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A INCIDÊNCIA DE CIRURGIAS NA POPULAÇÃO DE RIBEIRÃO PRETO, SP, BRASIL* Marilisa Berti de Azevedo Barros ** BARROS, M. B. de A. A incidência de cirurgias na população de Ribeirão Preto, SP, Brasil. Rev. Saúde públ.. S. Paulo, 16:268-81, 1982. RESUMO: Foi estudada a incidência de cirurgias na população residente em Ribeirão Preto, São Paulo (Brasil), em 1975, em relação à idade, sexo, categoria de internação do paciente e tipo de internação cirúrgica, utilizan- do-se as informações coletadas por um Centro de Processamento de Dados Hospitalares. Foram observadas elevadas taxas de cirurgias: 79,8/1000 no sexo feminino e 43,8/1000 no masculino. As intervenções obstétricas repre- sentaram 31,8% do total de operações realizadas; no sexo masculino as inter- venções ortopédicas foram as de maior incidência. A proporção de interna- ções com ocorrência de cirurgia foi mais elevada nos pacientes particulares. As operações ortopédicas e plásticas incidiram relativamente mais nos bene- ciários da Previdência Social e nos indigentes, enquanto que as otorrinoló- gicas e urológicas foram proporcionalmente mais freqüentes nos pacientes particulares. UNITERMOS: Cirurgias, incidência. Hospitalização, Ribeirão Preto, SP. * Este estudo é parte da Dissertação de Mestrado apresentada pela autora à Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, USP, em 1977: "Estudo da Morbidade Hospitalar no Município de Ribeirão Preto, em 1975", desenvolvida com auxílio financeiro da FAPESP. ** Do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Univer- sidade Estatual de Campinas — Rua Dr. Quirino, 1856 Centro 13100 Campinas, SP — Brasil. INTRODUÇÃO Estudos desenvolvidos em vários países têm revelado ampla variação na ocorrência de intervenções cirúrgicas. Glover, (citado por Lewis 10 , 1969) já em 1938, observou variações surpreendentes nas taxas de tonsilectomia entre várias regiões da Inglaterra. Lembcke 9 (1952), estudando a ocorrência de apendicectomia em áreas do estado de Nova York, verificou oscilação de 2,9 a 7,1 (por 1.000 habitantes), sendo que nos locais onde a cirurgia era menos freqüente não se elevava a mortalidade por apendicite. Várias cirurgias apresentaram incidência diversa nas regiões da Inglaterra, tendo Logan e Eimerl 11 (1965) atribuído rele- vância ao papel de médico geral, encami- nhando ou não o paciente para a inter- venção. Bunker 4 (1970) verificou que a taxa de cirurgias assim como o número de cirurgiões por habitantes, na Inglaterra, equivaliam à metade dos valores encontrados nos EUA, em período de tempo correspondente. Pearson e col. 17 (1968) encontraram taxa global de intervenções cirúrgicas quase duas

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A INCIDÊNCIA DE CIRURGIAS NA POPULAÇÃODE RIBEIRÃO PRETO, SP, BRASIL*

Marilisa Berti de Azevedo Barros **

BARROS, M. B. de A. A incidência de cirurgias na população de Ribeirão Preto,SP, Brasil. Rev. Saúde públ.. S. Paulo, 16:268-81, 1982.

RESUMO: Foi estudada a incidência de cirurgias na população residenteem Ribeirão Preto, São Paulo (Brasil), em 1975, em relação à idade, sexo,categoria de internação do paciente e tipo de internação cirúrgica, utilizan-do-se as informações coletadas por um Centro de Processamento de DadosHospitalares. Foram observadas elevadas taxas de cirurgias: 79,8/1000 nosexo feminino e 43,8/1000 no masculino. As intervenções obstétricas repre-sentaram 31,8% do total de operações realizadas; no sexo masculino as inter-venções ortopédicas foram as de maior incidência. A proporção de interna-ções com ocorrência de cirurgia foi mais elevada nos pacientes particulares.As operações ortopédicas e plásticas incidiram relativamente mais nos bene-ciários da Previdência Social e nos indigentes, enquanto que as otorrinoló-gicas e urológicas foram proporcionalmente mais freqüentes nos pacientesparticulares.

UNITERMOS: Cirurgias, incidência. Hospitalização, Ribeirão Preto, SP.

* Este estudo é parte da Dissertação de Mestrado apresentada pela autora à Faculdade de Medicinade Ribeirão Preto, USP, em 1977: "Estudo da Morbidade Hospitalar no Município de RibeirãoPreto, em 1975", desenvolvida com auxílio financeiro da FAPESP.

** Do Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Univer-sidade Estatual de Campinas — Rua Dr. Quirino, 1856 — Centro — 13100 — Campinas, SP —Brasil.

INTRODUÇÃO

Estudos desenvolvidos em vários paísestêm revelado ampla variação na ocorrênciade intervenções cirúrgicas.

Glover, (citado por Lewis 10, 1969) já em1938, observou variações surpreendentesnas taxas de tonsilectomia entre váriasregiões da Inglaterra.

Lembcke9 (1952), estudando a ocorrênciade apendicectomia em áreas do estado deNova York, verificou oscilação de 2,9 a 7,1(por 1.000 habitantes), sendo que nos locaisonde a cirurgia era menos freqüente não seelevava a mortalidade por apendicite.

Várias cirurgias apresentaram incidênciadiversa nas regiões da Inglaterra, tendoLogan e Eimerl11 (1965) atribuído rele-vância ao papel de médico geral, encami-nhando ou não o paciente para a inter-venção.

Bunker 4 (1970) verificou que a taxa decirurgias assim como o número de cirurgiõespor habitantes, na Inglaterra, equivaliam àmetade dos valores encontrados nos EUA,em período de tempo correspondente.

Pearson e col.17 (1968) encontraram taxaglobal de intervenções cirúrgicas quase duas

vezes maior em New England (EUA) queem Liverpool (Inglaterra). A taxa de tonsi-lectomia e/ou adenoidectomia da populaçãode New England foi quatro vezes superiorà observada em Uppsala (Suécia).

Lewis10 (1969) verificou diferenças deaté quatro vezes na ocorrência de seis pro-cedimentos cirúrgicos entre regiões do estadode Kansas.

Os dados revelam, no geral, correlaçãopositiva entre taxas de cirurgias e de inter-nações.

Foi observado que a freqüência de inter-venções cirúrgicas no Canadá era quaseduas vezes superior à do Reino Unido,sendo que, no primeiro, as taxas de cole-cistectomia eram cinco vezes maior, en-quanto que a mortalidade por patologiasda vesícula biliar era o dobro daquelaver i f icada para Inglaterra e Gales (Vayda 23,1973). Entre 49 condados de Ontario, Sto-ckwell e Vayda2 1 (1979), encontraramvariações de 5 a 8 vezes na freqüência detonsilectomia, colectomia, histerectomia, co-lecistectomia e apendicectomia. Tambémtêm sido verificadas diferentes taxas entreestratos sociais da mesma comunidade.

Crianças cujos pais têm ocupação demelhor nível são mais submetidas atonsilectomias e postectomias que aquelasde famílias com ocupações menos qua-lificadas (Bolande3 , 1969). Referindo-sea cuidados médicos em geral, White2 6

(1968) observou que nos EUA a utili-zação de serviços aumenta com a rendafamiliar. Salkewer 20 (1975), analisandodados de vários países europeus, observoucorrelação positiva entre uso de cuidadosmédicos e nível sócio-econômico, especial-mente na população infantil .

Ao analisar essas diferenças encontradasentre países, entre regiões de um mesmopaís ou ainda entre grupos sócio-econômicosdiscriminados de uma mesma população,alguns autores, embora reconhecendo dife-renças nos padrões de morbidade, têmatribuído grande parcela das diferençasverificadas à disponibilidade de recursos

médico-hospitalares. Vayda2 3 (1973) enfa-tiza que "entre os fatores que contribuemestão os diferentes estilos de tratamento ecritérios de indicação de cirugia, mas osprincipais determinantes podem ser asdiferenças na organização e pagamento dosserviços de saúde, as limitações de credencia-mentos para atos cirúrgicos e o número decirurgiões e leitos hospitalares". Várias sãoas observações que reforçam essa assertivade Vayda. Lewis10 (1969) verificou pormeio de análise de regressão múltipla queo número de cirurgias tinha como bons pre-ditores o número de leitos hospitalares e onúmero de cirurgiões. Stockwell e Vayda21

(1979) referem que 50% da variação nastaxas que encontraram era explicada peloíndice de leitos e médicos. Perrot18 (1966)observou que os empregados federais dosEUA, cobertos por planos de pré-paga-mento, apresentavam as menores taxas decirurgias. Diferenças importantes nas taxasde intervenções cirúrgicas eletivas têm sidoobservadas em pessoas sujeitas a diferentesmodalidades de pagamento da assistênciamédica, como assinalam Logerfo e col.13

(1979) que encontraram 43% de cirurgias"desnecessárias" em um plano com paga-mento por serviço (IPP) e 22% em planode medicina de grupo com pré-pagamento(PGP).

As diferenças nas taxas de utilização deserviços de saúde têm seu interesse res-saltado porque concorrem com gastos cres-centes no orçamento dos países, sem quese verifique, quando se consideram ospaíses desenvolvidos, correlação entre osindicadores de saúde e a quantidade de re-cursos aplicados (Peterson e col.19, 1967).Por outro lado, as cirurgias representamo cuidado médico de maior custo implicandoquase sempre hospitalização do paciente,além do fato de que incorporam grande partedo avanço tecnológico que se dá na áreamédica.

As pesquisas sobre utilização de serviçosmédicos são numerosas nos países desen-volvidos (Anderson e Andersen1, 1972), desorte que um conjunto apreciável de infor-

mações encontra-se disponível para análisesmais detalhadas e inclusive para testaralgumas hipóteses.

Na realidade brasileira, entretanto, escas-seiam as investigações empíricas sobre oconsumo de serviços. Parte das dificuldadesexistentes para a realização desses estudosdeve-se à problemática caracterização danatureza da demanda ao nível das insti-tuições médicas, que esbarra na má qua-lidade dos registros médicos existentes;além disso, as instituições (ambulatórios,hospitais, e outros) não têm, em geral, umapopulação de referência, geograficamentebem definida, o que impossibilita a elabo-ração de taxas de consumo. Por outro lado,pesquisas que tomam o consumidor comounidade de investigação implicam uma quan-tidade de recursos raramente disponívelentre nós.

Tendo em vista a importância do temanas questões relativas à saúde e a carênciade pesquisas que revelem a intensidade enatureza do consumo de atos médicos, emlocalidades brasileiras, propusemo-nos adesenvolver um estudo descritivo das cirur-gias ocorridas na população residente emRibeirão Preto, Estado de São Paulo.Acreditamos que a descrição de situações ediferenciações concretas ainda que restritas,poderiam contribuir para a compreensão daprática médica, ao oferecer subsídios paraanálises mais amplas.

O estudo foi possibilitado pela existênciade um Centro de Processamento de DadosHospitalares (CPDH), cujas informações,consideradas de boa qualidade por YazilleRocha2 4 (1975), permitiu-nos selecionar asintervenções cirúrgicas realizadas nos resi-dentes de Ribeirão Preto. As variáveisincluídas no estudo restringiram-se, por-tanto, às existentes na folha de alta hospi-talar do CPDH.

O objetivo deste trabalho é caracterizara incidência de cirurgias segundo idade,sexo e categoria de internação do paciente,

assim como o tipo de cirurgias realizadas.Procura-se, de uma maneira ainda que pre-liminar, detectar diferenciações no perfil decirurgias das diferentes modalidades deatenção médica.

MATERIAL E MÉTODOS

Foram estudadas as altas hospitalaresde pacientes submetidos a cirurgias ocor-ridas nos hospitais de Ribeirão Preto, du-rante o ano de 1975, referentes às pessoasresidentes nesse município.

As informações foram coletadas e proces-sadas pelo CPDH que funciona junto aoDepartamento de Medicina Social da Fa-culdade de Medicina de Ribeirão Preto,cujas atividades foram descritas e analisadaspor Fávero e col.8 (1973) e Yazlle Rocha2 4

(1975).

Com referência a cada alta foram estu-dadas as variáveis: sexo, idade, local deresidência, categoria de internação e aprincipal intervenção cirúrgica realizada.

As cirurgias, que são anotadas no mo-mento da alta do paciente, foram codificadase tabuladas segundo a "Classification Inter-nacional de Operaciones Quirurgicas y deOtros Procedimientos Terapeuticos y Diag-nosticos" (OPS16, 1971).

Quanto à categoria de internação, ospacientes foram classificados em: particular— quando a hospitalização foi paga pelopaciente; INPS * (Instituto Nacional dePrevidência Social) — quando a internaçãofoi custeada por esta instituição previdên-ciária; indigente — quando foi gratuito oatendimento médico-hospitalar; outro seguro— que incluiu as hospitalizações custeadaspelas demais instituições como UNIMED deRibeirão Preto — Cooperativa de TrabalhoMédico, Instituto de Assistência Médica doServidor Público Estadual (IAMSPE), entreoutras.

A categoria de internação, ao mesmotempo em que representa as instituições

* Atual Instituto Nacional de Assistência Médica de Previdência Social (INAMPS).

médicas a que as pessoas podem ter acesso,indicando, de modo imediato, tipos dife-rentes de seviços de saúde, pode tambémser tomada como um indicador de estratosócio-econômico, pois o tipo de inserçãodas pessoas no mercado de trabalho definea modalidade de assistência médica quepodem obter.

Dado que Ribeirão Preto é um centroregional de assistência médica é possívelesperar que a maior parte das cirurgiasrealizadas nos residentes no municípiotenham ocorrido localmente.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Em 1975, foram realizadas 15.403 cirur-gias em pessoas residentes no município deRibeirão Preto, equivalendo a uma taxa de62,24 intervenções por 1.000 habitantes,sendo de 79,82 no sexo feminino e 43,77 nomasculino.

Observa-se na Fig. 1 que a taxa decirurgias cresce com a idade no sexo mas-culino, enquanto que no feminino é muitoelevada na idade reprodutiva. Se excluídasas cirurgias obstétricas, as mulheres passam

a apresentar taxa global de 41,20, inferior,portanto, à do outro sexo.

A comparação de taxas de cirurgias, entrelocalidades, restringe-se a informações deri-vadas de estudos desenvolvidos com objetivose metodologias diferentes, realizados emcontextos distintos quanto à qualidade dosregistros médicos e das fontes de dados,quanto à composição etária das populaçõesestudadas, além, de serem realizados emperíodos de tempo diferentes. Comparaçõesadequadas exigem estudos internacionaisque empreguem métodos e instrumentospadronizados. (White2 7 , 1967).

Dessa forma, ao se tomar a incidênciade intervenções cirúrgicas observadas poroutros autores (Tabelas 1 e 2), apenascom a finalidade de situar alguns pontosde referência, verifica-se que em RibeirãoPreto a taxa aproxima-se das mais elevadas.

No Brasil e em outros países subdesen-volvidos, a disponibilidade de dados sobremorbidades e atos médicos é bastante defi-ciente. Com a ausência de taxas de cirur-gias para populações específicas, poderíamosapontar alguns coeficientes de internaçõesem cujo total se encontram incluídas asinternações cirúrgicas. O coeficiente deinternação no Brasil, em 1973, foi de 68por 1000 habitantes; apresentava-se bas-tante desigual entre regiões e Estados dopaís: São Paulo, 103; Rio de Janeiro, 90;Sul, 85; Centro-Oeste, 58; Norte, 44; Ma-ranhão e Piauí, 19 (Mello15, 1981).

Os coeficientes de internação encontradosem países subdesenvolvidos são, como espe-rado, inferiores aos observados nos paísesmais industrializados. Em 1968, o Chileapresentou uma taxa de 90, a Guyana, 82,El Salvador, 51, e Trinidad Tobago, 88,sendo que em Ribeirão Preto, em 1973,o coeficiente de internação foi de 122 por1000 habitantes (Yazlle Rocha 2 4 , 1975).

Verifica-se, desta forma, que a taxa deinternação de Ribeirão Preto é mais elevadaque as observadas em países da AméricaLatina e em outras regiões brasileiras. Em

1975, a taxa de internação de RibeirãoPreto foi de 131,9, sendo que sua taxa decirurgia nesse ano (62/1000) aproximou-seda taxa global de internações do Brasil(68/1000 em 1973), o que evidencia oselevados coeficientes de internação e cirurgiado município estudado.

Quando observada a realização de cirur-gias entre as pessoas hospitalizadas obtém--se um índice de 43,7 intervenções por 100hospitalizações que, desagregado por sexoe grupo etário, revela-se maior nos pacientesmais jovens, reduzindo-se após os 45 anos(Fig. 2). A proporção de internações ci rúr-gicas em Ribeirão Preto é superior àsobservadas por Pearson e col.17 (1968),ou seja, em Liverpool (41%) e Uppsala(35%), sendo i n f e r i o r apenas à de NewEngland (49%).

As intervenções obstétricas representaram31,8% do total de cirurgias realizadas, sendoque os procedimentos ortopédicos foram osmais freqüentes no sexo masculino (23,4%).

Houve uma diferença acentuada em re-lação aos sexos quanto ao tipo de inter-venção cirúrgica realizada, sendo interes-sante a observação de taxas mais elevadas,no sexo masculino, de cirurgias ortopédicas,abdominais e plásticas (Fig. 3).

A comparação da incidência de cirurgiasna população de Ribeirão Preto com aobservada por alguns autores (Logan eEimerl 11, 1965; Pearson e col.17 1968 e

Bunker4 , 1970) revela que as taxas dasvárias especialidades cirúrgicas são, emgeral, mais elevadas que as encontradas emregiões da Europa e inferiores às de loca-lidades dos EUA; no município de RibeirãoPreto foram especialmente elevadas as fre-

qüências de cirurgias ortopédicas, de pos-tectomias e hemorroidectomias e bastantebaixa a incidência de apendicectomia.

Nas Figs. 4.A e 4.B encontram-se oscoeficientes de cirurgia por especialidade,discriminados por sexo e idade, oferecendo

uma visão mais detalhada da ocorrência dasintervenções.

A elevada taxa de cirurgias da populaçãode Ribeirão Preto acompanha o alto coefi-ciente de internação verificado nesse muni-cípio. Evidentemente, trata-se de uma cidadebrasileira que, ao concentrar recursos dosetor saúde, apresenta-se com uma situaçãodistinta da observada na maioria dos muni-cípios brasileiros, muitos dos quais (aproxi-madamente 1500) sequer providos da pre-sença de um médico. Entretanto, frente aessa situação de carência geral, merece maisatenção e estudo a intensa produção, aindaque localizada, de serviços de saúde de altocusto e de baixa eficácia na resolução daspatologias mais freqüentes.

As intervenções cirúrgicas além de impli-carem atendimento médico mais caro, acar-retam riscos maiores para o paciente doque, em geral, os decorrentes de cuidadosmédicos mais conservadores. Mesmo cirur-gias simples encerram riscos importantes;as tonsilectomias, como exemplo, provo-cavam de 100 a 300 mortes por ano, nosEUA, além da considerável incidência decomplicações sérias (Bakwin 2, 1958).

Por outro lado, os critérios de indicaçãode várias intervenções cirúrgicas persistemsusceptíveis a questionamentos. Ainda em1973, nos EUA, Logerfo e col.12 (1978),em uma auditoria médica, verif icaram queaproximadamente 67% das tonsilectomiase/ou adenoidectomias poderiam ou deveriamter sido evitadas, o que levaria a umaredução de 445.000 intervenções, represen-tando uma economia de 183 milhões dedólares, naquele ano.

Bolande 3 (1969) considera, inclusive, queas tonsilectomias e postectomias não seassentam, na maior parte das vezes em quesão realizadas, em bases científicas e ra-cionais.

A variabi l idade das taxas de cirurgias nãotem encontrado explicação suficiente nasdiferenças de perfis de morbidade, revelandoa existência de outros critérios nem sempre

claros e inteiramente justificáveis, de umponto de vista médico, para a realizaçãode várias intervenções cirúrgicas. A ocor-rência de cirurgias desnecessárias tem sidodetectada, em alguns países, por auditoriasmédicas e também pela observação de quetende a ocorrer uma redução da freqüênciade cirurgias nos hospitais que foram sub-metidos a estudos, após a divulgação ediscussão das taxas encontradas. Foi o queverif icaram Dyck e col.7 (1977) após umestudo sobre a ocorrência de histerectomiasem Saskatchewan, e também Wennberg ecol.25 (1977) após uma pesquisa sobre inci-dência de tonsilectomias em Vermont.

Cirurgia e modalidade de atendimento médico

O sistema previdenciário custeou 60,96%das cirurgias realizadas em Ribeirão Preto,em 1975, em pacientes procedentes destemunic íp io ; a medicina de caridade e a exer-cida no hospital universitário responderampor 22,73% delas. Em um esquema de aten-ção médica liberal foram realizadas 7,38%das cirurgias e 8,93% por outros seguros.

Considerando-se o coeficiente de cirurgiapor 1.000 internações, verificou-se que omaior foi encontrado na categoria de pa-cientes particulares, em ambos os sexos(Fig. 5). Os indigentes e beneficiários doINPS. apresentaram as menores proporçõesde internações cirúrgicas, sendo que, nosexo masculino, enquanto o menor valorfoi encontrado nos indigentes, os seguradosdo INPS apresentaram um coeficiente rela-tivamente alto, infer ior apenas ao dos pa-cientes particulares. A menor proporção deinternações cirúrgicas foi encontrada nosindigentes do sexo masculino.

A observação dos cinco grupos de ci rur-gias mais freqüentes, em relação à moda-lidade de atendimento médico, revelou algu-mas diferenças importantes (Tabela 3). Nosexo masculino, as intervenções ortopédicasforam proporcionalmente mais freqüentesnos pacientes do INPS, outros seguros eindigentes, tendo representado apenas 13%

das cirurgias realizadas nos pacientes parti-culares. Os procedimentos cirúrgicos abdo-minais ocorreram também, em menor fre-qüência, nos pacientes da categoria parti-cular.

Sucedeu o contrário com as intervençõesotorrinológicas (60% de amigdalectomiase/ou adenoidectomias) e urológicas (22%de postectomias e 16% de prostatectomias),

que foram proporcionalmente mais fre-qüentes nos pacientes particulares. Cabeainda assinalar que as cirurgias plásticascorresponderam a 11,8% das cirurgias rea-lizadas pelo INPS, em pacientes do sexomasculino, e a 7,23% das realizadas emindigentes, não aparecendo, nas outrascategorias de internação, entre as cincocirurgias mais freqüentes.

No sexo feminino as intervenções obsté-tricas e ginecológicas foram as mais fre-qüentes em todas as categorias, embora comproporções muito diferentes e mostraram-seelevadas nos indigentes. As observaçõesfeitas quanto às cirurgias ortopédicas eotorrinológicas, no sexo masculino, ver i f i -cam-se também neste sexo, ocorrendo as pri-meiras em maior proporção nos pacientes

do INPS, de outros seguros e nos indi-gentes, e as segundas nos pacientes parti-culares.

Constata-se o papel relevante desempe-nhado pela Previdência Social, na definiçãona natureza e tipo da assistência médicaexistente, quando se verifica que apenas7% das cirurgias foram pagas diretamentepelo paciente.

Por outro lado, verifica-se que parcelamaior das internações dos pacientes parti-culares e de "outros seguros" ocorrem coma realização de cirurgias. Como uma parteconsiderável das cirurgias, principalmente nogrupo dos pacientes particulares, cons-titui-se de procedimentos eletivos, estaobservação evidencia a qualidade diferente

de atenção médica que é oferecida a seg-mentos distintos da população. Pode indicar,também, uma "inflação" de internações nospacientes da previdência social.

A observação dos tipos de cirurgias maisfreqüentes, nas quatro categorias de inter-nação consideradas, precisa ser analisadacom cautela em função da possível exis-tência de distorções nos dados: ocorrênciade cirurgias desnecessárias, de pseudo--cirurgias, alterações nos registros quantoao tipo de cirurgia realizada, possívelseleção pelos pacientes quanto à categoriade internação em que vão se integrar, emfunção do tipo e custo da cirurgia a queirão se submeter.

A maior proporção de intervenções orto-pédicas e plásticas nos pacientes do INPS,principalmente no sexo masculino, parecerelacionada ao tipo de morbidade que afetaos trabalhadores, ao seu alto grau de expo-sição a riscos, especialmente à ocorrênciade acidentes de trabalho, que apresentavamtaxas crescentes no Brasil, na década de70, at ingindo o valor oficial máximo em1975 (Tambellini Arouca 22, 1978).

Além disso, a diferença existente nasproporções de internações cirúrgicas entreo sexo masculino e feminino dos pacientesda previdência, assim como a já referidamaior freqüência de cirurgias ortopédicase plásticas, estariam relacionadas ao papeldo INPS de reparação física da força detrabalho. Convém lembrar que a taxa deintervenções ortopédicas encontrada emRibeirão Preto, foi mais elevada que aobservada em países desenvolvidos, comoreferido anteriormente.

Assim, o estudo dos tipos de cirurgiasrealizadas nas diferentes categorias de inter-nação refletem, por um lado, o padrão demorbidade que prevalece nos diversos grupossociais e, por outro, as características eobjetivos das próprias entidades de assis-tência médica.

Os achados de maior incidência de ce-sáreas em pacientes de melhor nível sócio-econômico e nos regimes de livre escolha

e pagamento por unidade de serviço (Car-valheiro5 , 1975; Mel lo 1 4 , 1977) revelamtambém a in ter ferência de fatores sociais

na indicação de c i rurgias .

Entretanto, tem sido denunciadas situa-ções mais graves que divergências relativas

a critérios de indicação cirúrgica (Mello 14,1977). Inclusive, o ex-presidente do INAMPS,declarou que 600 mil internações desneces-sárias teriam sido realizadas na rede con-tratada da Previdência Social, em 1976(Mello1 5 , 1981).

O consumo de intervenções cirúrgicas,referente ao padrão de morbidade preva-lente no país, merece ser anal isado detida-mente por autores brasileiros. A atuação

mais racional do setor médico-hospitalarenvolve desde mudanças na formação domédico e do c i rurgião, como analisado porCope6 (1965), até alterações necessárias daPolítica Nacional de Saúde, de modo atorná-la mais condizente com as necessidades

globais de saúde do país. As auditoriasmédicas e a divulgação das taxas de cirur-gias, realizadas por diferentes entidades

hospitalares, poderiam contr ibuir para que

as indicações se tornassem cada vez maisapropriadas. Seria útil a criação, tambémno que se refere a serviços de saúde, de

órgãos de defesa do consumidor brasileiro.

O estabelecimento de medidas efetivaspara um controle adequado das intervençõescirúrgicas poderia evitar que se chegassea medidas drásticas de suspensão de c i rur -gias eletivas (portaria 1.265 do Ministroda Previdência Social — Diário Oficial de18/09/81), em momentos de grave crisef inance i ra da Previdência Social.

CONCLUSÕES

1 . Observou-se elevado coeficiente de ci-rurgia na população residente no muni-cípio de Ribeirão Preto, em 1975(62,24/1000 habitantes). O coeficientefoi maior no sexo feminino (79,82/1000),especialmente no período reprodutivo.

2. As cirurgias obstétricas representaram31,8% do total de intervenções reali-zadas naquele ano. No sexo masculinoforam mais freqüentes as cirurgias orto-pédicas, abdominais e otorrinológicas.

3. As taxas de intervenções cirúrgicas au-mentam com a idade no sexo masculino,enquanto que as internações cirúrgicas,em relação ao conjunto das internaçõesrealizadas, decrescem a partir dos 25anos.

4. A Previdência Social custeou 60,9% dasoperações, enquanto que num esquemade medicina l iberal foram feitas apenas7,38%, o que indica o papel funda-mental que aquela instituição desem-penha na determinação da natureza eintensidade dos serviços médicos pro-duzidos.

5. Os pacientes particulares apresentarammaior coeficiente de cirurgia por inter-nação, sendo mais freqüentes nestacategoria as cirurgias otorrinológicase urológicas constituídas, em grandeparte, por procedimentos eletivos.

6. Os beneficiários da Previdência queapresentam menor taxa de cirurgias porinternação são proporcionalmente maissubmetidos a intervenções ortopédicase plásticas, o que provavelmente serelaciona à elevada exposição a riscosde acidentes a que está submetido otrabalhador e ao papel da assistênciamédica previdenciária como restaura-dora da força de trabalho.

BARROS, M. B. de A. [Incidence of surgery in Ribeirão Preto, SP, Brazil]. Rev.Saúde Públ.. S. Paulo, 16:268-81, 1982.

ABSTRACT: This paper reports on surgical rates as related to patient'sages sex and categories of hospitalization in the population of Ribeirão Preto,S. Paulo, Brazil. Data were obtained from a hospital information center. Thesurgical rate in Ribeirão Preto was similar to the highest rates reported inliterature. Obstetric surgery accounted for 31.8% of all operations performed.Orthopedic operations were the most frequent kind of surgery performed onthe male sex. Hospitalization with surgery was more frequent in the patientswhose care was remunerated. The number of orthopedic and plastic surgicaloperations was greater in the case of Social Insurance and indigent patients,whereas otorrinological and urinary tract operations were more frequent inthe case of paying patients.

UNITERMS: Surgery, incidence. Hospitalization, Ribeirão Preto, SP.

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Recebido para publicação em 30/11/1981Aprovado para publicação em 25/08/1982