essa forma pura da sensibilidade chamar-se-á

também intuição pura. Assim, quando separo da representação de um

corpo o que o entendimento pensa dele, como seja substância, força,

divisibilidade, etc., e igualmente o que pertence à sensação, como seja

impenetrabilidade, dureza, cor, etc., algo me resta ainda dessa intuição

empírica: a extensão e a figura. Estas pertencem à intuição pura, que

se verifica a priori no espírito, mesmo independentemente de um

objeto real dos sentidos ou da sensação, como simples forma da

sensibilidade.

Designo por estética transcendental uma ciência de todos os princípios

da sensibilidade a priori. [...] Na estética transcendental, por

conseguinte, isolaremos primeiramente a sensibilidade, abstraindo de tudo

o que o entendimento pensa com os seus conceitos, para que apenas reste

a intuição empírica. Em segundo lugar, apartaremos ainda desta intuição

tudo o que pertence à sensação para restar somente a intuição pura e

simples, forma dos fenômenos, que é a única que a sensibilidade a

priori pode fornecer. Nesta investigação se apurará que há duas formas

puras da intuição sensível, como princípios do conhecimento a priori, a

saber, o espaço e o tempo, de cujo exame nós vamos agora ocupar.

(Destacou-se).

Do que aqui se extrai das palavras de Kant, o que se tem é que a sensibilidade –

capacidade representativa dos sujeitos cognoscentes, quando despida de qualquer

consideração referente à matéria, ou seja, quando estiver somente impregnada pela forma,

que é o diverso do fenômeno, permitirá um efeito no sujeito cognoscente diferente da

sensação, o qual gerará um distinto modo de intuição, que Kant designa “puro”.

Tal intuição é totalmente baseada na forma do fenômeno e também é uma forma de

sensibilidade, mas uma forma pura dessa capacidade de representação, a qual não implica o

efeito de sensação.

Essa intuição pura seria alheia a uma orientação objetiva, verificando-se, pois, de

maneira totalmente apriorística – algo no espírito do sujeito cognoscente. Porém, diga-se que

isso que resta – que é intuição pura, é certamente intuição de alguma coisa, pois seria

estranho ser intuição de nada. Se é intuição de alguma coisa, quer parecer que será necessária

uma nova abstração, a qual parece levar à tal da forma kantiana. Trata-se de algo realmente

similar à haecceitas.

O interessante aqui é que Kant divide a intuição em pura e empírica, o que implica

que presume haver pensamentos impregnados por uma e outros por outra: pensamentos

puros e outros empíricos.

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Isso pode se aproximar sobremaneira da ideia de objeto em Peirce, quem considera

não somente o objeto “externo”, mas também objetos fictos, como sonhos e ficções. Nessa

linha, em uma tentativa de compatibilização, os externos teriam efeito na intuição empírica

e os fictos na intuição pura de Kant.

É bom lembrar que esses pensamentos puros serão desenvolvidos na devida extensão

na parte da teoria kantiana que trata da lógica transcendental, a qual permite pensamentos

puros, os quais levam a conceitos despidos de relação a objetos.

A pergunta que parece óbvia de ser feita aqui é a seguinte: se existe uma “entidade”

concebida completamente aprioristicamente, isso quer dizer que a summa realidade que é

somente captável pelas sensações nada contribui para tal entidade? Ou de outro modo: que

pensamento é esse que implica conceitos que vêm despidos de ingredientes da realidade

sensível?

Para o que aqui se defende, a “montanha dourada” de Hume responde a contestação

com tranquilidade. A “montanha dourada” em si é uma fantasia da mente – uma criação sem

correspondente direto na summa realidade. Porém, indiretamente, a mente conhece com

orientação objetiva o que é montanha e a qualidade da cor “dourada”. Dessa forma, mesmo

a montanha dourada é mediatamente objetivamente orientada.

Mesmo um conto de fadas é baseado em ingredientes da realidade sensível, até

Sócrates era um homem, pois, baseado no modelo do homem que é retirado da realidade

sensível. Que intuição pura de espaço e tempo fictos é essa, que é matéria para o pensamento

e que se associa com o nada para gerar algo de que podemos pensar?

Como conceber um percepto que seja puramente espiritual? Será realmente que o

determinismo significa abdicar do indeterminismo da multiplicidade das coisas em si? Qual

o papel, então, da experiência nesse processo do conhecimento? São perguntas no estilo

socrático que aqui se colocam e que serão respondidas ao longo deste trabalho, mas que já

dão conta de que a posição aqui adotada é de um realismo com visão holística.

Uma pista de uma saída pode estar em Kant mesmo, haja vista a diferenciação que

traz em relação a julgamento e associação. Segundo Abela (2002, p. 62), no julgamento

afirma-se algo objetivamente por meio da cópula “é”, como em “isso é um cachorro”.

Julgamentos, assim, são afirmativos, “eles declaram que um estado de coisas existe” e

“afirmam uma necessária relação entre representações mesmo no caso de julgamentos

empíricos”.

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A cópula “é” designa a relação das representações com a apercepção original e sua

necessária unidade: “encontro que um juízo mais não é do que a maneira de trazer à unidade

objetiva da apercepção conhecimentos dados” (KANT, 2001, B 142).

Essa é exatamente a diferença entre esse aspecto do pensamento kantiano e o de

Hume, o qual não vislumbra essa característica do julgamento objetivamente orientado,

conforme aponta Abela (2002, p. 63).

Visto isso, um ponto que deve ser finalmente tratado é acerca do papel da verdade

no pensamento kantiano e sua participação na construção do conhecimento. Nesse contexto,

traga-se o que diz Kant (2001, A 58) sobre verdade:

A velha e famosa pergunta pela qual se supunha levar à parede os lógicos,

tentando forçá-los a enredar-se em lamentável dialeto ou a reconhecer a

sua ignorância e, por conseguinte, a vaidade de toda a sua arte, é esta: Que

é a verdade? A definição nominal do que seja a verdade, que consiste

na concordância do conhecimento com o seu objeto, admitimo-la e

pressupomo-la aqui; pretende-se, porém, saber qual seja o critério geral e

seguro da verdade de todo o conhecimento. (Destacou-se).

A ideia primeira de Kant a respeito de verdade parece ser uma ideia muita próxima

àquela referente à da crença por convenção. Se há concordância é porque há um acordo entre

partes e, se há acordo, é porque algo foi estabelecido acerca de algo. Esse “algo” é que impõe

problemas epistemológicos ao ser trabalhado, eis que pode ser objetivamente orientado ou

não. Se for, então tratar-se-á de um objeto mesmo na realidade sensível captado pela intuição

empírica da matéria do fenômeno.

Kant (2001, B 191) continua sobre o tema para trazer:

Embora os fenômenos não sejam coisas em si, como são, todavia, a única

coisa que nos é dada para conhecer, terei que indicar qual a ligação que

convém, no tempo, ao diverso nos próprios fenômenos, visto que a sua

representação é sempre sucessiva na apreensão. Assim, por exemplo, a

apreensão do diverso no fenômeno de uma casa, que está colocada diante

de mim, é sucessiva. Se, porém, perguntarmos se o diverso desta mesma

casa também é sucessivo em si, ninguém, decerto, dará resposta afirmativa.

Todavia, se elevar os meus conceitos de um objeto até à significação

transcendental, a casa já não é uma coisa em si mesma, mas apenas

um fenômeno, ou seja, uma representação, cujo objeto transcendental

é desconhecido; que entendo, pois, por esta interrogação: como pode

estar ligado o diverso no próprio fenômeno (que não é todavia uma

coisa em si)? Considera-se aqui, como representação, o que se

encontra na apreensão sucessiva, e o fenômeno que me é dado, não

sendo mais que o conjunto destas representações, é considerado como

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objeto das mesmas, com o qual deverá concordar o meu conceito,

extraído das representações da apreensão. Logo se vê que, sendo a

verdade o acordo do conhecimento com o objeto, aqui apenas se

podem indagar as condições formais da verdade empírica e o

fenômeno, por oposição com as representações da apreensão, só pode

ser representado como objeto dessas representações, distinto de elas,

porque essa apreensão está submetida a uma regra que a distingue de

qualquer outra e impõe, necessariamente, um modo de ligação do

diverso. O que, no fenômeno, contém as condições desta regra

necessária da apreensão, é o objeto. (Destacou-se).

Das difíceis palavras de Kant, o que se pode extrair é que quanto mais se

“horizontaliza” ao nível transcendental mais se abstrai a ponto de se afastar da coisa em si –

do objeto. Uma casa pode ser, como matéria do fenômeno, considerada em si, mas, se

considerada como forma, ou seja, o diverso do fenômeno, não pode. O diverso, assim, é

considerado de modo sucessivo na representação que o intelecto capta. Algo parecido com

dizer que é considerado diante do “eixo sintagmático” para usar um termo de linguística, o

qual quer dizer que é considerado em “presença”, de maneira opositiva entre representações,

em uma linhagem horizontalizada.

Aqui o objeto da representação é o fenômeno dado, que é o conjunto das

representações possíveis. A percepção das representações aqui é sucessiva, ou seja, não

alcança a coisa em si, eis que está em um grau alto de transcendência.

A representação está de um lado, como em uma tríade, estando o fenômeno do outro

lado e o conceito acima (de maneira horizontal), o qual deve concordar com o fenômeno.

Salta aos olhos uma associação clara com signo, objeto e interpretante, com a diferença que

aqui o fenômeno não é objeto em si. Para aproximar à linguística, pode-se dizer que esse

conceito que concorda com o fenômeno está acima, no eixo paradigmático (ou em ausência,

verticalizando-se).

Como a verdade é acordo com o objeto e o objeto da representação aqui é abstrato,

o que se tem é que as condições dessa verdade empírica são condições formais, as quais

levam em consideração uma regra da percepção que permite condições no fenômeno para a

ligação do diverso na representação. Essas condições referem-se ao objeto.

Kant (2001, B 279) vai além, ao falar da verdade e aproximá-la da experiência:

Da necessidade da existência de objetos exteriores para a possibilidade de

uma consciência determinada de nós mesmos não se conclui que toda a

representação intuitiva das coisas exteriores implique a existência

dessas mesmas coisas, porquanto esta representação pode ser

simplesmente um efeito da imaginação (em sonhos ou também na

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loucura); e, mesmo nesse caso, realiza-se unicamente mediante a

reprodução de antigas percepções externas, que, conforme

mostramos, só são possíveis mercê da realidade dos objetos exteriores.

Aqui apenas se pretendeu provar que a experiência interna em geral

só é possível mediante a experiência externa em geral. Para averiguar

se esta ou aquela suposta experiência é ou não simples imaginação,

será preciso descobri-lo segundo as determinações particulares dessa

experiência e o seu acordo com os critérios de toda a experiência real].

(Destacou-se).

Nesse trecho, Kant claramente impõe uma dependência objetivamente orientada para

a representação, sendo que a solução kantiana, pelo que aqui se interpreta, parece estar na

experiência externa como reguladora, mediata ou imediatamente, da experiência interna.

Portanto, nessa linha, a própria verdade, ainda que condicionada ao formal e podendo ser

abstraída de fenômenos, não está despida de ingredientes da experiência sensível (externa),

de modo que a concordância é, mediatamente ou imediatamente, em relação ao objeto em

si, ou uma relação interna abstraída de algum objeto que já passou pelos sentidos.

Aqui é possível compatibilizar, como se verá mais adiante, a aparentemente

contraditória alegação peirceana de que os sonhos também são objetos reais, haja vista

que podem o ser na dimensão de que dependem para sua determinação de experiências

externas anteriores da percepção.

Como no exemplo da “montanha dourada” de Hume, ao imaginá-la, o que se tem é

que essa imaginação é real na extensão de que ouro e montanha são experiências externas

possíveis, de modo que, ao menos mediatamente, essa imaginação da “montanha dourada”

é real.

Como se verá na sequência, a experiência é que formará a crença da realidade. A

qual pode, por vezes, em determinado momento e espaço historicamente considerados, ser

alheia à realidade mesma daquele tempo e espaço, o que, no entanto, não quer dizer que não

tenha ingrediente de realidade externa, significando tão somente e, aqui jaz um avanço

significativo em relação a Kant, que tal crença é falível (falibilismo peirceano) e, portanto,

permanentemente “atualizável”.

Portanto, quer parecer possível a alegação de que Kant considerou um realismo

empírico na sua teoria com acepções que se direcionam a uma orientação objetiva das

representações, o que implica que considerou a “existência” da realidade externa, o que não

necessariamente contrasta com seu realismo transcendental, que é parte de outra fatia de sua

teoria, para explicar, principalmente, a forma dos fenômenos.

Abbagnano (1998, p. 834) parece concordar com essa conclusão ao trazer que:

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o realismo fora retomado por Kant na primeira edição de Crítica da Razão

Pura para denotar uma linha de pensamento em relação à qual espaço e

tempo são independentes da nossa sensibilidade, chamado de “realismo

transcendental”, linha de pensamento essa oposta àquela defendida por

Kant. Por outro lado, Kant indicava uma doutrina sua que admitia

uma realidade exterior das coisas, o “realismo empírico”. (Destacou-

se).

Esse realismo empírico kantiano que é o que se quer aplicar ao fenômeno jurídico, o

qual, a exemplo do fenômeno na visão kantiana, tem também forma e matéria. O que se

defende é que é possível também no direito perceber as coisas do mundo, na consideração

de que implicam consequências de direito, por meio de uma intuição empírica.

Assim, na interpretação e aplicação do direito, a autoridade jurídica competente

poderia fazer uso de uma intuição empírica, o que afastaria juízos formados por dedução

lógica. Tal intuição empírica, fundamentada na matéria do fenômeno kantiano, seria, pois,

objetivamente orientada.

Isso concilia Kant com o realismo in re de Platão, com o universal in re de Aristóteles

e com a ideia de prime matter, a qual pode ser associada ao escotismo. Traz, para o direito,

não só uma visão considerada na perspectiva da autoridade competente para interpretar e

aplicar o signo jurídico gravador geral e potencial, mas também na perspectiva daquele

competente para gravá-lo em primeiro grau.

O gravador (legislador) do signo jurídico geral e potencial tampouco poderia se fazer

valer, nessa premissa, de uma intuição pura para gravação do mesmo, mas sim de uma

intuição empírica, o que quer significar que sua orientação tem de ser objetiva, afastando,

dessa forma, construções e reformas no edifício jurídico que sejam somente formalmente

levadas a efeito ou com inspiração meramente subjetiva.

Visto isso, diante de tantas aproximações que se fizeram anteriormente acerca do

realismo peirceano com o realismo empírico de Kant, com o realismo escotista, com o

realismo aristotélico e com o realismo platônico, traga-se na sequência do que se trata o

realismo peirceano propriamente dito.

1.1.5 Realismo Peirceano (Idade Contemporânea)

Para entender o realismo peirceano, é preciso, em primeiro lugar, traçar dois

paralelos importantes: o paralelo da teoria peirceana com a teoria escotista, o que incluirá,

por consequência, um paralelo com Aristóteles, eis que é a base de Scotus e, pois, com

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Platão, que é o fundamento, por sua vez, de Aristóteles. O segundo paralelo vem com a teoria

kantiana. Esse paralelo se deve à circunstância de Peirce ter estudado incessantemente a

Crítica da Razão Pura de Kant e de se poder descobrir em Kant um certo realismo empírico.

Nesse contexto, inicia-se por explicar resumidamente como funciona o pensamento

peirceano em relação à sua teoria dos signos. Conforme traz Burch (Stanford Encyclopedia

of Philosophy, s.p., 2014), “a insistência de Peirce na ubiquidade da mente no cosmos é a

importância atrelada ao que ele chamou de ‘semeiótica’, a teoria dos signos no mais geral

sentido”.

Importante inteligir que Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014)

aponta que o que Peirce chamou “semeiótica” é relevantemente diferente do que se tornou

a “semiótica” – a designação mais comum encontrada cientificamente para se referir à teoria

dos signos. Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014) alerta que a

“semiótica”, como se tem hoje, não se origina tanto de Peirce propriamente, mas de figuras

como Ferdinand de Saussure e Charles W. Morris.

Para Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), essa confusão entre

“semeiótica” e “semiótica” deve ser evitada, haja vista que a teoria dos signos de Peirce

deriva, em verdade, do escotismo. A nomeação que se dá e a origem da teoria peirceana pode

ser vislumbrada em Peirce (CP 1.444):

Porém, além de ser lógico no sentido de demandar uma análise lógica,

nossa investigação também se refere a duas como uma concepção de

lógica. O termo “lógica” é empregado por mim de uma maneira não

científica em dois casos diferentes. No seu sentido mais restrito, é a

ciência das condições necessárias para o alcance da verdade. No seu

sentido mais amplo, é a ciência das leis necessárias do pensamento, ou,

ainda melhor (pensamento sempre tomando lugar por meio de signos),

é semeiótica geral, tratando não meramente da verdade, mas também

das condições gerais de signos serem signos (a qual Duns Scotus

chamou gramática especulativa), também das leis da evolução do

pensamento, as quais, já que coincidem com o estudo das condições

necessárias de transmissão do significado dos signos de uma mente a outra,

e de um estado da mente a outro, devem, por conta de se tirar proveito de

uma velha associação de termos, ser chamada retórica especulativa, mas a

qual eu me contento de chamar com inexatidão lógica objetiva. (Destacou-

se).

A teoria do signo peirceana, a semeiótica, é uma teoria lógica, mas não no sentido

restrito que se dá de lógica como “ciência das condições necessárias para o alcance da

verdade”, tratando-se de uma concepção de lógica mais ampla, a qual abarca as condições

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gerais dos signos serem signo, o que, em última instância, significa uma teoria que estuda,

também, as condições para geração de signos (semiose).

A diferença de nomenclatura apontada por Burch é um tanto nebulosa em Peirce,

haja vista que no CP 8.377 ele traz que chamará sua lógica de semeiótica ou provavelmente

sem o “i” semeótica. Em outros trechos, ele utiliza somente semeótica sem o “i”, como no

CP 8.378. Porém, há trechos que, como no CP 2.227, em que Peirce usa o termo semiótica

[semiotic], proveniente de “sémeiötiké”, para o que atribui ser uma lógica no sentido geral

ou a formal doutrina dos signos, do que, pelo que aqui se entende, não dá para assegurar que

Peirce, realmente, não utilizava os termos semeiótica e semiótica como equivalentes ou, na

verdade, os diferenciava somente em relação à sua especificidade, sendo semiótica mais

estreito que semeiótica. Aqui se utilizará semeiótica diante da proposta de Burch, porém,

somente porque faz sentido diferençar a doutrina dos signos de Peirce daquela da linguística

geral.

Visto isso, diga-se, agora, que a teoria peirceana é uma teoria relacional do signo. A

relação representacional peirceana é de uma espécie especial, eis que nela a relação é triádica

diferentemente do que se pode encontrar na teoria semiótica (ou semiologia) saussuriana

quando contemplada na noção de significante e significado.

Uma explicação mais acurada da semeiótica, juntamente às partes que formam a

representação relacional peirceana na tríade, vislumbra-se em Peirce (CP 8.343):

Parece que um dos primeiros passos em direção a uma ciência semeiótica

[sémeiötiké], ou cenoscópica ciência dos signos, deve ser uma acurada

definição, ou análise lógica, dos conceitos da ciência. Eu defino Signo

como qualquer coisa que, de um lado é tanto determinada pelo Objeto

e, por outro lado, é também determinadora de uma ideia na mente da

pessoa, sendo que essa última determinação, a qual eu chamo de

Interpretante do signo, é, desse modo, mediatamente determinada pelo

Objeto. Um signo, portanto, tem uma relação triádica com seu Objeto

e com seu Interpretante. Porém, é necessário distinguir o Objeto

Imediato, ou Objeto como o Signo o representa, do Objeto Dinâmico,

ou realmente eficiente, mas não imediatamente presente no Objeto. É,

desse mesmo modo, requisito distinguir Interpretante Imediato, é

dizer, o Interpretante representado ou significado no Signo, do

Interpretante Dinâmico, ou efeito realmente produzido na mente pelo

Signo; e de ambos [distinguir] o Interpretante Normal, ou efeito que

seria produzido na mente pelo Signo depois de suficiente

desenvolvimento do pensamento. (Destacou-se).

A diferença que se pode atribuir, pois, entre semeiótica peirceana e a “semiótica”

saussuriana (semiologia ou linguística geral) vai no sentido de que naquela o que se

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considera é uma tríade (objeto, signo, interpretante) e nesta uma díade (significante e

significado). A teoria saussuriana será explicada com mais vagar mais adiante neste trabalho.

Por ora, basta dizer que na semiologia saussuriana há, por assim dizer, uma

desconsideração do objeto na relação sígnica, haja vista que para se alcançar o significado,

o qual pode ser tomado como conceito (na mente), é necessário um significante, o qual pode

ser tomado como representação (podendo ser ela verbal, escrita, gestual etc. – uma palavra,

por exemplo, é um significante escrito). Ao se partir da representação (significante), o que

se verifica é que o conceito não é necessariamente objetivamente orientado, eis que há uma

desconsideração, por assim dizer, do objeto em si que já é representação.

É por isso que a semiologia saussuriana não pode ser vista, em uma visão restrita,

como realista, mas sim nominalista, pois não se considera a “existência” do substrato real

para fins do processo de geração de significado, partindo-se da representação.

Peirce, como se notou, tem uma aproximação do tema diferençada, eis que na sua

relação triádica considera o objeto dentro do processo de representação relacional. É por isso

que se chama sua teoria de realista, eis que acolhe o objeto na relação triádica.

A relação que Peirce contempla é de determinações multisetoriais mediatas e

imediatas, a depender do ponto de partida. As relações possíveis, partem de objeto com

objeto, objeto com signo, signo com objeto, signo com signo, signo com interpretante,

interpretante com signo, interpretante com objeto etc.

A ideia parece simples: o signo visto como representação de um objeto tem com esse

objeto uma relação imediata, ou seja, esse objeto para com o signo é um objeto imediato no

signo. O signo é determinado pelo objeto (relação determinada).

O signo, em relação ao interpretante, no entanto, possui uma relação determinadora,

porém, o objeto não é excluído da relação, eis que esta é triádica. Portanto, a relação do

interpretante com o objeto é mediada, ou seja, o objeto do interpretante é um objeto dinâmico

mediado pelo signo. É o exemplo do catavento e do vento. Para o interpretante o vento que

o catavento indica é objeto dinâmico.

Trazendo a analogia a Kant, talvez as coisas fiquem mais claras. Kant, como já se

colocou, diz que o efeito que a matéria causa na sensibilidade do sujeito cognoscente é

chamado de sensação. Lembre-se que a sensibilidade é a capacidade representativa do

sujeito. Em última instância, a matéria tem um efeito no sujeito, ao que Kant chama sensação

e é a partir desta que haverá a intuição empírica, dela o pensamento e o conceito.

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Essa matéria (realidade externa) é o objeto dinâmico peirceano. Porém, existe outro

objeto, que não está no objeto dinâmico (ou matéria kantiana), mas que, ao mesmo tempo,

tem um efeito no sujeito cognoscente – o objeto imediato.

Lembre-se que Kant disse, como já apontado, que o diverso do fenômeno que é

inteligido pelo sujeito é a forma do fenômeno, sendo que este tem matéria e forma. Essa

forma é inteligida por meio de um modo diferente de intuição, a qual Kant chamou intuição

pura. Aqui jaz uma diferença, pois Kant traz que a relação da forma com o sujeito é apenas

formal, parte da lógica transcendental e não da sua estética transcendental. Portanto, nesse

sentido, não haveria uma mediação com o objeto dinâmico (ou matéria kantiana).

Em Peirce, no entanto, há sim essa mediação, eis que o equivalente à forma kantiana

– o objeto imediato, tem função de mediar o objeto dinâmico para com o interpretante. Frise-

se que o objeto (dinâmico e/ou imediato) é ponto de partida, sendo que o efeito (dinâmico

e/ou imediato) que provoca no sujeito cognoscente é que é justamente o interpretante.

Nesse contexto, outra aproximação possível com Kant: se o efeito que a matéria

causa no sujeito é sensação e essa sensação chega à intuição empírica, o efeito que a forma

causa no sujeito é mediado pela intuição pura. A diferença é que sensação se pode

considerar a posteriori e forma por meio da intuição pura se considera, segundo Kant,

apenas a priori.

Essa é uma diferença muito relevante entre os dois sistemas de representação

kantianos, em que pese, pelo que aqui se entende, que quando Kant diz que fenômeno é

matéria e forma, de algum modo, partindo-se do fenômeno e, dele se deve partir, alguma

consideração objetiva deva-se tomar. Com base nisso, uma parametrização com o objeto há

afinal e tudo que se quer dizer “apriorístico” é, ao fim, de algum modo, em alguma instância

da mente, somente uma atualização equivocada de um conceito sobre um objeto que

empiricamente se teve contato.

Falou-se acima, com base na transcrição de Peirce, em interpretante imediato e

dinâmico, porém, Peirce tratou também do interpretante normal. Para compreendê-lo haverá

de se fazer uma incursão por outra aproximação de sistemas, agora com o sistema escotista

de representação. Lembre-se que Scotus trabalhava com a divisão entre prime matter e

haecceitas, os quais, em ambos os casos, precediam a substância material. De uma forma

mais simplificada: em ambos os casos poder-se-ia considerá-los aprioristicamente.

A diferença, no entanto, não está somente na precedência de tais entidades em relação

à substância material, mas na circunstância de sua orientação. Viu-se que Scotus foi

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influenciado pela árvore de Porfírio, a qual não era bem árvore, como já se disse. Nesse piso,

se considerados os galhos da árvore, perceber-se-á que a prime matter está no galho da

esquerda (lado da natureza material ou matéria substancial), o qual está impregnado por uma

“orientação objetiva”.

Já a haecceitas é uma entidade positiva que permite o processo de individuação no

escotismo, a qual se encontra no lado direito da árvore de Porfírio (lado da forma

substancial), o qual está impregnado por uma orientação subjetiva (ou melhor, formal).

Porém, como se viu, Peirce traz também a ideia de interpretante normal, o qual pode

ser identificado como uma potência de efeito no sujeito. Não é nem interpretante imediato,

nem interpretante dinâmico.

O interpretante normal está, no escotismo, para com o que se chamou substância

formal (lado direito da árvore de Porfírio), que se assemelha à quididade aristotélica, algo

como a virtude essencial de alguma coisa. Trata-se de um interpretante que está em potência.

Em outras palavras, é uma terceira via que está entre o universal e o particular.

Porém, não há em Peirce um designado “objeto normal”. Bem, se há um interpretante

normal, o qual deve ser entendido como potencial efeito no sujeito, deve haver, por lógica,

um objeto normal, que não é nem objeto imediato e nem objeto dinâmico e que está em

potência para a potência do efeito do interpretante normal.

Não se encontrou em Peirce remissão a tal objeto, porém, este parece logicamente

abstraível de sua teoria. Aproximando-o de Scotus, o que se pode dizer é que ele estaria para

com o que no escotismo se chama natureza comum ou comunidade, algo como objetos

considerados somente em relação à sua potencialidade, os quais não são nem universal nem

singular.

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O desenho das correspondências, separadas por cor, relacionado às entidades e seus

efeitos no sujeito, tidas por cada autor (Peirce, Scotus e Kant), restaria mais ou menos assim:

Figura 5 – Correlação Peirce, Scotus e Kant.

Vista acima a ilustração das correspondências que podem ser sacadas do pensamento

de Scotus e Kant para com o de Peirce, segue-se para especificar ainda mais essas

correspondências, tratando com vagar agora das similaridades entre prime matter e

haecceitas do escotismo com as categorias ceno-pitagóricas peirceanas da primeiridade,

segundidade e terceiridade.

1.1.5.1 Prime matter e Haecceitas no Escotismo Versus Primeiridade, Segundidade e

Terceiridade no Realismo Peirceano

Acerca dessas correspondências, Peirce (CP 1.405) assim se pronunciou:

A maioria dos sistemas filosóficos mantém certos fatos ou princípios

como últimos. Em verdade, qualquer fato é em um sentido último – é

dizer, na sua isolada e agressiva teimosia e realidade individual. O que

Scotus chama hæcceities das coisas, a presentidade [hereness] e

atualidade [nowness] delas, são realmente últimas. Por que isso que está

aqui está da forma como está; como, por exemplo, se por acaso acontecer

de ser um grão de areia, [como] isso chegou a ser tão pequeno e tão duro,

podemos nos perguntar; podemos, igualmente, perguntar como isso foi

carregado até aqui; mas a explicação nesse caso nos leva de volta ao fato

que isso estava certa vez em outro lugar, em relação ao qual coisas

similares poderiam ser esperadas de estar. Por que ISSO,

independentemente de suas características gerais, vem a ter qualquer

lugar definido no mundo, não é uma questão a ser perguntada; trata-

se simplesmente de um fato último. Há também uma outra classe de

fatos dos quais não é razoável se esperar uma explicação, é dizer, fatos

de indeterminação ou variedade. Por que um tipo definido de evento é

frequente e um outro raro, é uma questão a ser perguntada, mas uma

Objeto Dinâmico Interpretante Dinâmico

Objeto Imediato Interpretante Imediato

Objeto

Matéria-prima Haecceitas

Peirce normal

Matéria

Kant Scotus

Objeto Normal

Forma

Interpretante Normal Natureza Comum Substância Formal

--

-- --

S

i

g

n

o

D

e

u

s

Fenômeno

I

n

t

u

i

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ã

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Aparência

Fonte: Elaborado pelo autor

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76

razão pela qual o fato geral que alguns tipos de eventos são comuns e

outros raros, isso seria injusto exigir. Se todos os nascimentos

acontecessem num mesmo dia da semana, ou se acontecessem sempre

mais aos domingos do que às segundas, isso seria um fato a ser

explicado, mas que eles [nascimentos] acontecem em proporções iguais

em todos os dias não requer nenhuma explicação particular. Se

pudéssemos encontrar todos os grãos de areia numa certa praia separados

eles em duas ou mais agudamente distintas classes, como esféricos e

cúbicos, haveria algo a ser explicado, mas que eles são de vários

tamanhos e formas, de característica não definível, pode apenas ser

referido à geral multiplicidade da natureza. Indeterminação, então, ou

pura primeiridade, e hæcceity, ou pura segundidade, são fatos que não

chamam por ou não são suscetíveis de explicação. Indeterminação nos

fornece nada para se perguntar a respeito; hæcceity é o coeficiente

último, o fato bruto que não será questionado. Porém, todo fato de uma

geral ou ordenada natureza chama por explicação; e a lógica nos proíbe

assumir em relação a qualquer fato dado aquele tipo que seja na sua própria

natureza absolutamente inexplicável. Isso é o que Kant chama princípio

regulador, é dizer, uma esperança intelectual. (Destacou-se).

O CP acima transcrito continua, mas pare-se por aqui para se explicar as agudas e

geniais palavras de Peirce até o final do trecho apresentado acima. Em primeiro lugar, Peirce

parece diferençar fato de evento e, isso será muito relevante quando mais a frente se cotejar

ambos no presente trabalho.

Do que se pode extrair da genialidade de seus dizeres, Peirce nos traz que fatos são

similares a princípios e que os sistemas filosóficos guardam lugar para tais fatos ou

princípios como últimos ou definitivos, no sentido de que se exauririam em si mesmos sem

necessidade de explicação ulterior.

Ele assemelha esses fatos ou princípios últimos à haecceitas escotista. Lembre-se

que haecceitas é aquela entidade de carga positiva que trabalha no processo de individuação

das coisas, restando localizada no lado direito dos galhos da árvore de Porfírio. É bom

enfatizar que Scotus esclarece que haecceitas não é nem universal nem particular.

A presença desses fatos ou princípios últimos, conforme se extrai de Peirce, não

necessita de explicação. Portanto é, como se diz, “algo dado”, a priori, ou seja, que qualquer

“isso”, a partir de suas características gerais, venha a estar de uma maneira definida no

mundo, é um fato ou princípio último.

Ao se seguir a linha escotista aqui, o que se poderia dizer é que esses fatos ou

princípios últimos são haecceitas. Algo como dizer que Aristóteles vivia na Grécia na época

antiga e que ele (Aristóteles) tinha humanidade. Essa humanidade não requer explicação – é

haecceitas ou um princípio ou fato último.

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Porém, Peirce muda o tom na sequência para falar de uma outra classe de fatos – os

fatos de indeterminação ou variedade. Bem, se são outros fatos é porque não são os fatos ou

princípios últimos de que se estava falando antes.

Essa classe de fatos de indeterminação lembra o que Kant chama multiplicidade, o

que se confunde com o mundo de aparências percebido pela intuição empírica. Os fatos ou

princípios últimos de Peirce parecem estar conectados, em contraposição, com questões

relacionadas ao espaço, eis que é a definição no espaço que Peirce usa como comparação.

No entanto, no que toca aos fatos de indeterminação, o foco está no contraste com

problemas relacionados ao tempo das coisas. Peirce exemplifica com a frequência do

nascimento de bebês. É importante frisar que ele, ao falar de fatos de indeterminação,

contrasta-os com eventos definidos ou gerais. Fala de eventos frequentes e eventos raros:

bebês que nascem mais aos domingos e bebês que nascem a todo o tempo em qualquer dia.

Não se sabe se Peirce quis realmente diferenciar fato de evento, mas como aqui se

adota que não há sinônimos, como se explicará mais adiante, quer parecer que a

diferenciação de uso da linguagem no texto citado é proposital.

Desse modo, quer parecer que, na particularidade, poder-se-ia falar em eventos, v.g.:

nascimentos de bebês que acontecem sempre aos domingos, sendo que os eventos teriam

uma ligação mais direta com o tempo do que com o espaço (acontecem com mais frequência

ou mais raramente). Aqui parece ser possível crer que esses eventos (nascimento de bebês

aos domingos) são particulares. Não se sabe se Peirce quis, realmente, fazer essa

diferenciação, porém, quer parecer lógica essa conclusão com base no trecho transcrito

Peirce também diferencia esses particulares (eventos) dos fatos de indeterminação,

v.g.: grãos de areia têm vários tamanhos e formas. Aqui Peirce chama tal circunstância de

um fato geral (o fato geral de que...) e diz, como já se colocou acima, “que eles são de vários

tamanhos e formas, de característica não definível, pode apenas ser referido à geral

multiplicidade da natureza”.

Aqui parece, igualmente, haver uma diferença entre indeterminação – que é essa

geral multiplicidade da natureza, ou seja, o fato geral ou de indeterminação e o fato ou

princípio último. Isso parece se comprovar quando Peirce fala “indeterminação, então, ou

pura primeiridade, e haecceitas, ou pura segundidade, são fatos que não chamam por ou não

são suscetíveis de explicação”.

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Bem, primeiridade e segundidade, segundo se interpreta das palavras de Peirce, são,

pois, fatos, sendo o segundo, pelo que aqui se entende, do tipo último (segundidade) e o

primeiro do tipo indeterminado (primeiridade).

Para fins do fato último, há uma reação em relação a como as coisas estão definidas

no mundo (espaço), conforme Peirce mesmo diz e já se transcreveu acima: “Por que ISSO,

independentemente de suas características gerais, vem a ter qualquer lugar definido no

mundo, não é uma questão a ser perguntada; trata-se simplesmente de um fato último”.

Para fins do fato de indeterminação, há uma ponderação em relação ao tempo com

que/em que as coisas acontecem. Peirce diz, conforme já se transcreveu acima: “mas que

eles [nascimentos] acontecem em proporções iguais em todos os dias não requer nenhuma

explicação particular”.

A diferença parece ser assemelhada ao que Kant chama de extensão e figura, como

já falado. Vai-se na linha do que, igualmente, traz Scotus, conforme já apresentado, no

sentido de que quanto menos particular menos unidade tem a coisa. O máximo de unidade

está no particular e quanto mais se distancia do particular mais disforme e múltiplo a coisa

é – um mundo de aparências.

Importante esclarecer que, o que se interpreta aqui é que esses fatos de

indeterminação (primeiridade) são, em verdade, eventos (como potências ou objetos

normais), de modo que o que haveria seriam eventos e fatos ou princípios últimos.

Um problema pode surgir quando Peirce fala “haecceitas é o coeficiente último, o

fato bruto que não será questionado”. Se algo não pode ser questionado, esse “algo” é a

priori, ou seja, um elemento dado, o que poderia confundir o realismo peirceano com a linha

dos idealistas empíricos, como no caso de Hume, de quem também já se falou.

Quer parecer que essa interpretação não condiz com a doutrina peirceana

vislumbrada holisticamente, eis que seu realismo, como aqui se interpreta, direciona os olhos

para a realidade externa como algo “existente”, como se demostrará, de modo que a melhor

interpretação para esse “fato bruto que não pode ser questionado” é que ele é a própria

realidade externa – a suma realidade..

Esse fato bruto é o fato ou princípio último – a haecceitas escotista. Trata-se de

segundidade como “existência” ainda que essa “existência” seja inesgotável pelo sujeito

cognoscente, como é toda realidade mesma na sua “essência” substancial (na sua

haecceitas).

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Esse fato bruto difere do fato de indeterminação – que é primeiridade, eis que aqui

se aproxima mais da prime matter escotista, a qual resta no lado esquerdo da árvore de

Porfírio na linhagem da matéria substancial ou natureza material.

Porém, como se pode, então, distinguir prime matter de haecceitas? Bem, aqui pede-

se a ajuda de Noone, conforme já apontado, o qual traz que, no escotismo, a diferença diz

respeito ao ingrediente lógico, de modo que somente formalmente é que essa diferença

aparece.

O que Noone parece querer dizer é que a determinação lógica de um indivíduo no

processo de individuação escotista, quanto à prime matter, não tem a haecceitas na sua

descrição formal. O mesmo ocorre quanto à haecceitas.

Algo como que a descrição formal de Sócrates não pressupõe, quanto à prime matter,

sua humanidade, sendo que, quanto à haecceitas¸ outra descrição formal aparece, na qual

não se pressupõe a prime matter (materialidade).

Dessa explicação, segue-se que tanto prime matter quanto haecceitas têm na sua

determinação uma operação formal que somente o lógico permite diferenciá-las, de modo

que, em se tratando de operação formal, o reverso é verdadeiro, ou seja, na “naturalidade”

ou “existência” essa diferença não se apresenta clara.

A verdade mesma é que “atualidade” como um processo de atualização das coisas

em si somente se pressupõe diante de um ser cognoscente, eis que não é possível se

“atualizar” sobre alguma coisa sem que essa coisa possa ser inteligida.

O intelecto é que é o mecanismo “atualizador” das coisas e nele há ingrediente formal

– o mundo de aparências kantiano emerge. Portanto, primeiridade e segundidade na

“naturalidade” se confundem, como prime matter e haecceitas também.

Tomando essa linha como correta, logra-se afastar o ingrediente a priori. A

multiplicidade é disforme, inumerável, desvanecida, indeterminada... sendo que o princípio

regulador que permite sua intelecção é uma lógica em sentido amplo, ou melhor, a semeiótica

peirceana surgindo com força vigorosa para mediar o caos e produzir cosmos.

Volte-se um pouco ao escotismo para que essas ideias de prime matter e haecceitas

restem ainda mais claras para o leitor em seu cotejo com as ideias de primeiridade e

segundidade. Nesse contexto, diga-se que Cross (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p.,

2014) traz que uma haecceitas, na linha escotista, “é uma não-qualitativa propriedade

responsável por individuação e identidade”.

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Como pontua Cross (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), não se trata

de:

um particular puro no sentido de alguma coisa subjacente às

qualidades. É, no entanto, uma não-qualitativa propriedade de uma

substância ou coisa: é um ‘esseísmo’ [thisness] (uma haecceitas, do Latin

haec, significando ‘esse’ [this]), o que é diferente de ‘queísmo’

[whatness] (um quidditas, do latim quid, significando ‘que’ [what]).

Ademais, substâncias, no meio que metafísica defendida por Scotus, são

basicamente coleções de propriedades unidas firmemente, as quais são

todas qualitativas com exceção de uma; a propriedade não-qualitativa

é a haecceitas. Em contraste com explicações mais modernas do problema

da individuação, Scotus sustenta que a haecceitas explica mais do que

apenas a distinção de uma substância da outra. De acordo com Scotus, o

fato que substâncias individuais não podem ser instanciadas — são

indivisíveis ou incomunicáveis, como aponta Scotus, — também requer

explicação. Em resumo, haecceitas é supostamente o que explica

individualidade. (Destacou-se).

Como traz Cross (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), a melhor forma

de explicar uma haecceitas é pelos contrastes. Assim, diga-se que substâncias são

basicamente coleções de propriedades unidas firmemente, as quais são todas qualitativas

com exceção de uma; a propriedade não qualitativa da coisa é a haecceitas, sendo que a

circunstância que substâncias são indivisíveis ou incomunicáveis requer uma explicação, a

qual diz com a haecceitas que explica essa individualidade.

Haecceitas é o que explica esse ser diferente daquele, isso ser diferente daquilo, um

ser diferente de muitos e particular ser diferente de universal. Trata-se de um “esseísmo”,

de uma particularização, o que é distinto do porquê das coisas, de um “queísmo” das coisas,

da razão por trás delas. É diverso do quidditas. O quid da questão é o quê da questão e essa

razão não é haecceitas.

Usando o exemplo de Peirce: que grãos de areia estão separados por esféricos e

cúbicos, isso requer explicação, mas que são de diversos tamanhos e formas é algo que não

se pode explicar. O que explica que grãos de areia são esféricos ou cúbicos é a haecceitas,

eis que é o que permite ao princípio da individuação de Scotus operar.

Conforme aponta Cross (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p. 2014), em seu

ordinatio, Scotus não utiliza o termo haecceitas, fazendo uso de diferença individual. Veja-

se a seguir, como se refere Scotus (apud SPADE, 1994, p. 76):

Eu explico o que eu entendo por individuação ou unidade numérica ou

singularidade: Certamente não a indeterminada unidade pela qual

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qualquer coisa numa espécie é dita de ser uma em número. Diferente disso,

eu quero dizer unidade designada como um isso, de modo que apenas como

foi falado acima que um indivíduo é incompossível com ser dividido em

partes subjetivas e a razão dessa incompossibilidade é perguntada aí, de

modo que eu também digo aqui que um indivíduo é incompossível com

não ser um designado isso por essa singularidade e a causa é

perguntada não de singularidade em geral, mas dessa designada

singularidade em particular — é dizer, como isso é

indeterminavelmente isso. (Destacou-se).

A diferença surge do contrate entre diferença individual e diferença específica, como

se pode verificar em Scotus (apud SPADE, 1994, p. 101):

Tanto quanto uma unidade em comum resulta de alguma entidade em

comum, também uma unidade qualquer resulta per si de alguma entidade

ou outra. Portanto, unidade absoluta (como a unidade de um individual

[...] é dizer, uma unidade com a qual uma divisão em várias partes

subjetivas é incompatível), se é encontrada em seres (como toda teoria

assume), isso resulta per si de alguma entidade per si. Porém, isso não

resulta per si de uma entidade da natureza, porque essa tem uma certa

per si real unidade dela mesma, como foi provado [...]. Portanto, o

resultado é alguma outra entidade que a determina. E essa outra

entidade constitui alguma coisa per si una com a entidade da natureza,

porque o todo para o qual essa unidade pertence é perfeito em relação

a ele mesmo. (Destacou-se).

Aqui como se nota, Scotus trata do seu princípio da individuação, o qual se faz a

partir de uma entidade que não é a entidade da natureza per si, mas se constitui una com essa

para formar uma unidade individualizadamente perfeita. Essa entidade que permite o

individual é haecceitas.

É preciso, no entanto, diferenciar haecceitas de prime matter para que a compreensão

do tema seja completa. Conforme já se colocou acima, prime matter é “algo básico sem

características particulares como cor e peso, mas com a potencialidade de ter tais reais

características”. Trata-se de “um substrato para a geração de substâncias, mas não é

substância em si”.

Scotus explica, como já se referenciou acima, que “alguma unidade real está na coisa,

sem nenhuma operação do intelecto, menor que a unidade numérica ou que a unidade própria

do singular, ‘unidade’ que é da natureza de acordo consigo mesma”.

Essa “alguma unidade real” é naturalmente anterior, é “aquilo que é por si objeto do

intelecto, e por si, como tal, é considerado pelo metafísico e é expresso pela definição”. Essa

primeira intelecção do objeto “da natureza, de maneira que não é co-inteligido nenhum

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modo, nem aquele que é seu no intelecto nem aquele que é seu fora do intelecto”, conforme

já se colocou, é prime matter – é primeiridade.

Outra maneira de ver o tema é dizendo que prime matter é o mesmo que o objeto

dinâmico de Peirce. Trata-se da matéria da coisa sem que tenha sofrido nenhuma

interferência do intelecto; é aquilo que o signo representa, mas que quando representado no

signo não é mais a matéria original ou prime matter, eis que como representação já é um

tipo de intelecção do original e não mais o original em si; na representação é objeto imediato.

Mais um trecho de Scotus (apud SPADE, 1994, p. 102) facilita as coisas:

No mesmo item que é uno em número há algum tipo de entidade da qual

resulta uma unidade menor do que a unidade numérica é. Tal unidade [é

dizer numérica] é real, e para o que tal unidade pertence é dela mesma

formalmente una por uma unidade numérica. Eu concebo, portanto, que

essa unidade real [é dizer, numérica] não pertence a qualquer coisa

existente em dois individuais, mas em um.

Aqui Scotus parece contrastar a haecceitas com o que ele chama de prime matter. O

ponto de partida de Scotus é que o particular é a maior unidade possível na particularidade

do individual. Tudo que do particular seja mais geral é densamente menos unitário que o

particular, tendendo à multiplicidade disforme da aparência na generalidade total.

Scotus (apud SPADE, 1994, 103) traz um exemplo que pode melhorar a

compreensão:

Cor em brancura é especificamente una, mas não é tão dela mesma ou per

si ou primariamente, mas apenas denominativamente. Porém, uma

diferença específica é primariamente una, porque é primariamente

incompatível com ser dividida em o que é variado em espécies. Brancura

é especificamente una per si, mas não primariamente, porque é

especificamente una por meio de alguma coisa intrínseca a ela (por

exemplo, por meio da diferença). Assim, eu concebo que o que quer

que seja que esteja na pedra é numericamente uno, ou primariamente

ou per si ou denominativamente. Primariamente, diga-se, como que por

meio do qual tal unidade pertence ao composto. Per si, a pedra

propriamente, da qual é primariamente una com essa unidade [que] é per

si parte. Apenas denominativamente, o que é potencial e é aperfeiçoado

pelo real [actual] e é desse modo por falar denominativamente

relacionado à sua realidade [actuality]. (Destacou-se).

A base de Scotus é o direcionamento ao aperfeiçoamento do princípio da

individuação. Para ele, pelo que aqui se interpreta, isso tem a ver com a diferença específica

que se pode atribuir daquela maneira que Noone explicou em relação à visualização da

árvore de Porfírio.

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A unidade ou numerabilidade da coisa em si, para Scotus, segundo se interpreta, pode

ser contemplada diante de três tipos de diferenciações possíveis: a) primariamente; b) per si;

c) denominativamente.

Essa unidade, como no exemplo da pedra, verifica-se, primariamente,

contemplando-se a unidade como pertencente ao composto. Per si, a unidade é a pedra

propriamente considerada. Apenas, denominativamente, ou seja, por denominação,

definição, determinação, por denotação (o que implica dizer, de maneira formal) é que se

relaciona pedra à sua realidade.

Como asseverou Noone anteriormente, já referenciado no texto: “a entidade

individual é a expressão última da forma da coisa – e o composto que é o resultado não é

constituído em ser quididativo, mas em o que Scotus chama ser material ou ser contraído”.

A haecceitas é que permite a prime matter contrair para restar individual.

Essa divisão de contemplação da pedra em primária, per si e denotativa se

aproxima nessa ordem, pelo que aqui se interpreta, das categorias ceno-pitagóricas de

Peirce: primeiridade, segundidade e terceiridade.

Como se disse, ao se olhar a unidade específica da cor na brancura, essa é unidade

em uma contemplação denotativa, pois o que se olha é a unidade e esta é uma criação

formal, ou melhor, é a forma que lhe atribui especificidade, denotatividade. Aqui a

terceiridade.

Ao contrário, ao se olhar a diferença na brancura, por exemplo, com o escuro da cor,

o que se tem é que a unidade é primariamente contemplada – uma diferença específica, e

essa não pode ser separada em espécies particulares, eis que são diferentes da forma especial

denotativamente construída.

Como Kant disse anteriormente, é o diverso do fenômeno que pode ser formalizado.

Esse diverso aqui seria a especificidade do denotativo formal (terceiridade). A matéria do

fenômeno é qualidade do composto da brancura e, se assim o é, não pode estar na brancura

per si, mas tão somente por denotação. Essa é a prime matter, que aqui é compossível com

a primeiridade peirceana. Per si os elementos são elementos como são na “existência” – são

segundidade.

Após essa explicação longa, porém necessária, segue-se com o final do CP 1.405,

cuja primeira parte já foi transcrita e explicada acima:

O único imediato propósito de pensar é tornar coisas de uma maneira

inteligível; e pensar e ainda nesse ato mesmo de pensar uma coisa

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ininteligível é uma estultificação de si mesmo. É como se um homem

carregando uma pistola para se defender de um inimigo fosse, por achar

que o inimigo muito temível, usar a pistola para estourar seus próprios

miolos para escapar de ser morto pelo inimigo. Desespero é insanidade.

Verdade, que haverá fatos que nunca serão explicados; mas que cada

fato dado é de uma quantidade, é algo que a experiência nunca nos

poderá dar fundamento para pensar; muito menos poderá [a

experiência] nos mostrar que qualquer fato é na sua natureza

ininteligível. Devemos, portanto, ser guiados pelo papel da esperança,

e consequentemente devemos rejeitar toda filosofia ou concepção geral

do universo, a qual nunca poderia nos levar à conclusão que qualquer

fato em geral dado é um fato último. Devemos almejar a explicação,

não de todas as coisas, mas de qualquer que seja coisa dada. Não há

nenhuma contradição aqui, não mais do que há em quando

sustentamos nossas próprias opiniões, ainda que estejamos prontos

para admitir que é provável que nem todas [elas] sejam verdadeiras;

ou não mais que quando dizemos que um tempo futuro qualquer em

algum momento terá passado, mesmo que nunca haja um tempo em

que todo o tempo é passado. (Destacou-se).

Como se nota, as categorias ceno-pitagóricas de Peirce (primeiridade, segundidade e

terceiridade), as quais, como já se disse, serão explicadas, na devida extensão, mais adiante,

foram fortemente influenciadas pela teoria escotista. Porém, para fins do presente trabalho,

a visão que se tem delas pode ser explicada como na alegoria posta na sequência.

Pense-se no vácuo como o útero que pare o homem. O nada impregna esse útero de

apatia, de afasia, sem tempo ou espaço. Ele tem o homem letárgico sem fenômeno na

multiplicidade do vazio disforme. Porém, a natureza é sábia e vácuo é só mais uma forma

de cosmos nas dualidades do continuum do imponderável universo... aí um buraco de tempo

e espaço permeia e permite uma qualidade de luz ao homem apático. O homem transborda-

se da placenta uterina do vácuo adentro no mundo de sensações e sentimentos devir.

Transbordar é escapar da apatia e se chocar contra o leviatã bíblico – um big bang! Agora o

homem está no espaço-tempo do cosmos e esse mesmo espaço-tempo já o golpeia a

consciência como tal e lhe permite inteligir acerca do que não é inteligência. É assim que

aqui se vislumbra primeiridade, segundidade e terceiridade.

Visto isso, trata-se, ainda, na sequência, das partes da semeiótica, mais relações que

podem ser vislumbradas com Kant, bem como ponderações iniciais sobre a compreensão de

realidade e verdade em Peirce.

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1.1.5.2 Semeiótica e suas Divisões, Correspondências com Kant e Compreensão Inicial

de Realidade e Verdade

Como se viu, a semeiótica de Peirce é, em verdade, uma teoria lógica com uma

consideração do signo como centro duro. As divisões de sua lógica, bem como a influência

de Scotus, podem ser observadas em Peirce (CP 2.229):

Como consequência de todo representamen ser, assim, conectado com três

coisas, o fundamento [do signo], o objeto, e interpretante, a ciência

semiótica tem três ramos. O primeiro chamado por Scotus gramática

especulativa. Usaremos a terminologia gramática pura. Ela tem por

tarefa apurar o que deve ser verdadeiro do representamen usado por

toda a inteligência científica em direção de incorporar algum

significado. A segunda é a lógica propriamente dita. Ela é a ciência do

que é quase-necessariamente verdadeiro do representamina de qualquer

inteligência científica em direção a que eles [representamina] possam

manter a validade de qualquer dito objeto, é dizer, que possam ser

verdadeiros. Em outras palavras, a lógica propriamente dita é a ciência

formal das condições da verdade das representações. A terceira, em

imitação do modo kantiano de preservar associações velhas de palavras

para encontrar nomenclatura para novas concepções, eu chamo pura

retórica. Sua tarefa é apurar as leis pelas quais em toda inteligência

científica um signo dá vida a outro, e especialmente um pensamento

da sequência a outro. (Destacou-se).

Aqui resta claro que a semeiótica não é uma ciência que estuda a geração de signos

somente, mas também essa geração, o que fica a cargo da parte da semeiótica designada

“retórica pura”. A herança escotista está na parte da semeiótica (gramática pura) que estuda

o que deve ser verdadeiro do signo (representamen) usado pelos sujeitos cognoscentes para

incorporar significado.

Em relação a Kant, Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014) aponta

que Peirce foi um recorrente e intenso estudioso da Crítica da Razão Pura, sendo que trazia

que Kant era, em realidade, um pragmaticista confuso (CP 5.525). Porém traz no mesmo CP

que a compreensão kantiana de espaço e tempo e das doze categorias é um tipo de

“pragmaticismo no sentido geral”.

Como pondera Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), as

considerações kantianas de um essencialismo a priori na linha euclidiana em relação à

natureza do espaço não são compossíveis com àquelas de Peirce.

Porém, como traz Peirce (apud BRUCH, Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p.,

2014), em carta de 1911 à Victoria Lady Welby: “Eu mostro apenas quão longe Kant estava

certo, mesmo quando muito confuso no formalismo. É perfeitamente verdadeiro que não

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podemos nunca alcançar o conhecimento das coisas como elas são. Podemos apenas

conhecer seu aspecto humano. Porém, isso é tudo que o universo é para nós”.

Portanto, conforme esclarece Burch (Stanford Encyclopedia of Philosophy, s.p.,

2014), Peirce tardiamente parece perceber que o tipo especial de idealismo defendido por

Kant não era no todo oposto ao tipo de empirismo que Peirce, como um pragmaticista,

reconhecia.

Sabe-se também das fortes influências ao trabalho de Peirce desempenhadas pelas

doutrinas e Schelling e Hegel, mas, ainda que se quisesse, por falta de tempo e espaço no

presente trabalho, tal aspecto de seu realismo não será estudado.

Porém, no que diz respeito à uma compossibilidade com Kant, essa, pelo que aqui se

interpreta, com base no seu trabalho citado neste estudo e nas palavras de Abela já expostas,

parece muito clara, máxime, quando se contempla a parte da doutrina kantiana que trata do

realismo empírico, o que, como aqui se sustenta, pode ser compatibilizada com sua estética

e lógica transcendentais, ainda que mais aliadas, em determinados momentos, com um

idealismo rígido. Isso se justifica também nas palavras de Abbagnano já escritas

anteriormente no sentido de que Kant reconhecia a existência de uma realidade exterior.

Nesse contexto, esse ponto da realidade, que deve-se agora pisar, é fundamental no

realismo peirceano que aqui se utiliza como fundamento para o presente trabalho. Assim,

traga-se que a ideia de realidade em Peirce (CP 5.565) é a seguinte: “Realidade é aquele

modo de ser em virtude do qual a coisa real é como ela é, independentemente de como uma

mente ou grupo de mentes possa representá-la”.

Isso será devidamente detalhado no tópico que trata da realidade jurídica, mas aqui

alguns pontos serão adiantados. Se a realidade é independente de como se pensa dela, quer

dizer, de maneira bem simplista, que uma realidade exterior ao pensamento é considerada.

Aqui se utiliza a terminologia summa realidade (como esse “exterior” e “independente”) e

realidade semeiótica (como essa que é dependente). Realidade semeiótica abarca o

pensamento e não só a linguagem.

Veja que essa visão peirceana contrasta com a visão nominalista. A batalha entre

realismo e nominalismo será melhor explorada mais adiante neste trabalho. Para demonstrar

que a linha de raciocínio é diferençada, traga-se como pontua Flusser (2007, p. 201) sobre

realidade: “a língua, isto é, o conjunto dos sistemas de símbolos, é igual à totalidade daquilo

que é apreendido e compreendido, isto é, a realidade”.

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Flusser traz duas definições para realidade: a primeira já dada e “a segunda é a

definição da realidade como aquilo que pode ser apreendido e compreendido” (FLUSSER,

2007, p. 201). Em Flusser, pois, nada é real fora da língua, o que não é compossível com a

visão peirceana.

Assim, volte-se a Peirce para se trabalhar melhor sua visão de realidade, máxime no

que diz respeito ao papel da mente para fins e apreensão da realidade (externa). Sobre esse

ponto da realidade na mente, Peirce tem dizeres bem peculiares: “ Não existe como tal, isto

é, não existe a coisa que é, em si mesma, no sentido de não ser relativa à mente, embora

coisas que são relativas à mente sem dúvida existem à parte desta relação” (PEIRCE, CP

5.311).

Fala-se em “peculiar”, eis que tais dizeres poderiam levar o mais desavisado a pensar

que a visão peirceana de realidade não contrasta tanto com a visão de Flusser – dita

nominalista. Puro engano! Lembre-se, como já se disse, que Peirce vislumbra a semeiótica

em uma relação triádica do signo, objeto e interpretante.

O que se interpreta aqui, pois, a partir do CP 5.311, é que, vista do ponto de vista da

relação, com o intérprete, a realidade é “relacionalmente” ligada à mente, porém a mesma

circunstância que assevera que a relação com a realidade é mental, por considerar na relação

algo a ser representado que não é o signo que se liga à mente, é aquela que permite asseverar

que há algo externo à relação que é realidade.

Por isso que o que aqui se cunha na diferença summa realidade e realidade semeiótica

funciona como luva, eis que acomoda a visão de Flusser na ligação com a língua (realidade

semeiótica) e a visão peirceana de que “existe” algo fora da relação (summa realidade).

Um ponto que deve ser enfatizado é que, certamente, não se distancia aqui de uma

conclusão de que cientificamente o que se estuda é relação sígnica, seja na gramática pura,

seja na lógica propriamente dita e seja na retórica como ramos da semeiótica.

É o que se pode extrair de Peirce (CP 5.407):

Por outro lado, todos os seguidores da ciência estão animados por uma

esperança alegre que os processos de investigação, se levados o quão longe

necessário, nos darão uma certa solução para cada questão para a qual eles

se aplicam. Um homem pode investigar a velocidade da luz estuando os

trânsitos de Vênus e a aberração das estrelas; um outro pelas oposições de

Marte e os eclipses dos satélites de Júpiter; um terceiro pelo método de

Fizeau; um quarto por aquele de Foucault; um quinto pelos movimentos e

curvas Lissajoux; um sexto, um sétimo, um oitavo, e um nono, podem

seguir diferentes métodos de comparação de medidas de eletricidade

estatística e dinâmica. Eles podem, num primeiro momento, obter

diferentes resultados, mas, conforme cada um aperfeiçoe seu método e seus

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processos, os resultados encontrados tenderão a se moer constantemente

juntos em direção a um centro destinado. Assim ocorre com toda a pesquisa

científica. Diferentes mentes podem partir das visões mais antagônicas,

mas o progresso da investigação carrega-os por uma força exterior a

eles a uma e mesma conclusão. Essa atividade do pensamento, a qual

somos carregados, não para aonde desejamos, mas para uma comum

e ordenada finalidade, é como a operação do destino. Nenhuma

modificação do ponto de vista tido, não seleção de outros fatos de

estudo, nenhuma inclinação natural da mente até mesmo, pode

permitir um homem escapar de uma predestinada opinião. Essa

grande esperança está incorporada na concepção de verdade e

realidade. A opinião, em relação à qual é destinada a ser

finalisticamente concordada por aqueles que investigam, é o que

significamos por verdade, e o objeto representado na opinião é o real.

Esse é o jeito que eu explicaria a realidade. (Destacou-se).

Nesse trecho, Peirce define realidade por contraste, ou seja, pelo contraste com a

verdade. A definição do conceito de verdade será explorada devidamente mais adiante neste

trabalho. Por agora, pode-se dizer que é a concordância que a experiência levada a efeito por

um grupo de mentes científicas tem de um objeto, sendo que o objeto mesmo dessa

concordância (verdade) é o que se chama realidade.

Bacha (2003, p. 36) traz que disso surge que “a) a realidade tem uma espécie de

independência com relação àquilo que está sendo pensado ou representado; b) a realidade

está essencialmente relacionada com o pensamento e as ideias; c) a ideia de realidade é a

resultante final da investigação”.

Peirce trabalha com a ideia de ego e não-ego, o primeiro sendo o ingrediente interno

da experiência e o segundo o ingrediente externo (a summa realidade). Peirce (CP 7.534)

traz que “embora em toda experiência direta de reação, algo interno, seja um membro do

par, ainda atribuímos reações a objetos fora de nós. Quando dizemos que uma coisa existe,

queremos dizer, na verdade, que reage contra outras coisas. Que estamos transferindo a isso

nossa experiência direta de reação”. Essa reação do choque é que é a experiência da categoria

da segundidade.

Peirce traz que a consciência da segundidade, que pode ser entendida como realidade,

é algo que não se pode devidamente intelectualizar, haja vista que “concebê-lo significa

generalizá-lo; e generalizá-lo é perder por completo o aqui e agora que é sua essência”.

(PEIRCE, CP 8.266).

Tratando do fenômeno em uma alusão próxima ao fenômeno kantiano, Peirce (CP

8.266) aponta que “eu simplesmente contemplo o fenômeno e digo que toda ideia de relação

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real, ou ligação, contém esse mesmo elemento de reação irracional. Todo verdadeiro caráter

de consciência é meramente a sensação do choque do não ego sobre nós”.

A realidade, que é o não-ego, é percebida no intelecto por uma reação que é irracional

em um primeiro momento no choque que o intelecto tem sobre o não ego. Essa é a ideia de

segundidade.

Um ponto de atenção em relação à realidade da segundidade no choque da potência

com o segundo diz respeito a perquirir se há realidade além do mundo externo – da summa

realidade. Peirce (CP 6.368) parece responder essa questão dizendo o seguinte, tratando da

possibilidade de contingentes futuros:

Um certo evento ou acontecerá ou não acontecerá. Não há nada na

existência que constitua a verdade do seu ser por acontecer, ou do seu

ser por não acontecer, a menos que certas circunstâncias para a qual

apenas uma lei ou uniformidade possa levar eficácia. Porém, aquela lei

ou uniformidade, os nominalistas dizem não ter um ser real; é apenas uma

representação mental. Se assim é, nem o ser por acontecer nem o ser por

não acontecer tem qualquer realidade no presente; e o máximo que

podemos dizer é que a disjunção é verdadeira, mas não nenhuma das

alternativas. Se, no entanto, admitimos que a lei tem um ser real, não

do modo de ser de um individual, mas até mais real, então o

consequente futuro necessário de um presente estado de coisas é real e

verdadeiro como [é] aquele estado presente de coisas propriamente

dito. (Destacou-se).

Aqui é para, realmente, prestar continência à genialidade de Peirce, eis que acomoda

seu realismo nas categorias ceno-pitagóricas com maestria e a tira colo absorve a teoria das

potencialidades aristotélicas como reais.

A pedra de toque está em admitir o pensamento como realidade e, por via de

consequência, a verdade como tal também, esta encarada como concordância de mentes

sobre um percepto. Esse continuum que a verdade permite por seu falibismo e atualização

permanente autoriza visualizar a potência do devir como real no nível da terceiridade.

A lei que se estabelece pela experiência e concordância na terceiridade é real, porque

o pensamento é real e tudo que dele advém. Portanto, um evento futuro é real e verdadeiro

no silogismo peirceano tanto quanto um evento presente.

Nesse piso, a realidade não está constrita à segundidade a não ser se visualizada como

summa realidade. O dualismo que aqui se propôs resolve a confusão de nomenclatura, eis

que realidade também é realidade da terceiridade, ou seja, realidade semeiótica, pois

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pensamento é também um objeto da semeiótica, o que restará ainda mais claro mais adiante

neste trabalho quando se falar dos tipos de objeto considerados por Peirce.

Bem, se terceiridade é real, isso quer dizer que a concordância sobre uma experiência

também é considerada como pensamento na mente. Porém, concordâncias são feitas a partir

de pensamentos particulares, em relação aos quais se convenciona uma ubiquidade. Agora

pode esta visão holística contemplar um pensamento que não é um pensamento a partir de

um pensamento particular e nem pensamento em geral?

Peirce (CP 7.336) responde a isso da seguinte forma:

A questão é, “Se correspondendo aos nossos pensamentos e sensações,

e representado em algum sentido por eles, há realidades, as quais não

são apenas independentes do seu, do meu e do pensamento de qualquer

número de homens, mas, as quais são absolutamente independentes do

pensamento como um todo.” A opinião objetiva final é independente

dos pensamentos de quaisquer homens particulares, mas não é

independente do pensamento em geral. Isso quer dizer, se não houvesse

pensamento, não haveria opinião, e portanto, opinião final. (Destacou-se).

Bem, aqui Peirce atribui realidade não só ao pensamento particular de um homem,

mas também ao pensamento último – opinião final. A semiose (ou processo de geração de

signos) em direção à terceiridade implica opiniões que são finais – um interpretante final,

mas isso somente, pelo que aqui se interpreta “final” na medida de precariedade sua, sempre

potencial e atualizável dentro do falibilismo que impera no pensamento peirceano.

Essa opinião final é o que constitui a verdade da experiência sobre o objeto e ela é

real – realidade semeiótica, mas não independente. Se fosse independente seria a priori e

estar-se-ia a falar de idealismo e não realismo. Ora, se não é elemento dado, é porque é

dependente, no caso, não de um pensamento particular, mas do pensamento em geral – que

é a própria razão da concordância na sua “existência”.

Finalmente, deve-se concluir, como já dito, que o realismo peirceano trabalha com

duas concepções de realidade: a) summa realidade e b) realidade semeiótica. A primeira é a

realidade que a experiência sensível permite tocar e independente do toque. A segunda é

resultado de um processo de experiência cientificamente estabelecido em uma concordância

de mentes igualmente científicas e que estabelece uma sorte de opinião final, que no

pensamento também é real na medida da realidade do pensamento ele mesmo.

Importa trazer que no prisma da realidade semeiótica, há uma distinção por conta do

meio de manifestação do signo, é dizer, meio semeiótico físico e meio semeiótico psíquico,

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verificando-se que a realidade semeiótica ela mesma também é dual: realidade físico-

semeiótica e realidade psíquico-semeiótica.

Diante de todo o mencionado, em relação ao reino do direito, o que se tem é que o

realismo peirceano suportará uma verificação do direito baseada na experiência – na

investigação científica como permissiva de uma convenção sobre a summa realidade, é dizer,

como formadora da realidade semeiótica, a qual aqui, se confunde com a realidade jurídica

como fatia sua.

Trata-se de uma aproximação que privilegia o objeto de análise; é objetivamente

orientada. Trabalha as noções mais caras ao direito dentro das categorias ceno-pitagóricas,

as quais assistem na percepção de temas como a prova no direito (investigação sobre os

eventos ocorridos), estudada dentro da categoria da segundidade, mas com aspectos

formativos provenientes da primeiridade.

Auxilia, igualmente, na percepção dos mecanismos de interpretação, incidência e

aplicação dos signos gravadores gerais e potenciais e de uma justiça convencionada dentro

da categoria da terceiridade. Além de trabalhar questões sobre coisa julgada, prescrição,

preclusão, decadência, irretroatividade, dentro de uma percepção de falibilidade e

atualização das convenções na terceiridade.

1.1.6 Merleau-Ponty e a Ideia de Entrelaçamento – o Quiasma entre Sujeito e Objeto

(Idade Contemporânea)

Pode parecer estranho colocar Merleau-Ponty dentro da parte deste texto que trata de

realismo, sabendo-se que sua “escola” filosófica se referia à fenomenologia e/ou

existencialismo, com forte influência de Martin Heidegger.

Porém, a estranheza é sem razão, eis que Merleau-Ponty transbordou com sua teoria

para influenciar a geração de pensadores franceses do pós-estruturalismo formada por

Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques Derrida, conforme aponta Toadvine (Stanford

Encyclopedia of Philosophy, s.p., 2014), tendo sido estes aqueles que dariam lugar, de uma

forma ou de outra, ao que se chamará “realismo especulativo”, o qual será detalhado no

próximo tópico.

Merleau-Ponty, em seu A Natureza, trabalha com a ideia de estesiologia, o que quer

significar uma ciência que estuda as sensações físicas, mas em uma relação peculiar de

orientação, eis que a orientação em Merleau-Ponty, pelo que aqui se interpreta, refere-se ao

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corpo humano como corpo estesiológico – não somente como centro de irradiação de

percepção, mas como parte do seu entorno, em uma ideia de entrelaçamento com a natureza.

Assim se pronuncia o Merleau-Ponty (1995, nota de rodapé “a”, p. 284):

Não pensar a estesiologia como um pensamento que desce num corpo. Isso

é renunciar à estesiologia. Não introduzir um ‘perceber’ sem ‘vínculos’

corporais. Nenhuma percepção sem movimentos prospectivos, e a

consciência de se mover não é pensamento de uma mudança de um lugar

objetivo, não nos movemos como uma coisa por redução de

afastamentos, e a percepção é apenas o outro pólo desse afastamento,

o afastamento mantido. É assim que o movimento do corpo +

movimento das imagens retinais fazem a percepção estável. (Destacou-

se).

O corpo estesiológico implica que a animação do corpo humano não deve ser

enxergada como que se uma consciência nele descesse, algo como uma reflexão pura. Ao

contrário, o que há é um tipo de simbiose – uma metamorfose de corpo e entorno.

Essa concepção é ampliativa da percepção, eis que a orientação é a partir do corpo,

não a partir da representação da consciência de uma percepção que paira por cima do

corpo. O vínculo corporal é necessário, imperando a ideia de inerência no sentido de

inseparabilidade, por natureza, entre sujeito e objeto na realidade, o que difere de imanência,

afastando, igualmente, a concepção de esquize. Por isso dizer que se trata de uma ontologia

indireta.

Essa ontologia indireta permitiria esse entrelaçamento, uma simbiose entre o corpo,

natureza, arte, ciência, linguagem, cultura etc. É nesse sentido que pontua Merleau-Ponty

(1995, p. 380):

Se eu sou capaz de sentir por um tipo de entrelaçamento de meu corpo

próprio e do sensível, eu sou capaz também de ver e de reconhecer outros

corpos e outros homens. O esquema do corpo próprio, pois eu me vejo,

é participável para todos os outros corpos que eu vejo, é um léxico da

corporeidade em geral, um sistema de equivalências entre o dentro e o

fora, que prescreve para um se aperfeiçoar no outro. (Destacou-se).

Assim, o entrelaçamento do corpo com o sensível autoriza o reconhecimento do que

aqui se chama coordenação entre os homens. O homem, ao se ver não vê tudo, porque não

vê os seus olhos, de modo que não vê tudo seu. Porém, o outro vê e participa, permitindo a

ampliação da visão do primeiro homem. Essa coordenação amplia a percepção de si mesmo

como em um léxico de corporeidade.

Sobre esse ponto, são precisas as palavras de Merleau-Ponty (2014, p. 15):

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O enigma consiste em meu corpo ser ao mesmo tempo vidente e visível.

Ele, que olha todas as coisas, pode também se olhar, e reconhecer no

que vê então o “outro lado” de seu poder vidente. Ele se vê vidente, ele

se toca tocante, é visível e sensível para si mesmo. É um si não por

transparência, como o pensamento, que só pensa seja o que for

assimilando-o, constituindo-o, transformando-o em pensamento – mas um

si por confusão, por narcisismo, inerência daquele que vê ao que ele

vê, daquele que toca ao que ele toca, do senciente ao sentido – um si que é

tomado portanto entre coisas, que tem um face e um dorso, um passado e

um futuro...

[...] Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está

preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa. Mas, dado que

vê e se move, ele mantém as coisas em círculo ao seu redor, elas são um

anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua

carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo

mesmo do corpo. Essas inversões, essas antinomias são maneiras

diversas de dizer que a visão é tomada ou se faz do meio das coisas, lá

onde persiste, como a água-mãe no cristal, a indivisão do senciente e

do sentido.

[...] A animação do corpo não é a junção de suas partes umas às outras –

nem, aliás, a descida de um autômato de um espírito vindo de alhures,

o que suporia ainda que o próprio corpo é sem interior e sem “si”. Um

corpo humano está aí quando, entre vidente e visível, entre tocante e

tocado, entre um olho e o outro, entre a mão e a mão se produz uma

espécie de recruzamento, quando se acende a faísca do senciente-

sensível, quando se inflama o que não cessará de queimar, até que um

acidente do corpo desfaça o que nenhum acidente teria bastado para fazer...

(Destacou-se).

Ora, é o corpo, pois, que como que coordena as coisas, não de fora, mas sim

entrelaçado a elas como coisas que são um prolongamento seu. Deve ser vislumbrado como

vidente e visível. Aqui está o recruzamento, eis que o que o corpo vê pelo órgão da visão é

também, nessa medida, um olhar que resta impresso dele mesmo ali reconhecido.

A pedra de toque é que há um olhar do corpo no modo que considera o outro nesse

olhar, ou seja, não só a perspectiva interna do corpo, mas também a do seu entorno que se

entrelaça no olhar e isso não é fruto do pensamento pairando sobre o entorno, mas sim da

confusão do que é o corpo e do que resta impresso nele no entrelaçamento com a natureza,

de modo que há uma inerência do corpo que vê com o que se vê – há um cruzamento e

recruzamento contantes.

É, desse modo, que pondera Merleau-Ponty (1995, p. 280):

Não é o olho que vê. Tampouco é a alma. É o corpo como totalidade

aberta. Conseqüências para as coisas percebidas: correlações de um

sujeito carnal, réplicas de seu movimento e de seu sentir, intercaladas em

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circuito interno, elas são feitas do mesmo material que ele: o sensível é

a carne do mundo, isto é, o sentido no exterior. (Destacou-se).

A ideia de entrelaçamento surge aqui relevante para permitir compreender que entre

corpo e natureza o que há é um quiasma, no sentido de coito entre um e outro, em uma

simbiose. Um autoriza a compreensão do outro. O processo é simbiótico.

Isso quebra a divisão clássica entre sujeito e objeto (não há esquize), eis que

entrelaçados. O que surge é uma noção de inerência do homem com o mundo, o que afeta,

igualmente, a linguagem do homem, pois que se trata de linguagem do homem como o

próprio nome diz. Há, novamente, uma ontologia indireta.

Nesse contexto, homem, natureza e linguagem se confundem, misturam-se,

entrelaçam-se. O comportamento, em uma ideia de hábito, refere-se a alguma coisa que se

perfaz em uma relação com o outro homem, com uma comunidade, em uma visualização de

coordenação como se mencionou.

Merleau-Ponty (1995, p. 196) da seguinte maneira se posiciona:

A aquisição de um comportamento é semelhante à aquisição de uma

linguagem cujo corpo seria a língua; assim como a linguagem só designa

em relação a outros signos, também o corpo só pode apontar um corpo

como anormal em relação à norma, como ruptura em relação à sua posição

de repouso. (Destacou-se).

Nessa visão, a separação entre sujeito e objeto, em verdade, não se apresenta precisa,

eis que há no objeto um ponto de tangência. Assim, pelo que aqui se interpreta, ao se olhar

um objeto qualquer, além da perspectiva do que se vê partindo do corpo (perspectiva

subjetiva), há uma outra perspectiva que é uma impressão, uma gravação (um olhar) do

objeto (perspectiva objetiva).

Porém, esse dualismo de perspectivas é mentiroso – ele engana o homem, eis que

resta impresso, gravado do objeto não está realmente no objeto separadamente do homem;

está no próprio olhar que é do homem em relação ao objeto. Ora, se essa espécie de gravação

é o olhar, o que há é uma inerência, eis que esse olhar também é do homem e olho e olhar

se confundem nesse entrelaçamento entre sujeito e objeto, de modo que há, pois, no olho do

homem esse olhar holístico; um prolongamento da natureza em tudo que o homem vê.

Ao se expandir isso para a linguagem do homem, esta também é uma espécie de

olhar e a língua é o corpo do homem. Considerando-se a linguagem como uma espécie

de olhar, o que se tem é que, da mesma forma, há uma inerência. Então, essa linguagem

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do homem será um entrelaçamento com o objeto – haverá um prolongamento seu ali e

vice-versa.

Ora, se isso é correto, então se autoriza dizer que nessa linguagem, que é uma

conjugação de signos, há uma gravação do objeto, da própria realidade. Isso seria, pelo que

aqui se interpreta, um aspecto relevante da linguagem social, da linguagem cotidiana. É essa

espécie de simbiose – de mimetismo, que permite a comunicação entre os homens em

sociedade.

Bem, se o signo social é uma gravação do objeto, ou, ao menos, tem ou deveria ter

em si essa gravação – algo há como um mínimo objetal que a experiência entre os homens

permite gravar como decorrência do entrelaçamento, da inerência. Isso quer dizer que a

produção de signos na linguagem dos homens é uma produção por gravação, ou, assim, a

experiência tenderia a provar.

Disso, tem-se, pois, que na planície da linguagem cotidiana, os signos são signos de

gravação ou signos-gravadores em relação ao que é gravado do objeto (summa realidade).

Essas gravações se imprimem em um meio, o qual pode ser físico ou psíquico no panorama

semeiótico da realidade.

O signo-gravador no meio físico-semeiótico generaliza ao signo-gravador no meio

psíquico-semeiótico. Portanto, há um signo físico-gravador (v.g.: palavra escrita) e outro

signo psíquico-gravador (v.g.: conceito). Não confundir isso com o mundo físico que não

está no meio semeiótico, ou seja, com a summa realidade.

1.1.7 Giro Especulativo (Idade Contemporânea)

Principie-se por dizer o que se quer dizer por “giro especulativo”. Giro especulativo

é o nome dado ao movimento do “realismo especulativo” como contraponto ao já cansado

giro linguístico. “Especular” no sentido de estudar algo com atenção e minúcia, do ponto de

vista teórico, porém, um estudo que vai além do crítico, preocupando-se com o absoluto

além da linguagem e sem depender, necessariamente, do pensamento.

Bryant; Srnicek e Harman (2010, p. 2-3) posicionam-se nesse sentido, trazendo que

tem sido comum para a “filosofia continental” enfatizar o estudo sobre “o discurso, texto,

cultura, consciência, poder, ou ideia com o que constitui a realidade.”

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Porém, para Bryant; Srnicek e Harman (2010, p. 2-3), essa posição que espelha “o

homem como centro e a realidade na filosofia aparece apenas como um correlato do

pensamento humano”.

Segundo trazem, fenomenologia, estruturalismo, pós-estruturalismo, desconstrução,

e pós-modernismo são todos exemplos da tendência antirrealista da filosofia continental.

Além disso, o que pontuam, é que o realismo antirrealista acabaria por limitar

demasiadamente as análises filosóficas dos tempos atuais, restringindo-as à linguagem.

Porém, para eles, em algum lugar no começo do século XX houve uma dispersão das

tendências filosóficas críticas ao antirrealismo por meio de um “esparramamento” de novos

baluartes por todo o planeta. Essas novas tendências são chamadas “giro especulativo”, o

qual também pode ser visto como uma forma de realismo ou materialismo.

Alguns dos nomes por detrás do giro especulativo são: Slavoj Žižek; Alain Badiou;

Bruno Latour; Ian Bogost, Levi Bryant; Graham Harman; Isabelle Stengers; François

Laruelle; Manuel DeLanda; Quentin Meillassoux; Ray Brassier; Nick Srnicek. Como

apontam, talvez a obra de Quentin Meillassoux (Après la finitude) seja, no que pode ser

chamado realismo especulativo, a mais influente do movimento.

Meillassoux (2008, p. 4) traz que:

intersubjetividade, o consenso de uma comunidade, suplanta a

adequação entre a representação de um sujeito solitário e uma coisa

individualmente como critério verdadeiro de objetividade, e de

objetividade científica mais particularmente. A verdade científica

não é mais o que se conforma com uma coisa dentro dela mesma

supostamente indiferente ao jeito em relação ao qual ela é dada ao

sujeito, mas, diferentemente, o que é suscetível de ser dado como

compartilhado por uma comunidade científica.

Adicionando a Meillassoux, um marco comum entre os autores do chamado “giro

especulativo”, conforme apontam Bryant; Srnicek e Harman (2010, p. 2-3), é rejeitar o foco

da filosofia da realidade como texto e “especular mais acerca da natureza da realidade

independentemente do pensamento e do homem num sentido mais geral”.

Segundo trazem Bryant; Srnicek e Harman (2010, p. 2-3), o giro especulativo se

baseia não na ideia de “especulação” como crença dogmática, não rejeitando os avanços

críticos das ciências, “mas reconhecendo suas inerentes limitações”. “A especulação

objetiva, nesse sentido, algo ‘além’ do giro crítico e linguístico, recuperando o sentido pré-

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crítico de ‘especulação’ como concernente com o Absoluto, mas reconhecendo o inegável

progresso que é devido ao trabalho de crítica”.

Sua finalidade, busca abarcar, em conformidade com Bryant; Srnicek e Harman

(2010, p. 4-6), temas que a filosofia tem deixado à margem, como “a crise ecológica, o

avanço da neurociência, as fragmentadas interpretações da física, o progresso na quebra da

divisão entre homem e máquina”.

Conforme apontam os autores Bryant; Srnicek e Harman (2010), o giro especulativo

é contrário à redução da filosofia à análise textual ou à estrutura da consciência, trazendo

para o debate questões de interesse mais ontológico.

Portanto, esse que se chama giro especulativo tem na especulação a ferramenta para

descoberta das ontologias do mundo, não a partir do ponto de vista do homem como centro

observador do seu entorno, mas com o homem como partícipe do processo da realidade junto

com todo o resto ao seu redor, sendo o elemento subjetivo e o pensamento um final do

processo, mas não um meio em si.

Um exemplo desse posicionamento do giro especulativo vem do célebre Slavoj

Žižek, e pode ser visto no seu livro A Visão de Parallax (ŽIŽEK, 2006, p. 17):

A definição padrão de parallax é: o aparente deslocamento de um objeto (a

alteração de sua posição contra uma base), causada por uma mudança na

posição de observação que fornece uma nova linha de visão. A reviravolta

filosófica, é claro, é que a diferença observada não é simplesmente

“subjetiva”, devido ao fato que o mesmo objeto, que existe “lá fora” é

visto de duas posições diferentes, ou pontos de vista. É mais

propriamente que, como Hegel colocaria, sujeito e objeto são

inerentemente “mediados”, de modo que uma alteração “epistemológica”

no ponto de vista do sujeito sempre reflete uma alteração “ontológica” no

objeto ele mesmo. Ou – para colocar isso como Lacan diria – o olhar do

sujeito está sempre já gravado no objeto percebido propriamente dito,

no disfarce de seu “ponto cego”, aquilo o que está “no objeto mais do

que o objeto mesmo”, o ponto a partir do qual o objeto propriamente

dito retorna o olhar. “É claro, a figura está no meu olho, mas eu estou,

eu também estou na figura”. A primeira parte da declaração de Lacan

designa subjetivação, a dependência da realidade na sua subjetiva

constituição; enquanto que a segunda parte fornece um suplemento

materialista, regravando o sujeito dentro de sua própria imagem no

manto de uma mancha (o fragmento objetivado no seu olho).

Materialismo não é a direta afirmação da minha inclusão na realidade

objetiva (essa afirmação pressupõe que minha posição de enunciação seja

aquela de um observador externo que pode compreender o todo da

realidade); diferente disso, reside na reviravolta reflexiva por meio da

qual [“eu”] mesmo estou incluído na figura constituída de mim mesmo

– é esse breve circuito reflexivo, esse necessário redobramento de mim

mesmo, colocando-se ao mesmo tempo fora e dentro da figura, que

produz a testemunha da minha “existência material”. Materialismo

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significa que a realidade que eu vejo nunca é “toda” – não porque uma

parte grande dela escapa de mim, mas porque contém uma mancha,

um ponto cego, que indica minha inclusão nela. (Destacou-se).

Essa perspectiva, se correta, altera a posição do homem como sujeito de

conhecimento do mundo – seu objeto de conhecimento, colocando-o como sujeito de

conhecimento de um objeto de conhecimento que inclui ele mesmo.

O entendimento de Žižek passa pela Livro 3 do Seminário de Lacan, especificamente

da parte do texto intitulada “A Esquize do Olho e do Olhar”. Essa parte do texto tem o

pensamento de Lacan especificamente influenciado pelas ideias de Merleau-Ponty (do qual

já se falou), máxime, no que toca ao entrelaçamento entre corpo e entorno.

Na sequência, trazer-se-á alguns trechos do texto de Lacan (1964, p. 74) para tentar

dar conta do seu entendimento sobre o tema, o qual, por sua vez, pelo que aqui se entende,

é a base da compreensão sobre realidade em Žižek:

No campo que nos oferece Maurice Merleau-Ponty, mais ou menos

polarizado aliás pelos fios de nossa experiência, o campo escópico, o

estatuto ontológico se apresenta por suas incidências mais factícias, senão

as mais caducas. Mas não é entre o visível e o invisível que, nós outros,

temos que passar. A esquize que nos interessa não é a distância que se

prende ao fato de haver formas impostas pelo mundo e para as quais

a intencionalidade da experiência fenomenológica nos dirige, donde os

limites que encontramos na experiência do visível. O olhar só se nos

apresenta na forma de uma estranha contingência, simbólica do que

encontramos no horizonte e como ponto de chegada de nossa experiência,

isto é, a falta constitutiva da angústia da castração.

O olho e o olhar, está é para nós a esquize na qual se manifesta a pulsão

ao nível do campo escópico.

[...]

Em nossa relação às coisas, tal como constituída pela via da visão e

ordenada nas figuras da representação, algo escorrega, passa, se

transmite, de piso para piso, para ser sempre nisso certo grau elidido

– é isso que se chama olhar. (Destacou-se).

Para Lacan, pelo que aqui se interpreta, há uma esquize entre olho e olhar. Para ele,

pois, o que se apresenta ao olho pela via da visão pode ser ordenado pelas representações,

mas há um “algo” que escapa no olho pela visão das coisas, um algo que resta escondido,

sendo esse o olhar. Para ele “olho” e “olhar” tem funções distintas, sendo que a função do

olhar é essa função de integrar aquilo que escapa ao olho, e isso é uma espécie de mancha

no olho do que se percebe da realidade.

Lacan compara isso ao mimetismo de certos animais que neles mesmos

corporalmente materializam partes exteriores do entorno. O que Lacan diz pode ser

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exemplificado pelo bicho-folha que imita corporalmente uma folha para com ela se parecer

como se olho e olhar estivessem corporalmente no mesmo corpo – um entrelaçamento claro

da natureza com o corpo.

A esse respeito, Lacan (1964, p. 75) assim se posiciona:

Este exemplo distintivo, escolhido por mim – por sua localidade, por seu

factício, por seu caráter excepcional – é para nós apenas uma pequena

manifestação de uma função a ser isolada – a função, digamos o termo,

da mancha. Este exemplo é precioso por nos marcar a preexistência,

ao visto, de um dado-a-ver.

Não é preciso de modo algum nos reportarmos a não sei que suposição

da existência de um vidente universal. Se a função da mancha é

reconhecida em sua autonomia e identificada à do olhar, podemos

procurar sua inclinação, seu fio, seu traço, por todos os estágios da

constituição do mundo no campo escópico. Percebemos então que a

função da mancha e do olhar é ali ao mesmo tempo o que o comanda

mais secretamente e o que escapa sempre à apreensão dessa forma da

visão que se satisfaz consigo mesma imaginando-se como consciência.

(Destacou-se).

Pelo que aqui se interpreta, salta evidente a visão realista de Lacan, afastando-se de

um panorama metafísico para reconhecer, por meio da função de mancha, a própria

existência de um dado da visão que não se confunde com a própria visão, o que parece ser

compossível com o realismo peirceano nesse aspecto.

Ademais, quer parecer que para Lacan é justamente o reconhecimento desse olhar,

dessa mancha, diferente do olho, que permite estudar os traços e fragmentos da própria

summa realidade, de modo que, em verdade, seu esconderijo está no olho, mas o olhar é a

chave da porta para se alcançar os eventos do mundo, a realidade mesma, a qual inclui e

exclui o próprio observador, em um entrelaçamento que não tem que ver com consciência,

mas sim com inerência.

Lacan materializa bem essa diferença do olho e do olhar com outro exemplo,

distinguindo o que o olho vê do que o olho mostra, fazendo-o ao trazer a figuração do sujeito

em um sonho:

Reportem-se a um texto do sonho, qualquer que ele seja [...] – coloquem-

no em suas coordenadas, e vocês verão que o isso mostra vem antes. Tanto

vem antes, com as características nas quais ele se coordena – isto é, a

ausência de horizonte, o fechamento do que é contemplado no estado de

vigília e, também, o caráter de emergência, de contraste, de mancha, de

suas imagens, a intensificação de suas cores – que nossa posição no sonho

é, no fim das contas, a de sermos fundamentalmente aquele que não

vê. O sujeito não vê onde isso vai dar, ele segue, ele pode até mesmo se

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destacar, dizer para si mesmo que é um sonho, mas não poderia em

nenhum caso se apreender dentro do sonho à maneira como, no cogito

cartesiano, ele se apreende como pensamento. Ele pode dizer – isso não

passa de um sonho. Mas não se apreende como quem se diz – Apesar de

tudo, sou consciência desse sonho.

Num sonho, ele é uma borboleta. O que quer dizer isso? Quer dizer

que ele vê a borboleta na sua realidade de olhar. O que são essas

figuras todas, esses desenhos todos, todas essas cores? – senão esse dar-

a-ver gratuito em que se marca para nós a primitividade da essência

do olhar (LACAN, 1964, p. 77, Destacou-se).

Essa aproximação de Lacan eclode genial e se adapta sobremaneira à primeiridade

peirceana. O dar-a-ver é como uma qualidade do modo de ser da coisa como ela é

independentemente de uma mente e grupo de mentes.

Como em um sonho, o sujeito não enxerga sua presença de sujeito como que

pairando sobre ela mesma. Afasta isso o cogito cartesiano “penso, logo existo” no sentido

de intuição metafísica, para trazer uma visualização não metafísica do pensamento, mas sim

ontológica indireta com a natureza mesma – uma inerência que está no olhar como ponto de

tangência para conhecer a própria realidade a partir da própria realidade, eis que está com o

corpo, com o sujeito, relaciona-se em uma relação simbiótica – em um acerto mimético. Há

animalidade no olhar da primeiridade. Há sujeito no olhar sob a perspectiva de uma

borboleta, um bicho-folha.

Da ideia do bicho-folha erige-se a perspectiva da gravação do objeto no sujeito por

meio dos processos que permitem a percepção. Isso se aplica à observação, para o caso de

alguém observar a natureza, mas também em relação à linguagem que, pelo que aqui se

entende, é um prolongamento do sujeito e, pois, ainda que mediatamente, também grava a

summa realidade.

Ora, se o signo se relaciona com um conceito na mente, é porque esse conceito, em

algum momento, foi um conceito de algo objetivo e, se assim ocorreu, é porque no conceito

alguma porção do objeto restou gravada. Trata-se de um prolongamento, de um

entrelaçamento, do conceito na coisa. Se o fundamento de todo signo é uma ideia, como

ensina Peirce, então há também uma espécie de gravação, ainda que indireta, da coisa no

signo; há uma forma de ontologia indireta.

Esse homem-objeto e objeto-homem, é uma mancha. Essa mancha é que coloca o

homem não na perspectiva do observador, mas também – ele mesmo, na perspectiva do

objeto observado, participando da realidade.

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Kant, nos termos do que já se falou, fala algo parecido com aquilo que está “no objeto

mais do que o objeto mesmo”. A isso chama “diverso”, ou seja, o diverso do fenômeno, que

é o que a intuição pode captar para prover o pensamento e o julgamento.

Porém, quando fala da intuição pura, como já se trouxe acima, diz que o que se pode

separar do objeto, em relação à compreensão que se tem desse objeto e a sensação de que se

origina, é extensão é figura, as quais estão a priori no espírito humano. Kant fala isso dentro

de sua lógica transcendental.

Aqui a visão é empírica (ou materislista), de modo que, pelo que se interpreta, o que

quer dizer Žižek, com base em Lacan, é que o que se afigura aos olhos não está a priori,

mas no próprio olho – o homem ele mesmo objetivamente considerado como parte do objeto.

Não há confusão teórica, pelo que aqui se entende, ao se tomar o tema pela

perspectiva do objeto. Se o reflexo do homem está no objeto e ele no reflexo, o que se tem é

uma simbiose objetiva, mas isso não quer dizer que o homem seja o objeto somente, mas tão

só que, em uma das dimensões possíveis, ele é um objeto dele mesmo na summa realidade

– ele é objeto da realidade, não como humano (na sua humanidade – haecceitas), mas como

prime matter mesma das coisas para usar uma expressão associada ao escotismo e isso

simbioticamente falando. Trata-se da primeiridade peirceana que está no olhar do homem,

no prolongamento com o objeto, e que autoriza se alcançar os traços da realidade.

Essa visão, se trazida para o direito, como se fez aqui ao se falar de Merleau-Ponty,

gira um pouco a perspectiva das coisas, máxime, quando se verifica uma tendência clara na

dogmática nacional para uma pura abstração, a qual parte da linguagem, em uma

independência fictícia, para dar conta da razão do mundo para fins jurídicos.

Com a reviravolta do olhar que Merleau-Ponty, Lacan e Žižek permitem, o que se

tem é que a perspectiva começa a ser muito mais de commom law do que de direito romano,

eis que a prevalência do olhar traz o objeto como ele é para perto do estudo, o que aqui pode-

se tomar, para fins jurídicos, como o evento que gera consequência de direito.

Nesse piso, o direito seria multidimensional e menos formal, diferente de valor,

norma e fato, mas originário do evento mesmo, entendido como objeto. A orientação é, pois,

predominantemente objetiva como centralização da análise e isso não somente na dogmática,

mas também na edição de leis, bem como na interpretação e aplicação do direito.

Focando no objeto que implica consequências jurídicas, contorce-se a ideia de uma

necessária operação lógico dedutiva para aplicação das regras gerais, abrindo-se lugar a um

método mais próximo do que Peirce chamou “abdução”, o qual se preocupa com o objeto –

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em investigar o objeto, para implicar consequências, em uma interpretação e aplicação de

atualização contínua.

Quer parecer que essa perspectiva se coaduna muito mais com o clamor das

sociedades de direito, em um mundo de guerras cibernéticas, revoluções de mídia social,

aquecimento global, avanços da neurociência e física quântica, integração da teoria da

relatividade pela teoria das cordas etc.

Foca na realidade do evento para implicar consequências de direito que se coadunem

com todas as nuanças sociais, autorizando os aplicadores a contornar o método cartesiano,

perseguindo a justiça no caso concreto e não no texto de lei, na linguagem pura, a qual

não se comunica senão contém em si a linguagem cotidiana – a linguagem que se aproxima

do objeto.

Autoriza, assim, uma teoria do direito que é estesiológica, objetivo-

multidimensional, a qual prioriza a investigação jurídica com vistas a encontrar o elemento

gravação do objeto da summa realidade nos signos linguísticos – a encontrar o quiasma, o

coito do fenômeno jurídico como fenômeno de entrelaçamento com os eventos da summa

realidade, em uma comunicação do jurídico que ultimamente se pode, também, chamar justa,

sendo para o direito, essa correlação com a summa realidade, a medida de justiça, o summum

bonum.

Como se vê, a divisão que se fez, foi para se falar, em primeiro lugar, das escolas do

realismo filosófico, o que dá suporte para agora se falar das escolas do realismo jurídico,

como se verificará na sequência.

1.2 Escolas Estadunidense e Escandinava do Realismo Jurídico

Antes de se adentrar no tema específico das escolas de realismo jurídico

mencionadas no título, inicie-se por uma introdução do que se tem por realismo jurídico com

apoio no realismo peirceano.

Nesse sentido, Peirce (CP 5.48) traz o seguinte

No que tange à dupla objeção do título, primeiro darei uma olhada no ramo

dele que descansa sobre a ideia de que a concepção de ação inclui a noção

de lei ou uniformidade, ou seja, que falar sobre uma reação

independente de qualquer coisa, a não ser dos dois objetos individuais

reagindo, é um absurdo. A isso eu deveria dizer que uma lei da

natureza abandonada a si própria seria bastante análogo a uma corte

sem um xerife. A corte nessa situação difícil poderá provavelmente

induzir algum cidadão para atuar como xerife; mas até que ela tenha

conseguido um funcionário que, diferente dela própria, não poderia

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falar com autoridade, mas que poderia aplicar a força, a lei poderia

ser a perfeição da razão humana, mas permaneceria mero fogo de

artifício, brutum fulmen. (Destacou-se).

A visualização de Peirce de uma corte ou tribunal sem xerife – sem força, espelha

com acuidade o que se quer entender por realismo jurídico, eis que a força da lei

(terceiridade) não nasce da generalização formal convencionada em um grupo de mentes

jurídicas, ou mesmo dessa convenção materializada em códigos de leis, mas sim da

convenção que parte do pensamento dos homens acerca do mundo – pensamento esse que

move o universo à eternidade em uma expansão infinita, é dizer, um código de leis de nada

serve se não nascer do consenso dos homens e, portanto, poder ser por eles interpretado e

aplicado com força cogente.

Esse consenso dos homens, pelo que aqui se defende, não nasce a priori, ao contrário,

emerge da experiência sensível, erige-se, pois, de eventos que sucedem no mundo das coisas

e são tomados em um certo sentido.

É esse substrato que dá suporte às leis e é também esse substrato eventual (substrato

de um evento) que permite sua interpretação e aplicação. Surge, até mesmo, um pouco óbvia

a ideia de que para interpretar e aplicar uma lei qualquer é preciso que o que ela grave seja

algo que possa ser compossível com a experiência sensível que permitiu o consenso entre os

homens acerca desse algo, ainda que esse consenso se aperfeiçoe no nível do direito. Não

faria sentido o intérprete da lei aplicar uma lei que fosse marciana, eis que uma lei marciana

não se forma de um consenso da experiência sensível terrestre.

No sistema jurídico de aplicação de leis, como numa corte sem xerife, no entanto, é

preciso que haja movimento. Esse movimento vem do conflito e da necessidade de solução

de conflitos entre os homens. Para que haja movimento alguém tem de provocar esse

movimento contra um movimento contrário de alguém que tentará obstar esse movimento

(judicial). Esse movimento do direito para solução de conflitos, mas não só para essa

solução, encontra sustentáculo em eventos da vida cotidiana que fizeram exsurgir o conflito.

Portanto, é também nos eventos da vida cotidiana que o intérprete e aplicador do

direito encontra o subsídio para interpretar e aplicar as leis. É o intérprete e o aplicador que

impõe a força por meio do uso dos mecanismos cogentes que o sistema lhe põe à mão, mas

o faz, ou deveria fazer, com base nos eventos que lhe foram levados à apreciação por aqueles

que provocam o movimento do sistema judicial.

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Desse modo, ao fim, é da experiência sensível que brota o substrato que permite ao

direito mover-se – é dos eventos que a sua força cogente (função cogente) borbulha para ter

eficácia. Ora, não é fora de linha, mesmo na experiência jurídica que brota do direito romano,

dizer que é nos eventos que o direito encontra sua medida.

Bem, viu-se que o chão do direito é a experiência sensível, porém, viu-se, também,

que quem interpreta e aplica o direito é uma autoridade designada pelo sistema para tal e é

quem tem a competência para dizer o que o direito é ou não é em relação aos eventos que a

experiência sensível traz para movimentar o sistema judicial.

Aí cabe uma pergunta: o fim e início do direito está no evento da experiência sensível

ou na interpretação e aplicação que é possível pela autoridade designada pelo sistema para

tal? Nessa pergunta, para o que aqui se defende, não há diferença entre sistema de direito

romano e sistema de “common law”.

Guerra Filho (2009, p. 121) encontra uma diferença de aproximação do tema em

relação aos dois sistemas jurídicos:

Embora não se possa afirmar, tendo em vista o caráter legislativo de

nosso sistema jurídico, que o direito é o que os tribunais dizem ser em

seus pronunciamentos, como fazem os propugnadores escandinavos e

anglo-saxônicos do realismo jurídico, é inegável o papel relevantíssimo

exercido pela jurisprudência reiterada em determinado sentido na

configuração, hic et nunc, do material jurídico positivo e

consubstanciada nas decisões judiciais. (Destacou-se).

Talvez o problema seja, em verdade, uma questão de enfoque. Ao se colocar foco na

eficácia das decisões judiciais, quer parecer que a interpretação final e aplicação do direito

emanada, por exemplo, no Brasil pela Suprema Corte, é exatamente o direito no Brasil e não

o que a lei diz. “Corte sem xerife é fogo de artifício”, como diz Peirce. Lei sem jurisprudência

também. Nessa aproximação, pelo que aqui se interpreta, o direito é justamente o que, no

Brasil, a Suprema Corte diz que é.

Porém, isso pode gerar um outro problema de eficácia, que é a eficácia “social”, a

qual, em absoluto, é somente uma questão da sociologia jurídica, mas questão de

interpretação e aplicação do próprio direito.

É justamente essa problemática de eficácia “social” que implica um outro enfoque

para o tema: ao se colocar foco no destinatário do comando legal, a função cogente (ou

impositiva) somente se perfaz, como o xerife impondo força na corte de Peirce, quando a

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linguagem legislativa e a interpretação atribuída pela autoridade jurídica competente forem

compossíveis com a linguagem cotidiana.

Essa linguagem cotidiana é que permite a convenção social, a qual permite a

convenção jurídica. Se não há compossibilidade, há um problema de comunicação (um

ruído) e não existe vida em sociedade sem comunicação.

Porém, isso é um pouco mais profundo que somente comunicação. Isso tem de ver

com experiência, eis que a linguagem cotidiana é uma convenção que concorda com o que

a experiência sensível de um grupo de mentes experimentou no mundo e, mesmo que haja

uma “imaginação” da experiência sensível e ela implique convenção, isso pouco importará,

pois a terceiridade (a lei geral) é um continuum. Esse elemento do continuum será

devidamente explorado quando se falar em convenção mais adiante neste trabalho.

Ora, o que se quer dizer é que, ainda que a Suprema Corte brasileira diga o que é o

direito com força cogente ou impositiva, isso somente implicará uma decisão imperativa de

efeitos presentes, mas cuja eficácia em relação a eventos futuros será tão somente potencial.

Algo como contingentes futuros.

Isso se deve à circunstância que sustenta a vida em sociedade, ou seja, a possibilidade

de comunicação, de modo que se o que for dito pela Suprema Corte não encontrar supedâneo

na linguagem cotidiana, o que ocorrerá será que a decisão será um dia revista e modificada

para que seja compossível com a linguagem cotidiana e, mesmo que não seja modificada em

uma geração, haverá, como ideal (summum bonum) a possibilidade de modificação, para

aonde caminhará a Suprema Corte em uma próxima formação.

Disso decorre que, ao cabo, o direito mesmo tampouco é jurisprudência, mas sim

experiência sensível que autoriza a sustentação do sistema jurídico. Para usar o que Peirce

chama de verdade – que é justamente a concordância sobre a experiência sensível entre os

homens, o que se tem é que o direito é mesmo verdade sobre os eventos do mundo sensível

e, portanto, falível e atualizável no continuum de desenvolvimento das sociedades de direito.

No Brasil, o artigo 504, do Novo Código de Processo Civil, absorveu esse conceito

de maneira sublime ao prescrever que: “Não fazem coisa julgada: [...] II - a verdade dos

fatos, estabelecida como fundamento da sentença.

A natureza das coisas é implacável e nem lei nem jurisprudência podem prevalecer

sobre ela. Talvez em suspensão prevaleçam, mas consideradas como terceiridade e

continuum que serão sempre atualizáveis em direção à experiência sensível que emerge dos

eventos do mundo.

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A verdade dos eventos que ocorrem no mundo sensível não transita em julgado, eis

que isso seria impossível, ao menos filosoficamente e, quer parecer que juridicamente agora

também com o dispositivo do Código de Processo Civil, o qual é, em verdade, regra

meramente pedagógica. Como se poderia atribuir efeitos definitivos àquilo que de definitivo

nada tem?

A concordância sobre os eventos do mundo sensível, ou essa verdade sobre as

ocorrências, resta somente em suspensão, algo como que um universal, eis que, no

continuum da terceiridade, tempo e espaço estão sempre forçando a atualização das coisas

nas definições de seus conceitos.

Os xerifes dos tribunais são xerifes com olhos mareados que concordam sobre coisas

que na sua inesgotabilidade são turvas no lamaçal da experiência sensível que os direciona

à cogência na função impositiva da lei.

Guardadas as devidas diferenças de supedâneo filosófico (nominalismo e realismo),

Vilanova (1977, p. xxii) diz que:

Por outro lado, a interpretação e aplicação jurisprudencial do direito são

complementos imprescindíveis para se ter o “direito com experiência” e,

como base nessa experiência, obter-se o vínculo husserliano entre

“juízo e experiência”, ou entre lógica e realidade. Sem isso corre-se o

risco de fazer lógica jurídica como admirável peripécia algorítima,

mas sem nenhuma repercussão na Ciência-do-Direito e sem maior

fecundidade para a prática do direito. (Destacou-se).

Portanto, o que se está dizendo é que direito é experiência e que essa experiência

jurídica com vistas à justiça deve ou deveria se apoiar nos eventos do mundo sensível

necessariamente.

Na sequência, com base no que foi explanado, trazer-se-á o pensamento que se pode

sacar de duas escolas do realismo jurídico: a escola do realismo estadunidense e a escola do

realismo escandinavo.

1.2.1 Realismo Jurídico Estadunidense

O sistema jurídico que, supostamente, coloca enfoque maior na experiência é o

sistema common law. Para que se possa seguir o estudo, faça-se agora uma apresentação do

contraste não absoluto existente entre o sistema de common law e o sistema de direito

romano.

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A diferença fundamental pode ser apreendida de Martin (2006, p. 94) no sentido de

que o sistema common law é aquele baseado em regras de direito desenvolvidas pelos

tribunais em oposição àquelas criadas pelos estatutos de leis.

Quer parecer que, pelo que aqui se interpreta, o desnível está, realmente, no tipo de

linguagem que serve de fundação para o direito aplicável. Rottleuthner (2005) parece dar um

norte interessante para ressaltar a diferença no sentido de que ela se refere à diferença entre

normativismo e realismo.

Para Rottleuthner (2005, p. 7-8), normativistas concebem o direito, “como uma

entidade simbólica, linguisticamente representada com inerente normatividade de força

vinculadora”, o que se refere a uma posição, cuja “experiência é baseada em sentir-se

obrigado, ser obrigado por normas ‘válidas’”. A perspectiva que prevalece é de protagonistas

que se submetem à força imperativa das leis (função impositiva) e dos aplicadores do direito

– uma perspectiva subjetiva.

Rottleuthner (2005, p. 7-8) traz, no entanto, que os realistas se projetam mais

fortemente sobre o aspecto “objetivo, real, factual da ordem legal”. “Sujeitos se referem a

eventos externos ou circunstâncias existentes no tempo e no espaço, i.e., ‘fatos’”. Assim,

para os realistas “normas como tais não existem”.

Segundo Rottleuthner (2005, p. 7-8), é a acessibilidade do sujeito cognoscente via

padrões de comportamento externo a eventos que conta. “Conhecimento intrasubjetivo

(introspecção) deve ser substituído por proposições testáveis intersubjetivamente”. Em

resumo, o que se tem é que para os realistas “as normas podem ser reduzidas a fatos [“lei

como fato”]”. O realista olha para o direito como “uma predição de futuras ações de um

tribunal”.

Contra isso, Rottleuthner (2005, p. 7-8) pontua que o normativista diria que o “direito

existe independentemente de ser aplicado e ter eficácia”. Sua existência, para os

normativistas, estaria somente ligada à validade, o que não poderia reduzi-las a fatos, eis que

estes têm “existência” externa e diferente do direito.

Ao se voltar os olhos novamente à alegoria do tribunal sem xerife de Peirce, pode-

se, com base no mencionado, verificar-se que, em realidade, a terceiridade (que é a lei) não

existe independentemente do pensamento (geral). Portanto, se depende de alguma forma de

pensamento, ainda que não seja o particular, é como que depende de uma concordância sobre

pensamentos particulares. Essa concordância, que é verdade, se refere ultimamente a eventos

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(fatos5) da experiência sensível e, se o estabelecimento é por meio da verdade, a

concordância é lógica (sentido amplo).

Os normativistas, então, batalhariam para dizer que direito é válido ou inválido e não

se submete aos operadores lógicos de verdadeiro ou falso, mas sim à lógica deôntica. Ainda

assim, entende-se aqui que o direito deve remeter aos eventos, o que restará mais claro

quando esse tema for estudado na parte que trata das proposições e das normas jurídicas mais

adiante.

Portanto, acreditando-se em um direito puro, cuja eficácia social é estudada pela

sociologia do direito e não tem relevância direta na construção do sistema jurídico, bem

como na sua interpretação e aplicação, a visão normativista prevalece, mas tornando o direito

relacionado aos eventos – não por método de aplicação ou retórica, mas sim por relação

empírica de investigação jurídico-científica, o direito talvez não se reduza ao evento, mas

dele não poderá se afastar indeterminadamente, sob pena de não servir a quem se destina.

Assim, a diferença entre common law e civil law é uma diferença de enfoque, mas

que na prática, para o que aqui se defende, só se justifica na teoria, eis que a investigação de

ocorrências que fazem surgir consequências de direito deve se submeter, de um modo ou de

outro, à experiência sensível, o mesmo se diga da construção do direito, ainda que baseada

em estatutos de leis, eis que estes também emergem de algum substrato, e não pode ser o

substrato do legislador outro senão o da linguagem cotidiana, sob pena de ineficácia

(incomunicabilidade jurídica).

Deve-se trazer agora que é difícil precisar se o que aqui se designa realismo jurídico

pode ser encarado como uma escola da teoria geral do direito (jurisprudence) ou da filosofia

do direito, conforme pontua Lundmark (2012, p. 95-96). Quer parecer ter ingredientes das

duas escolas, a depender do enfoque mais forte que se atribui ao estudo, quer de uma teoria

aplicada com o enfoque na jurisprudência (teoria geral do direito), quer em uma teoria pura

com enfoque nos conceitos jurídicos.

Dessa diferença potencial de escolas dentro do direito, talvez tenha surgido as duas

vertentes principais do realismo jurídico: a vertente escandinava e a vertente estadunidense.

A diferença principal diz respeito justamente ao enfoque que se dá.

No realismo estadunidense, o estudo se fundamenta na teoria da adjudicação, a qual

se preocupa, primariamente, com o que os juízes fazem quando decidem casos nos tribunais.

5 Entende-se que “fato” é uma nomenclatura incorreta, de modo que se procura evitá-lo, substituindo-a por

evento sempre que possível. Isso restará estudo e detalhado mais adiante no presente estudo.

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Até 1881, quando Oliver Wendell Holmes publicou o seu célebre “Common Law”, vigeu na

teoria geral do direito estadunidense a concepção de que o processo de decisão dos

magistrados era dedutivo: a) categorização da situação eventual6; b) identificação e

interpretação da regra aplicável; c) aplicação do direito.

Com o seu “Common Law”, Holmes teria mudado de um enfoque lógico-dedutivo

para um enfoque que se chamará aqui mais abdutivo, ou seja, no sentido de que a adjudicação

propriamente dita do caso à intelecção do juiz ocorreria com maior força na categorização

da situação eventual e não propriamente na interpretação e aplicação da lei. A pedra de toque

diferencial diz com a circunstância de que o processo de decisão judicial passaria na mente

do juiz não por uma operação de lógica dedutiva, mas sim por uma operação subjetiva que

considera na perspectiva dos eventos aquela regra que permitirá um ótimo resultado para o

caso.

Essa diferença de foco permitiria decisões fundamentadas não somente na lógica

dedutiva, mas numa valoração dos eventos do ponto de vista do resultado esperado, de modo

que decisões poderiam ser produzidas com maior eficácia – eficácia “social”.

A mudança de paradigma em relação à lógica dedutiva em “Common Law” é notada

já nas suas primeiras palavras quando Holmes (1881, p. 1) traz o seguinte:

O objeto desse livro é apresentar uma visão geral da common law. Para

alcançar essa tarefa, outras ferramentas são necessárias além da lógica. É

alguma coisa para mostrar que a consistência de um Sistema requer um

resultado particular, mas isso não é tudo. A vida do direito não tem sido

lógica: ela tem sido experiência. As necessidades sentidas do tempo, a

moral prevalecente e teorias políticas, intuições de ordem pública,

explícitas ou inconscientes, até mesmo preconceitos que os juízes

compartilham com seus semelhantes, tem tido maior importância mais do

que o silogismo em determinar as regras pelas quais os homens deveriam

ser governados. O direito incorpora a história do desenvolvimento de uma

nação ao longo de séculos, e não pode ser manejado com se contesse

apenas os axiomas e corolários de um livro de matemática. De modo a

saber o que é, devemos conhecer o que tem sido, e o que tende a se tornar.

Devemos alternativamente consultar a história e as teorias de legislação

existentes. Porém, o mais difícil trabalho será entender a combinação de

dois produtos a todo o tempo. A substância da lei a qualquer dado tempo

quase sempre corresponde, no seu limite, ao que é então entendido por

ser conveniente; mas sua forma e mecanismo, e o grau para o qual é

capaz de desenvolver resultado desejados, depende muito do seu

passado. (Destacou-se).

6 Eventual ao invés de fática para seguir a linha de nomenclatura que se quer priorizar aqui em relação ao

evento, de modo que eventual é relativo a um evento.

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Aqui se verifica que o contraste de Holmes diz com o papel da lógica na

operacionalização do direito no sentido que o enfoque não deve jazer sobre a lógica, mas

sim na experiência que se desenvolveu ao longo do tempo na vida do direito.

Sua visualização é, pois, histórica no sentido de que o que se pode esperar em direção

ao futuro é o que se pode compreender em relação ao passado. Holmes (1881, p. 2), em outro

trecho, clarifica que na dogmática o estudo deve se desenvolver com fundamento em

tendências, o que se estabelece voltando os olhos ao passado:

Eu devo usar a história do nosso direito tanto quanto seja necessário para

explicar uma concepção ou interpretar uma regra, mas não mais longo do

que isso. Em o fazendo, há dois erros igualmente a serem evitados tanto

pelo escritor como pelo leitor. Um é aquele de supor, porque uma ideia

parece muito familiar e natural a nós, que tem sempre sido assim.

Muitas coisas, em relação às quais não damos a devida importância

tiveram de ser conseguidas por meio de laboriosa luta ou raciocínio

em tempos passados. O outro é o oposto a perguntar muito sobre a

história. Começamos com o homem já adulto. Deve ser suposto que os

primeiros bárbaros, acerca de quem as práticas têm de ser consideradas,

tiveram um bom número dos mesmos sentimentos e paixões que nós

mesmos. A primeira matéria a ser discutida é a teoria geral da obrigação

civil e criminal. A common law mudou muito desde o início de nossa

série de relatórios, e a procura por uma teoria, a qual pode ser agora

dita por prevalecer tem muito que ver com um estudo de tendências.

(Destacou-se).

O que se vê é que a doutrina de Holmes foca na história, o que aqui pode ser também

entendido como eventos (passados) para prever tendências a serem estudas para o devir. Isso

quer dizer que, ao fim, não é só na jurisprudência que se encontra a experiência que

fundamenta o direito, mas, mais do que nela, no passado, e passado é história não só na

jurisprudência, sendo esse o método de Holmes para os estudos dogmáticos, como no caso

da teoria das obrigações.

Nesse contexto, acerca do realismo jurídico, Lundmark (2012, p. 95-96) traz que três

aspectos podem ser ditos em relação à maioria dos realistas jurídicos: a) eles são céticos em

relação às regras, enfatizando sua indeterminação inerente, o que implica que a sua

interpretação e aplicação leva em consideração aspectos inevitavelmente subjetivos; b) eles

enxergam a possibilidade de interpretação e aplicação do direito com interdisciplinaridade

com considerações sociológicas, políticas, econômicas, antropológicas, psicológicas, etc.,

de modo que o direito não pode ser contemplado como em um vácuo de autonomia; c)

como efeito do item anterior, os realistas jurídicos vislumbram a possibilidade de

aproximações empíricas do direito, o que permite, como no exemplo estadunidense, uma

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ênfase nas “cortes de direito”, nas quais eles analisam a jurisprudência, de modo que possam

ter precisas predições sobre o que é o direito na prática; d) os realistas jurídicos são

instrumentalistas. Eles enxergam a prática do direito como um exercício político, e eles

apoiam majoritariamente aproximações progressivas em relação à interpretação dos códigos

de leis e jurisprudência em direção a permitir um melhor ajuste do direito às rápidas

mudanças sociais, o que permitiria uma facilitada absorção de argumentos relativos à justiça

e moral.

Nota-se que, diante dos aspectos de ênfase caros aos realistas jurídicos não haveria

permeabilidade para uma teoria pura do direito como no caso kelseniano. Como Kelsen

(2003, p. 1) diz no início da sua teoria pura do direito “Quando a si própria se designa ‘pura’

teoria do Direito, isto significa que ela propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao

Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, [...] ela

pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos”.

Difícil conceber uma aproximação possível da teoria kelseniana com o realismo

jurídico, ao menos o estadunidense, eis que lá o que se pretende libertar é a visão do direito

como vácuo autônomo. Talvez Kelsen quando quis libertar o direito tenha, em verdade,

proposto um aprisionamento da ordem jurídica a um restrito lógico-dedutivo modo de cortar

o fenômeno jurídico, o qual, por ser tão restrito, acaba por desprovê-lo do que lhe é mais

caro, é dizer, o eco que tem na sociedade de direito.

Essa aproximação empírica do realismo estadunidense, pelo que aqui se interpreta,

tem, também, foco na eficácia social do direito, o que não implica somente a sociologia, mas

também economia, psicologia, política etc. Isso porque a sociedade do direito não é uma

sociedade de vácuo autônomo, para usar o termo de Lundmark, mas sim uma comunidade

multidisciplinar na sua interdependência capilarizada.

Outro ponto que não é compossível com os realistas jurídicos da escola

estadunidense é o tema da eficácia social na teoria carvalhiana. Carvalho (2012, p. 94-95),

quando trata da eficácia das regras de direito, traz que são de três sortes: a) jurídica; b) técnica

e c) social. Para ele, as duas primeiras poderiam ser objeto da dogmática, mas não a última

que deveria ser estudada pela sociologia do direito.

Quer parecer que a aproximação do tema levada a efeito por Carvalho é kelseniana

em linha com sua Teoria Pura. A eficácia jurídica tem relação com o aspecto lógico-

dedutivo-deôntico da regra de direito – relação que se dá com a incidência da regra por conta

do fato jurídico. A técnica tem que ver com obstáculos de ordem sintática para permitir a

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aplicação da regra. A social se relaciona com o eco que os mandamentos de lei têm na

sociedade de direito.

Quando Carvalho trata da propriedade de que é investido o fato jurídico para irradiar

efeitos de direito, no que respeita à eficácia jurídica da regra, espertamente, pelo que aqui se

interpreta, ele emprega fato jurídico considerando que já está vertido em linguagem jurídica,

é dizer, não é mais evento absoluto (evento do mundo físico), nomenclatura que se cunhará

nesse trabalho, a qual será explicada mais adiante.

A pergunta que cabe é, nesse sentido, se poderia esse fato jurídico, verter linguagem

que não é compossível com o evento absoluto (que ocorreu no mundo dos fenômenos)? Em

uma linha realista-jurídica, a resposta seria claramente negativa, eis que a conformidade com

os eventos é requisito para aplicação da lei, e isso quer dizer que a ênfase aqui é empírica e

não lógico-dedutiva. Não tem que ver com sintaxe, mas sim com semântica, o que, pelo que

aqui se defende, de uma forma ou de outra, abrange a pragmática.

Em relação à eficácia social, para um realista jurídico, ela é matéria, cuja

interdisciplinaridade com o direito é intencionalmente incentivada, eis que não se contempla

a lei como um vácuo autônomo, como parece ser a visão kelseniana seguida por Carvalho.

Ora, se a interdisciplinaridade é incentivada, disso resulta que a sociologia do direito não o

retira de sua pureza, eis que o foco não é a aplicação de uma regra válida, mas sim de uma

regra justa.

Voltando à escola estadunidense, Lundmark (2012) pontua que a prioridade é a

importância da jurisprudência como foco principal do direito, mencionando o exemplo do

célebre realista jurídico estadunidense Karl Llewellyn, o qual escreveu um livro resumindo

os mais importantes precedentes do Estado de Nova Iorque, de modo que o leitor pudesse

coletar os costumes sociais, econômicos e políticos prevalecentes que influenciavam o

desenvolvimento do direito naquela jurisdição.

Falando em Llewellyn (2008, p. 5-6), vejam-se suas palavras sobre o realismo:

o mais significante (eu não digo o único) aspecto das relações do direito

e sociedade jaz no campo do comportamento, e que palavras assumem

importância ou porque e na medida em que elas se referem [are] a

comportamento, ou porque e na medida em que elas

demonstrativamente refletem ou influenciam outro comportamento.

Essa afirmação não parece ter a necessidade de ser feita. Sua verdade é

absurdamente aparente. Diante disso, reverte, chateia, o todo da tradicional

aproximação ao direito. Isso torna a teoria aceita de ponta-cabeça. O foco

tradicional é em termos de palavras; ele se centraliza em palavras; tem

a maior dificuldade de ir além das palavras. Se nada for dito acerca

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do comportamento, assume-se tacitamente que as palavras refletem o

comportamento, e se elas forem as palavras das regras de direito,

influenciam o comportamento [...] eficazmente e precisamente para

conformar completamente com aquelas palavras. Aqui jaz a chave

para a lama. As “regras” são editadas; no tipo-caso que elas são regras

“de obrigação”, regras prescritivas: as prescrições do legislador [writer], as

obrigações do legislador, individualmente proclamadas obrigações – a

regra verdadeira é que juízes devem dar julgamento em direção ao

requerente com base nesses fatos. A partir disso nós saltamos sem o

necessário aviso prévio em obrigações equivalentes como aceitas no

Sistema de direito em tela: obrigações prevalecentes – as autoridades

concordam que juízes deveriam julgar em direção ao requerente com base

nesses fatos. Aqui, mais uma vez sem aviso prévio e sem questionamentos,

assumimos que a prática dos juízes conforma com as obrigações aceitas

nos livros; que formulações verbais de obrigações descrevem precisamente

[como é] a prática; que eles [juízes] julgam com base nesses fatos. Um

problema dessa situação. No direito ou qualquer outro setor da vida.

Onde está a ideologia do homem acerca do que ele está fazendo, acerca

do que é boa prática – Onde está essa ideologia ou teria ela jamais sido

uma descrição adequada da sua prática? Essa é a primeira tácita

imputação da “factualidade” das regras prescritivas. (Destacou-se).

Como se nota, Llewellyn prega uma aplicação do direito baseada não nas palavras

da lei, eis que nesta está a ideologia do legislador, não levando em consideração a ideologia

do juiz, sendo que é essa ideologia que implicará, ao fim, a prescritividade das regras de

direito e sua imputação.

Tal visão se afasta claramente do normativismo kelseniano baseado em uma lógica

dedutiva na aplicação do direito sem levar em consideração a subjetividade do aplicador da

regra ao caso concreto.

Outro célebre realista jurídico estadunidense, Pound (1922, p. 99), acerca do papel

do direito na sociedade moderna, traz que:

Eu estou contente em pensar no direito como uma instituição social

para satisfazer vontades sociais – as reinvindicações e demandas

envoltas na existência da sociedade civilizada – o que se implementa,

como queremos, com o menor sacrifício, até o limite que tais vontades

possam ser satisfeitas ou tais reinvindicações postas em prática por uma

conduta ordenada por meio de uma sociedade politicamente organizada.

Para os propósitos presentes, eu estou contente em ver na história do

direito um registro de um reconhecimento contínuo e mais amplo da

satisfação das vontades e reivindicações e desejos por meio de controle

social; uma mais acolhedora e mais efetiva segurança dos interesses

sociais; uma contínua e mais eficiente eliminação do desperdício e

preclusão da fricção no prazer dos homens em relação aos bens da

existência – em resumo, uma engenharia social continuamente mais

eficaz. (Destacou-se).

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Bem, como se verifica, a ideia de Pound sobre o direito diz com uma instituição

social que visa à satisfação das vontades sociais, o que demonstra uma direção do direito

estadunidense à interdisciplinaridade, principalmente com relação à sociologia, no sentido

dos efeitos e consequência que a aplicação da lei pode ocasionar nos sujeitos de direito.

A visão de Pound (1922, p. 102) afasta aquela relativa ao papel do juiz como

aplicador da lei em um ato mecânico de subsunção do caso concreto com a regra aplicável.

Em sua apreciação, Pound (1922, p. 118), ao falar da lei anglo-americana de

responsabilidade civil, parece querer absorver mais os padrões (standards) de direito no

papel do juiz como aplicador do direito, como no caso a) de um certo julgamento moral

sobre a conduta no sentido de ser justo e consensual, razoável, prudente e diligente; b)

desnecessidade de chamar por uma aplicação da regra exata, mas mais relativamente ao

senso comum e referente a uma intuição apurada em direção à experiência externa comum;

c) impossibilidade de uma formulação absoluta do direito, tanto pelo legislador como pelo

magistrado, eis que relativo ao tempo e lugar e circunstâncias, sendo aplicado com referência

a fatos do caso em questão. “Cada caso é único na sua extensão”.

Visto isso, o que se tem é uma visão baseada no realismo estadunidense que

privilegia não a lei como texto, mas sim a lei em relação ao evento que implica consequência

de direito. Essa diferença de foco, no realismo estadunidense, fez priorizar a análise da

jurisprudência, da qual se poderiam prever tendências de decisões futuras, eis que o

fundamento se originaria da análise de eventos que ocorrem no mundo e não simplesmente

da aplicação lógico-dedutiva de statutos de lei.

No realismo estadunidense, a visualização do direito que se tem é do direito como

experiência, como instituição social, cuja interdisciplinaridade é inevitável e, não só

inevitável como também desejável com vistas a fundamentar decisões mais justas.

Visto o realismo jurídico sob o enfoque da escola estadunidense, passa-se agora a

conhecer o pensamento da escola do realismo escandinavo.

1.2.2 Realismo Jurídico Escandinavo

Muito se falou dos realistas jurídicos estadunidenses, porém, como se disse, o

realismo jurídico se divide entre a escola estadunidense e a escola escandinava. Fale-se agora

um pouco da escola escandinava.

Bjarup (2005, p. 1-2) traz que o movimento jurisprudencial denominado como

realismo jurídico escandinavo teve por fundadores o filósofo sueco Axel Hägerström (1868–

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1939) e o filósofo dinamarquês Alf Ross (1899–1979), os quais compartilhavam a visão de

que “é vital destruir as destorcidas influências da metafísica sobre o pensamento científico

em geral e pensamento jurídico em particular em direção a pavimentar o caminho da

importância do direito e ciência jurídica para a vida dos seres humanos dentro do Estado”.

Segundo Bjarup (2005, p. 1-2), “a filosofia de Hägerström dá suporte ao seu enfoque

jurisprudencial em termos de uma aproximação naturalista ao direito e conhecimento

jurídico”, o que influenciaria seus pupilos, os suecos A. V. Lundstedt (1882–1955) e Karl

Olivecrona (1897–1980).

Conforme pontua Bjarup (2005, p. 1-2), os realistas jurídicos escandinavos

enfatizam:

a relação da filosofia com a jurisprudência na sua análise conceitual

de conceitos jurídicos fundamentais, trazendo as questões de realidade e

conhecimento para o centro da atenção, para fins de estabelecer a fundação

segura para a compreensão científica do direito e conhecimento jurídico

com um enfoque naturalista na jurisprudência. (Destacou-se).

Para falar de Ross, Bulygin (1981, p. 75-89) traz que sua importância realmente

transbordou as fronteiras da Dinamarca, seu país natal, com a publicação de “Sobre o Direito

e a Justiça”, de 1958 (talvez sua obra de maior projeção), da qual se teria apossado H. L. A.

Hart em seu o “Conceito do Direito”, de 1960.

A visão de Ross sobre o direito e realidade do direito não se conseguirá explorar aqui

na sua completude, eis que o espaço de estudo é multifacetário e não caberia detalhamento

desse porte. Porém, como se fez anteriormente com os ícones do realismo jurídico

estadunidense, vai-se aqui trazer parte do pensamento de Ross por meio de recortes de sua

teoria.

Nesse contexto, quer-se aqui trazer um ponto de grande interesse que é a crítica

ferrenha de Ross a Kelsen no que respeita à concepção deste da “existência” de uma norma

hipotética fundamental que daria razão à origem do direito:

Ross (2007, p. 349-351), nesse piso, traz que a assunção kelseniana de que seria

possível um ponto de partida para o conhecimento jurídico desde uma norma fundamental

com índole pressuposta é de todo errada.

Segundo Ross (2007, p. 350-351), a suposição kelseniana é de que é possível seguir

com o sistema jurídico por meio da eliminação do sistema jurídico anterior, do que Ross

discorda com base em que não há diferença entre uma revolução para eliminação do sistema

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jurídico anterior e o surgimento diário de um direito extrassistêmico, eis que ambos seriam

externos ao sistema jurídico, o que implica que ambos pressuporiam mudanças na norma

fundamental, de modo que o que suportaria a norma fundamental, tanto na revolução como

no surgimento diário, não é direito e, portanto, de saída já faz despencar a construção formal

de tal norma.

Para Ross (2007, p. 349-351), movimentos externos ao direito enquanto sistema

implicam uma mudança nas condições de “existência”, do que decorre que o sistema jurídico

terá de se adaptar. Ele compara o sistema a um organismo vivo que na sua permanente

mutação deve ser visualizado em relação à sua continuidade. Assim como o organismo, o

sistema de leis é um continuum e a ciência que o descreve somente pode descrevê-lo como

em uma foto, mas é justamente a continuidade que também impera no sistema de leis que

lhe atribui um elemento de transcendência, permitindo clicá-lo com uma foto.

Diante do que se entende aqui, para Ross (2007, p. 349-351), o direito não pode ser

somente direito escrito, o que seria equivalente à foto clicada do sistema, mas mais do que

isso, em razão de seu elemento de continuidade na sua permanente mutação por conta do seu

entorno, deve-se considerar no direito uma referência efetiva a algo de aplicação continuada,

de modo que, nessa dinâmica, o direito escrito é mais secundário que a continuidade da

pressuposição.

Ross (2007, p. 349-351) clarifica que o direito escrito somente expressa algum

significado na condição de que detrás das palavras jurídicas haja uma vontade social que se

presta a materializar em ações. “A vontade social nem sequer precisa se servir das palavras

ou da escritura, podendo se expressar diretamente por meio de ações e ser conhecida como

pressuposto de uma série de ações sociais dadas”.

Isso lembra no Brasil, a força dos movimentos sociais com base em mídia social que

eclodiram e fizeram cair uma presidente e tem feito cambiar continuamente os atos do

legislativo, judiciário e executivo.

A posição de Ross (2007, p. 349-351) vai na linha de que quanto mais alto é o nível

da abstração menor será sua relevância. Sua linha de raciocínio expressa um ponto de vista

que se parece ao que se viu em Pound acima, no sentido de que o direito é uma instituição

social. Níveis altos de abstração, pois, não permitem um desfecho jurídico fundamentado na

lei – direito escrito, mas sim “por meio da observação da vontade jurídica imediata de uma

determinada comunidade” é que deve o direito se fundamentar.

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Ross (2007, p. 349-351) trabalha com a ideia de que o limite do conhecimento

jurídico está no limite imediato da vontade social, a partir da qual “se produz uma transição

quase imperceptível de uma vontade jurídica clara e consciente em direção a tendências mais

ou menos difusas, representações de como deveria ser o direito e meras aceitações

convencionais do fático”.

Assim, Ross (2007, p. 349-351) finaliza por dizer que “o direito encontra fundamento

na consciência jurídica ou na vontade jurídica, sendo que num plano mais abstrato, ele se

dissolve, passando a ser visível somente na forma de seus componentes sociológicos: o

fático-convencional, ou o desejado ou querido como direito”.

O que se entende aqui das palavras de Ross, é que abstração e realidade, para fins do

direito, são como o céu e a terra. Se alguém olha de um avião a grande altitude para a terra,

o que se vê é difuso, desajustado, disforme. Essa é a míope abstração absoluta, próxima do

que Kelsen chamou norma hipotética fundamental.

Quanto mais se aproxima o avião da terra, maior é seu contato com a determinação

do objeto, sendo que é a convenção que se alcança sobre o objeto, comportamentos, estados

e eventos, que Ross chama “o fático convencional”. A mudança de paradigma está na

circunstância de que Ross assevera ser o fático-convencional o dever-ser do direito, pois é

aqui que se permite aproximar o direito da vontade social, que é soberana.

Lembre-se que Scotus traz que a unidade mais densa está no particular. No direito,

não é diferente, eis que na lei geral o que se tem é rarefeito, devendo-se o intérprete e

aplicador se aproximar da densidade numérica do evento para dizer o direito aplicável.

Ross ao combater a norma hipotética fundamental de Kelsen o faz partindo do

pressuposto de que o ponto de partida de todo o direito não é a validade da regra de direito

no sistema, mas sua correlação com as mudanças extrassistêmicas que ocorrem. É nessa

evolução e correlação com o sistema jurídico que está o fundamento do direito, o que não se

confunde com uma operação lógico-dedutiva de juízo hipotético.

Bem, se o pressuposto de Ross está correto, e “a realidade jurídica consiste nessa

contínua correlação recíproca” entre intrassistema e extrassistema, não há se falar em norma

hipotético fundamental como ponto fixo de sustentabilidade do sistema de direito, eis que

ela (norma fundamental) teria de se correlacionar, e o fazendo, já não seria construída

logicamente.

É por isso que Ross (2007, p. 352) combate, igualmente, outro ponto de sustentação

primordial da teoria kelseniana – a diferença entre o mundo do ser e o mundo do dever-ser:

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Não há então outra via que supor que o dever-ser não constitui uma

categoria independente, em absoluta contraposição ao ser. E nesse

sentido temos tentado determinar o dever-ser a modo de específica

formulação de um tipo de conhecimento, cujo objeto é a totalidade

concreto individual, entendida como realidade, fundamentando, assim,

a possibilidade do conhecimento jurídico. Em termos lógico-

transcendentais, a prova do acerto de nossa teoria reside em que só partindo

desta base cabe captar, ao mesmo tempo, a positividade do direito (isto é,

o caráter empírico do conhecimento jurídico-científico e a normatividade

do direito) e a diferença que, sem embargo, existe entre o conhecimento

científico-jurídico e o científico-natural. (Destacou-se).

Portanto, disso aqui se interpreta que, para Ross, a realidade é a totalidade

concreto-individual, sendo que é esse o objeto do conhecimento jurídico. Para compreender

o fundamento do direito, é preciso saber o que o conhecimento jurídico pode absorver e, seu

final e começo, terra e céu, é que são a totalidade concreto-individual que é a realidade.

Se há no direito uma correspondência permanente – um continuum de correlação

com essa totalidade, isso implica dizer que não haveria diferença entre mundo do dever-ser

e mundo do ser, pois se forem independentes não haverá a mencionada correlação e isso

seria incompossível com o sistema jurídico.

Essa diferença de pensamento parece estar em linha com a diferença entre o realismo

in re e o realismo ante rem dos quais se falou quando se tratou do realismo platônico.

Adotando-se o pensamento kelseniano como guia, estar-se-á aderindo ao pensamento

platônico no Fédon no sentido de que há independência entre universais e particulares.

Caso se apoie na visão de Ross, o que se terá é a linha de Platão no Mênon,

considerada possivelmente como um realismo in re (universal in re), da qual se saca não

haver essa independência entre universal e particular.

Finalmente, dentro do realismo escandinavo, quer-se falar agora de outro autor,

pupilo de Hägerström – Karl Olivecrona. Olivecrona (1968, p. 7) logo no início de seu

Linguagem Jurídica e Realidade trata da visualização da linguagem jurídica como de

sobrenível em relação à linguagem corrente ou cotidiana.

Para Olivecrona (1968, p. 7), os conceitos fundamentais da linguagem jurídica dizem

respeito aos direitos subjetivos e aos deveres dos sujeitos de direito. Porém, conforme

aponta, esses direitos e obrigações não pertencem ao mundo sensível, ao mundo dos eventos,

de modo que não se pode comprovar sua presença e “existência”.

Segundo Olivecrona (1968, p. 10), toma-se a linguagem jurídica como operativa de

efeitos e consequências e não se pergunta sobre a “existência” das instituições jurídicas e de

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como elas atuam por meio do que chama de “fatos operativos”. Isso se dá na prática jurídica

e no cotidiano das gentes, mas filosoficamente a questão é debatida, pelo que existiriam dois

enfoques possíveis: metafísico e naturalista.

Em relação ao enfoque metafísico, Olivecrona (1968, p. 10) pontua que esses direitos

e obrigações, seus efeitos e consequências, operariam de maneira suprassensível. Para ele, o

conceito de direito subjetivo, por exemplo, é um conceito primário do qual a obrigação é

contrapartida.

No enfoque naturalista, no entanto, conforme esclarece Olivecrona (1968, p. 13), o

centro da atenção é o dever, de onde se parte juridicamente, e o qual é definido “em termos

de fatos empíricos estritos, de modo que o direito subjetivo é um simples reflexo do dever”.

Para Olivecrona (1968, p. 67), a linguagem jurídica pode ser vislumbrada por sua

aparência e, nesse caso, será uma linguagem que tem reflexo na realidade, porém “essa

realidade não é uma parte do mundo dos fatos conhecidos por meio dos sentidos, da memória

e da indução. É uma realidade de ordem superior. Porém, todo intento de apreender essa

realidade suprassensível conduz ao fracasso”.

Na sua interpretação de como a linguagem jurídica considera o ingrediente da

realidade, Olivecrona (1968, p. 67) traz que seu propósito primário não é, como se

pensa, refletir a realidade, mas sim plasmá-la. É por esse motivo que na linguagem

jurídica se utilizam funções da linguagem específicas, “com sentido emotivo, palavras que

incitam a ação e palavras com função técnica. A linguagem jurídica tem origem na

linguagem da magia. Essa é a chave da explicação histórica”.

Olivecrona (1968, p. 41) apresenta que as funções da linguagem jurídica envolvem

um elemento cunhado por Austin como “expressões realizativas”, as “quais não relatam

fatos, não descrevem nada, sendo seu propósito estabelecer uma nova relação jurídica”,

como no exemplo de quando um homem diz “sim” perante um juiz de paz em uma cerimônia

de casamento. O predicado “realizativas” vem da circunstância de que ao formulá-las ações

são “realizadas”.

Quando alguém que passou em um concurso presta um juramento para com o novo

cargo que está por assumir “realiza” uma ação – tem uma “expressão realizativa”, da qual

surgem direitos e obrigações. Conforme aponta Olivecrona (1968, p. 42), “elas têm um efeito

supostamente criador”.

Para Olivecrona (1968, p. 43), esse efeito criador que a linguagem jurídica tem sobre

os sujeitos de direito, operando direitos e obrigações, é algo na sociedade pressuposto e de

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ordinária normalidade, mas ao se colocar para pensar sobre o padrão desse efeito, é possível

compará-lo ao efeito que tem a magia.

Conforme Olivecrona (1968, p. 43) pontua: “o sentido de todas as expressões

realizativas é, na verdade, mágico”, o que para ele encontra prova abundante na história do

direito ao longo dos tempos.

Segundo Bjarup (2005, p. 14), fazendo o contraponto entre Ross e Olivecrona, a

base deste último é a filosofia de Hägerström, implicando na sua falta de interesse em relação

à verificação científica das declarações

Nos termos de Bjarup (2005, p. 14), Olivecrona rejeita a ideia de que a tarefa da

ciência jurídica seja prever o que as cortes de direito farão, sendo que, no entanto, o que deve

se estabelecer é a ideia de que a ciência jurídica deve informar os sujeitos de direito acerca

do que o direito é, de modo que eles possam se comportar em conformidade

Por fim, Bjarup (2005, p. 14) traz que os realistas jurídicos escandinavos,

compartilham a ideia da importância da filosofia em relação à jurisprudência de modo a que

se possa compreender o direito e o conhecimento do direito.

Essa parece, igualmente, ser a pedra divisória entre os enfoques do realismo

estadunidense e o escandinavo. Quer-se dizer aqui que a aproximação ao direito empenhada

pelos realistas escandinavos, mormente por Ross no caso, condiz melhor com os

fundamentos do presente trabalho. De Olivecrona, a ideia que o direito plasma a realidade e

não a reflete é utilizada ao longo do trabalho, mas a percepção de funções mágicas do direito

não é absorvida na plenitude, eis que implicaria uma função metafísica que se distancia da

experiência sensível, o que não é exatemante o que se defende aqui, máxime com base no

realismo peirceano.

Para o que aqui se defende, não haveria magia pairando sobre os sujeitos do direito,

mas sim o outro, o segundo, a alteridade. O efeito, pois, está na noção mesma de comunidade,

e no limite próprio de um no outro. É esse outro que proporciona ao primeiro realidade, tanto

no encontro de ideias comuns que “concordam”, como na submissão à previsibilidade de um

acionamento de coordenação. Essa engrenagem social de coordenação que a convenção

permite é que é o “ingrediente mágico”, que de mágico nada tem, eis que é na experiência e

na concordância entre os homens, ou seja, empiricamente, que o direito é descoberto.

A lei do direito é como a lei que implica generalidade na terceiridade peirceana, mas

sozinha é um tribunal sem xerife – é brutum fulmem. É justamente na correlação necessária

num continuum com o outro (segundidade) é que jaz a chave da porta para o estado

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democrático de direito e sua efetividade, eis que não é possível sacar uma foto de alguma

coisa que não está em presença (como numa mágica), e o retrato não é nada mais que uma

parte da realidade, fatia esta à qual se tem acesso e substrato do direito.

No que diz respeito ao realismo estadunidense, este salta como de suma importância

para a compreensão do fenômeno jurídico, mas parece curto em aplicação, eis que se foca

no protagonismo do juiz na interpretação e aplicação do direito. Porém, a ideia de direito

como instituição social e de direito como experiência são chão firme onde se fincam as vigas

do edifício dogmático que se tenta aqui construir. Além disso, a ideia de direito como evento

que ocorre no mundo sensível e a flexibilização de uma lei absoluta para permitir

interdisciplinaridade e acesso à justiça, também, são amplamente consideradas.

No entanto, o foco é na crença de que ao estudo filosófico da jurisprudência, deve-

se dar, igualmente, fundamental importância, o que leva a debates sobre os conceitos

fundamentais do direito.

Esse estudo autoriza uma compreensão apropriada e apurada da totalidade concreto-

individual que o direito se presta a gravar em uma correlação, a qual parece necessária entre

direito e realidade sensível para que seu continuum possa operar efeitos sociais eficazes, o

que não o separa de uma investigação jurídico-científica que pode ser levada a efeito com a

contribuição da dogmática, como se intenciona fazer aqui no presente caso.

É por esse motivo que, na sequência, estudar-se-ão conceitos tão caros ao direito

como o de realidade jurídica, convenção no âmbito do direito, verdade jurídica, proposição

e regras de direito, interpretação e aplicação do direito, o que se fará no palco do direito

nacional.

Reforce-se, para fins de método, que a linha majoritária que se segue aqui é, no

realismo filosófico, peirceana com correlação com Merleau-Ponty, e, no realismo jurídico,

a de Alf Ross (conceitos fundamentais de direito) e da escola estadunidense (questões

relativas à jurisprudência, intepretação e aplicação do direito).

Vista a questão sob o ângulo das escolas estadunidense e escandinava, passa-se

adiante a tratar de uma aplicação do conhecimento adquirido à peculiaridade do sistema

jurídico brasileiro, com exploração de precedentes jurisprudenciais como ponto de suporte

às conclusões alcançadas.

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1.3 Realismo Jurídico no Sistema Jurídico Brasileiro

O que se quer chamar aqui realismo jurídico é uma visão do direito sob a perspectiva

de que não tem o legislador, tampouco o aplicador do direito, uma liberdade total para

legislar e aplicar, eis que deve haver uma correlação necessária do direito com a summa

realidade, preservando-se nos signos jurídicos um mínimo do que se encontra nos signos da

linguagem ordinária, sob pena de grave distorção na comunicação (no sentido de eficácia)

do fenômeno jurídico entre as gentes.

Esse realismo jurídico é, pois, aquela perspectiva que considera os signos da

linguagem cotidiana para fins de um legislar e de um interpretar e aplicar o direito, no sentido

de que os signos jurídicos não poderiam ser vazios de sentido em relação à referência à

realidade social, a qual encontra nos signos da linguagem social seu supedâneo de meio de

expressão na língua. Trata-se de um panorama do direito como instituição social que

encontra na vontade social seu meio e também o seu limite.

Isso se deve, pelo que se fundamenta aqui, à circunstância de que o direito, na

perspectiva do signo jurídico no meio de expressão escrito da língua, é um signo gravador

em relação ao signo da linguagem escrita social – signo gravado. Isso quer dizer que os

signos na linguagem do direito encontram fundamento nos signos da linguagem social.

Explique-se que os signos podem se articular em diferentes meios de expressão. Esse

meio de expressão pode ser a língua escrita, a língua falada, a língua dos gestos etc. Isso será

explicado no próximo tópico com mais profundidade.

Guarde-se, por enquanto, que os signos da linguagem do direito são fático-

convencionais, no termo cunhado por Ross, ou como aqui se defende, eventual-

convencionais (para diferenciar corretamente evento de fato), de modo que é nos signos da

linguagem das gentes que encontram sua fonte de sustentação para implicar consequências

jurídicas.

Não está o direito, pois, em um reino independente da summa realidade (como na

linha de uma realismo platônico ante rem), mas, ao contrário, intimamente ligado a ela no

meio e no limite da vontade social. A visão em que se apoia aqui é uma visão do direito

capilarizado, simbiótico com a summa realidade, em uma relação de inclusão e exclusão

permanente. Não há pureza, mas sim simbiose – uma correlação necessária com a textura da

realidade, com o tecido social, gravado pela linguagem cotidiana.

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No direito positivo, essa correlação entre signos em diferentes linguagens aparece

claramente, por exemplo, no artigo 110 do Código Tributário Nacional:

A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de

institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou

implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos

Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios,

para definir ou limitar competências tributárias. (Destacou-se).

O que implica a redação do artigo acima transcrito? Implica que o conteúdo e forma

dos signos da linguagem do direito privado não podem ser distorcidos pelo legislador

tributário com vistas a definir uma competência para imposição tributária ou limitá-la.

Disso decorrem duas conclusões: 1) os signos da linguagem do direito privado são

gravados em relação aos signos da linguagem do direito tributário que são, assim,

gravadores; 2) os signos da linguagem jurídica possuem um conteúdo e uma forma, ou seja,

têm substância e forma.

Para ficar mais clara a aplicação do artigo transcrito, veja-se a Súmula Vinculante 31

da Suprema Corte Brasileira: “É inconstitucional a incidência do imposto sobre serviços de

qualquer natureza - ISS sobre operações de locação de bens móveis”.

Para que todos estejam no mesmo contexto, até mesmo aqueles que não conhecem

com profundidade as discussões tributárias, diga-se que o Imposto Sobre Serviços (“ISS”)

é, como o nome aponta, um tributo incidente sobre a prestação de serviços.

Há uma lista anexa à Lei Complementar 116/2003 (hodiernamente aquela vigente

para fins da imposição do ISS), a qual traz os serviços passíveis de incidência do ISS. Muitos

foram os debates acalorados no contencioso tributário acerca da possibilidade de a locação

ser considerada um serviço passível de incidência do ISS.

A questão foi alçada ao patamar constitucional, eis que a Constituição Federal, no

seu artigo 153, inciso III, traz que o ISS incide sobre serviços de qualquer natureza. Assim,

para que haja a incidência do tributo, deve haver a presença de um serviço. Esse é o limite

da competência constitucional estabelecida para fins da imposição do ISS.

Bem, a discussão que levou à edição da Súmula Vinculante 31 gira, dessa forma,

sobre ser ou não a locação um serviço. Nesse sentido, existe um signo gravado, que é o signo

da linguagem do direito privado que não poderá ser distorcido para fins de caracterizar ou

não a locação como serviço.

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Em resumo, baseando-se no signo que deve ser gravado do direito privado, a

Suprema Corte estabeleceu que a definição de serviços e locação de móveis deve ser aquela

do Código Civil Brasileiro, de modo que para que haja um serviço deve haver um esforço

humano direto, constituindo o serviço uma obrigação de fazer. Locação constitui uma

obrigação de dar, de modo que não poderia o Fisco municipal exigir o ISS sobre locação de

bens móveis.

Isso parece até um pouco óbvio, eis que não faz muito sentido cobrar ISS em um

contrato de locação de um móvel, eis que não existe serviço propriamente dito ali. Os signos

da própria linguagem ordinária já fariam chegar nessa conclusão, mas os embates tributários

diante do apetite do Fisco são muito frequentes, mesmo diante de obviedades.

Os precedentes representativos que deram origem à Súmula mencionada merecem

transcrição para reforçar o alegado:

Imposto sobre serviços (ISS) - Locação de veículo automotor -

Inadmissibilidade, em tal hipótese, da incidência desse tributo municipal -

Distinção necessária entre locação de bens móveis (obrigação de dar ou de

entregar) e prestação de serviços (obrigação de fazer) - Impossibilidade

de a legislação tributária municipal alterar a definição e o alcance de

conceitos de Direito Privado (CTN, art. 110) - Inconstitucionalidade do

item 79 da antiga lista de serviços anexa ao Decreto-Lei nº 406/68 -

Precedentes do Supremo Tribunal Federal - Recurso improvido. - Não se

revela tributável, mediante ISS, a locação de veículos automotores

(que consubstancia obrigação de dar ou de entregar), eis que esse

tributo municipal somente pode incidir sobre obrigações de fazer, a

cuja matriz conceitual não se ajusta a figura contratual da locação de bens

móveis. Precedentes (STF). Doutrina. (RE 446003 AgR, Relator Ministro

Celso de Mello, Segunda Turma, julgamento em 30.5.2006, DJ de

4.8.2006). (Destacou-se).

Na espécie, o imposto, conforme a própria nomenclatura, considerado o

figurino constitucional, pressupõe a prestação de serviços e não o contrato

de locação. Em face do texto da Carta Federal, não se tem como assentar a

incidência do tributo na espécie, porque falta o núcleo dessa incidência,

que são os serviços. Observem-se os institutos em vigor tal como se

contêm na legislação de regência. As definições de locação de serviços

e locação de móveis vêm-nos do Código Civil. Em síntese, há de

prevalecer a definição de cada instituto, e somente a prestação de

serviços, envolvido na via direta o esforço humano, é fato gerador do

tributo em comento. Prevalece a ordem natural das coisas cuja força

surge insuplantável; prevalecem as balizas constitucionais, a conferirem

segurança às relações Estado-contribuinte; prevalece, alfim, a organicidade

do próprio Direito, sem a qual tudo será possível no agasalho de interesses

do Estado, embora não enquadráveis como primários. (AI 623226 AgR,

Relator Ministro Marco Aurélio, Primeira Turma, julgamento em 1.2.2011,

DJe de 11.3.2011). (Destacou-se).

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Veja-se, pois, que são os signos da linguagem do direito civil é que dizem o que é

locação de bem móvel, de modo que não pode, segundo o artigo 110 do Código Tributário

Nacional, o legislador tributário esticar a definição do conteúdo estabelecido no direito civil

com vistas a uma maior imposição tributária.

Importante destacar que no segundo julgado aparece “Prevalece a ordem natural das

coisas cuja força surge insuplantável”. Por que essa ordem natural deve prevalecer? Diante

da proposta que aqui se firma, deve prevalecer pelo motivo de que também são os signos da

linguagem do direito civil gravadores em relação aos signos de uma outra linguagem da qual

nenhuma outra pode se afastar completamente: trata-se dos signos da linguagem cotidiana.

Os signos, para haver comunicação, inclusive comunicação jurídica, articulam-se no

meio de expressão de uma língua. No Brasil, o meio de expressão é a língua portuguesa.

Uma certeza aparece inafastável: não há se falar em signo jurídico sem que esse se articule

no meio de expressão da língua portuguesa.

Isso leva a uma outra conclusão importante: se o meio de expressão é a língua

portuguesa, isso quer dizer que os signos da língua portuguesa é que são gravados para fins

dos signos de qualquer linguagem, inclusive da linguagem jurídica.

Assim, como se disse, os signos da linguagem do direito civil também se debruçam

sobre os signos da linguagem cotidiana para dizer o que é móvel, locação, serviço etc. Isso

não quer dizer que não se possa inovar em termos de signos jurídicos, eis que os institutos

jurídicos têm sentido próprio. Ao contrário, isso quer dizer apenas que um mínimo do signo

gravado, deve ser respeitado em nome da eficácia dos signos de direito.

Não poderão os signos da linguagem de direito civil, por exemplo, dizerem que um

prédio é um móvel. Isso não faz nenhum sentido do ponto de vista dos signos da linguagem

cotidiana. Há, pois, um mínimo de conteúdo do signo gravado que no signo gravador deve

manter-se para que se permita a comunicação do jurídico às gentes e não se faça o sistema

de direito positivo ruir.

Isso demonstra que a substância dos signos jurídicos é, de uma forma ou de outra, o

signo da linguagem cotidiana ainda que variações sejam permitidas. Substância tem a ver

com conteúdo do signo, seu fundamento. Signos também possuem uma forma, que é sua

expressão mesma na linguagem, por exemplo, visual, audível, gestual. Finalmente, tem-se a

função do signo na linguagem, no sentido gramatical, por exemplo, se se trata de substantivo,

verbo, pronome.

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Isso implica que signos se referem a objetos (summa realidade) ou a outros signos

(realidade semeiótica); o conteúdo do signo tem uma forma e tem uma substância. Se o

conteúdo é um signo gravado pelo signo gravador, a forma e a substância serão a forma e a

substância do signo gravado minimamente. O conteúdo do signo gravado, se for o caso do

signo da linguagem cotidiana, está no nível da realidade do objeto, que também tem forma e

substância – diverso e matéria como diz Kant.

Para o signo gravador do direito, o objeto da gravação é um objeto imediato, para

se usar um termo de Peirce, gravado no nivel de linguagem mais baixo possível que é a

linguagem contidiana. Porém, não é nela que está o limite ideal de gravação, haja vista que

o chão – ou objeto dinâmico, estará no nível da summa realidade, de modo que se permite

asseverar que não deveria existir idealmente signo jurídico que em algum grau de

degeneralização não se referisse a um objeto da experiência sensível.

O tema da realidade permeia toda a discussão do fenômeno jurídico na perspectiva

semeiótica. É a realidade que, ao menos mediatamente, é objeto do direito. A objetividade

para a qual o direito deve se direcionar necessita, em alguma medida, de um elemento de

mediação para gravação no signo jurídico; esse elemento de mediação se chama verdade

jurídica. Na sequência vai-se explorar a realidade jurídica e a verdade jurídica.

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PARTE 2 – REALIDADE E VERDADE JURÍDICAS

Com base na Parte 1 deste trabalho, na qual se apresentaram algumas escolas

filosóficas de fundamento para o realismo jurídico, bem como um panorama das escolas

estadunidense e escandinava do realismo jurídico, segue-se agora para esta Parte 2, na qual

os temas aprendidos serão aplicados para fundamentar uma visão da realidade jurídica ela

mesma, da verdade jurídica no domínio do direito, bem como outros temas de relevância

para a ciência jurídica e que são correlatos, tais quais, a convenção que se forma no âmbito

do direito (convenção jurídica), o tema das proposições em contraposição às normas

jurídicas, bem como o tema da interpretação e aplicação do direito.

2.1 Realidade Jurídica e Convenção no Direito

A realidade jurídica é uma realidade de sobreposição. Portanto, para a devida

compreensão do que se entende por realidade jurídica é preciso estudar o que é essa realidade

sobre a qual a realidade jurídica se sobrepõe, ou seja, estudar o que é essa realidade

extrajurídica.

Nesse contexto, diga-se que compreender o que é realidade extrajurídica depende da

posição filosófica que se adota para estudar o tema. Para fins das posições que foram aqui

examinadas, trabalha-se com a diferença entre realismo e nominalismo.

O realismo de que se fala aqui é o realismo peirceano. O nominalismo será utilizado

como ponto de diferenciação para justificar a postura do realismo peirceano sobre o tema da

realidade, de modo que não há uma preocupação com um tipo determinado de nominalismo,

ou, nominalismo desse ou daquele pensador.

Antes de se tratar da postura realista e da postura nominalista no que toca à realidade

extrajurídica, diga-se que o portal de acesso à realidade é um signo na concepção peirceana

de signo (tríade). Um dos meios de articulação de signos é pelo meio de expressão de uma

língua. Diga-se aqui que não se exclui como signo o pensamento. Faz-se um recorte somente

para fins de se analisar um tipo de expressão específica do signo nesse momento: o signo

escrito.

Bem, se o meio de expressão é uma língua e se o recorte eleito for o meio de

expressão escrito dessa língua (existem outros possíveis), o que se tem é que o acesso à

realidade é o acesso que se dá a partir de um signo escrito nessa perspectiva de análise.

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Nesse contexto, originando-se no meio de expressão escrito de articulação de uma

língua, o homem trava contato com signos, os quais se referem a realidades. Isso implica

que, ao cabo, o portal de acesso é, também, um portal de acesso semeiótico: acesso por meio

de uma definição semeiótica de um conceito sobre uma realidade.

É aqui que jaz todo o problema relativo ao debate sobre realidade na perspectiva das

posturas realista e nominalista, é dizer, se o portal de acesso, no meio de expressão escrito,

diz com signos escritos, os quais correspondem a definições sobre conceitos sobre uma

realidade, seria essa definição “real” ou uma definição “nominal”?

Ferraz Jr. (1994, p. 36) responde a pergunta da seguinte maneira: “Se nos atemos ao

uso, toda e qualquer definição é nominal, isto é, definir um conceito é a mesma coisa que

descrever uma realidade, pois a descrição da realidade depende de como definimos o

conceito e não o contrário”.

Com acuidade, Ferraz Jr. se preocupa em dizer “se nos atemos ao uso”. Isso se deve

à circunstância de que é o uso dos signos sobre determinadas realidades que implicará a

definição do conceito dessas realidades.

De acordo com o uso, convencionou-se, por exemplo, que aquele objeto com quatro

pernas usado para sentar é representado pelo signo “cadeira”. No uso, pois, convencionou-

se que tal objeto não pode ser chamado “mesa”.

O que se extrai de Ferraz Jr. é, pois, que se esse uso leva a uma definição de um

conceito sobre uma realidade, isso quer dizer que toda definição de um conceito é nominal.

Se é nominal, isso quer dizer que o que se defini não é a coisa real, mas simplesmente um

conceito.

É por isso que Ferraz Jr. destaca a igualdade entre a definição de um conceito e a

descrição de uma realidade. Nesse passo, o conceito sobre uma realidade quando definido já

é nessa definição uma própria descrição dessa realidade.

Nessa linha, uma pergunta que cabe aqui vai no sentido de se saber se a definição

de um conceito sobre uma realidade “cria” ou é “condição de acesso” a essa realidade, ou,

ainda, a pergunta que vai no sentido de se saber se os signos “descobrem” realidades ou as

“constituem” para os usuários em uma comunidade de fala.

Antes de responder, esclareça-se que aquele que faz uso dos signos em uma língua

determinada é um usuário da língua, sendo que, conforme Bloomfield (1973, p. 29) aponta,

uma comunidade de fala é: “Um grupo de pessoas, o qual usa um mesmo sistema de sinais

de fala”.

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129

Voltando à pergunta, diga-se que, a depender da resposta que se dê acerca do efeito

que os signos exercem sobre a realidade (“cria” ou “é condição”), adotar-se-á uma visão

realista ou uma visão nominalista sobre o tema. Isso se deve a um ponto especial que deve

ser ressaltado: admitir que o signo “cria” a realidade é o mesmo que admitir que não existe

realidade fora da articulação do signo no meio de expressão de uma língua.

Contrariamente, admitir que se trata de uma “condição de acesso” é o mesmo que

admitir que existe uma dualidade, é dizer, uma realidade do signo, a qual se chama aqui

realidade semeiótica e uma realidade fora do signo, a qual se chama aqui summa realidade.

Aqui já se toma uma posição sobre o embate entre a visão realista e a visão

nominalista: para o que se defende no presente trabalho, a realidade é multidimensional na

sua essência, mas para fins meramente pedagógico-dogmáticos, dizer-se-á aqui que é uma

dualidade, do que decorre ser admitido dizer que “existe” uma summa realidade e também

uma realidade semeiótica. Portanto, a realidade extrajurídica é uma summa realidade, e a

realidade jurídica é um tipo de realidade semeiótica ou jurídico-semeiótica.

Para se chegar a essa conclusão, a premissa aqui utilizada se fundamenta na ideia de

realidade defendida por Peirce. Sobre realidade, como já se disse, Peirce traz que a “é aquele

modo de ser em virtude do qual a coisa real é como ela é, independentemente de como uma

mente ou grupo de mentes possa representá-la”.

Interpretando-se os dizeres de Peirce, o que se extrai é que apontam para duas

conclusões fulminantes: a) “existe” uma realidade além do meio de expressão de uma língua;

b) uma mente ou grupo de mentes não “constrói” uma realidade por meio de uma

representação.

A aproximação de Peirce do tema não deixa dúvidas, o signo no meio de expressão

de uma língua não tem o condão de “criar” uma realidade, eis que a “coisa real” é

independentemente de como uma comunidade de fala convenciona sobre a ela.

Nesse contexto, aqui se trabalha o signo como portal de acesso ao real. Para o que

aqui se defende, há uma sutil diferença quando se fala na igualdade entre a definição de um

conceito e a descrição de uma realidade, conforme aponta Ferraz Jr.

Essa sutil diferença jaz na palavra “descrição”. Quando se fala em uso

convencionado em uma comunidade de fala, tal uso é uma memória dele próprio na mente

dos falantes dessa comunidade de fala.

O verbo descrever, como diz Wittgenstein (2009, p. 136-137), “zomba de nós”. Para

ele, descrições são “instrumentos para empregos especiais”, de modo que “pensar em

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descrições como representações verbais de fatos” pode ser desorientador, como é inútil um

quadro pendurado na parede que “simplesmente reproduz o aspecto e a constituição de uma

coisa”.

Dê-se o exemplo de quando alguém diz que uma “cadeira se usa para sentar”. O que

se tem quando se pensa em uma cadeira é essa memória de uso (“usa-se para sentar”). Essa

memória de uso é equivalente a um conceito, mas não é exatamente a mesma coisa que a

descrição de uma realidade, eis que este (conceito) é inútil para realmente descrever uma

realidade.

Sob essa perspectiva, a definição de um conceito é mais uma gravação semeiótica

na expressão escrita de uma língua de uma memória de uso do que uma descrição de uma

realidade. Isso porque, para o que se aqui defende, uma realidade, porque inesgotável, nunca

poderia ser descrita, mas tão somente “descoberta” na extensão de uma gravação sua.

Assim, o besouro na caixa que é descrito por várias mentes, mas que não é acessado

por nenhuma delas, como exemplifica Wittgenstein (2009, p. 137-138), em verdade, é uma

memória de uso do besouro e isso quer dizer que é “algo”, será “algo” e foi “algo” em algum

momento para que se tornasse memória de uso, de modo que, mesmo que não esteja na caixa

para aquele grupo de mentes, isso não lhe descredencia de ser “algo” na sua realidade de

besouro.

Disso decorre que o signo do besouro, como memória de uso no meio de expressão

escrito de uma língua, certamente referencia “algo”, tem (esse algo) uma relação objetiva

com o signo. É a experiência a respeito do besouro que o credencia a ser “algo” para o signo.

Para se fixar bem essa premissa em relação à memória de uso, deve-se compreender

o que se tem por uso em uma comunidade de fala. O nome substantivo português uso vem

do nome substantivo latino usus, cuja entrada nos dicionários indica experiência, hábito e

costume.

Assim, de maneira simplista, poder-se-ia dizer que o uso é, pois, uma experiência de

algo que, reiterada, torna-se hábito e, porque hábito, “acostuma” sobre ele a mente ou mentes

dos membros de uma comunidade de fala, tornando-se uma memória de uso sobre uma

realidade.

A mente pode se acostumar a várias memórias de uso sobre as coisas, mas em uma

comunidade de fala, para que a comunicação seja possível, convencionar-se-á uma memória

como aquela aceita. As outras podem continuar na mente, mas não permitirão a

comunicação.

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131

O fenômeno da convenção, o qual permite que memórias de uso sejam gravadas

como aceitas nas mentes dos membros de comunidades de fala, é de tal complexo que

demandaria um tanto expressivo de páginas para explicá-lo, o que não é o objetivo direto do

presente trabalho.

Porém, para não deixar o tema no ar, importa trazer que convenção, como já se deu

a entender anteriormente, diz com uma experiência reiterada, um hábito. Lewis (2002, p.

42), ainda que de maneira provisória, explica o seguinte sobre a convenção:

Esse é o fenômeno que eu chamo convenção. Nossa primeira, bruta,

definição é:

Uma regularidade R num comportamento de membros de uma população

P quando eles são agentes numa situação recorrente S é uma convenção se,

e apenas se, em qualquer instância de S entre os membros de P,

(1) todos se sujeitam a R;

(2) todos esperam que todos os demais se sujeitem a R;

(3) todos preferem se sujeitar a R sob a condição que os outros também o

façam, já que S é um problema de coordenação e a sujeição

uniforme a R é um apropriado equilíbrio em S.

[...]

Essa regularidade que tem gradualmente se desenvolvido em nosso

comportamento é uma convenção. (Destacou-se).

Veja-se que a uma convenção é, assim, um processo de coordenação de expectativas

entre membros de uma comunidade de fala, o qual, quando implica equilíbrio em termos da

uniformidade da sujeição a uma regularidade (de fala) resulta em um ajuste entre os falantes,

é dizer, resulta em uma convenção.

O resultado que é uma convenção é um produto de um processo muito mais complexo

entre os membros de uma comunidade de fala. Tal processo tem como pilar a coordenação

entre os homens dentro de uma comunidade de fala, de modo que a comunicação seja

possível. Trata-se de um problema de coordenação

É por isso que Bloomfield (1973, p. 27) traz que estudar a língua é “estudar a

coordenação de certos sons com certos significados”.

Croft (2011, p. 1) aponta que quando alguém fala, fala no sentido de se comunicar

em uma ação conjunta que é desempenhada pelos falantes, sendo que essa ação conjunta

assim o é, haja vista se referir à soma das ações conjuntas de falantes individualmente

considerados.

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Para aperfeiçoar essa ação conjunta, faz-se necessário que cada falante considere “as

crenças, intenções, e ações de um modo que pode ser descrito como cooperativo” (CROFT,

2011, p. 1).

Cooperar é compartilhar atitudes individuais com vistas a que uma ação conjunta seja

levada a cabo. Comunicar-se é uma coordenação de expectativas, a qual considera a

particularidade do outro para que seja possível a ação conjunta. Se o processo é vitorioso,

isso quer dizer que há equilíbrio e, se há equilíbrio todos podem se sujeitar à regularidade

que se estabelece. Está-se, assim, diante de uma convenção.

Porém, Peirce, como já se viu, deixa claro que, independentemente dessa convenção,

a “coisa real é como ela é”. Portanto, para Peirce, claramente, pouco importa a convenção

no que toca à realidade “em si”, eis que essa é independente no seu “modo de ser” de

quaisquer processos desenvolvidos por membros de uma comunidade de fala.

No entanto, ele mesmo (Peirce) não se viu longe da importância da comunidade no

processo de intelecção da realidade. Peirce (CP 5.311) traz que:

O real, então, é aquilo no qual, mais cedo ou mais tarde, a informação e o

raciocínio resultarão finalmente, e que é, portanto, independente das

minhas e das suas fantasias. Assim, a verdadeira origem da concepção

de realidade mostra que esta concepção implica essencialmente a

noção de uma COMUNIDADE, sem limites definidos e capaz de um

aumento de conhecimento indefinido. (Destacou-se).

Segundo Bacha (2003, p. 36), a realidade das coisas está sujeita às seguintes

propriedades:

a) não depende do desejo ou opinião de indivíduos ou grupos de

indivíduos; b) será objeto de consenso entre as pessoas que têm suficiente

experiência e conduzem as investigações de forma correta; c) de fato, este

consenso não é limitado a uma comunidade particular, mas pode incluir

qualquer agente racional; d) o consenso resulta da ação da realidade

externa sobre nossos sentidos e nossas opiniões.

Se essa é a premissa, ou seja, que “existe” uma summa realidade, surge aqui uma

inquietação importante: qual é, então, o elemento de mediação que torna essa soma de

experiências de realidades uma memória de uso convencionada? Que consolida o processo

da experiência na coordenação de expectativas para que se encontre equilíbrio? A resposta

se fundamentará na dualidade trabalhada por Peirce entre verdade e realidade e será dada

no próximo tópico.

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133

Antes é preciso trazer o tema para uma aplicação no que respeita ao fenômeno

jurídico. A esse respeito, diga-se que a realidade jurídica é, em si, já uma verdade, eis que a

realidade jurídica é um tipo de realidade semeiótica, ou seja, um tipo de realidade de

gravação sobre uma summa realidade que é a realidade gravada.

“Gravação” não quer dizer independência, mas ao contrário, que o que há é uma

simbiose. O elemento simbiótico é que prevalece no fenômeno jurídico na perspectiva

semeiótica. O dualismo entre summa realidade e realidade semeiótica é dogmático com fins

pedagógicos, como já se disse.

Qualquer realidade semeiótica, por ser gravadora é, em verdade simbiótica, eis que,

pelo que aqui se defende, não há independência absoluta entre o signo e o objeto. O mesmo

se aplica ao direito, de modo que a realidade jurídica, tipo de realidade semeiótica que é,

tampouco tem independência absoluta em relação à realidade gravada que é a summa

realidade. Ao contrário, pelo que aqui se interpreta, o que há é uma simbiose – um direito

que simbioticamente grava a realidade e, ao gravá-la se entrelaça a ela.

Pelo que aqui se entende, quando Peirce prega a realidade como modo de ser

independente de uma mente ou grupo de mentes, o que se tem é uma consideração ontológica

imediatista. É dizer, de maneira imediata, a realidade é independente ontologicamente

considerada. Porém, pela perspectiva do signo, não há independência, eis que a realidade

mesma, no signo como representação, está lá gravada, pois o que haveria, numa associação

a Merleau-Ponty, é um pronlongamento de um (signo) a outro (realidade externa). Ora, se

está gravada, é porque, na perspectiva do signo, não há independência absoluta, mas sim

simbiose.

Isso resta claro em Peirce, por exemplo, no CP 6.368, no qual se pode verificar que

considera também a realidade da terceiridade e não só da segundidade. Isso se deve à

circunstância, pelo que aqui se interpreta, de que Peirce considera o pensamento também

como algo real.

Quando se traz que a realidade jurídica é semeiótica, ou melhor, trata-se de uma

realidade jurídico-semeiótica, isso se faz no domínio da consideração da convenção pelos

membros da uma comunidade de fala jurídica.

A memória de uso jurídica que permite comunicação jurídica é convencionada pelos

falantes. A regularidade de comportamento que os falantes se sujeitam é fruto da força

prescritiva, impositiva, cogente e realizativa do direito, mas nada mais é que um efeito da

submissão à convenção jurídica que se estabelece.

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134

Não há submissão somente porque o direito é prescritivo, impositivo, cogente e

realizativo, há sujeição ao jurídico, também, porque há uma expectativa de sujeição dos

demais falantes. O efeito da prescrição, imposição, cogência e realização é um efeito de

coordenação de expectativas individuais e não tanto um efeito de força como se costuma

esperar.

Quando a cooperação é bem-sucedida, há um equilíbrio na regularidade de

comportamentos, há, assim, uma convenção jurídica. No direito, há valores importantes para

permitir a convenção, os quais serão tratados nos próximos tópicos.

Antes, diga-se que essa convenção que permite a comunicação efetiva do fenômeno

jurídico, é uma convenção do “real”, da summa realidade. Isso quer dizer que a convenção

não está alheia à summa realidade e, pois, que a realidade jurídico-semeiótica tampouco está.

Desse modo, o direito, como já posto, é objetivo-simbiótico. Essa é a medida da semeiótica

no direito, é dizer, não separar o reino do direito do reino do real, eis que separação não há,

mas sim uma gravação existente na perspectiva do signo jurídico – da regra de direito.

Isso encontra apoio na crítica de Ross, já mencionada, a Kelsen, no sentido de que

não há separação entre mundo do ser e do dever ser, o que também pode se estender ao

pensamento nominalista em geral, bem como ao realismo ante rem platônico do Fédon e às

intuições puras de Kant.

Essa separação em reinos distintos como na lógica defendida pelos stoicos que ainda

impera em muitos segmentos do pensamento ocidental é equívoca quando levada,

igualmente, ao fenômeno jurídico, eis que neste tampouco, com base no realismo jurídico,

se pode falar em uma divisão, existindo, no entanto, um entrelaçamento entre o jurídico e a

summa realidade tão necessário, que quando não presente torna o direito imprestável.

Ressalte-se, no entanto, que o elemento que permite gravar essa ligação com a

summa realidade no signo jurídico é a convenção, a qual se estabelece por uma operação

lógica (no sentido peirceano) que se chama verdade jurídica, conforme se detalhará no

próximo tópico.

2.2 Verdade Jurídica

O problema da mediação do domínio da summa realidade ao domínio da realidade

semeiótica é resolvido por Peirce por meio de uma dualidade: realidade e verdade. É preciso

entender agora o que Peirce entende por verdade.

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Sobre verdade, Peirce (CP 5.565) traz o seguinte:

Verdade é aquela concordância de uma declaração abstrata com o limite

ideal em direção ao qual uma interminável investigação tenderia a trazer

crença científica, a qual a concordância da declaração abstrata tem a

faculdade de possuir em virtude da confissão de sua imprecisão e

unilateralidade, sendo que essa confissão é um ingrediente essencial da

verdade.

As palavras de Peirce são de uma genialidade ímpar. Ao diferenciar verdade de

realidade, permite-se trabalhar no domínio da dualidade, o que dá sustentáculo à dualidade

mesma que aqui se utiliza para falar de uma summa realidade e uma realidade semeiótica.

Lembre-se, como já se disse, que tais dualidades são ingredientes dogmáticos com

índole pedagógica para se explicar o fenômeno, eis que nada de estáticas têm realmente. Ao

se dualizar, acaba-se por perder todo o dinamismo das múltiplas dimensões que o fenômeno

tem. Porém, não haveria ciência possível sem que se estabilizassem as dinâmicas ímpares

do que se tem por objeto. Como já disse Wittegenstein anteriormente, “a descrição zomba

de nós”. Então, que se entenda esse dualismo nessa porção científica, sem muita seriedade

ao se observar a summa realidade.

Nesse contexto, tem-se que o elemento de mediação que consolida o processo de

experiência na coordenação de expectativas com vistas a trazer equilíbrio a uma situação

reiterada chama-se verdade, sendo essa a última peça do quebra-cabeça da posição realista.

Nesse piso, verdade é uma conquista dos falantes de uma comunidade de fala muito

próxima do que Lewis chamou de convenção. Nesse sentido, diga-se que a interpretação que

aqui se faz das palavras de Peirce, vai no sentido de que, para ele, verdade é uma operação

lógica, mas da lógica peirceana. Para compreender suas palavras, é preciso separar os

elementos já mencionados no CP 5.565 para que sejam estudados isoladamente.

Desse modo, tem-se que: a) declaração abstrata se entende aqui por aquela que

decorre de um processo de observação abstrata (trata-se de uma gravação no meio escrito

da língua); b) limite ideal se entende aqui como a gravação possível de uma realidade. É a

própria realidade que se pode gravar; c) investigação se entende aqui como perquirição

científica na experiência sensível; d) crença científica se entende aqui como a memória de

uso decorrente de uma convenção estabelecida em uma comunidade de fala sobre uma

realidade, afastando-se do científico aquilo que é decorrente de ponderações intuitivas ou

relativas a uma omnisciência divina; e) concordância se entende aqui como a decorrência

mesma de se ter permitido alcançar crença científica pelo processo de investigação científica.

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A verdade peirceana é, pois, decorrente de uma operação que permite concordância

entre uma declaração decorrente de um processo de observação abstrata e uma gravação

possível de uma realidade. Esse limite ideal (gravável) é a própria realidade possível, mas

que, por ser inesgotável, somente pode ser gravada e não descrita na sua indescritível

completude. É essa gravação que é inteligível.

Uma investigação científica, debaixo da postura realista, afasta operações intuitivas

e de omnisciência divina. Essa investigação, como esclarece Peirce, é sempre um continuum

de investigação e, por ser um continuum, resulta que a crença científica é sempre atualizável

e, pois, falível em vista de uma nova investigação que se possa levar a cabo, mas apoiada

em uma experiência sensível possível.

No continuum se preserva um pouco a dinamicidade da summa realidade, eis que a

verdade no dualismo é somente um veículo integrador a serviço do intelecto, eis que a

separação entre o observador e a summa realidade não há na visão simbiótica que aqui se

adota. Estão, observador e summa realidade, estão inclusiva e exclusivamente conectados,

sendo somente para fins científicos que se justifica a divisão. Quando da investigação

científica, assim, o cientista não deixa de se estender ao objeto e vice-versa. A realidade é

multidimensional, gravando o cientista somente uma fatia dela, de modo que ao fazê-lo,

grava ele mesmo na fatia.

Porém, no domínio da ciência, ao se trazer que a verdade é uma operação de

concordância em relação a um limite ideal, tal implica admitir que há um limite ideal para

concordar, o que, por si só, já faz concluir por uma operação simbiótica de inclusão e

exclusão mútua.

Ademais, diga-se que Peirce resolve com maestria, na sua concepção de verdade, o

problema do signo na expressão escrita de uma língua como único acesso possível ao real,

do que poderia se concluir que não haveria realidade fora da linguagem (postura

nominalista).

Isso se deve à circunstância de que Peirce aproxima o que se chamou aqui memória

de uso sobre uma realidade ao que ele chama de crença científica, que seria o mesmo que a

verdade da concordância.

Aproximando Peirce aos dizeres de Lewis sobre convenção, o que se tem é que, essa

concordância de uma declaração que se saca como produto de uma investigação pelo

processo de observação abstrata com um limite ideal, é muito próxima de uma sujeição das

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mentes dos falantes a uma regularidade de comportamento em situações recorrentes, eis que

a concordância também é um processo de sujeição mental.

Sujeitar-se a uma regularidade de comportamento é muito próximo a concordar

uma declaração abstrata (gravação) com um limite ideal possível sobre uma realidade,

eis que nos dois casos o que se alcança é um ajuste entre membros de uma comunidade de

fala para fins da comunicação entre eles.

Essa verdade peirceana, tal qual a convenção de Lewis, se projeta sobre a summa

realidade com ares de conexão. Não há independência na perspectiva do signo. A

independência seria plausível se fosse possível uma perspectiva desde e só desde o objeto,

mas ao se considerar um panorama simbiótico, o que há é uma ligação.

Nesse contexto, em relação à definição do objeto, o que se tem é que, quando se logra

definir um conceito sobre uma realidade (do objeto), disso segue que se logrou alcançar uma

verdade, a qual, reforce-se, é sempre atualizável dentro da comunidade de fala, diante do

falibilismo do conceito que se define. Essa verdade, se vista no panorama de um mecanismo,

é como uma camera de filmagem que grava a dinamicidade da summa realidade. Nessa

gravação, na extensão do objeto que se grava está também o observador em um olhar que é

simbiótico.

É por isso que somente em uma perspectiva lógica (clássica) é que se pode dizer,

como diz Ferraz Jr., que uma definição é sempre nominal. É nominal logicamente, eis que

diz com a concordância de uma declaração resultante de um processo de observação abstrata

em relação a um limite ideal, o qual, pela inesgotabilidade da coisa real, é sempre uma

gravação possível que a mente pode abstrair.

Porém, se o panorama é a abdução de Peirce, que liga, no silogismo, o evento da

conclusão aos eventos verificáveis das premissas não por operador lógico-dedutivo, mas por

operador abdutivo (verificação na experiência sensível), a definição não é de todo nominal,

mas sim depende da “descrição” que a investigação na experiência sensível possibilita. Ora,

se depende da experiência sensível, é porque é simbiótica também, eis que o observador está

também na figura no olho que a observação permite gravar.

Aqui jaz a diferença fundamental entre o realismo que aqui se adota e o nominalismo.

Para o que aqui se defende, tanto summa realidade como realidade semeiótica são

“realidades”, incluindo-se na realidade semeiótica também o pensamento como elemento

“real”, mas que, por ser pensamento “de algo” justifica aí a “existência” desse “algo” e, à

medida que fosse possível tal perspectiva somente a partir do objeto, autoriza a dizer que

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esse “algo” “existe” fora do pensamento. Nominalistas trabalham somente com verdades

(lógicas) no pensamento e realistas aceitam a possibilidade da perspectiva do objeto.

Sobre a posição nominalista, Forster (2011, p. 4) é claro, ao pontuar que, não se

admite debaixo dessa posição, existirem coisas na natureza fora do pensamento:

Nominalistas sustentam que a realidade compreende particulares

[individuals]. Eles negam haver leis operativas no mundo e que existam

tipos de coisas na natureza além do pensamento. Na sua visão, uma

teoria completa do mundo poderia ser dada por meio da enumeração dos

particulares e dos seus traços sem o uso das leis ou conceitos gerais, mesmo

se, como eles permitem, o conhecimento exaustivo do mundo na sua

particularidade esteja além da capacidade de mentes finitas. (Destacou-se).

O problema da posição nominalista, para o que se compreende neste trabalho, parece

repousar na circunstância de que, se o pensamento é a única coisa que “existe”, que dizer do

referente de signos como objeto real?

O ponto aqui de discórdia parece jazer na perspectiva do objeto “em si” como já

mencionado. Se a abstração é tamanha que não existe nada além do pensamento, isso quer

implicar que a experiência sensível é, em verdade, uma experiência de pensamentos. Se é

uma experiência de pensamentos, que dizer das sensações?

Mesmo Kant fala que o efeito que a matéria causa na sensibilidade do sujeito

cognoscente é chamado de sensação, sendo que por sensibilidade deve-se entender a

capacidade representativa do sujeito, o que, em último grau, quer significar que a matéria

tem um efeito no sujeito (sensação) e é desta que haverá a intuição empírica, dela o

pensamento e o conceito.

Bem, nesse circuito não parece haver lugar para uma posição nominalista, eis que a

sensação que é o efeito que se causa na capacidade representativa da mente é de “algo” que

alcança os sentidos e esse “algo” não pode ser pensamento.

Se o mundo é somente algo criado na mente como um conceito, esse conceito é

conceito de quê? De outro conceito, poder-se-ia responder, diante do que existiria um sem

fim de conceitos que nunca levariam, efetivamente, a uma experiência sensível. Algo como

a norma hipotético fundamental de Kelsen.

Nesse piso, então, a experiência que se tem seria somente uma experiência de

conceitos? Como se pode experimentar um conceito, pede-se aqui aos leitores que tentem?

Então, ao se colocar na boca um doce, esse doce é um conceito de um conceito de um doce?

Qual é, assim, o conceito primeiro desse doce?

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Acerca do tema, o que Peirce (CP 5.384) parece ressaltar é que a “concepção de

verdade como algo comunitário”, ou algo convencional, somente se desenvolve

suficientemente quando, por meio da experiência de investigação científica acerca de coisas

que afetam os sentidos por meio de leis regulares, uma mente científica raciocina sobre como

as coisas realmente e verdadeiramente são, alcançando uma conclusão verdadeira, de modo

que a nova concepção envolvida nesse processo é uma concepção de realidade.

Isso implica que os conceitos são resultado de processos de experiência, os quais

permitem raciocinar sobre a verdade das coisas. As verdades últimas, que estão sempre em

suspenso, por que o processo é sempre falível, é que são verdade de uma realidade. Portanto,

realidade, ainda que independente na perspectiva do objeto, é, na perspectiva da terceiridade

(peirceana), um objeto de uma verdade alcançada após um processo de investigação

científica suficiente. Essa verdade é uma realidade semeiótica e seu objeto uma summa

realidade. Assim, essa visão, ao mesmo tempo, confirma que a verdade, que é a realidade

semeiótica, está ligada semeioticamente ao objeto como summa realidade.

Nesse contexto, quer-se, igualmente, trazer o ponto de vista de Putman (2008, p.

145), o qual esclarece que os sujeitos da linguagem estão com seus cérebros em uma vasilha

e que são enganados por um gênio maligno no que toca à “referencialidade” com os objetos

do mundo. Porém, em relação à verdade, Putman (2008, p. 145) pondera com acuidade:

A habilidade de se referir a coisas não é garantida pela própria natureza da

mente [...]; a referência às coisas requer interação, impregnada de

informação, com as coisas, e isso é suficiente para excluir a

possibilidade de que a verdade seja em todos os casos radicalmente

independente do que podemos verificar. A verdade não pode ser tão

radicalmente não-epistêmica. (Destacou-se).

Portanto, a independência da summa realidade é independência na perspectiva do

objeto, sendo que na perspectiva do signo, ou seja, no panorama semeiótico, há uma ligação

com o objeto que nos sentidos causa efeito, ligação esta que se confirma na verdade que é

alcançada com uma suficiente investigação científica, cujo objeto é a própria realidade

investigada.

Trazendo o tema para uma aplicação jurídica, o que se tem é que uma regra abstrata

é, em verdade, uma gravação abstrata jurídica que concorda com um limite ideal

(juridicamente considerado) para formar uma verdade (jurídica).

Aqui uma pausa para se chamar a atenção para a declaração abstrata do direito (aqui

entendida como gravação abstrata do direito). Ela também pode ser vista sob a perspectiva

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de uma proposição, proposição jurídica (ciência do direito). Ao se trazer o tema para uma

aplicação jurídica, o que se tem é que a verdade jurídica é um elemento de mediação

permitido por meio de uma investigação igualmente jurídica.

No direito, esse elemento de mediação é uma espécie de mecanismo de

gravação/prolongamento/simbiose/metamorfose de uma linguagem ordinária (linguagem

dos signos ordinários) sobre uma realidade a uma linguagem jurídica (linguagem dos signos

jurídicos). O trânsito não é imediato, motivo pelo qual se fala em mediação, mediação a

partir de signos ordinários (da linguagem social). Os signos jurídicos expressos no meio de

expressão de uma língua, são, para fins científicos, de gravação em relação aos signos

cotidianos (da linguagem cotidiana, que é a linguagem social), os quais se verificam como

signos gravados.

A concordância da gravação no signo jurídico com o limite ideal mediatamente

(elemento de mediação) considerado para fins jurídicos é a verdade do direito. É também

convencionada na medida em que a concordância se permite pela crença que se alcança pela

investigação jurídica que se desempenha por intermédio de mentes também jurídicas.

A crença que se estabelece no direito pela interpretação das regras jurídicas é a

convenção jurídica – é o significado que se extrai e que se ajusta a respeito por meio da

experiência jurídica de aplicação e regularidade de aplicação das regras de direito. Essa

crença que se forma no direito leva em consideração valores específicos e importantes para

o fenômeno jurídico, como o valor justiça, por exemplo, valores estes que não são

necessariamente os mesmos que orientam as convenções não jurídicas. Isso será abordado

mais adiante com pormenores.

Frise-se que verdade aqui não é uma verdade especificamente lógica (clássica), mas

sim uma verdade na concepção peirceana – alcançada por meio do método abdutivo, o qual

encontra na experiência suficiente que a investigação científica permite a verdade das

premissas acerca de eventos do mundo num silogismo abdutivo.

A verdade alcançada pode ser diferençada ao se falar de direito e ciência do direito.

A crença que se alcança no direito é a norma jurídica propriamente dita no panorama de um

interpretante (terceiridade) de um signo jurídico com funções prescritiva, impositiva,

cogente e realizativa, cujo objeto são eventos que ocorrem na summa realidade. Essa norma

jurídica nada mais é que um signo jurídico na perspectiva do meio psíquico-semeiótico do

intérprete e aplicador do direito. A verdade que se chega na ciência do direito é uma

proposição científico-descritiva (terceiridade) a partir do signo científico com função

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descritiva, cujo objeto é o signo jurídico propriamente dito, mas está também, como

proposição, no meio psíquico-semeiótico do cientista como intérprete não autêntico do

direito.

Isso será melhor explicado no próximo tópico.

2.3 Signo, Proposição e Norma

É difícil falar de proposição sem se falar um pouco de lógica (clássica). Ainda que

não seja o tema duro do presente trabalho, uma introdução à proposição dentro da lógica será

necessária, sob pena de não se permitir uma compreensão adequada do subtema que se cuida

presentemente. Que é proposição?

Copi (1981, p. 22) dá uma resposta simples e que parece ser suficiente:

Proposições são verdadeiras ou falsas e disso diferem das perguntas,

ordens e exclamações. Só as proposições podem ser afirmadas ou

negadas; uma pergunta pode ser respondida, uma ordem dada, e uma

exclamação proferida, mas nenhuma delas pode ser afirmada ou negada,

nem é possível julgá-las como verdadeiras ou falsas.

[...]

Costuma-se usar a palavra “proposição” para designar o significado

de uma sentença ou oração declarativa.

A diferença entre orações e proposições é evidenciada ao observar-se

que uma oração declarativa faz sempre parte de uma linguagem

determinada, a linguagem em que ela é enunciada, ao passo que as

proposições não são peculiares a nenhuma das linguagens em que

podem ser expressas.

[...]

Os termos “proposição” e “declaração” não são sinônimos, mas no

contexto da investigação lógica, são usados numa acepção quase idêntica.

(Destacou-se).

Guibourg; Ghigliani e Guarinoni (1984, p. 65) vão no mesmo sentido:

De duas palavras de classe que têm o mesmo significado dizemos que

nomeiam o mesmo conceito. Pois bem, de modo semelhante, duas orações

que descrevem o mesmo estado de coisas expressam a mesma proposição.

A proposição é, pois, o significado da oração uma vez abstraído das

palavras concretas com as que esse é indicado. (Destacou-se).

Bem, como se verifica, proposições não são a palavra escrita na linguagem, mas o

significado que essas palavras transmitem. Nesse passo, o que está no texto não é

propriamente a proposição, mas sim uma sequência de palavras.

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Para fins do presente trabalho, vai se usar gravação para designar o que tanto o que

está escrito no pedaço de papel, que é dito pelo falante ou gesticulado por ele, como aquilo

que surge na sua mente por conta do contato com a summa realidade. A diferença de

perspectiva está no meio de gravação. Este pode ser físico-semeiótico (palavra escrita,

falada, gesto etc.) e pode ser psíquico-semeiótico (imaginação, pensamento, proposição,

norma jurídica). O signo, segundo Peirce, pode ser vislumbrado diante desses dois

panoramas.

Diga-se que essa dualidade entre o que está escrito e o conceito está por toda parte

quando se tem por objeto os signos no meio de expressão escrito de uma língua. Falar-se-á

disso com muito mais profundidade mais adiante, mas para que o tema não reste vazio,

importa trazer que a diferença principal está na circunstância de que conceitos, concepções,

ideias, significados estão na mente dos falantes, mas para serem transmitidos, precisam de

um modo de expressão.

Esse modo de expressão não é somente a palavra escrita, mas também a palavra

falada, os gestos etc. Quando se fala em uma gravação no meio de expressão escrito da

língua, esta gravação é um signo escrito ou uma sequência deles, sendo que gravações

gravam algo da summa realidade.

Uma proposição (que é uma gravação científica) é semelhante ao significado

científico ou um signo como pensamento ou conceito que surge na mente, ou seja, uma

gravação no meio psíquico-semeiótico do cientista. Visualizar a gravação como algo escrito

é somente visualizá-la como expressa em um dos tantos possíveis meios de expressão

disponíveis.

Visto o que se entende por proposição, deve-se agora tratar de alguns dos tipos de

proposição existentes dentro da lógica. O tema pode parecer de momento um pouco

deslocado, haja vista que a intenção aqui é tratar do cotejo entre proposição e norma jurídica,

mas se roga por paciência, eis que, feita a introdução teórica necessária, tudo restará mais

claro logo à frente.

Os tipos de proposições que se quer tratar agora são daquelas subespécies de

proposição categórica chamadas universais e particulares. Para compreendê-las, é preciso

compreender o que se tem por classe na lógica.

Copi (1981, p. 140) traz que “uma classe é uma coleção de todos os objetos que têm

uma característica específica em comum. As classes podem ser relacionadas entre si de

várias maneiras”.

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Aqui jaz o papel das proposições, eis que são elas que afirmam ou negam as

diferentes relações entre as classes de objetos (COPI, 1981, p. 140). Dentro das formas

típicas afirmativas7 de proposições categóricas tem-se a universal.

Um exemplo ajuda a entendê-la: “Todos os políticos são mentirosos”. Há, no caso,

duas classes que se relacionam: a classe de todos os políticos e a classe de todos os

mentirosos. O que a proposição afirma, então? Ela afirma que os membros da classe “todos

os políticos” pertencem à classe “todos os mentirosos” (COPI, 1981, p. 140).

No exemplo, o que se verifica é que há um termo sujeito “políticos” e um termo

predicado “mentirosos”. O primeiro designa a classe “todos os políticos” e o segundo a

classe “todos os mentirosos” (COPI, 1981, p. 140). Essa é a proposição universal.

Disse-se que há uma outra espécie de proposição categórica afirmativa que é a das

proposições particulares. Qual a diferença entre elas? Um exemplo auxiliará a compreensão

novamente: “Alguns políticos são mentirosos”. O que se afirma nessa proposição?

Afirma-se que somente alguns membros da classe “todos os políticos” são também

membros da classe “todos os mentirosos”, ou seja, o que se declara é que nem todos os

políticos universalmente são mentirosos, mas sim alguns políticos em particular é que o são

(COPI, 1981, p. 141). Essa é a proposição particular.

Há também aquelas proposições (afirmativas) que são chamadas singulares e

aquelas que são gerais. Traga-se mais um exemplo para facilitar a compreensão: “Sócrates

é humano”. O que grava essa proposição?

Grava que um indivíduo singular tem uma propriedade específica. Grava-se que o

termo sujeito “Sócrates” tem uma propriedade que é o termo predicado “humano”. O termo

sujeito denota um indivíduo singular e o termo predicado designa a propriedade que se

atribui ao indivíduo (COPI, 1981, p. 282). Essa é a proposição singular.

Há, no entanto, também, proposições (afirmativas) que não são singulares. Outro

exemplo permitirá um entendimento mais apurado: “Tudo é mortal”. Essa é uma proposição

geral. O que se grava nessa proposição em contraposição à singular?

A diferença se faz clara pelo cotejo. Nas gerais (proposições) não há um termo

sujeito definido para atribuir o termo predicado. Não é João (termo sujeito) que é mortal

(termo predicado). “Tudo” é que é mortal (COPI, 1981, p. 282).

7 Há também as negativas, mas não se falará disso aqui.

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Finalmente, quer-se falar de mais um tipo de proposição, da proposição hipotética

ou condicional. A proposição hipotética é apresentada por meio de gravações compostas e

não simples. Um exemplo, mais uma vez, facilitará a compreensão do tema: “Se o primeiro

nativo é um político, então o primeiro nativo mente”. Que se declara aqui?

A gravação, nesse caso, é uma composição de gravações, o que na lógica se chama

de antecedente e consequente. A gravação “o primeiro nativo é um político” é o antecedente

da declaração “o primeiro nativo mente”, a qual é o consequente. Gravam-se, pois, duas

proposições: a do antecedente e a do consequente (COPI, 1981, p. 215).

Porém, que afirma uma proposição hipotética? Afirma uma implicação, ou seja, que

o antecedente implica o consequente. Não se trata aqui de uma gravação afirmativa no

sentido de que o antecedente é verdadeiro, mas sim, de que se for, o consequente também o

será (COPI, 1981, p. 235).

Compreendidos alguns dos elementos da lógica das proposições, veja-se agora como

trata Peirce (CP 5.569) do tema:

Uma proposição é um signo que separadamente indica um objeto.

Assim, um retrato com o nome do original embaixo é uma proposição.

Isso afirma que se alguém olhar para isso pode formar uma ideia razoável

de como o original parecia. Um signo é apenas um signo in actu em

virtude de receber uma interpretação, é dizer, em virtude de

determinar outro signo do mesmo objeto. Isso é verdadeiro em relação

a julgamentos mentais como também em relação a signos externos. Dizer

que uma proposição é verdadeira é dizer que sua interpretação é

verdadeira. [...]. (Destacou-se).

A proposta de Peirce se enquadra dentro da sua lógica que é a “ciência das

necessárias e gerais leis dos signos” (CP 2.93). Para Peirce, pelo que se interpreta nessa

transcrição, proposição é uma espécie de signo. Peirce, é importante clarificar, considera

signos sob a perspectiva mental e sob a perspectiva externa.

Pelo que se extrai do mencionado, é possível, em Peirce, equivaler proposição e

signo, eis que, ainda que não expresso em um meio de expressão de uma língua, o signo

“existirá” (pensamento como realidade). Nessa linha, tal compreensão se coaduna com a

ideia de proposição alheia às palavras escritas concretamente.

Se uma proposição encontra, de um modo ou de outro, uma expressão em um medius,

então é porque, de alguma forma, algo da proposição é carregado no medius.

Agora, um ponto que deve ser ressaltado em relação aos dizeres de Peirce vai no

sentido de que proposições, na sua teoria, são fruto de uma interpretação. Bem, parece claro

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que, se a proposição diz com significado, é porque proposição é resultado de um processo

mental.

Quando surgem conceitos na mente em relação a objetos, e proposições gravam

objetos, o que ocorre é que essas concepções da mente são decorrência do que se chamará

provisoriamente de “concordância”. Há, de alguma forma, uma concordância na mente entre

o que se indica e a concepção do que se indica, o que implica, uma proposição.

O ponto de inquietação acerca das proposições, o que também passa pela concepção

de realidade, diz respeito à possibilidade ou não de proposições poderem ser vazias de

gravação a objetos da summa realidade e de se saber se esses objetos podem ser objetos

fictícios ou devem ser objetos (referentes) que, de algum modo, passam pela experiência

sensível.

Ao analisar as proposições universais e hipotéticas, Peirce (1984, p. 174) procura

responder a pergunta “Uma representação pode significar qualquer coisa que é originalmente

na sua natureza própria não conhecível?”:

a proposição universal todos os ruminantes são biangulados fala de

um infinito de animais, e, não importa quantos ruminantes possam ter

sido examinados, a possibilidade deve necessariamente continuar no

sentido de que há outros, os quais não foram examinados. Assim, essa

universal [proposição] origina-se da própria natureza inesgotável, não

conhecível, e ainda isso certamente significa alguma coisa para que se

diga que todos os ruminantes são biangulados. No caso de uma

proposição hipotética, a mesma coisa é ainda mais manifesta; porque tal

proposição fala não meramente de um estado atual [actual] de coisas,

mas de todo possível estado de coisas, coisas essas que não são

conhecíveis na medida em que somente um estado das coisas pode

quando muito existir.

Por outro lado, já que o significado de um termo é a concepção que ele

transmite, e já que há razão abundante para acreditar que nossas

concepções derivam sua origem da experiência, no sentido que apenas

por abstração e combinações do que aprendemos dos julgamentos

relativos a fatos podemos obter uma concepção, não se pode considerar

que o significado de um termo deveria conter qualquer coisa

impossível na sua própria natureza (é dizer, independentemente da sua

não verificação na existência). (Destacou-se).

O que Peirce quer dizer? De forma geral que, tanto universais (proposições) como

hipotéticas (proposições), ainda que a própria natureza das coisas seja inesgotável, de um

modo ou de outro, significam alguma coisa.

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Os componentes de uma proposição são seus termos. Termos também têm

significados. É aí que as palavras de Peirce têm um resultado fulminante. Para ele, nossas

concepções são originadas na experiência. Essa experiência é, também, um aprendizado.

Aprendizado do quê? De julgamentos relativos a eventos8. São, assim, esses

julgamentos relativos a eventos que, de alguma forma, permitem as concepções que são

transmitidas pelos termos e que, por via de consequência, as proposições carregam.

Esses eventos, no entanto, segundo Peirce, não podem ser impossíveis na própria

natureza. Isso tem como resultado que proposições não podem ser proposições de algo

impossível na experiência sensível. O significado não pode ser impossível na natureza.

Portanto, de certa forma, proposições são empíricas.

Nesse ponto, outra pergunta é fecunda: se não se permite uma proposição baseada

em uma experiência impossível, havendo tal proposição por hipótese, como poderia ela ser

considerada? Peirce (1984, p. 174) responde isso do seguinte modo:

a proposição ‘Se eu tivesse de escrever com tinta vermelha, eu deveria

fazer uma marca vermelha’, é a dedução de uma proposição, ‘quando quer

que seja que uma pessoa escreva com tinta vermelha essa pessoa fará uma

marca vermelha’. Assim, a hipotética [proposição] é somente um

particular tipo de universal [proposição]. Agora um signo

essencialmente significa algum objeto; mas se uma proposição

universal não pode encontrar nenhuma aplicação, real ou imaginária,

quer seja um caso debaixo dela ou mesmo como uma generalização da

sua contraditória [proposição], ela não tem objeto e não é um signo.

[...]” (Destacou-se).

O que se extrai das palavras de Peirce é que, se proposições são signos é porque

indicam alguma coisa. Dizer que um signo indica alguma coisa é parecido com dizer que

uma proposição deve ser aplicável. Aplicar uma proposição é equiparável a concordar a

gravação que a introduz com um limite ideal.

Se não há concordância, não há aplicação e, dessa forma, não se está diante de um

signo. Isso se deve à circunstância de que signos têm referentes. Peirce fala em aplicação

real ou imaginária da proposição, pois que considera que objetos podem ser reais (referentes

reais) ou fictícios (referentes fictícios). Isso será melhor detalhado mais adiante neste

trabalho.

8 Peirce fala em fatos, mas aqui se adapta para falar em eventos para condizer com a nomenclatura que aqui se

defende.

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Por agora, basta dizer que proposições sem referentes não são signos e, se não são,

não podem estar articuladas no meio da expressão de uma língua. Ainda que fictícios, para

que se conheça objetos, é preciso que seus conceitos estejam articulados no meio de

expressão de uma língua, pois não se pode conhecer, no sentido de comunicação, objetos

que estão somente na mente dos falantes, ainda que se possa concebê-los como “reais”.

É difícil conceber uma aplicação meramente imaginária de uma proposição. Ela pode

ser meramente imaginária em termos de objeto na perspectiva da sua interpretação.

Imaginário no sentido de um conceito (que está na mente) que é objeto de um interpretante.

É o resultado da interpretação que se baseia em um conceito (na mente), mas de alguma

forma esse conceito é um conceito de alguma coisa que a experiência sensível pode

experimentar, como no exemplo da “montanha dourada” de Hume, o qual já foi explorado.

A premissa, nesse momento, é de que proposições no sentido de significados são

originadas de julgamentos relativos a eventos e esses eventos são de alguma forma

empiricamente possíveis. É por isso que uma proposição deve ser também de certa sorte

empírica.

Outro ponto que merece ser ressaltado acerca das palavras de Peirce é que

particulares (proposições) são meros tipos de universais (proposições). Isso tem um efeito

também muito relevante.

Lembram-se do que disse Forster acerca dos nominalistas?: “Nominalistas sustentam

que a realidade compreende particulares [individuals] [...] Na sua visão, uma teoria

completa do mundo poderia ser dada por meio da enumeração dos particulares e dos seus

traços sem o uso das leis ou conceitos gerais.”

Rebate-se isso facilmente na percepção peirceana, bastando dizer que, se

particulares são tipos de universais é porque de alguma maneira se submetem a tais

universais (classe) e, se assim o é, é porque leis ou conceitos gerais devem ser “usados”, o

que afastaria a plausibilidade da visão nominalista.

Afinal, que são essas coisas particulares e essas coisas universais que as proposições

apontam? Strawson (1950, p. 15) parece trazer esclarecimentos importantes sobre o tema:

Pensamos sobre o mundo como contendo coisas particulares, as quais são

independentes de nós mesmos; pensamos sobre a história do mundo como

feita de episódios particulares, em relação aos quais podemos ou não ter

feito parte; e pensamos acerca dessas coisas particulares e eventos como

incluídos nos tópicos do nosso discurso comum, como coisas, as quais

podemos falar uns com os outros. Essas são observações do jeito como

pensamos o mundo, sobre nosso esquema conceitual. Uma maneira mais

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reconhecidamente filosófica, embora não mais clara, de expressar

essas observações é dizer que nossa ontologia compreende particulares

objetivos.

[...]. Por exemplo, no meu, como em muitos usos filosóficos,

ocorrências históricas, objetos materiais, pessoas e suas sombras são

todos particulares; enquanto que qualidades e propriedades, números

e espécies não são. (Destacou-se).

Nesse contexto, Strawson parece querer dizer que a diferença entre particulares e

universais está justamente na possibilidade de serem termos sujeitos em uma proposição

e/ou termos predicados numa proposição, ou ainda as duas coisas, termos sujeitos e termos

predicados. Isso resta ainda mais claro quando diz (STRAWSON, 1959, p. 137-138):

Já que qualquer coisa que seja pode ser de maneira identificadora referida,

ser um objeto de possível referência identificadora não distingui nenhuma

classe ou tipo de itens ou entidades uns dos outros. Sem dúvida há coisas

que são realmente referidas, e algumas que não são [...]. No entanto, ‘ser

um objeto de referência’ não marca uma distinção de interesse filosófico.

Não distingui um tipo de objeto do outro; mas isso distingui uma

maneira de aparecer no discurso de outra. Isso distingui de aparecer

como sujeito de aparecer como predicado. A doutrina tradicional que

temos que investigar é a doutrina que particulares podem aparecer no

discurso como sujeitos apenas, nunca como predicados; enquanto que

universais, ou não-particulares geralmente, aparecem como sujeitos

ou predicados. As doutrinas poderiam ser mais completamente expressas

da seguinte maneira: particulares, como John, e universais como

casamento, e o que podemos chamar universais-cum-particulares, como

estando casado com John, podem todos ser referidos, pelo uso de

expressões de referência; mas só universais, e universais-cum-particulares,

nunca particulares sozinhos podem ser predicados, por meio de expressões

predicativas. (Destacou-se).

Nessa visão, pois, uma diferença entre o termo “John” e o termo “casamento”, sendo

“John” um particular e “casamento” um universal, é justamente que a referência a

particulares é feita por expressões de referência em proposições na posição de sujeitos,

sendo que, para fins de universais, a referência pode ser feita com expressões de referência

em proposições na posição de predicados, ou seja, universais podem ser predicados e

particulares não.

Porém, há mais nessa diferença do que a simples distinção entre termo sujeito e termo

predicado na proposição. Como se disse anteriormente, um ingrediente relevantíssimo na

compreensão do mundo por meio de proposições é que indiquem algo que a experiência

sensível possa experimentar.

Disso decorre que a proposição é também empírica. Aqui jaz outra diferença

marcante entre particulares e universais: identificar um particular é referir-se a ele por meio

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de uma proposição que possa ser empiricamente verdadeira. Isso resta claro quando

Strawson (1959, p. 183) traz que:

Resumimos tudo isso por dizer que para que uma referência

identificadora a um particular seja feita, deve haver alguma

proposição empiricamente verdadeira conhecida, em algum não muito

exato sentido da palavra, ao falante, para o efeito de que há somente um

particular, o qual responde a uma certa descrição. Mutatis mutandis, uma

condição similar deve ser satisfeita para o ouvinte, para que seja o caso

de haver algum particular, o qual o ouvinte toma por estar sendo

referido pelo falante. (A terceira condição que eu listo requer, não

exatamente que as descrições do falante e do ouvinte sejam idênticas, mas

que cada descrição seja aplicável – unicamente – a um e mesmo

particular). (Destacou-se).

Veja-se como há uma dialética clara entre Strawson e Peirce aqui. Falante e ouvinte

identificam um particular quando conhecem uma proposição empiricamente verdadeira que

aponta a esse particular.

Não é tanto um problema de descrição do particular, mas mais um problema de

aplicação da proposição. A proposição deve encontrar alguma aplicação, que também seja

real, para que seja vista como signo.

Fundamentalmente, o que se verifica, ainda, é que a diferença entre particulares e

universais tem algo que ver com o imediatismo da referência a eventos do mundo. Isso quer

dizer que as gravações que gravam por meio de seus termos particulares gravam de uma

maneira muito definida eventos do mundo e aquelas que gravam por meio de seus termos

universais gravam de uma maneira indefinida tais eventos do mundo.

Conforme aponta Scotus, como já demonstrado, no indivíduo a densidade da unidade

numérica é máxima. Quanto mais se dissipa do individual (particular) mais rarefeita é a

unidade, mais universal.

A pedra de toque aqui está relacionada com a verdade da proposição que grava um

particular e um universal. No primeiro caso, trata-se de uma verdade relativa a um evento

definido do mundo e no segundo caso a um evento indefinido do mundo. Peirce, como já se

viu, fala em fatos últimos (segundidade) e fatos de indeterminação (primeiridade).

Strawson (1959, p. 185) parece clarificar isso quando diz:

O tipo de verdade da proposição, a qual é universalmente requerida

para introdução de um termo particular é um tipo de proposição que

declara um muito definido fato acerca do mundo, alguma coisa que

poderia, como se fosse ser pertencente à história. Porém, o tipo de verdade

da proposição que pode em geral, ainda que não universalmente, ser

requerida para introdução de um universal ser possível é de um tipo

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muito indefinido de proposição, o fato que declara é um muito

indefinido tipo de fato. Que alguma coisa, em algum lugar, em algum

tempo, é ou era vermelha, ou redondo, ou sábio, não é um fato que

poderia pertencer à história. (Destacou-se).

Veja-se que a questão da verdade é retomada. É ela que permitirá diferenciar

particulares e universais. Particulares requerem uma verdade acerca de um evento que deve

ser empiricamente experimentado para que seja identificado o particular. Diferentemente,

universais, para serem identificados, não requerem uma verdade acerca de eventos

empiricamente experimentáveis.

A tênue diferença é que no caso de universais esses eventos são semeióticos. Assim,

o significado que os termos da proposição gravam é um significado, na universal, que

pressupõe um conhecimento de uma linguagem (no sentido de signo) e não propriamente de

um evento empiricamente experimentado.

Veja-se como Strawson (1959, p. 185-186) trata o tema:

O contraste vital pode ser então sumarizado como a seguir. A introdução

identificadora tanto de um particular como de um universal no discurso

implica saber qual particular ou qual universal é significado, ou qual se

pretende introduzir, pela expressão introdutora. Saber qual particular é

significado implica saber, ou algumas vezes – no caso do ouvinte –

aprender, a partir da expressão introdutora usada, algum fato

empírico que é suficiente para identificar aquele particular,

diferentemente do fato que está o particular presentemente

introduzindo. Porém, saber qual universal é significado não da mesma

maneira implica saber qualquer fato empírico: isso meramente

implica conhecer a linguagem. (Destacou-se).

As palavras de Strawson tem um efeito impactante para o que aqui se estuda. O

significado que se extrai da comunicação entre falante e ouvinte, no que respeita a identificar

um universal, não pressupõe necessariamente o conhecimento de eventos empiricamente

considerados, bastando que se conhece sua linguagem.

Diferentemente, a identificação de um particular, para que a comunicação entre

falante e ouvinte seja possível, depende do conhecimento acerca de um evento que se possa

empiricamente experimentar e que seja suficiente para identificar o particular na relação de

comunicação.

A digressão foi longa, mas absolutamente necessária. Aplique-se agora o que se

aprendeu ao fenômeno jurídico. Um campo especial da lógica que pode ser usado, para fins

de análise do fenômeno jurídico, é a lógica deôntica.

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Royakkers (1998, p. 1) traz que: “A lógica deôntica é um ramo da lógica filosófica

envolvendo um raciocínio sobre normas: obrigações, proibições e permissões. Tem raiz na

filosofia do direito”.

Acerca do tema, Bulygin e Alchourron (1991, p. 169-173) trazem o seguinte:

por exemplo, “é obrigatório cumprir as promessas” ou “proibido fumar”

podem ser usadas para ditar uma prescrição (uma ordem ou uma proibição)

e também para enunciar que há uma determinada proibição ou que algo é

obrigatório ou está permitido de acordo a uma norma ou conjunto de

normas dados. No primeiro caso, as orações deônticas expressam uma

norma; no segundo, uma proposição (descritiva) acerca das normas

que chamarei proposição normativa.

[...]

Em realidade, a diferença entre orações prescritivas e descritivas não

parece estar no seu sentido, senão no ato ilocutório realizado pelo

sujeito que usa a oração: a mesma proposição, por exemplo, a que é

expressa pela oração “juan tira o chapéu” pode ser usada em diferentes

ocasiões para fazer uma asserção (“Juan tira o chapéu”), para formular uma

pergunta (“Juan tira o chapeú?”) ou para ditar uma prescrição (“Juan tira o

chapéu!”). O significado ou sentido da oração é o mesmo em todos esses

exemplos, mas o que se faz ao emitir a oração é diferente. Por conseguinte,

somente no nível pragmático do uso da linguagem podemos distinguir

entre normas (prescrições), asserções (declaraçãos), perguntas

(interrogações) [...]. Não há diferença no nível semântico. Portanto, as

normas são o resultado de um certo uso, a saber, o uso prescritivo da

linguagem. (Destacou-se)

Os autores diferenciam normas de proposições normativas, no sentido de que as

primeiras têm força prescritiva explícita e as segundas uma força descritiva explícita. As

primeiras seriam as normas jurídicas que se sacam do direito positivo e as segundas

descrições sacadas pela ciência jurídica.

A força prescritiva das normas jurídicas seria de direcionamento direto e imperativo

aos seus destinatários e o caráter descritivo das proposições jurídicas seria de direcionamento

indireto no sentido de um devir, do modo como deveria ser a interpretação dos signos9

jurídicos.

A diferença entre caráter prescritivo e descritivo, segundo os autores mencionados,

estaria no uso da linguagem prescritiva ou descritiva. Os autores Bulygin e Alchourron

(1991, p. 174), mais adiante, porém, trazem que “recursos linguísticos ou não que se usam

para indicar o que se faz de uma oração determinada (ponto, signos de exclamação e

interrogação, certa modulação da voz, gestos característicos) não formam parte do

9 Usa-se “signo” para diferençar de “norma”. O primeiro significando o que está no texto e a segunda o que

está na mente (o significado), o qual também pode ser chamado de interpretante jurídico.

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significado das palavras usadas”, de modo que “normas são entidades abstratas,

independente de todo uso linguístico”.

Aqui quer parecer estar em erro a intepretação dos autores mencionados, haja vista

que um signo, e normas também são signos, é entidade triádico-relacional composta, também

de objeto e interpretante. O signo encontra meios de expressão, sendo que o signo escrito

encontra o meio de expressão escrito em uma língua. Esse meio de expressão que também

envolve sua morfossintaxe é parte sua, de modo que o signo não é independente do uso

linguístico, tal qual a norma como signo que também é.

Quando se convenciona uma norma jurídica (o significado que se extrai de um texto

legal) essa é convencionada com componentes que são obviamente linguísticos ou

semeióticos (como os signos da linguagem cotidiana), de modo que essa convenção não é

de todo abstrata, eis que a convenção jurídica que se estipula, por ser espécie de signo, deve

se direcionar, de alguma forma, à summa realidade, ainda que isso seja um ideal a ser

alcançado. “Montanha dourada” tem “montanha” e tem “dourada” e ambos os signos

apontam para algo da summa realidade, ainda que juntos possam ser uma ficção.

Isso não retira a aplicabilidade da diferenciação entre norma jurídica e proposição

jurídica. A norma jurídica, realmente, é de tipo especial, eis que tem uma função especial de

prescrever condutas, impor consequências para violação da prescrição, ser cogente em

relação a esses efeitos, bem como realizativa para fins de determinados deveres e obrigações.

As proposições jurídicas (da ciência do direito), no entanto, têm função descritiva de todas

essas funções normativas relacionadas ao fenômeno jurídico.

Essa diferenciação é clara também pelo que traz Kelsen (2003, p. 84; 89):

Porém, o dever-ser da proposição jurídica não tem, como o dever-ser

da norma jurídica, um sentido prescritivo, mas um sentido descritivo.

Esta ambivalência da palavra “dever” [...] é esquecida quando se

identificam proposições normativas [...] com imperativos.

[...]

Particularmente, a proposição jurídica não é um imperativo: é um juízo, a

afirmação sobre um objeto dado ao conhecimento. (Destacou-se).

Assim, a proposição jurídica tem função diferenciada, a de descrever como essas

funções prescritivas, impositivas, cogentes e realizativas do direito deveriam ser

interpretadas. Nesse trabalho, por exemplo, o que se faz é ciência jurídica, de modo que a

função da linguagem operativa aqui é de descrição do fenômeno jurídico.

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Porém, para descrever o fenômeno jurídico é preciso mais do que isso. É preciso

compreender a mecânica da norma jurídica. Acerca do tema, tragam-se, novamente, os

dizeres de Bulygin e Alchourron (1991, p. 175) agora no que toca às proposições normativas:

As proposições normativas que se expressam em geral mediante

orações elípticas que enunciam que um estado de coisas dado p tem

um status normativo (proibido, permitido ou obrigatório), conforme

uma ordem normativa não especificada. Isso significa que essa ordem

normativa contém uma norma que proíbe (permite ou ordena) p.

Porém, que significa dizer que uma norma forma parte de (ou pertence a)

um conjunto de normas? Como há diferentes classes de normas, há também

diferentes respostas a essa pergunta. Um caso especial, mas muito

interessante é o das normas jurídicas. As normas jurídicas têm existência

temporal: começam a existir em um certo momento e deixam de existir

num momento posterior. A existência temporal das normas pode ser

analisada em termos de pertinência a uma ordem jurídica dada. Uma ordem

jurídica é uma ordem dinâmica, é dizer, uma sequência temporal de

conjuntos cambiantes de normas. A cada momento temporal (no qual

alguma norma é introduzida na ordem ou eliminada dela) corresponde um

certo conjunto de normas. Uma norma pode ser membro de diferentes

conjuntos e, enquanto seja membro de algum conjunto, pertence a (ou

existe na) essa ordem.

[...]

A introdução de normas numa ordem jurídica e sua eliminação são

governadas por certos critérios que se atém à racionalidade dos atos

de promulgação e derrogação e que, num sentido amplo, podem ser

chamados lógicos. Por conseguinte, a lógica das proposições

normativas pode ser considerada como um cálculo de sistemas ou

ordens dinâmicas. (Destacou-se).

Assim, as proposições normativas que estão na ciência do direito são aquelas que se

utilizam da função descritiva da linguagem. Elas tratam, em um resumo cabível, de eventos

que implicam consequências normativas de acordo com signos jurídicos gravados em um

determinado sistema jurídico.

O direito é um sistema normativo que se utiliza da função prescritiva, impositiva,

cogente e realizativa da linguagem. Se é um sistema normativo, então permite proposições

normativas do tipo é proibido, permitido ou obrigatório com fundamento nos signos jurídicos

e nas normas jurídicas10 apreendidas do sistema de direito positivo.

São signos com funções diferentes, mas que como signos precisam de um meio para

se expressar e esse é o meio de expressão em uma articulação possível dentro de uma língua.

Isso parece ser uma verdade incontestável.

10 Normas jurídicas são equivalentes a interpretantes jurídicos para usar a nomenclatura de Peirce.

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Porém, meio de expressão isoladamente considerado é vácuo autônomo, é brutem

fulmem, do que decorre que do meio de expressão deve-se sacar uma norma jurídica, no

caso do direito, ou uma proposição normativa, no caso da ciência do direito.

Um ponto de grande controvérsia diz respeito justamente ao operador verdade, o qual

permite a convenção tanto no direito como na ciência. Poder-se-ia dizer que as normas

jurídicas não se submeteriam à mesma verdade das proposições lógicas da ciência do direito.

Não se discute aqui que se as proposições científicas se submetem à lógica do verdadeiro ou

falso, e proposições da ciência do direito são proposições científicas.

Nesse contexto, vale trazer o seguinte sobre as proposições científicas (COPI, 1981,

p. 383):

A situação é muito diferente no âmbito da ciência. Desde que toda

explicação científica é considerada uma hipótese, somente quando há

provas dela, é que se torna digna de aceitação. Como hipótese, a

questão de sua verdade ou falsidade mantém-se em suspenso, e há uma

contínua busca para achar cada vez mais provas que permitam decidir

essa questão. O termo “prova”, tal como é aqui usado, refere-se, em

última instância à experiência; a prova sensível é o tribunal de última

instância para verificação das proposições científicas. Ao sustentar que

a experiência dos sentidos é o teste de verdade para todos os seus

pronunciamentos, a ciência é empírica. Por consequência, é da essência da

proposição científica que é capaz de ser provado o teste pela observação.

Algumas proposições podem ser diretamente testadas. [...] Proposições

gerais [...] não são diretamente verificáveis dessa maneira. Contudo,

podem ser verificadas ou testadas indiretamente. (Destacou-se).

Veja-se que as coisas se coadunam. Proposições científicas se submetem à prova pela

experiência sensível. Esse é “o tribunal de última instância para verificação das proposições

científicas”.

Se proposições da ciência do direito também são científicas, então também se

submetem à prova pela experiência sensível e isso quer dizer que se sujeitam à lógica do

verdadeiro e falso. Isso tem muito a ver com a circunstância de que uma ciência deve ser

empírica e, é justamente por isso que Strawson fala em proposições empíricas.

Na ciência jurídica, pois, suas proposições também devem ser empíricas e isso quer

dizer que devem, de alguma forma, identificar-se com eventos do mundo, eventos estes que

podem ser provados, ao fim e ao cabo, empiricamente por meio de investigação científica.

Na ciência do direito, encontram-se diversas proposições (gravações) do tipo

hipotética, as quais gravam como deveria ser a interpretação acerca dos signos de direito,

tais quais: “se alguém matar alguém, então pena de reclusão...”.

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Como se asseverou com base em Copi anteriormente, essas (que são também tipos

de proposições científicas), estão logicamente submetidas a uma verdade. Se o antecedente

“matar alguém” é verdadeiro, então o consequente “pena de reclusão” também o é e vice-

versa.

Há na ciência do direito, igualmente, proposições universais do tipo “todos as

pessoas devem se submeter à lei”, o que decorre da norma que se saca do princípio da

legalidade, ou ainda, do tipo “todas as pessoas são iguais perante a lei”, o que decorre do

princípio da isonomia.

Existem também proposições de caráter singular, tais quais “João auferiu renda,

então deve pagar o imposto sobre a renda”, as quais podem ser decorrência de uma

proposição hipotética que seria algo como “se alguém auferir renda, então deve pagar o

imposto sobre a renda”, o que decorre da norma jurídica que se extrai da legislação do

imposto sobre a renda.

Se é possível dizer que a proposição científica é desse tipo, é possível dizer também

que a norma que se saca do direito positivo também é. Bem, se proposição é tal qual um

significado, de alguma forma, a norma que se saca do direito positivo permite esse

significado, pois é seu objeto de descrição.

Isso quer dizer que quando um cientista interpreta o signo posto no direito positivo,

descrevendo a norma jurídica que se extrai do tipo proibido, permitido e/ou obrigatória, o

conceito que lhe surge na mente é também uma espécie de significado.

Assim, se existe um significado jurídico que se saca do signo de direito positivo,

então de alguma forma ele também é equiparável à proposição que se saca na ciência do

direito. Ora, se ambos proposição e norma jurídica são espécies de signos, então, de alguma

forma, haveria uma equivalência entre o que a investigação do direito permite sacar como

verdade e o que a investigação científica (da ciência do direito) autoriza.

Assim, há no signo de direito um significado que se extrai, um significado jurídico,

e esse significado é um conceito que surge na mente. A diferença, como já se ressaltou, é a

função do signo jurídico e do signo científico.

O signo jurídico tem função prescritiva de uma conduta, impositiva de uma

consequência, cogente de sujeição aos signos postos no sistema e realizativa de direitos e

obrigações. Isso difere da função do signo científico, a qual é descritiva de um fenômeno.

Então, o significado jurídico que se grava do signo de direito posto é permitido,

proibido e/ou obrigatório, sendo que o significado que se grava na ciência do direito é a

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descrição de que o significado jurídico deveria ser daquela forma. No primeiro caso, aquele

que grava a norma jurídica é o aplicador e intérprete legal autorizado pelo direito para tal e,

no segundo caso, aquele que grava é o cientista do direito.

A diferença de função está na cogência – no efeito de sujeição a uma regularidade

imposta que exsurge no membro de uma comunidade de fala que se inclui em um estado

democrático de direito em comparação com o efeito que exsurge da leitura da ciência do

direito, o qual é informativo-descritivo.

Bem, se o signo jurídico é também um tipo de convenção (jurídica), é porque, de

alguma forma, aceitou-se essa regularidade para permitir a cogência ou sujeição ao signo

de direito posto. De novo, volta-se ao problema do uso, um problema de índole pragmática.

Assim, o uso que se estabeleceu para os membros de uma comunidade de fala que se sujeita

ao estado democrático de direito é de que a regularidade nas situações recorrentes é a de se

submeter ao proibido, permitido e/ou obrigado que se saca do signo de direito posto.

Como se convencionou essa regularidade, por conta também da função impositiva

dos signos jurídicos, impositiva de consequências jurídicas, o significado que surge na mente

é da sujeição ao signo jurídico.

Portanto, parece evidente que essa norma que se saca do direito posto não pode ser

de todo abstrata, eis que, na visão que aqui se defende, convenções o são em relação a usos

e usos são usos de membros de uma comunidade de fala. Ainda que no direito haja uma certa

“violência impositiva”, a qual auxilia no processo de sujeição, pois implica consequências

danosas aos sujeitos de direito, a sujeição à cogência do direito não é efeito da “violência

impositiva”, mas sim da coordenação comunitária que convencionou sujeição a essa

regularidade cogente. Esse é o uso, em outras palavras, que se deu aos signos de direito na

sociedade de direito.

Se há essa atenção ao uso, então resta claro que a norma jurídica que se grava do

direito positivo é também, de certa forma, empírica, tal qual o é a proposição científica. Isso

resta muito claro quando se vislumbra a questão das provas no processo judicial.

Se a norma jurídica singular é do tipo “João matou Maria, então deve ser a pena de

privação de liberdade”, é porque seu significado se sustenta por um embate com eventos,

que comprovem que João matou Maria.

O próprio signo hipotético do legislador do tipo “se alguém matar alguém, então

crime de homicídio” também não é de todo desvinculado de eventos, eis que para o legislador

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escolher essa hipótese para render efeitos de direito, o fez porque essas ocorrências, de

alguma forma, são relevantes para a comunidade de fala que o legislador representa.

Se são relevantes, é porque alguma convenção social nesse sentido se firmou e, foi

com base nessa convenção social que, de alguma forma, fundamentou-se o legislador para

editar o signo jurídico hipotético.

Assim, também o signo jurídico editado pelo legislador é de uma forma indireta

empírica, pois do que serviria estipular uma consequência jurídica para uma conduta que na

convenção social, ou melhor, na linguagem cotidiana (dos signos cotidianos), não implica

nenhuma obrigação, proibição ou permissão dos membros de uma comunidade de fala?

Haveria um problema de eficácia – um ruído na comunicação jurídica.

Um ponto que não restou esclarecido é o da submissão ou não do signo de direito

positivo à lógica do verdadeira ou falso. Já se disse que a proposição normativa da ciência

do direito, que é descritiva, pode se submeter a tal lógica, mas o que dizer da norma jurídica

que se saca do direito positivo?

Bem, quer parecer que o efeito para fins da linguagem do direito desde um ponto de

vista intranormativo é diferente de uma lógica do verdadeiro ou falso, eis que, para o direito,

signos jurídicos pertencem ou não ao sistema de direito positivo, ou seja, são válidos ou

inválidos. Essa é a posição tradicional baseada em Kelsen.

Porém, o problema normativo, como se disse, também é um problema de sujeição,

ou seja, sujeição à regularidade de uma situação recorrente, o que fundamenta a convenção

jurídica. Se assim o é, é porque, de uma maneira ou de outra, não se preocupa somente com

validade e/ou invalidade do signo jurídico no sistema de direito. Há uma questão de

legitimidade, de cometimento, de eficácia. Não quer parecer, ressalte-se, que isso seja

extrajurídico, no sentido de que a preocupação deveria ser da sociologia do direito, por

exemplo.

Como já se trouxe com base em Ross, “o direito encontra fundamento na consciência

jurídica ou na vontade jurídica, sendo que num plano mais abstrato, ele se dissolve, passando

a ser visível somente na forma de seus componentes sociológicos: o fático-convencional, ou

o desejado ou querido como direito”

Como trouxe Ross em tópico anterior, a questão não é de validade ou invalidade de

um signo jurídico no sistema de direito, mas sim de se saber se existe correlação do signo

com o fático-convencional.

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Isso justifica asseverar que a convenção social está para o direito como meio e fim e

seu descompasso com ela implica antijuridicidade. Como traz Pound, já mencionado, o

direito é uma instituição social, encontrando sua medida na vontade social.

O direito é mais um direito dos eventos do mundo e não tanto somente dos signos de

direito positivo; é nos eventos que deve encontrar a correlação necessária para impor

consequências e também a correlação necessária para edificar o signo jurídico no sistema de

direito.

Assim, ao se aplicar o realismo jurídico no panorama estadunidense e escandinavo,

apoiando-se, igualmente, no realismo peirceano, o que se tem é que se deve um respeito à

convenção jurídica, a qual, ao fim, deve respeito à convenção social espécie do gênero que

é.

Nesse contexto, se no realismo peirceano o método é abdutivo, há uma lógica de

verdadeiro ou falso, mas esta é daquelas que a verdade da conclusão se submete aos eventos

das premissas, desde que uma investigação possa comprovar seu valor científico.

A questão, pois, reduz-se, também, a uma interpretação dos eventos que a

investigação científica permite apurar. No direito a investigação é jurídica, mas a

juridicidade não lhe retira a necessidade, pelo que aqui se defende, de se apurar a verdade

em relação aos eventos do mundo gravados como passíveis de projetar consequências

jurídicas.

Tratar-se-á, na sequência, do tema da interpretação e aplicação no domínio do direito.

2.4 Interpretação e Aplicação no Domínio do Direito

Viu-se antes que uma proposição é uma espécie de signo linguístico, que signos

linguísticos têm significados, que esses significados são o conceito o qual gravam, que esses

conceitos se originam da experiência por meio de julgamentos relativos a eventos e que

conceitos não podem se referir a coisas impossíveis na experiência sensível.

Verificou-se, igualmente, que proposições (ou gravações científicas) têm de

encontrar aplicação na summa realidade. Se o conceito que o signo grava é um conceito

sobre uma coisa impossível na experiência sensível, o resultado é que não se estará diante

de um signo per si.

O signo, pois, grava um objeto e disso decorre que “existe” uma summa realidade e

uma realidade semeiótica (referente ao signo mesmo). Viu-se, também, que há um elemento

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de mediação entre o objeto e o signo: trata-se da verdade. Peirce, como já transcrito, traz que

signos para serem verdadeiros dependem de interpretações verdadeiras.

Essa interpretação é um novo signo de um signo acerca de um objeto (no meio

psíquico-semeiótico). Esse novo signo é chamado por Peirce de interpretante do primeiro

signo. Aqui há uma relação triádica, eis que se tem objeto, signo e interpretante.

O real não é somente o real sensível que é representado pelo signo, mas o real do

próprio signo e também o real da sua interpretação. Assim, diz-se de uma summa realidade

e de uma realidade semeiótica, a qual é a realidade do signo mesmo, mas também é a

realidade do interpretante (o conceito na mente).

Na sua fenomenologia, Peirce analisa os fenômenos a partir de três modos de ser

distintos, conforme aponta Ibri (1992, p. 19), dividindo-os em categorias: primeiridade,

segundidade e terceiridade.

Peirce chama tais categorias de categorias ceno-pitagóricas (CP 2.87) por conta de

sua relação com números (1, 2 e 3). Acerca de cada uma dessas categorias Peirce (CP 2.89)

assim se pronuncia:

Originalidade é ser tal qual ser é, independentemente de qualquer outra

coisa.

[...]

Obsistência (sugerindo prevenir, objeto, obstinado, obstáculo, insistência,

resistência etc.) é aquela em que segundidade difere da primeiridade; ou, é

aquele elemento, o qual tomado em conexão com Orginalidade, faz uma

coisa tal qual outra compelir-se a ser.

[...]

Transuasão (sugerindo tradução, transação, transfusão, transcendental etc.)

é mediação, ou a modificação da primeiridade e segundidade pela

terceiridade, tomada fora da segundidade e da primeiridade; ou, é ser em

se criando obsistência.

Na categoria da primeiridade predomina a ideia de originalidade (origem), a qual em

relação à segundidade se apresenta como uma qualidade, que é alguma coisa tal qual é, e é

tão livre da Obsistência por não ser nem mesmo idêntico a si próprio ou individual (CP.

2.91). Trata-se de algo como o sentimento sobre uma cor, por exemplo, o vermelho.

Na categoria da segundidade predomina a ideia de Obsistência. O prefixo “ob-” aqui

dá uma ideia de “contra”. Obsistência vai no sentido de uma existência contra algo (há

resistência). Aqui já surge uma primeira consciência do objeto, de algo outro em relação ao

primeiro algo. Aqui estão os objetos no sentido de uma primeira descoberta sobre eles por

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conta de uma resistência. É já uma sensação de um obstáculo, algo como alguém andando

na rua e tropeçando em uma pedra e constatando: “há algo aqui”.

Na categoria da terceiridade predomina a ideia de Transuasão. O prefixo “trans-” dá

a ideia de “além de”. Aqui há uma consciência de experimentação de “coisas existentes” no

tempo, o que gera uma noção de regularidade por conta da observação. Está aqui o elemento

de mediação. É aqui em que ocorre a gravação do anterior em posterior, da ideia de outro

em uma gravação dessa ideia com sentido de regularidade. Aqui o obstáculo ganha uma

“gravação” por uma consciência que faz “atribuições”, como se aquele que tropeçou na

pedra agora a “interpretasse”: “trata-se de um topázio de cor azul, o qual pode ser utilizado

para fazer pedras preciosas, sendo encontrado na Rússia, Brasil, Japão...”.

Para consolidar as ideias aqui trazidas acerca da triáde peirceana objeto, signo e

intrepretante e sobre as categorias ceno-pitagóricas da primeiridade, segundidade e

terceiridade, traga-se o seguinte quadro representativo:

Figura 6 – Tríade peirceana com suas categorias ceno-pitagóricas

Antes de se aplicar o estudado para fins de interpretação e aplicação do direito, diga-

se que a realidade mesma de que se falou antes está na segundidade. Peirce (CP 1.325) é

claro a esse respeito:

(TERCEIRIDADE)

INTERPRETANTE

(SEGUNDIDADE)

SIGNO OU

REPRESENTAMEN

(PRIMEIRIDADE)

OBJETO*

Fonte: Elaborado pelo autor com base no CP 2.228 e CP 2.89.

*Objeto na primeiridade no sentido de um sentimento sobre ele.

Na segundidade haveria a primeira sensação sobre o objeto.

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Na ideia de realidade, segundidade é predominante; porque o real é

aquilo que insiste por sobre forçar seu caminho ao reconhecimento

como alguma coisa outra do que a criação da mente. (Lembre-se que

antes da palavra Francesa, second, ter sido adotada na nossa língua, other

era meramente um número ordinal correspondente a dois [two]) O real é

ativo; nós o reconhecemos por chamá-lo atual [actual]. (Essa palavra

é devida ao uso de {energia}, ação, para significar existência, em

oposição a um estado meramente germinal). (Destacou-se).

Veja-se que a ideia peirceana de segundidade encontra equivalente na ideia de

realidade, na extensão do que se pode entender por segundidade no sentido de tempo

presente (atual). A categoria da segundidade, em relação à qual a característica marcante é a

alteridade, reconhece o outro como existente e, tal reação na mente (cognição), é o palco no

qual a realidade se revela outra a essa mente.

Peirce chama o real em inglês de actual. A tradução mais comum de actual em inglês

ao português é real, mas pode-se traduzir também como atual no sentido de presente. A

realidade é aquela outra coisa, cuja presentidade a mente conhece, ainda que de maneira

rudimentar.

A alteridade da segundidade mostra-se como solução, dentro do realismo peirceano,

para o problema da dualidade entre realidades (interna e externa). Se a segundidade anuncia

à mente o outro, para que a mente conheça, ainda que de maneira irregular, sua presença (no

sentido de estar presente) ou existência (no sentido de uma ação contra algo germinal), isso

significa que, conhecer uma presença ou existência de um outro (alteridade), é o mesmo que

conhecer uma presença ou existência outra à mente, ou seja, que nela não se encontra.

Ademais, ao se conhecer uma presença outra à mente, mas sendo ainda o

reconhecimento da mente, isso implica que na mente esse outro cambiou; cambiou-se na

mente o primeiro, que é multiplicidade disforme. Há, assim, na multiplicidade disforme um

limite ideal considerado.

Essa ideia, é dizer, essa concepção do outro (alteridade) na mente é outra realidade,

uma realidade semeiótica, a qual é abrangente, incluindo o pensamento como forma de

signo.

Assim, se segundidade já é linguagem em sentido amplo (signo) e na realidade

predomina a categoria da segundidade, é porque aqui, de uma forma ou de outra, já há uma

concepção primeira e, pois, uma realidade semeiótica.

Portanto, pelo que aqui se interpreta de Peirce, dizer que a realidade está na

segundidade, é dizer que está já na forma de uma ideia (signo), ou seja, uma espécie de

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linguagem em sentido amplo, ainda que em potência para se tornar verdade na terceiridade

do interpretante. Peirce diz que na segundidade predomina a ideia de realidade e não a

realidade ela mesma, a qual por ser multiplicidade disforme, não poderia ali estar.

Seguindo-se, foi dito anteriormente que na terceiridade predomina o elemento

mediação no sentido que se media uma modificação da primeiridade e da segundidade para

alguma outra coisa. Há uma gravação. Essa mediação se deve à experiência, uma

experiência que permite a observação de uma regularidade.

A operação aqui para “gravar” essa regularidade da experiência em signo é uma

operação que se articula pelo operador verdade. Como se disse: é a verdade que concorda

uma declaração abstrata com um limite ideal que uma investigação tende a trazer uma

sempre falível crença científica.

Há verdade, pois, quando essa concordância é possível. A verdade, desse modo, está

na categoria ceno-pitagórica da terceiridade. É ela que permite um signo mais avançado

(interpretante) do que o signo anterior na segundidade. O ciclo que usa o operador verdade

para permitir a semiose (geração de signos) é interminável, eis que novos signos de signos

vão surgindo ad infinitum no processo.

Acerca disso Peirce (CP 2.92) assim se pronuncia:

Um Signo é qualquer coisa a qual é relacionada com uma Segunda coisa,

seu Objeto, no que diz respeito a uma Qualidade, de modo a trazer uma

Terceira coisa, seu Interpretante, em relação ao mesmo Objeto, e que

dessa forma trará um Quarto em relação àquele Objeto na mesma forma,

ad infinitum. (Destacou-se).

Nesse sentido, o que se tem é um objeto no sentido de qualidade (primeiridade), para

o qual se relaciona um signo primeiro atual (segundidade) e, a partir desse, uma série infinita

de novos signos (interpretantes) surgem, os quais se relacionam ao mesmo objeto mediados

pelo primeiro signo.

Foque-se agora no interpretante do primeiro signo para retomar o tema da

interpretação. Esse interpretante é (se verifica) na medida em que o operador verdade permite

uma concordância com um limite ideal (objeto) que uma investigação tenderia a trazer

crença científica.

Assim, para que se obtenha crença científica ou convenção, é preciso que a

interpretação seja verdadeira. Trazendo-se tudo que se disse para o direito, o que se tem é

que, no direito, autoridades jurídicas aplicam regras (signos) jurídicos previstos no direito

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positivo. Essa aplicação passa necessariamente por um processo de interpretação dos signos,

o qual descobrirá a norma jurídica aplicável.

Aqui surge a ideia de norma jurídica como resultado do processo de interpretação, o

qual permite a aplicação jurídica. A norma jurídica é o interpretante, resultado do processo

de interpretação que é, ao mesmo tempo um processo de aplicação do direito, pois que

quando a autoridade jurídica aplica, ela aplica por conta do que interpreta. Talvez a diferença

entre aplicação e interpretação no direito esteja no tempo da operação no sentido de que se

interpreta para aplicar e não o contrário.

O que importa aqui, no entanto, é que, como se disse, uma interpretação tem de ser

verdadeira para se alçar à terceiridade, de modo que, se a norma jurídica é interpretante

(terceiridade), a norma jurídica também deve, de alguma forma, estar relacionada a uma

verdade sobre eventos que implicam consequências de direito.

Essa norma jurídica é também uma crença jurídica que se ajusta (uma convenção

jurídica) decorrente de uma investigação jurídica sobre eventos do mundo. Como diz Ross,

o direito é “fático-convencional”. Aqui uma diferença marcante do fenômeno jurídico. No

direito, prescrevem-se regularidades de comportamentos aceitas.

Diante da existência jurídica dessa prescrição de comportamento, a investigação

jurídica apura a ocorrência de irregularidades em relação aos comportamentos prescritos

para impor consequências de direito. Irregularidade constatada e consequência são fruto de

interpretação e aplicação e perfazem um ajuste jurídico que é a norma jurídica.

Logo, a autoridade jurídica competente (legislador) para introduzir signos jurídicos

elege eventos que, importantes para o direito, implicarão consequências jurídicas.

As regras (signos) jurídicas permitem uma interpretação e uma aplicação por parte

de uma autoridade jurídica competente (a exemplo do juiz). Essa autoridade, por sua vez,

dependerá de um relato dos eventos (ou gravação desses eventos) por parte de outra

autoridade jurídica (delegado, por exemplo).

O encadeamento de gravações acerca de eventos previstos como passíveis de

consequências jurídicas se apresenta tal qual uma triáde na concepção peirceana, em relação

à qual há um evento (objeto), uma gravação semeiótica primeira da ocorrência (signo) e a

consideração do elemento de mediação verdade para permitir uma interpretação verdadeira

e, assim, aplicar-se o direito, é dizer, impor-se as consequências jurídicas previstas.

Em conclusão do que se disse, para o direito: a) a primeiridade tem um sentido de

qualidade de objeto próxima do evento do mundo, passível de consequências jurídicas,

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conforme previsto na regra (signo) jurídica editada pelo legislador; b) a segundidade é a

primeira reação por uma consciência acerca desse evento, aqui já como signo desse evento

no sentido de uma gravação primeira. Aqui “há” a realidade pelo choque – pela reação com

a multiplicidade disforme do objeto em si (a primeiridade). Como signo na segundidade,

trata-se já de realidade semeiótica; c) a terceiridade surge como ideia de verdade jurídica

(como elemento de mediação sempre falível e dependente da experiência sensível reiterada),

a qual se confunde com o processo de interpretação jurídica e aplicação do direito com base

em eventos apurados pela teoria das provas.

Na primeiridade, o evento passível de gerar efeitos de direito é só uma qualidade,

uma potencialidade. Na segundidade, há o choque primeiro, por exemplo, de uma autoridade

investigativa com um evento (ocorrido), mas sem que haja ainda uma interpretação e

aplicação das cominações devidas. Na terceiridade é que a interpretação e aplicação

aparecem mediando-se a cominação devida em relação ao evento ocorrido por conta da

convenção que se forma com base na verdade.

Vista a questão sob a ótica das categorias ceno-pitagóricas e se considerando que o

direito também é um conglomerado de signos jurídicos, segue-se à Parte 3 deste trabalho

para um estudo com foco nos signos jurídicos.

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PARTE 3 – SIGNOS JURÍDICOS

Em uma língua, contam-se histórias e somente falantes da língua é que podem contar

histórias. Para se contar histórias é preciso capacidade de linguagem, de modo que não

podem existir na língua falantes com afasia.

Os falantes da língua fazem uso dos mecanismos da linguagem para se comunicar.

Se há comunicação entre os membros de uma comunidade de fala, é porque os falantes dessa

comunidade conhecem as regras estruturais que regem a língua que falam. Do contrário, não

haveria comunicação e, sem comunicação, a vida em sociedade é impossível.

Ao se falar de linguagem aqui, o entendimento que se tem, nesse trabalho, é de algo

mais ampliativo do que a linguagem escrita, falada e/ou gestual de uma língua. Quer parecer

evidente que uma língua não é pensamento. Acerca disso, acredita-se que nenhum linguista

se oporia. Porém, se língua não é pensamento, poderia a linguagem abarcá-lo como

fenômeno?

Ao se adotar que linguagem é o que serve para comunicar, haveria um problema para

incluir o pensamento aí, pois que pensamento per si não é meio de comunicação. Falta-lhe

um canal; esse canal é um modo escrito, oral e/ou gestual de uma língua. Isso parece ser uma

verificação estrita de linguagem, pois que há quem fale da linguagem dos sonhos também, a

qual, por óbvio, não tem em si um modo de expressão na língua.

Para se evitar discórdias, aqui se adota o termo cunhado por Peirce: signo. Signo,

assim, é mais ampliativo que linguagem, abarcando em si o pensamento e com ele os sonhos,

a imaginação, a loucura, etc., estes últimos uma forma de pensamento que também são.

Peirce (CP 5.421) deixa claro que o signo abarca o pensamento quando diz que:

uma pessoa não é absolutamente um individual. Seus pensamentos são o

que ela está ‘dizendo para ela mesma’, isto é, está dizendo para aquele

outro ser nela mesma [self] que acaba de vir à vida no fluxo do tempo.

Quando alguém raciocina, é aquele ser crítico que alguém está tentando

persuadir; e todo pensamento é um signo, e é mormente da natureza de

linguagem. (Destacou-se).

Como se nota, Peirce pondera acerca de dois pontos: a) quando alguém pensa essa

consciência do pensamento “meio que paira” sobre a própria pessoa que pensa como se fosse

uma pessoa diferente dela mesma. Ao se ter consciência do pensamento, isso quer dizer que

esta consciência mesma é “algo” que não é pensamento, mas além do próprio pensamento;

b) todo pensamento é um signo e signos têm natureza de linguagem.

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Peirce magnificamente amplia os horizontes para incluir o pensamento na linguagem.

Então, não seria um problema, nos termos de Peirce, dizer, como aqui se diz, “signos da

linguagem cotidiana” ou “signos da linguagem do direito”. Trata-se de expressão

redundante, é verdade, pois que se signo tem natureza de linguagem, basta dizer “signo

jurídico” e signo “cotidiano”, por exemplo. Porém, com o perdão do pleonasmo, em alguns

trechos desse trabalho tais expressões serão utilizadas para reforçar a classe a qual o signo

pertence.

Se Peirce está correto, ao se falar na linguagem do direito, esta inclui, igualmente, o

pensamento jurídico e não somente as gravações escritas, faladas e gestuais. Entretanto, ao

se usar língua, esta, por ser mais estrita, não abarcaria o pensamento, pois que língua é um

modo de expressão da linguagem. Dessa forma, para fins de distinção, tem-se utilizado a

nomenclatura “signo no meio de expressão escrito, falado e/ou gestual da língua”. Portanto,

o que se tem por objeto desse tópico é tratar dos fenômenos semeióticos como fenômenos

de linguagem. Isso dentro de uma interpretação de linguagem na linha peirceana.

Feitas essas ponderações de método e nomenclatura, é importante trazer que não é

somente a semeiótica (peirceana) que estuda fenômenos de linguagem. A semiologia

saussuriana, a linguística pottieriana, o estruturalismo jakobsoniano, entre outras escolas,

também o fazem.

A linguagem, é importante dizer, é limitadora do conhecimento humano se entendida

como único meio para alcançá-lo em uma orientação subjetiva ao invés de uma orientação

objetivamente considerada como procura pregar a escola do realismo.

Entrentanto, não é possível negar que é a linguagem que torna possível a

comunicação, eis que não há comunicação do absoluto por si só, eis que comunicação se faz

comunitariamente. Em sociedade, a ferramenta da linguagem é primordial para a vida seguir

e isso não desmerece o papel relevantíssimo que uma análise do objeto em si e por si mesmo

pode desencadear.

No âmbito do direito, isso salta aos olhos, ao se notar que o direito é formado,

também, de um conglomerado de estatutos e códigos de leis – linguagem no meio de

expressão escrito de uma língua natural.

Porém, o direito não é somente esse conglomerado de papeis, mas, mais do que isso,

o próprio pensamento jurídico de uma sociedade de direito, bem como as convenções

formadas no seio dessa sociedade que não são só papel, mas no papel podem estar gravadas.

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Para tratar da linguagem no meio de expressão de uma língua, há diferentes teorias

aplicáveis. O que se tentará fazer aqui é aproximá-las da semeiótica (peirceana) para prover

uma aplicação conjunta.

O presente estudo trabalha com um dualismo, o qual se utiliza para fins meramente

dogmático-pedagógicos entre o signo gravador (ou linguagem de gravação/gravadora) e o

signo gravado (ou linguagem gravada). Tal se deve a uma alusão a linguagem e

metalinguagem como se vê na teoria linguística em um sentido simples de expressar que a

geração de signos (semiose) ocorre por meio de uma espécie de gravação semeiótica,

encontrando chão firme na summa realidade.

Reforce-se que essa visão é uma visão dogmático-pedagógica, eis que já se

apresentou que essa verticalização do movimento semeiótico erige-se como demasiado

apertada acerca do que o fenômeno realmente é. O panorama que aqui se defende é de uma

visualização simbiótica da linguagem, inclusive jurídica, porém, para fins didáticos, essa

forma de divisão (signo gravador e signo gravado) no aperto da dogmática parece útil.

É do que se cuida na sequência.

3.1 Signos Gravadores e Signos Gravados (Teoria Semeiótico↔estesiológica de

Gravação): Papel da Semeiótica como Ferramenta de Compreensão do Fenômeno

Jurídico

Quando se joga um jogo qualquer, por exemplo o xadrez, há regras sobre a estrutura

do jogo que devem ser conhecidas para que os jogadores participem corretamente do jogo.

“Um peão move uma casa para frente, mas nunca para trás” é uma regra desse tipo.

Desprezando essa regra, alguém pode até jogar um jogo, mas esse jogo não poderá ser

chamado xadrez.

Quem tratou da alegoria do jogo como “jogo de linguagem” foi Wittgenstein (2009,

p. 18-19), o qual traz que jogo de linguagem refere-se ao uso da linguagem por meio do qual

crianças aprendem sua língua materna, como também “os processos de denominação de

objetos” e de repetição da palavra pronunciada, como o uso que se faz em brincadeiras de

roda, e, por fim, também à “totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as

quais ela vem entrelaçada”.

É esse último sentido que se utiliza aqui para designar “jogo de linguagem”, ou seja,

a totalidade formada pela linguagem e pelas atividades com as quais ela vem entrelaçada.

Seguindo-se com o raciocínio do jogo de xadrez, diga-se que há uma diferença, no entanto,

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entre as regras estruturais do xadrez e as regras de uma língua. Para estabelecer as regras do

jogo de xadrez é preciso conhecer as regras do jogo de uma língua, sem as quais nenhuma

regra de jogo pode ser estabelecida nessa língua.

Não se trata de algo apriorístico, mas sim de uma conclusão irremediável que parte

da forma de comunicação estabelecida entre os homens. Quem quiser estudar uma

linguagem, cujo meio de expressão se faz pelo mecanismo de uma língua, precisará conhecer

as regras dessa língua, da mesma maneira que falar bem uma língua implica o conhecimento

das regras estruturais dessa língua.

Isso vale para o estudo de qualquer fenômeno linguístico, objeto das ciências que o

estudam, como a filosofia, a semeiótica, a semiologia, a linguística, a gramática, a sociologia

etc. Como diz Vendler (1967), não existem filósofos mudos, do que decorre que estudar uma

linguagem, cujo meio de expressão se faz pelo mecanismo de uma língua, depende do

conhecimento das regras fundamentais dessa língua.

Logo, já se vê a utilidade do estudo que ora se propõe para fins do fenômeno jurídico,

eis que o direito é também um conglomerado de signos (uma linguagem na visão peirceana),

de modo que assim o sendo, para ser compreendido em toda sua extensão, deverá aquele que

o estudar, estudá-lo também sob a perspectiva da língua em que o direito se articula, ou seja,

da língua portuguesa.

Diga-se que aqui se entende que estudar a língua do direito não lhe retira

objetividade, desde que a visão a ser aplicada seja a visão realista. Não se trata de uma

contradição, eis que, se o pressuposto é que signos implicam uma convenção, o que se tem

é que essa convenção tende ao social e o social tende ao objeto de percepção. Portanto, nesse

panorama, o estudo continua sendo objetivamente orientado.

Nesse contexto, diga-se, ainda, que signos podem ser signos gravadores e signos

gravados. Na perspectiva da língua, signos encontram um meio de expressão, o qual pode

ser falado, escrito, gestual etc.

Veja-se que o fim e o começo do processo de geração de signos (semiose) finca-se

no chão do objeto (dinâmico). Esse é o limite ideal que uma investigação levada a efeito por

uma mente científica tende a trazer uma crença falível e atualizável. A investigação científica

estabiliza o processo da linguagem, tendendo-o a um objeto verificável e convencionável.

Como se disse, linguagem, em um primeiro entendimento, pode ser vista como um

conjunto de signos. Se os signos se articulam pelo meio de expressão de uma língua, o que

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se tem é que esse signo é linguístico (não de linguagem, mas sim de língua). Signos, como

concepção geral, gravam alguma faceta de alguma coisa ou alguém.

O estudo dos signos é objeto da semeiótica. Ao se falar semeiótica quer-se dizer a

ciência peirceana que estuda os signos. Para Peirce, como já se colocou, a semeiótica é

dividida em três: a) gramática pura que apura o que deve ser verdadeiro do signo em

direção a incorporar algum significado; b) lógica como ciência do que é quase-

necessariamente verdadeiro dos signos para manter a validade de qualquer dito objeto, é

dizer, que possam ser verdadeiros; c) pura retórica, cuja tarefa é apurar as leis pelas quais

um signo dá vida a outro, e especialmente um pensamento dá sequência a outro. Comentários

sobre a origem do termo “semeiótica” e o uso que Peirce dá a ele já foram postos em tópicos

anteriores, para os quais se remete.

Segundo Peirce (CP 2.227), a doutrina dos signos [...] é uma doutrina quasi

necessaria ou formal no sentido de que a observação dos caracteres dos signos leva a

afirmações eminentemente falíveis acerca do que devem ser os caracteres dos signos usados.

Para Peirce (CP 2.227), o processo de observação dos caracteres dos signos é

chamado abstração e o operador do processo tem de possuir uma inteligência científica, ou

seja, que aprenda com a experiência. Uma inteligência científica, para Peirce, exclui

pensamentos intuitivos, de omnisciência divina, os quais suplantariam a razão.

Assim, Peirce (CP 2.227) traz que se trata o processo observacional (observação

abstrata) daquele tipo das ciências positivas, mas que aponta para o que deve ser acerca do

mundo real e não para aquilo que é. Uma aproximação com o direito parece aqui óbvia, eis

que o direito também é positivo no sentido de que aponta para um dever-ser.

O processo de observação abstrata leva a conclusões sobre o que deveria ser

verdadeiro. É, mais uma vez, um processo falível (falibilismo peirceano), formal no sentido

lógico e quasi necessario, eis que conclui apenas por uma contingência, ou seja, acerca do

que deve ser o referente do signo.

Como já se colocou acima, “o signo refere a alguém alguma coisa, criando na mente

dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez mais desenvolvido. Esse signo é o interpretante

do primeiro signo” (PEIRCE, CP 2.228).

Essa “alguma coisa” que o signo indica é o objeto do signo. A referência (referido)

ao objeto se dá em relação a algumas das suas características. Não é possível, por observação

abstrata, extrair todo o substrato do real (da coisa real).

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Agora é preciso responder: Que é o objeto e qual é a sua relação com a realidade?

Peirce (CP 8.12) responde essa pergunta:

Objetos são divididos em ficções, sonhos, etc., por um lado, e realidade

por outro. A primeira [divisão] é daqueles, os quais existem apenas na

medida em que você e eu ou algum homem imagina-os; a última

[divisão] é daqueles, os quais têm uma existência independentemente

da sua mente ou da minha ou daquela de qualquer grupo de pessoas.

O real é aquilo, o qual não é o que quer que seja que nós possamos pensar

dele, mas não é afetado pelo que nós pensamos dele. A questão, portanto,

é se homem, cavalo, e outros nomes de classes naturais correspondem a

alguma coisa, a qual todo homem, ou todos os cavalos, realmente têm em

comum, independentemente de nosso pensamento, ou se essas classes são

constituídas simplesmente por uma semelhança na maneira em que nossas

mentes são afetadas por objetos individuais, os quais têm em si mesmos

nenhuma semelhança ou relação qualquer que seja. Agora que isso é uma

questão real, em relação à qual diferentes mentes responderão

naturalmente de maneiras opostas, torna-se claro quando pensamos que

existem dois separados pontos de vista, desde os quais a realidade, como

já definida, pode ser considerada. Onde está o real, a coisa

independentemente de como pensamos nela, para ser encontrada? Deve

haver tal coisa, porque encontramos opiniões limitadoras; há alguma coisa,

portanto, a qual influencia nossos pensamentos, e não é criada por eles.

Temos, é verdade, nada imediatamente presente a nós além dos

pensamentos. Esses pensamentos, no entanto, foram causados por

sensações, e aquelas sensações são limitadas por algo fora da mente.

Essa coisa fora da mente, a qual diretamente influencia nossa

sensação, e por meio da sensação nosso pensamento, porque está fora

da mente, é independente de como pensamos nela, e é, em resumo, real.

(Destacou-se).

É importante esclarecer que Peirce concorda, em certa medida, com os nominalistas,

no que respeita à circunstância de que o portal de entrada à percepção da realidade é o

pensamento, uma concepção de algo real. Porém, diverge no sentido de que essa concepção

não tem o condão de assemelhar os objetos reais entre si, pois dizer que são objetos “é apenas

dizer que um termo mental ou pensamento-signo posiciona-se indiferentemente para um ou

o outro objeto sensível causado por duas realidades externas” (PEIRCE, CP 8.12).

O resultado do processo de observação abstrata é uma ideia do real. Essa ideia,

segundo Peirce (CP 2.228), é o fundamento do signo. A ideia que fundamenta o signo tem

de ser comum. É, nesse sentido, uma das ideias possíveis dentro do depositório de ideias

comuns das gentes.

Se uma ideia na concepção peirceana é o fundamento do signo, isso quer dizer

que esse signo é, em verdade, o veículo (aquilo que carrega) uma ideia (sobre um objeto,

uma summa realidade). Essa é uma visualização que se justifica somente na medida de ser

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didática, eis que, em verdade, na visão que aqui se tem, a dinamicidade da realidade é

simbiótica com o signo e o intérprete do signo. Semeiótica estuda todo o fenômeno dos

signos, incluindo sua gramática (gramática pura), sua lógica (validade e invalidade) e o

processo de geração – semiose (pura retórica). Por que isso é importante para o direito?

É importante porque o direito é, também, um aglomerado de signos – signos

jurídicos. Os signos jurídicos podem ser estudados em relação: a) ao significado que

incorporam (gramática pura); b) sua verdade (validade) ou falsidade (invalidade) para com

um objeto (lógica); c) o processo de geração de signos e as leis que lhe dão razão (pura

retórica).

Signos na linguagem do direito são signos gravadores em relação aos signos da

linguagem cotidiana, os quais, no caso, são signos gravados. Para que se tenha um signo

jurídico é preciso a gravação de um signo social (da linguagem social) em signo jurídico (da

linguagem jurídica).

Isso não quer dizer, no entanto, que o signo social (ou cotidiano, da linguagem

cotidiana) esteja localizado em um reino independente daquele no qual está o signo jurídico,

como se este fosse separado daquele. Essas divisões são didáticas. A linguagem é simbiótica.

Gravar uma linguagem na outra não é inventar uma nova linguagem. Trata-se de um

prolongamento e, ainda que assim não seja na prática, por defeito, por exemplo, no processo

de gravação, a tendência para aonde naturalmente se deve seguir é de que uma nova

gravação tomará lugar para corrigir aquilo que ficou impresso de maneira equivocada na

anterior.

Em relação ao processo de gravação da realidade mesma, o que se operacionaliza é

parecido com o que, por exemplo, Olivecrona chamou “plasmar” uma realidade, utilizando-

se aqui o verbo “gravar” no lugar de “plasmar”, no entanto. Por que é assim? É assim porque

“plasmar” vem do verbo latino plasmo, o qual significa dar forma, moldar.

O nome substantivo (neutro) latino é plasma, com uso de algo formado, moldado,

imagem, figura, criatura. Porém, “gravar” parece mais apropriado ao fenômeno que se quer

aqui nomear, eis que indica “estampar” ou “imprimir” e o resultado do processo é uma

“gravação”, uma “estampa”, uma “impressão” (TORRINHA, 1942, p. 621).

Então, essa “gravação” (nome substantivo), que é o resultado do verbo “gravar” uma

realidade é parte mesma dessa realidade gravada no signo – uma parte da realidade está

como que “impressa” no signo.

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Não se trata assim de uma “tradução” exatamente de uma realidade na linguagem,

pois “gravar” não implica um movimento de mudança propriamente dito como ocorre numa

na “tradução”, a qual, é, em verdade, somente uma versão de uma realidade.

A visualização, ao contrário, é de como se houvesse um entrelaçamento, um

prolongamento de um no outro, uma simbiose, uma metamorfose. A gravação “estampa”

parte da realidade no que é o resultado do processo.

Podem haver elementos subjetivos “impressos” na gravação, os quais implicarão que

o signo-gravador terá uma impressão não perfeita da realidade. Porém, isso acaba sendo

inevitável no falibilismo dos signos e sua correção se operacionalizará no tempo e espaço

em alguma atualização futura, eis que o processo de gravação está sempre em suspenso de

se finalizar, pois que um continuum.

Nesse contexto, da maneira que se analisa aqui o fenômeno, o que se tem é que nos

processos semeióticos há uma espécie de gravação de signos em relação a signos até se

alcançar uma gravação da realidade ela mesma.

Por isso se dizer que se tem um signo-gravador, um signo-gravado e também um

interpretante-gravação na tríade peirceana. O signo-gravador será o resultado do processo

semeiótico de gravação e equivalente ao objeto imediato peirceana.

O signo-gravado é seu palco de trabalho, seu objeto semeiótico, equivalente,

também, ao objeto imediato peirceano. O interpretante-gravação que é o equivalente ao

interpretante da tríade peirceana, visto aqui na perspectiva paradigmática, do conceito-

gravação que surge na mente do intérprete-gravador.

Assim, no direito o que há são signos-gravadores de outras linguagens do próprio

direito, por exemplo, signos de direito tributário gravam signos de direito civil na linha de

aplicação do artigo 110 do Código Tributário Nacional, mas que ao final, inevitavelmente,

pelo que aqui se defende, acabaram por gravar um signo da linguagem cotidiana. Os signos

debaixo no processo semeiótico de gravação são chamados signos-gravados.

Os signos-gravados da linguagem ordinária pelo direito também são signos-

gravadores, mas aqui a gravação pode ser de outras linguagens ordinárias, mas acabará

encontrando piso na summa realidade, a qual é a planície de toda e qualquer gravação em

último grau.

Disso decorre que de forma mediata o signo-gravador do direito também grava

semeioticamentea summa realidade. Todo esse processo semeiótico de gravação da summa

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realidade somente é possível por conta de um expediente que não é propriamente semeiótico,

mas sim, como aqui se chama, “estesiológico”.

Essa estesiologia é aquela explicada na linha de Merleau-Ponty, o qual trabalha com

a ideia de entrelaçamento do corpo com a realidade e que, tomada por base por Lacan,

autoriza, na interpretação que aqui se faz, dizer que linguagens são uma espécie de “olhar”

do mundo, mas que nesse olhar que reflete no olho do observador está ele próprio refletido

na realidade como prolongamento dela mesma.

Assim, numa espécie de estesiologia jurídica que prestigia as sensações físicas do

legislador, das autoridades aplicadores do direito, mas também do cientistas jurídicos, o que

se tem é que a produção de signos jurídicos, sua interpretação e aplicação não estão alheias

à summa realidade, mas, ao contrário, operacionalizam-se como um prolongamento de ida e

volta à realidade, numa espécie de entrelaçamento com ela mesma.

É por isso que, no direito também, não há tampouco somente o aspecto semeiótico,

mas também o estesiológico, do que decorre dizer que a teoria que explica tal fenômeno

deve ser nomeada teoria semeiótico↔estesiológica de gravação jurídica.

Vistos os papeis da semeiótica de Peirce e estesiologia de Merleau-Ponty em relação

ao fenômeno jurídico, passa-se na sequência a tratar da aplicação da semiologia saussuriana

também como possível ferramenta de compreensão do direito na sua percepção como signo.

3.2 Significado e Significante dos Signos Jurídicos: Papel da Semiologia como

Ferramenta para Compreensão do Direito

Foi dito que uma linguagem tem um meio de expressão que usa o mecanismo de uma

língua (para se expressar), mas não se diferenciou língua de linguagem, o que parece

essencial para o estudo de qualquer linguagem – para o estudo dos signos como linguagem.

Língua e linguagem são distintas, do que decorre ser importante estabelecer uma

diferenciação. Sobre o tema são pertinentes as palavras de Saussure (1969, p. 17):

Mas o que é a língua? Para nós, ela não se confunde com a linguagem; é

somente uma parte determinada, essencial dela, indubitavelmente. É, ao

mesmo tempo, um produto social da faculdade de linguagem e um

conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social para

permitir o exercício dessa faculdade nos indivíduos. Tomada em seu

todo, a linguagem é multiforme e heteróclita; o cavaleiro de diferentes

domínios, ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, ela pertence

além disso ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa

classificar em nenhuma categoria de fatos humanos, pois não se sabe como

inferir sua unidade.

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A língua, ao contrário, é um todo por si e um princípio de classificação.

Desde que lhe demos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem,

introduzimos uma ordem natural num conjunto que não se presta a

nenhuma outra classificação. (Destacou-se).

A língua é, assim, um produto social da faculdade de linguagem e um conjunto das

convenções necessárias. Disso se pode dizer que todos têm uma faculdade de linguagem, a

qual precisa encontrar um modo de expressão.

A articulação da faculdade de linguagem, assim, pode encontrar um meio para sua

expressão em uma língua, mas não somente numa língua falada e escrita, mas também de

sinais, por exemplo. Fala-se, assim, em língua dos sinais, uma língua gestual para pessoas

com deficiência de fala, as quais articulam tais gestos através do meio de expressão de uma

língua de sinais.

Os meios de expressão são múltiplos. Uma língua pode ser falada e escrita, mas

também gestual, como se disse, de modo que isso implica que signos podem ser, igualmente,

falados, escritos e gestuais, mas ainda assim linguísticos, desde que o meio de expressão seja

uma língua falada, escrita ou gestual.

Saussure (1969, p. 18) traz, igualmente, que a língua é um sistema de signos distintos

correspondentes a ideias distintas. Para ele a faculdade linguística está como que por cima

da faculdade fisiológica dos órgãos físico-corporais que permitem a fala e a audição. Assim,

trata-se de um fenômeno psíquico, seguido de um processo fisiológico ou vice-versa, o que

dependerá do meio de expressão.

Em relação ao aspecto psíquico, explica Saussure (1969, p. 19) que no cérebro de um

falante estão conceitos associados a representações ou imagens acústicas, as quais são os

meios de expressão possíveis desses conceitos.

Em relação ao aspecto fisiológico, explica Saussure (1969, p. 19) que, do surgimento

no cérebro da imagem acústica, que é proveniente, por sua vez, de uma associação decorrente

de um conceito que surge no cérebro (processo psíquico), passa-se a um impulso do mesmo

cérebro aos órgãos de fonação, que se propagam da boca de um indivíduo ao ouvido de

outro.

No ouvido do outro indivíduo, a imagem acústica é transmitida desde o ouvido ao

cérebro (processo fisiológico), sendo que no cérebro faz-se uma associação (processo

psíquico) dessa imagem acústica com um conceito. Produziu-se comunicação.

Saussure (1969, p. 66-67) explica o caráter também psicológico da imagem acústica

quando fala em “impressão psicológica do som” (no sentido de efeito sobre os sentidos).

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Essa imagem acústica Saussure chamou também significante e aos conceitos ou

ideias representáveis significado, conforme abaixo:

Figura 8 – Significado e Significante em Saussure

Fonte: Adaptado de SAUSSURE, Ferdinand de. Course in linguistics

[tradução livre]. New York: Philosophical library, 1969, 66-67.

Assim, a unidade linguística elíptica biplânica saussuriana une um conceito e sua

representação (imagem acústica) ou vice-versa em uma mesma entidade linguística: o signo.

O produto social que permite a faculdade de linguagem é a língua – o meio de expressão por

excelência de uma linguagem.

Falar, pois, é um processo psíquico seguido de outro fisiológico. Escutar é um

processo fisiológico seguido de um psíquico. Isso quando o meio de expressão é oral ou

audível. Ler, cujo meio de expressão é escrito ou visível, segue o mesmo mecanismo do

escutar, ou seja, a imagem acústica (uma palavra) é captada pelo órgão visual, que a leva ao

cérebro, permitindo a associação com um conceito ou ideia.

Veja aqui a conexão com o direito. Quando um cientista jurídico descreve

semeioticamenteo direito positivo e, dos signos descritivos resultantes sacam-se proposições

(normativas), o que se tem é uma interpretação científico-descritiva dos signos de direito

positivo. Isso implica que ele lê o texto jurídico, captando uma imagem acústica do texto.

Essa imagem acústica do texto é um tipo de signo – signo jurídico escrito (a palavra do

texto). Esse signo jurídico, quando o cientista o lê, é captado por seu órgão visual em um

processo fisiológico.

Tal signo jurídico escrito (imagem acústica), captado pelo órgão de visão do cientista,

é associado no cérebro a um conceito ou ideia em um processo psíquico, o qual é chamado

de interpretação (jurídica), ou seja, essa associação do signo jurídico escrito que se lê com

um conceito no cérebro.

Na mente do cientista jurídico essa associação, que é também uma interpretação, é

do tipo descritiva do direito positivo. Kelsen (2003) apresenta que essa interpretação do

cientista jurídico e qualquer outra que não seja levada a efeito pela autoridade competente

ou

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para fazê-lo é chamada de interpretação não-autêntica, sendo a única autêntica aquela da

autoridade competente.

Essa interpretação não-autêntica que leva o conceito ao cérebro do cientista, começa

fisiológica (leitura do texto de lei) e termina psíquica (conceito no cérebro), de modo que o

cientista a materializa descritivamente em um texto científico – um conglomerado de signos

científicos.

O conceito que resulta no cérebro do cientista jurídico é uma proposição normativa

acerca da norma jurídica, assim entendida aquela que se saca da interpretação dos textos de

lei pelo intérprete autêntico.

Na perspectiva do aplicador do direito (autoridade competente), que exerce a

interpretação do direito positivo, há um fenômeno equivalente, que passa do processo

fisiológico da leitura do texto de lei (órgão visual captando o signo jurídico do texto no meio

fisíco-semeiótico) a um processo psíquico (interpretação autêntica), o que faz surgir na

mente do aplicador do direito (meio psíquico-semeiótico) a norma jurídica aplicável.

Disso segue outro processo, que é a aplicação da norma jurídica gravada do texto de

lei pela autoridade competente, o que se faz pela imposição (consequente) de consequências

jurídicas em conformidade com a norma jurídica gravada e com supedâneo no evento do

mundo gravado juridicamente na narrativado direito (antecedente). A materialização do

processo se dá em um novo texto de direito positivo do tipo particular com efeitos objetivos

(concretos). Nesse caso, está-se diante de uma interpretação do tipo prescritiva, seguida de

uma aplicação do tipo impositiva.

Há uma diferença para os aplicadores do direito, a qual ficará mais clara quando se

falar mais adiante do fato jurídico, eis que o aplicador do direito, além de interpretar, também

aplica a previsão do legislador a uma ocorrência verificada concretamente – um evento. Ele

reconhece a função prescritiva dos signos jurídicos ao interpretá-los como passíveis de uma

consequência de direito e também reconhece a função impositiva, impondo as consequências

respectivas previstas no sistema.

Isso implica um processo psíquico diferençado, em relação ao qual se tem uma

associação de uma imagem acústica (texto de lei) a um conceito, o que se chama

interpretação autêntica, mas também uma aplicação desse interpretante (jurídico) – que é a

norma jurídica, a um particular com efeitos concretos.

O processo psíquico, nesse caso, é mais complexo, pois que tanto interpretação como

aplicação envolvem mais de um signo jurídico. Trata-se do signo jurídico (imagem acústica)

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do texto de lei, do qual consta a previsão de uma possível ocorrência passível de gerar

consequências de direito.

Porém, trata-se, também, do signo jurídico da gravação acerca da ocorrência

concreta que chega ao aplicador do direito. Fazendo essa intepretação jurídica, há uma

associação da imagem acústica do signo-gravador do evento (processo fisiológico, eis que

se lê o signo-gravador) com um conceito (que é o interpretante-gravação): algo como “a

morte de Maria por José” (uma ideia). Nesse caso, começa-se com um processo fisiológico

(leitura do signo-gravador), chegando-se a um processo psíquico (o interpretante-gravação

ou ideia que surge na mente).

A partir dessa ideia da qual se parte, inicia-se um processo psicológico de partida,

que associa essa ideia (a morte de José por Maria) com uma imagem acústica (signo jurídico-

linguístico) que é o texto de lei (art. 121 do Código Penal – Crime de Homicídio).

Quando o aplicador do direito assim o faz, ele terá interpretado o signo-gravador do

evento (a morte de Maria por José) na narrativa jurídica segundo a previsão de uma lei

(Código Penal, por exemplo). Essa interpretação, no entanto, ainda está na sua mente – ainda

é conceito.

O processo fisiológico resultante da interpretação e aplicação do direito se dá por

meio da conjunção de vários sentidos: o aplicador do direito articula a imagem acústica (art.

121 do Código Penal – Crime de Homicídio) em um meio de expressão escrito (ele lê o

artigo e escreve a aplicação do direito), como a sentença judicial (meio de expressão escrito

da linguagem do direito), por exemplo.

Essa sentença judicial é o ponto de partida para todo um novo mundo de processos

fisiológicos e psíquicos, que levarão a uma interpretação e aplicação por outro aplicador do

direito, por exemplo, o juiz de execuções, interpretação do precedente por um cientista do

direito ou por outro juiz como base para outro caso etc. Esse processo de geração de signos

(a semiose) é estudado na semeiótica na parte da pura retórica.

O ponto fulcral para entender esse mecanismo de interpretação e aplicação do direito

é a compreensão de que a associação de um conceito a uma imagem acústica ou de uma

imagem acústica a um conceito requer um meio de expressão.

No caso do falante, esse meio de expressão serve para operacionalizar (audivelmente

ou visivelmente) a imagem acústica (lembre-se que a imagem acústica é a impressão

psicológica de um som), por exemplo, o som emitido quando se fala, uma palavra escrita em

um papel, um gesto etc.

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No caso do ouvinte ou do leitor, esse meio de expressão serve para recepcionar a

imagem acústica empiricamente, por exemplo, quando se escuta uma palavra, quando se lê

uma palavra no papel, quando se vê um gesto etc.

Sem conceito não há comunicação. Sem imagem acústica não há comunicação. Sem

signo (a união dos dois), pois, não há comunicação. Aqui jaz o papel fundamental da língua,

pois, como traz Saussure (1969, p. 22), é na “porção determinada do circuito em que uma

imagem auditiva vem a associar-se a um conceito que se localiza a língua”.

A língua, pois, “constitui um sistema de signos onde, de essencial, só existe a união

do sentido e da imagem acústica, e onde as duas partes do signo são igualmente

psíquicas” (SAUSSURE, 1969, p. 23) – o processo é psíquico.

O que se interpreta de Saussure, e que às vezes pode levar a certa confusão, é que

imagem acústica pode ser tanto psíquica (impressão psicológica de um som) como também

um produto de uma articulação já em um meio de expressão, ou seja, uma palavra falada,

escrita ou um gesto. Nesse último caso, o meio de expressão e a imagem acústica se

confundiriam.

Para Saussure, diga-se que signos linguísticos são: “as associações, ratificadas pelo

consentimento coletivo e cujo conjunto constitui a língua, são realidades que têm sua sede

no cérebro” (SAUSSURE, 1969, p. 23, Destacou-se).

Como se vê, há uma diferença entre a opção triádica de Peirce e a opção diádica de

Saussure, que desconsiderou o objeto ou referente. Aqui jaz uma distinção de aproximação

do tema entre Saussure em Peirce, a qual pode parecer indissociável do ponto de vista de

método.

Saussure, pelo que se interpreta, considera o signo a realidade. Se assim o é, ele se

aproxima da posição nominalista e não da posição realista para se aproximar do tema da

realidade. Isso quer dizer que Saussure não consideraria o objeto na sua opção de

visualização do signo que é diádica (significado e significante).

Peirce, contrariamente, pelo que se interpreta, enfatiza na sua tríade (objeto, signo e

interpretante) o aspecto relacional, considerando expressamente o objeto nessa relação.

Peirce focaliza na sua representação triádica o processo de geração de signos (a semiose).

Isso quer dizer que Peirce considera a summa realidade como parte da relação, ainda

que no signo ela não esteja diretamente (é seu objeto dinâmico), eis que inalcançável por

qualquer que seja o meio de expressão. Sua posição é realista, ou seja, a realidade “existe”

independentemente da linguagem.

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A desconsideração por Saussure do objeto não alimenta o presente estudo, eis que

incompatível com o realismo que é a base firme de sustentação do edifício científico que

aqui se constrói. Desse modo, a semiologia saussuriana é utilizada, como já se disse, como

contraponto e, mais do que isso, para explicar o fenômeno linguístico na perspectiva do

direito.

Não há prejuízo de método utilizar a semiologia na porção do estudo que se refere à

linguagem do direito, eis que os aspectos analisados dizem respeito ao mecanismo dos signos

para permitir comunicação entre falante e ouvinte e entre autoridade competente e sujeito de

direito.

Siga-se, pois, com o estudo baseado em Saussure. Diga-se, agora, que a associação

entre conceito e imagem acústica, ou entre significado e significante, e vice-versa, serve a

um propósito do signo, que é permitir que a imagem acústica seja transmitida de uma pessoa

falante a uma pessoa ouvinte – propósito de comunicação.

É por isso que se disse acima que o signo é um veículo que carrega algo. Tal qual o

DNA que carrega o código genético, o signo carrega o código linguístico. Assim, chamou-

o, igualmente, de signo linguístico, ou seja, aquele que encapsula esse código, carregando-o

consigo de um falante a um ouvinte, visualização esta dogmático-pedagógica do fenômeno.

Homens articulam signos linguísticos em uma língua para servir um propósito

fundamental na sociedade: o de possibilitar que as pessoas se comuniquem. O

funcionamento da sociedade depende, assim, da comunicação.

Nesse contexto, é importante dizer que comunicação só se faz quando todos os

elementos pertinentes estão presentes. Imagem acústica sem conceito e vice-versa não

permite comunicação entre as pessoas.

É possível surgir a associação de conceito e imagem acústica na mente de um homem

e disso não decorrer a necessidade de um ouvinte para captar a imagem acústica, mas

comunicação não há nesse processo associativo isolado que se mantém na mente, de modo

que a transmissão da imagem acústica é que proporciona, entre outros elementos, a fluidez

da realidade do cérebro de um falante à realidade do cérebro de um ouvinte. A língua entra

justamente na poção do circuito em que se conjuga a associação. É ela que permite essa

articulação, a qual se opera em um meio de expressão falado, escrito, gestual etc.

“É essa possibilidade de fixar as coisas relativas à língua que faz com que um

dicionário e uma gramática possam representá-la fielmente, sendo ela [língua] o depósito

das imagens acústicas, e a escrita a forma tangível dessas imagens” (SAUSSURE, 1969, p.

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23). Veja-se que, como se disse, é possível visualizar a imagem acústica tanto na mente

como no papel, a forma tangível dessa imagem acústica.

A língua, para Saussure, é uma instituição social, e a ciência que estuda a vida dos

signos no seio da vida social é a semiologia, ensinando em que constituem os signos e as leis

que os regem, sendo guardado à linguística o papel de definir o que faz da língua um sistema

especial no conjunto dos fatos semiológicos (SAUSSURE, 1969, p. 24).

A semiologia, no aspecto de ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida

social, ensinando em que constituem os signos e as leis que os regem, é similar à ciência do

direito, eis que nessa também se está preocupado com a vida dos signos jurídicos dentro de

uma comunidade de fala (aspecto pragmático). Além disso, na ciência do direito, igualmente,

interpretam-se os signos jurídicos – para saber em que constituem (aspecto semântico) e, por

conseguinte, as leis que os regem em termos de posicionamento e hierarquia dentro do

sistema (aspecto sintático).

É importante trazer que essa divisão em sintaxe, semântica e pragmática dentro da

semiótica foi dada por Morris (1985, p. 31-32) no seu “Fundamentos da Teoria dos Signos”.

Ela, com adaptações, permeia o presente estudo e aqui se associa às ideias postas acima na

semiologia de Saussure para um estudo dessa estirpe sobre o fenômeno jurídico.

Nesse contexto, ao se estudar o fenômeno jurídico, deve-se levar em consideração

esses três aspectos: sintático (que diz respeito ao signo em relação a outros signos),

semântico (que diz respeito ao signo em relação ao objeto) e pragmático (que diz respeito ao

signo em relação aos falantes e ouvintes).

Os temas se entrelaçam (semiologia e direito) aqui. O aspecto sintático do signo

jurídico é fundamental para proporcionar um entendimento sobre sua relação com outros

signos dentro do sistema de signos do direito – as leis que os regem e seu posicionamento

no sistema. Surgirão aqui questões de validade, vigência e eficácia.

O aspecto semântico é importante para permitir uma compreensão sobre a relação

dos signos jurídicos com seus objetos. Objeto aqui no sentido de summa realidade, de uma

ocorrência prevista pelo legislador para gerar consequências de direito. Surgirão aqui

questões relativas à interpretação, no sentido de qual é o significado que se apreende dos

signos jurídicos, bem como questões de aplicação do direito, da teoria das provas etc.

O aspecto pragmático é relevante, eis que autoriza uma visão adequada sobre a

relação dos signos jurídicos com os falantes e ouvintes em uma comunidade de fala. Surgirão

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aqui questões relativas à eficácia social do direito, ao atendimento do ideal de justiça,

segurança jurídica entre outros.

A semiologia saussuriana associada ao realismo peirceano é, assim, ingrediente

importante para escorreita compreensão do fenômeno jurídico.

Visto isso, quer-se, na sequência, trabalhar, considerando-se ainda o signo biplânico

saussuriano (significante e significado), aspectos preciosos relativos ao significado em uma

visão baseada em Pottier que vai além da saussuriana.

Na sequência, para que se compreenda o significado do signo mais detalhadamente,

explorar-se-á a ideia de conteúdo do signo, sendo esse conteúdo forma e substância.

3.3 Substância e Forma dos Signos Jurídicos

Para Pottier (1975, p. 7), um signo linguístico possui um significante, que é o

conjunto de meios de expressão e um significado, o qual é, por sua vez, constituído de uma

forma e de uma substância. O conteúdo do signo, que é diferente dos seus meios de expressão

(significante), é constituído de forma e substância.

Pottier (1967, p. 45) traz que, na perspectiva do significado, a forma do conteúdo do

signo é uma estrutura sintática e a substância do conteúdo é uma estrutura semântica. Assim,

o signo é uma substância moldada em uma forma e expressa por um significante.

Disso se pode dizer que, além do significante (meios de expressão do signo), na

perspectiva do conteúdo do signo, há um significado sintático e um significado semântico.

Pottier (1975, p. 8) ajuda a entender isso tudo usando o exemplo da palavra “óculos”.

Na perspectiva do meio de expressão escrito da língua, “óculos” é um significante.

Na perspectiva do conteúdo desse significante, há: a) o significado sintático, isto é, “óculos”

é um substantivo e; b) o significado semântico, isto é, “óculos” é um objeto usado para

auxiliar o órgão de visão a enxergar coisas.

Dualidades como significado sintático e semântico, como já se disse, servem ao

propósito dogmático-pedagógico de permitir a compreensão ainda que o fenômeno mesmo

seja multidimensional nas suas características primeiras e simbiótico no senso geral.

Essa divisão de forma e substância já foi explorada de diversos modos aqui: em

Platão, Aristóteles, Scotus e Kant. Para tomar Kant como exemplo, seu fenômeno é forma é

matéria. Forma na linha da intuição pura e matéria na linha da intuição empírica.

Na linha da proposta de Kant, aproximando-a de Pottier, o que se tem é que a

substância de Pottier, tal qual a matéria de Kant, diz com o objeto na sua ontologia. Já a

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forma de Pottier, tal qual a forma de Kant, diz com a perspectiva não ontológica, ou seja, o

que é diverso do objeto, mas permite individualizá-lo, autorizando o conhecimento. A forma

do conteúdo do significante (o significado sintático do signo) é para Pottier (1967, p. 46) sua

função – a função sintática do significante no discurso. Por exemplo, “óculos” tem função

de substantivo.

A inovação de Pottier em relação a Saussure é justamente esse dual que permite

estudar duas perspectivas de conteúdo (significado) do signo linguístico: a sintática e a

semântica, sendo que ambas constituem o significado dos signos linguísticos11.

A ilustração abaixo ajuda a visualizar o signo segundo Pottier:

Figura 9 – Signo pottieriano.

Dessa ilustração, é possível concluir que todo signo tem um significado e um

significante e, no que diz respeito ao significado, que esse é sintático e semântico. Desse

modo, o significado do signo somente pode ser visualizado nessa dual perspectiva (sintática

e semântica). Não há se falar em signo sem conteúdo – sem significado, do que decorre dizer

que não há se falar em signo sem se considerar seu conteúdo sintático e semântico. Portanto,

qualquer intérprete de signos linguísticos deverá levar em consideração, se quiser entender

seu conteúdo, o aspecto sintático e semântico.

Essa divisão em forma e substância auxilia, também, na compreensão de uma

premissa que se estabeleceu aqui de que, em relação aos signos linguísticos, não há de se

falar em sinônimos. Isso quer dizer que o conteúdo do signo, que é forma e substância, é

11 Ao se usar “linguístico” enfatiza-se o aspecto do signo na perspectiva de uma língua em que pese o signo

poder ser pensamento também. O usa aqui é indiscriminado, de modo que signo e signo linguístico poderão

ser equivalentes a depender do centro de discussão no presente texto.

Fonte: Adaptado pelo Autor de Pottier, Bernard. Presentación de la

Lingüística. Madrid: Romania, 1967, p. 45.

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diferente a depender do significante que se toma para análise. Significantes diferentes

implicam significados diferentes. Os exemplos deixarão isso muito mais claro.

Ao se analisar a palavra anda e andava, vê-se que há um elemento linguístico

distintivo -va. O elemento linguístico -va diferencia andava de anda, apontando para uma

função sintática diferençada, qual seja, pretérito imperfeito do indicativo (ele andava) em

contraste com o presente do indicativo (ele anda), de modo que -va é uma partícula

linguística que diferencia anda de andava, no que respeita ao significado sintático dessas

palavras.

Na linguística, essas partículas diferenciadoras mínimas são chamadas “morfemas”,

mas não serão os morfemas estudados nesse trabalho, eis que isso demandaria um tanto de

páginas e não acrescentaria tanto a um estudo que deve ser focado no direito.

Assim, a partícula diferenciadora -va atribui um significado sintático ao se unir com

anda, é dizer, o significado sintático pretérito imperfeito do indicativo (ele andava). A

diferença entre anda e andava é uma diferença de forma (acréscimo da partícula -va). Isto é

o mesmo que dizer que anda funciona de uma certa forma e andava de outra.

A diferença aqui se apresenta na forma do signo e em “presença”, ou seja, no eixo

sintagmático (SAUSSURE, 1969, p. 143). No qual há uma relação de oposição visível entre

partículas linguísticas no texto, de modo que se fala que a diferença está “em presença”.

Veja-se agora um exemplo sobre significado semântico dos signos quando diante de

significantes iguais. Ao se dizer: eu olho e o olho, a partícula linguística olho tem idêntica

forma linguística nos dois casos apresentados. Logo, não há uma diferença de forma. O que

se altera, portanto de eu olho para o olho é o aspecto semântico.

Quando alguém diz [eu] olho e [o] olho, há uma diferença de substância, uma

diferença semântica. Veja-se que, em relação a essa diferença, não se está “em presença”

(não é possível enxergá-la no texto). A diferença se verifica no eixo paradigmático (está “em

ausência”). Saussure (1969, p. 143) fala em relação associativa, querendo significar a mesma

coisa. “Associativa” no sentido de que o que permite a diferenciação são “associações” que

não estão no texto, mas sim na mente do falante, isto é, “em ausência”.

Assim, em [eu] olho o significado semântico é algo como uma ação visual do sentido

do homem. Em [o] olho o significado semântico é algo como órgão físico componente

biológico dos homens. A diferença está na substância do signo (diante de significantes iguais

“olho”), portanto, no significado semântico do signo. Palavras homônimas, pois, iguais

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quanto ao significante, foram distinguidas em razão do significado semântico. Não

“existem” sinônimos para o que aqui se defende.

Portanto, signos linguísticos carregam dentro de si um conteúdo, como o conteúdo

de uma caixa. Esse conteúdo tem substância e forma. O signo linguístico propriamente dito

na sua visualização no texto, é dizer, a palavra escrita, é um significante, meio de expressão

que permite articular uma linguagem em uma língua.

Entretanto, sob a perspectiva do seu significado, o signo linguístico “encapsula” um

significado sintático (por exemplo: presente do indicativo) e um significado semântico (por

exemplo: órgão físico componente biológico dos homens). Esse dualismo, como já se disse

reiteradamente, só é utilizado com o fim meramente científico-pedagógico de explicar

didaticamente os fenômenos estudados. Isso não significa que no mundo das coisas e,

também em relação à linguagem em certa medida, possa-se claramente identificar esse

dualismo, máxime quando pensado que a realidade é simbiótica.

No direito, a aplicação dessa diferença marcante do significado dos signos é de uma

utilidade ímpar, pois tem o condão de solucionar diversos problemas possíveis de

interpretação e aplicação do direito.

Veja-se um exemplo: quando um juiz valora uma prova em um processo judicial, ele,

em realidade, valora um signo-gravador na narrativa judicial. Logo, o juiz está valorando

signos linguísticos de um tipo especial, ou seja, signos jurídicos – signos jurídicos de

gravação, eis que a linguagem é jurídica. Suponha-se, então, que ele deve valorar o signo-

gravador de um evento como: a morte de Maria por José.

Nesse exemplo, o juiz deverá se perguntar qual é a substância dessa gravação para

poder aplicar o direito. Ele interpreta o signo-gravador (interpretação autêntica) na narrativa

judicial. Bem, no que diz respeito à substância e é aqui que o tema toca, também, a questão

da diferença entre fato e evento, o que se tem é que essa sequência de signos-gravadores na

narrativa judicial indica que houve um evento na summa realidade em que Maria foi morta

por José – o evento a morte de Maria por José.

Esse evento é a substância do signo-gravador, seu significado semântico. No direito,

também, esse significado semântico, na perspectiva da interpretação e seu resultado na

mente, não está “em presença”, mas sim “em ausência”, eis que é extraído mentalmente do

signo-gravador na narrativa jurídica. No signo-gravador per si, não está o evento a morte

de Maria por José, ali o que está, para usar um termo de Peirce, é o objeto imediato do signo,

sendo o evento mesmo, na summa realidade, seu objeto dinâmico. O conceito de que se trata

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do evento a morte de Maria por José aparece na mente do intérprete, “em ausência” em

relação ao signo-gravador na narrativa jurídica.

No direito, o significado semântico é ainda mais complexo porque ele advém,

também, de uma interpretação autêntica, de uma gravação de ocorrência de um evento que

está em um signo jurídico materializado numa lei – substrato legal posto no sistema pelo

legislador, que é a autoridade gravadora de eventos com repercussão jurídica autorizada pelo

sistemade direito.

Dessa forma, a interpretação somente do signo-gravador do evento não resolve o

problema, é preciso aplicar o direito, o que se faz pela associação da interpretação que se

tem do signo-gravador do evento com a interpretação que se tem de outros signos jurídicos

postos no sistema que trazem a previsão da ocorrência de eventos que se encaixam com

aquele evento do signo-gravador e que são passíveis de implicar consequências de direito.

No caso em questão, o significado semântico sob a ótica dos signos jurídicos escritos

na lei, associados àqueles do signo-gravador, seria o seguinte: a morte de Maria por José é

o tipo penal do homicídio e isso implica uma consequência de privação de liberdade a José.

Apreender o significado semântico de um signo-gravador, portanto, é gravar a norma

jurídica aplicável ao evento que é a substância desse signo-gravador. Veja-se que essas

associações semânticas se fazem “em ausência” na mente do intérprete autêntico. São

associações no eixo paradigmático.

Esse significado semântico, tal qual um conceito que se associa a uma imagem

acústica na mente do juiz, formando a norma jurídica aplicável, é, então, articulado no meio

de expressão escrito (significante) de uma sentença judicial, a qual impõe a consequência

jurídica determinada no sistema de direito positivo.

Veja-se agora que o significado sintático, no caso do exemplo da morte de Maria

por José, importa também, mas sua importância é diferente daquele relativa ao significado

semântico que faz surgir a norma jurídica aplicável.

No caso do significado sintático, a preocupação dirá respeito à validade do signo-

gravador em relação a outros signos no sistema de direito positivo, a questões de

competência e hierarquia das autoridades envolvidas, a vícios de forma relativos ao processo

semeitótico de gravação jurídica a partir das pessoas responsáveis etc. Quer-se saber se o

signo-gravador é válido no sistema, se a pessoa que gravou é competente, se a forma de

gravação não possui vícios etc.

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Outro exemplo pode ser útil, agora tratando do significante do signo na perspectiva

do signo-gravador. Suponha-se que a transferência da propriedade de um imóvel se tenha

pactuado verbalmente entre um vendedor e um comprador. Suponha-se que o comprador

pagou o preço, recebeu as chaves e se imitiu na posse do imóvel. Suponha-se que o vendedor

venda o mesmo imóvel a outro comprador, porém agora mediante uma escritura pública

definitiva de compra e venda do imóvel devidamente registrada no cartório de registro

imobiliário competente.

Nesse caso, o que se tem é um problema de meio de expressão do signo-gravador do

evento aquisição de propriedade de um imóvel. O signo oral sem registro no cartório

competente implicou algo diferente da transferência de propriedade de um imóvel ao

comprador. O signo gravado na escritura pública definitiva de compra e venda registrada no

cartório respectivo implicou, esse sim para o direito, a transferência da propriedade do

imóvel.

Qual a diferença entre um signo e outro? A diferença está no meio de expressão. No

primeiro caso, o significante oral não funciona para significar a transferência de uma

propriedade imóvel. No segundo caso, o significante escrito funciona para significar a

transferência de uma propriedade.

Agora, com base no exemplo do significante, traga-se que, como se disse, o

significado sintático é aquele que dá conta da forma de funcionamento do signo. Meios de

expressão funcionam de uma certa forma – o significante funciona de uma certa forma.

No direito, a forma de funcionamento dos signos tem grande relevância para

solucionar questões de competência, capacidade civil e penal, aspectos relacionados à

validade e eficácia entre outros. Porém, diga-se na sequência, em termos sintáticos, quais

são as formas admitidas de funcionamento dos signos – quais são suas funções.

Segundo Barboza (1807), palavras [signos] podem ter duas funções essenciais: 1)

função nominativa e 2) função conjuntiva ou combinatória. A função nominativa pode ser

um substantivo ou um adjetivo. A função conjuntiva ou combinatória pode ser um verbo

(quando a função combinatória implicar uma relação de identidade), uma preposição

(quando implicar uma relação de determinação) e uma conjunção (quando implicar uma

relação de nexo). A análise aqui é sintática12 (função sintática da linguagem, dos signos).

12 Entende-se que função sintática abarca função morfológica, pois a sintaxe abrange a morfologia.

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Apanhe-se novamente o exemplo da escritura de compra e venda para explorar as

diferenças de função já apontadas: na escritura de compra e venda há a seguinte sequência

de palavras: transferência propriedade. Esses significantes que estão na escritura de compra

e venda funcionam no texto de uma certa forma. Qual sua função? Função nominativa de

nomes substantivos – nomeiam o objeto. Transferência e propriedade são nomes

substantivos e como tais funcionam no texto.

Veja-se mais um exemplo. Suponha-se que na escritura haja a seguinte sequência de

significantes escritos: eu vendedor transferirei a propriedade se houver o pagamento.

Atenha-se somente a transferirei (verbo, função conjuntiva ou combinatória, implicando

relação de identidade) e compare isso com outra sequência de significantes escritos: eu

vendedor transfiro a propriedade. Atenha-se aqui a transfiro (verbo, função conjuntiva ou

combinatória, implicando relação de identidade).

Comparando os dois significantes escritos, o que se tem é que ambos exercem função

verbal (relação de identidade), mas qual é a diferença em termos de significado sintático?

No primeiro caso, trata-se de futuro do indicativo (esse é o significado sintático). A função

verbal é de identidade futura com o objeto. Isso ocorrerá no futuro. No segundo caso, trata-

se do presente do indicativo (esse é o significado sintático). A função verbal é de identidade

presente, ou seja, implica efeitos presentes de identidade com o objeto.

O que quer dizer isso para o direito? Isso quer dizer que o significado sintático da

sequência de signos linguísticos na escritura de compra e venda implicou consequências

completamente diferentes, a depender da função da linguagem e, pois, do significado

sintático que se saca.

No primeiro caso, há ainda uma condição jurídica futura para que o negócio se

aperfeiçoe; há de se pagar o preço. No segundo caso, não há nenhuma condição jurídica para

o negócio, de modo que o resultado é a transferência da propriedade ao comprador

(implicação presente de identidade com o objeto).

Há hic et nunc, nesse caso, eficácia para a transferência da propriedade, eis que

nenhum entrave de condição futura a se perfazer ainda existe para a consumação do direito.

Não há vícios, as partes são capazes, a forma é a prescrita em lei e o objeto a ser transferido

é lícito, ou seja, as condições sintáticas foram preenchidas.

O significado sintático diz com as funções sintáticas da linguagem no texto da

escritura; ele resulta que na mente do intérprete há uma função nominativa (propriedade) e

combinatória de identidade no presente do indicativo (transfiro) com o objeto no exemplo

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dado. Em outras palavras, os significantes da escritura significaram sintaticamente que se

deu uma transferência válida e eficaz de propriedade no presente.

Um negócio que acontece sob condição e um negócio que se aperfeiçoa de pronto

implicam consequências jurídicas completamente diferentes. Em um caso a propriedade foi

transferida e no outro não.

Quando isso se coaduna na mente do intérprete, o que se tem é o significado jurídico

decorrente do significante escrito da escritura pública. Esse significado jurídico é a norma

jurídica e nele há um componente do significado que é semântico e um componente sintático.

Diante do significado semântico e sintático, aqui se enxerga que a norma jurídica

resultante da interpretação dos significantes postos na escritura de compra e venda seria a

seguinte: Se há transferência de propriedade TP de uma imóvel objeto lícito I de um sujeito

capaz S’ a um sujeito capaz S” por meio da forma prescrita em lei da escritura pública F,

então deve ser S’’ o proprietário P de I. Ou, alguma coisa como:

TP&I&S’&S”&F=S”&P&I.

E e T implicam o espaço e tempo do negócio (aspecto temporal). TP implica o nome

do evento que ocorreu – a transferência de propriedade (aspecto semântico), o que implica

inexistência de condição futura. I é o objeto do negócio, que é objeto lícito (aspecto material).

S’ e S’’ são as partes capazes do negócio (aspecto pessoal). F é a forma prescrita em lei para

o negócio ser eficaz (aspecto sintático). P implica a circuntância de ser proprietário, ou seja,

é o evento resultate do evento TP (aspecto semântico). Essa é a norma jurídica do evento

transferência de propriedade de S’ a S’’ e do evento resultante ser proprietário de I como

aqui se enxerga.

Essa norma jurídica é significado semântico e sintático. Somente com a consideração

da sintaxe e da semântica (engloba pragmática) é que se tem a norma jurídica completa na

mente do intérprete. Não basta o evento da transferência ter ocorrido e ser graado, é preciso

que seja válido e eficaz; seja levado a efeito por pessoa capaz, na forma prescrita e que tenha

objeto lícito, além de que não se possam demonstrar vícios de consentimento.

Levam-se em consideração as funções sintáticas (função nominativa, combinatória e

conjuntiva) da linguagem jurídica (significado sintático), bem como o conceito que se

associa no cérebro ao significante escrito (escritura) que é captado pelos órgãos de sentido –

a ideia que surge, o evento operativo ocorrido e inteligido, a substância da gravação jurídica

(significado semântico). Portanto, é o significado semântico e sintático decorrentes de um

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significante que permitem o sentido total do signo jurídico, que é o conceito jurídico, o qual

é a norma jurídica na mente do intérprete (meio psíquico-semeiótico).

Os exemplos podem se seguir infinitamente para se demonstrar a utilidade dos

conceitos de significado semântico e sintático para fins do direito, mas deve-se dar

seguimento ao estudo, de modo que agora quer-se chamar a atenção para um outro ponto

importante que aqui é defendido e agora se reforça.

Esse ponto é de que não existem sinônimos. Signos linguísticos diferentes importam

significados diferentes. Bloomfield (1933, p. 145) posiciona-se exatamente nessa linha:

Nossa assunção fundamental implica que cada forma linguística tem

um constante e específico significado. Se formas são foneticamente

diferentes, supomos que seus significados sejam também diferentes –

por exemplo, que cada um do conjunto de formas como rápido, ligeiro,

célere, veloz, diferem uns dos outros em alguma constante e

convencional característica de significado. Supomos, em resumo, que

não existem realmente sinônimos. Por outro lado, nossa assunção implica

também que se formas são semanticamente diferentes (é dizer, diferentes

em relação ao significado linguístico), elas não são a mesma coisa, mesmo

se parecerem em relação à forma fonética. [...]

Diferentes formas linguísticas, as quais têm a mesma forma fonética (e

diferem, portanto, apenas em relação ao significado) são conhecidas como

homônimos. Já que não podemos com certeza definir significados, não

podemos sempre decidir se uma forma fonética, em seus vários usos, tem

sempre o mesmo significado ou representa um conjunto de homônimos.

(Destacou-se).

Ao se dizer alto, grande e gigante, a diferença de forma (significante) entre esses

signos linguísticos implica diferenças fonéticas entre eles. Se assim o é, é porque também

são diferentes em relação ao significado. No caso de alto, grande e gigante, a diferença está

no significado semântico – não se grava “em presença” das palavras no texto. Isso implica

que eles não significam semanticamente a mesma coisa. Uma pessoa alta não significa o

mesmo que uma pessoa gigante. Os significados semânticos são, pois, distintos. Em relação

ao significado sintático, no entanto, são todos adjetivos.

Veja-se outro exemplo. Ao se dizer para (verbo) e para (preposição), esse signo

linguístico tem igualdade de forma no significante (homônimo), mas seu significado

sintático é diferente; pode ser preposição (isso é “para” você) e pode ser verbo na terceira

pessoa do presente do indicativo (ele para o carro).

Trazendo isso para a problemática de evento e fato, isso quer dizer que evento e fato

não podem ter o mesmo significado, eis que possuem formas (significantes) diferentes como

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no caso de alto, grande e gigante. Isso será estudado com profundidade na Parte 4 deste

trabalho.

Na sequência quer-se ainda percorrer o direito positivo para se demonstrar a força

prescritiva, impositiva, cogente e realizativa dos signos linguísticos dentro do direito.

3.4 Signos Jurídicos, Regras Estruturais da Língua e Função Prescritiva, Impositiva,

Cogente e Realizativa no Plano do Direito

A Constituição Federal de 1988 (“CF/88”) traz, em seu artigo 13, que a língua

portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. Bem, disso decorre uma

conclusão inicial inafastável: falar juridicamente é falar juridicamente na língua portuguesa.

Se somente se pode falar juridicamente no Brasil na língua portuguesa, isso implica

que a gravação em signos na linguagem jurídica deve respeitar as regras estruturais da língua

portuguesa. Não há comunicação jurídica possível sem que a articulação da linguagem

jurídica se realize no meio de expressão da língua portuguesa.

Compreender as regras estruturais da língua portuguesa é tão importante para o

direito que foi o próprio direito que introduziu no ordenamento jurídico, por meio do Decreto

Legislativo 54/95, o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em Lisboa, em

1990.

O Código Civil Brasileiro estabelece, no seu artigo 224, que “Os documentos

redigidos em língua estrangeira serão traduzidos para o português para ter efeitos legais no

País”. A Lei dos Registros Públicos, em seu artigo 148, vai na mesma linha para dizer que:

“Os títulos, documentos e papéis escritos em língua estrangeira [...] Para produzirem efeitos

legais no País e para valerem contra terceiros, deverão, entretanto, ser vertidos em vernáculo

e registrada a tradução”.

Desse modo, tanto é que a linguagem jurídica necessariamente se articula na língua

portuguesa que os documentos jurídicos somente produzirão efeitos de direito se seus

significantes estiverem nessa língua.

Estar o significante na língua portuguesa implica que esses significantes se

submeteram às regras estruturais da língua portuguesa. Lembre-se, como se trouxe

anteriormente, signos não são somente significantes (meio de expressão, palavra escrita),

mas também significado, sendo que esse último é significado semântico e significado

sintático.

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Essa estrutura aparece em qualquer signo que se articula no meio de expressão de

uma língua. Aparece nos signos da língua portuguesa e, necessariamente, nos signos

jurídicos.

A Lei Complementar 95/98, a qual trata das regras de elaboração, redação, alteração

e consolidação de leis, traz:

Art. 11. As disposições normativas serão redigidas com clareza, precisão e

ordem lógica, observadas, para esse propósito, as seguintes normas:

I - para a obtenção de clareza:

a) usar as palavras e as expressões em seu sentido comum, salvo

quando a norma versar sobre assunto técnico, hipótese em que se

empregará a nomenclatura própria da área em que se esteja

legislando;

b) usar frases curtas e concisas;

c) construir as orações na ordem direta, evitando preciosismo, neologismo

e adjetivações dispensáveis;

d) buscar a uniformidade do tempo verbal em todo o texto das normas

legais, dando preferência ao tempo presente ou ao futuro simples do

presente;

e) usar os recursos de pontuação de forma judiciosa, evitando os abusos

de caráter estilístico;

O artigo 11 aqui apresentado traz que as disposições normativas usarão palavras em

seu sentido comum. Que é sentido comum no Brasil? É o sentido convencionado pelas gentes

que falam português no Brasil, é dizer, o sentido comum convencionado pela língua

portuguesa. Ross diz, como já posto acima, que o direito é fático-convencional (ou, como

aqui se defende, mais apropriadamente, eventual-convencional) , de modo que a convenção

das gentes sobre o sentido dos signos é certamente parte integradora da linguagem jurídica,

sob pena de não ser possível a comunicação.

O artigo 11 traz, igualmente, que quando o assunto for técnico a norma utilizará a

nomenclatura técnica. Que é uma nomenclatura técnica? É aquela usada por uma ciência

específica. Na medicina usam-se termos técnicos da medicina, que podem variar em relação

ao sentido comum. Na contabilidade utilizam-se termos técnicos que podem variar em

relação ao sentido comum.

Qual o limite dessa variação? Já se falou exaustivamente que a linguagem técnica de

uma ciência é uma linguagem de gravação ou linguagem gravadora e que a linguagem

gravada é, ao menos no meio de expressão escrito (significante escrito), a linguagem

cotidiana que se articula em uma língua.

Se assim o é, é porque toda linguagem técnica de uma ciência necessariamente tem

um mínimo da linguagem gravada que é a linguagem cotidiana articulada em uma língua.

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Como poderia, por exemplo, fazer-se ciência médica no Brasil, se os escritos não fossem na

língua portuguesa?

Quer parecer inafastável essa premissa: falar13 em qualquer ciência é falar na língua

que permite essa fala. Não existem cientistas que não se expressam; não há comunicação na

afasia. Se não há expressão, não há comunicação e não é possível fazer ciência sem se

comunicar.

Voltando à Lei Complementar 95/98 e ao artigo acima transcrito, diga-se, ainda, que

ele traz palavras como frase, oração, adjetivações, tempo verbal, recursos de pontuação. Que

são esses elementos? São elementos da sintaxe ou morfossintaxe da língua portuguesa,

elementos que dizem respeito ao significado sintático dos signos linguísticos.

Isso confirma, igualmente, que as disposições da lei são redigidas submetendo-se às

regras de estrutura da língua portuguesa. Redigir uma disposição de lei é o mesmo que

escrever em português ou, ainda, usar para redigir tal disposição signos linguísticos

estabelecidos segundo as regras e limites da língua portuguesa.

É por isso que estudar qualquer composição de signos linguísticos, como é o caso do

direito positivo, é estudá-la de acordo com as regras estruturais que permitem sua

articulação, ou seja, as regras estruturais de uma língua.

Desse modo, toda comunicação que se faz de signos linguísticos é estudada, em

algum grau, “pela criação de hierarquias, sistemas hierárquicos que disciplinam a

combinatória dos símbolos conforme gêneros e espécies de compatibilidade e

incompatibilidade, ou seja, conforme uma sintaxe” (FERRAZ JR., 2015, p. 231).

Continua a Lei Complementar 95/98, em seu artigo 11:

II - para a obtenção de precisão:

a) articular a linguagem, técnica ou comum, de modo a ensejar perfeita

compreensão do objetivo da lei e a permitir que seu texto evidencie com

clareza o conteúdo e o alcance que o legislador pretende dar à norma;

b) expressar a idéia, quando repetida no texto, por meio das mesmas

palavras, evitando o emprego de sinonímia com propósito meramente

estilístico;

c) evitar o emprego de expressão ou palavra que confira duplo sentido ao

texto;

d) escolher termos que tenham o mesmo sentido e significado na maior

parte do território nacional, evitando o uso de expressões locais ou

regionais;

e) usar apenas siglas consagradas pelo uso, observado o princípio de que

a primeira referência no texto seja acompanhada de explicitação de seu

significado;” (Destacou-se).

13 Falar no sentido geral de se expressar.

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A leitura de tal artigo traz que a redação de disposições legais deve articular a

linguagem técnica ou comum, de modo a que os objetivos da lei, conteúdo e alcance

pretendidos pelo legislador, sejam compreendidos pelos sujeitos de direito.

Veja-se que a legislação confirma o que aqui se defende: linguagens são articuladas

pelo legislador (sejam elas técnicas ou não). São articuladas com vistas à comunicação. Que

comunicação? Do conteúdo e alcance da disposição legal. De que modo? De modo que sejam

compreendidas pelos sujeitos de direito.

A articulação de linguagens se faz naquela porção do circuito que permite a

associação entre imagem acústica e conceito ou vice-versa na qual está a língua, nos dizeres

de Saussure, conforme já se apontou. É, assim, na língua que essa articulação é possível.

O inciso II do artigo 11 aqui transcrito traz ainda que essa articulação tem uma função

de comunicação do conteúdo e alcance da disposição normativa. Já se disse que todo signo

linguístico e, disposições normativas são também signos linguísticos, tem um conteúdo e

que esse conteúdo é substância e forma.

Qualquer comunicação, assim, quer comunicar um conteúdo. A comunicação

jurídica não é diferente. Há, nessa visão, uma substância e uma forma que se comunicam

pelas disposições legais. O meio de expressão pode ser, por exemplo, a palavra escrita do

texto (significante). O significado é semântico (substância) e sintático (forma).

Assim, a comunicação jurídica terá por fim comunicar um significado semântico

(substância) e um significado sintático (forma). Nesse sentido, há um significado jurídico-

semântico e um significado jurídico-sintático que se quer gravar, eis que todo signo jurídico

tem um conteúdo a ser transmitido.

Qual é o alcance que o legislador pretende dar ao signo jurídico? O alcance é aquele

que a interpretação permitir, cujo fim está na norma jurídica que se grava dos significantes

escritos do direito positivo. Essa norma jurídica é o significado jurídico-semântico e jurídico-

sintático dos significantes jurídicos.

Impregnados no significado, há também os valores que o legislador quer transmitir,

como o valor justiça. Todo significado se produz a partir de um significante e vice-versa. No

direito, como os signos jurídicos estão no texto jurídico, o que se tem é um processo que

começa fisiológico: alguém lê texto, usam-se os olhos para tal, ou seja, imagens acústicas

(significantes) que estão no texto são captadas pelo órgão de visão.

Depois há uma associação de significante jurídico com conceito em um processo

psíquico. Nessa associação, que é justamente a porção do circuito na qual está a língua, se

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dá com um conceito que é o significado jurídico. Como dito, por ser significado pode ser

sintático e semântico, ou jurídico-sintático e jurídico-semântico.

O aplicador do direito ou aquele que interpreta o direito, ao se permitir esse processo

de associação de um significante jurídico a um significado jurídico (conceito), implica que

o que se tem é a produção da norma jurídica. É essa norma jurídica um produto de um

processo fisiológico (ler) e de um processo psíquico (associação de imagem acústica com

conceito).

Quando a autoridade competente interpreta e aplica o direito, ela é orientada por

algumas ideias. O ideal mais caro ao direito é o ideal de justiça. É por esse motivo que a

norma jurídica é também uma crença de justiça, pois que quando se forma é orientada por

esse ideal necessário, verdadeiro norte de todo o direito.

Ademais, deve-se trazer que essa norma jurídica gravada pelo aplicador do direito,

intérprete autêntico do direito, tem um limite. Que limite é esse? Além de ser orientada pelo

ideal de justiça, o limite está na convenção jurídica sobre esse ideal. Esse, igualmente, é o

alcance que busca o legislador, o objetivo de todo e qualquer direito, é dizer, uma convenção.

A convenção é o meio e o fim do direito. A convenção mais cara ao direito é a convenção-

justiça.

Quando um aplicador do direito interpreta e aplica ele também convenciona.

Convenciona o quê? Uma justiça entre as partes no processo. Justiça aqui como ideal

inalcançável, uma mera ilusão, mas necessariamente uma orientação do fenômeno jurídico.

Esse alcance é limitado pela convenção, que leva em consideração muitos outros

ingredientes jurídicos, como as limitações temporais no direito, garantias como direito

adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada, princípios como o da irretroatividade,

anterioridade etc.

Uma coisa é certa, no entanto, onde houver interpretação de signos jurídicos, haverá

um significante jurídico (meio de expressão) e um significado jurídico, sendo que esse

último será jurídico-semântico e jurídico-sintático. Além disso, a articulação (gravação), a

qual pode ser lida aqui como uma forma de interpretação e que permite a associação de

significante e significado ou vice-versa, opera-se na porção do circuito no qual a língua está.

É ela que permite a articulação.

Disso decorre inafastável que signos jurídicos são uma espécie de signos linguísticos,

de modo que, para serem articulados, submeter-se-ão às regras estruturais da língua, que no

Brasil é a língua portuguesa.

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Desse modo, há um outro limite, o que também pode ser chamado de “mínimo

existencial do direito”, que é o limite do mundo sensível, limite ideal de qualquer signo

linguístico. Se “existe” um limite ideal e, parece óbvio que ele “existe”, porque um signo se

grava algo que é experimentado, é porque qualquer linguagem desse algo deve guardar

alguma relação com ele, sendo que essa relação, pelo que aqui se defende, é empírica ou, ao

menos, em algum tempo, empiricamente foi possível por algum sujeito em uma comunidade

de fala.

É aí justamente que aparece o papel essencial da verdade, a qual permite essa

concordância de uma gravação abstrata (ou declaração abastrata como traz Peirce) com um

limite ideal, como já amplamente ressaltado nesse texto. Essa verdade, pelo que aqui se

defende, é ingrediente essencial de qualquer signo jurídico, sob pena de se dizer que mesa é

cadeira e cadeira é mesa, tornando a comunicação inviável no trato humano.

Desse modo, alguma porção de real “há” no signo linguístico e aqui “há” quer dizer

“pode ser gravado”. Como se vem ressaltando, o signo é elemento simbiótico. Além disso,

como já se falou, não existe signo sem objeto, ainda que se considere a “existência” de uma

realidade semeiótica, de modo que um mínimo do real de alguma forma é gravado pelo

signo. A exemplo de um índice da tricotomia peirceana, que como uma foto “grava” somente

uma parte de um cenário paradisíaco, mas que, à evidência, não é todo o cenário, o signo

aparece como uma máquina fotográfica do objeto.

Bem, se o signo linguístico grava uma porção do real e é necessária uma

concordância (verdade), ainda que mínima dessa gravação em relação ao limite ideal, a qual

(concordância) se busca por meio de uma investigação tendente a trazer crença sobre essa

gravação, crença esta sempre atualizável na dinâmica do léxico (inconsciente coletivo de

memórias de uso) das gentes, isso quer dizer que algum toque no mundo sensível é

necessário e, se não ocorrer, ao menos a tendência é que o signo linguístico seja atualizado.

Não é possível dizer que mesa é cadeira e, ainda que se diga, a tendência é que a investigação

atualize essa crença.

Portanto, se signos jurídicos também são signos linguísticos (linguagem gravadora

e linguagem gravada), isso implica que o significado (semântico e sintático) também será

articulado por meio de uma associação que, de alguma forma, tende a uma crença que se

refira a uma gravação de alguma porção do real (da summa realidade).

Parênteses para se explicar o que se quer dizer com léxico, pois o uso é diferente do

que se está habituado. Finch (2000, p. 102) assevera que “léxicos não estão abertos a uma

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visão direta dos linguistas – não podemos abrir nossas mentes para eles olharem dentro.

Portanto, linguistas têm de trabalhar de trás para frente a partir de amostras do uso corrente

da língua e deduzir dessas amostras do que consiste o léxico dos falantes nativos”. Portanto,

o léxico é esse inconsciente coletivo das gentes – o depositório de memórias de uso das

coisas do mundo.

Dito isso e se trazendo o tema agora para a aplicação ao fenômeno jurídico, tem-se

que, no direito, haverá, também, um mínimo de summa realidade, sob pena de a tendência

ser a atualização da crença que se forma. Crença aqui é o mesmo que norma jurídica na

perspectiva do léxico jurídico.

Nesse contexto, partindo do pressuposto que parece aqui inafastável de que qualquer

articulação jurídica deve necessariamente se fazer na língua portuguesa e que no direito

articulações têm funções prescritivas de condutas, impositivas de consequências jurídicas,

cogentes de seus efeitos e realizativas para o surgimento de direitos e obrigações, parece

certo concluir que a língua, para o direito, é um meio de expressão que tem, igualmente, uma

função prescritiva, impositiva, cogente e realizativa.

A função prescritiva da linguagem jurídica salta como óbvia para qualquer jurista,

eis que é a propriedade da linguagem jurídica de determinar condutas a serem seguidas

pelos sujeitos de direito.

A função impositiva, igualmente, aparece como evidente, eis que consiste no

predicado da linguagem do direito de forçar consequências jurídicas, previstas no sistema

de direito, em razão do não seguimento pelos sujeitos de direito das determinações de

condutas postas no sistema.

A função cogente é uma função de validade e eficácia da linguagem jurídica no

sentido de validar e aperfeiçoar as previsões no sistema em direção potencial aos sujeitos

de direito.

Por fim, a função realizativa, com base em Austin, como já mencionado, dá razão ao

surgimento de direitos e obrigações por conta de uma ação que se toma. É uma função da

linguagem jurídica que tem como efeito realizar uma ação e fazer surgir direitos e

obrigações.

Essa função da linguagem jurídica, como traz Olivecrona, o que já foi mencionado,

não implica na gravação de eventos do mundo, eis que não descreve nada. Seu propósito é

estabelecer uma nova relação jurídica; são “realizativas”, o que vem da circunstância de que

ao formulá-las ações são “realizadas, como no exemplo de quando um homem diz “sim”

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perante um juiz de paz em uma cerimônia de casamento, aparecendo daí todas as obrigações

e direitos decorrentes desse evento, como já se mencionou acima.

Todas essas funções somente são possíveis porque se fazem na porção do circuito da

mente que está a língua; são funções de linguagem e aparecem atreladas à submissão dos

sujeitos de qualquer linguagem às regras estruturais das línguas, de onde surge a importância

ímpar da sintaxe gramatical para entender os fenômenos, no que se inclui o fenômeno

jurídico.

Na sequência demonstrar-se-á, também, a importância da sintaxe gramatical, aqui

englobando o significado sintático de todo signo linguístico, e o texto jurídico é composto

deles, para fins da interpretação dos signos jurídicos.

3.5 Papel da Sintaxe Gramatical para Fins da Interpretação das Regras de Direito

Principie-se pelo exemplo em que o legislador grave o seguinte: “auferir cro tributo

estado-isco”. Que quer significar juridicamente os significantes trazidos? Bem, “auferir” é

um verbo, “cro” é uma partícula não distinguível, pois não tem um significado mínimo,

“estado” é um nome substantivo e “-isco” é outra partícula que não tem significado mínimo,

eis que é não distinguível.

Diga-se, então, que o legislador grave o seguinte: “auferir lucro implica o pagamento

de tributo ao estado-fisco.” Aqui há um significado sintático completo da sequência de

significantes escritos, eis que o uso competente da língua portuguesa foi aplicado com

correção. Disso uma conclusão fulminante: Não há efetividade do direito sem o uso

competente da língua portuguesa, de modo que o significado jurídico (sintático ou

semântico) depende, em alguma medida, do significado convencionado dentro da língua

portuguesa pelos seus falantes, tanto em relação à forma linguística (significado sintático),

como em relação à substância linguística (significado semântico).

Poder-se-ia obstar o que foi dito com base na própria Lei Complementar 95/98, em

relação ao seu artigo 18, o qual traz: “Eventual inexatidão formal de norma elaborada

mediante processo legislativo regular não constitui escusa válida para o seu

descumprimento”, além do que a Lei de Introdução ao Código Civil, em seu artigo 3º, dispõe

que: “Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece”.

Bem, em relação ao tema, primeiro é necessário compreender a extensão do

significado de “inexatidão formal”. Que inexatidão formal é essa? Seria o legislador escrever

“ser proprietário imóvel no territorio urbao” uma inexatidão formal? Ou seria escrever “presr

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servios no municio de...” uma inexatidão formal? Há um limite para se permitir a escusa

diante de uma inexatidão formal ou em relação a qualquer inexatidão formal não cabe

escusa?

A resposta parece muito simples, inexatidão formal que não escusaria alguém de

cumprir a lei é aquela que permite, de algum modo, dentro da língua portuguesa, levar a um

interpretante que se fundamente em uma ideia possível dentro da experiência sensível do

falante da língua portuguesa no Brasil. Já se disse acima que a ordem natural das coisas é

implacável.

Assim, “ser proprietário imóvel no territorio urbao” permite identificar o evento

gerador da obrigação de pagar o IPTU, mas “presr servios no municio de...” não permite, a

não ser com muita clarividência, identificar o evento gerador da obrigação de pagar o ISS.

Portanto, os efeitos jurídicos dos textos legais, decorrem, em algum grau, do uso

competente da língua portuguesa nos próprios textos legais e, pois, de uma relação possível

com a experiência sensível dos falantes dessa língua no Brasil.

Aqui um desafio: quer-se ver alguém gravar juridicamente no Brasil com efeitos

jurídicos senão na língua portuguesa? Assim, fácil notar a importância do estudo da

semeiótica (no sentido de estudo amplo dos signos, abarcando gramática pura, lógica e pura

retórica), semiologia (estuda a vida dos signos no seio da vida social, em que eles constituem,

bem como as leis que os regem), da linguística (estuda a língua enquanto sistema especial

no conjunto de sistemas de linguagem) e, englobada, de alguma forma nas anteriores, a

gramática (estuda, entre outras coisas, os aspectos sintáticos dos signos linguísticos na

sequência deles em um texto) para fins da compreensão adequada do fenômeno jurídico, o

qual, ao cabo, é também linguagem.

Em resumo, exsurge inevitável, para conhecer com ares de amplitude o fenômeno,

levar em consideração no estudo que se desempenhe, como traz Morris já citado, aspectos

sintáticos, semânticos e pragmáticos.

É por isso que se diz, como já se disse, que a língua tem no direito, igualmente, uma

função prescritiva de comportamentos desejáveis, impositiva de consequências jurídicas aos

infratores, cogente de validade e eficácia e realizativa de ação para surgir direitos e

obrigações. Os aspectos sintáticos, semânticos e pragmáticos estão impregnados nas funções

da linguagem jurídica e é na língua, mas não só nela, também na vontade das gentes, que o

substrato deste estudo se encontra.

Veja-se o seguinte julgado que confirma esse entendimento:

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199

APELAÇÃO CRIMINAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO – TRÁFICO DE

DROGAS – MANTIDA DESCLASSIFICAÇÃO DE POSSE DO

ENTORPECENTE PARA USO – IN DUBIO PRO REO –

IRRELEVÂNCIA DA CONFISSÃO EXTRAJUDICIAL DE INDÍGENA

QUE NÃO FALA A LÍNGUA PORTUGUESA E NÃO FOI ASSISTIDO

POR INTÉRPRETE – POSSÍVEIS TESTEMUNHAS NÃO

ARROLADAS PARA OITIVA JUDICIAL – AUSÊNCIA DE

PETRECHOS NA RESIDÊNCIA DO ACUSADO – RECURSO NÃO

PROVIDO. O decreto de condenação impõe, como imperativo ético-legal,

a plena convicção e não meros indícios. Deve ser mantida a

desclassificação da imputação do crime de tráfico de drogas para posse

para uso se as possíveis testemunhas da venda, líderes da aldeia indígena,

nem sequer foram arroladas para serem ouvidas em juízo e não havia

petrechos na residência do réu que indicassem o comércio ilícito. É

irrelevante e não admitida nem mesmo como indícios, a confissão

extrajudicial redigida em língua portuguesa sem assistência de

intérprete ao réu indígena que não entende referido idioma. Recurso

não provido. (TJ-MS - Apelação APL 00011610220148120016 MS

0001161-02.2014.8.12.0016, Data de publicação: 29/03/2016). (Destacou-

se).

Não se admite em direito, mesmo em língua portuguesa, confissão de pessoa que não

é falante da língua portuguesa, ou seja, que não entende referido idioma. Pois bem. Se não

há efeitos jurídicos para documento no vernáculo, produzido a partir dos dizeres de alguém

que não é falante da língua portuguesa, eis que não entende essa língua, como no caso do

índio acima, é porque o uso competente da língua portuguesa é fundamento primeiro e

irremediável para produção de efeitos jurídicos.

Aqui não se está a falar que, por não conhecer o idioma, se possa praticar crimes.

Não há de se confundir a ocorrência com a gravação. O que se quer dizer é que a gravação

será viciada se não for produzida mediante uma gravação da linguagem por pessoa que não

fala o português. Assim, é o caso do intérprete, que faz o medius entre a linguagem do falante

de outra língua para a linguagem dos falantes do português. Não é o juiz de direito também

um intérprete que faz a gravação?

Não se pode escusar o conhecimento da lei por se falar outra língua. Não é isso. O

que se escusa é a prova acerca de uma ocorrência, acerca de um evento, eis que um signo-

gravador em língua estrangeira não tem efeitos para o direito. Por que não tem efeitos? Pela

simples circunstância de que essa linguagem não pode ser articulada por uma mente que fale

somente português e isso quebra o contínuo da comunicação. Se não há comunicação

jurídica possível, não é possível se interpretar e aplicar o direito.

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200

A língua tem, assim, a função prescritiva, impositiva, cogente e realizativa já

destacadas. Sem ela a comunicação jurídica não se perfaz e as funções da linguagem jurídica

não podem se estabelecer.

Na próxima parte desse trabalho, tratar-se-á do tema específico do fato jurídico, o

qual, obviamente, entrelaça-se com tudo que já foi dito até agora, mas nas linhas vindouras,

o que se provará é que há uma diferença entre evento e fato que deve ser destacada para que

se conheça verdadeiramente o fenômeno jurídico.

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201

PARTE 4 – EVENTO VERSUS FATO NO PALCO DO DIREITO

Para começar o estudo é preciso que se leve a cabo uma primeira desconstrução.

Quando se fala em fato jurídico, o que se tem, em resumo, é um evento da summa realidade,

o qual, gravado juridicamente, é desencadeador de efeitos jurídicos, ou seja, de efeitos que

sua ocorrência extrajurídica gravada implicará intrajuridicamente.

Diga-se, de início, que se entende que a expressão fato jurídico é uma expressão

equívoca, eis que o significado de fato atribuído para fins jurídicos não corresponde, ao

menos linguisticamente, ao que se deveria atribuir pelo uso competente da língua.

Desse modo, o estudo desenvolvido nas linhas seguintes, parte de como a legislação,

jurisprudência e a dogmática têm tratado fato e fato jurídico, sem que isso implique em uma

concordância com o uso dessa terminologia, tanto é assim que, ao final, far-se-á uma crítica

a tal nomenclatura.

Diante disso, traga-se ainda, que o que se pretende lograr neste capítulo é, pois, um

estudo acerca: a) do modo como lei e jurisprudência têm tratado fato e fato jurídico; b) da

maneira como a dogmática jurídica relaciona-se com o tema; c) das diferenças potenciais

entre fato jurídico, fato e evento; d) da aplicação dessa diferenciação no que diz respeito à

linguagem das provas; e) do que se compreende como a correta terminologia que deveria ser

utilizada tanto na legislação e jurisprudência, como na dogmática jurídica.

4.1 Fato Jurídico na Lei e Jurisprudência

No direito civil, o Código Civil Brasileiro traz dispositivo que fala do fato jurídico:

TÍTULO V

Da Prova

Art. 212. Salvo o negócio a que se impõe forma especial, o fato jurídico

pode ser provado mediante:

I - confissão;

II - documento;

III - testemunha;

IV - presunção;

V - perícia. (Destacou-se).

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202

No direito penal, o Código Penal Brasileiro fala de fato juridicamente relevante:

Falsidade ideológica

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele

devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa

da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação

ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:

Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e

reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.

Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime

prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de

assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.

(Destacou-se).

No direito constitucional, a Constituição Federal de 1988 (“CF/88”) fala de fatos

pura e simplesmente, como nos seguintes trechos:

Seção VII

DAS COMISSÕES

Art. 58. O Congresso Nacional e suas Casas terão comissões permanentes

e temporárias, constituídas na forma e com as atribuições previstas no

respectivo regimento ou no ato de que resultar sua criação.

[...]

§ 3º As comissões parlamentares de inquérito, que terão poderes de

investigação próprios das autoridades judiciais, além de outros previstos

nos regimentos das respectivas Casas, serão criadas pela Câmara dos

Deputados e pelo Senado Federal, em conjunto ou separadamente,

mediante requerimento de um terço de seus membros, para a apuração

de fato determinado e por prazo certo, sendo suas conclusões, se for o

caso, encaminhadas ao Ministério Público, para que promova a

responsabilidade civil ou criminal dos infratores. (Destacou-se).

Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:

[...]

§ 2º As causas intentadas contra a União poderão ser aforadas na seção

judiciária em que for domiciliado o autor, naquela onde houver ocorrido

o ato ou fato que deu origem à demanda ou onde esteja situada a coisa,

ou, ainda, no Distrito Federal. (Destacou-se).

No processo civil, o Código de Processo Civil Brasileiro traz os seguintes trechos

que tratam do fato ele mesmo:

Da Responsabilidade das Partes por Dano Processual

[...]

Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que:

I - deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato

incontroverso;

II - alterar a verdade dos fatos; [...]. (Destacou-se).

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203

Do Perito

Art. 156. O juiz será assistido por perito quando a prova do fato

depender de conhecimento técnico ou científico. (Destacou-se).

Dos Requisitos da Petição Inicial

Art. 319. A petição inicial indicará:

[...]

III - o fato e os fundamentos jurídicos do pedido; [...]. (Destacou-se).

No direito tributário, o Código Tributário Nacional traz a expressão “fato gerador”:

Art. 4º A natureza jurídica específica do tributo é determinada pelo

fato gerador da respectiva obrigação, sendo irrelevantes para qualificá-

la:

I - a denominação e demais características formais adotadas pela lei;

II - a destinação legal do produto da sua arrecadação. (Destacou-se).

Dos trechos de direito positivo acima transcritos, algumas conclusões podem ser

alcançadas. A primeira delas diz respeito à circunstância de que fato é uma realidade plural

sob a perspectiva da linguagem.

Quando se diz “apurar fato determinado”, “fato que deu origem à demanda”, “fato

juridicamente relevante", o que se tem é uma realidade plural, eis que, se há que se “apurar

um fato” ou se há “um fato que dá origem” a algo jurídico, é porque esse fato de que se fala

não é jurídico, mas sim algo que implica efeitos de direito, mas que está fora do direito

propriamente dito. Trata-se de algo na summa realidade.

Uma segunda conclusão é de que, quando se fala em “alterar a verdade dos fatos” ou

“alterar a verdade de fato juridicamente relevante”, o que se está a fazer é submeter esse fato

extrajurídico a um juízo de veracidade.

Se assim o é, o que se tem é que ao fato, de uma forma ou de outra, uma verdade

deve ser reconhecida, pois de que valeria o tipo penal do crime de falsidade ideológica se

não houvesse a ocorrência de uma “alteração da verdade acerca de um fato juridicamente

relevante” ou ainda, quando estaria presente a litigância de má-fé, “se não se alterasse a

verdade dos fatos?”.

Aqui uma pausa para uma pergunta: que verdade é essa que, se alterada, gera efeitos

jurídicos como no caso do crime de falsidade ideológica e no caso da litigância de má-fé?

Só pode ser, dentro do que aqui se defende, uma verdade sobre uma summa realidade, do

que decorre que alterar uma verdade é o mesmo que falsear sobre uma summa realidade.

Sobre o tema, vejam-se os seguintes julgados:

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204

PENAL. APELAÇÃO. CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA (CP,

ART. 299). AUSÊNCIA DO ELEMENTO SUBJETIVO ESPECÍFICO

DO TIPO. INTENÇÃO DE ALTERAR A VERDADE DE FATO

JURIDICAMENTE RELEVANTE AFASTADA PELO CONJUNTO

PROBATÓRIO. AUSÊNCIA TAMBÉM DO DOLO GENÉRICO,

CONSISTENTE NA VONTADE DE FAZER DECLARAÇÃO FALSA.

HIPÓTESE, OUTROSSIM, EM QUE TAL DECLARAÇÃO NÃO

TINHA NOCIVIDADE EFETIVA OU POTENCIAL CONTRA

TERCEIROS, NEM CRIAVA OBRIGAÇÃO OU ALTERAVA A

VERDADE SOBRE FATO JURIDICAMENTE RELEVANTE.

ABSOLVIÇÃO QUE SE IMPÕE. SENTENÇA REFORMADA.

RECURSO PROVIDO. 1. "Não se configura o crime de falsidade

ideológica, portanto, quando se trata de falsidade sobre fato

juridicamente irrelevante, inócuo, que não contém nocividade efetiva

ou potencial. Inexistindo, em tese, a possibilidade de ofensa a direito

alheio, não se configura o crime." (MIRABETE, Julio Fabbrini. Código

Penal Interpretado. 4 ed., São Paulo: Editora Atlas, 2003, p. 1935) 2. "... o

crime previsto no art. 299 do Código Penal exige o dolo específico

consistente na vontade de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a

verdade sobre fato juridicamente relevante. Deste modo, o falso ideológico

que deixe de acarretar qualquer das três situações mencionadas deve ser

considerado penalmente indiferente." (TJPR - Apelação Criminal 549166-

1, Acórdão 24279, 2ª Câmara Criminal, Rel. Des. Lidio José Rotoli de

Macedo, julg. 30.03.2009). (Destacou-se).

RECURSO ELEITORAL. PROPAGANDA ELEITORAL IRREGULAR.

POSTES DE ILUMINAÇÃO PÚBLICA. NÃO CONFIGURAÇÃO.

PROPRIEDADE PRIVADA. ELETRIFICAÇÃO RURAL.

CONDENAÇÃO EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. VERDADE DOS

FATOS ALTERADA. RECURSO CONHECIDO E NÃO PROVIDO. A

documentação inicialmente acostada pelas partes tornou desnecessária a

produção de outros elementos probatórios. Não há que se falar em

cerceamento do direito de defesa ou em inobservância do devido processo

legal. Preliminar afastada. O ângulo em que foram tiradas as fotografias

poderia levar o magistrado de piso a julgar procedente a representação

eleitoral por propaganda irregular. E tal fato só não aconteceu uma vez

que um servidor dirigiu-se ao local e constatou que, de fato, a placa de

propaganda encontrava-se afixada em um poste de eletrificação rural,

no interior de uma propriedade privada e não pertencente à rede

pública de iluminação. A intenção de induzir a erro o magistrado

sentenciante, com a alteração da verdade dos fatos e o objetivo de

prejudicar os candidatos adversários impõem a manutenção da

condenação em litigância de má-fé. Recurso conhecido e improvido.

(TRE-ES - RECURSO ELEITORAL RE 32534 ES, Data de publicação:

07/11/2012). (Destacou-se).

Em relação ao julgado de direito penal, referente ao crime de falsidade ideológica, o

que se verifica é que, somente se configura tal crime, quando estiver presente uma alteração

da verdade sobre fato nocivo a outrem ou capaz de afetar direito alheio. Para o direito penal,

pois, somente será fato passível de gerar efeitos jurídicos aquele que puder causar prejuízo

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205

a outrem (a direito subjetivo). É a verdade sobre esse fato que deve ser alterada para que o

tipo penal se realize.

No caso de direito eleitoral, a alteração da verdade sobre suposto fato de propaganda

eleitoral irregular é que implicou litigância de má-fé, eis que comprovou o servidor,

dirigindo-se ao local do fato, que o fato não era o fato narrado pelo litigante na ação

promovida, de modo que este alterou verdade sobre fato, alteração de verdade sobre fato esta

que implica efeitos jurídicos (litigância de má-fé).

Os julgados demonstram que o fato é, como se disse, uma dualidade, eis que sua

apuração demanda a verificação de uma summa realidade (como no caso do servidor

dirigindo-se à propriedade para comprovar a não ocorrência da propaganda eleitoral

irregular), a qual se diferencia daquela gravada juridicamente para irradiar efeitos de direito.

Dentro do realismo, que aqui se defende, esse fato juridicamente relevante/que

implica efeitos jurídicos é aquele que se submete a uma verdade, a qual “é aquela

concordância de uma declaração abstrata com o limite ideal em direção ao qual uma

interminável investigação tenderia a trazer uma sempre falível crença científica” (CP 5.565).

Compreendendo novamente o que Peirce quer transmitir, o que se tem, diante da

interpretação que aqui se faz, é que: a) declaração abstrata, para coadunar com a

nomenclatura aqui utilizada, é uma gravação (Peirce diz representação) de uma porção da

summa realidade, ou seja, uma sequência de signos que grava uma porção da summa

realidade; b) limite ideal é a própria summa realidade com a qual a declaração abstrata quer

concordar na gravação, eis que o limite de uma ideia (que é o fundamento do signo) é a

própria summa realidade; c) investigação é o mecanismo baseado na experiência, em relação

ao qual se pretende apreender esse limite ideal. Quanto mais se experimenta uma summa

realidade (limite ideal), mais fidedigna é a gravação de alguma porção do limite ideal. É por

isso que a investigação é interminável, eis que sempre haverá uma faceta do real a ser

percebida; d) crença científica é objetivo buscado (algo como um ideal) pelo interminável

mecanismo de investigação. Quanto mais se experimenta o real (limite ideal), maior a

tendência de se alcançar a crença científica sobre o real. A crença científica é sempre falível,

pois que a summa realidade é gravada em uma sua porção em um processo de gravação ad

infinitum; e) verdade é justamente é o operador lógico (peirceano) que permite a gravação

com o limite ideal. A verdade é, pois, esse ponto de tangência que toca e, tocando, se

entrelaça, com o limite ideal (summa realidade).

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O que deve ser ressaltado é que, para Peirce, a investigação que permite a

concordância entre declaração abstrata (ou, como aqui se defende, gravação abstrata) e

limite ideal, deve ser científica, pois que a crença que se alcança também é científica.

Investigação científica é aquela que pode ser levada a efeito por uma mente científica,

capaz de uma inteligência científica. Essa mente científica, reforce-se, segundo Peirce (CP

2.227), é uma mente que aprende com a experiência, o que exclui “pensamentos intuitivos,

de omnisciência divina, os quais suplantariam a razão”.

Trazendo tudo isso para o direito, o que se tem é que declaração abstrata é a

declaração do legislador (aqui chamada de gravação ou signo-gravador jurídico), ou seja,

aquela que se entrelaça com a summa realidade eleita pelo legislador como passível de

produzir efeitos de direito.

Limite ideal é, justamente, o limite da ideia que é fundamento do signo jurídico ou

sequência deles, ou seja, a própria summa realidade que o legislador grava como passível de

gerar efeitos jurídicos.

Investigação é a investigação da ocorrência ou não do evento da summa realidade

por autoridades jurídicas (aqui chamada de “investigação jurídica”). Ela é diferente da

investigação científica, eis que o grupo de mentes de perquirição da summa realidade

prevista na gravação jurídica não é um grupo de mentes científicas, mas sim um grupo de

mentes jurídicas. Está próximo com o que o promotor de justiça pode fazer e o delegado de

polícia faz no direito penal. Quando uma autoridade competente interpreta o direito ela

também, em certa medida, está apurando a ocorrência de um evento que implica efeitos de

direito.

Crença é o que se quer alcançar com a investigação jurídica, o que se obtém por

meio de uma gravação. Portanto, para o direito, é crença jurídica e não científica, eis que o

grupo de mentes que a perquiri, como se disse, é jurídico e não científico. É por isso que

essa crença, para o direito, leva em consideração outros valores, os quais são diferentes dos

valores do cientista. Toda mente jurídica também deveria ser científica, no sentido de se

neutralizar de pensamentos intuitivos ou relacionados à omnisciência divina, porém, a mente

jurídica é mais que científica, ela é algo como científico-jurídica, eis que se preocupa,

principalmente, com um ideal muito caro ao direito, que é o ideal de justiça. Essa crença

jurídica é, em realidade, a norma jurídica que se atinge por meio da investigação jurídica e

interpretação do direito.

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Em resumo, essa crença jurídica que se busca sobre uma ocorrência na summa

realidade passível de efeitos jurídicos, é uma crença de justiça sobre essa ocorrência.

Lembrem-se, porém, que, a exemplo da crença científica, a crença de justiça é também

sempre falível, pois que inalcançável é a ocorrência na summa realidade.

Verdade é verdade jurídica, ou seja, o operador lógico (lógica peirceana) que

permite o entrelaçamento da gravação jurídica (do legislador) com alguma porção da summa

realidade em uma ontologia indireta que é possível a partir da investigação sempre falível

jurídica sobre o limite ideal.

No direito, essa gravação que se faz possível por conta do operador lógico (lógica

peirceana) está próxima do que a dogmática jurídica chama de “aplicação” do direito, é dizer,

o que a autoridade jurídica faz quando “aplica” o signo-gravador jurídico a algum evento

ocorrido na summa realidade passível de gerar efeitos de direito, conforme gravação em

outro signo-gravador do legislador.

Aqui “aplicação” seria algo muito próximo de interpretação, eis que, para aplicar,

deve-se interpretar. É a atividade do juiz de direito, mas também do fiscal fazendário quando

lança um tributo.

Assim, existiria uma gravação (crença) jurídica que se forma por conta da

interpretação jurídica (esta equivalente a uma forma de investigação sobre a ocorrência de

um evento passível de efeitos jurídicos), sendo esta gravação jurídica a própria norma

jurídica gravada na porção no interpretante na tríade peirceana. A gravação jurídica deve

ser visualizada na sua dupla porção de signo-gravador e interpretante-gravação-jurídico.

Além disso, essa crença jurídica ou norma jurídica gravada da interpretação seria

aplicada, o que equivale a uma nova gravação, permitida pelo operador lógico (lógica

peirceana), que é a verdade jurídica.

Diante disso, uma conclusão fulminante: no direito o que prevalece não é a justiça,

mas sim a verdade jurídica da gravação, a qual se refere à aplicação do direito. Esse ideal

de justiça do direito é, tal qual a crença científica (uma espécie de gravação científica), para

aonde tende a investigação jurídica, mas não o resultado que se obtém da aplicação do direito

(gravação jurídica do legislador entrelaçando-se com o limite ideal jurídico gravado pela

investigação jurídica). Incidência jurídica é espécie de entrelaçamento, quiasma, coito.

Por que é assim? É assim porque a justiça, como qualquer ideal, é inalcançável e, se

assim o é, é porque não pode ser perfeitamente gravada num signo de direito. É o mesmo

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que dizer que não é possível uma doutrina perfeita, como traz Peirce (CP 5.566), eis que o

summum bonum não pode ser inteiramente descrito.

Logo, o que se tem, também juridicamente, é uma concordância (no sentido de

aplicação), ou seja, o que se alcança é uma verdade, a qual, por assim o ser, é absolutamente

falível. A questão então é também interpretativa, partindo do pressuposto que para aplicar

deve-se interpretar? Aqui se defende justamente esse ponto de vista.

Se a problemática, pois, é também a interpretação do direito, uma pergunta que cabe

aqui é quem tem a última palavra em termos de interpretação? Bem, no sistema brasileiro

uma resposta apressada poderia dizer que a última palavra é do Supremo Tribunal Federal,

eis que das suas decisões não se pode recorrer a nenhuma outra corte no país.

Parece ser acertado dizer que o interpretante final (opinião final como diz Peirce) é

da Suprema Corte realmente, ou seja, a verdade que prevalece no sistema jurídico brasileiro

seria a verdade (aplicada) da Suprema Corte; é essa concordância da qual não se pode mais

recorrer para se alcançar outra concordância.

Porém, leis não são elaboradas pelo legislativo, que é formado por representantes

eleitos pelo povo brasileiro? Bem, se assim o é, é porque há também um limite para a verdade

alcançada pelo Supremo Tribunal Federal.

Esse é o princípio da legalidade, diante do qual não é possível uma aplicação do

direito que não seja baseada no direito. É dizer, a Suprema Corte não pode decidir alheia à

lei ou, ao menos assim deveria ser.

Nesse contexto, se a lei é o limite da verdade da Suprema Corte, isso quer dizer que,

de uma forma ou de outra, esse limite encontra outro limite, eis que, como já se disse, não é

possível ao legislador gravar juridicamente eventos que irradiarão consequências jurídicas

sem que esses eventos sejam eventos que também possam, de alguma forma, ser gravados

na linguagem cotidiana.

A crença jurídica como ideal para a qual tende a investigação jurídica não pode fugir

a uma experiência sensível de uma summa realidade que possa, por sua vez, ser gravada na

linguagem cotidiana. Se pode ser gravada, é porque concorda com um limite ideal. Qual

limite ideal? Aquele que a investigação na experiência tenderia a trazer crença.

É por isso que o que se repete aqui a todo o tempo é que a orientação deve ser

objetiva, ou seja, deve-se dirigir para aonde os signos levam na concordância com o limite

ideal. Isso equivale a dizer que o realismo in re platônico, o realismo aristotélico, o realismo

escotista, o realismo empírico kantiano e, principalmente, o realismo peirceano, também

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numa correlação com Merleau-Ponty, inequivocamente, em algum grau, devem suportar os

estudos jurídicos, a interpretação e a aplicação do direito.

Em outras palavras, a interpretação da Suprema Corte depende, de alguma forma, de

uma interpretação que se baseia em algo convencionado na linguagem das gentes e articulada

nela também. Depende, em última instância, do léxico, desse inconsciente coletivo (memória

de uso das gentes) sobre a summa realidade. É, pois, objetivamente orientada. Como já se

colocou que que disse Ross, o direito é fático-convencional ou como pondera Pound, é um

instituto social.

Por onde quer que se vá, retornar-se-á a esse ponto, o ponto de toque necessário com

o mundo sensível que pode ser gravado na convenção das gentes. Poder-se-ia dizer, no

entanto, que, por vezes, a Suprema Corte interpreta e aplica o direito, mas a verdade jurídica

que emerge não é compossível com a summa realidade, não concordando com a convenção

das gentes sobre ela e, pois, com a linguagem cotidiana, o que envolve os ideais buscados

pelos membros de uma comunidade de fala.

Esse caso é, realmente, de possível ocorrência, e pior, ocorre o tempo todo. Ainda

assim, pelo que aqui se defende, não rui a proposta desse trabalho. Não rui por um motivo

muito simples: a investigação jurídica, a qual permitirá, em última instância, uma aplicação,

a qual decorre de uma interpretação, é também de certa forma interminável e a crença

jurídica que se alcança sempre falível.

Isso não quer dizer que o processo judicial não termina, ou que não existem

limitações temporais no direito (prescrição, decadência, preclusão etc.). Isso quer dizer que

o grupo de mentes jurídicas poderá algum dia mudar de ideia e, fatalmente essa mudança

terá por base uma investigação “mais” verdadeira dos limites ideais consagrados pelo direito

como passíveis de consequências também de direito.

A verdade da Suprema Corte também é uma verdade sempre falível e temporária,

algo como se o jogo do direito estivesse sempre com o cronômetro correndo mesmo quando

se tem a ilusão (e é ilusão mesmo!) de que o processo judicial acabou.

O cronometro continua correndo até que um novo grupo de mentes jurídicas mude

de ideia e, que dessa forma, esse novo interpretante se sobreponha ao anterior, ou para seguir

a nomenclatura desse trabalho, que seja possível uma nova gravação no signo jurídico. A

Suprema Corte também faz isso com alguma frequência. Essa ideia do justo coaduna com a

ideia do jogo que acaba, mas que o cronômetro continua correndo. O ideal de justiça tem

sempre seu cronômetro correndo.

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Aqui resta claro que o tema da investigação sobre eventos do mundo é primordial na

dinâmica do fenômeno jurídico. Volte-se a ele para dizer que é a linguagem jurídica sobre

esses eventos é que fara o ideal de justiça ser alcançado ainda que de maneira falível.

Isso se deve à circunstância de que a linguagem jurídica é de gravação, o que implica

dizer que gravar juridicamente é gravar juridicamente dentro de uma língua, de modo que

há para o direito uma linguagem gravada (extrajurídica), ou seja, a linguagem ordinária que

se articula por meio da expressão de uma língua.

Tanto é a linguagem jurídica de gravação que o Código de Processo Civil, conforme

transcrito anteriormente, fala que o juiz será assistido por perito quando a prova do evento

[fato] depender de conhecimento técnico ou científico. Por que isso? Porque existe uma

linguagem técnica gravada (extrajurídica) sobre a qual a linguagem do direito deverá se

“debruçar” para apreender, na extensão necessária, o evento relevante para fins jurídicos.

Nesse contexto, suponha-se que um perito contábil tenha de verificar, em um caso

concreto, se na prática uma determinada empresa omitiu receitas, gerando, dessa forma, a

obrigação de pagar tributo não declarado ao Estado-fisco.

Se o perito gravar contabilmente (linguagem contábil) que no caso houve omissão

de receitas, o juiz acatará o laudo pericial ou assim deveria fazer, o que gerará efeitos

jurídicos específicos, quais sejam, a obrigação de pagar tributo sobre a receita não declarada

e a aplicação das penalidades decorrentes da infração apurada.

É verdade que o juiz pode não aceitar o laudo pericial e não está juridicamente

adstrito a ele, mas os peritos soem ser peritos do juízo, como se diz na práxis jurídica, de

modo que, se ao próprio juiz cabe a admissão da prova pericial e a convocação de um perito

do juízo, é porque a “linguagem técnica” da perícia será fundamento relevante para o juiz

descobrir a verdade sobre a omissão de receitas, conforme exemplo trazido.

Não faz muito sentido o contrário, ou seja, o juiz admitir a prova pericial, convocar

o perito do juízo, e não apreciar o laudo pericial para formação de sua convicção sobre a

omissão de receitas no caso, eis que essa “linguagem técnica” o juiz não possui, motivo pelo

qual, para descobrir a omissão de receitas, precisa de uma linguagem diferente da linguagem

jurídica, ou seja, precisa da linguagem contábil do perito.

Nesse caso, aceitando o juiz o laudo pericial sobre a omissão de receitas, o que está

a fazer é gravar dentro do direito uma linguagem técnica sobre um evento, linguagem esta

que, uma vez gravada, se torna jurídica (signo jurídico gravador). Há a gravação da

linguagem técnica na linguagem jurídica, mas a descoberta do evento passou pela linguagem

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técnica do perito, pois que o juiz precisou dessa linguagem técnica para descobrir o evento

da omissão de receitas.

A verdade sobre o evento da omissão de receitas no caso narrado foi, então, ao fim,

descoberta por um profissional que a gravou ao juiz, pelo laudo pericial, uma gravação

técnica sobre um evento juridicamente relevante.

O juiz, por sua vez, admitindo a prova no processo, gravou essa linguagem técnica

juridicamente, implicando efeitos de direito às partes no processo (obrigação de pagar tributo

e penalidades pelo contribuinte inadimplente).

Ao se pensar na mesma questão com um olhar de common law, levando em

consideração o que Holmes chama de lei como fato e Ross chama de direito fático-

convencional (aqui se chama eventual-convencional para diferenciar evento de fato), o que

se tem é que a convicção do juiz deve estar atrelada à summa realidade – ao evento que

ocorre.

Não há opção, o juiz deve perquirir nos eventos acerca da irradiação dos efeitos de

direito, de modo que o foco que se dá é na jurisprudência, eis que ali já estão convicções

sobre eventos alcançadas pelo juiz, o que é o mesmo que dizer que a convenção jurídica já

“existe” e não depende tanto da lei em si, mas sim da apuração da ocorrência de eventos, os

quais, se já formaram convicção-convencional-jurídica, devem ser seguidos, sem uma

consideração restrita à lei.

É por esse motivo que Pound traz que o direito é uma instituição social, como já se

falou mais de uma vez. Se é social é porque é na linguagem social que o direito encontra seu

meio e seu fim. É, também, por isso que no realismo estadunidense e também no escandinavo

se defende que o papel do juiz não é lógico-dedutivo, mas objetivamente orientado no

sentido de apurar a ocorrência de eventos do mundo sensível, os quais são convencionados

pela experiência das gentes na linguagem ordinária.

A interpretação do juiz deve ser uma interpretação-investigação de eventos concretos

e não uma que seja lógico-dedutiva. A aplicação da lógica dedutiva ao direito sem chão no

evento ocorrido no mundo, previsto como passível de efeitos de direito, é letárgica ou até

mesmo uma forma de esquizofrenia. Esta forma patológica tem abatido como enxame as

cortes nacionais.

É por isso que a autoridade competente deve gravar a verdade jurídica, eis que é essa

também uma espécie de convenção. Não uma convenção que se forma pelo método dedutivo

da lógica clássica, mas sim um ajuste que se opera pelo método abdutivo da lógica peircena

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212

aplicada ao direito no sentido de que a investigação no mundo sensível (de eventos)

permanente é que concorda o evento da conclusão com aqueles das premissas no silogismo

do direito.

Com isso é possível responder à seguinte pergunta: que verdade é essa, então, que

faz descobrir uma summa realidade intrajuridicamente? Como já se disse extensamente aqui,

é a verdade jurídica que se alcança pela aplicação do direito, a qual concorda a declaração

do legislador de uma ocorrência passível de gerar efeitos jurídicos com a gravação dessa

ocorrência que foi possível por meio de uma investigação que tende ao justo.

Porém, diga-se que essa concordância não é de nenhuma maneira arbitrária, ou seja,

a aplicação do direito não é arbitrariamente construída no sentido de ser alheia à summa

realidade. O julgado a seguir confirma esse entendimento, falando, inclusive, da perícia

contábil como meio de linguagem suporte a permitir a aplicação do direito por um juiz de

direito:

AGRAVO DE INSTRUMENTO - EMBARGOS DE TERCEIRO -

PERÍCIA CONTÁBIL - ESCLARECIMENTO DOS FATOS - BUSCA

DA VERDADE REAL.

O magistrado deve valer-se de todos os meios legais disponíveis para a

busca da verdade real, ou seja, o deferimento da prova pericial virá

acrescentar novas informações indicando um quadro probatório mais

amplo e instruído, formando um juízo de certeza e possibilitando um

julgamento mais justo e adequado na hipótese em questão.

NEGARAM PROVIMENTO.

(Processo:100240584656670021,MG1.0024.05.846566-

7/002(1),Relator(a):HELOISA

COMBAT,Julgamento:10/08/2006,Publicação:11/10/2006). (Destacou-

se).

Vê-se, assim, que a linguagem técnica que o perito possui, e que falta ao juiz, como

no caso de omissão de receitas já narrado, complementa a linguagem jurídica em busca de

uma verdade, a verdade real. Que seria essa verdade real que o magistrado deve buscar?

O que aqui se defende é que a verdade real é a verdade jurídica, ou seja, aquela que

se alcança pela aplicação do direito. Se é alcançada pela aplicação do direito, é porque

decorre de uma valoração sobre uma summa realidade.

Há momentos, inclusive, que a linguagem técnica é a única que deve prevalecer, sem

que, ao menos, possa o juiz raciocinar sobre ela, eis que a linguagem técnica prevalece desde

que respaldada pela legalidade. Veja o seguinte julgado:

TRIBUTÁRIO. PRODUTO IMPORTADO. SABÃO ANTIACNE.

CLASSIFICAÇÃO PERANTE À ANVISA COMO COSMÉTICO.

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AUTORIDADE ADUANEIRA QUE ENTENDE SER

MEDICAMENTO. IMPOSSIBILIDADE. ATRIBUIÇÃO DA

AUTORIDADE SANITÁRIA (ANVISA) NA CLASSIFICAÇÃO DO

PRODUTO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO.

1. Incumbe à ANVISA regulamentar, controlar e fiscalizar os produtos e

serviços que envolvam à saúde pública (art. 8o. da Lei 9.782/99).

2.Não pertence às atribuições fiscais e aduaneiras, alterar a

classificação de um produto, inclusive porque os seus agentes não

dispõem do conhecimento técnico-científico exigido para esse mister.

3.Produto classificado pela ANVISA como cosmético. Atribuição

privativa da Autoridade Sanitária, que refoge à competência da Autoridade

Aduaneira.

4.Recurso Especial do contribuinte provido para restabelecer a sentença de

fls. 974/975. (RECURSO ESPECIAL Nº 1.555.004 – SC, RELATOR

MINISTRO NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, publicado em

25/2/2016). (Destacou-se).

Decorre do caso apresentado, que não pode um órgão governamental (como a

autoridade aduaneira) gravar em linguagem jurídico-tributária uma summa realidade, em

relação à qual não tem conhecimento técnico para conhecer, o que implicou a prevalência

da linguagem técnica de outro órgão governamental (ANVISA) para gravar a realidade

relativa ao sabão antiacne, denotando-o dentro de uma classe de produtos, eis que esse órgão

é que tem a linguagem técnica necessária para dizer sobre essa realidade.

Nesse contexto, um ponto importante: a valoração da summa realidade não é somente

decorrente da linguagem das provas sobre a ocorrência de um evento passível de

consequências jurídicas. A summa realidade já foi, de alguma forma, gravada pelo próprio

legislador que gravou sua ocorrência em um signo jurídico. Logo, aplicar o direito é, pois,

sob qualquer perspectiva, uma forma direta ou indireta de gravar eventos do mundo.

Visto isso, diga-se agora que o Código de Processo Civil fala de fatos incontroversos.

Que seriam esses fatos incontroversos se a verdade jurídica é um ajuste juridicamente

estabelecido? Que seria esse fato incontroverso se, para a proposta deste estudo, a verdade

juridicamente convencionada é de alguma forma sempre atualizável?

Bem, partindo-se do fundamento que aqui se adota, o qual se filia ao realismo

peirceano, não é possível se falar em fato incontroverso, pois que o evento [fato] que fará

irromper efeitos jurídicos é sempre algo ajustado nos limites do direito e, pois, submetido à

teoria das provas, de modo que dependente de uma investigação jurídica para trazer crença

jurídica (tornar-se verdadeiro juridicamente). A teoria das provas não será tratada nesse

tópico, mas sim em um tópico mais adiante.

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Portanto, partindo-se do princípio que qualquer investigação, seja ela científica ou

jurídica, sobre uma summa realidade, é uma investigação falível (falibilismo peirceano), o

que se tem é que o evento gravado, ainda que provado, está sempre em um signo-gravador

falível, haja vista que uma nova investigação poderia tender a trazer nova crença sobre esse

evento do mundo, alterando sua verdade.

É importante clarificar que a investigação científica não é exatamente igual à

investigação jurídica. Isso ocorre porque na investigação científica o grupo de mentes que a

desempenha é um grupo de mentes científica, sendo que na investigação jurídica o grupo de

mentes é jurídico, conforme se atentou anteriormente.

Isso implica em uma diferença de finalidade, eis que a finalidade da mente científica

é de gravação descritiva, ou seja, melhor gravar descritivamente a summa realidade, ou

melhor, as facetas dessa realidade que possam ser gravadas no processo de gravação

abstrata. Essa é uma finalidade preponderante.

Aqui não se é ingênuo para olvidar a ideia de que em qualquer gravação há outros

aspectos que são levados em consideração: aspectos culturais da comunidade de fala para a

qual a gravação se presta a servir, uma certa conveniência da gravação para permitir a

comunicação entre as pessoas dessa comunidade de fala, aspectos muitas vezes tão

subjetivos que nem ao menos é possível separá-los para compreensão.

Porém, uma coisa é certa, diante de uma investigação científica há uma finalidade

preponderante, a finalidade preponderante de se afastar aspectos intuitivos, de omnisciência

divina, os quais suplantam a razão, para se concentrar na melhor gravação do objeto que se

puder fazer e, principalmente, que a experimentação puder provar correta, ou melhor,

verdadeira. Trata-se de um summum bonum como diria Peirce. Não é necessário que esse

summum bonum seja alcançado, mas ele deve estar presente e ser preponderante no ideal do

cientista.

A diferença para o direito é justamente a finalidade. Não se acredita que a finalidade

do direito seja preponderantemente a de dirimir conflitos entre as gentes como uma primeira

ponderação poderia levar a crer. Isso quer parecer um ideal muito raso para o direito

malgrado ele também ser um dos aspectos considerados.

Acima já se falou: o direito busca pela investigação jurídica algo que tenda a uma

crença de justiça. Isso não quer dizer que a justiça possa ser alcançada na sua inteireza

exatamente igual ao que se diz sobre o summum bonum na investigação científica, o qual

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tampouco o pode ser. Isso significa que a justiça é o ideal primeiro do direito e que quem o

aplica está ou deveria estar sempre buscando essa finalidade.

Isso não quer dizer que se faça justiça todos os dias nos casos concretos do direito,

mas sim que os seus aplicadores têm ou deveriam ter, de alguma forma, sempre esse norte

em mente, eis que a crença da justiça para a qual a investigação jurídica tende é ajustada por

uma mente de juristas e não de cientistas.

Isso é uma diferença muito relevante, pois que explica, por exemplo, as limitações

temporais no direito (preclusão, prescrição e decadência) e a relação do direito com o

passado consumado (irretroatividade, coisa julgada, ato jurídico perfeito, direito adquirido),

elementos que não são necessariamente justos quando considerados para fins das soluções

produzidas no direito, mas que são “convenientes” para que o direito continue a servir à

comunidade de fala e, porque não dizer, para almejar o justo. As questões relacionas às

limitações temporais e o relacionamento do direito com o passado consumado serão tratadas

na parte 5 desse trabalho.

Acredita-se aqui numa premissa fundamental: tal qual a investigação científica, ainda

que as finalidades sejam diferentes, a investigação jurídica também deságua em resultados

que são atualizáveis.

Isso quer dizer que, mesmo que haja uma decisão transitada em julgado, a qual em

algum momento teve por objeto a gravação dessa ocorrência de eventos, há sempre uma

tendência de que essa gravação sobre os eventos seja atualizada.

Por exemplo: se a Suprema Corte entende (Recurso Extraordinário 564.413) que a

imunidade das receitas de exportação prevista na CF/88 (§ 2º ao art. 149) para as

Contribuições Sociais não se aplica para a Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido, uma

vez que a base de cálculo dessa é o lucro e não a receita, isso está sempre “em suspenso” e

pode a qualquer tempo ser atualizado.

Assim, em algum momento, talvez com uma nova composição de ministros, isso

poderá ser revisto (os eventos poderão ser revistos), analisando-se que contabilmente, por

exemplo, se há uma desoneração do “mais” que é a receita de exportação, por óbvio, que há

uma desoneração do “menos” que é o lucro decorrente dessa receita de exportação. Seria,

por sinal, absolutamente esquizofrênico não enxergar isso!

Nesse caso, o desfecho poderia parecer óbvio pela simples verificação da linguagem

contábil, ou seja, se a receita está desonerada, é evidente que o lucro também estará. Não há

dúvida aqui. Porém, a Suprema Corte não entendeu assim. Entendeu de maneira rasa que o

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legislador constitucional quis atribuir a imunidade à receita e não ao lucro, de modo que não

se estenderia a imunidade à Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido.

Que houve nesse caso? Já se falou que a problemática se resume muitas vezes à

interpretação de eventos como elemento anterior à aplicação do direito. Aquela composição

da Suprema Corte, naquele espaço e tempo históricos, gravou a ocorrência de eventos de

forma a não atribuir a imunidade à Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido.

Foi para essa crença de justiça que tendeu a investigação jurídica à época. Trata-se

de um ajuste. Esse ajuste poderá ser reajustado em algum espaço e tempo históricos

diferentes da Suprema Corte, de modo que a conclusão é fulminante: a gravação de eventos

no direito é atualizável, de modo que a crença de justiça é falível, pois que há sempre uma

tendência de que, em algum espaço e tempo históricos, essa crença possa ser reajustada para

melhor reportar a summa realidade, realizando-se, assim, o ideal de justiça para o qual o

direito deve se direcionar.

A investigação jurídica é, pois, um continuum, o qual se direciona a buscar uma

crença de justiça, a qual, por ser falível, pode ser atualizada. A possibilidade de atualização

de uma decisão jurídica que gravou eventos é justamente o que traz certeza e segurança ao

direito e não o contrário como poderia parecer.

O Superior Tribunal de Justiça (“STJ”) e a próprio Suprema Corte têm com alguma

frequência mudado de posicionamento sobre questões, cuja decisão já havia transitado em

julgado. Foi assim no que diz respeito ao caso do crédito-prêmio (Recurso Extraordinário

561.485) do Imposto Sobre Produtos Industrializados (“IPI”), no caso da não incidência do

IPI no mercado interno sobre produto importado para revenda (Embargos de Divergência no

Recurso Especial 1.411.749/PR e Embargos de Divergência no Recurso Especial

1.403.532/SC), e pode ser assim no caso da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e

da COFINS (Recurso Extraordinário 240785/MG e Recurso Extraordinário 574706/PR).

Para que reste claro que a crença que se estabelece juridicamente é atualizável, pois

que há um continnum de investigação dos eventos, veja-se, por pertinente aos casos

mencionados, como o STJ em 2014 tinha um entendimento sobre o caso da incidência do

IPI na revenda do produto importado e, em 2015, mudou sua crença sobre o mesmo caso.

Para aqueles que não estão familiarizados com as discussões tributárias, basta dizer

que o IPI incide sobre a industrialização de produtos, mas fictamente incide também sobre a

importação de produtos. A discussão gira em torno da possibilidade ou não de incidir duas

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vezes: na importação do produto e na revenda do mesmo produto no mercado interno sem

que haja qualquer industrialização.

O STJ consolidou a jurisprudência para dizer o seguinte:

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RESP Nº 1.411.749 – PR

TRIBUTÁRIO. EMPRESA COMERCIAL IMPORTADORA. FATO

GERADOR DO IPI OCORRENTE NO ATO DO DESEMBARAÇO

ADUANEIRO. INADMISSIBILIDADE DE NOVA EXIGÊNCIA DO

MESMO IMPOSTO NA VENDA DO PRODUTO IMPORTADO AO

CONSUMIDOR FINAL NÃO CONTRIBUINTE DESSA EXAÇÃO.

ORIENTAÇÃO JURISPRUDENCIAL CONSOLIDADA. NÃO

OCORRÊNCIA DE MUDANÇA NORMATIVA OU DE DECISÃO DO

STF EM SEDE CONCENTRADA. PROIBIÇÃO DE RETROCESSO EM

MATÉRIA TRIBUTÁRIA, INCLUSIVE NA VIA JUDICIAL,

SALVANTE INOVAÇÃO LEGISLATIVA OU PRONUNCIAMENTO

VINCULANTE DA SUPREMA CORTE. AFASTAMENTO DA

SURPRESA. REGRA DE GARANTIA. PREVALÊNCIA DO

ENTENDIMENTO DA 1a. TURMA DO STJ, NO JULGAMENTO DO

RESP 841.269/BA, DA RELATORIA DO MINISTRO FRANCISCO

FALCÃO (DJe 14.12.2006).

EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA ACOLHIDOS. (Destacou-se).

Menos de um ano depois, o STJ mudou seu entendimento, conforme a seguinte

ementa:

EMENTA EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA EM RECURSO

ESPECIAL. DIREITO TRIBUTÁRIO. IMPOSTO SOBRE PRODUTOS

INDUSTRIALIZADOS - IPI. FATO GERADOR. INCIDÊNCIA

SOBRE OS IMPORTADORES NA REVENDA DE PRODUTOS DE

PROCEDÊNCIA ESTRANGEIRA. FATO GERADOR

AUTORIZADO PELO ART. 46, II, C/C 51, PARÁGRAFO ÚNICO

DO CTN. SUJEIÇÃO PASSIVA AUTORIZADA PELO ART. 51, II,

DO CTN, C/C ART. 4º, I, DA LEI N. 4.502/64. PREVISÃO NOS

ARTS. 9, I E 35, II, DO RIPI/2010 (DECRETO N. 7.212/2010).

[...]

2. Não há qualquer ilegalidade na incidência do IPI na saída dos

produtos de procedência estrangeira do estabelecimento do

importador, já que equiparado a industrial pelo art. 4º, I, da Lei n.

4.502/64, com a permissão dada pelo art. 51, II, do CTN. (Destacou-se).

Não resta dúvida, pois, que a crença jurídica é atualizável, eis que em 2014 o STJ

entendeu que o IPI não podia incidir na revenda do produto importado, pois isso

caracterizaria um bis in idem e, no ano seguinte, sem que se alterasse qualquer previsão legal

ou realidade dos eventos do mundo e, mantendo a mesma composição do tribunal, mudou

de ideia, dizendo justamente o contrário, ou seja, de que não haveria qualquer ilegalidade

nessa incidência.

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218

Sem que se adentre nos pormenores tributários das decisões, pois não cabe aqui esse

exame, o que se deve repisar é que claramente a crença de justiça do direito é temporária. O

cronometro jurídico continua correndo e é possível se ajustar nova crença, ressalte-se, sobre

os mesmos eventos do mundo.

Que houve, então? Uma nova gravação dos eventos. Parece difícil visualizar isso,

mas não é. Basta um olhar atento. Já se disse que a interpretação jurídica de uma forma

mediata ou imediata acaba por gravar a ocorrência de eventos, eis que eventos são gravados

tanto pelo legislador, para prever o signo jurídico aplicável, como pela autoridade aplicadora

do direito, a qual interpretará a ocorrência de eventos.

Por que isso ocorre? Porque há, de uma forma ou de outra, um direito subjetivo

envolvido, mesmo em ações diretas de inconstitucionalidade e, quando há um direito

subjetivo envolvido e, um aplicador do direito é chamado para gravar algo em relação a esse

direito subjetivo, é porque esse algo soe se referir a um evento ou situação relativa a esse

evento que está sendo contraposta de alguma forma. Se é assim, é porque, também, de uma

forma ou de outra, o aplicador do direito gravará na sua interpretação a ocorrência de

eventos, podendo ter uma crença sobre eles e depois, com um olhar mais atento, mudar sua

crença.

No caso do IPI, uma empresa importadora alegava que seu direito subjetivo estava

sendo violado, pois que a revenda do produto importado não podia sofrer nova incidência

do IPI que já havia incidido na importação. Isso é uma questão sobre ocorrência de eventos,

eis que é preciso verificar, por exemplo, se há uma industrialização do produto importado

ou não, o que poderia justificar a tributação ou o afastamento da incidência.

O STJ, analisando, de forma direta ou indireta, essa questão sobre eventos,

estabeleceu uma crença de que, não havendo industrialização, entre outras coisas, não

poderia haver nova incidência do IPI. No ano seguinte, analisando a mesma questão sobre

eventos, o mesmo STJ mudou de ideia, estabelecendo uma crença atualizada de que a lei

autorizaria a incidência do IPI sobre eventos diferentes, quais sejam: a importação e também

a revenda. O STJ gravou, de forma direta ou indireta, a ocorrência de eventos. Isso quer dizer

o quê? Quer dizer que a crença anterior era falível e, portanto, atualizável. Não parece

haver dúvidas sobre isso.

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219

É justamente por isso que a ocorrência de eventos [fatos] incontroversos, conforme

designação do Código de Processo Civil, não “existe”, pois que se a gravação de eventos14,

como ocorreu no caso do IPI na revenda do produto importado, pode ser atualizada de um

ano para o outro pelo STJ, isso quer dizer que a ocorrência de eventos [fatos] incontroversos

não é possível.

Viu-se aqui alguns trechos da legislação de regência, nos quais se faz referência a

fatos jurídicos e/ou a fatos eles mesmos na nomenclatura utilizada pelo legislador, a qual

aqui se discorda, motivo pelo qual, quando possível, foi substituída por evento. Nas linhas

vindouras, trar-se-á o posicionamento de alguns dogmáticos do direito sobre o tema do fato

jurídico.

4.2 Fato Jurídico na Dogmática Jurídica

Em primeiro lugar, antes de se adentrar na ciência do direito que trata do tema do

fato[evento] jurídico15, importa trazer, como já se disse, que a ciência jurídica ela mesma é

uma linguagem gravadora sobre a linguagem jurídica (linguagem gravada nesse caso).

Esclareça-se que, dizer linguagem gravadora e linguagem gravada não é o mesmo que dizer

linguagem objeto e metalinguagem, eis que o processo de gravação implica prolongamento

e não construção ou criação de uma nova linguagem desvinculada da anterior.

Visto isso, diga-se que há vários cientistas jurídicos que tratam do tema do

fato[evento] jurídico, como é chamado na teoria geral do direito e filosofia do direito, ainda

que aqui se discorde dessa nomenclatura, eis que se prefere evento jurídico mesmo quando

referente àquilo que está na linguagem do direito. Porém, utilizar-se-á o nome como posto

na ciência do direito, falando-se de evento, quando possível, para fins da ocorrência no

mundo sensível.

Reale (2001, p.187-188) traz o seguinte sobre fato[evento] e fato[evento] jurídico:

Devemos entender, pois, que o Direito se origina do fato, porque, sem

que haja um acontecimento ou evento, não há base para que se

estabeleça um vínculo de significação jurídica. Isto, porém, não implica

a redução do Direito ao fato, tampouco em pensar que o fato seja mero fato

14 Para o que aqui se defende a nomenclatura “fato” para fins do direito é equívoca, de modo que se tenta ao

longo de todo o texto substitui-la por “evento”. No entanto, quando a referência é a um dizer da lei mesma,

mantem-se a nomenclatura como está na lei para não se alterar o que o legislador disse, mas na sequência já se

retorna à nomenclatura que se entende correta. 15 Aqui vai se deixar a nomenclatura “fato jurídico”, eis que é como a doutrina chama, colocando-se evento

quando se referir ao mundo sensível, nesse caso, evitando-se, a nomenclatura fato.

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bruto, pois os fatos, dos quais se origina o Direito, são fatos humanos ou

fatos naturais objeto de valorações humanas.

Quando falamos, todavia, em fato jurídico, não nos referimos ao fato

como algo anterior ou exterior ao Direito, e de que o Direito se origine,

mas sim a um fato juridicamente qualificado, um evento ao qual as

normas jurídicas já atribuíram determinadas consequências,

configurando-o e tipificando-o objetivamente. Nada mais errôneo, por

conseguinte, do que confundir fato com fato jurídico.

[...]

O fato, por conseguinte, pode ser visto como elemento de mediação entre

os dois elementos que compõem a regra de direito: entre a previsão

que há nesta de um fato-tipo, e o efeito que ela atribui à ocorrência ou

não do fato genericamente previsto.

[...]

Outra distinção fundamental é a que se faz entre o fato em sentido

estrito, como acontecimento natural não volitivo, e ato, como fato

resultante da volição humana (comportamento). (Destacou-se).

Diante da genialidade de suas palavras, bastaria que se parasse por aqui, mas

desenvolve-se o tema a partir daqui para explicar o fato[evento] jurídico a partir da doutrina

de Reale e de outros teóricos do direito.

Em primeiro lugar, Reale deixa claro um ponto já trazido nas linhas pretéritas,

fato[evento] é uma dualidade, é dizer, há gravação de uma linguagem a partir de outra

linguagem, que pode ser médica, jurídica, sociológica, etc., do que decorre poder se falar em

fato[evento] médico, jurídico, sociológico etc., mas há também uma summa realidade

gravada.

Reale estabelece ainda que o direito se origina do fato[evento]16, falando que há a

necessidade de um acontecimento ou evento previsto no direito para que sejam gerados

efeitos jurídicos. Assim, para Reale, o fato[evento] que gera efeitos de direito se relaciona

com um acontecimento ou evento, cuja gravação em signo jurídico poderá fazer irromper

efeitos de direito.

Há, pois, um evento exterior ao direito, pois quando se fala em fato[evento] jurídico

é porque o evento exterior já se tornou interior (intrajuridicidade), pois já foi gravado na

linguagem do direito. Reale deixa claro que não se deve confundir fato[evento] com

fato[evento] jurídico.

Assim, segundo Reale, há no direito uma previsão de um fato[evento]-tipo, cuja

ocorrência objetiva gerará efeitos de direito. Há, pois, um signo geral ou potencial, o qual

16 Coloca-se em colchetes para apresentar como deveria a nomenclatura pelo que aqui se defende ser utilizada.

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grava que determinadas ocorrências implicarão, se gravadas na linguagem do direito, efeitos

igualmente de direito.

Construindo sua clássica teoria tridimensional, Reale (2000, 5 ed., p. 8) traz que:

“Segundo a concepção tridimensional, o Direito é síntese ou integração de ser e de dever ser,

é fato e é norma, pois é o fato integrado na norma exigida pelo valor a realizar”.

Explicando com mais detalhes a teoria, Reale (2000, 19 ed., p. 540) pontua o

seguinte:

Eis aí, portanto, através de um estudo sumário da experiência das

estimativas históricas, como os significados da palavra Direito se

delinearam segundo três elementos fundamentais: — o elemento valor,

como intuição primordial; o elemento norma, como medida de

concreção do valioso no plano da conduta social; e, finalmente, o

elemento fato, como condição da conduta, base empírica da ligação

intersubjetiva, coincidindo a análise histórica com a da realidade

jurídica fenomenologicamente observada. Encontraremos sempre estes

três elementos, onde quer que se encontre a experiência jurídica: — fato,

valor e norma. Donde podemos concluir, dizendo que a palavra Direito

pode ser apreciada, por abstração, em tríplice sentido, segundo três

perspectivas dominantes:

1) o Direito como valor do justo, estudado pela Filosofia do Direito na

parte denominada Deontologia Jurídica, ou, no plano empírico e

pragmático, pela Política do Direito;

2) o Direito como norma ordenadora da conduta, objeto da Ciência do

Direito ou Jurisprudência; e da Filosofia do Direito no plano

epistemológico;

3) o Direito como fato social e histórico, objeto da História, da Sociologia

e da Etnologia do Direito; e da Filosofia do Direito, na parte da

Culturologia Jurídica. (Destacou-se).

Na concepção tridimensional do direito, Reale unifica os três elementos que ele

considera preponderantes no fenômeno jurídico e, no que diz respeito ao fato[evento], traz

que esse se integra à norma jurídica, de modo que direito também é fato[evento]. O

fato[evento] é, assim, condição da conduta, coincidindo a análise histórica com a realidade

jurídica observada.

Reale une ao jurídico, igualmente, o valor justiça, de modo que a norma jurídica deve

estar impregnada pelo valor do justo. O fato [fato] que implica a geração de efeitos de direito,

tem de gerar, na concepção de Reale, segundo se interpreta aqui, efeitos jurídicos que sejam

justos. Esse é o efeito jurídico desejado em decorrência da condição da conduta que é o

fato[evento].

Portanto, a regra que grava um fato[evento]-tipo, cujo gatilho é um fato[evento]-

bruto, deve gravar um fato[evento]-tipo passível de proporcionar efeitos jurídicos que se

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direcionem (como ideal) a implicar justiça diante da convenção jurídica (crença jurídica) que

se estabelece sobre a ocorrência dos fatos[eventos]-brutos.

Como se disse anteriormente, se para o direito penal, em relação ao crime de

falsidade ideológica, o que importa é que o fato[evento], para ser juridicamente relevante,

seja capaz de gerar efeitos nocivos a direitos subjetivos, na concepção de Reale, segundo se

interpreta aqui, esses efeitos nocivos têm de ser analisados como juridicamente relevantes

diante de uma perspectiva que considere o valor justiça como resultante inegável em que se

direciona a aplicação do direito.

Assim, os meios de provas têm de ser utilizados para gravar fatos[eventos] que se

direcionem a implicar consequências justamente convencionadas (no sentido de impostas)

no âmbito jurídico, de modo que, ao fim, o fato[evento] também deve ser de alguma forma

justo, assim como a norma que grava o fato[evento] também deve se direcionar ao justo.

Se o fato[evento] integra norma, isso implica que ambos devem ser orientados pelo

valor justiça para que a teoria tridimensional de Reale seja aplicada. Porém, se justiça como

valor é um ideal inalcançável, a interpretação que faria mais sentido da teoria tridimensional

de Reale é de que os valores que são caros ao direito, tal qual o valor justiça, são, em

realidade, uma direção a seguir, como que uma bússola que aponta para um norte, mas não

estão na norma propriamente dita, como tampouco estão no direito, mas são a trave por sobre

a qual o direito caminha e se equilibra.

Telles Jr. (2011, p. 283) navega em águas parecidas às de Reale, conforme se verifica

a seguir:

Todo evento que determina nascimento, aquisição, exercício, modificação,

transmissão e extinção de Direito Subjetivo é o que se chama FATO

JURÍDICO.

[...]

O fato jurídico pode ser definido, com simplicidade, nos seguintes

termos: EVENTO QUE TEM EFEITO JURÍDICO.

Os fatos jurídicos se dividem em:

1) fatos jurídicos da natureza; e

2) fatos jurídicos da vontade.

Os fatos jurídicos da natureza são os fatos cujos efeitos jurídicos

dependem diretamente de eventos do mundo físico.

[...]

Os fatos jurídicos da vontade são os fatos cujos efeitos jurídicos

dependem diretamente da vontade humana. (Destacou-se).

Para Telles Jr. o fato[evento] jurídico é um evento que tem efeito jurídico e pode ser

da natureza no sentido de que não necessita da ação do homem para ocorrer ou da vontade

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no sentido de que necessita da vontade do homem para ocorrer (como é o caso dos atos

jurídicos, os quais estão, em alguma medida, compreendidos pelos fatos[eventos] jurídicos).

De qualquer forma, importa dizer que, dependendo ou não da vontade do homem

para ocorrer, um evento que implica efeitos jurídicos deve ter alguém para gravá-lo, sob

pena de não se conhecer da sua ocorrência, de modo que, ao fim, uma articulação do homem

será necessária para gravar um determinado evento, seja ele natural ou de vontade.

Monteiro (2016, p. 231), por sua vez, diferenciando fato[evento] jurídico de ato

jurídico assim se pronuncia:

Do exposto se dá conta da diferenciação conceitual entre fato jurídico

e ato jurídico. Em sentido amplo, o primeiro compreende o segundo,

aquele é o gênero, de que este é a espécie. Em sentido restrito, porém,

fato jurídico é acontecimento natural, independente da vontade

interna, enquanto ato jurídico é acontecimento voluntário, fruto da

inteligência e da vontade, querido e desejado pelo interessado. Há,

destarte, entre as duas noções, uma oposição técnica fundamental: aos

fatos, acontecimentos casuais, contrapõem-se os atos, acontecimentos

voluntários. Quanto aos atos ilícitos, posto sejam ações humanas, incluem-

se entre os primeiros, entre os fatos, já que seus efeitos jurídicos são

involuntários. (Destacou-se).

Monteiro traz que fatos[eventos] jurídicos são acontecimentos naturais. Aqui parece

haver um equívoco em Monteiro, eis que fato[evento] é uma dualidade. O fato[evento]

jurídico, considerando-se por hipótese ser possível falar em fato[evento] jurídico, pois, não

pode ser um acontecimento natural, pois que sua linguagem é diferente da linguagem do

acontecimento natural. Acontecimento natural é o evento e não o fato. O fato[evento]

jurídico, como se disse, é uma linguagem gravadora, seu referente é um acontecimento

natural – o evento. Há, portanto, uma dicotomia necessária, o que talvez não tenha sido

notado por Monteiro.

Monteiro (2016, p. 231), no entanto, reforça a ideia de que o acontecimento

voluntário com efeitos jurídicos é referente de um ato jurídico, mas que, como gravação

geral, acaba sendo compreendido no gênero fato[evento] jurídico, do qual o ato jurídico seria

uma espécie. Não se trabalhará aqui com a diferença entre fato[evento] jurídico e ato

jurídico, partindo-se do pressuposto de que o fato[evento] jurídico engloba o ato jurídico.

Miranda (2012, Tomo I, p. 59) posiciona-se no seguinte sentido sobre o tema:

Quando se fala de fatos alude-se a algo que ocorreu, ou ocorre, ou vai

ocorrer. O mundo mesmo em que vemos acontecerem os fatos, é a soma

de todos os fatos que ocorreram e o campo em que os fatos futuros se vão

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dar. Por isso mesmo, só se vê o fato como novum no mundo. Temos,

porém, no trato do direito, de discernir o mundo jurídico e o que, no

mundo, não é mundo jurídico. (Destacou-se).

Miranda na sua genialidade parece ter previsto a “existência” das potencialidades na

linha dos contingentes futuros de Aristóteles, dos quais fala Peirce, como já mencionado.

Além disso, a ideia de fato[evento] futuro também pode se coadunar com a ideia de prime

matter no escotismo, ou seja, com a ideia daquela entidade positiva que não é nem universal

e nem particular e que tem a potencialidade de junto com substância material levar pela

haecceitas ao processo de individuação, restando, pois, em suspensão como mera

potencialidade de ter características reais.

Ross (1963, p. 209-2011) trata o tema do fato[evento] jurídico sob a perspectiva do

que chama fatos[eventos] operativos:

toda aplicação do direito tem como fundamento fatos condicionantes

cuja existência o juiz considera provada. O conteúdo das normas

jurídicas aplicadas determina quais são os fatos relevantes para a decisão.

Os fatos relevantes para a decisão são denominados fatos operativos.

[...]

os fatos operativos podem ser especificamente relevantes (‘criadores’), ou

meramente condicionantes.

[...]

O direito pode fazer com que quase todas as circunstâncias

imagináveis sejam fatos operativos, sempre que possam ser descritas

em termos da linguagem cotidiana.

[...]

Um fato criador específico deve ser definido como aquele que por regra

geral, isto é, ao menos que existam fundamentos especiais de exclusão,

produz um efeito jurídico específico.

[...]

Alguns fatos operativos são descritos como condições (estado de

coisas), que incluem qualidades de pessoas ou de coisas, enquanto que

outros são descritos como acontecimentos, é dizer, como câmbios em

uma condição existente.

[...]

Dentro dos fatos operativos que consistem em acontecimentos, é

importante distinguir entre sucessos e atos, posto que só os últimos

suscitam problemas relativos à capacidade mental, mens rea, culpa e outras

circunstâncias psicológicas que condicionam a consequência jurídica.

(Destacou-se).

Para Ross, os fatos[eventos] funcionam como operadores de efeitos jurídicos. Se o

fato[evento] for criador, criará efeitos jurídicos, a não ser que haja um fundamento de

exclusão.

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Em Ross, os fatos[eventos] operativos podem ser descritos como condições ou

acontecimentos, sendo que condições podem ser reduzidas a acontecimentos, como no caso

da condição de ter uma certa idade ser reduzida ao fato[evento] de ter nascido há certo

tempo.

Ross submete a linguagem jurídica à “linguagem cotidiana”, o que se interpreta aqui,

como a linguagem ordinária/social articulada em uma língua. Assim, as condições e

acontecimentos gravados para gerar efeitos de direito são aquelas que podem ser gravados

em uma linguagem cotidiana/social articulada numa língua, o que justifica reforçar que a

linguagem jurídica é de gravação sobre uma linguagem ordinária/cotidiana/social articulada

em uma língua que é uma linguagem gravada.

A aplicação do direito em uma decisão judicial, para Ross, pressupõe que a

“existência” de fatos[eventos] seja considerada provada pelo juiz. Isso é muito relevante, eis

que se o fato[evento] deve ser considerado provado para o juiz decidir, isso implica que sem

fato[evento] não há decisão judicial.

ARAUJO (2005, p. 55) diferencia eventos e fatos, trazendo que eventos são “uma

porção do contínuo espaço-temporal, ou acontecimentos gerais observáveis; fenômenos”,

sendo que fatos “não são entidades ‘reais’, mas são articulações linguísticas acerca da

realidade”. Com muita acuidade Araujo distinguiu fato de evento, o que servirá de suporte

firme dos dizeres postos nesse trabalho.

A teoria jurídica consultada, por qualquer ângulo que se olhe, aponta para a

necessidade da verificação de fatos[eventos] para que se irrompam as consequências

jurídicas gravadas em signos jurídicos postos no sistema.

Os autores e obras mencionados trabalham, também, com a ideia de que o

fato[evento] é um acontecimento natural isolado ou cuja presença do homem é verificada.

Isso aponta para o que se pode chamar, também, realidade objetal (acontecimentos naturais)

e realidade antropomórfica (acontecimentos nos quais participa o homem com sua vontade

mediando). Em ambos os casos (realidade objetal e antropomórfica), se trata da summa

realidade, sendo que o resultado da intervenção do homem gravado em signos é que se

chama aqui realidade semeiótica.

Outro ponto que deve ser ressaltado sobre a doutrina consultada, é que Reale, Telles

Jr. e Araujo trabalham expressamente com a diferença entre fato e evento, tema que será

enfrentado mais adiante neste trabalho.

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Neste momento, um ponto que precisa ser melhor estudado diz respeito à gravação

dos fatos[eventos], eis que, como dito, o juiz deve considerar, na linha do que traz Ross, que

fatos[eventos] foram provados (gravados) para que promulgue sua decisão. Tratar-se-á, na

sequência, da gravação dos fatos[eventos] dentro da linguagem do direito.

4.3 Processos de Gravação Judicial

Um ponto que merece ser ressaltado diz respeito à circunstância de que o que se

conhece judicialmente acerca da ocorrência de eventos diz com a gravação sobre eles.

Isso quer dizer que, ao cabo, o ponto de partida jurídico acerca de um evento é uma

gravação no signo de direito, o qual se encontra no texto de lei produzido pelo legislador a

partir de eventos do mundo sensível.

Quando um advogado leva ao conhecimento de um juiz um evento, diga-se, acerca

da separação de um casal e, pleiteia que seja reconhecida essa separação, o que ocorre é que

esse advogado está levando ao juiz uma espécie de gravação, ou ao menos assim deveria

estar procedendo, acerca de um acontecimento da vida do casal que culminou na separação.

Na sua petição, o advogado requer o reconhecimento judicial da ocorrência desse evento

(separação), diante do que efeitos jurídicos serão irradiados para o casal e terceiros.

Assim, a gravação levada pelo advogado ao juiz é uma gravação de uma ocorrência

social fora do direito, sobre uma ruptura emocional, que culminou na separação, levando a

que o casal procurasse um advogado. Esse advogado será responsável por levar a gravação

de um evento a um juiz, o qual poderá reconhecer juridicamente, diante de uma outra

gravação (judicial) que o casal está de direito separado.

Um ponto de atenção é que a gravação do advogado levada ao juiz é uma gravação

de uma outra gravação, eis que o que faz o advogado no caso é, juridicamente, acomodar a

gravação da linguagem cotidiana levada pelo casal ao advogado nos moldes aceitos pelo

direito para fins de um processo de gravação jurídica. O direito também prevê como

processos de gravação devem ser levados a efeito juridicamente (condições da ação,

pressupostos de admissibilidade etc.).

Volte-se ao exemplo. O casal ele mesmo leva ao advogado por meio de signos-

gravadores sociais falados (normalmente) um acontecimento de sua vida (a separação por

conta de uma, diga-se, ruptura emocional). O casal imprime nos significantes orais por ele

fisiologicamente emitidos pelo órgão de fonação o evento da sua separação ou de uma

coleção de eventos que culminou nessa separação.

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O advogado acomoda essa impressão numa estampa juridicamente aceita, levando

ao juiz competente uma espécie de gravação jurídica do signo da linguagem cotidiana trazio

a ele pelo casal. O juiz competente, então, pode reconhecer por meio de uma nova gravação

o evento da separação do casal, para, assim, fazer irromper os efeitos previstos no direito,

dentre eles: a partilha dos bens, a guarda dos filhos menores, a possibilidade de poderem

contrair matrimônio com efeitos civis novamente etc. Esses são os efeitos provocados por

conta do processo de gravação jurídico de um evento ocorrido.

O juiz de direito, recebendo a gravação do advogado e seu pedido pelo

reconhecimento do divórcio do casal, grava que, diante daquela gravação e do pleito e diante

da opinião favorável do Ministério Público, o casal está legalmente divorciado (grava o

divórcio do casal que tal evento desencadeará consequências jurídicas). Ao fazê-lo o juiz

valorou uma gravação de um advogado sobre uma gravação de um casal na linguagem

cotidiana de um evento ou conjunto de eventos ocorridos na summa realidade.

O juiz grava, entre outras coisas, que diante da ocorrência de eventos, deve ser uma

partilha de bens entre o casal de um apartamento para uma parte, uma casa para a outra, etc.,

e o faz diante da prova (ou gravação) nos autos posta pelo advogado de que existe um

certificado de uma propriedade compartilhada entre as partes (que também é uma espécie de

gravação), ou seja, diante da ocorrência de outro evento (o que inclui, pelo que aqui se

entende, um estado de coisas ou pessoas) de que as partes são proprietárias de um

apartamento e uma casa.

O juiz, assim, aprecia a ocorrência de eventos gravados pelo advogado: o evento em

que se comprou um apartamento e se registrou o contrato respectivo no cartório de registro

de imóveis e o mesmo em relação à casa. Valora, igualmente, que o certificado de casamento

do casal comprova que o mesmo se casou no regime de comunhão parcial de bens, ou seja,

o evento de que o casal optou por esse regime de bens no casamento (o ato é compreendido

no evento [fato] como já se viu).

Supondo que o casal tenha filhos menores e as partes tenham pleiteado uma guarda

compartilhada dos menores, concordando com isso o Ministério Público, o que ocorre, ainda,

é que o juiz grava que diante do evento de que os menores nasceram e foram registrados sob

a paternidade de um e maternidade de outro, conforme certificado de nascimento, deve ser

que a guarda seja compartilhada entre eles.

O que faz o juiz, então, sobre a separação do casal e sobre a partilha e guarda dos

filhos? O juiz valora a ocorrência de eventos e grava juridicamente os mesmos, o que implica

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um efeito realizativo (na linha de Austin) do direito, implicando o surgimento de direitos e

deveres respectivos, isso com base na experiência acerca de eventos e que foram gravados

nos termos requeridos pela linguagem jurídica.

Suponha-se, no entanto, para apimentar o estudo, que o registro de nascimento

apresentado pelos pais seja forjado e que, mediante uma denúncia anônima ao Ministério

Público, a gravação sobre a ocorrência do evento da falsidade do registro chegue ao juiz

competente da causa.

Diante disso, suponha-se que o juiz grave que, diante dos novos eventos, deve ser a

anulação da guarda compartilhada e, mais do que isso, deve ser que os menores sejam

enviados à assistência social e que se inicie um processo de adoção para que futuros pais

adotivos se manifestem sobre a intenção pela adoção dos menores.

Que será da gravação anterior do juiz que gravou a guarda compartilhada e valorou

a prova da paternidade e maternidade dos pais dos menores? Será que essa gravação gravou

uma ocorrência de um evento falso e, portanto, é também falsa?

Taruffo (s.d., p. 134), em que pese tratar do tema sob o ponto de vista de uma

narrativa judicial, ajuda a responder essas perguntas com propriedade:

Em realidade, os fatos do caso podem ser identificados como tais e ser

separados das dimensões jurídicas do caso. Por certo que quando se fala

de fatos em sua existência material e empírica: as narrações só podem

se referir a “declaraçãos acerca de fatos”. Um declaração acerca de

um fato, é qualquer declaração em que se descreve que um evento

ocorreu “de tal e qual maneira” no mundo real (o que, por suposto, se

assume existente e não meramente imaginado ou sonhado). Na medida

que descreve algo que se assevera haver ocorrido no domínio da

realidade, esse declaração é aponfântico, isto é: pode ser verdadeiro ou

falso.

[...]

De fato, os acontecimentos que são relevantes na administração da justiça

são tranches de vie, é dizer, eventos ou conjuntos de efeitos que têm de ver

com a vida das gentes. Isso significa que normalmente eles podem ser

determinados em um nível macro: inclusive quando resultem envoltas a

microfísica ou genética, o objetivo final é sempre provar “um fato da

vida das gentes”. Normalmente, eles podem ser determinados com

suficiente especificidade por referência a uma situação jurídica dos

sujeitos envolvidos. (Destacou-se).

Com base nos dizeres de Taruffo, tem-se, pois, que a gravação do juiz no caso da

paternidade e maternidade dos pais divorciados sobre a guarda compartilhada é falsa, sob a

perspectiva da lógica do verdadeiro ou falso. É falsa, pois que gravou eventos cuja

ocorrência no mundo real não correspondem.

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Uma gravação jurídica é uma gravação sobre a ocorrência de um evento da vida das

gentes que o juiz quer provar, como diz Taruffo, gentes essas abarcadas também pela

gravação. É por isso que qualquer palavra ou sequência delas, como numa gravação

semeiótica, é um signo, no sentido de que a gravação grava uma situação relativa à vida dos

sujeitos.

Aqui uma conclusão fulminante: o evento relevante juridicamente é todo evento da

vida das gentes que possa resultar efeitos jurídicos, é dizer, é toda ocorrência de evento que

esteja gravado em um signo jurídico como passível de irradiar resultados juridicamente

relevantes.

Taruffo (s.d., p. 136) adota essa linha:

O padrão para avaliar a relevância é duplo: um fato é juridicamente

relevante (na gíria jurídica norte-americana “material”) quando

corresponde a um suposto de fato definido por uma norma jurídica que se

considera possivelmente aplicável ao caso. As regras definem “tipos de

fatos” (“Fac-types”) e os fatos concretos são relevantes (como “fac-

tolken”) quando correspondem a esses tipos. Então, os fatos

juridicamente relevantes são definidos como tais por referência a uma

norma que é vislumbrada como padrão para tomar a decisão final:

esses fatos são os facta probanda básicos, isto é, o objeto principal de

prova, e por tanto o conteúdo das asserções fáticas mais importantes.

(Destacou-se).

Com fundamento em Taruffo, o que se tem é, pois, que o legislador grava, entre os

eventos da vida das gentes, aqueles relevantes juridicamente para irradiar efeitos também

jurídicos, gravando-os em um signo geral de possível ocorrência. Trata-se de um signo de

um evento da vida das gentes de potencial ocorrência e relevante juridicamente.

A pedra de toque aqui é que, diante do que aqui se defende, a gravação do legislador,

para fins dessa regra padrão sobre um evento da vida das gentes de possível ocorrência e

relevante juridicamente, deve ter uma relação, ainda que mediata, com a experiência sensível

(realismo peirceano).

O que se nega aqui é que possa o legislador gravar eventos da vida das gentes que

não possam ser gravados na linguagem cotidiana (para usar a nomenclatura de Ross). Nesse

sentido, o processo de gravação legislativa não é de todo livre, eis que o evento passível de

gerar consequências jurídicas, gravável pelo legislador, é um daqueles da vida das gentes e

que, nesse piso, pode ser gravado na linguagem das gentes, a qual, repita-se, deve se articular

pelo meio de expressão de uma língua.

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Veja-se que o uso do verbo gravar aqui resolve boa parte dos problemas em relação

à necessidade de se tocar a realidade sensível no processo de gravação do expediente

legislativo. Isso porque gravar, como numa câmera de filmagem, não pode implicar numa

criação do evento, eis que a câmera que filma (grava) o evento é como que um

prolongamento desse evento, num processo que se chama aqui simbiótico.

O percurso jurídico, pois, não escapa da fulminante verdade de que a experiência e,

dessa forma, a linguagem social, estabelecem-se como uma linguagem gravada que a

linguagem gravadora do direito deve considerar para que seja possível gravar

juridicamente.

Isso deve ser atribuído ao legislador que grava os fatos[eventos]-tipo, conforme

nomenclatura de Reale, passíveis de efeitos jurídicos e também ao juiz que interpreta e aplica

a gravação jurídica padrão presente no sistema, de modo que, esse último, tampouco pode

gravar a ocorrência de eventos que não digam respeito àqueles da vida das gentes e, pois,

que possam ser gravados da linguagem cotidiana das gentes, a qual somente se articula

(grava) por meio de uma língua operacional entre os membros de uma comunidade de fala.

Nota-se aqui a importância de um elemento que ainda não foi estudado com

profundidade: a prova judicial. Como disse Ross (1963, p. 209-210), “toda aplicação do

direito tem como fundamento fatos[eventos] condicionantes, cuja existência o juiz considera

provada”.

Isso implica que o fato relevante juridicamente é aquele que pode ser provado e

considerado, assim, como fundamento para uma decisão judicial. As consequências jurídicas

decorrentes da ocorrência de um evento no mundo real previstas em um signo jurídico, são

deflagradas quando a ocorrência desse evento pode ser provada quando da aplicação do

direito.

Isso é uma conclusão fundamental e que implica que prova e eventos que se provam

andam juntos para que a aplicação do direito se opere implicando consequências

juridicamente estabelecidas.

O ponto que merece aclaramento aqui é que, pelo que aqui se defende, prova é

espécie do gênero gravação, de modo que provar é, de uma formaou de outra, uma espécie

de gravação de um evento dentro do processo judicial. É por isso que se fala aqui de processo

de gravação judicial.

O tema da prova e da linguagem das provas restará em suspenso para ser tratado mais

adiante em toda sua extensão.

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Conclua-se, por agora, que o processo de gravação judicial é um que grava num

signo jurídico a ocorrência de um evento ocorrido na experiência sensível e que, gravado

nos limites do direito, por uma autoridade jurídica competente, faz irromper consequências

de direito às partes também envolvidas na gravação.

Vem se utilizando ao longo desse texto as palavras evento e fato, por vezes, como

equivalentes. É o momento de enfrentar o tema para dizer que há uma diferença fundamental

entre evento e fato que deve ser corretamente compreendida para fins dos resultados jurídicos

que essa diferença implica.

Aqui se repisa uma premissa fundamental do presente trabalho: a de que em termos

linguísticos não existem sinônimos (conforme já se fundamentou nos dizeres de

Bloomfield), de modo que as palavras evento e fato não podem apresentar significados

iguais.

Sobre a diferença entre evento e fato na linguagem jurídica é do que se cuida na

sequência.

4.4 Diferença entre Evento e Fato na Linguagem Jurídica

A ideia que tem prevalecido na doutrina é de que o fato jurídico é uma realidade

revelada para dentro da linguagem do direito que implicará, via de regra, consequências

juridicamente determinadas.

Que revela o fato jurídico? O fato jurídico revela uma realidade exterior ao direito,

uma extra realidade, uma summa realidade. Aqui se parte de que “existe” uma realidade

independentemente da linguagem (inclusive da linguagem jurídica), o que não se confunde

com a verdade sobre essa realidade, como já se estabeleceu.

No direito, referentes ou relações entre referentes levam a ideias de dever-ser

jurídico, as quais são fundamento de signos jurídicos, os quais formam as leis jurídicas,

produtos linguísticos de ideias, que são resultantes de um processo de observação abstrata

exercido pelo legislador (um processo de gravação jurídica da summa realidade).

Quando o legislador edita leis, está gravando eventos da summa realidade na

realidade semeiótica do direito. A camada jurídica é uma camada semeiótica (com funções

prescritiva, impositiva, cogente e realizativa) de gravação sobre uma camada linguística

gravada, que é a linguagem ordinária operacionalizada dentro de uma língua.

A camada semeiótica da ciência do direito é, por sua vez, uma camada com função

descritiva acerca da camada semeiótico-jurídica, a qual, como já dito, é uma camada de

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gravação da linguagem das gentes articulada em uma língua em um contínuo possível

semeiótico sem fim de camadas.

O fim não existe nesse processo semeiótico de gravação. Trata-se de um continuum.

Porém há um início, o qual corresponde à summa realidade, que pode ser objetal e/ou

antropomórfica. A diferença é a participação do homem na realidade. O movimento dos

planetas é uma realidade objetal e a guerra entre nações é uma realidade antropomórfica

porque tem a participação do homem.

O princípio do percurso semeiótico, como se disse, toca de alguma forma o mundo

sensível, sob pena de não se caracterizar o resultado em um signo linguístico; não há signo

sem objeto. Se não há signo linguístico, pois inexistente a aproximação com a experiência

sensível, não há se falar em uma realidade semeiótica possível, nem da linguagem das gentes

nem na linguagem jurídica.

Como tratado, o que não pode ser afastado é que, gravar em qualquer nível

linguístico que se deseje, implica gravar dentro de uma língua que permite a articulação

dessa gravação. Gravar juridicamente implica, assim, gravar juridicamente na língua

portuguesa.

Que é gravar juridicamente? Gravar juridicamente é gravar juridicamente um

evento do mundo sensível passível de gerar efeitos jurídicos. Esse evento está numa realidade

subjacente gravada. No direito, grava-se um evento da summa realidade (objetal ou

antropomórfica) que possa implicar consequências jurídicas.

Portanto, o legislador, que é quem grava eventos nas regras do jogo jurídico e

também suas consequências, grava eventos da summa realidade ou relações entre eles, para

que tenham efeitos jurídicos também determinados juridicamente.

Essa é, assim, uma regra-padrão que implicará consequências jurídicas ou, como se

disse anteriormente, uma regra geral e abstrata que gravará um evento que, quando ocorrido,

irradiará efeitos de direito.

Desse modo, quando o legislador grava juridicamente que o evento de se fumar em

ambiente privado é proibido, sob pena de consequências jurídicas, isso implica que se esse

evento da summa realidade for verificado e gravado juridicamente como ocorrido no mundo

sensível, essa gravação desencadeará implicações também jurídicas.

A problemática aqui que parece causar confusão na mente dos cientistas jurídicos diz

respeito à dualidade: se o legialador grava um evento da vida das gentes como passível de

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propagar consequências jurídicas, então qual é o nome que se dá para o signo-gravador na

linguagem jurídica do evento que, gravado pelo legislador, ocorre no mundo sensível?

É aqui que existe o ponto de conexão com o tema da diferença entre evento e fato.

Parte da dogmática tem designado tratar-se de uma dualidade, separando o evento do mundo

sensível daquele da gravação, para chamar esse último de fato jurídico.

Dito isso, diga-se, ainda, que quem grava juridicamente um evento que ocorreu, no

entanto, não é o legislador (esse grava um evento de possível ocorrência que propagará

efeitos jurídicos – trata-se de uma gravação de um evento em potência).

Quem grava juridicamente o evento ocorrido é outra pessoa a quem o direito atribui

competência para tal. Trata-se da autoridade jurídica competente para gravar a ocorrência

de eventos que são passíveis de consequências jurídicas.

Em outras palavras: trata-se da autoridade jurídica competente para gravar a

“existência” de situações, processos, circunstâncias, eventos, etc., que o legislador já gravara

como de potencial ocorrência para geração de consequências de direito.

Como se viu, parte da doutrina traz que o fato jurídico atesta a ocorrência de um

evento, um acontecimento natural exterior ao direito. O juiz (uma das autoridades

competentes para gravar a ocorrência de eventos), quando grava juridicamente o faz a partir

de eventos que ocorreram e que foram gravados em um processo judicial.

Lembre-se: qualquer gravação de uma ocorrência ou “existência” é sempre uma

gravação semeiótica, pois não há gravação possíveis fora de um contexto semeiótico, o que

implica que gravar é o mesmo que usar um signo. Se a gravação é jurídica, esse signo é

também jurídico – um signo jurídico.

A unidade semeiótico-jurídica ou conjunto de unidades semeiótico-jurídicas que

gravam a ocorrência de um evento passível de consequências jurídicas é, como se disse,

chamada, por parte da dogmática, de fato jurídico. É verdade, parte dos cientistas jurídicos,

como se viu, não faz a diferenciação entre evento e fato, mas parece ser maciça a doutrina a

qual vislumbra que no domínio do direito a nomenclatura usada para se referir a um

acontecimento no mundo sensível é fato jurídico.

Ainda que se entenda que o uso de fato jurídico é equívoco ou, ao menos,

desnecessário diante do uso competente da linguagem, como se esclarecerá mais adiante, a

parte da doutrina que não confunde fato com evento, acaba separando-os para trazer que o

fato é revelador do evento que e o fato jurídico é o fato revelador na linguagem do direito.

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234

Nessa linha, Ferraz Jr. (2015, p. 232) traz o exemplo da travessia do Rubicão por

César no sentido de “a travessia do Rubicão por César” ser um evento e “César atravessou o

Rubicão” ser um fato”.

Para Ferraz Jr. (2015, p. 232), quando se diz que “é um fato que César atravessou o

Rubicão” se confere realidade ao evento. Para ele (2015, p. 232), essa realidade: “é função

da verdade, isto é, do uso competente da língua”.

Importante ressaltar que a realidade para Ferraz Jr. (2015, p. 225) “não é um dado,

mas uma articulação linguística mais ou menos uniforme num contexto existencial”. Ele é,

assim, nominalista. Carvalho (2000, p. 351), seguindo essa orientação, traz que: “Fato não

é pois algo concreto, sensível, mas um elemento linguístico capaz de organizar uma situação

existencial como realidade”.

Tomazini de Carvalho (2010, p. 522) adota a mesma linha:

Chamamos evento o acontecimento do mundo fenomênico despido de

qualquer formação linguística. O fato, por sua vez, é o relato do evento.

Constitui-se num declaração denotativo de uma situação delimitada no

tempo e no espaço. E, por fato jurídico entende-se o relato do evento em

linguagem jurídica. Declaração, também denotativo de uma situação

competente, que ocupa posição de antecedente de uma norma individual e

concreta. A diferença entre evento e fato repousa no dado linguístico e,

entre fato e fato jurídico, na competência da linguagem. Evento é uma

situação de ordem natural, pertencente ao mundo da experiência, fato

é articulação linguística desta situação de ordem natural, e fato

jurídico é a sua articulação em linguagem jurídica. (Destacou-se).

De Santi (2004, p. 62) trata da perspectiva da autoridade jurídica que fala

juridicamente sobre a summa realidade:

o ato de aplicação para entrar no direito há que se revestir de linguagem.

Quer dizer, para ultrapassar o portal que separa o mundo do ser e o mundo

do dever-ser, é preciso transubstanciar o ato de aplicação na linguagem do

direito. O ato de aplicação é o evento, que é traduzido por uma

articulação linguística, o fato: o evento retido do passado é o

significado; o fato representado, o significante. (Destacou-se).

Como se verifica, a posição dos cientistas jurídicos já posta diz que o fato é uma

articulação linguística que traduz o evento em linguagem. Se essa tradução, segundo essa

doutrina consultada, se dá na linguagem do direito, ocorre a partir do uso competente da

língua na linguagem ordinária com vistas ao uso competente da língua na linguagem jurídica.

Se assim o é, há fato jurídico, conferindo-se realidade ao evento.

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235

Tal doutrina peca, no entanto, como aqui se entende, entre outras coisas, nesse ponto

específico de que o fato jurídico conferiria realidade ao evento. De que realidade se está

falando? Se a matriz dogmática for Ferraz Jr., isso implica que essa realidade é uma realidade

puramente linguística, ou melhor, uma realidade nominal (postura nominalista).

Portanto, o que dizem os autores citados é que, considerando esse fundamento, não

há uma summa realidade, mas tão somente aquela realidade semeiótica do fato que traduz o

evento. De certa forma, ao se adotar essa linha de raciocínio, fato e evento são a mesma

coisa, pois que o que está a revelar o fato se é ele a única realidade “existente”?

Nesse caso, o fato absorveria o evento como única realidade possível, pois o que se

define são conceitos e não a summa realidade, do que decorre ser toda a definição nominal,

como traz Ferraz Jr., nos termos já mencionados.

A gravação da summa realidade em realidade semeiótica não implica, no entanto,

como aqui se defende, uma exclusão da summa realidade (postura realista). É, nesse sentido,

que pontua Peirce quando traz que a realidade é o modo de ser da coisa real, a qual é como

é, independentemente de crença científica sobre ela.

Essa realidade peirceana é diferente da verdade, a qual, ao fim, confunde-se com

crença científica ainda que falível e atualizável a todo o tempo e em todo o espaço. Para

Peirce (CP 5.565), a verdade da declaração “Cesar atravessou o Rubicão” consiste na

circunstância de que “quanto mais forçarmos nossos estudos arqueológicos ou outros, mais

fortemente essa conclusão se fortalecerá em nossas mentes para sempre – ou assim ocorreria,

se o estudo persistisse para sempre”.

Verdade para Peirce diz com uma investigação que tende a trazer crença científica,

ou melhor, com uma concordância entre uma declaração abstrata (aqui se defende que se

trata de uma gravação) e um limite ideal, em direção ao qual uma investigação interminável

tenderia a produzir crença científica, a qual é sempre falível.

Nesses termos, uma declaração (gravação) suportada pelas melhores evidências em

um espaço-tempo determinado é verdadeira, ainda que essa crença científica formada seja

sempre atualizável por ser falível. Questões sobre preclusão, prescrição, decadência, etc., as

quais poderiam bater de frente com essa possível atualização, serão tratadas devidamente na

Parte 5 deste trabalho.

Peirce (CP 5.565) explica que a coisa real difere da verdade da declaração (gravação)

“Cesar atravessou o Rubicão” no sentido de que:

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236

um metafísico idealista pode assegurar que em tal proposição também

repousa a completa realidade por detrás da proposição; porque se os

homens podem por algum tempo persuadir-se a acreditar que Cesar não

atravessou o Rubicão, e podem forcar-se a prover essa crença universal

para um número de gerações, ainda assim uma investigação final – se isso

persistisse – poderia trazer de volta uma crença em contrário. Entretanto,

em mantendo esse preceito, o idealista necessariamente extrairia a

distinção entre verdade e realidade.

O que se pode interpretar, pois, é que Peirce considera verdade o que os nominalistas

chamam realidade, afastando frontalmente uma confusão entre verdade (no sentido de

realidade semeiótica) e summa realidade, a qual deve ser considerada na perspectiva exterior.

De forma simples, Peirce considera a presença do objeto na relação semeiótica, de

modo que sem um toque na experiência sensível não há signo e, dessa forma, linguagem. Se

há possibilidade de mudança de uma verdade, é porque uma nova gravação possível de um

referente se apresenta e essa é a prova mesma de que esse referente é real.

Portanto, realidades semeióticas diferem da summa realidade ao menos na

diferenciação dogmático-pedagógica que aqui se traz para que seja possível didaticamente

explicar o fenômeno. Essa posição encontra suporte no realismo peirceano, pois que a

própria consideração de que existe um referente (real) já é suficiente para atestar a

“existência” de uma dualidade e, se essa premissa é considerada, uma realidade subjacente

poderia ser considerada na relação.

Importante trazer que considerar a “existência” de uma realidade subjacente não

implica distanciar-se de uma teoria que credite à convenção social o uso linguístico aplicável

a uma certa realidade. Ao contrário, implica assegurar que o signo linguístico, inclusive

jurídico, grava uma summa realidade ou relações nela presentes que são atualizáveis diante

de uma nova convenção social.

Aqui se volta à questão do portal de acesso para a summa realidade. Que portal é

esse? Como se disse, trata-se do signo como ponto de contato com a summa realidade

(intersecção), com o referente, eis que um signo é sempre sobre algo.

Porém, que medida dá o signo dessa summa realidade? Trata-se de uma medida

“real” ou de uma medida fictícia? É fácil responder essa pergunta com as premissas já

estabelecidas nesse trabalho. A medida que o signo dá do real, dentro de um realismo

peirceano coadunado com um realismo especulativo é uma medida simbiótica.

Há um grau de inclusão e exclusão permanente na relação do sujeito com o objeto,

sendo esse grau mesmo a razão que confirma a “existência” do sujeito no objeto e vice-versa.

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237

Nesse piso, em uma visão que se pode chamar aqui também materialista, o que se tem é que

é mais o sujeito que é uma extensão do objeto que o contrário, de modo que a observação

permite tão só vislumbrar a simbiose, eis que o sujeito é também o reflexo no olhar do objeto

que se capta com o órgão visual.

É o que aqui quer se chamar teoria objetivo-multidimensional. Uma teoria de

gravação semeiótico↔estesiológica de signos que simbioticamente se relacionam com o

objeto. Essa simbiose permite considerar o mundo no homem e não o homem no mundo.

Trata-se de uma mudança radical de perspectiva.

Então, a ideia de trânsito em mundos é inócua diante dessa perspectiva, eis que, como

traz Žižek, nos termos já tratados, a realidade é a mancha na figura da realidade no olho do

homem, a qual inclui o próprio homem na figura. Essa mancha é que permite a simbiose

entre realidade e homem. Ela é a própria realidade simbiótica, o que afasta, inclusive, a

alegação muito comum de que a realidade seria inesgotável, eis que, se é um prolongamento

do homem e vice-versa, esgota-se, ao menos em alguma medida, no homem.

Quando se diz que o signo deve tocar o real de alguma forma para que se esteja diante

de um signo, isso quer implicar que esse contato é “simbiótico”. Não há uma separação

efetiva, o que há é uma separação racional, mas somente na medida em que o método

cartesiano impregna a cultura ocidental, por conta da herança principalmente da lógica dos

estoicos.

Isso parece óbvio ao se olhar a questão sob a perspectiva da convenção em uma

comunidade de fala. Onde está na convenção que existe uma separação entre reinos: reino

lógico e reino natural. Essa separação não “existe”, é fruto do caráter cartesiano do

pensamento ocidental, mas, em absoluto, reflete como as coisas são.

A convenção social sobre o mundo, ao contrário, ajusta uma crença, uma visão sobre

as coisas e, se o ajuste é de uma visão, é porque a mancha no olho está na visão que se ajusta

e, dessa forma, a convenção também é simbiótica.

Isso não prejudica a investigação científica, a diferença é que o método é diferente.

Não se trata de um método lógico-dedutivo para observar a summa realidade, mas sim de

um método abdutivo, como quer Peirce.

Nesse, o que se term é um direcionamento ao absoluto da summa realidade para

gravá-la, porém, sempre em um continuum de atualização “em suspenso”, eis que a mancha

no olho depende do tempo e do espaço do olhar e esse tempo e espaço são diferentes a cada

pulsar de vida na dinâmica das gentes. Ora, se o olhar muda, muda a mancha, o que quer

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238

dizer que o continuum é daqueles multidimensionais. É, assim, a investigação que permitirá

um novo olhar, uma nova mancha, uma nova simbiose.

É por isso que Peirce é enfático ao dizer que somente um signo dinâmico é que

pode distinguir a realidade da ficção, sendo ingrediente essencial do signo justamente

essa dinamicidade, que é a prova do falibilismo de qualquer convenção que queira ajustar

algo do absoluto – do summum rerum.

Vejam-se as palavras de Peirce (CP 2.337) acerca do tema:

O mundo real não pode ser distinguido de um mundo ficção por nenhuma

descrição. Muito se discutiu se Hamlet era louco ou não. Isso

exemplifica a necessidade de se indicar que o mundo real é significado,

se ele for significado. Agora, a realidade é completamente dinâmica,

não qualitativa. Ela consiste em vigorosidade. Nada além de um signo

dinâmico pode distingui-la da ficção. É verdade que nenhuma língua

(até onde eu sei) tem uma forma particular de fala para mostrar que

o mundo real é do que se fala [dele]. Porém, isso não é necessário, já que

tons e aparências são suficientes para mostrar quando o falante está a sério.

Esses tons e aparências atuam dinamicamente sobre o ouvinte, e fazem

com que ele se atente às realidades. Eles são, pois, os índices do mundo

real. Assim, não resta nenhuma classe de asserção, a qual não envolva

índices a não ser que sejam análises lógicas e proposições idênticas. Porém,

as primeiras serão mal interpretadas e as últimas falsas, a não ser que sejam

interpretadas como se referindo ao mundo dos termos e conceitos; e esse

mundo, como um mundo fictício, requer um índice para o distinguir. É,

portanto, um fato, como a teoria pronunciou, que um índice, ao menos,

deve formar parte de toda a asserção. (Destacou-se).

As palavras de Peirce são de uma profundidade ímpar, e parecem muito complicadas

de entender, mas não é bem assim. O que se tem, pelo que aqui se interpreta, é que a

separação entre ficção e a realidade, entre a loucura, a psicopatia, esquizofrenia ou qualquer

distúrbio que reflita na noção de realidade é muito tênue e somente pode ser tomada no plano

da perspectiva do dinamismo semeiótico.

Assim, é somente com o reconhecimento do falibilismo inerente a todo signo que se

permite a noção de realidade se ajustar na mente e, ainda assim, essa noção será sempre uma

noção relativa, porque mesmo a simbiose do homem na figura do que se afigura ao homem,

é uma dinâmica que cambia a cada olhar.

Desse modo, é só o panorama do continuum que apazigua a mente para colocar o

olhar como em um filme da realidade, cuja duração é a duração de quanto durar o olhar. Se

isso é correto, é porque a mancha também é um continuum de dinamismo e, diante do

continuum de dinamismo, o embaralhamento de sujeito com a realidade exsurge como

inerente no processo.

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O continuum de dinamismo surge, assim, para a mente, também, como um

reconhecimento na consciência de uma experiência. A dinamicidade das realidades que se

afiguram ao homem forma a ideia e percepção de continuum na mente, mas essa ideia e

percepção só é possível na medida em que é uma ideia convencional.

Ora, se é convencional, é porque é fruto de uma regularidade e essa regularidade

aparente autoriza a vida em sociedade, eis que implica ser possível a comunicação. Se a

dinamicidade mudasse a percepção a cada olhar como, em verdade, ocorre, isso

desautorizaria a vida em sociedade, eis que a comunicação seria dinâmica e convenção é,

nos termos de Lewis, como já se trouxe, sujeição a uma regularidade.

É esse sentimento de regularidade que a experiência “engana” na mente que torna a

comunicação possível. Trata-se de um hábito inteligente. Essa comunicação se faz por

signos, os quais advêm de camadas de percepção. São as tricotomias peirceanas.

Sobre o tema, esclarece Peirce (CP 2.435):

Um julgamento é um ato de consciência em que se reconhece uma

crença, e uma crença é um hábito inteligente sobre o qual devemos

atuar quando a ocasião se apresentar. De que natureza é esse

reconhecimento? Ele deve estar muito próximo da ação. Os músculos

podem se contrair e podemos nos controlar apenas por considerar que a

ocasião apropriada ainda não surgiu. Porém, em geral, virtualmente

resolvemos sobre uma certa ocasião para atuar como se certas

circunstâncias imaginadas fossem percebidas. Esse ato, o qual

equivale a resolver, é um ato peculiar da vontade em que causamos a

imagem, ou ícone, ser associado, num modo peculiarmente extenuante,

com um objeto representado para nós por um índice. O ato mesmo é

representado na proposição por um símbolo, e a consciência disso

perfaz a função de um símbolo no julgamento. Suponha, por exemplo,

que eu detecte uma pessoa com quem eu tenha que lidar segundo um

ato de desonestidade. Eu tenho na mente alguma coisa como uma

“fotografia composta” de todas as pessoas que eu já conheci e

interpreto a partir disso aquelas que tiveram aquela característica, e

no instante que eu faço a descoberta relativa àquela pessoa, a qual eu

distingo de outras por certas indicações, sobre aquele índice, naquele

momento em diante aparece o rótulo MALANDRO, para permanecer

indefinitivamente. (Destacou-se).

Colha-se o exemplo do extrato acima. Verifique-se que essa primeira imagem que

surge na mente como que um diagrama, o qual apresenta similaridade com o objeto, em uma

relação de mera razão, é um ícone: uma totalidade de pessoas que se conhecem.

Anote-se que a segunda gravação, que já apresenta uma relação física de conexão

direta com o objeto, distinguindo-o de um grupo de outros objetos, eis que força a atenção

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para o objeto especificamente, é um índice: aquela pessoa específica que possui a

característica de ser desonesta.

Finalmente, pontue-se que, avançando-se na gravação, tem-se uma associação de

ideias ou uma conexão habitual do signo com o objeto. Trata-se do nome geral do objeto:

MALANDRO.

Par melhor compreender o tema, verificar CP 1.369 e seguintes e CP 2.92. Peirce

(CP 1.372) traz ainda que uma proposição é uma descrição geral porque “pretende estar

numa relação real com o fato, para ser realmente determinada por ele, de modo que somente

pode ser formada pela conjunção de um nome e um índice”.

Para se entender as tricotomias peirceanas, é preciso visualizar o signo como a

matrioska (boneca russa) que encapsula as demais por debaixo daquela que se sobrepõe, de

modo que ícone compõe índice que compõe símbolo.

Peirce também trabalha com a ideia de “degeneralização”, no sentido de que o

símbolo é a generalização máxima, podendo ser “degeneralizado” para índice e ícone, sendo

que esse último não degeneraliza.

Sobre o tema, veja-se como se posiciona Peirce (CP 2.92):

Signos têm dois graus de degeneralização. Um Signo degeneralizado num

grau menor, é um Signo Obsistente, ou índice, o qual é um Signo cuja

significância do seu Objeto é devida a ele ter uma relação genuína com

aquele Objeto, sem relação com o Interpretante. Assim, um exemplo,

é [...] uma batida na porta como indicativo de um visitante. Um signo

degeneralizado num grau ainda maior é um Signo Original, ou Ícone, o

qual é um signo cuja virtude significante é devida simplesmente à sua

Qualidade. Assim, por exemplo, são as imaginações de como eu atuaria

sob certas circunstâncias, mostrando-me como outro homem

provavelmente atuaria. [...]

Um Signo Genuíno é uma Signo Transuacional, ou símbolo, que é um

signo, o qual deve sua virtude significante à característica, a qual pode

apenas ser percebida com a ajuda de seu interpretante. Qualquer

articulação de fala é um exemplo. (Destacou-se).

O que se tem, pois, é que à exemplo das categorias ceno-pitagóricas tratadas

anteriormente no presente texto, essa divisão triádica das tricotomias também exsurge

importante ao estudo da diferença entre evento e fato na linguagem jurídica.

Nesse contexto, sob a perspectiva do signo em relação ao seu objeto de referência, o

evento como o objeto propriamente dito do signo, ou seja, como evento da summa realidade

e não evento da realidade semeiótica, ou como se chamará aqui como evento-absoluto e não

evento-semeiótico, entra na tricotomia apenas mediatamente.

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O evento-signo ou evento-semeiótico, no seu aspecto de qualidade primeiramente

apreendida, como um diagrama de similaridade, em uma relação de mera razão com o objeto,

pode ser essa primeira imagem na mente do legislador para elaborar a regra que grave um

evento passível de consequências jurídicas. Pode ser, também, essa qualidade primeira de

similaridade apreendida por aquele que gravará juridicamente eventos ocorridos que foram

gravados pelo legislador como passíveis de efeitos de direito. Algo como a imaginação de

que alguma coisa deve ser passível de consequências jurídicas. Aqui predomina a ideia de

origem (signo original). Esse evento é um ícone jurídico.

O evento-signo ou evento-semeiótico, em uma relação de conexão física, direta e

genuína com o evento-objeto ou evento-absoluto, distinguindo-o de outros, pode ser, por

exemplo, uma foto do corpo esfaqueado em um caso de homicídio, servindo como prova no

processo-crime para a aplicação do direito pela autoridade competente – onde há

predominância da ideia de obsistência, resistência, obstáculo – é um índice jurídico.

Finalmente, o evento-signo ou evento-semeiótico em uma relação de gravação do

objeto com base em uma conexão devida ao hábito, dependendo de uma interpretação, pode

ser, por exemplo, uma sentença judicial que aplica uma gravação legal, na qual predomina

a ideia transuasão e transcendência é um símbolo.

Lembre-se que qualquer aplicação do direito necessariamente é uma generalização,

a qual “encapsula” no sentido de gravar, a partir do símbolo jurídico, um índice jurídico e

um ícone jurídico.

O evento pode ser ícone, índice ou símbolo. Ícone se pensar nessa ideia de qualidade

de um evento que nessa própria ideia, ainda original, apresenta-se (potencialidade). Poderá

ser índice, caso se entenda que uma foto do corpo esfaqueado é um evento-semeiótico

daquele acontecimento do mundo que é o “esfaqueamento daquele corpo”.

Poderá ser símbolo se se pensar no evento como gravação em linguagem competente

de um acontecimento ocorrido e gravado pelo legislador como passível de consequências

jurídicas. Aqui tem que ver com interpretação e aplicação do direito – norma jurídica.

A conclusão que se apresenta nesse tópico é que, diante do realismo peirceano, não

há de se falar em realidades “sinônimas” para fins do que os signos evento e fato podem

gravar, eis que, ou evento e fato têm o mesmo objeto possível, ou gravam uma summa

realidade diferente. Como são signos linguísticos diferentes, pelo que aqui se defende, tem

de gravar uma summa realidade diferente.

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Do contrário seria o mesmo que dizer que o signo linguístico “mesa” pode gravar a

mesma summa realidade do signo linguístico “cadeira”. Assim, “mesa” e “cadeira”

significariam a mesma coisa. Isso tonaria a comunicação entre as gentes no mínimo muito

difícil, pois pessoas começariam a comer “à cadeira” ao invés de se sentarem “à mesa” para

comer.

Nessa linha de argumentação, é que se pontua que o que a doutrina chama fato

jurídico tampouco pode ser uma terminologia sinônima à do evento passível de

consequências juridicamente determinadas. Disso decorre que aquilo que se prova

juridicamente é, em verdade, um evento gravado nos limites do direito, e aqui evento é tanto

summa realidade como realidade semeiótica, do que decorre que o termo fato jurídico é

equívoco ou ao menos despiciendo no uso competente da língua.

A diferença fundamental entre signos jurídicos e signos linguísticos deve ser

explicada para compreensão completa do tema, eis que há uma diferença de “efeitos” entre

a linguagem ordinária e a linguagem jurídica.

A diferença fundamental é que os signos jurídicos têm funções prescritivas,

impositivas, cogentes e realizativas. A linguagem ordinária tem função de gravação

descritiva da summa realidade, função essa que predomina, porém, há também diversas

outras funções que podem ser sacadas: função moral, ética, religiosa, política, psicológica

etc. Todas essas funções da linguagem ordinária, no entanto, não têm força impositiva, o que

exsurge como grande diferencial.

No direito, são os acontecimentos naturais que, previstos em signos jurídicos como

de possível ocorrência, irradiarão, quando gravada sua ocorrência, ou seja, a ocorrência de

um evento, efeitos juridicamente relevantes.

Não há se falar em um fato jurídico que confere realidade ao evento (acontecimento

natural). O evento, quer na summa realidade, quer na realidade semeiótica já é uma realidade

em si mesmo.

Ao se adotar a teoria realista, cuja perspectiva é objetivamente orientada, resta ainda

mais claro que inexiste um mecanismo de conferência de realidade no fato. Em primeiro

lugar, pelo motivo de que, ao se dizer que o fato jurídico confere realidade ao evento, já se

está admitindo que há um evento para que uma realidade seja conferida. Ora, nesse próprio

dizer, já se pressupõe a “existência” do evento e, se ele “existe”, é porque é real. Se é

real, então não há que se conferir realidade a algo que já é real.

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Em segundo lugar, na linha mesma do realismo, pelo que aqui se interpreta e defende,

não há de se falar em conferência de realidade ao evento porque a realidade mesma é

simbiótica, simbiótica desde o plano do signo, simbiótica desde o plano da realidade e

simbiótica desde o plano do sujeito. A consideração, como já se disse, é inclusiva e

exclusiva, do que decorre que nos signos “há”, em alguma medida, alguma extensão do real,

sob pena de não gravar a uma realidade.

Isso pode soar muito estranho, mas pense no conceito, que é a ideia na mente –

processo psicológico como diz Saussure. De onde vem o conceito? De um processo

fisiológico. Ao se tomar esse processo fisiológico como o processo de observação, o que se

tem é que é o olhar do observador que toma a figura de algo para si. Se desse processo

fisiológico é que exsurge o processo psicológico, então é do olhar do observador que nasce

o conceito na mente.

Bem, ao se dizer que a figura no olho contém o próprio sujeito na figura, isto é, o que

se afigura no olho é também uma medida do homem no objeto, isso quer dizer que o conceito

que exsurge da figura no olho do homem é um conceito simbiótico do objeto e do sujeito.

Ora, se isso é verdadeiro, o evento que se observa é uma extensão, também, em uma

certa medida, do sujeito-observador, de modo que o conceito que aparece na mente é

simbiótico. Aqui já há confusão da realidade semeiótica do pensamento com a da summa

realidade. Ademais, se o observador usar um meio de expressão para figurar o conceito –

um significante escrito de um signo; esse significante terá um conteúdo.

A substância desse conteúdo também de algum modo será simbiótica, eis que o

conceito o é. Lembre-se que Kant, genialmente, como já dito, fala em extensão e figura, o

que agora faz todo o sentido, porém, o faz dentro da sua intuição pura, a qual se verifica a

priori. A diferença é que aqui a verificação é simbiótica. Não exatamente a priori e

tampouco a posteriori – uma terceira via.

Assim, o evento da summa realidade e o evento da realidade semeiótica – agora no

meio de expressão escrito, são realidades simbióticas, de modo que não é compossível com

isso dizer que o fato confere realidade ao evento. Não é possível conferir realidade, eis que

a realidade não pode ser conferida a nada e/ou ninguém (a não ser diante de poderes mágicos

suprassensíveis); ela é quando muito gravada e, no caso aqui, já é uma realidade por ser

simbiótica.

Dito isso, diga-se, finalmente, que, filosoficamente, o equívoco da utilização de

evento e fato na maneira que faz a dogmática aparece de maneira clara, diante da análise da

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diferenciação entre objeto, evento e fato. A importância do tema para o direito está na

circunstância de que o juiz grava, para aplicar o direito, acontecimentos, os quais tomam

lugar no mundo. Diante disso, é preciso responder se esses acontecimentos são eventos ou

são fatos. Para responder isso, é preciso formular outra pergunta: eventos, fatos e/ou objetos

tomam lugar no mundo?

É do que se cuida.

4.5 Fato Jurídico sob a Perspectiva da Diferença entre Objetos, Eventos e Fatos

Para se saber se eventos e fatos, também em comparação com objetos, estão no

mundo, é preciso, em primeiro lugar, trabalhar a diferença ou potencial diferença entre eles.

A diferenciação entre evento e fato é algo contestado na filosofia. Austin (1979, p.

104) traz a seguinte ponderação:

Fenômenos, eventos, situações, estados das coisas são comumente

supostos de estar genuinamente dentro do mundo, e até mesmo Strawson

admite isso. Ainda ciente de tudo isso, podemos dizer que eles são fatos.

O colapso dos Alemães é um evento e é um fato – foi um evento e foi

um fato. Strawson, no entanto, parece supor que qualquer coisa da

qual se possa falar ‘... é um fato’ não é, automaticamente, alguma coisa

dentro do mundo. (Destacou-se).

Diante dessa ponderação de Austin, Vendler (1967, p. 122) busca uma resposta para

a pergunta: O que está no mundo? Resposta que permitiria identificar se há somente objetos

no mundo, ou também eventos, ações, processos, e até mesmo fatos.

Quanto ao pano de fundo que dá sustentáculo à concepção de Vendler sobre objetos,

esse não deixa, de modo explícito, uma clarificação sobre o tema, mas dá indícios de que

sua concepção diz respeito ao aspecto linguístico utilizado para falar de objetos.

Ele diz: “Quanto ao conceito de um objeto, eu mais uma vez sigo o procedimento de

perguntar quais tipos de adjetivos e verbos estão disponíveis para falar sobre objetos”

(VENDLER, 1967, p. 143).

Vendler usa uma concepção linguística para falar de ocorrências do mundo por meio

de uma operação de “nominalização” (ou substantivação) acerca dessas ocorrências no

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245

mundo. Trata-se de uma transformação de uma ocorrência no que ele chama de um nominal

perfeito e/ou um nominal imperfeito.

Em uma explicação bem simples (VENDLER, 1969), a diferença entre nominal

perfeito e nominal imperfeito diz respeito à presença viva ou não do verbo utilizado no

contêiner linguístico que acomoda a ocorrência do mundo. Parece complicado, mas não é.

Um exemplo é fecundo: Em “Cesar atravessou o Rubicão”, utiliza-se um verbo: no

caso o verbo “atravessar”. Para saber se é o caso de um nominal perfeito ou de um nominal

imperfeito, é preciso “substantivar” (ou “nominalizar”) e se perguntar se em tal processo de

substantivação (ou “nominalização”) o verbo “atravessar” continua ou não vivo no produto

desse processo.

Chama-se o produto desse processo “contêiner linguístico” ou signo linguístico. É

nesse contêiner linguístico que se acomoda o resultado do processo de substantivação acerca

do evento ocorrido no mundo sensível.

Essa é a linha de teorização de Vendler. Importa trazer que, para fins do presente

trabalho, o que se tem, em verdade, é que esse contêiner de gravação é uma medida muito

rasa para teorizar o fenômeno que se analisa, haja vista que não permitiria acomodar a

dinamicidade dos eventos do mundo sensível.

Assim, como base na teoria que aqui se propõe – teoria semeiótico↔estesiológica,

esse tal contêiner mencionado por Vendler é mais uma gravação do evento da summa

realidade, de modo que o que se acomada nessa espécie de gravação é alguma porção do

evento mesmo num processo de entrelaçamento do signo de gravação com o evento absoluto

(da summa realidade).

Porém, aqui não se contesta que essas gravações, ou como traz Vendler, contêiners,

podem trazer eventos de maneiras diferentes. Como a gravação é também semeiótica, isso

quer dizer que o é, também, o signo que gravará o evento da summa realidade. Vejam-se

alguns tipos de gravações possíveis no signo do evento da summa realidade: a) “A travessia

do Rubicão por Cesar”; b) “O atravessar do Rubicão por Cesar”; c) “Cesar tendo atravessado

o Rubicão”; d) “Cesar tendo sido capaz de atravessar o Rubicão”.

A diferença nas gravações ou nos contêiners, para usar a terminologia de Vendler,

repousa num aspecto semeiótico específico. No exemplo “a)” o verbo “atravessar” não se

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246

encontra mais vivo no contêiner linguístico, ele como que morre no processo de

substantivação, tornando-se um nome substantivo17 “legítimo”.

Assim, “travessia” é um signo linguístico totalmente transformado em nome

substantivo, eis que os “resquícios” do verbo “atravessar” como que desapareceram no

processo de substantivação, de modo que o contêiner linguístico, que é o resultado do

processo, é um nominal perfeito.

Nos exemplos acima “b)”, “c)” e “d)” o verbo “atravessar” continua ativo e vivo no

contêiner linguístico, de modo que se está diante de um nominal imperfeito, pois que o

processo de substantivação como que foi defeituoso, guardando “resquícios” do verbo

“atravessar” em “o atravessar”, “tendo atravessado” e “tendo sido capaz de atravessar”.

Veja-se que não há no produto um substantivo “legítimo” como “travessia”. Ao se falar de

gravação, o que houve foi que no meio semeiótico da gravação houve um processo perfeito

de impressão do evento (nominal perfeito) ou imperfeito para estampá-lo (nominal

imperfeito).

O ponto que importa dessa explicação e que deve ser ressaltado é que, para Vendler

(1969, p. 138), o resultado desse mecanismo acerca de eventos, processos e ações implica

numa gravação ou contêiner que é normalmente equivalente a um nominal perfeito.

Visto isso, volte-se à pergunta que traz Vendler sobre os verbos e adjetivos que

podem ser usados na gravação ou contêiner acerca dos objetos do mundo, para demonstrar

que a partir da resposta que se tenha é possível diferenciar evento e fato.

Vendler (1969, p. 141) explica o tema da seguinte forma: “São os eventos, processos

e ações e não fatos e resultados que ocorrem, tomam lugar, são vistos, ouvidos, seguidos e

observados; eles podem ser graduais, violentos, prolongados”.

Então, segundo a proposta de Vendler, ao se lançar a pergunta sobre determinado

dado concreto no sentido de ter ele ocorrido, tomado lugar, ser visto, ouvido, ser gradual,

violento etc. pode-se diferenciar, pela resposta que se obtém, tratar-se de evento ou de fato.

Nessa linha, de maneira simples, não se pode dizer que uma “pedra ocorre, toma

lugar, é gradual etc.”, mas se pode dizer que um “evento ocorreu, tomou lugar, foi gradual

etc.” Fazendo a pergunta se “pedra ocorre, toma lugar, é gradual?”, pode-se diferenciar um

objeto de um evento.

17 Nomes podem ser substantivos ou adjetivos. Por isso se diz nome substantivo ou nome adjetivo.

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A mesma coisa se aplica ao fato. Ao se formular a pergunta “o fato ocorreu, tomou

lugar, é gradual?”, percebe-se que a resposta negativa diferencia fato de evento, pois “fato

não ocorre, não toma lugar, não é gradual.”

Mas por que é que há essa diferença entre fato, evento e objeto? Isso se deve à sua

relação com as coordenadas de espaço e tempo. É por isso que se deve responder a pergunta

“fatos, eventos e objetos estão no mundo?” A depender da relação que esses têm com as

coordenadas de espaço e tempo, ter-se-á uma resposta negativa ou positiva e isso faz toda a

diferença do ponto de vista filosófico.

Nessa linha, viu-se que os referentes são coisas reais que “existem”

independentemente de uma crença sobre eles. Objetos são coisas reais, nessa aproximação,

eis que “existem” independentemente de uma mente ou de um grupo de mentes, ou seja,

independentemente de uma crença sobre eles.

Nesse contexto, aproxime-se nesse momento dos objetos para tratar de responder à

pergunta: “Os objetos estão no mundo?” Objetos têm propriedades, eles têm tamanhos e

formas, podem ser tocados e olhados de diversos ângulos e distâncias. Eles podem ser

manuseados, mudam de lugar, viram, rolam, caem, levantam.

Objetos podem conter outros objetos. Tudo isso é possível em relação aos objetos

porque eles estão no mundo, estão no espaço desse mundo. A relação dos objetos com o

espaço é direta: eles existem em uma determinada coordenada de espaço.

O uso competente da língua nos permite dizer que uma pedra está em um local

determinado. Se assim o é, é porque essa pedra está no mundo. Pedra é um objeto que

“existe” independentemente de uma crença sobre ela.

Porém, ter uma relação direta como espaço não implica que objetos tenham uma

relação direta com o tempo. Daí a pergunta: Objetos têm tempo em si mesmos? Dizer que

uma pedra durou por um x número de anos parece ser algo despropositado no uso competente

da língua em que pese a pedra possuir uma certa “existência” por conta do desgaste físico.

Uma alternativa seria dizer que há o tempo da pedra, mas não o tempo na pedra, eis

que sua relação com a coordenada de tempo é apenas indireta. Portanto, objetos estão no

mundo e têm uma relação direta com o espaço e uma relação indireta com o tempo.

Quanto aos eventos, ações ou processos, cabe aqui a mesma pergunta: Estão eles no

mundo? Em primeiro lugar, diga-se que a relação dos eventos, ações, ou processos com o

tempo, diversamente dos objetos, é direta: Vejam-se alguns exemplos na forma de nominais

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perfeitos: a) O impeachment da ex-presidente Dilma Roussef foi lento, rápido, gradual,

prolongado; b) O impeachment da ex-presidente Dilma Roussef foi antes, depois, durante...

Tem-se, assim, que, se eles (eventos, ações etc.) ocorrem com graduações de medidas

de tempo, é porque eles são também temporais. Diz-se, pois, do tempo “do” evento e do

tempo “no” evento, da ação, do processo etc. Eles têm, de certa forma e modo, uma

mensuração de tempo em si mesmos.

Porém, estariam eles no espaço? Segundo Vendler (1967, p. 125), somente de

maneira indireta, eis que uma localização deles não pode ser encontrada no espaço

precisamente e diretamente.

Pense-se em alguma coisa como: “O impeachment da ex-presidente Dilma Roussef

foi localizado na cidade de Brasília”. Isso até que faz sentido. Porém, o que esperar de “O

impeachment da ex-presidente Dilma Roussef ocorreu por um espaço de x metros

quadrados”. Isso não faz sentido diante do uso competente da língua.

É até possível uma estimativa de localização e tamanho em relação a eventos, mas

apenas de forma conjectural, o que confirmaria sua relação apenas indireta com o espaço.

Isso é diferente de um objeto, por exemplo: “A montanha tem x metros de altura e se localiza

nos Himalaias”. A relação com espaço é direta para o objeto.

O que se tem é que o “modo de ser” de objetos em relação à coordenada de espaço é

diferente do “modo de ser” de eventos, ações e processos em relação a mesma coordenada.

Ao se perguntar, como recomenda Vendler, acerca dos verbos e adjetivos que podem

ser utilizados para fins de objetos e eventos, outras diferenças surgem. É possível dizer que

eventos, processos e ações ocorrem, são causados, resultados, etc., mas não que pedras o

são, por exemplo. Eventos podem, ainda, ser violentos, demorados, tediosos. Aos objetos

não se pode conferir tais adjetivos.

Finalmente, e os fatos? Estão no tempo e/ou espaço? Segundo Vendler (1967, p. 144),

não estão nem no tempo tampouco no espaço. Não podem se mexer, dividir ou esticar

como os objetos e eles não ocorrem, tomam lugar, são vistos e/ou ouvidos como os eventos,

ações e processos.

Portanto, não existiria um tempo “do” fato nem tampouco um tempo “no” fato, ao

menos do ponto de vista da summa realidade, eis que eles não se submetem às coordenadas

de espaço e tempo do mundo sensível pela simples circunstância de não estarem nele.

Eles não “existem”.

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O tempo que existe nas coisas reais é o tempo delas mesmo se gravadas

semeioticamente por fatos (no sentido de meio semeiótico para gravar a realidade), mas não

relativo aos fatos, eis que não há tempo naquilo que não “existe” diante das coordenadas de

espaço e tempo da summa realidade.

Pense-se em: “o fato musical tomou lugar dentro da sala de concertos às 19 horas do

dia 24 de julho de 1999.” Fica estranho. Porém, “o evento musical tomou lugar na sala de

concertos às 19 horas do dia 24 de julho de 1999” faz todo o sentido.

Fato não toma lugar porque não está em um espaço. Fato não tem tempo em si e de

si mesmo. Evento, contrariamente, ocorre em um espaço e em um tempo. Ocorre no mundo,

em um espaço no mundo, no tempo do mundo.

Portanto, a diferença entre evento e fato seria a de que o último não se submete às

coordenadas de espaço tempo da experiência sensível, como ocorre com o primeiro, de modo

que não se encontra no mundo sensível (summa realidade).

Retorna-se ao questionamento “Que está no mundo? ”. Para responder, Vendler

(1967), compara o mundo a um objeto (ou melhor à ideia do mundo como limitadora de uma

totalidade de objetos). Os objetos seriam partes do mundo como órgãos são partes de um

organismo.

Porém, segundo Vendler (1967), esse mundo não é só objeto, eis que se pode dizer

do começo e fim do mundo, de um acontecimento que acontece, mas do mundo que, mesmo

assim, segue girando. Daí dizer que o mundo é também um processo e, se é um processo, é

porque acomoda outros processos dentro dele.

Portanto, se o mundo é um objeto-processo que acomoda dentro de si objetos e

processos, isso reforça a ideia de que processos, ações e eventos ocorrem no mundo de uma

forma ou de outra, ou seja, são partícipes na summa realidade, cuja soma repousa na ideia

totalizadora dessas realidades na figura do mundo. Dessa forma, eventos estão no mundo e

fatos não. Ross, como já visto, chama essa ideia totalizadora de totalidade concreto-

individual, que seria a própria realidade.

Que são fatos afinal? Segundo Vendler (1967, p. 145), fatos são “sobre alguma

coisa”, referem-se a alguma coisa, falam de alguma coisa. Fatos são “do que se fala”. O

ponto de questionamento é se saber se fatos podem gravar eventos se já há linguisticamente

um signo próprio para tal, ou seja, o próprio signo “evento” linguisticamente considerado.

No que diz respeito ao direito, a conclusão é que, por não se submeterem às

coordenadas de espaço e tempo, fatos não estão no mundo sensível e, se não estão no

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mundo, não podem ser o objeto de uma gravação jurídica, de modo que o fato jurídico

não pode se gravar um fato bruto ou concreto, por exemplo, eis que fatos não são brutos

nem concretos, pois não estão no mundo.

Quando o juiz fundamenta sua decisão no fato de que José matou Maria, esse

acontecimento não pode ser um fato, porque acontecimentos tomam lugar no mundo nas

coordenadas de espaço e tempo e fatos não estão no mundo.

A digressão foi longa, mas absolutamente necessária para firmar a ideia aos leitores

da diferença entre fato e evento, nos termos de Vendler. Um ponto que deve ser ressaltado é

que a teoria semeiótico↔estesiológica que aqui se defende permite combater até mesmo a

ideia de Vendler de que o fato é aquilo de que se fala.

Isso se deve à circunstância de que no meio semeiótico o processo é de gravação e,

gravar faz parte de uma processo de entrelaçamento com a coisa que é semeiótico (meio

semeiótico), mas também é estesiológico.

Isso quer dizer que, ao se trazer que o fato é do que se fala, deve-se perguntar de que

modo isso de que se se fala por conta do fato se entrelaça com ele. Ao fazê-lo, o resultado

será de que o prolongamento do signo fato não poderá ser de qualquer coisa de que se fale

como parece querer concluir Vendler, haja vista que signos não podem ser

“esquizofrênicos”, devendo discernir na sua gravação a sua realidade própria, a qual não

pode ser multiforme.

Portanto, a pergunta que deve ser respondida é: Qual a realidade gravada no signo

fato? Resposta será dada quando se estudar mais adiante nesse trabalho fato e evento dentro

de sua etimologia.

Visto isso, diga-se que os leitores devem, no entanto, estar se perguntando como

aplicar isso que se viu até agora sobre o fato e fato jurídico mais profundamente no âmbito

do direito. É disso que se trata na sequência.

4.6 Evento, Fato Jurídico, Crença Jurídica e Provas

Como se viu, há uma parte da dogmática jurídica que atribui diferença a evento e

fato. Essa parte da dogmática assim o faz para justificar um ponto de vista sobre a realidade

jurídica ser independente da summa realidade.

Assim se pronuncia Carvalho (1998, p. 98), sobre o tema:

O discurso prescritivo do Direito posto indica, fato por fato, os

instrumentos credenciados para constituí-los, de tal sorte que os

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acontecimentos do mundo social que não puderem ser relatados com tais

ferramentas de linguagem não ingressam nos domínios do jurídico, por

mais evidentes que sejam.

Segundo essa linha de pensamento, a construção jurídica seria, pois, alheia à

experiência sensível, de modo que, para fins do direito, somente aqueles acontecimentos do

mundo sensível que entrarem no mundo jurídico, por meio das ferramentas jurídicas

competentes, é que podem ser levados em consideração nas decisões jurídicas.

Catão (2010, p. 192) pondera que, entre outros resultados dessa linha de

argumentação, estaria o de que as gravações jurídicas referentes às provas no processo não

se submeteriam à lógica do verdadeiro ou falso, de modo que os fatos [eventos] não

precisariam ser verdadeiros, mas tão somente provados, de modo a servir de base para uma

decisão jurídica.

Catão (2010, p. 192) assim se pronuncia sobre o tema:

Essa postura acredita que provar não significa demonstrar a veracidade

de um fato em juízo, mas sim fixar formalmente um conjunto de fatos que

servirá de pressuposto para uma decisão jurídica resultado de um processo

judicial.

[...]

É uma forma abordagem que está amparada na postura kelseniana, já

analisada anteriormente, e que defende a diferença entre fato e evento.

Para essa tese, como já vimos, o fato, em Direito, é somente aquele

descrito pela linguagem jurídica competente, que é a linguagem

processual, ou a linguagem das provas.

[...]

É por isso que uma proposição do tipo p está provado não pode ser

considerada sinônimo de p é verdadeiro e, assim, não pode ter valor de

verdade. Destarte, como já vimos, mesmo que seja analisada fora do

processo, seu valor de verdade não importa. O que importa para o

Direito é que seja admitida como fundamento de uma decisão concreta

no âmbito processual. (Destacou-se).

Parece difícil defender-se contra esse argumento, o qual se chama aqui nominalista,

porém, não é bem assim. Em primeiro lugar, é preciso repisar que o fato jurídico não confere

realidade ao evento passível de consequências de direito, eis que o que a doutrina chama de

fato jurídico não pode ter poderes mágicos a ponto de conferir realidade a algo do mundo

sensível que, à obviedade, já é real.

O verbo conferir aí é muito mal utilizado. Conferir é outorgar, conceder. Como é

possível um meio semeiótico, como é o caso do fato jurídico, outorgar ou conceder

realidade a uma ocorrência do mundo sensível? Somente se esse fato jurídico tiver poderes

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sobrenaturais que lhe permitam transferir de si uma realidade que não possui a uma

realidade concreta do mundo das coisas. À obviedade que a palavra fato não tem esse poder.

Aliás, nenhuma palavra tem esse poder divino, eis que palavras não conferem nada a

ninguém ou a alguma coisa, quando muito, descobrem alguma coisa e, pelo que aqui se

entende, em alguma medida, essa descoberta grava no meio semeiótico uma parte da coisa.

Há uma espécie de simbiose. É por isso que, como se disse, o melhor verbo para expressar

o que ocorre não é plasmar, como apregou Olivecrona, pois que plamar diz com moldar e

não é isso que ocorre, mas sim gravar, pois gravar diz com deixar uma parte impressa na

outra. Trata-se da mesma parte não de uma molde dela – o que há é uma gravação.

Como já se disse, o “modo de ser” da coisa real é independente de como uma mente

ou grupo de mentes pensa sobre essa coisa real. A summa realidade é o modo de ser da coisa

real, como ela, é independentemente de uma crença sobre ela. Nesse piso, tal qual a

linguagem ordinária não constrói a summa realidade, a linguagem jurídica tampouco o faz.

Entretanto, uma visão construtivista do direito, ou mesmo, como se chama aqui nominalista,

não pensa assim.

Mas então qual é o efeito daquilo que se chama “fato jurídico” como signo jurídico

em sua concretude? A resposta parece ser simples: o efeito é, para aqueles que acreditam ser

possível apontar a diferença entre fato e evento, como aqui se defende, de uma gravação

(uma espécie de descoberta que se imprime) da summa realidade.

Um exemplo na jurisprudência pode clarear as ideias. Primeiro uma introdução. Já

se viu que o ISS é um tributo que incide sobre a prestação de serviços. Foi dito também, que

é a Lei Complementar 116/2003 que lista os serviços que podem ser tributados pelo ISS.

Muito se discutiu no Judiciário se esse tributo poderia incidir sobre um contrato de leasing

(arrendamento mercantil), que é uma espécie de empréstimo de uma coisa móvel contra uma

prestação financeira.

Essa discussão foi alçada à Suprema Corte Brasileira, tendo sido produzido o

seguinte julgado:

RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO TRIBUTÁRIO. ISS.

ARRENDAMENTO MERCANTIL. OPERAÇÃO DE LEASING

FINANCEIRO. ARTIGO 156, III, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. O

arrendamento mercantil compreende três modalidades, [i] o leasing

operacional, [ii] o leasing financeiro e [iii] o chamado lease-back. No

primeiro caso há locação, nos outros dois, serviço. A lei complementar

não define o que é serviço, apenas o declara, para os fins do inciso III

do artigo 156 da Constituição. Não o inventa, simplesmente descobre

o que é serviço para os efeitos do inciso III do artigo 156 da

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Constituição. No arrendamento mercantil (leasing financeiro), contrato

autônomo que não é misto, o núcleo é o financiamento, não uma prestação

de dar. E financiamento é serviço, sobre o qual o ISS pode incidir,

resultando irrelevante a existência de uma compra nas hipóteses do leasing

financeiro e do lease-back. Recurso extraordinário a que se dá provimento.

(RE 547245 / SC - SANTA CATARINA Relator(a): Min. EROS GRAU

Julgamento: 02/12/2009 Órgão Julgador: Tribunal Pleno Publicação 05-

03-2010). (Destacou-se).

Por conta do princípio da supremacia da Carta Magna, os termos técnicos (do direito

privado) lá empregados não podem ser distorcidos ou esticados, essa é justamente a dicção

do artigo 110 do Código Tributário Nacional, o qual já foi devidamente transcrito e

comentado.

Como decidiu a Suprema Corte no caso da possibilidade ou impossibilidade de

incidência do ISS sobre o arrendamento mercantil? Isolando a parte que interessa para o

presente texto, decidiu que o que é serviço, independentemente de estar na lista da Lei

Complementar, não é criado ou constituído pela Lei Complementar, essa apenas declara

o que é serviço nos termos da Constituição Federal, ela simplesmente descobre (no sentido

de gravar) o que é serviço.

Poder-se-ia dizer que a submissão da Lei Complementar é com a Constituição

Federal, de modo que, de alguma forma esta (Constituição) constituiria ou contruiria o que

é realidade para o direito e não a descobriria. Fácil rebater esse entendimento, com base no

realismo, eis que, como se disse, signos gravam com objetos, de modo que, para signo ser,

deve haver um mínimo do objeto gravado no signo, pois o que há é um entrelaçamento.

Logo, também na constituição as palavras não são vazias, tem um significado

específico, técnico ou não, é dizer, o limite ideal de cada palavra no texto constitucional, não

pode extrapolar o mínimo que a experiência na summa realidade permite. A ordem natural

das coisas é implacável.

São, dessa forma, também descobridoras de alguma summa realidade, ou faceta

dessa que o legislador, que é o representante eleito pelas gentes, descobriu dessa realidade,

restando ela gravada no signo jurídico no direito positivo.

Não se olvide que as gravações jurídicas, sejam elas do legislador, na forma de uma

gravação geral e potencial, sejam elas na forma de gravação individuais ou singulares do

aplicador do direito, são, de uma forma ou de outra, um ajuste que se faz no domínio do

direito, o qual depende do ajuste social sobre uma summa realidade, eis que a linguagem do

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direito é gravadora da linguagem social, que é por ela gravada. Há uma gravação na

linguagem do direito de alguma porção da linguagem social.

Aqui o ponto de esclarecimento necessário: o ajuste jurídico, que é uma forma de

ajuste semeiótico, respeita, no realismo, um mínimo da porção possível da summa realidade

que a experiência permite gravar. A investigação jurídica ou científica servirá para fins de

atualização para o caso de a gravação ser deficiente.

Logo, não haveria uma violência do signo aqui como quer fazer crer Ferraz Jr. (2003,

p. 278) quando pontua que haveria uma “violência simbólica enquanto manifestação do

arbítrio social”. Trata-se de um ajuste, mas enquanto buscar uma crença jurídica de justiça,

em relação à linguagem jurídica, e uma crença científica, em relação à linguagem científica,

não haverá uma violência arbitrária, ainda que essa crença seja falível e atualizável.

Ao se admitir a inter-relação entre linguagens (no sentido de gravação), o que se tem

é ser possível que o processo de gravação jurídica, de alguma forma, possa se submeter à

lógica do verdadeiro ou falso, eis que, conforme atesta Peirce, o que já foi referenciado acima

“a verdade é a concordância de uma declaração abstrata com um limite ideal que uma

investigação científica interminável traria uma sempre falível crença científica”.

O ponto de tangência aqui é que essa lógica da qual se fala não é a lógica clássica

dos estoicos separada num reino independente, mas sim a lógica peirceana que admite uma

verdade fundada na abdução e que, por tal motivo, autoriza uma conclusão que é baseada

em premissas verificáveis pela experiência de eventos no mundo sensível.

Se o processo de gravação é deficiente, então, a verdade abdutiva permitiria a

atualização com uma nova gravação. Uma gravação deficiente seria aquela que não permite

mais, em algum espaço e tempo históricos, o ajuste entre as gentes e, pois, a comunicação

em sociedade fluir.

Peirce fala de ciência, de investigação científica, a qual é desempenhada por uma

mente científica. Mente científica, para lembrar, é aquela que afasta a intuição, uma

omnisciência divina, que suplantariam a razão.

Como se disse amplamente anteriormente, o ideal para o qual tende a crença

científica é que é diferente do ideal para o qual tende a crença jurídica. O primeiro se

preocupa com um summum bonum que diz respeito a um ótimo que a investigação científica

pode proporcionar pela experimentação em um continuum de falibilidade e atualização para

fins da gravação do fenômeno.

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O segundo se preocupa com outro ideal que é o ideal de justiça. Esse é o summum

bonum do direito. Porém, o que se defende aqui, e que parece claro das linhas pretéritas, é

que é possível coadunar a investigação científica com a investigação jurídica no que diz

respeito ao elemento verdade uma vez que se admita que a verdade de que se fala é a verdade

abdutiva de Peirce.

O que se entende é que, repise-se, a verdade é catalisadora tanto do summum bonum

da ciência como do summum bonum do direito. Talvez por enfoques diferentes, mas não quer

parecer correto afirmar que se possa buscar o ideal de justiça, o qual é inalcançável, por isso

se chama aqui de ideal, por meio de investigações de eventos que não possam ser

confirmados por uma verdade sobre eles. O processo de gravação seria defeituoso e,

fatalmente, não levaria a uma convenção.

Aqui não se trata de verdade, como se disse, no sentido da lógica clássica, mas sim

verdade no sentido de concordância de uma gravação geral e potencial com um limite ideal

que somente um continuum de investigação pode trazer crença, o que se alcança pelo

empenho do método abdutivo peirceano.

Pelo que aqui se defende, a investigação jurídica deve buscar o ideal de justiça, bem

como a interpretação e aplicação do direito deve, igualmente, buscar esse ideal. Isso é longe

de se ser ingênuo. Ao contrário, quer parecer óbvio que, uma valoração jurídica de eventos

ocorridos e gravados pelo legislador como passíveis de desencadear consequências de

direito, que não possa ser de alguma forma gravada em linguagem cotidiana e, portanto, ser

verdadeira na crença cotidiana, não pode ser considerada como uma investigação jurídica

que busca justiça.

Assim, se Reale diz que direito também é valor, não seria possível conceber um

direito que não seja verdadeiro nesse enfoque de investigação e, portanto, que persiga nas

suas entranhas o valor de justiça a todo tempo, mesmo que justiça não se possa fazer a todo

o tempo, eis que um ideal.

Nesse enfoque, o que se chama “fato jurídico” pela doutrina é um processo

semeiótico-jurídico de gravação da ocorrência de um evento na experiência sensível, cujas

consequências implicadas, por serem relevantes ao direito, foram gravadas de maneira geral

e potencial no signo jurídico.

O legislador, assim, grava um evento de potencial ocorrência, mas que não deixa de

ser real porque eventos futuros também são reais e seus efeitos são juridicamente relevantes.

A autoridade competente, como no caso do juiz de direito, grava individualmente ou

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singularmente a ocorrência, agora não mais futura ou potencial, do evento juridicamente

relevante. Disso decorrem os efeitos (efeito impositivo da gravação jurídica), os quais eram

de potencial ocorrência na gravação geral e potencial do legislador e na gravação, por

exemplo, do juiz de direito, são individuais ou singulares e concretamente verificados no

mundo sensível. Como diz Ross, nos termos já mencionados, a realidade é uma totalidade

concreto individual.

A diferença dessa aproximação do tema é que, tanto o legislador quanto o juiz se

referem a eventos que não são juridicamente construídos ou criados, mas sim gravados, de

modo que o efeito não poderia ser constitutivo.

Nessa visão, o legislador quando grava eventos de possível ocorrência, o faz se

utilizando do uso competente da língua. É na porção do circuito em que está a língua que

isso é possível. Desse modo, quando fala em renda, lucro, receita, etc., articula esses signos

necessariamente em uma operação de gravação da linguagem jurídica que parte de uma

linguagem ordinária, tudo se operacionalizando pelo meio de expressão da língua

portuguesa.

Se assim o é, ainda que com diferenças, como é o caso de dizer no direito tributário,

por exemplo, que lucro tributável é aquele que se concebe tecnicamente a partir da

linguagem contábil, mas modificado por adições e exclusões, o que chama o legislador

tributário de lucro real, o legislador o faz tocando (gravando) de algum modo a summa

realidade, de modo que existe um mínimo de linguagem ordinária que tem de ser mantido

nas gravações jurídicas. No caso do exemplo, o mínimo refere-se a um lucro contábil (da

linguagem contábil) com algumas variações que são juridicamente relevantes.

Diante dessa postura, há uma submissão irremediável do direito ao que se

convenciona na linguagem ordinária para fins dos usos competentes das palavras (ou do que

se chamou acima signos linguísticos, porque palavras também são signos).

Não é possível esticar em demasiado os usos para atender a juízos de conveniência e

oportunidade do direito, a não ser que algum valor juridicamente relevante seja justificado

para tal e, mesmo assim, algum mínimo de linguagem ordinária tem de ser mantido, eis que,

se não há esse mínimo, de gravação não se pode falar e, se de gravação não se pode falar, é

porque não se trata de um signo linguístico.

Diga-se, pois, que o que se convencionou no léxico das gentes, que está na mente das

pessoas, não pode ser afastado, sob pena de se criar uma realidade semeiótica do direito sem

eficácia sobre aqueles a quem é direcionada.

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Desse modo, um signo jurídico que não se conforme com esse processo, implicando,

pois, uma aplicação do direito que estique despropositadamente a realidade, resultará em

discordância da linguagem jurídica com a linguagem das gentes, o que fará o sistema ruir

pela quebra na busca do ideal de justiça que tal atitude implica.

Ainda que não se possa alegar a ignorância da lei, tal não justifica ao legislador dizer

que mesa é cadeira e vice-versa. Poder-se-ia dizer, no entanto, que há decisões nesse sentido,

as quais criam realidades alheias à summa realidade. Porém, se assim o é, a solução da

problemática se revela muito simples: essas decisões são antijurídicas, pois direito é

linguagem gravadora, e a linguagem ordinária (cotidiana) é a linguagem gravada, a qual se

articula no Brasil na língua portuguesa.

Nenhum aplicador do direito pode fugir disso e mesmo que o faça, a investigação

jurídica tenderá a trazer um dia uma nova crença jurídica que reerguerá a justiça ao seu

patamar, evitando a ruina do sistema. Frise-se: trata-se de um ideal – de um continuum; essa

é uma tendência que o ideal de justiça deve gerar na investigação jurídica, a qual leva à

aplicação do direito.

Nessa visão, não seria possível sustentar, pois, que as provas no processo são

meramente uma articulação retórica, no sentido de serem apenas fundamento para justificar

a aplicação de regras jurídicas em uma decisão judicial.

Isso ocorre porque não se pode olvidar que a gravação na linguagem do direito,

dentro da postura realista que aqui se adota, depende, de alguma forma, da experiência

sensível (justamente porque de uma gravação se trata), não se fazendo crença jurídica, sem

que exista uma crença social anterior.

Está-se aqui a falar de prova, mas da definição de prova ainda não se cuidou. Traga-

se, por pertinente, tal definição nas palavras de Miranda (2012, p. 523):

Dizer-se que prova é o ato judicial, ou processual, pelo qual o juiz se faz

certo a respeito do fato incontroverso ou do assento duvidoso que os

litigantes trazem a juízo [...] é processualizar-se, gritantemente, a prova. A

adução, introdução ou apresentação da prova tanto pode ser em juízo como

fora dêle. [...] Pensar-se em prova judicial quando se fala de prova é apenas

devido à importância espetacular do litígio, nas relações jurídicas entre os

homens. As provas destinam-se a convencer da verdade; tal o fim.

Aludem a alguma declaração de fato (tema probatório), que se há de

provar. Não só têm por fim convencerem juízos, nem só se referem a

declaraçãos de fato que se fizeram perante juízes. A adução ou

apresentação da prova compreende sua proposição (indicação da prova

com que se provará o que se afirmou) e a produção (=execução da prova),

Meio de prova é o meio pelo qual se prova. Quando o juiz, ou alguém,

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perante quem se prova julga provado o fato, em verdade enunciou, a

seu turno, o mesmo que o interessado enunciara (=com-venceu-se).

(Destacou-se).

Miranda (2012, p. 523), de maneira fulminante, afasta o elemento meramente retórico

que alguns podem querer defender em relação às provas no processo. “Destinam-se a

convencer da verdade”, diz ele, de modo que, pelo o que aqui se defende, são espécies de

gravações que se submetam à lógica do verdadeiro ou falso dentro do método abdutivo na

lógica peirceana.

Desse modo, a prova processual, a qual traz ao processo judicial a ocorrência de um

evento, permitindo, assim, uma decisão judicial, deve se submeter a uma verdade sobre a

ocorrência desse evento.

Gravar um evento “falso”, ainda que sirva apenas de retórica, é fazer injustiça, pois

a própria crença do justo é algo que passa pela crença social do justo. Ao se gravar um

evento “falso”, a gravação é antijurídica, devendo ser revista e considerada dessa forma.

A verdade sobre a ocorrência de eventos passíveis de resultados jurídicos é também

e, isso não se nega, uma convenção. Nesse caso, uma convenção jurídica (crença jurídica),

mas essa crença se submete de alguma forma à realidade sensível.

Não é possível dizer no processo judicial que um elefante é amarelo, por exemplo.

Essa crença não concorda com o limite ideal que a investigação acerca de um elefante tende

a trazer em termos de crença ainda que falível. Não se trata, pois, de uma gravação em si

mesma, pois que não há nela o necessário entrelaçamento com a realidade sensível.

Veja-se que, mesmo que se tirasse uma foto de um elefante pintado de amarelo e se

persuadisse por tal prova a convencer uma autoridade jurídica de que elefantes são amarelos,

uma investigação mais apurada, em algum momento, tenderia a trazer crença jurídica de que

elefantes não são amarelos – tenderia a desaguar em uma nova gravação sobre a summa

realidade do elefante.

Veja-se que isso não implica que o direito não tenha um fim, que existam regras de

prescrição, decadência, de preclusão, ou garantias ao direito adquirido, ato jurídico perfeito

e coisa julgada, ou, ainda, princípios como o da irretroatividade e anterioridade. A relação

do direito com o tempo e o passado será abordada na Parte 5 deste trabalho.

Para não deixar de se enfrentar o tema nesse momento, diga-se apenas, que, ao se

defender a possibilidade de uma investigação interminável também no direito, a exemplo do

que ocorre na ciência, o que se defende é que universais (gravações universais) podem

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sempre ser atualizados, eis que dependem da linguagem cotidiana para que a gravação

ocorra.

No exemplo do elefante, isso é válido, eis que se um juiz, aplicando o direito, por um

equívoco, gravar, por exemplo, que todos os elefantes são amarelos, por conta de uma prova

“falsa” apresentada no processo judicial e, essa decisão passar em julgado definitivamente,

escoando-se ainda o prazo para apresentação de ação rescisória, mesmo assim, em algum

momento, essa gravação da realidade do elefante seria atualizada por outro aplicador do

direito, o qual gravaria uma correta porção dessa realidade.

É verdade que para aquela parte no processo essa gravação “falsa” permaneceu, mas

isso não quer dizer que, por isso, ela tenha se tornado menos “falsa”. No caso dessa parte no

processo foi feita injustiça, mas como se disse acima, fazer ou não justiça no caso concreto,

não é o que determina a crença jurídica. O que determina a crença jurídica é a perseguição a

um ideal. Que ideal? O ideal de justiça.

Ele não precisa ser alcançado a todo o tempo, eis que um ideal, o que não se pode

admitir é que no direito ele não seja buscado ainda que como um summum bonum. Isso

resolve facilmente a questão de uma pretensa incompatibilidade entre a investigação

científica e a jurídica no que diz respeito a tenderem ao infinito, ajustando crenças

atualizáveis porque sempre falíveis.

Repise-se, para que reste claro, que a investigação jurídica que tende a trazer crença

jurídica sobre determinado limite ideal é sim interminável. Interminável porque um

continuum. Infinita porque o direito é bem cultural e evolui com as crenças das gentes. A

investigação está, em relação ao seu fim, sempre “em suspenso”.

Ainda que o a Suprema Corte grave que todos os elefantes são amarelos, uma

investigação jurídica tenderia a trazer crença jurídica para estabelecer que elefantes não são

amarelos. Talvez em um momento e espaço históricos diferentes. Porém, essa evolução do

direito, seguindo o social, não pode ser negada, eis que a crença jurídica é sim absolutamente

atualizável e falível.

Talvez não para a parte daquele processo, no qual se fez injustiça. Porém, a gravação

falsa, inclusive para aquela parte do processo, que gravou que todos os elefantes são

amarelos, continuará no sistema jurídico, mas será uma gravação antijurídica porque

inverídica e, se inverídica, não tendeu a uma crença de justiça.

Além disso, ainda que no sistema jurídico para aquela parte no processo ela continue,

eis que já surtiu seus efeitos, quando houver uma nova gravação que trouxer nova crença

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acerca dos elefantes e gravar que eles não são amarelos, essa gravação particular, ainda que

já tenha surtido seus efeitos, na parte de gravação universal do tipo todos os elefantes são

amarelos será extirpada do sistema, não podendo valer como precedente para outras

decisões, o que justifica dizer que o que se implicou foi que um efeito injusto se fez, mas

que a investigação sobre a realidade descobriu a injustiça e atualizou a gravação na parte de

sua universal.

Nesse contexto, diga-se que ainda que a crença pareça terminantemente justa agora

no sentido de que elefantes não são amarelos aos olhos do direito, mesmo assim, a

investigação continuará sendo interminável, eis que o relógio do jogo jurídico continua a

correr no que diz respeito às universais na gravação, podendo-se, um dia atualizar-se a

universal para gravar que elefantes agora são vermelhos, por exemplo, o que poderá ser

novamente corrigido, e corrigido e... (em um continuum).

Além disso, sob outra perspectiva, pode-se dizer, igualmente, que mesmo no caso

daquela parte em que a gravação pareceu injusta, em verdade, não se tratou de injustiça

nenhuma, eis que os interesses em jogo que implicam a garantia da coisa julgada não se

direcionam somente àquela parte no processo individualmente, mas a toda a sociedade, de

modo que garantir os efeitos da coisa julgada, é também perseguir o ideal de justiça, eis que

justiça como convenção não é de um, mas de uma comunidade inteira.

Esses pontos restam ainda mais claros quando são analisadas as decisões das Cortes

mais altas do Judiciário nacional, as quais são vacilantes, mudando de ideias de um ano para

o outro sobre temas que pareciam já consolidados, como exemplos transcritos acima acerca

de decisões do Superior Tribunal de Justiça.

Não faz sentido voltar aos exemplos, pelo que se roga que se verifiquem os mesmos

mais acima no texto. De qualquer forma, o que se pode dizer é que novas composições dos

tribunais posteriores podem agregar novas mentes jurídicas à sua composição e, dessa forma,

trazer nova crença jurídica sobre temas, ainda que a crença jurídica anterior fosse diferente,

de modo a corrigir eventuais gravações deficientes.

É por isso que se trata de uma questão de verdade, eis que uma nova concordância

entre gravação geral e potencial e o limite ideal prevalecerá diante da investigação jurídica

que se desempenhou. Não é preciso que se mude o grupo de mentes para se mudar a crença,

deixe-se claro, um mesmo grupo de mentes pode mudar de ideia também, como ocorre a

todo o momento no Superior Tribunal de Justiça.

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Além disso, ainda que se diga, por exemplo, em questões de constitucionalidade,

julgadas na Suprema Corte, que essa poderá modular os efeitos da decisão, de modo que se

aplique somente para a frente, permitindo que direitos subjetivos sejam violados para trás,

mesmo nesse caso, não implica isso que a investigação seja pontual e não dinâmica como

aqui se defende.

É dinâmica porque a universal na gravação pode ser atualizada a qualquer tempo.

Quando a Suprema Corte muda de ideia sobre um tema tributário, por exemplo, a

inconstitucionalidade ou constitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS

e da COFINS (Ação Declaratória de Constitucionalidade - ADC 18 e Recurso Extraordinário

574706), e modula os efeitos da decisão para valerem somente prospectivamente, isso não

retira o caráter dinâmico da investigação jurídica. Ao contrário, isso prova cabalmente que

a investigação é interminável e que o relógio do jogo jurídico, ao menos quanto à universal

da gravação, continuou correndo.

No caso do ICMS, a universal, que pode ser atualizada por uma investigação

dinâmica, é algo do tipo: “Todos os tributos não são receita tributável”. Se o ICMS é tributo,

logo não pode ser a receita tributável pelo PIS e pela COFINS.

Essa universal “todos os tributos não são receita tributável” busca supedâneo na

linguagem contábil, a qual, nesse caso, seria uma linguagem gravada pela linguagem de

gravação do direito. A investigação interminável permitirá trazer crença jurídica de que

tributo não é receita, de modo que o ICMS não pode estar na base de cálculo do PIS e da

COFINS.

A possibilidade dessa atualização é um continuum, ainda que alguma parte tenha sido

vencida (alguém é con-vencido) e, mesmo que a modulação de efeitos se opere

prospectivamente, o que não é uma regra, deixe-se claro, mas uma faculdade dos ministros

da Suprema Corte, os quais podem aplicar o direito aos casos passados, o que se tem é que

a justiça no caso concreto deverá ser mais uma justiça na generalidade do tecido social.

Assim, os interesses em jogo e eventuais direitos subjetivos tolhidos não implicam

quebra na perseguição do ideal de justiça. Ao contrário, se há modulação de efeitos para

frente, isso implica que, em determinado caso, a Suprema Corte entendeu que os efeitos aos

cofres públicos poderiam ser mais nocivos à sociedade brasileira do que a preservação dos

direitos subjetivos daqueles que poderiam pleitear em juízo a recuperação de valores pagos

a título de PIS e COFINS a maior nos últimos cinco anos.

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Isso demonstra uma tendência a uma crença de justiça, a um ajuste justo aos

interesses da sociedade e não o contrário. É por isso que esse ideal de justiça é sempre

inalcançável, pois que ajustável no caso concreto, mas como summum bonum, deve sempre

orientar as decisões judiciais.

A prova judicial, repita-se, não é mera retórica, mas sim um elemento do processo

judicial que se submete à verdade jurídica, a qual está relacionada com uma verdade que

atinge em alguma instância a experiência sensível.

Portanto, dizer que algo está provado submete essa prova à verdade sobre o que se

prova, ou seja, sobre a verdade de uma summa realidade. Nessa visão, prova é, de maneira

simples, uma espécie de gravação sobre a ocorrência de um evento passível de efeitos

jurídicos, para o qual, naquela coordenada de espaço e tempo, uma autoridade jurídica

competente entendeu verdadeira (juízo de verdade falível). A falibilidade dessa verdade

traz, diferentemente do que se pode pensar e, como já se colocou, segurança jurídica e certeza

de um direito justo e não o contrário.

A linguagem jurídica, como já se disse à saciedade, é uma linguagem de gravação

de diversas outras linguagens possíveis (social, médica, contábil etc.). Todas elas, no

entanto, necessariamente se articulam pelo meio de expressão de uma língua (no Brasil pela

língua portuguesa). O mesmo se diga da linguagem das provas jurídicas como espécie de

linguagem jurídica gravadora.

Para fixar as ideias aqui defendidas em relação às provas, deve-se articulá-las com a

ideia também aqui defendida acerca da diferença entre evento e fato, aplicando-se as

premissas do tópico anterior a casos do direito.

Nesse contexto, trabalhe-se com o exemplo do crime de homicídio. O legislador

gravou que aquele que mata alguém incorre nas consequências aplicáveis a tal crime.

Assim, diga-se que no mundo sensível José enfiou uma faca no coração de Maria,

levando Maria a óbito. Isso implica que José matou Maria. Ao se gravar tal evento tem-se

um nominal perfeito: a morte de Maria por José (similar à travessia do Rubicão por Cesar).

A morte de Maria por José é um evento ou é um fato? Bem, para responder essa

pergunta, como se viu, Vendler pede para se perguntar acerca de quais verbos e adjetivos

falam do acontecimento que se analisa. Pergunte-se então: a morte ocorreu, tomou lugar,

pode ser vista, observada, foi gradual, violenta, prolongada? Se alguém faz essas perguntas,

as respostas serão positivas.

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Então, a morte de Maria por José é um evento e não um fato, eis que não se pode

dizer que o fato da morte de Maria por José ocorreu, tomou lugar, foi gradual, prolongado

etc. Isso pode ser dito, no entanto, em relação ao evento da morte de Maria por José.

Outra pergunta cabe aqui. Viu-se que para estar no mundo um acontecimento precisa

se submeter às coordenadas de espaço e tempo. Se há tal submissão, diz-se que esse

acontecimento está no mundo.

Veja-se então que é possível no uso competente da língua dizer que o evento morte

de Maria por José ocorreu às 19:37 do dia 23.6.2016 na cidade de São Paulo, bairro de

Pinheiros, no edifício Eldorado. O evento, pois, se submete às coordenadas de espaço e

tempo, tendo em vista que o evento ocorre no mundo e no tempo no mundo.

Porém, veja-se se é possível dizer o seguinte: o fato morte de Maria por José ocorreu

às 19:37 do dia 23.6.2016 na cidade de São Paulo, bairro de Pinheiros, no edifício Eldorado.

Não parece correto dizer isso. Por quê? Porque fatos não ocorrem em um espaço e não tem

tempo em si mesmos, eis que não se submetem às coordenadas de espaço e tempo.

Restou claro que a morte de Maria por José é um evento, é um nominal perfeito que

grava tal evento e não se trata de um fato. Bem, agora como esse evento é gravado na

linguagem jurídica?

É da seguinte maneira que se enxerga essa gravação. À autoridade jurídica chegará

uma gravação de uma outra autoridade jurídica competente para gravar um evento com

repercussão criminal, como é o caso do evento-morte. Quando essa gravação é feita e levada

à autoridade jurídica, ela também é levada na forma de um nominal perfeito do tipo “a morte

de Maria por José”.

Há outras circunstâncias do evento-morte que interessam ao direito penal, como os

motivos que levaram ao evento-morte pela parte de José, mas essas circunstâncias podem,

igualmente, ser gravadas dentro do nominal perfeito. Diga-se que Maria não queria se

reconciliar com José após a separação conjugal, sendo essa uma circunstância relevante para

o direito penal.

A autoridade jurídica competente receberá a gravação de um evento mais ou menos

dessa forma:

O Ministério Público Estadual, por meio de seu representante que esta

subscreve, no uso de suas atribuições legais, nos termos do art. 41 do CPP,

com base no inquérito policial de número em epígrafe (anexo), vem,

respeitosamente, perante Vossa Excelência, oferecer DENÚNCIA em face

de José pela infração penal a seguir descrita:

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Consta do incluso inquérito policial que no dia 23.6.2016, às 19:37, na

cidade de São Paulo, bairro de Pinheiros, no edifício Eldorado, José

munido de uma faca, desferiu golpe fatal contra Maria, produzindo-

lhe os ferimentos descritos no laudo de necropsia às fls. nº, os quais

foram as causas efetivas de sua morte.

Apurou-se, ainda, que o motivo da morte se referiu à negativa de

Maria de se reconciliar com José após uma separação conjugal.

Isto posto, denuncio José como incurso no artigo 121, “caput”, do Código

Penal, e requer esta Promotoria de Justiça seja recebida a presente denúncia

e processado o Declaração, observando o procedimento especial previsto

na legislação processual penal para os crimes dolosos contra a vida e a eles

conexos, requerendo, ainda, seja citado e notificado para responder os

termos da presente e acompanhá-la até decisão interlocutória de pronúncia

para, ao final, ser julgado pelo Egrégio Tribunal do Júri Popular desta

comarca, com sua final condenação, bem como sejam intimadas e ouvidas

as testemunhas abaixo arroladas. (Destacou-se).

A gravação jurídica-concreta da autoridade criminal competente direcionada ao juiz

competente grava com detalhes o evento. Essa é a gravação judicial do evento, ou seja, de

que ocorreu uma morte: a morte de Maria por José e que essa morte ocorreu por motivo torpe

(negativa da reconciliação). Se fosse possível atribuir um título à gravação, esse título seria:

a morte de Maria por José por motivo torpe. Esse título é o nominal perfeito que grava o

evento-morte por motivo torpe.

Esse é o evento que chega à autoridade jurídica competente para dizer sobre as

consequências jurídicas para José decorrentes da gravação que recebeu, ou seja, a gravação

que grava juridicamente a ocorrência do evento-morte de Maria.

Analisando a gravação jurídica que recebeu, a autoridade jurídica competente assim

se pronuncia:

Vistos etc.

Adoto como relatório as fls. 242/244 dos autos.

Submetido(a) a julgamento perante o TRIBUNAL DO JURI o pronunciado

José, já devidamente qualificado nos autos, o douto Conselho de Sentença,

rejeitou a tese apresentada pela defesa de NEGATIVA DE AUTORIA

POR 05 SIM e 02 NÃO no 1º quesito.

O Júri ainda reconheceu a qualificadora da prática do crime por motivo

torpe, por 05 SIM e 02 NÃO, no terceiro quesito.

Como se vê, o JURI reconheceu a responsabilidade criminal do

pronunciado acima declinado, pela morte da vítima Maria, pelo crime de

homicídio qualificado previsto no artigo 121, §2º, inc. II DO CÓDIGO

PENAL BRASILEIRO, que prevê a PENA DE 12 A 30 ANOS DE

RECLUSÃO.

[...]

Isto posto, CONDENO José a pena base de 12 anos de reclusão, fixo a pena

base em definitiva e concreta em 12 anos de RECLUSÃO, com fulcro no

art. 121,§ 2, INC. II do CPB.

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[...]. (Destacou-se).

Veja-se que o resultado de todo o processo é um nominal perfeito: A MORTE DA

VÍTIMA MARIA. Fala-se de um evento. Portanto, o que se verifica é que tanto a autoridade

jurídica que denuncia (Ministério Público Estadual), como a autoridade jurídica que julga

(juiz presidente do tribunal do júri), gravam eventos. A autoridade jurídica que denuncia

grava um evento conforme gravação que lhe foi levada pela pela autoridade jurídica

inquisidora (delegado de polícia).

Há uma autoridade que grava mais próximo do evento, é a autoridade jurídica que é

responsável pelo inquérito policial (o delegado de polícia), mas essa tampouco viu ou

presenciou o evento-morte, mas pode ter ouvido de alguma testemunha ocular que

presenciou o ocorrido. Supõe-se, para o presente caso, para ficar mais claro, que havia uma

testemunha ocular e que esta presenciou José matando Maria.

Essa testemunha é como uma testemunha que tivesse presenciado Cesar atravessando

o Rubicão. Ela presenciou o evento mesmo, o acontecimento natural. Ainda assim, o que se

tem acesso é à gravação.

O ponto salutar em todos os casos (testemunha, policial, delegado de polícia,

promotor público e juiz) é que o fundamento é sempre uma gravação, mas não uma gravação

qualquer, mas uma que grava a ocorrência de um evento (nominal perfeito – a morte de

Maria por José), que para o direito implica consequências também de direito.

No final desse processo, o que se quer é que com base em um acontecimento se

implique consequências jurídicas a José, como é o caso da reclusão de José por imposição

do sistema de direito positivo que traz essa consequência para a ocorrência do evento-morte.

Quer-se, pois, investigar, apurar o que ocorreu na summa realidade, (neste caso de

natureza antropomórfica por se tratar de um evento, no qual houve a participação do homem,

o que é diferente daquelas realidades objetais, nas quais, o que há é somente um objeto), para

que se possa definir a repercussão jurídica dessa ocorrência.

Portanto, no exemplo trazido, o juiz, ao final do processo, não atribui consequências

jurídicas baseado em um fato, mas sim em um evento que lhe foi levado por meio de uma

espécie de gravação com base em um ciclo de outras gravações anteriores, que partem de

um chão único: o evento no mundo sensível.

Não se baseia o julgamento do juiz que impõe consequências privativas da liberdade

de José em um fato, mas sim em um evento. Há um evento absoluto e um evento linguístico,

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da mesma maneira que há uma summa realidade e uma realidade semeiótica. O evento

semeiótico grava o evento absoluto na linguagem jurídica. Não há se falar, pois, em fato

jurídico.

Isso se deve à fulminante consequência de que a palavra fato é equívoca e ambígua,

eis que grava no seu signo linguístico algo que não é um fato, mas um evento, ao menos para

o que se convencionou em relação ao uso de tal palavra na linguagem jurídica. Isso porque,

como se comprovou, fatos não ocorrem, eis que não estão no mundo, pois não se submetem

às coordenadas de espaço e tempo do mundo sensível.

Toda palavra é também uma espécie de gravação da summa realidade. Lembre-se

que a palavra é uma realidade semeiótica do objeto dinâmico, da summa realidade. Isso quer

dizer que a própria palavra evento é uma realidade semeiótica.

Realidade semeiótica de quê? Não há outra resposta senão dizer que é uma realidade

semeiótica que implica nela uma gravação do próprio evento (summa realidade ou

acontecimento natural ocorrido no mundo sensível, do tipo daquele que a testemunha ocular

presencia). Então, por que falar em fato jurídico diante da possibilidade de uso da expressão

evento jurídico?

O próximo tópico será dedicado à crítica da expressão fato jurídico, que, para fins do

presente trabalho, parece equívoca e ambígua no uso que se convencionou na linguagem

jurídica.

4.7 Crítica à Expressão Fato Jurídico

Guerra Filho (2009, p. 116) traz que:

é imperativo que o labor científico culmine com o estabelecimento de

definições precisas, informadas por dados fornecidos pela experiência,

e significativas dentro de um sistema coerente em que se inserem para que

seja atendido o pré-requisito da comunicação intersubjetiva unívoca e

rigorosa dos resultados alcançados. (Destacou-se).

Ataliba (1973, p. 51) criticou a expressão “fato gerador” amplamente utilizada em

direito tributário, inclusive em toda extensão da própria lei tributária, no sentido de que

deveria ser utilizada a expressão “hipótese tributária” para tratar da gravação abstrata de

possível ocorrência presente na lei e “fato imponível” no que diz respeito à gravação

concreta e individual emitia por uma autoridade competente.

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A crítica à mesma expressão “fato gerador” ganhou eco em Carvalho (2000, p. 242),

o qual, acerca do tema, traz que o que importa é que a expressão que consta da gravação

geral e abastrata deve:

significar, sempre, a descrição normativa de um evento que,

concretizado no nível das realidades materiais e relatado no

antecedente de norma individual e concreta, fará irromper o vínculo

abstrato que o legislador estipulou na consequência.

[...]

A respeito do fato que realmente sucede no quadro do relacionamento

social, dentro das específicas condições de espaço e tempo, que

podemos captar por meio de nossos órgãos sensoriais, e até dele

participar fisicamente, preferimos denominar fato jurídico tributário.

Fato jurídico porque tem o condão de irradiar efeitos de direito. E

tributário pela simples razão de que sua eficácia está diretamente ligada à

instituição do tributo. (Destacou-se).

No contexto da possibilidade de se criticar uma terminologia equívoca, uma primeira

ponderação que é válida aqui vai no sentido de que é não só possível, mas também

recomendável criticar expressões equívocas usadas pelo legislador e também pela própria

dogmática jurídica.

Foi exatamente o que fez Ataliba e Carvalho, conforme os dizeres anteriores. Uma

segunda ponderação que surge dos dizeres agora específicos de Carvalho, é que parece haver

uma confusão entre evento e fato na sua dogmática.

O autor diz expressamente, conforme transcrição apresentada, de um “evento que

concretizado no nível das realidades materiais fará irromper consequências jurídicas” e

depois fala “do fato que realmente sucede no quadro do relacionamento social, dentro das

condições específicas de espaço e tempo, que podemos captar por meio de nossos órgãos

sensoriais, e até dele participar fisicamente” e, completa por dizer que é “fato jurídico porque

tem o condão de irradiar efeitos de direito”.

Ou o autor utiliza evento e fato como expressões sinônimas ou há um erro

concernente ao uso, pois não seria possível dizer, como se transcreveu acima, que “o evento

está no nível das realidades materiais e fará irromper consequências jurídicas” e dizer, ao

mesmo tempo, do “fato que realmente sucede no quadro do relacionamento social, dentro

das condições específicas de espaço e tempo”.

Isso não faz sentido do ponto de vista linguístico, ainda mais se considerado que

Carvalho (2000, p. 351) trabalha com a diferenciação entre evento e fato. Nesse sentido,

como se pode ter nas coordenadas de espaço e tempo um fato que “realmente sucede” e do

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qual se pode, inclusive, “participar fisicamente”, se na gravação abstrata de possível

ocorrência se fala em evento?

Como se viu, o problema está na circunstância de que o fato não “ocorre”, pois não

se submete às coordenadas de espaço e tempo, não está no espaço e não tem tempo em si,

de modo que o fato não está no mundo.

Assim, como poderia o legislador gravar um fato de possível ocorrência? Nesse

sentido, Carvalho e Ataliba estão corretos, eis que na gravação abstrata do legislador não

pode haver um fato. O que há, então?

Bem, a resposta parece muito clara e simples: há a gravação de um evento de possível

ocorrência. O sentido aqui é de que o legislador pode gravar um evento da summa realidade

potencialmente, trazendo que sua ocorrência fará irradiar consequências jurídicas.

Obviamente que o evento não está na gravação geral, como tampouco está na

gravação concreta. O que há é uma gravação de uma porção sua em ambas. Em uma, uma

porção de ocorrência futura e na outra, uma porção ocorrida. O evento é uma ocorrência,

ou melhor, uma circunstância ocorrente de espaço e tempo que é extrajurídica: está na

summa realidade.

A pedra de toque aqui, para não parecer que haja uma contradição, porque não há, é

que, no signo jurídico individual e concreto ou conjunto deles (por exemplo, a sentença do

juiz) o evento aparece gravado em uma relação de maior determinação por conta de um

processo de individuação, na linha escotista, que o permitiu ser gravado. Aqui ele, diga-se,

é mais particular, numérico e denso.

Diferentemente, no signo jurídico geral ou conjunto deles (por exemplo, uma lei que

determina o pagamento de tributo no caso de haver renda) o evento aparece gravado de um

modo mais indeterminado – mais potencial, rarefeito. Lembrem-se, como já se viu, que,

segundo Bates e já referenciado acima, a prime matter escotista é “uma coisa básica sem

reais características particulares como cor e peso, mas com a potencialidade de ter tais reais

características. [...] vai junto com a forma da substância material para fazer possível que a

substância como um todo venha a existir”.

Além disso, na linha do que traz Bates, como já se ponderou, Scotus aceitava a noção

de algo meramente potencial, esclarecendo que, em verdade, um indivíduo meramente

potencial está completamente individualizado.

Fundamentado nessa premissa, resta firmemente sustentada a teoria da gravação aqui

proposta, inclusive para fins jurídicos no que respeita aos signos jurídicos gerais, eis que a

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potencialidade do que ali está gravado não retira do processo de gravação seu materialismo,

do que decorre possível gravar uma summa realidade potencialmente no signo jurídico.

Portanto, esse evento que o signo jurídico geral grava é equivalente à prime matter

escotista e, igualmente, ao que Scotus chama de natureza comum ou comunidade. O

processo de individuação, o que é o mesmo que dizer no direito, incidência jurídica, opera-

se por uma outra entidade, que Scotus chama haecceitas.

Haecceitas (ou thisness), como já se viu, é a entidade de carga positiva que restringe

(para o que aqui se defende, isso quer dizer que grava) a natureza comum ou comunidade

na particularidade. É ela que determina a natureza de algo, que permite dizer “essa coisa”

acerca de algo. É ela que aplica um “esseísmo” na coisa para individualizá-la. Ela restringe

(grava) a natureza de algo e, ao mesmo tempo, pertence a esse algo. No direito, dela decorre

o signo individualizado do evento, no qual o evento se restringe – no qual o evento é gravado

com determinação, individualizando-se o antes potencial.

Assim, no direito, fato jurídico não pode gravar um evento passível de consequências

jurídicas no signo geral, porque lhe falta justamente o elemento natureza comum ou

comunidade da prime matter escotista, freiando-se o processo de individuação pela

haecceitas, o que é equivalente a dizer que o processo de gravação não se pode

operacionalizar por falta de relação do signo com a natureza que se pretende individualizar

(gravar).

Isso se coaduna com o que diz Peirce, como já trazido, no sentido de que signos que

não se referem a objetos não são signos. Assim, no caso do fato jurídico, por inexistência de

uma relação com a natureza do evento, o operador da gravação não grava – o signo jurídico

geral não incide em direção à particularização do evento ocorrido.

O que se deve inquirir aqui é: então, qual é a summa realidade de possível gravação

do signo linguístico fato? A resposta é clara quando se analisa a etimologia das palavras

evento e fato. É do que se cuida agora.

Para usar a terminologia de Pottier, lembre-se que se disse que o significado

semântico diz com o uso convencionado sobre determinada palavra nas mentes das gentes.

O léxico é como um inconsciente coletivo que inclui um ajuste entre as gentes sobre o uso

aceito ou usos aceitos de uma palavra. É uma crença sobre o uso ou usos de uma palavra que

se convencionou aceitar diante de uma determinada coordenada de espaço e tempo. O

significado sintático, por sua vez, na linha do que traz Pottier, é o que se refere à forma de

funcionamento do significante.

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Em relação ao significado sintático de evento e fato, não há muita dificuldade. São

nomes substantivos. O ponto de relevância em relação a eles é que são nomes substantivos

derivados.

Substantivos podem ser derivados e primitivos. Assim, se diz que âncora é

substantivo primitivo e ancorar é um verbo derivado. Assim, se diz que acontecer é um verbo

primitivo e acontecimento um substantivo derivado.

Em resumo, substantivos podem ser “deverbais”, ou seja, são derivados de verbos.

Esse é o caso de evento e fato. Se são derivados, isso quer dizer que estudar sua origem

(derivação) pode desvendar o segredo de suas diferenças em termos de significado.

Estudar a origem e a evolução histórica dos usos de palavras é algo que cabe à

etimologia. Comece-se pelo estudo etimológico do nome substantivo fato.

A palavra portuguesa fato tem equivalência de uso com a palavra latina factum

(VIEIRA, terceiro volume, 1873, p. 554; FIGUEIREDO, 1913, p. 849; CUNHA, 2007, p.

351).

A palavra latina factum encontra equivalente derivativo no verbo latino făcĭo

(infinitivo presente făcěre) (LEWIS; SHORT, 1879, p. 718; OXFORD, 1968, p. 668;

GAFFIOT, 1934, p. 647; GEORGES, 1898, p. 1042).

Diga-se que os verbos em latim aparecem nos dicionários na primeira pessoa do

singular do presente ativo do indicativo (MORELAND; FLEISCHER, 1990, p. 23) e não

como acontece em português que aparecem no infinitivo.

A origem da palavra latina făcĭo não é absolutamente clara. Oxford Latin Dictionary

(1968, p. 668) traz e Lewis e Short (1879, p. 716) traz e . Em ambos

os casos provenientes do grego.

Em Oxford Latin Dictionary (1968, p. 668), há menção ao sânscrito दधाति (dádhāti).

Em Monier-williams (1899, p. 473), encontra-se ददाति (dádāti). Em termos de equivalência

de uso, os dois têm entradas similares no sânscrito.

.

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271

Em resumo, em termos etimológicos, tem-se o seguinte em relação à palavra

portuguesa fato:

Figura 10 – Etimologia da palavra fato.

Fonte: Elaborado pelo autor.

O que deve ser guardado aqui é que fato vem de factum, o qual vem de făcĭo. Făcĭo,

por sua vez, tem equivalente de uso no verbo português em fazer (SARAIVA, 1993, p. 469;

TORRINHA, 1942, p. 323; AZEVEDO, 1957, p. 78; VIEIRA, 1873, p. 604; NASCENTES,

1955, p. 757; FIGUEIREDO, 1913, p. 864). Portanto, fato é um substantivo derivado do

verbo fazer (seu verbo primitivo em português).

Estude-se agora a etimologia da palavra portuguesa evento.

A palavra portuguesa evento tem origem na palavra latina ēventŭs (CUNHA, 2007,

p. 339; ECHEGARAY, 1888, p. 300; FIGUEIREDO, 1913, p. 832; LISBOA 2001, p. 1620;

KLEIN 2003, p. 262; SILVA, 1890, p. 301; VIEIRA, 1873, p. 481).

A palavra latina ēventŭs vem do verbo latino ēvĕnĭo (GAFFIOT, 934, p. 610; LEWIS;

SHORT, 1879, p. 667; OXFORD Latin Dictionary, 1968, p. 625).

Em relação ao verbo ēvěnĭo, revela-se que esse se forma da junção ex18-+venio, ou

seja, prefixo latino ex- adicionado ao verbo latino venio. Isso é confirmado em Oxford Latin

Dictionary (1968, p. 625).

O verbo venio, por seu turno, encontra equivalência no verbo grego βαίνω (baínō) e

no verbo sânscrito गम् (gam, gamati gáchatti,), no verbo gótico quiman ou qiman e do Alto-

alemão antigo queman (Lewis; Short, 1879, p. 1969; OXFORD, 1968, p. 2029). Aqui

encontram-se os equivalentes ao étimo da palavra portuguesa evento.

18 A consoante “x” cai no processo de formação de ēvěnĭo.

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Em resumo, a palavra portuguesa evento tem a seguinte etimologia:

Figura 11 – Etimologia da palavra evento.

Étimos Estrutura verbal Estrutura nominal

गम् [g a m] (s â n s c rito ) <

Βαίνω [b a ínō] (gre go) <

Venio (la tim) <

ex+venio (la t im) < ēventŭs(latim) < evento (p o rtu g u ê s )

< derivação etimológica

Fonte: Elaborado pelo autor.

O que é muito simples em relação ao nome substantivo fato é extremamente

complexo em relação ao nome substantivo evento. Isso ocorre porque o verbo primitivo, o

qual dá origem ao substantivo derivado evento, não existe em português. Não há em

português o verbo evir, o qual seria a correspondência mais óbvia do verbo latino ēvěnĭo em

português.

Isso cria um problema de semântica, pois que evento é um substantivo derivado e,

para se conhecer seu significado semântico, preciso é conhecer o significado semântico do

verbo primitivo. Veja-se que outras línguas mantiveram os verbos primitivos do verbo latino

ēvěnĭo.

É o caso do italiano. Em italiano antigo, na perspectiva do verbo latino ēvěnĭo

(infinitivo ēvěnĭre), conforme se verifica em Pianzola (1979, p. 35), encontra-se o verbo

italiano evenire em forma linguística idêntica à do infinitivo latino ēvěnĭre.

É também o caso do espanhol. Em espanhol antigo, na perspectiva do verbo latino

ēvěnĭo (infinitivo ēvěnĭre), conforme consta de Echegaray (1888, p. 300), encontra-se o

verbo espanhol evenir em forma linguística idêntica à do infinitivo latino ēvěnĭre. Evenir

quer dizer suceder, acontecer (ECHEGARAY, 1888, p. 300).

Note-se que, tomando em comparação o verbo espanhol evenir, faz todo o sentido

dizer que a equivalência lógica em português para o verbo latino ēvěnĭo seria o verbo evir

(ex-+vir). Ressalte-se que não existe na língua portuguesa tal verbo.

Desse modo, só é possível encontrar uma equivalente de forma indireta. O verbo mais

próximo de ēvěnĭo que se conseguiu encontrar em português foi o verbo avir, conforme

consta de Figueiredo (1913, p. 229), Vieira (1871, p. 680) e Silva (1890, p. 96), o qual quer

dizer acontecer, suceder, dar-se, efetuar-se.

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Porém, etimologicamente, avir não vem de ēvěnĭo, mas sim de outro verbo latino

adveniō, o qual gera o verbo em português advir, o qual, por sua vez, é verbo primitivo do

nome substantivo advento, mas não de evento.

O verbo primitivo faz toda a diferença em termos de se conhecer o significado de

substantivos derivados. No caso de avir, que é o verbo mais próximo de ēvěnĭo que se

encontrou em português, esse se forma da conjunção de ad19+vir e não da conjunção do

prefixo ex+vir.

Consoante se extrai de Oxford Latin Dictionary (1968, p. 629-630), a presença do

prefixo “ex-” antes do verbo, altera sua dimensão semântica, atribuindo-lhe os usos “fora”

ou “distante”, “ao longo de”, “completamente”, “realização”, “cima” e “força de privação”.

O prefixo “ad” dá conta de “movimento a ou contra”, “em direção a”, “colocar sobre

ou contra” (OXFORD LATIN DICTIONARY, 1968, p. 629-630).

A partícula “ad” dá essa noção de mudança de estado, de superveniência. Ambas as

raízes “ex” e “ad” apontam um sentimento de movimento espacial. A primeira “ex” dá um

senso de localização geométrica-espacial e a segunda um senso de direção cinética.

Bem, por que isso tudo é importante? Porque se quer justificar aqui que evento e fato

são diferentes não só pela circunstância filosófica explicada de estarem ou não no mundo,

mas também pela circunstância linguística de que as palavras evento e fato gravam

realidades diferentes que não são compossíveis entre si.

Isso se deve a uma premissa muito importante que aqui se adota e que já foi

apresentada de que não existem sinônimos, mas somente homônimos, no sentido de que

palavras ou signos linguísticos não gravam significados equivales em suas formas.

Assim, se a palavra é diferente em forma (entenda-se por forma a diferença no meio

de expressão escrito e oral, ou seja, na palavra escrita e na palavra falada, ou melhor, no som

e na ortografia), é porque é também diferente em substância (entenda-se por substância

significado) e, se assim o é, é porque não há uma possibilidade de uso equivalente.

Isso resta muito claro quando se estuda o significado semântico de evento e fato.

Repise-se: significado semântico é aquele que consta do inconsciente das gentes acerca do

uso ou usos possíveis de uma palavra (o dicionário é um aglomerado falível e sempre

atualizável dessa convenção das gentes sobre o uso de uma palavra).

19 A consoante “d” cai no processo de formação de “avir”.

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Em relação ao significado semântico, de uma maneira muito simples, o que se pode

dizer em relação a evento e fato, é que evento grava a ação do verbo ēvĕnio (não há

equivalente de uso direto em português), que quer dizer, segundo Azevedo (1957, p. 72),

Gaffiot (1934, p. 609), Garnier (1993, p. 440), Georges (1808, p. 961), Lewis e Short (1879,

p. 666), Oxford Latin Dictionary (1968, p. 625) e Torrinha (1942, p. 301), em resumo,

acontecer, suceder, ocasionar-se, sobrevir.

Já fato grava a ação do verbo fazer, cujo equivalente em uso latino é făcĭo, que quer

dizer, segundo Oxford Latin Dictionary (1968, p. 668), Lewis e Short (1879, p. 716), Gaffiot

(1934, p. 647) e Torrinha (1942, p. 323), em resumo, representar, delinear, retratar. Há

também um uso de fazer no sentido de causar, ocasionar, determinar, mas numa ação

diferente do verbo fazer como em “fazer desgosto a alguém” (VIEIRA, Tomo III, 1871, p.

680).

Somente saber o significado semântico ainda não resolve o problema, pois que quer

dizer a ação desses verbos para diferenciar evento e fato no domínio linguístico?

Pois bem. Fazendo um resumo muito grande, pois o tema demandaria muitas páginas,

o que predomina na ação do verbo latino ēvĕnio, para fins do que se quer aplicar nesse

trabalho, diz com uma circunstância de acontecer e o que predomina na ação do verbo latino

făcĭo, para fins do que se quer aplicar nesse trabalho, diz com uma circunstância de

representar (algo).

Frise-se que o que se faz aqui para fins do significado semântico dos verbos que dão

origem a evento e fato, de modo a se permitir diferenciação, é uma eleição do autor do

presente trabalho. Nos dicionários há diversos outros usos possíveis, o que poderia desaguar

ações verbais diferentes das que foram escolhidas anteriormente.

Trata-se do recorte que, para fins desse trabalho, melhor parece permitir a

diferenciação que se quer demonstrar. Por se tratar de uma eleição, leva toda uma

subjetividade do autor, de modo que não é de todo objetiva como se poderia recomendar em

uma análise científica. Porém, que análise científica é pura o suficiente para excluir qualquer

subjetividade?

Há diversos outros pontos que poderiam ser tratados aqui, como a circunstância de

que em latim há casos (ablativo, nominativo, genitivo etc.), o que muda o uso correspondente

de substantivos, alterando-o, assim, no domínio semântico. Porém, isso não será estudado

aqui, por não competir diretamente ao presente estudo e porque demandaria mais um tanto

de páginas que não implicariam explicações tão mais esclarecedoras.

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Para fins do direito, o que se conclui, para fundamentar linguisticamente a

crítica à expressão fato jurídico, é que não faz sentido utilizar a palavra fato para gravar

um evento, eis que fato leva em si a ação do verbo fazer (făcĭo em latim) e não do verbo

ēvĕnio (não há correspondente verbal em português).

Fato grava no signo a ação de um verbo cujo significado semântico, ou seja, cujo

uso convencionado pela crença das gentes, diz com uma circunstância de revelar (algo),

sendo que a ação do verbo ēvĕnio (verbo primitivo de evento) diz com uma circunstância de

acontecer (no sentido de ēvĕnio, que em português seria algo como “evir”) e é essa ação que

o signo evento grava dentro dos limites do estudo que aqui se realizou.

Desse modo, já existe na língua portuguesa uma palavra que grava uma circunstância

de acontecer no seu signo, é a palavra evento, de modo que se torna despicienda (navalha de

Ockham) a utilização da palavra fato para se referir a um acontecimento natural que é o

próprio evento.

Seria algo parecido com utilizar a palavra relato para gravar a ação do verbo

produzir no signo, quando se sabe que já há um substantivo (que é um signo linguístico)

que grava a ação desse verbo, ou seja, o substantivo produto. O substantivo relato grava

a ação do verbo relatar e não do verbo produzir.

Gravar a ação do verbo primitivo errado em nomes derivados implica alterar

artificialmente o significado das palavras, o que se faz alheio ao uso competente da língua,

podendo gerar distorções graves na comunicação entre as gentes.

Aonde quer que se vá, percebe-se que o uso de fato jurídico é equívoco, ou ao menos

despiciendo, haja vista que há um signo linguístico na língua portuguesa que grava

corretamente uma circunstância de ocorrer (no sentido de ēvĕnio, que em português seria

algo como “evir”), como é o caso da palavra evento.

O signo linguístico da língua portuguesa chamado evento grava uma porção,

pois, de uma circunstância ocorrente de espaço e tempo que é o próprio evento

absoluto, esse na perspectiva da summa realidade, no tempo e no espaço dessa

realidade.

Quando se lê em uma gravação linguística “a morte de Maria por José”, essa

sequência de signos linguísticos é, na sua totalidade, um evento semeiótico. No âmbito do

direito, um evento jurídico-semeiótico em detrimento de fato jurídico.

Na perspectiva da testemunha ocular que presencia a morte de Maria por José, o que

se presencia é um evento também, mas um evento absoluto até que ele seja gravado pela

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testemunha ocular em um evento semeiótico e depois juridicamente em um evento jurídico-

semeiótico.

Na perspectiva do acontecimento natural ocorrente, o que se tem, pois, é o evento

absoluto que se pode presenciar. Na perspectiva da gravação, o que se tem, diferentemente,

é um evento semeiótico, ou seja, o que se grava é uma circunstância ocorrida de espaço e

tempo. Quando há a gravação passa-se de circunstância ocorrente para circunstância

ocorrida, grava-se o evento absoluto no evento semeiótico.

Assim, o que se diz é que a testemunha presenciou uma circunstância ocorrente de

espaço e tempo (José matando Maria às 19:37 do dia 23.6.2016 na cidade de São Paulo,

bairro de Pinheiros, no edifício Eldorado) e a gravou no signo que transmite à autoridade

jurídica (passa-se a ser circunstância ocorrida).

À mão se tem o signo linguístico evento que grava o evento absoluto, de modo que

não faz o menor sentido fazer uso da expressão fato jurídico, eis que este signo grava, por

lógica linguística, uma circunstância de um revelar em um dos usos possíveis do verbo fazer

em português.

Se Ataliba e Carvalho podem criticar o uso equívoco da expressão fato gerador, a

crítica à expressão fato jurídico está igualmente autorizada, para dizer que é equívoca tanto

quanto o é a expressão fato gerador. Veja-se que em ambos os casos a crítica decorre da

circunstância de que o uso não condiz com a linguagem ordinária.

No caso do fato gerador, pelo motivo de não poder um fato estar previsto em uma

regra abstrata, pois lá somente poderia estar uma gravação de um acontecimento de possível

ocorrência (potencial), sendo que fatos já seriam uma gravação de um acontecimento, de

modo que já não são de possível ocorrência quando chamados fatos.

No caso do fato jurídico, pelo motivo de que já há na linguagem ordinária um signo

mais credenciado para gravar uma circunstância ocorrente de espaço tempo, como é o caso

da palavra evento e não da palavra fato, a qual deveria ser usada para falar de ações ocorridas

do verbo fazer e não relativas à ação contida no nome evento, cuja matriz verbal é outra

completamente diferente (verbo latino ēvĕnio).

Para finalizar, repita-se o que diz Ross, conforme já transcrito, no sentido de que “O

direito pode fazer com que quase todas as circunstâncias imagináveis sejam fatos operativos,

sempre que possam ser descritas em termos da linguagem cotidiana”.

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O uso competente da língua não levaria a confundir fato com evento, de modo que

essa não é a gravação correta sob a perspectiva da linguagem cotidiana, o que implica no

equívoco uso da expressão fato jurídico na linguagem do direito.

Nesse prisma, o que há é um evento absoluto (que está no mundo das coisas –

externo) e um evento semeiótico (que deve ser visto na perspectiva de signo linguístico).

Disso decorre, igualmente, que, no palco do direito, pode-se falar em: a) evento jurídico (que

seria o que a dogmática chama fato jurídico), o qual é o evento absoluto gravado no signo

jurídico num dualismo que se justifica somente dogmática e pedagogicamente e; b) evento

absoluto, que é o fenômeno na summa realidade, o qual é o objeto gravável no signo jurídico.

Usando a terminologia de Peirce, evento absoluto é objeto dinâmico e evento

semeiótico é objeto imediato. No direito, o primeiro é aquele evento da summa realidade

gravável ou cuja ocorrência potencial é gravada num signo geral jurídico – um evento

absoluto juridicizável. O segundo é o evento na perspectiva semeiótica já gravado no signo

jurídico particularizado – um evento juridicizado.

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PARTE 5 - DIREITO, TEMPO E PASSADO

Um dos problemas em se falar que as gravações jurídicas dependem da experiência

sensível, de acordo com o realismo peirceano que aqui se defende, refere-se à questão da

limitação temporal no direito.

A problemática jaz na pretensa perpetuidade de uma investigação científica em

comparação com uma investigação jurídica. Fundamentou-se que, o que aqui se chama

evento semeiótico, que é aquela porção do mundo sensível como que gravada pelo legislador

no meio de expressão jurídico competente (que é a legislação) como passível de

consequências jurídicas, poderia ser revisitado numa investigação interminável, de modo a

atualizar a crença jurídica formada, eis que essa também seria sempre atualizável e infalível.

Deu-se como exemplo que o STF e STJ mudam frequentemente de “opinião” sobre

eventos absolutos passíveis de consequências jurídicas, reformando entendimentos sobre

como deve ser a interpretação correta e, por via de consequência, a aplicação das gravações

jurídicas universais, as quais gravam estes eventos absolutos juridicizáveis.

Frise-se, novamente, que o evento quando gravado pelo legislador, à obviedade, que

não é mais absoluto, eis que toda gravação jurídica é linguística, de modo que se articula no

meio de expressão de uma língua, gravando uma porção do evento absoluto no signo jurídico

que é seu meio e fim.

O produto da gravação é um evento semeiótico acerca de um evento absoluto de

possível ocorrência – um evento absoluto juridicizável. Já aquele evento gravado pelo juiz

já não é mais juridicizável, mas sim um evento semeiótico acerca de um evento absoluto

ocorrido – não mais potencial. A haecceitas, para usar a linguagem de Scotus, já operou,

particularizando o evento absoluto juridicizável num signo-gravado semeiótico-jurídico.

Não se quer aqui chamar o evento semeiótico acerca do evento absoluto de possível

ocorrência de hipótese, eis que, na linha do que prega Peirce, proposição geral seria uma

proposição universal, de modo que não hipotética propriamente, uma vez que esta é somente

um particular da universal. Se é um particular não pode ser universal.

Se a proposição é universal, não faria sentido se falar em hipótese, mas sim em

universal, ou seja, essas gravações do legislador seriam do tipo universal acerca de eventos

absolutos de possível ocorrência passíveis de consequências jurídicas, ou algo como se quer

chamar doravante “universal” simplesmente, no sentido de que a gravação geral do

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legislador é uma gravação de “universais” ou simplesmente uma gravação-universal, eis

que a proposição também é universal e não hipotética propriamente dita.

Quando se lê a gravação jurídica “todos são iguais perante a lei”, o que se saca, no

âmbito da ciência do direito, é uma proposição universal. Porém, não se nega aqui que

“existam” no direito positivo proposições hipotéticas do tipo “se fulano auferir renda, então

deve ser o imposto sobre a renda”. O que se quer dizer é que essa hipotética é somente uma

particular de uma universal e não tanto geral como se pode pensar.

A conclusão aqui é, pois, de que no direito há gravações-universais e gravações-

particulares. A primeira grava um evento absoluto juridicizável e a segunda um evento um

evento juridicizado semeioticamente no signo jurídico decorrente do processo de gravação-

particularizado.

Feito esse esclarecimento de nomenclatura, importa retornar à difícil questão acerca

da limitação temporal no direito, o que se faz no próximo tópico.

5.1 Limitação Temporal e Direitos Subjetivos

Falou-se, anteriormente, que, por exemplo, no crime de falsidade ideológica, o que é

relevante ao direito, é falsear a verdade acerca de eventos [fatos] absolutos que afetem

direitos subjetivos.

Bem, se esse é o núcleo duro de proteção da lei para fins da ocorrência desse evento

absoluto, o que se tem é que direitos subjetivos existem é devem ser preservados. Não se vai

falar de direitos subjetivos, eis que não é o tema desse trabalho e demandaria uma grande

extensão de caracteres para se alcançar um objetivo que não seria, ao menos diretamente,

aplicável o que se quer justificar aqui.

Diga-se somente que, se direitos subjetivos são afetados, seu titular poderá pleitear

uma reparação, além do que uma das finalidades do direito é tutelar esses direitos para que

não sejam maculados. Como visão geral, guarde-se que direitos subjetivos podem ser

exercidos pelos seus titulares.

O direito tem muitas formas de limitações temporais. Não se entrará na explicação e

enumeração de todas elas (fala-se em prescrição, decadência, preclusão etc.). O direito tem

limitações que, ainda que não sejam temporais, são igualmente obstáculos para o exercício

de direitos subjetivos (é o caso da coisa julgada, do ato jurídico perfeito, direito adquirido,

da regra da irretroatividade, da anterioridade).

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Trata-se de formas juridicamente previstas para brecar o exercício de direitos

subjetivos. Isso se deve a uma visão que está entranhada no direito de que este serve a uma

finalidade, que parece ser única, de dirimir conflitos e, de alguma forma com isso, permitir

a vida em sociedade.

Não quer parecer que seja essa a finalidade primordial do direito, ainda que um dos

objetivos importantes do mecanismo jurídico. Que busca o direito, então?

Bem, uma resposta única seria descuidada, mas o que se pode dizer é que o direito

busca o justo e Justiça é algo que se faz no caso concreto e de maneira convencionada. Agora,

de quem é o interesse no caso concreto; seria um direito da minoria, da comunidade “como

maioria”, de quem é esse direito que o direito tutela?

Novamente, não existe uma resposta única. No entanto, decidir por uma resposta é

sempre uma decisão baseada em uma escolha. Por aonde quer que se vá, em uma visão

antropomórfica, há uma ação volitiva. O legislador mesmo, quando edita a lei, nela grava

não um direito objetivo, mas a sua própria subjetividade no signo jurídico e essa

subjetividade deve gravar uma outra subjetividade, a subjetividade de uma comunidade à

qual o legislador serve como representante.

Há uma ação volitiva, como se disse. Aqui neste trabalho, a ação, por assim dizer, é

também volitiva no sentido de que as ponderações são estabelecidas por meio de escolhas

do gravador dos signos postos no papel de maneira científica. Essas escolhas per si carregam

consigo a subjetividade desse gravador de signos científicos.

No presente trabalho de filosofia do direito, há também escolhas que permitem que

o caminho seja seguido em direção a uma compreensão (aqui no sentido de possibilitar

conhecimento). Trata-se, em certa medida, também de um estudo dogmático.

Entende-se aqui dogmática como ciência descritiva e dogmática jurídica como

ciência descritiva (gravação descritiva) do fenômeno jurídico, dentro de uma teoria jurídica

sobre esse fenômeno. Vale dizer, em relação à teoria jurídica, que são válidas as palavras de

Mach (1986, p. 186):

Nossas teorias são abstrações, as quais, enquanto que colocam no lugar

em relevo o que é importante em certos casos determinados,

negligencia quase necessariamente, ou até mesmo disfarça, o que é

importante nos outros casos. A lei de refração olha os raios de luz como

linhas retas homogêneas, e isso é suficiente para a compreensão do aspecto

geométrico da matéria. Porém, as proposições relacionas à refração

nunca nos guiarão para o fato de que raios de luz são periódicos, que

eles interferem. Ao contrário, o favorito e familiar concepção de um raio

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como uma não diferenciada linha reta torna muito mais difícil que essa

descoberta ocorra.

As instâncias em que a similaridade entre um fato e uma concepção

teorética se estendem além do que nós postulamos, são raras. No entanto,

quando isso acontece, a concepção teórica pode nos levar a novos fatos,

um caso de refração cônica, polarização circular, e as ondas elétrica

de Hertz fornecem exemplos que militam contra aqueles adiantados.

(Destacou-se).

Isso implica que novas teorias forçam novas leis, o que se baseia não na teoria

propriamente dita no sentido de proposição, mas sim nos eventos (eventos ao invés de fatos)

que proporcionaram mudar essas proposições.

Nesse piso, não deveria haver uma discrepância entre o direito (a exemplo da lei da

refração no exemplo de Mach) com a teoria do direito (a exemplo das proposições

relacionadas à refração), pois que a experimentação (a exemplo dos exemplos de Hertz)

tratará de dar notícia acerca de facetas diferentes dos eventos que darão azo à formação de

uma teoria.

Portanto, o que há, na ciência jurídica (tipo de ciência que é), é uma predominância

informativa ou descritiva necessária e fortemente impactante, que deve possibilitar-se a

partir da melhor observação da summa realidade, orientando novos observadores sobre o

fenômeno, sempre de maneira atualizável e falível.

Dessa forma, no direito, quando as leis jurídicas são elaboradas, devem levar em

consideração aspectos da summa realidade que, graváveis aos olhos do legislador,

implicarão consequências de direito. As facetas da summa realidade gravadas podem,

algumas vezes, tanto no signo jurídico universal, como no signo jurídico particular/singular,

ter passado por um processo deficiente de gravação ou, até mesmo, de aplicação, implicando

que a gravação foi deficitária e levando a que haja uma necessidade de atualização.

Nesse contexto, qualquer gravação de uma summa realidade ou evento absoluto

dela, que por ser o que é, é inexaurível, grava uma porção do objeto gravado (objeto

dinâmico), deixando de lado tantas outras que esse objeto possui, mas isso não quer dizer

que não possa sempre o processo se atualizar para que novas porções sejam gravadas.

Nesse piso, admitindo-se que, tanto no direito, como na ciência do direito, haja uma

investigação para verificação da ocorrência de eventos no mundo sensível, o que se tem é

que não há somente uma função de dirimir conflitos no sistema de direito, mas também de

buscar a verdade, uma verdade que possa implicar justiça, eis que o direito deve tender ao

justo por premissa essencial. A verdade que se quer buscar como proposta desse trabalho,

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tanto no direito como na ciência do direito, é uma verdade abdutiva porque submetida ao

método abdutivo apregoado por Peirce.

Porém, diga-se que ainda não se tratou especificamente da problemática do tempo

no direito, nem tampouco das situações específicas de garantias jurídicas que obstaculizam

ultimar-se consequências, preservando, de certa forma, o passado consolidado de percalços

vindouros do novo.

Enfrenta-se, em primeiro lugar, a questão temporal. O tempo é um ingrediente

psicológico. Mach (apud MEER; KRUGER e STRAUCH, 2006, p. 74) traz que: “tempo é

uma abstração na qual chegamos por meio das mudanças das coisas”.

Acerca do tempo psicológico, Block (1990, p. 30) considera os aspectos sucessão

temporal, duração temporal e perspectiva temporal, ponderando o seguinte:

Experiências de sucessão, ou a codificação primária psicológica da ordem

das relações entre eventos, envolve características do processamento de

informações dinâmicas: No processo de perceber e codificar um evento,

uma pessoa lembra de eventos relacionados, os quais precederam,

antecipando futuros eventos, ou as duas coisas. [...] A experiência de

duração do que está passando pode diferir daquela em retrospectiva.

Duração experimentada depende de variáveis como o montante de

atenção dedicada à informação temporal., enquanto que a duração

lembrada envolve mudanças contextuais codificadas na memória. [...]

Fenômenos de perspectiva temporal envolvem experimentos e

concepções concernentes ao passado, ao presente, e ao futuro. A

perspectiva temporal difere entre indivíduos, e frequentemente muda

radicalmente quando a pessoa experimenta estados de consciência

alterados [...].

[...] quatro tipos de fatores que influenciam o tempo psicológico:

características do experimentador do tempo, os conteúdos de período

de tempo, as atividades da pessoa durante o período de tempo, e os

comportamentos relacionados ao tempo da pessoa. (Destacou-se).

Como se vê, uma das características que implicam na percepção do tempo é a

sucessão de eventos, algo relacionado a diversos fatores desses eventos, como a relação entre

eles, periodicidade, regularidade.

Outra característica diz respeito ao aspecto duração temporal. Isso tem de ver com o

mecanismo da atenção que se dedica à experimentação do tempo, bem como com alguma

memória de duração já codificada na mente acerca de eventos que duram no tempo.

Ademais, há o aspecto da perspectiva temporal que se relaciona com as perspectivas

de passado, presente e futuro. Finalmente, os fatores que impactam na percepção do tempo

referem-se às características pessoais do experimentador do tempo, aos conteúdos de tempo

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envolvidos, às atividades praticadas pelo experimentador do tempo, bem como aos

comportamentos do experimentador em relação ao tempo.

Um aspecto de relevante menção, no que se refere à percepção do tempo, é o que se

chama memória semântica, pois relaciona-se diretamente com o uso da linguagem de uma

língua. A esse respeito, Tulving (1972, p. 386) traz o seguinte:

A memória semântica é a memória necessária para o uso da

linguagem20. É um glossário mental, conhecimento organizado que

uma pessoa possui sobre palavras e outros símbolos verbais, seu

significado e referentes, sobre relações entre eles, e sobre regras,

fórmulas, e algoritmos para manipulação desses símbolos, conceitos e

relações. A memória semântica não registra propriedades perceptíveis

da entrada de dados, mas mais os referentes cognitivos de sinais

introduzidos. (Destacou-se).

A memória semântica de Tulvin equipara-se, de alguma forma, ao que se chamou

anteriormente de léxico das gentes, ou melhor, aquele inconsciente coletivo das gentes que

guarda uma memória de uso dos signos linguísticos. Ele é essencial para que se possa

articular signos no meio de expressão de uma língua e, principalmente, para que o fenômeno

da comunicação entre as pessoas seja bem-sucedido.

A percepção do tempo é essencial para se compreender o motivo pelo qual existem

limitações temporais impostas pelo sistema de direito positivo, eis que as características do

experimentador se relacionam com as características de um experimentador social.

Se o experimentador é social, isso quer dizer que a percepção do tempo, ainda que

um tempo psicológico, é também impregnada de um ingrediente social decorrente da

percepção do tempo mental predominante em uma comunidade de fala.

Isso parece um pouco difícil de se compreender sem que se possa aplicar a teoria dos

elementos temporais referentes à memória temporal acima explanada, mas se roga por um

pouco mais de paciência, pois que isso restará claro mais adiante.

Antes disso, traga-se uma parábola do jogo de tênis, o que se faz com influência da

teoria dos jogos de Wittegenstein, mas não nos limites nominalistas que ela propõe para os

jogos de linguagem.

A partir do jogo de tênis, Wittgenstein (2009, p. 53), conceitua o que é jogo,

restritivamente, “como a soma lógica dos conceitos parciais correspondentes”, mas esclarece

que limitações conceituais são traçadas com uma “finalidade especial” de determinar um

20 Language em inglês pode referir-se a uso relacionado com linguagem ou língua.

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limite, mesmo que ele não exista. Pelo que aqui se interpreta, as regras do jogo seriam os

“limites formais” de qualquer jogo que se jogue, incluindo o jogo da linguagem.

Nesse contexto, diga-se que no jogo de tênis prevalecem regras que permitem que

os tenistas possam jogar o jogo e, se seguirem as regras e forem os melhores, que vençam o

jogo. O objetivo do tenista é sempre vencer o jogo e não continuar jogando como é no jogo

da vida.

O jogo de tênis não tem um tempo máximo para terminar, mas é um jogo que sempre

termina quando um jogador atinge o número de pontos (número de “sets” de “games) totais

necessários, de acordo com as regras do tênis, para ganhar o jogo.

O tênis tem, no entanto, regras de tempo em que um “saque” pode ser levado a efeito,

em que tenistas podem levar para descansar entre “games”, para trocar de “quadra”, para

chegar ao evento de tênis etc.

Tem uma regra, em específico, que também permite o que se chama “desafio” (do

inglês “challenge”), a qual implica que um jogador, quando não estiver satisfeito com a

aplicação das regras de tênis pelo juiz do jogo, possa desafiá-lo e, com a ajuda de gravações

da jogada, que são mostradas no telão da “arena” de tênis, para todos os espectadores, se o

tenista estiver correto em relação à sua insatisfação, o juiz do jogo é obrigado a reformar a

aplicação da regra, uma vez que a prova da gravação apontou dessa forma, dando razão ao

tenista que fez uso do “desafio”.

Em outras palavras, no que diz respeito à ferramenta do “desafio” no tênis, o que se

tem é que a o juiz do jogo interpretou um evento ocorrido no jogo de uma maneira

equivocada, aplicando a regra do tênis também de maneira equivocada, o que implicou na

perda de um ponto por um dos tenistas.

Sentindo-se injustiçado, esse tenista “desafiou” a aplicação da regra pelo juiz do jogo

que o prejudicou, baseando-se para tal na gravação (prova visual) projetada no telão da

“arena” a todos os espectadores. Essa prova visual demonstra como o evento realmente

ocorreu e, sendo a ocorrência favorável ao tenista que “desafiou” o juiz, deverá o juiz

reformar sua decisão de aplicação da regra do tênis dando ganho de causa ao tenista

“desafiante”.

O número de “desafios” por “set” no jogo de tênis é limitado a três desafios

incorretos, é dizer, se o tenista desafia por três vezes seguidas e se prova visualmente que o

desafio não tinha fundamento, ele perde a chance de continuar desafiando naquele set até

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começar um novo “set”. Se os desafios se provam corretos a partir das gravações, o tenista

pode continuar desafiando o juiz do jogo.

Esse sistema é justo para o tenista? Depende dos interesses envolvidos. A regra do

“desafio” quer parecer querer proteger o direito subjetivo do tenista de não se ver prejudicado

por uma decisão equivocada do juiz que não se baseou corretamente no evento ocorrido no

jogo. Por assim dizer, a decisão do juiz não foi verdadeira e isso se prova pela gravação com

o “desafio”.

No entanto, a regra prevê também que se o tenista errar no seu “desafio” por três

vezes, isso, de certa forma, demonstraria que o juiz vem atuando de acordo com a verdade

dos eventos ocorridos no jogo, de modo que não faria sentido que os desafios se

perpetuassem, pois que também há outros interesses que devem ser levados em conta, outros

direitos subjetivos.

O tenista que desafiou e o juiz não são os únicos partícipes do jogo de tênis. Há o

tenista adversário, a qual não quer ter o jogo parado a todo o tempo com “desafios”

incorretos, pois isso prejudica a dinâmica do jogo e a ele próprio que também quer se sagrar

vitorioso, pois, afinal, a premiação em dinheiro é expressiva.

Há os espectadores que pagaram para ali estar, muitas vezes somas relevantes de

dinheiro, e querem ser entretidos ao presenciar (eles são testemunhas oculares do evento de

tênis e também partícipes de certa forma) a disputa entre os tenistas.

Há a agremiação de tênis que oferece a premiação e é o órgão responsável por

estipular as regras do jogo, inclusive a regra do “desafio”. Há os patrocinadores que

permitem que a agremiação tenha recursos para prover as premiações e organizar os

campeonatos de tênis.

Há os telespectadores que por vezes também pagaram para assistir (pay-per-view) o

jogo de tênis na sua casa e a rede de televisão que comprou os direitos de televisionar o

evento de tênis e pagou para agremiação de tênis por isso.

Notem que há uma pluralidade de interesses envolvidos e direitos subjetivos a serem

preservados que foram mencionados e tantos outros que não o foram. Um jogo de tênis é

equivalente ao jogo do direito, o juiz do jogo de tênis é equivalente ao juiz de direito, os

jogadores a autor e réu, os espectadores à comunidade, as regras de tênis à legislação, a

aplicação e interpretação do juiz de tênis à interpretação e aplicação do juiz de direito, as

pessoas que trabalham na partida, aos funcionários da Justiça etc.

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Porém, há a regra do “desafio”, para a qual se requer um foco especial de atenção

para se perguntar novamente: ela é justa diante dos eventos ocorridos no jogo de tênis? Não

é exatamente isso o que um juiz de direito deveria se perguntar em cada decisão que emite?

Não é assim como um juiz de direito deveria valorar as provas que são espécies de gravações

que recebe, para interpretar e aplicar a regra de direito? Sua decisão não deve ser sempre

justa ou tendente à justiça para privilegiar o que realmente ocorreu e não prejudicar direitos

subjetivos?

São perguntas difíceis de responder, mas talvez seja mais fácil responder

simplesmente que se parte do pressuposto que todo juiz de direito está de boa-fé, buscando

apreciar os eventos ocorridos à luz das provas, diante de uma operação que possa valorá-las

como verdadeiras e que a sua consciência, ao final desse processo, deveria tender a lhe

permitir, ao menos, sentir que buscou a justiça, ainda que não a tenha “feito” no caso

concreto. O juiz de direito atuará, se assim for, como o juiz do jogo de tênis.

Porém, sabe-se que não é bem assim que as coisas se dão. Muitas vezes no trabalho

do juiz não se tem uma gravação exata à mão do evento ocorrido, muitas vezes prova alguma

há, muitas vezes há lacunas na aplicação da regra jurídica, muitas vezes os funcionários da

Justiça não desempenham suas funções adequadamente, muitas vezes os interesses das

agremiações (aqui comparáveis aos tribunais superiores e ao poder legislativo) são diversos

daqueles em relação à busca da justiça e, por conta disso, não tem como o juiz aplicar a regra

ou o precedente de maneira justa, pois que justiça na regra ou no precedente não há. São

muitas as variáveis, muitas vezes, ou melhor, na maioria das vezes, completamente fora do

controle do juiz de direito.

Para uma coisa, porém, deverá servir o direito e as regras jurídicas; deverão servir

para tutelar direitos subjetivos das partes no jogo do direito (como dos jogadores de tênis) e

não só delas individualmente, mas também da sociedade como um todo para quem o direito

deve servir necessariamente.

É por isso que no jogo de tênis não se pode esperar infinitamente um jogador trocar

de lado da quadra, efetuar o “saque”, ou até mesmo começar o processo que é um jogo de

tênis como um todo.

A parábola com o tênis serve para dizer que no direito, de uma certa forma, tem-se

uma repetição. Há regras de preclusão (como o tempo para o jogador de tênis efetuar o

“saque”), regras de prescrição e decadência para que a ação seja iniciada e o direito subjetivo

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preservado (como o tempo que o jogador pode levar para começar o processo que é o jogo

de tênis).

Há, também, regras que não permitem que situações já concretizadas no passado

sejam modificadas, como o direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada

(equivalentes à regra de que depois de três desafios incorretos o tenista não pode mais

desafiar). O próprio recurso contra uma decisão judicial é um exemplo de “desafio”, como

o que ocorre no jogo de tênis.

Há uma regra21 no jogo de tênis que diz o seguinte:

Todo jogo efetivamente terminado independentemente de ter sido

realizado de acordo com os itens descritos no regulamento será

considerado válido.

É de responsabilidade dos tenistas o conhecimento das regras e nenhum

jogador poderá alegar seu desconhecimento para solicitar

cancelamento de qualquer partida efetivamente realizada. (Destacou-

se).

Para o tênis, o jogo terminado de acordo com as regras estipuladas, é considerado

válido e os jogadores não podem alegar desconhecimento das regras como fundamento para

cancelar o jogo que foi terminado.

Não se trata de uma regra equivalente à da coisa julgada e daquela, nos termos da

Lei de Introdução ao Código Civil, que a ninguém é dado escusar-se de conhecer a lei? O

jogo do direito ainda permite um mecanismo que o jogo de tênis não permite, que é o da

ação rescisória.

O Código de Processo Civil de 2015 prevê:

Art. 966 A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida

quando:

I – se verificar que foi proferida por força de prevaricação, concussão ou

corrupção do juiz;

II – for proferida por juiz impedido ou por juízo absolutamente

incompetente;

III – resultar de dolo ou coação da parte vencedora em detrimento da parte

vencida ou, ainda, de simulação ou colusão entre as partes, a fim de fraudar

a lei;

IV – ofender a coisa julgada;

V – violar manifestamente norma jurídica;

VI – for fundada em prova cuja falsidade tenha sido apurada em

processo criminal ou venha a ser demonstrada na própria ação

rescisória;

21 http://www.tenispaulista.com.br/site/index.php?cat_id=228. Acesso em 29 de julho de 2016 às 08:18.

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VII – obtiver o autor, posteriormente ao trânsito em julgado, prova

nova cuja existência ignorava ou de que não pôde fazer uso, capaz, por

si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável;

VIII – for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.

§ 1º Há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato

inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente

ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o fato não

represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se

pronunciado.

[...]

§ 4º Os atos de disposição de direitos, praticados pelas partes ou por

outros participantes do processo e homologados pelo juízo, bem como

os atos homologatórios praticados no curso da execução, estão sujeitos

à anulação, nos termos da lei. (Destacou-se).

Veja-se que no direito, mesmo com o jogo “terminado”, é possível “cancelar” esse

jogo se presentes os eventos mencionados na regra da ação rescisória. O primeiro evento ou

série deles que, se ocorrido, dá azo à ação rescisória diz com situação do próprio juiz de

direito (prevaricação, concussão, corrupção, juiz impedido ou incompetente) que tomou a

decisão que se finalizou no processo judicial.

O segundo evento diz com a situação das partes no jogo jurídico, por meio de atitudes

que podem viciar o convencimento (dolo, coação, simulação e colusão) em relação aos

eventos ocorridos e que levaram à imposição de consequências jurídicas em um jogo

processual já finalizado.

O terceiro evento diz respeito à violação de uma regra posta no sistema de direito

positivo. Nesse caso, trata-se de um conflito de regras, por se assim dizer, eis que a própria

decisão é também uma forma de regra jurídica (gravação jurídica), de modo que, se existente

o conflito entre essas regras, poderá ser aplicada a regra que permite a ação rescisória.

O quarto evento, que se ocorrido, possibilitará a ação rescisória, é o de a decisão que

terminou o jogo jurídico ter conteúdo mesmo de outra decisão que terminou o jogo jurídico

em que os jogadores e o conteúdo do jogo eram os mesmos.

Os demais permissivos da ação rescisória referem-se a relações diretas com eventos

ocorridos e à possibilidade de poderem em algum momento ser gravados no signo jurídico.

É o caso de eventos que em determinado momento não puderam ser gravados, daqueles que

foram somente conhecidos posteriormente e, além disso, de eventos que foram reconhecidos

pelo juiz, mas não ocorreram ou daqueles que ocorreram, mas não foram reconhecidos.

Por aonde quer que se vá, a possibilidade de ação rescisória dirá respeito a algum

evento. Eventos que podem se referir a uma situação do juiz, situação das partes, ou eventos

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que deveriam ter sido levados em consideração e que por algum motivo não o foram, mas

agora podem.

Esses eventos são tão importantes para o direito que o próprio sistema grava que sua

verificação permitirá a revisão de jogos jurídicos já finalizados. Isso quer dizer que, de uma

forma ou de outra, a verdade acerca de eventos22 deve prevalecer em detrimento da própria

segurança jurídica em direção da manutenção de jogos jurídicos já terminados, de forma que,

ao cabo, possa se ter uma aplicação do direito tendente ao justo.

Não é o caso de se dissertar aqui sobre justiça, pois isso demandaria um tanto

interminável de páginas, mas diga-se, por oportuno, que a concepção de justiça que aqui se

defende vai na linha de uma justiça convencionada, ou seja, de uma justiça que pode ser

obtida por conta de uma investigação jurídica que tendeu a trazer uma verdadeira crença

jurídica a um grupo de mentes também jurídicas. É o resultado de um ótimo, mas ao mesmo

tempo falível, processo de gravação de eventos do mundo sensível no palco do direito.

Essa verdade jurídica que se busca para fazer justiça também jurídica deve ser

perquirida pelos mecanismos que o direito traz à mão dos jogadores do jogo jurídico para

que a verdade seja convencionada. A verdade também é convencionada, pois que verdade é

uma concordância que tem que ver com regularidade, hábito e também, para fins jurídicos,

com a prevalência de interesses coletivos em relação a interesses individuais, entre outras

coisas.

Em resumo, o direito também tem um mecanismo de “desafio” tal qual aquele do

tênis para que sejam os eventos revisitados e a decisão do juiz do jogo seja reformulada. A

diferença é que no direito isso é possível até mesmo quando o jogo já terminou, o que não

acontece no tênis.

Aqui um ponto de atenção. Quando se fala que o jogo do direito já terminou, será

que isso é correto para fins da ação rescisória? A concepção que parece mais acertada é que,

se é possível mudar o jogo, é porque o jogo, de uma maneira ou de outra, ainda não terminou,

como um livro que ainda pode sofrer atualização em uma edição posterior em que o autor

da muda de opinião sobre algo no livro como verdadeiro.

Logo, a ação rescisória não se possibilita para jogos jurídicos terminados, como pode

parecer. Ao contrário, seu cabimento revela que o jogo jurídico pretensamente terminado,

22 Lembre-se que evento ocorrido é uma tautologia, eis que o signo jurídico evento (a palavra evento) já

acomoda dentro de si um evento acabado, ocorrido, eis que a palavra é uma realidade semeiótica sobre

realidades autênticas.

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mas ainda sujeito à ação rescisória, continua latente, algo como um cronômetro que continua

a rodar quando já se pensou ter terminado um evento desportivo.

Essa analogia do relógio que continua a rodar, marcando o tempo de um evento

desportivo sem que se tenha conhecimento é peculiar, pois o tempo acaba pregando peças

nas pessoas. Ele como que brinca com elas, iludindo-as sobre o começo, meio e fim das

coisas. É que o tempo, como se disse, é psicológico e por sê-lo depende de como uma mente

ou grupo de mentes pensa sobre ele. Qual é o fim do evento desportivo se o relógio que

marca o tempo do evento continua a rodar?

A resposta parece repousar sobre a ideia de tempo também como uma convenção,

porém, uma convenção sem um objeto absoluto, eis que o objeto do tempo é fictício ou

imaginário, somente referindo-se ao real de maneira mediata. É por isso que se trata também

de uma abstração que se alcança por conta de mudanças nas coisas.

É por isso que o tempo como noção aparece à mente não como objeto absoluto, mas

mediatamente em razão de sensações que se apresentam como a de sucessão temporal,

duração temporal e perspectiva temporal. Esses ingredientes alimentam a mente para que se

estabeleça uma crença sobre o tempo.

Em relação ao tempo, há ainda uma particularidade que não pode ser afastada, eis

que ainda que exista uma convenção social sobre o tempo, ele é uma experiência completa

e totalmente individual, cada um sentirá variações de tempo que são únicas no próprio tempo

de cada indivíduo.

A convenção sobre o tempo serve, nesse contexto, para criar uma sensação de

regularidade nas gentes e possibilitar, como já se disse antes, a comunicação entre as pessoas

em uma comunidade de fala. Essa crença coletiva cria uma ilusão de que os sentimentos e

sensações são iguais e regulares, como que um hábito, mas, em verdade, não o são.

Depende-se, no entanto, dessa crença na regularidade para que se permita viver em

sociedade, principalmente, em uma visão do homem como ser social que é. Assim, essa ideia

da convenção acaba prevalecendo, deixando-se claro que não é na realidade íntima o que,

verdadeiramente, estabelece-se.

Porém, o que importa a realidade íntima se o que se perpetua é uma verdade do outro

sobre a alguém? É que até mesmo o ser, em alguma medida, é uma ideia coletiva desse ser,

de modo que o homem enquanto ser social é, em verdade, a crença social desse homem.

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Isso tudo para dizer que, também no direito, o tempo é uma convenção, uma

convenção jurídica, do que decorre dizer que também existe um tempo jurídico e limitações

jurídicas de tempo que implicam consequências também juridicamente estabelecidas.

Quais são os mecanismos que finalizam o jogo jurídico? Qual é a perspectiva

temporal no direito acerca do passado e do futuro dos direitos tutelados? Essas entre outras

perguntas, é o que se quer responder na sequência.

5.2 O Fim do Jogo Jurídico (Prescrição, Decadência e Preclusão)

Voltando à questão do jogo de tênis, falou-se que o tenista tem um tempo para iniciar

tal jogo, sob pena de não mais ter o direito a jogar aquele jogo. Uma analogia às regras de

preclusão, decadência e prescrição surgem facilmente à mente dos juristas.

No direito, também é preciso começar o jogo dentro de um certo limite de tempo,

sob pena de se perder o direito de se jogar esse jogo jurídico. No direito penal, por exemplo,

vai se encontrar limites de tempo diferentes para se jogar jogos acerca de crimes diferentes.

O crime de homicídio prescreve, por exemplo, em vinte anos, conforme artigo 109

do Código Penal Brasileiro. A pergunta que cabe aqui é por que e como se consegue chegar

a um parâmetro matemático para a limitação temporal no direito? Qual o critério?

O artigo 109 do Código Penal Brasileiro adota um parâmetro específico:

Art. 109. A prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, salvo

o disposto no § 1o do art. 110 deste Código, regula-se pelo máximo da

pena privativa de liberdade cominada ao crime, verificando-se:

(Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).

I - em vinte anos, se o máximo da pena é superior a doze;

II - em dezesseis anos, se o máximo da pena é superior a oito anos e não

excede a doze;

III - em doze anos, se o máximo da pena é superior a quatro anos e não

excede a oito;

IV - em oito anos, se o máximo da pena é superior a dois anos e não excede

a quatro;

V - em quatro anos, se o máximo da pena é igual a um ano ou, sendo

superior, não excede a dois;

VI - em 3 (três) anos, se o máximo da pena é inferior a 1 (um) ano.

(Redação dada pela Lei nº 12.234, de 2010).

Prescrição das penas restritivas de direito

Parágrafo único - Aplicam-se às penas restritivas de direito os mesmos

prazos previstos para as privativas de liberdade. (Destacou-se).

Veja-se que no direito penal a limitação temporal chamada prescrição se parametriza

em relação à pena privativa de liberdade prevista pelo legislador. No caso do homicídio, a

prescrição é de vinte anos, porque a pena prevista é maior de doze anos. No direito penal há

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uma diferença entre prescrição antes do trânsito em julgado da ação penal e depois do

trânsito em julgado. No primeiro caso, a prescrição se parametriza pela pena prevista e no

segundo pela pena imposta pelo juiz de direito. Nesse último caso, a previsão se encontra no

artigo 110 do Código Penal Brasileiro.

O critério do direito penal é peculiar como se disse, eis que se baseia no parâmetro

da pena prevista pelo legislador ou da pena imposta pelo juiz criminal. Parece um critério

muito razoável de tempo, eis que em um caso a convenção do legislador que gravou o evento

do homicídio como passível de consequências jurídicas, impondo como consequência

mesma a privação de liberdade do autor de tal evento, é que é o parâmetro para a própria

limitação temporal da ação penal. No outro caso, o parâmetro é tempo de condenação

criminal imposta pelo juiz criminal.

Vinte anos de limitação temporal enquanto que a pena imponível é de até trinta anos,

por exemplo, no homicídio qualificado, conforme artigo 121, parágrafo segundo, do Código

Penal Brasileiro, parece razoável e proporcional. Se é razoável e proporcional, é porque

implica justiça aos espectadores do jogo jurídico (a sociedade brasileira).

Uma prescrição proporcional à pena prevista ou imposta parece ser um critério que

traz justiça aos olhos dos espectadores do jogo jurídico. Lembre-se que a prescrição

enquanto regra jurídica é também uma convenção jurídica e, por sê-lo, é sempre atualizável

se a investigação jurídica levar a uma nova crença jurídica acerca da justiça que essa

convenção implica.

O art. 115 do Código Penal Brasileiro traz ainda causas que reduzem o prazo

prescricional como no caso de o autor ser menor de 21 anos na data da prática criminosa ou,

na data da sentença maior de 70 anos.

É outro parâmetro que parece razoável, proporcional e justo, eis que privilegia aquele

que ainda tem muito a viver e que talvez, naquele espectro temporal do crime cometido,

tivesse uma consciência de seus atos reduzida, ao mesmo tempo que protege aquele que, já

mais velho, não tem muito a viver.

Veja que a regra jurídica fala em 21 anos ao tempo do crime, ou seja, leva em

consideração a condição do autor à época do crime em razão do seu estado de consciência

talvez não tão amplamente desenvolvido. Leva ainda em consideração, para o autor mais

velho, outro critério, o de que ao tempo da sentença já seja maior de setenta anos, ou seja,

não tenha nem ao menos tempo suficiente ao cumprimento completo de uma sentença.

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293

Sobre o tema, são preciosas as palavras de Hungria (1978, p. 414):

Um sentimento de justiça social e de benignidade parece ter ditado aos

governantes de então esse ato legislativo, que vem encontrar, agora,

consagração definitiva no Código.

[...]

Argumentava o legislador de 1933 que o abrandamento de punição dos

menores deve corresponder, logicamente, um encurtamento dos lapsos de

prescrição da ação e da pena. Corolário do tratamento especial que as

legislações penais, em regra, recomendam e adotam para os

delinquentes jovens, a uns dispensando, a outros, minorando a pena, e

sempre em razão do seu insuficiente desenvolvimento mental e moral [...].

Tal justificativa subsiste, para o preceito do Código de 40. É incontestável

a conveniência de facilitar ao egresso da sociedade, culpado de um crime

em que atuaram contingências peculiares da idade curta, o mais breve

reingresso na coletividade social, para o trabalho lícito e prestante, a que o

habilitam, mais do que nunca, as suas energias moças.

Os mesmos motivos de ordem fisiológica e psicológica procedem em

relação ao delinquente idoso. Por isso, o Código iguala a idade, como já

os havia equiparado, atribuindo-lhes valore de atenuante (art. 48 n. I). A

norma geral se harmoniza, portanto, com as conclusões da ciência,

consoantes em assemelhar, do ponto de vista da imputabilidade e da

responsabilidade penal, a criança e o ancião. Dessa atenuação decorre,

como consectário natural, a diminuição do tempo da prescrição. (Destacou-

se).

No direito penal, pois, prevaleceu, para o legislador na gravação do signo jurídico,

um sentimento de justiça que levou em consideração noções científicas de idade do menor e

do ancião para se estabelecer que, um deveria ser reintegrado à sociedade mais rapidamente,

pois sua consciência “criminal” à época do evento era reduzida e facilmente influenciável e,

o outro, além da idade avançada para cumprir a pena, assemelhava-se do ponto de vista

mental, ao menor em relação à sua consciência “delituosa”.

Também para o direito penal, como já trouxe Block, a sensação do tempo leva em

consideração características do experimentador do tempo, os conteúdos de período de tempo,

as atividades da pessoa durante o período de tempo, e os comportamentos relacionados ao

tempo da pessoa.

Veja-se que se levou, no direito penal, em consideração, a menoridade e longevidade

do autor do evento-crime (características do experimentador), a graduação temporal da

privação de liberdade imposta e consequente prazo para perquirir penalmente as

consequências do evento-crime ocorrido (conteúdos de tempo), a circunstância de poder o

menor se reinserir na sociedade para trabalhar e produzir para a sociedade (atividades no

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294

tempo), bem como a prática criminosa propriamente dita do evento-crime “matar alguém”

(nominal perfeito “a morte de alguém”), aqui relacionada aos comportamentos no tempo.

A direção a quem essas graduações de tempo se eleva, é a própria sociedade

(espectadores do jogo do direito), que são levados em consideração, necessariamente, pelo

legislador ao tempo da gravação da regra jurídica, eis que é esse legislador o representante

das gentes no poder legislativo, conforme também gravado no próprio direito positivo.

Isso equivale a dizer que à época da gravação do signo jurídico pelo legislador

“vigia” na sociedade uma crença de que o tempo justo para um crime de homicídio seria de

até trinta anos e que o tempo para perquirir penalmente as consequências desse crime seria

regido proporcionalmente ao tempo da gravação legal do legislador ou da aplicação da

mesma pelo juiz no caso concreto.

Equivale a dizer, também, que era essa a convenção que se podia sacar da memória

semântica (conforme apontou Tulving anteriormente) das gentes à época da edição da lei

respectiva que traz a cominações penais.

Ressalte-se, novamente, crenças e convenções se atualizam, eis que falíveis.

Atualizam-se na evolução das gentes e no ritmo do que a investigação científica tem a

tendência de trazer nova crença e nova convenção.

Um exemplo interessante sobre o tema vem da common law. No direito

estadunidense, muito se tem discutido acerca da aplicação do que lá se chamam “statute of

limitations” especificamente aos crimes envolvendo abuso sexual infantil. Diga-se que os

“statutes of limitation” são, basicamente, regras relativas às limitações temporais para que

se possa ajuizar uma ação.

A pergunta que no direito estadunidense se faz é como contornar os “statute of

limitations”, levando em consideração o que se designou chamar memória recuperada

(“recovered memory”) relacionada a um abuso sexual infantil ocorrido há muitos anos e, em

relação ao qual, se aplicada na literalidade dos “statute of limitations”, não poderia mais se

acusar criminalmente um pretenso autor de prática criminosa contra crianças.

A ideia que ganhou força nas cortes estadunidenses é de que essa memória

recuperada por uma terapia aplicada por profissionais psicólogos ou psiquiatras, poderia,

ainda que muitos anos após prática criminosa, muitas vezes até quarenta anos depois, ter

força de prova no processo judicial, funcionando como uma exceção aos “statute of

limitations”.

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Carro e Hatala (1996, p. 1240) tratam do tema da seguinte maneira:

atos de mais de uma década de abuso sexual infantil tem sido trazido à vida

nas cortes por toda a nação. Algumas das vítimas têm claras, vivas

memórias dos abusos sexuais, mas ficaram em silêncio por anos, nunca

reportando os abusos (Litigantes do Tipo I). Outras, por meio de

moderna psicologia e por conta de divulgações, têm tornado a coisa

contenciosa baseados em supostas memórias “reprimidas” do abuso

sexual, não memórias “atuais”, vivas (Litigantes do Tipo II). Esses

litigantes alegam ter seletivamente esquecido dos supostos eventos

associados com o trauma, lembrando acerca dos mesmos somente anos

ou décadas mais tarde. Nesses casos do Tipo II, a memória suprimida

do abuso usualmente enfraquece-se do seu sono profundo dentro da

mente da pessoa por conta do trabalho de um profissional

hipoteticamente treinado na “recuperação” dessas memórias.

Alternativamente a vítima pode ter a memória reavivada por conta de um

evento reminiscente do trauma, que faz a pessoa lembrar do abuso.

(Destacou-se).

Como se vê, nos casos apresentados, há dois tipos de litigantes: aquele que tem uma

memória viva do abuso, mas não o reportou a alguém antes por conta de diversas

circunstâncias específicas e aquele que não tem essa memória viva dos eventos associados

ao trauma (memória reprimida), mas tem essa memória recuperada por profissionais

psicólogos ou psiquiatras treinados para esse fim.

Os casos de memórias recuperadas têm sido ao longo dos anos levados às cortes

estadunidenses com fervorosos debates acerca da validade da prova da memória recuperada

e da possibilidade de se afastarem os “statute of limitations” nesses casos.

Em relação ao tema, assim pontuam Carro e Hatala (1996, p. 1246):

Quando uma pessoa possuindo memórias de um abuso sexual decide

ajuizar uma ação, “psico-ciência” e o direito colidem. O resultado é

análogo a colocar um pino quadrado num buraco redondo. O direito

é compelido a acomodar alegações de mais de uma década que

indubitavelmente teriam sido eliminadas pelos “statute of limitations”

anteriormente. Enquanto isso, as comunidades de psicólogos e psiquiatras

devem trazer sua própria ciência inexata ao tribunal para explicar o debate

sobre memórias recuperadas para um júri culturalmente sensível. Mais

problemático ainda é que em casos de pessoas sem memórias atuais e

vivas, nenhum mecanismo judicial, psiquiátrico ou psicológico existe para

distinguir alegações falsas de abuso sexual infantil daquelas que são

verdadeiras.

Alguns doutrinadores e cortes têm sugerido que, algum tipo de prova

corroborativa do abuso, é necessária para se ajuizar a ação baseada na

teoria da memória reprimida quando os tradicionais “statute of limitations”

tenham expirado. Litigantes da teoria das memórias reprimidas alegam

que requerer prova do ato, o qual pode ter ocorrido até vinte anos

antes, é desarrazoado, e a maioria das cortes concordam com isso. [...]

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No entanto, diferentemente das psico-cientificamente questionáveis

memórias recuperadas, evidências científicas existem demonstrando

que falsas memórias podem ser criadas. (Destacou-se).

Veja-se que a memória pode pregar peças e o fluxo do tempo e a vivacidade dos

eventos nas mentes das gentes é que soe trazer segurança e higidez às alegações postas diante

de uma corte ou tribunal.

Memórias recuperadas ou não, são memórias e, em relação a elas, também a sensação

do tempo é que implica ingrediente imprescindível para a correspondência dessas memórias

aos eventos ocorridos.

Um evento-abuso sexual infantil ocorrido há mais de quarenta anos e, recuperado, a

partir de uma memória supostamente reprimida, por mecanismos psicológicos ou

psiquiátricos, pode não trazer na balança do fenômeno jurídico o melhor equilíbrio para os

interesses em jogo.

Ainda que seja repugnante o crime de abuso sexual infantil, o tempo ainda joga cartas

importantes para manutenção das evidências que podem ser trazidas à corte para substanciar

uma decisão judicial. Lembre-se que evidência vem do latim evidentĭa e tem equivalente de

uso com visibilidade, possibilidade de ver (MACHADO, 1977b, p. 507). Algo evidente é,

pois, algo visível, aparente, claro.

Tornar claro ao direito, nesse contexto, é trazer ao julgamento eventos que tenham

visibilidade e não estejam, de alguma forma, encobertos pela neblina dos efeitos tortuosos

de um tempo muito longo, uma vez que um dos elementos importantes, em relação ao tempo,

é a perspectiva temporal: passado, presente, futuro. Se o passado é muito passado, o tempo

acaba pregando peças na memória das pessoas, tornando a claridade dos eventos turva e

lamacenta.

Se a sucessão temporal, outra característica essencial para se perceber o tempo, faz

com que os eventos sucedidos se tornem apenas uma memória daquele passado distante, a

qual não pode ser recuperada com exatidão, pois que os resquícios dos eventos que a

formaram já pereceram e o que resta é somente esse algo fugaz de uma memória incerta

(algo como uma foto amarelada em que a imagem se perdeu pelo perecimento da foto), isso

quer dizer que essa memória para o direito é inútil, pois não permite uma lógica abdutiva de

verdadeiro ou falso sobre ela ou, se permitir, implicará, na maioria das vezes em uma

memória falsa como ocorre em muitos casos de memória recuperada por psicólogos e

psiquiatras em relação a crimes de abuso sexual infantil.

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Quer parecer que esses são os elementos que levam, no direito, a que existam

previsões de limitações temporais para o próprio exercício de direitos, pela razão de que a

memória dos eventos, ou não pode ser recuperada, ou, se recuperada, é por demais

amarelada, o que implica, para o direito, uma medida de tempo que, pela passagem

excessiva do mesmo, não pode mais ser devidamente graduada na memória já desvanecida

sobre os eventos ocorridos.

Acerca do tema, são precisas as palavras de Lowenthal, Pastuszenski e Greenwald

(1980, p. 1015; 1020):

As limitações temporais se assentam em três amplas, sobrepostas

justificações: institucional, de remediar e de promover.

A. Institucional

Três razões institucionais justificam colocar-se barreiras temporais sobre

direitos de ação. Primeiro, as limitações protegem as expectativas dos

litigantes e promovem a estabilidade do direito à propriedade.

[...]

Conveniência é também um longa e reconhecida justificativa

institucional para limitar ações. Os tribunais atualmente sobrecarregados

demandam procedimentos para reduzir os pesados níveis de litígios. Em

mantendo ações caducas fora das cortes, os “statute of limitations” aliviam

as cortes dos ônus de processar ações já caducas quando o requerente

dormiu em relação aos seus direitos.

Limitações também preservam a credibilidade do sistema judicial por

barrar ações que, pelo tempo decorrido, permitiram que provas se

perdessem, memorias desvanecessem, e testemunhas desaparecessem.

B. Remediação

[...] Limitações temporais também servem a única função de remediação

no sentido de notificar o potencial réu da duração da sua exposição ao

contencioso judicial. Quando uma demanda se torna exequível, ele pode

saber que é suscetível de ser acionado por um especifico período de tempo

especificado nos “statute of limitaitons”. Uma vez a par da extensão do

período de limitação, ele pode preservar os fatos necessários para sua

defesa até que se caduque e evitar uma surpresa injusta a partir de uma

crença de que sua exposição ao contencioso judicial estava acabada.

C. Promoção

As barreiras de tempo servem para contrabalançar interesses de promoção

(no sentido de andamento do processo). Por um lado, elas incentivam

partes no processo a iniciar o processo judicial rapidamente; por

outro, elas permitem tempo suficiente para que defendam seus

direitos. (Destacou-se).

Os autores apontam para algumas justificativas das quais decorreria a necessidade de

limitação temporal no direito, sendo a primeira delas uma justificativa institucional, a qual

vai desde proteger a expectativa dos litigantes e a estabilidade do direito, até uma

conveniência em razão do sobrecarregamento dos tribunais.

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Importa trazer sobre o último item (conveniência) que, quando algo é conveniente, é

porque está em bom acordo com, conforme, vem do latim conveniente (MACHADO, 1977b,

p. 222), ou seja, também a conveniência dos tribunais em suavizar o abarrotamento de

processos nas varas é um acordo, uma convenção sobre que alguns processos devem ser

barrados em razão do tempo e para permitir que o sistema não se sobrecarregue.

A segunda das justificativas diz com o elemento de remediar, o qual permite que uma

parte adversa preserve as provas sobre os eventos absolutos, de modo a que possa se defender

no futuro de potenciais demandas. Se a possibilidade de acionamento judicial fosse ad

infinitum, as provas deveriam ser mantidas ad infinitum, o que parece ser de pouca aplicação

prática diante da corrosão que o tempo implica a qualquer coisa real, incluindo aí também a

própria memória da coisa real.

Isso geraria uma instabilidade no sistema, eis que provas perecem com o tempo, o

que implicaria na impossibilidade de alguém se defender em uma possibilidade de

acionamento ad infinitum.

Veja que a palavra “remédio” de onde surge remediar, também tem como um dos

seus usos possíveis “preservativo” no sentido de preservar de consequências (MACHADO,

1977c, Vol 5, p. 73; DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA CONTEMPORÂNEA,

2001, p. 3179). Quer parecer ser essa, também, uma das funções das limitações temporais

no direito no sentido de preservar as provas para que não haja consequências adversas.

Por último, existe a justificativa de promover. Promover o quê? Um contrabalanço

para que as partes no processo o iniciem, haja vista que há um tempo limite para tal e,

também, para que haja uma defesa de direitos demandados.

Pode-se aprender muito sobre as limitações temporais no direito com a dogmática

estadunidense e, com as funções de interesse por trás das “statute of limitations”, tais quais

a institucional (estabilidade e conveniência), remediação e promoção.

No direito brasileiro, acerca do tema da limitação temporal, mais precisamente,

tratando do tema da prescrição, são geniais (dizer que são geniais é uma tautologia) as

palavras de Miranda (2012, p. 662):

prescrição é a exceção, que alguém tem, contra o que não exerceu, durante

certo tempo, que alguma regra jurídica fixa, a sua pretensão ou ação. Serve

à segurança e à paz públicas, para limite temporal à eficácia das

pretensões e das ações. A perda ou destruição das provas exporia os

que desde muito se sentem seguros, em paz, e confiantes no mundo

jurídico, a verem levantarem-se — contra o seu direito, ou contra o

que têm por seu direito — pretensões ou ações ignoradas ou tidas por

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ilevantáveis. O fundamento da prescrição é proteger o que não é devedor

e pode não mais ter prova da inexistência da dívida; e não proteger o que

era devedor e confiou na inexistência da dívida, tal como juridicamente ela

aparecia.

[...]

A proteção, que se contém nas regras jurídicas sobre prescrição,

corresponde à experiência humana de ser pouco provável a existência

de direitos, ou ainda existirem direitos, que longo tempo não foram

invocados. Não é esse, porém, o seu fundamento.

Os prazos prescricionais servem à paz social e à segurança jurídica.

Não destroem o direito, que é; não cancelam, não apagam as pretensões;

apenas, encobrindo a eficácia da pretensão, atendem à conveniência de

que não perdure por demasiado tempo a exigibilidade ou a

acionabilidade. Qual seja essa duração, tolerada, da eficácia

pretensional, ou simplesmente acional, cada momento da civilização o

determina. Os prazos do Código Comercial correspondem a concepção da

vida já ultrapassada; porém o mesmo já se pode dizer de alguns prazos do

Código Civil. A vida corre célere, — mais ainda na era da máquina.

(Destacou-se).

A genialidade de Miranda está na sua percepção de que direito é, igualmente, produto

de um ajuste jurídico, é crença jurídica, de modo que as gravações do legislador, inclusive

para fins de limitações temporais, como é o caso da prescrição, baseiam-se no tempo como

ingrediente social, ou seja, no tempo como limite de ação na percepção do que é socialmente

ajustável.

É por isso que Miranda traz que a prescrição serve à segurança e paz públicas, o que

se relaciona à possibilidade de perda e destruição de provas com o passar do tempo, expondo

os que se acomodaram com a passagem do tempo e que, por tal motivo, não se organizaram

à manutenção das provas de seus direitos, a acionamentos jurídicos inesperados.

Miranda traz, expressamente, que a prescrição se fundamenta na experiência humana

a qual apresenta que determinada passagem de tempo já é suficiente para fazer desvanecer

na memória a existência de direitos que não foram até então invocados.

Atende a prescrição, também, a uma conveniência, como já se disse, lembrando-se

que “ser conveniente” também é uma forma de ajuste. Trata-se de uma conveniência acerca

de que, a perduração demasiada de uma exigibilidade jurídica baseada em direito subjetivo,

cause esquecimento, perda de memória sobre eventos e de direitos decorrentes ou referentes

a eles.

Nesse contexto é que Miranda fulmina dizendo que essa tolerância em relação ao

tempo é aquela que a civilização determina, é dizer, o limite temporal que se acomoda no

direito para fazer barrar uma ação de alguém com direito subjetivo é aquele que as

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coordenadas de espaço e tempo permitirem trazer crença social, a qual deve estar na

gravação do legislador, representante das gentes que é, numa tolerância temporal

socialmente aceita e possível na linguagem cotidiana.

Porém, esses limites temporais importam exceções. No direito estadunidense, por

exemplo, os “statute of limitations”, no caso de abuso sexual infantil, têm sido driblados nas

cortes pela aplicação da “regra da exceção da descoberta”. Tipicamente, no direito

estadunidense, a limitação temporal para se demandar judicialmente por conta de um evento

de abuso sexual infantil é de um a três anos a depender do estado.

Carro e Hatala (1996, p. 1246) atentam para o seguinte no que diz respeito à exceção

em relação aos “statute of limitations”:

Apenas quando princípios de equidade ou circunstâncias excepcionais

existem é que se faz que considerações fundamentais de justeza

requeiram que uma exceção possa ser feita aos “statute of limitations”.

Problemas, no entanto, surgem quando uma lesão a direito não ocorra

imediatamente, ou não seja aparente à época da conduta tortuosa, deixando

demandantes sem culpa ignorantes das causas para suas ações até depois

da expiração dos “statute of limitations”. Ao invés de barrar os

demandantes, as cortes combatem uma potencial injustiça aplicando

a regra da descoberta. (Destacou-se).

Quanto ao tema, no Brasil, o Código de Defesa do Consumidor já há tempos permite

que os prazos para demandar judicialmente, em relação a um defeito do produto, sejam

principiados somente quando esse defeito, que era oculto, for revelado ao consumidor (artigo

26, parágrafo terceiro do Código de Defesa do Consumidor).

A própria possibilidade de ação rescisória, como já visto, no caso de se descobrir um

evento absoluto ocorrido somente posteriormente ao trânsito em julgado da decisão judicial

ou daquele que já descoberto não se pode dar notícia à época apropriada da ação em curso,

é também uma espécie de “regra de exceção da descoberta”.

O direito civil já tratava do tema, igualmente, no que diz respeito aos vícios

redibitórios, hoje previstos no artigo 445 do Código Civil Brasileiro, permitindo que o prazo

para se obter redibição ou abatimento do preço seja contado a partir da descoberta do vício

que antes era à parte oculto.

Atente-se para o parágrafo segundo do artigo mencionado do Código Civil Brasileiro

que tem a seguinte redação: “Tratando-se de venda de animais, os prazos de garantia por

vícios ocultos serão os estabelecidos em lei especial, ou, na falta desta, pelos usos locais,

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aplicando-se o disposto no parágrafo antecedente se não houver regras disciplinando a

matéria.” (Destacou-se).

Veja-se que a regra de direito civil permite, inclusive, o estabelecimento de prazos

para que se demande acerca do vício redibitório, no caso específico da compra e venda de

animais, com base nos usos locais. Na prática, sabe-se que se acaba aplicando a regra de

prescrição para bens móveis adquiridos com vício de quinze dias (ver TJ-SC - Apelação

Cível: AC 52248 SC 2002.005224-8) ou equiparando-se os demandantes a consumidores e

aplicando a regra do Código de Defesa do Consumidor (TJ-SP - Agravo de Instrumento: AI

20265423620148260000 SP 2026542-36.2014.8.26.0000).

No entanto, percebe-se que no próprio direito o tempo também pode ser uma

memória de uso, uma crença estabelecida na comunidade e, se assim não é, as vezes por uma

interpretação conveniente de juízes, eis que animais são semoventes e não móveis, ao menos

o tempo é uma crença jurídica, como também o é as limitações de tempo impostas na

legislação.

No entanto, tem de ter alguma coisa da linguagem cotidiana nessas crenças jurídicas,

eis que o direito, de uma forma ou outra, serve também à comunidade e, como já se disse,

os signos jurídicos universais e os particulares/singulares são, ao fim, uma gravação de uma

porção da summa realidade.

Visto isso, na sequência traga-se uma análise sobre o fim do jogo jurídico sob a

perspectiva da irretroatividade e anterioridade da lei.

5.3 O Fim do Jogo Jurídico (Irretroatividade e Anterioridade)

Outra regra que limita temporalmente efeitos jurídicos, mas agora em relação à

aplicação da lei, é a regra da irretroatividade e da anterioridade. No direito tributário,

verificam-se tais regras no artigo 150, inciso terceiro da CF/88.

Tais regras de limitação temporal têm a função de: a) preservar o contribuinte da

surpresa pela cobrança de um novo tributo (princípio da anterioridade), permitindo, ainda,

que esse contribuinte se prepare financeiramente e em relação às obrigações acessórias

(declarações fiscais sobre os eventos geradores de consequências tributárias) para a nova

tributação, bem como; b) garantir que eventos passados não se submetam à irradiação dos

efeitos da regra de tributação nova, eis que já consumados no tempo.

É mais uma vez o tempo imprimindo no direito suas consequências fulminantes. Para

o direito, no entanto, esse tempo se relaciona com direitos subjetivos, como já se disse, no

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sentido de que as regras de limitação temporal jurídicas se preocupam com tutelas, no caso

dos contribuintes, com uma tutela que lhes é muito cara, relativa à preservação de eventos já

consumados de consequências tributárias no tempo presente (algo como preservar o passado

em relação a leis novas que somente agora estão gravando novos eventos passíveis de

consequências tributárias). Aqui a regra da irretroatividade.

Outra tutela protegida no caso dos contribuintes é aquela referente à organização de

suas finanças e à estrutura de custo para se adequar a uma nova tributação. Aqui é uma

proteção de ordem econômica, preocupando-se o direito com as consequências que novas

imposições tributárias teriam para a higidez financeira dos contribuintes, do que decorre que,

em alguns casos, uma medida de tempo deve separar a arrecadação tributária da nova

imposição tributária.

Veja-se que essas regras de limitação temporal comportam, igualmente, exceções,

tais como a possibilidade, no direito tributário, de que efeitos de leis tributárias novas sejam

aproveitados por contribuintes em relação a eventos já consumados quando tratarem da

diminuição da imposição de multas (artigo 106, inciso “c”, do Código Tributário Nacional).

Nesse contexto, a conclusão que se chega do falado até aqui é que o tempo jurídico

é um tempo também abstrato, o qual é medido em razão da mudança das coisas, graduado

pela sucessão de eventos, duração dos mesmos e pela perspectiva que se tem em relação ao

passado, presente e futuro dos eventos.

A diferença é que o tempo jurídico é um tempo estabelecido como que por uma

sensação jurídica de tempo, a qual não leva em consideração somente aspectos da memória

semântica das gentes, mas também aspectos da memória semântica das gentes do direito,

diante da qual interesses do jogo do direito são necessariamente considerados.

Essa memória semântica das gentes do direito tem, pois, função não só de graduar o

tempo juridicamente de acordo com as crenças jurídicas, mas também de trazer estabilidade

ao sistema de direito, equilíbrio no seu processamento, regularidade nos seus julgamentos,

previsibilidade às partes e conveniência aos aplicadores do sistema de que ele possa se mover

para frente e em um tempo razoável e proporcional.

As limitações temporais no direito do tipo prescrição, decadência e preclusão são

daquelas que visam proteger o que se chama direito subjetivo das partes contra o perecimento

e manutenção de evidências sobre eventos ocorridos.

As regras que permitem a ação rescisória e protegem consumidores de vícios ocultos

ou redibitórios também podem ser citadas como maneiras de driblar os efeitos do tempo

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sobre os eventos absolutos, inclusive nos casos em que o jogo jurídico já estiver terminado

(especificamente para fins de ação rescisória).

Para o direito, o tempo razoável e proporcional é o tempo que uma prova sobre um

evento ocorrido possa ser preservada de modo a que um acionamento judicial seja possível,

mas, mais importante talvez, que uma defesa contra esse acionamento possa se estabelecer

com provas de eventos que eventualmente possam desacreditar a prova da outra parte.

Esse mecanismo de proteção a direitos subjetivos no direito é regulado pelo

legislador e os interesses em jogo são aqueles do tempo em que a regra de limitação foi

estipulada. Isso quer dizer que a ideia de investigação interminável por conta de crenças

sempre falíveis e, por isso, atualizáveis, não se desfaz no direito.

O que é hoje uma regra de limitação temporal que protege direitos subjetivos pode

não ser amanhã. Os “statute of limitations” estadunidenses, em razão de sua flexibilização

frente a casos de abuso sexual infantil, são um exemplo de evolução do direito, permitindo

que, presentes certos requisitos, possa-se driblar a regra de limitação temporal, permitindo-

se que demandantes litiguem em casos tais.

Por quê? Porque isso atende melhor aos interesses da comunidade e porque, para esse

caso específico, a crença sobre o tempo aplicável pode ser flexibilizada na memória, haja

vista que o bem tutelado (proteção às crianças de abuso sexual) é maior que uma limitação

temporal, de modo que até mesmo memórias são permitidas como fundamentação a direitos

subjetivos. Lembrem-se que na linha de Ross o direito é fático-convencional (ou, como aqui

se defende, eventual-convencional) e a realidade uma totalidade concreta individual.

Um ponto de contato necessário é, no entanto, em relação ao direito, aquele que diz

respeito à memória das gentes no que tange a eventos absolutos e às provas que possam ser

produzidas sobre eles para suportar uma demanda judicial ou uma defesa contrária.

O tempo sobre os eventos absolutos é implacável e o perecimento das provas implica,

muitas vezes, obstáculo à consagração de direitos, ainda que hajam outros meios que

permitam memórias de eventos, quando desprovidos de provas sobre eles.

Isso ocorre porque é preciso lembrar que na balança da justiça há dois lados, dois

direitos subjetivos: um do autor e outro do réu. No caso do abuso sexual infantil, o que se

viu no direito estadunidense, por exemplo, foi que muitas acusações estavam se baseando

nas chamadas memórias recuperadas sem provas físicas dos eventos absolutos, o que levou,

em alguns casos, à condenação de inocentes, eis que tais memórias se apresentaram falsas.

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Aqui mais um problema em relação ao tempo jurídico. Um problema que diz respeito

à flexibilização das limitações temporais em nome de um bem tutelado maior (proteção às

crianças contra abusadores).

O ponto que deve ser tocado, no entanto, diz respeito a outra proteção muito cara ao

direito e a todos da comunidade: a proteção de um julgamento justo e no devido processo

legal (“due process of law”) que esse fim almeja.

Nos casos de abuso sexual infantil no direito estadunidense, o que se verificou foi

que, em alguns casos, ainda que se conseguisse uma memória recuperada em relação a um

pretenso evento de abuso sexual infantil, o tempo era implacável para colocar em “xeque”

essa memória artificialmente recuperada diante do operador “verdade” no caso concreto.

Isso quer dizer que, ainda que a memória recuperada pudesse tender à ocorrência de

um evento de abuso sexual infantil, diante da impossibilidade de uma investigação jurídica

poder trazer concordância da memória recuperada com o limite ideal, em razão da falta de

provas e da fragilidade do procedimento de recuperação da memória e devido, ainda, à alta

plausibilidade de se tratar de uma memória criada, isso implica que o operador “verdade”

não pode se verificar e, como consequência, que não se possa trazer crença jurídica ao

suposto evento de abuso sexual infantil.

Qualquer memória, seja na vida das gentes, seja na vida do direito, submete-se à

lógica do verdadeiro ao falso, não na linha do método lógico-dedutivo, mas sim em

conformidade com o método abdutivo peirceano, de modo que de alguma forma deve-se

tocar a realidade sensível, o que torna a investigação e a existência das provas do evento

absoluto essenciais. Se a prova pode perecer, deve-se coadunar o direito a um limite temporal

condizente a esse perecimento, para que, dessa forma, uma investigação ainda seja possível.

Para o que aqui se defende, o limite do direito é o limite do tempo que uma

investigação jurídica é possível, mas, como se disse, tempo também é um ajuste, no caso do

direito um ajuste jurídico, do que decorre que as limitações temporais, sob esse viés,

preservam direitos subjetivos e não o contrário.

O direito se fecha nessa ideia de summa realidade, investigação sobre essa realidade

e verdade no sentido de convenção do que foi possível investigar. Aí o tempo do direito ao

lado do tempo das gentes como catalisador da investigação e, pois, da verdade estabelecida.

Serve esse tempo jurídico às gentes, pois que o direito é bem cultural, é criatura de criador.

Volte-se à diferenciação entre verdade e realidade, para se deixar claro que a

limitação temporal que se estabelece para permitir uma investigação jurídica não apaga o

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evento absoluto, ainda que na memória das gentes ele já não possa ser encontrado e sobre

ele crença não seja mais possível se estabelecer.

Isso é assim porque, se a crença é no sentido de que o tempo do direito em um caso

concreto se exauriu porque a memória sobre os eventos ocorridos já se apresenta encoberta,

não podendo um acesso natural ao evento absoluto ocorrer, isso não implica que ele não

tenha ocorrido, mas tão somente que, para o jogo jurídico, sua ocorrência não pode ser

gravada com vistas a um julgamento justo.

Se a crença não pode ser verdadeira, uma vez que a investigação não permite tocar o

mundo sensível para gravar o evento absoluto ou um olhar que seja sobre ele, o que se tem

é que não se pode estabelecer uma crença.

É a ideia de signo sem objeto de Peirce. Aqui, se o evento absoluto se perdeu na

memória, perdeu-se também o objeto do signo, eis que a ideia que é fundamento do signo

nem ao menos pode se estabelecer na mente, pois que inacessível o objeto.

Porém, dizer que o signo não tem objeto, não é o mesmo que dizer que o objeto não

“existe”, pois que a realidade é “o modo de ser da coisa como ela é independentemente de

uma mente ou grupo de mentes”.

Isso quer dizer simplesmente que uma mente ou grupo de mentes, de alguma forma,

não consegue gravar esse objeto no signo, de modo que seu acesso resta obstaculizado. É

algo parecido com o que acontece com as limitações temporais no direito, as quais não

permitem que as mentes jurídicas alcancem os eventos absolutos ocorridos, em razão da

impossibilidade de gravá-los no signo jurídico, eis que uma investigação não pode

estabelecer uma verdade. No caso do direito, é mais uma presunção do limite de tempo

possível à uma investigação desse tipo.

É que no direito ingredientes institucionais, de remediação e de promoção estão

impressos nas limitações temporais estabelecidas juridicamente em direção ao próprio

direito e a tutelar os direitos subjetivos das gentes.

Onde quer que se observe o fenômeno jurídico, o que se encontrará é um organismo

vivo, em permanente atualização e que, necessariamente, projeta-se sobre os interesses das

gentes que o sistema quer tutelar, pois o direito deve ser justo no tempo, no espaço social e

na mente dos indivíduos.

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6 CONCLUSÃO

Como em um barco que navega ao norte, com guia nas estrelas, esse trabalho

navegou pelas águas do evento e evento jurídico e do fato e fato jurídico com fundamento

forte no realismo peirceano capilarizado por introspecções em Platão, Aristóteles, Scotus,

Kant, Merleau-Ponty, Lacan e Žižek, para falar das “escolas filosóficas”, bem como, no

âmbito jurídico, em Holmes, Pound e Llewellyn – no palco da escola realista estadunidense,

e em Ross e Olivecrona, no altar da escola realista escandinava.

A semiologia saussuriana foi ferramenta de contraponto com o que aqui se chamou

semeiótica (peirceana), a qual se aplicou para fazer prevalecer uma visão realista em

contraste com a do nominalismo, tendo-se digladiado com temas centrais como a questão

dos universais e particulares, proposições, verdade e realidade.

A construção dogmática teve influência relevante da linguística de Pottier, máxime,

no que respeita à diferença entre significado sintático e significado semântico, tendo-se

usado, igualmente, noções de Jakobson. No que toca aos universais e particulares, viu-se

em Strawson um contraponto importante para fazer prevalecer a visão peirceana sobre

realidade.

Relativamente ao tema do evento e fato, a incursão foi profunda na origem das

palavras, englobando noções problemáticas de etimologia, aportando em portos de

nacionalidades diferentes, o que passou pelo grego, sânscrito e latim, fazendo-se cotejos

entre espanhol, italiano, francês e inglês para desembarcar no fundamento etimológico das

diferenças entre evento e fato na língua portuguesa.

A base firme solidificada pela filosofia, semeiótica, semiologia e linguística permitiu

uma navegação menos turbulenta pelas águas dos fenômenos jurídicos. Fez-se emergir um

dualismo entre summa realidade e realidade semeiótica e, igualmente, entre evento absoluto

e evento semeiótico, o qual autorizou reflexões importantes sobre o enquadramento da

realidade jurídica como fatia da realidade semeiótica e de sua relação com a realidade externa

ou summa realidade.

Dentro da realidade semeiótica, adicionaram-se duas visualizações: uma do meio

físico (palavra escrita, falada, gesto) e outra no meio psíquico (pensamento, conceito, norma

jurídica). Isso para trazer que na realidade do signo este pode ser apreendido no espectro

físico-semeiótico da palavra escrita no texto, por exemplo, e no espectro psíquico-semeiótico

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do conceito, por exemplo, que surge na mente do intérprete, o qual também é signo na

percepção peirceana de signo.

Esses dualismos foram utilizados somente diante da perspectiva de que servem a um

propósito meramente dogmático-pedagógico, haja vista que na multiplicidade do mundo

sensível não podem ser verificados.

Nesse contexto, observou-se o fenômeno jurídico a partir do que se chamou signo

jurídico para trazer a noção de que os textos de lei, em verdade, nem “revelam”, nem

“plasmam”, nem “refletem”, mas sim gravam uma porção da summa realidade a partir da

gravação encontrada na linguagem cotidiana.

Disso se propôs o dual signo gravador (como é o caso do signo jurídico) e signo

gravado (como é o caso da linguagem cotidiana), sendo que o processo de gravação encontra

seu fim e meio na summa realidade.

Isso se justificou na ideia de entrelaçamento que se destacou da teoria de Merleau-

Ponty, com confluências em Lacan e Žižek. Essa ideia exsurgiu para visualizar o homem

como prolongamento do objeto e vice-versa na diferença entre olho e olhar, no sentido de

que esse olhar é justamente a intersecção desse prolongamento, o quiasma, o coito que há

no que se observa e o observador.

Disso decorreu dizer que resta no observador, como numa simbiose, uma porção da

summa realidade. Há, pois, uma espécie de gravação. Daí, também, isso se estender ao signo,

cujo fundamento é uma ideia do homem, no sentido de que ali, igualmente, aparece algo

impresso, algo gravado.

Nesse contexto, no signo jurídico, em uma ontologia indireta, também, pois, haveria

uma porção mínima do real, sem a qual a comunicação jurídica não seria possível e, portanto,

a sobrevivência do direito em sociedade como fenômeno social que é.

Dessa visualização, colocou-se que o signo jurídico é uma espécie desse designado

signo gravador e que o signo da linguagem cotidiana uma espécie desse designado signo

gravado. Em um, uma linguagem gravadora e, em outro, uma linguagem gravada, que

encontram meio e fim no entrelaçamento com o objeto da summa realidade.

Isso se coaduna com o método abdutivo que se elegeu, eis que foi chão firme nesse

estudo a noção de que realidade é também aquilo que é semeiótico, de modo que se fez

possível, no método abdutivo, investigar cientificamente a partir de signos, sem prejuízos

de método e resultado, tendo-se, ainda assim, uma orientação objetiva do que se estudou.

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A ideia, no estudo, foi edificar a crença científica em direção de que, o direito, nas

múltiplas perspectivas mencionadas, é organismo “vivo” que necessariamente tem de se

correlacionar com a summa realidade, a qual, no entanto, não deve ser refletida no direito,

devendo o direito, em verdade, gravá-la.

A ideia por detrás disso foi atribuir ao direito, na perspectiva de texto, não uma

predicação de “vácuo autônomo”, mas sim de um organismo que necessariamente tem de se

correlacionar com a summa realidade – como, pelo que aqui se defende, a linguagem

cotidiana faz, donde surgiu a conclusão de que o que “há” no processo é, em verdade, nem

tanto uma tradução, mas sim uma gravação.

Essa ideia de correlação enfrentou o problema do tribunal sem xerife trazido por

Peirce no sentido de que é necessário um movimento para que o direito como signo não seja

simplesmente brutum fulmem.

Diante disso, a verdade jurídica foi tematizada para lhe atribuir protagonismo no

processo social do qual o direito faz parte para se erigir. Deu-se a ela possibilidade jurídica,

afastando-se pensamentos de que os operadores lógicos (lógica peirceana) não poderiam ser

ferramentas na verdade jurídica. Isso se fez com base em Ross e suas críticas à postura

kelseniana, do que resultou uma visualização do direito como instituição social ou, como

traz Llewellyn, instrumento dessa socialização.

A isso se uniu, igualmente, a utilização de uma lógica não propriamente clássica, mas

sim da lógica na teoria peircena, cujo método não é o da dedução, mas sim da abdução, do

que se permite que os eventos das premissas, em relação ao da conclusão, no silogismo

abdutivo, sejam investigados por meio do que a experiência sensível autoriza e diante da

circunstância de que o resultado da investigação – a crença que se alcança, é sempre falível

e atualizável.

Pela utilização da verdade, outro tema relevante foi explorado – o tema da convenção

jurídica, a qual, com base na filosofia de Lewis, foi vista como o suporte da crença dos

sujeitos de direito gravada no signo jurídico pelos escritores jurídicos representantes de tais

sujeitos na sociedade de direito.

Esclareceu-se que as letras das leis não são meramente um espelho das

particularidades do seu escritor, ou de poucos, mas a gravação – como extensão – da crença

que se extrai do inconsciente coletivo dos membros de uma comunidade de fala, de modo

que o que está gravado nos estatutos de lei deveria ser nada mais do que uma concordância

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da sociedade sobre as normas jurídicas que a partir deles se gravam no meio psíquico-

semeiótico dos intérpretes do direito.

Fundamentou-se esse ponto de vista na simples possibilidade ou impossibilidade de

comunicação jurídica, a qual não pode ser operacionalizada sem o substrato da linguagem

cotidiana, a qual é a concordância da sociedade sobre a summa realidade; é a própria

gravação da realidade nos signos sociais dessa linguagem.

Desse modo, baseado em Lewis, viu-se que o que se tem é, em verdade, uma

coordenação de sujeitos, os quais na previsibilidade de resultados esperados por conta da

experiência objetiva, sujeitam-se à convenção e, pois, também à convenção jurídica,

afastando-se, igualmente, a ideia dogmática de que a eficácia social no direito seria diferente

de eficácia jurídica e, assim, somente passível de ser objeto da sociologia do direito.

Baseado em Ross, colocou-se que o dualismo ser e dever-ser não produz resultado

fecundo ao direito, eis que ao se divisar um do outro o que se cria é uma divisão do direito

com a própria sociedade de direito, quebrando o continuum que deve prevalecer na

terceiridade das normas de direito gravadas, cuja atualização encontra na summa realidade

águas necessárias para sua navegação.

Com a ideia de continuum, peleou-se com problemáticas centrais da ciência jurídica,

como a questão da aplicação de regras (signos jurídicos) injustas e a permanência no sistema

de decisões desenquadradas em relação aos limites da justiça.

Nesse contexto, fez-se uso da ideia do summum bonum para justificar a

“desimportância” da disputa dogmática, eis que o bem maior a ser perseguido no direito é a

justiça, de modo que as regras (signos jurídicos) injustas, que implicaram decisões injustas,

ou mesmo as decisões injustas que emergiram de eventos incorretamente juridicizados, estão

como em suspensão – como em um universal, o qual, ao fim e ao cabo, deverá ser atualizado

para gravar a summa realidade e a evolução da sociedade.

Tudo isso, porque os signos jurídicos, ao menos os que podem ser visualizados como

gerais e/ou universais, os quais fundamentam aqueles que são singulares e/ou particulares,

fazem parte do continuum do qual se falou, que, no seu falibilismo, está sempre pronto a se

atualizar, do que decorre que, signos no sistema de direito que não equivalem a gravações

de porções que de alguma forma encontrem seu fim na summa realidade, serão, em um

determinado espaço e tempo, atualizados, ou, ao menos, é para essa atualização que tende a

investigação na experiência sensível como fim jurídico que deveria ser perseguida para se

alcançar a justiça conveniada.

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Com influência forte dos realistas jurídicos estadunidenses e escandinavos,

culminou-se por se vislumbrar que o direito é, mais do que tudo, evento, evento jurídico na

extensão de signo jurídico no sistema de direito, o qual se erige do evento absoluto.

É, pois, uma fatia do espaço-tempo da realidade – uma circunstância ocorrente

espaço-temporal das gentes e da vida das gentes, a partir da qual todo o resto se edifica. O

evento da lei grava o evento da linguagem cotidiana e o evento da linguagem cotidiana grava

o evento absoluto. O que se tem é uma ontologia indireta como traz Merleau-Ponty.

Criticou-se a nomenclatura fato jurídico, clarificando-se, que linguisticamente não

há conformidade com a utilização de tal expressão no uso que se faz, eis que desprovida de

etimologia para o que se quer gravar com seu uso.

Isso se justificou com fundamento de que verbo formador do signo fato é o verbo

fazer e de que o signo evento se origina, por ausência na língua portuguesa, do verbo latino

ēvěnĭo, de modo que a gravação que exsurge do signo fato e do signo evento não pode provir

de mesmo conteúdo substancial, do que decorre um uso equívoco, devendo prevalecer, tanto

na perspectiva da summa realidade, como na da realidade semeiótica, o uso do signo evento

quando se quiser significar uma circunstância ocorrente de espaço-tempo (signo jurídico

universal) ou circunstância ocorrida de espaço-tempo (signo jurídico particular), isto é,

quando se quiser falar de um evento mesmo potencialmente ou concretamente.

Essa conclusão também se fundamentou na linha bloomfieldiana de que não existem

sinônimos, de modo que, se os significantes são diferentes, os significados também

apresentam substâncias diferentes.

Finalmente, explorou-se no direito a ideia de significado semântico e significado

sintático, demonstrando-se, com base em Pottier, o que se fez esticando-se a representação

em díade levada a efeito por Saussure (significante e significado), que no significado do

signo há outra díade – a do significado semântico e do significado sintático.

Utilizou-se o exemplo da palavra olho para demonstrar que esse signo grava dois

significados: a) órgão do corpo humano que serve para permitir o sentido da visão

(significado semântico) e b) primeira pessoa do presente do indicativo “eu olho” (significado

sintático).

Trouxe-se tal dualismo do significado ao direito para provar que a aplicação traria

resultados fecundos, permitindo uma interpretação dos signos jurídicos no palco de sua

sintaxe e semântica, o que suportaria uma interpretação mais apurada, assistindo a desvendar

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problemáticas relacionadas à validade, eficácia, competência e capacidade de agentes,

hierarquia normativa, entre outros temas.

Desse modo, como num barco que termina seu percurso no porto de destino, mas que

está sempre pronto para novas viagens, pontuou-se que o direito deve ser abraçado como um

fenômeno social diante de uma interdisciplinaridade, o que permitirá a sua efetividade, seu

fundamento coerente e firme, viabilizando interpretações e aplicações dos signos de direito

com mira no summum bonum do direito, que seu continuum persegue ou deveria perseguir

incessantemente, é dizer, tendo por alvo os braços da justiça, não como ideal inalcançável,

mas sim como terceiridade, como opinião objetiva final, como convenção das gentes, como

verdade jurídica, a qual, por o ser é sempre falível e atualizável.

Diga-se, finalmente, que, neste trabalho, coloca-se uma proposta, uma proposta de

uma visualização dinâmica do direito, não limitada ao parâmetro da linguagem, mas que não

deixa de utilizar a linguagem como mecanismo de comunicação. Trata-se de uma proposta

para que o fenômeno jurídico seja percebido como um instrumento multifuncional a serviço

das gentes, cuja orientação é objetivamente verificada.

A presente proposta é de uma teoria que se chama aqui “teoria objetivo-

multidimensional do direito” ou “teoria semeiótico↔estesiológica do direito”, em uma visão

do mecanismo jurídico como organismo atualizável no ritmo das gentes, no seu espaço e

tempo e, cuja existência de uma gravação de uma porção da summa realidade, exsurge

necessária para que a comunicação jurídica sobreviva na sociedade de direito, este visto

como fenômeno social que é.

Essa teoria é “semeiótica”, pois considera o signo jurídico e é “estesiológica” porque

contempla esse signo na sua faceta de um entrelaçamento com o objeto, como resultado de

o fundamento do signo ser uma ideia mimética que surge no e pelo corpo, o qual é um

prolongamento à summa realidade.

Essa proposta teórica se coloca para girar o espaço-tempo em direção ao objeto, à

summa realidade. Essa visão nova contorce a perspectiva para partir do objeto como centro

de especulação da ciência jurídica, o que se justifica pela sua multidimensionalidade, a qual

também inclui o homem. Nessa visão, não poderia, pois, o homem ser o centro de conversão

do direito – a intersecção, mas sim um prolongamento do seu entrelaçamento com a

realidade.

Se ele é parte da própria realidade que percebe, isso não quer dizer que a realidade

seja uma extensão sua, mas sim que ele é uma extensão da realidade, um grau, uma medida

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sua. Ao se girar o centro ao objeto, o que se privilegia é o realismo – ele se torna então a

intersecção, distanciando-se de uma centralização na linguagem e desaguando no objetivo-

multidimensional da realidade, no summa rerum, para conhecê-lo e, conhecendo-o, conhecer

a si mesmo nele integrado.

A teoria objetivo-multidimensional ou semeiótico↔estesiológica do direito é uma

teoria de espelhos porosos, espelhos esponjosos, os quais se encontram localizados no

centro, gravando na sua superfície seu entorno e nele o homem. O direito, assim, não é

somente linguagem, mas sim a própria realidade nele gravada, não algo construído somente

pela linguagem, ao contrário, uma medida simbiótica da própria summa realidade.

Ao se colocar no centro as lentes porosas de uma espécie de câmera de gravação,

direito não é norma, fato e valor, mas sim evento gravado da summa realidade. Nasce no

evento e no evento se atualiza com vistas ao continuum da imortalidade.

O que se vê é uma simbiose: lente porosa da câmera que grava, homem, entorno e

direito se confundem, não há separação evidenciável, há uma espécie de mancha na estampa

do direito; estão como que inclusos e exclusos ao mesmo tempo. Há uma espécie de

mimetismo no direito, o qual é mimético como o bicho-folha. O olhar é também direito.

O verbo “afigurar” aplica-se perfeitamente para explicar o fenômeno. Se algo se

afigura aos olhos é porque traz aos olhos uma figura – uma figura de algo. Pelo que aqui se

verifica, essa figura é inclusiva e exclusiva ao mesmo tempo no espaço-tempo da afiguração.

Ela inclui e exclui ao mesmo tempo na figura o homem para quem algo se afigura.

Ao fazê-lo, ao fim, inclui o homem na perspectiva da figura, o que significa que o

que se afigura ao homem é o próprio homem na figura do que vê. Nesse sentido, não é o algo

da figura isoladamente que se estende ao homem, mas sim o homem que estendido na figura

se estende a ele mesmo no olhar: um entrelaçamento.

Se isso está correto, o que se tem é que o homem, em verdade, não vê a figura de

algo, mas sim a sua própria perspectiva e extensão na figura do que vê. Não há o homem, a

lente porosa da câmera e o algo gravado nela, mas sim uma simbiose, que os inclui e exclui

constantemente.

Não se trata de uma esquize. A pulsão da primeiridade peirceana está no direito numa

espécie de animalidade dos homens que fazem o direito e nele gravam o entrelaçamento

com a summa realidade.

Esse mecanismo de inclusão e exclusão é que autoriza a percepção, mas não a partir

do homem – não há um antropomorfismo, mas sim uma percepção objetivamente orientada.

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A simbiose é com o objetivo-multidimensional – com a realidade mesma. Não é altura,

comprimento e largura; é multifacetária. Não é só lente porosa da câmera, homem e “algo”.

São estes três mais todas as potencialidades dimensionais de variações possíveis da simbiose

com o absoluto.

O que se propõe se faz com base em Merleau-Ponty, Lacan e Žižek e na linhagem de

pensamento ou direcionamento para o qual se parece guiar o realismo especulativo. Isso

porque na sociedade moderna não é mais possível um reducionismo para explicar a realidade

a partir do homem e da linguagem; deve-se conhecer o objetivo-multidimensional da

realidade, deve-se conceber o olhar e não só o olho.

Como reduzir na era do aquecimento global, das guerras cibernéticas, das revoluções

de mídia social, do além-fronteiras da internet, dos avanços da neurociência e da física

quântica, da unificação da teoria da relatividade por meio da teoria das cordas, da descoberta

dos confins do universo e da teoria do “big bang”, da psicologia moderna, antropologia,

economia, política etc.?

Ao se reduzir isso ao estanque da positividade linguística sem possibilidade de uma

capilarização contínua, em uma comunicação simbiótica interdisciplinar, o que se verificará

será o “vácuo autônomo” e brutem fulmem.

O direito, a exemplo da realidade, é, nessa visão, simbiótico e multidimensional –

objetivo-multidimensional, pois a perspectiva é objetiva e não antropomórfica. Portanto,

direito seria também, em alguma medida, grau e extensão, uma gravação da summa

realidade, incluindo todas as dimensões de possibilidades inerentes, pois seria o direito que

se estenderia à summa realidade e vice-versa. Há, pois, uma inerência do homem do direito

com a summa realidade.

O olhar dos homens do direito, na conjugação com o elemento inerência, grava o

entorno com seus contrastes sociais, políticos, sociológicos, antropológicos, econômicos,

etc., incluindo aí, simbioticamente, o próprio homem do direito, parte integrante da realidade

gravada.

Nesse olhar, o direito não está em um reino independente ou puro, mas é integrante

mesmo da realidade que grava, ainda que com funções específicas de direito; é

entrelaçamento em todas as dimensões possíveis, potencialidades, dinamicidades; é a

loucura da sociedade, sua violência, as guerras, a perversão, a maldade, mas também o amor,

a paz, a ternura, o carinho e a justiça; é torto, mas também é direito; é, pois, um olhar entre

tantos numa metamorfose de coito com o real.

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Portanto, para o que aqui se defende, deve prevalecer uma perspectiva

semeiótico↔estesiológica, diante da qual o direito é uma espécie de signo gravador de um

signo social gravado, o que implica que é, igualmente, ao menos mediatamente, numa

ontologia indireta, um/uma entrelaçamento, prolongamento, quiasma, coito, simbiose,

mimetismo da/com a summa realidade, o que se faz num continuum de gravação, a qual se

atualiza por meio de uma investigação objetivo-multidimensional falível na experiência do

mundo sensível, sendo isso tudo a medida necessária para que a comunicação do direito se

perfaça eficiente socialmente, bem como o grau que autoriza a sobrevivência do direito entre

as gentes e, como consequência, a perseguição do ideal de uma justiça convencionada.

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