do cientifico ao jornallstico · recursos lexicais e fraseol6gicos da lingua, realizado na tarefa...

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Do cientifico ao jornallstico: analise comparativa de discursos sobre saude Jornalistas, cientistas, pesquisadores da area de comunica<;ao e analistas do discurso concordam que ha uma transforma<;ao da Iinguagem especializada do discurso cientffico para a linguagem nao especializada no processo de divulga<;ao cientifica para 0 publico leigo. 0 presente trabalho mostra que este processo e tratado de forma diversa pelos diferentes analistas que escolhem a divulga<;ao cientifica como seu objeto de estudo. Objetivando contribuir para essa discussao, apresento, com 0 apoio da Iinha francesa da Analise do Discurso, uma analise comparativa de dois discursos jornalfsticos - "Sfntese de protefnas' pode levar a novos medicamentos" e "Pesquisa analisa discurso envolvendo medicamentos para supressao da menstrua<;ao" (ComCiencia, 2003a, 2003b) - , em rela<;aoaos respectivos discursos cientfficos - 0 resumo da tese de doutorado Caracteriza<;aoe seqOenciamento de peptfdeos e protefnas por espectrometria de massa (Cunha, 2003) e a apresenta<;ao da disserta<;aode mestrado Supressao da menstrua<;ao- ginecologistas e laboratorios farmaceuticos re- apresentando natureza e cuJtura (Manica, 2003) -, que serviram de fonte inicial para elabora<;aodas pautas!que antecederam as entrevistas com os autores das pesquisas que seriam divulgadas nas notfcias. Os textos que formam 0 corpus desta analise abordam questoes que envolvem saude publica. Bueno, jornalista e pesq~isador na area de comunica<;ao, divide adifusao do conhecimento cientffico em duas categorias: 1) a da dissemina<;aocientifica, que envolve a difusao para especialistas, seja eta entre pares cientificos da mesma area ou·voftada para especialistas de outras areas; e 2) a da divulga<;ao cientifica, que envolvea difusao para 0 grande publico em geral (Bueno j 1984). o autor assume que a divulga<;ao, que inclui 0 jornalismo cientffico, "pressup6e um processo de recodificaqao, isto e, a transposi<;ao de uma linguagem especializada para uma linguagem nao especializada, com 0 objetivo de tornar 0 conteudo acessivel a uma vasta audiencia" (p. 19; grifo meu). Fazendo uma divisao semelhante a de Bueno e!TIrela<;ao a difusao da ciencia, porem com outra terminofogia, Epstein, engenheiro civil e tambem pesquisador na area de comunica<;ao desde a decada de 1980, afirma que a comunidade cientifica "se relaciona consigo mesma, em cada segmento especializado, e com o resto da sociedade, por meio de dais processos comunicacionais distintos, que sac chamados, respectivamente, de primario e secundario"(Epstein, 1998, p.61; 1 Bacharelem Linguistica. Universidade Estadual de Campinas. Labjor Unicamp Predio da Reitoria V 3° piso Cidade Universitaria Zeferino Va2 Campinas SP 13.083-970 rbcunha@unicamp.br

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Page 1: Do cientifico ao jornallstico · recursos lexicais e fraseol6gicos da lingua, realizado na tarefa de divulgac;ao da ciencia para 0 publico leigo. 2 Estratl~gias do discurso jornalistico

Do cientifico ao jornallstico:analise comparativa de discursos sobre saude

Jornalistas, cientistas, pesquisadores da area de comunica<;ao e analistas dodiscurso concordam que ha uma transforma<;ao da Iinguagem especializada dodiscurso cientffico para a linguagem nao especializada no processo dedivulga<;ao cientifica para 0 publico leigo. 0 presente trabalho mostra que esteprocesso e tratado de forma diversa pelos diferentes analistas que escolhem adivulga<;ao cientifica como seu objeto de estudo. Objetivando contribuir paraessa discussao, apresento, com 0 apoio da Iinha francesa da Analise do Discurso,uma analise comparativa de dois discursos jornalfsticos - "Sfntese de protefnas'pode levar a novos medicamentos" e "Pesquisa analisa discurso envolvendomedicamentos para supressao da menstrua<;ao" (ComCiencia, 2003a, 2003b) - ,em rela<;aoaos respectivos discursos cientfficos - 0 resumo da tese de doutoradoCaracteriza<;aoe seqOenciamento de peptfdeos e protefnas por espectrometriade massa (Cunha, 2003) e a apresenta<;aoda disserta<;aode mestradoSupressao da menstrua<;ao- ginecologistas e laboratorios farmaceuticos re-apresentando natureza e cuJtura (Manica, 2003) -, que serviram de fonte inicialpara elabora<;aodas pautas!que antecederam as entrevistas com os autores daspesquisas que seriam divulgadas nas notfcias. Os textos que formam 0 corpusdesta analise abordam questoes que envolvem saude publica.

Bueno, jornalista e pesq~isador na area de comunica<;ao, divide adifusao doconhecimento cientffico em duas categorias: 1) a da dissemina<;aocientifica, queenvolve a difusao para especialistas, seja eta entre pares cientificos da mesmaarea ou·voftada para especialistas de outras areas; e 2) a da divulga<;aocientifica, que envolvea difusao para 0 grande publico em geral (Buenoj 1984).o autor assume que a divulga<;ao, que inclui 0 jornalismo cientffico, "pressup6eum processo de recodificaqao, isto e, a transposi<;ao de uma linguagemespecializada para uma linguagem nao especializada, com 0 objetivo de tornar 0

conteudo acessivel a uma vasta audiencia" (p. 19; grifo meu).Fazendo uma divisao semelhante a de Bueno e!TIrela<;aoa difusao da ciencia,

porem com outra terminofogia, Epstein, engenheiro civil e tambem pesquisadorna area de comunica<;aodesde a decada de 1980, afirma que a comunidadecientifica "se relaciona consigo mesma, em cada segmento especializado, e como resto da sociedade, por meio de dais processos comunicacionais distintos, quesac chamados, respectivamente, de primario e secundario" (Epstein, 1998, p.61;

1 Bacharel emLinguistica.

Universidade Estadualde Campinas.

Labjor UnicampPredio da Reitoria V

3° pisoCidade Universitaria

Zeferino Va2 CampinasSP 13.083-970

[email protected]

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grifo meu). Segundo esse autor, a comunica~ao secundaria;que nao possui uma audiencia cativacomo a primaria, utiliza determinadas fun~6es da Iinguagem e recursos de retorica para superar aespecificidade das linguagens especializadas pouco palataveis ao publico leigo.

Authier (1982), queanalisa a divulga~ao cientifica sob a otica da Iinha francesa da An~lise deDiscurso - a qual passarei a designar adiante apenas por AD -, usa termos correlatos aosempregados na area de comunica~ao: discurso primeiro (ou discurso-fonte) e discurso segundo. Paraessaautora, a divulga~ao cientifica apresenta-se como "pratica de reformulaqao de um discurso-fonte (D1) em um discurso segundo (D2)" (p.35) (grifo meu), por ser destinada a um publicoreceptor diferente do publico para 0 qual se destina 0 discurso cientifico.

Tambem filiada a AD, porem com uma visao critica em rela<;aoa ela, Zamboni faz ressalvasaavalia<;aode Authier e afirma que a divulga~ao cientifica e "resultado de um efetiv6 trabalho deformulaqao discursiva, no qual se revela uma a<;aocomunicativa que parte de um 'outro' discurso [0cientificoJ e se dirige para 'outro' destinatario [0 publico leigo]" (Zamboni, 1997, p.11). Parajustificar sua afirma~ao, considera 0 discurso da divulga<;aocientifica como um genero especffico dediscurso, que nao pertence ao mesmo campo do genero do discurso cientifico.

Retomo aqui 0 autor em que Zamboni se baseia para tratar de generos do discurso. MikhailBakhtin (1997) os define como tipos relativaniente estaveis de enunciad,os, utilizados em cada umadas diferentes esferas da atividade humana. Segundo ele,

o enunciado reflete as candi<;6es especfficas e as finalidades de cada uma dessasesferas, nao56 par seu conteudo (tematico) e por seu estilo verbal, ou seja, pela sele<;aooperada nosrecursos da lingua - recursos lexicais, fraseol6gicos e gramaticais -, mas tambem, esobretudo, por sua constru<;ao composicional. (Bakhtin, 1997, p.279)

Considerando 0 amplo espectro tra<;ado por Bueno (1984) no ambito da divulga<;aocientffica-envolvendo desde livros didaticos, aulas de ciencias e museus de ciencia ate textos jornalisticos, comoartigos e reportagens - e a defini~ao acima, de generos do discurso, feita por Bakhtin, julgo maisapropriado dizer que varios generos transitam pelo campo da divulga~ao cientffica e uma de suasvertentes - 0 jornalismo cientifico - segue a constru~ao composicional tfpica dos discursosjornalfsticos.

Alice no Parsdo Quantum (Gilmore, 1998), por exemplo, um livro de divulga~ao da FfsicaQuantica para leigos, tem uma constru~ao composicional semelhante a da obra com a qual dialoga:Alice no Parsdas Maravilhas, de Lewis Carrol. E vale lembrar que a propria dissemina~ao cientifica(entre os pares) tambem po.detransitar por diversos generos, pois nos seculos XVI e XVII era praticacomum a difusao do conhe~imento por meio da correspondencia entre cientistas, pratica discursivaque tinha uma constru~ao composicional tfpica do genero epistolar, embora 0 estilo verbal pudesseser de um campo discursivo restrito. Portanto, no caso especffico do jornalismo especializado emdivulga~ao de ciencia, consitlero, junto com Orlaridi (2001, p. 151), que "0 discurso de divulga~aocientifica e textualizaqao jornatrstica do discurso cientffico".

Na analise a seguir, pretendo mostrar algumas caracterfsticas de notfcias de divulga~ao cientffica,em grande parte ligadas ao genero da noticia jornalfstica como um todo, para sugerir que ha, defato, nanotfcia de divulga~ao, um trabalho de formula~ao discursiva, comQ prop6e Zamboni (1997),porem sem a mesma constru~ao composicional de um artigo de divulga~ao, por exemplo, seguindo aestrutura tfpica do genero da noticia e as restri~6es de uma determinada linha editorial do vefculo decomunica~ao.

1 0 lide no discurso jornalistico:inversao em rela~ao a estrutura do discurso cientifico

o termo "lide", aportuguesado do.ingles "lead" (conduzir), e empregado em jornalismo pararesumir a fun~ao do primeiro paragrafo, que consiste em sintetizar a noticia e conduzir 0 interesse do

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leitor para a leitura dos demais paragrafos. Zamboni (1997, p.161) observa que "0 discursojornalistico opera uma reversao da superestrutura do texto cientffico: as conclus6es das pesquisas eas potenciais aplica~6es de seus resultados no cotidiano das pessoas ganham posic;aode destaque".o trecho abaixo, do paragrafo inicial de um dos textos do meu corpus de analise, mostra\que 0 Iidede um texto noticioso, em jornalismo cientffico, pode apresentar as conclus6es antes mesmo demencionar a pesquisa que esta sendo divulgada.

Folhetos produzidos por laboratorios farmaceuticos sobre novos contraceptivos, que podemsuprimir a menstruac;ao. trazem imagens e textos que tratam a menstruac;ao como algoindesejavel, inconveniente e, alem disso. como a causa de efeitos como colicas e sindrome datensao pre-menstrual (TPM) e de doenc;ascomo anemia e endometriose. Essassac algumasconclusoes a que chegou uma pesquisa de mestrado ... (ComCiencia, 2003b)

o outro texto do meu corpus de analise destaca as potenciais aplicac;6esda pesquisa nao apenasno final do Iide, mas ja no tftulo da notfcia: "Sfntese de protefnas pode levar a novasmedicamentos". A estrutura c1ilssicado lide noticioso, que responde as quest6es principais em tornode um fato (0 que, quem, quando, como, onde, por que), e precedida, nesse caso, por uma breveapresentac;ao ao leitor da area que sera divulgada:

Depois dos avanc;os no sequenciamento de genomas de plantas e animais. vem crescendo,no campo das biotecnologias. a demanda por estudos ligados ao 'proteoma', que pretendemdeterminar a composic;ao. estrutura e func;6es de todas as protefnas. A tese de doutoradoCaraderizar;iio e seqDenciamento de peptfdeos e protefnas por espectrometria de massa, porexempla, defendida. no dia 11 de fevereiro. par Ricardo Bastos Cunha, na Universidade deBrasilia (UnB), contribuiu para estudos de cinco laboratorios do pais e pode levar a produc;aode novas medicamentos. (ComCiencia, 2003a)

(ontudo, a priorizac;ao de conclus6es e resultados, apontada por Zamboni (1997) e observadanos exemplos acima, nao se restringe ao jornalismo cientffico. Trata-se do que, no jargao jornalfstico,e conhecido por "piramide invertida", "tecnica de reda~ao jornalfstica pela qual as informac;6es maisimportantes sao dadas no infcio do texto e as demais, em hierarquizac;ao decrescente, vem emseguida" (Folha de Sao Paulo, 1992, p.100). Uma noticia sobre esporte, como futebol, por exemplo,geralmente, apresenta primeiro 0 resultado de um jogo para, depois, mencionar se, durante apartida, algum jogador foi ~xpulso, se outro perdeu um penalti ou se os goleiros fizeram defesasespetaculares. ~

A hierarquizac;ao de importanda das informac;6es e, sem duvida, um juizo de valor que,conseqOentemente, envolve certo grau de subjetividade. Mas tanto a possibilidade de produc;ao denovos medicamentos (no caso da notfcia sobre ciencia), quanto 0 resultado de um jogo (no caso danotfcia sobre esporte), sao facilmente identificaveis como aquilo que 0 Novo Manual da Redaqiio daFolha de S. Paulo chama de informac;ao mais importante a ser noticiada. No pr6ximo item, apresentoalgumas posic;6esdaAD em relac;aoas escolhas, em termos de estilo verbal, que se operam naproduc;ao de discursos, para mostrar, com exemplos do jornalismo cientffico, 0 trabalbo de selec;aoderecursos lexicais e fraseol6gicos da lingua, realizado na tarefa de divulgac;ao da ciencia para 0 publicoleigo.

2 Estratl~gias do discurso jornalisticoem relac;;aoa term os ou express6es de usa restrito ~o discurso cientifico

Quando surgju na decada de 1960, a AD focou, em seus estudos, 0 discurso polftico,investigando os aspectos ideol6gicos ligados a formac;ao discursiva de quem 0 produziu.Maingueneau(1987) afirma que 0 discurso cientifico possui uma natureza muito particular em relac;aoaos discursosque a AD tradicionalmente adotou como seus objetos de estudo. Segundo 0 autor,

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trata-se de uma produ~ao cujos la~os com a topografia de conjunto da sociedade sac bemmenos"diretamente formulaveis do que aqueles para os quais uma ref/exao em term osideo/6gicos se imp6e imediatamente; alem disso, a tendencia desse tipo de discurso e fazercoincidir 0 publico de seus produtores com 0 de seus consumidores: escreve-se apenas 'paraseus pares que pertencem a comunidades restritas e de funcionamento rigoroso.(Maingueneau, 1987, p. 57)

Para ele, a AD afasta "qualquer preocupa~ao 'psicologizante' e 'voluntarista', de acordo com aqual 0 enunciador ... desempenharia 0 papel desua escolha em fun~ao dos efeitos que pretendeproduzir sobre seu audit6rio" (Maingueneau, 1987, p.45). Segundo Maingueneau, essesefeitos, narealidade, sac impostos nao pelo sujeito que enuncia 0 discurso, e sim por sua formac;ao discursiva.

Ao esbo~ar uma epistemologia da AD que, com 0 passar dos anos, deixou de e1eger0 discursopolitico como unico objeto de investigac;ao, Possenti (1988) diz que a noc;aode ideologia nao deveser usada para a analise de todo e qualquer discurso, mas apenas nos casos em que ela seja umconceito produtivo para a investiga~ao. 0 autor tambem afirma que, alem da forma~ao discursiva,nao se pode deixar de considerar 0 trabalho do sujeito enunciador, que envolve a~ao sobre a linguana escolha dos efeitos de sentido que ele quer produzir e destaca 0 trabalho de escolha do sujeito aotratar da no~ao de estilo. Antes de explicitar sua posi~ao, lembro que, para Bakhtin (1997, p.283), "0

estilo esta indissoluvelmente ligado ao enunciado e a formas tipicas de enunciados, isto e, aosgeneros do discurso".

Possenti (1988) critica as teorias lingufsticas que tratam 0 estilo como desvio da norma (ou damodalidade padrao da lingua), e defende que 0 estilo seja tratado como escolhas lexicais ousintaticas que cada locutor faz em sua enuncia~ao, deixando a marca da subjetividade no discurso.Segundo ele, "os falantes tem a sua disposi~ao um conhecimento lingufstico diversificado ... eescolhem desse repert6rio as formas que Ihes parecem adequadas para realizar 0 objetivo que temem mente" (Possenti, 1988, p.188). Adotando 0 posicionamento de Possenti, ao analisar 0 discursoda divulgac;ao cientifica, Zamboni (1997, p.33) afirma que "0 tratamento que se da a linguage'm noprocessamento da divulga~ao resulta de um verdadeiro trabalho de escolha das formas, ... ligado,com frequencia, a busca do ideal de tornar compreensfvel para um publico leigo uma linguagem queIhe e primitivamente hermetica e inacessivel".

A seguir, com base na confrontac;ao entre trechos do discurso cientifico (DC) que serviu de fontee trechos do discurso jornalfstico (DJ) correspondente, apresento algumas estrategias no processo dedivulgac;ao da ciencia, que consistem em escolhas nao apenas dos recursos lexicais e fraseol6gicos dalingua a serem utilizados, mas tambem daqueles que sac descartados em func;ao do publico ao qual adivulgac;ao se dirige. ~

DC (1): "conseguiu-se determinar a sequencia comp/eta de um peptfdeo neurot6xico(cangitona) da anemona marinha Bunodosoma cangicum." "

DJ (1): "determinou a sequencia campleta de um peptfdeo da anemona marinhaBunodosoma cangicum."

No exemplo (1) e curioso observar nao apenas os termos cientfficas suprimidos (em negrita, nadiscurso cientifico), mas aqueles que foram mantidas no discurso jornalistica. 0 terma "peptfdeo" jaaparece no lide da notfcia, dentro da titulo da tese que esta sendo divulgada, e pertence ao mesmocampo semantico das prateinas (com pastas au substancias quimicas). A palavra "anemona", par suavez, pode naa ser conhecida par parte do publico, mas e identifidvel coma pertencenda aa camposemantico dos animais. Par-em,0 que chama mais a atenc;aa e 0 emprego do proprio nome cientificoda anemona marinha. Pratica comum em quase toda publicac;ao de divulgac;ao cientifica, a menc;ao

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do nome cientffico de uma planta ou animal tem uma func;;ao de credibilidade, similar a citac;;ao diretada fala de um cientista no discurso jornalfstico (ver item 4 deste trci.balho).

No exemplo (2), 0 discurso jornalfstico suprime a informac;;ao sobre um processo descrito nodiscurso cientffico e retem apenas 0 resultado desse processo apontando, em seguida, umpossivelusa da toxina em tratamento de doenc;;a.

DC (2): "As toxinas do tipo 1 caracterizam-se por ligarem-se especificamente aos canaisde sadio, retardando sua inativa~ao durante a transdu~ao de sinal e, dessa forma,estimulando fortemente a contra~ao do musculo cardfaco em mamfferos."

DJ (2): "caracterizado como uma toxina que estimula fortemente a contra~ao do musculocardfaco em mamfferos."

No exemplo (3), alem da supressao de termos cientfficos semefhantes aos do exemplo (1) e deprocessos descritos cientificamente como no exemplo (2), 0 discurso jornalfstico revela uma escolhade termos, dentre pares de adjetivos - "atividade inflamatoria e edematogenica", "peptfdeoshemoliticos e antimicrobianos" -, que nao se restrigem ao discurso cientifico.

DC (3): "A espectrometria de massa permitiu tambem caracterizar um peptfdeo(Ieptodactilina) com potente atividade inflamat6ria e edematogenica, isolado da pele da rabrasileira Leptodactylu5 pentadactylu5. Este apresentou similaridade de sequencia compeptfdeos hemoliticos e antimicrobianos isolados da pele de outras especies de ras, bemcomo com proteinas ligantes de ferormonio isoladas de insetos e com proteinasrepressoras transcricionais reguladoras de apoptose em mamfferos."

DJ (3): "Segundo 0 pesquisador, a espectrometria de massa tambem permitiu caracterizar umpeptfdeo da pele da ra brasileira Leptodactylu5 pentadactylu5, que tem potente atividadeinflamat6ria. Este peptideo apresentou similaridade de sequencia com peptideosantimicrobianos da pele de outras especies de ra."

No exemplo (4), extrafdo dos textos que tratam de medicamentos para supressao damenstruac;;ao, 0 discurso jornalistico omite 0 mecanismo de funcionamento do contraceptivo.

DC (4): "Um primei,ro contraceptivo cujo material analiso e 0 implante produzido pel aOrganon, chamadd Implanon, um implante subdermico ... que libera diariamente umhormonio, etonogestrel ..: um metodo revolucionario, eficaz, reversivel, que proporcionapraticidade e liberdade a usuaria."

DJ (4): "Os novos metodos contraceptivos seriam, entao, vistos como uma solu~aorevolucionaria que proporciona praticidade e liberdade para a mulher."

DC (5): ••Esseestudo permitiu caracterizar ambos os peptfdeos, por homologia desequencia, como toxinas do tipo 1 de anemona."

DJ (5): "sendo caracterizado como uma toxina do mesmo tipo que a do peptideo que teve 0

sequenciamento completo, por eles possufrem sequencias similares."

DC (6): "a menstrua<;ao pode ser pensada como um produto cultural, e a sua supressaocomo uma forma de mimetizar 0 que aconteceria na natureza."

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DJ (6): "a menstrua<;aoe pensadacomo um produto cultural, e a suasupressao,... comouma forma de imitar a que aconteceriana natureza."

Tanto os exemplos (5) e (6), nos quais 0 discurso jornalfstico usa sinonimo ou parMras~ deexpressao do discurso cientifico, quanto 0 exemplo (7) abaixo, em que a explicac;aodo termocientifico e feita por meio de uma orac;aosubordinada, sac praticas comuns de escolhas de recursosda lingua para tornar a informac;ao sobre ciencia compreensivel ao publico leigo.

DC (7): "outro peptfdeo(andactilina)com atividadeansiolitica, isoladoda mesmaanemona."

DJ (7): "Estaoutra toxina possuiuma atividadechamadade ansiolitica, que reduz aansiedade."

Ainda dentro dessa estrategia da explicac;ao, a noticia sobre medicamentos para supressao da'menstruac;ao apresenta um recurso proprio do vefculo eletronico: no Iide, ha um link na palavra"endometriose", que remete para um box explicativo sobre 0 que e essa doenc;ae quais efeitos elaprovoca.

Alem da escolha de recursos da lingua, tratada no item 2, na pratica jornalistica ha a escolha doque e ou nao noticia e do que deve ou nao ser tratado como relevante dentro de uma notlcia.Epstein (1998, p.65) observa que "0 conceito de 'novidade', importante tanto para a evoluc;ao doconhecimento cientifico como para a construc;ao da 'noticia' jornalistica ... pode ter conotac;6esdiferentes nestas duas culturas profissionais", e lembra ainda que sac diferentes os "temposoperacionais dos cientistas e dos jornalistas, mais longos os primeiros e mais curtos os segundos".

Zamboni (1997, p.35) afirma que a divulgac;ao cientifica "privilegia, de modo quase unal"]ime, osresultados, relegando a metodologia - item bastante caro ao trabalho cientifico - a plano inferior,quando nao 0 suprime totalmente". Cabe ressaltar que 0 usa ou nao desse procedimento desimplificac;ao - a supressao da metodologia - pode servir para diferenciarmos as revistas dedivulgac;ao existentes no pai.s.0 texto que serviu de fonte para uma das noticias do meu corpus deanalise destaca, ja no titulo Ba dissertac;ao,um conceito (0 de re-apresentac;ao) utilizado na pesquisacomo chave para a discussao em torrio das noc;6esde natureza e cultura (Manica, 2003). A notlciaem questao enfoca as imagens e os textos dos folhetos de medicamentos para supressao damenstruac;ao, e introduz a discussao "natureza versus cultura" por intermedio de um intertitulo queantecede 0 4° paragrafo, sem mencionar, contudo, 0 conceito de re-apresentac;ao e seu usa nasciencias sociais. A escolha, nessecaso, recai sobre aquilo que tem ou nao apelo para 0 publico leigo.

A outra noticia do meu corpus de analise, conforme visto acima, ao tratar de Iide, tambem enfocaalgo de apelo para 0 publico (a possibilidade de produc;ao de novos medicamentos). 0 textocientifico de fonte, nesse caso, destaca, logo em seu inicio, a espectrometria de massa como "umatecnica que pode trazer grandes avanc;ospara a atividade de pesquisa biomolecular" (Cunha, 2003,p.9). Ja a notlcia aponta esse destaque feito pelo pesquisador apenas no 6° paragrafo, logo abaixode uma foto do espectrometro de massa, explicando 0 seu funcionamento.

Levando-se em conta a observac;aode Epstein (1998) quanto aos diferentes. conceitos de"novidade", pode-se afirmar que 0 texto cientifico dirigido aos pares de seu autor tratou como"novidade" 0 foco do trabalho na tecnic.a da espectrometria de massa,alem de apresentar 0

seqQenciamento de determinados peptideos e proteinas, 0 que "contribuiu para estudos de cincolaborat6rios do pais", segundo a noticia sobre 0 tema. Esta ultima, por sua vez, apresentou, como"novidade", uma ciencia pura (ou basica), cujo conhecimento produzido por meio do seqQenciamento

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de protefnas, pode ser aplicado na produ~ao de novos medicamentos. Tanto essanotfcia sobre sfntesede protefnas quanto a outra sabre medicamentos para supressao da menstrua~ao contextualizam, noultimo paragrafo, as respeetivas pesquisasdivulgadas: a primeira, mencionando 0 orientador da tese," um dos primeiros pesquisadores a utilizar 0 termo 'proteoma' no Brasil", e cada um dos Iq.boratoriosbrasileiros para os quais a pesquisa colaborou; a segunda, inserindo a discussao sobre as fronteirasentre natureza e cultura, nas quest6es levantadas pelos avan~os da nanociencia e das biotecnologias,e coiocadas em evidencia naquele ana em que se comemoravam os cinqQenta anos da formula~ao daestrutura do DNA em dupla helice.

Conforme comentado brevemente no item 2 deste trabalho, a fala de um cientista, seja na formade discurso direto ou indireto, e um dos fatores que conferem credibilidade ao discurso jornalistico dedivulga~ao da ciencia. Zamboni (1997) critica 0 quadro da enuncia~ao proposto por Authier (1982)ao tratar do discurso de divulga~ao cientffica, que envolve uma dupla estrutura: "a enuncia~ao dodiscurso vulgarizador em vias de se reproduzir, manifestada numa ancoragem temporal marcada" e"a enuncia~ao do discurso cientffico, que aparece grandemente sob a forma do discurso indireto ...em que 0 nome dos enunciadores, seu estatuto de especialistas e 0 tempo de enuncia~ao sacespecificados com abundancia e rigor" (p.36). Zamboni (1997, p.80) considera que "0 discursorelatado nao pode ... ser tomado como tra~o caraeterizador da divulga~ao cientffica, mesmo queentre af como a voz do 'especialista''', e lembra que" no discurso de transmissao de informa~6es dogenera jornalistico, 0 discurso relatado tambem aparece como componente de grande peso".

Zamboni esta certa nesse ultimo ponto, quando trata do texto jornalfstico em geral, pois umanotfcia sobre politica que traz a fala de um personagem .do alto escalao do governo confere maiscredibilidade do que outra que, por exemplo, revela uma fonte ligada ao drculo de amizade de"fulano", simulando preservar essasuposta fonte. Talvez, por essa razao, Zamboni deveria terpercebido que, no campo da divulga~ao cientffica, 0 texto jornalistico possui caraeterfsticasdiferentesdo artigo de divulga~ao assinado por um cientista. Pelo fato de 0 autor do artigo de divulga~ao ser apropria autoridade relacionada a enuncia~ao, considerando que, segundo Maingueneau (1987, p.37),"0 discurso so e 'autorizado' e, conseqQentemente, eficaz se for reconhecido como tal", ele naoprecisa inserir em seu texto a fala de um colega cientista para ter credibilidade. Pode faze-Io ou nao.

Apenas para ilustrar 0 peso que a fala especializada tem na notfcia jornalfstica, particularmenteem jornalismo cientffico, contabilizei, nos textos do meu corpus de analise, 0 numero de inser~6esdefalas dos cientistas que apa(ecem nas formas direta e indireta. Na notfcia sobre sfntese de proteinas,ha cinco inser~6es de discurto direto do cientista e tres de discurso indireto ("segundo 0

pesquisador", "0 pesquisador destaca" e "ele explica"). Ja a noticia sobre medicamentos parasupressao da menstrua~ao traz tres inser~6es de discurso direto e nada menos do que dez inser~6esde discurso indireto, sendo bito da autora da pesquisa que e divulgada na notfcia e duas de ummedico mencionado na pesquisa ("de acordo com esse medico" e "segundo os argumentos deCoutinho").

A analise mostra que, de fato, como prop6e Zamboni, ha no processo de divulga~ao cientifica umtrabalho de formula~ao discursiva que consiste em escolhas ligadas ao estilo verbal - recursosdisponiveis na lingua (conforme Bakhtin e Possenti) - ou ligadas a pratica jornalistica (conformeEpstein e Orlandi). Mas 0 presente trabalho tambem mostra que nao se pode tratar da mesma formaum artigo de divulga~ao escrito por um cientista e uma noticia jornalistica de divulga~ao da ciencia,ja que esta ultima tem uma constrw:;ao composicional tfpica do genera da notfcia jornalistica comoum todo e se submete a processos de edi~ao proprios de cada veiculo de ceJmunica~ao.

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___ . Pesquisa analisa discurso envolvendo medicamentos para supressao damenstruaC;ao. 2003b. Disponfvel em: <http://www.comciencia.br/noticias/2003/21mar03/contraceptivo.htm>. Acesso em: 21 set. 2007.

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Jornalistas, cientistas e analistas do discurso concord am que ha uma transforma<;;aodalinguagem especializada do discurso cientifico p-araa linguagem nao especializada noprocesso de divulga<;;aocientifica para 0 publico leigo. Consideram essa transforma<;;aocomo recodifica<;;ao,reformula<;;ao, formula<;;aode um novo discurso ou, no casoespecifico do jornalismo cientifico, textualiza<;;aojornalfstica do discurso cientffico. Como apoio da Hnha francesa da Analise do Discurso, 0 presente trabalho faz uma analisecomparativa de dois discursos jornalfsticos envolvendo quest6es de saude publica, dase<;;aode noticias da revista Com Ciencia , em rela<;;aoaos respectivos discursos cientificosque serviram de fonte para elabora<;;aodas noticias.

Palavras-chave: Saude. Discurso cientifico. Jornalismo cientifico. Comunica<;;aoedivulga<;;aocientifica.

From scientific to journalistic: comparative analysis of health-related discourse.

Journalists, scientists and discourse analysts agree that there is a transformation from thespecialized language of scientific discourse to non-specialized language during the'process of disseminating science to the lay public. They consider this transformation toconsist of recoding, reformulation, formulation of a new type of discourse or, in thespecific case of scientific journalism, journalistic transformation of scientific discourseinto text. With support from the French line of discourse analysis, the present studymakes a comparative analysis using two examples of journalistic discourse involvingpublic health questions, taken from the news section of the journal Com Ciencia, inrelation to the respective scientific discourse that served as the source for composing thenews.

Key words: Health. Scientific discourse. Scientific journalism. Communication anddissemihation of science.

De 10 qentffico a 10 periodfstico: analisis comparativo de discursos sobre salud.

Periodistas, cientfficos y analistas del discurso concuerdan en que hay unatransformaci6n del lenguaje especializado del discurso cientifico allenguaje noespecializado en el proceso de divulgaci6n cientifica para el publico lego. Algunosautores consideran esta transformaci6n como recodificaci6n, reformulaci6n, formulaci6nde un nuevo discurso 0, en el caso especifico del periodismo cientifico, textualizacionperiodistica del discurso cientffico. Con el apoyo de la Ifnea francesa del Analisis delDiscurso, el presente trabajo hace un analisis comparativo de dos discursos periodfsticosreferentes a cuestiones de salud publica, de la secci6n de noticias de la revistaComCiencia, en relaci6n a los respectivos discursos cientfficos que fueron la fuente paraelaboraci6n de las noticias.

Palabras clave: Salud. Discurso cientifico. Periodismo cientifico. Comunicaci6n ydivulgaci6n cientifica.