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UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES ANTÓNIO ZERO Leonardo Moura Mateus Dissertação Mestrado em Arte Multimédia Especialização em Audiovisuais Dissertação orientada pela Prof a. Doutora Susana de Sousa Dias 2016

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Page 1: Dissertação final AntonioUmDoisTresPutas assassinas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 11 pode criar e recriar mundos, instaurando uma possibilidade de existência que a violência

UNIVERSIDADE DE LISBOA FACULDADE DE BELAS-ARTES

ANTÓNIO ZERO

Leonardo Moura Mateus

Dissertação

Mestrado em Arte Multimédia

Especialização em Audiovisuais

Dissertação orientada pela Prof a. Doutora Susana de Sousa Dias

2016

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DECLARAÇÃO DE AUTORIA

Eu, Leonardo Moura Mateus, declaro que a presente dissertação, intitulada António Zero, é o

resultado da minha investigação pessoal e independente. O conteúdo é original e todas as

fontes consultadas estão devidamente mencionadas na bibliografia ou em outras listagens de

fontes documentais, tal como todas as citações diretas ou indiretas têm devida indicação ao

longo do trabalho segundo as normas académicas.

O candidato

_________________

Lisboa, 15 de novembro de 2016.

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RESUMO

Esta dissertação acompanha o filme de longa-metragem António Um Dois Três. É dividida em

seis capítulos autônomos de caráter ensaístico que descrevem pontos cruciais à concepção e

ao desenvolvimento da obra. Após uma introdução que elucida as intenções gerais do

presente trabalho há um segundo capítulo em que é descrita uma relação entre o fazer artístico

e a criação para si de um modo de existência. No terceiro é articulado um pensamento sobre

mise-en-scène a partir do ator protagonista. No quarto é pensado como o modo de produção

afeta a natureza geral de um filme, sua dramaturgia e encenação, em defesa de formas

alternativas de desenvolvimento. No capítulo cinco, a partir de uma teoria de Borges sobre a

construção do tempo, escrevo sobre as realidades possíveis de uma mesma história. Já no

sexto, em conversa com uma das atrizes do longa-metragem, escrevo sobre Jean Renoir e seu

modo de fazer cinema e vida.

Palavras-chave: António Um Dois Três. Cinema. Criação artística.

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ABSTRACT

This dissertation accompanies the feature film Antonio Um Dois Três. It is divided in six

autonomous chapters, of essay-like character, that describe crucial points to the conception

and development of the work. After an introduction that elucidates the general intentions of

this work, there is a second chapter in which it is described a relationship between making art

and creating for oneself a mode of existence. In the third it is articulated a thought about mise-

en-scène starting from the protagonist actor. In the fourth it is thought how the way of

production affects the general nature of a film, its dramaturgy and staging, in defense of

alternative forms of development. In chapter five, based on Borges's theory of time

construction, I write about the possible realities of the same story. Already in the sixth, in

conversation with one of the actresses of the feature film, I write about Jean Renoir and his

way of making cinema and life.

Keywords: António Um Dois Três. Cinema. Artistic creation.

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AGRADECIMENTOS Agradeço a meus pais, Braz Mateus da Silva e Aldeniza Moura Mateus, por todo o amor e por

terem compartilhado comigo o significado maior da integridade e do trabalho.

Agradeço a Mauro Soares, por repartir comigo as histórias e os dias.

Agradeço à Tomás Von der Osten e Daniel Pizamiglio, pelos diálogos, caminhadas e

cervejas.

Agradeço à Susana de Sousa Dias pela interlocução.

Agradeço a Joice Nunes, amiga.

Agradeço a toda a equipe de António Um Dois Três.

E agradeço a Ernst Lubitsch e Jean Eustache, dois amigos mais do lado de lá, por toda

inspiração.

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“Não vou dizer tudo, nesta história. Aliás, não

há história, mas uma série, uma escolha de

episódio banais, acasos, coincidências, como,

mais ou menos, acontece sempre na vida, e

que não têm outro sentido senão o que me

apeteceu dar-lhes.”

(Eric Rohmer)

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 8

2 UM LUGAR ENTRE AS ÁRVORES ................................................................................ 10

3 I PUT A SPELL ON YOU .................................................................................................. 15

4 SORTE NO JOGO .............................................................................................................. 20

5 NO CAMINHO DOS CÃES ............................................................................................... 28

5.1 DOBRAS ............................................................................................................................ 30

6 O TEATRO DAS MATÉRIAS ........................................................................................... 33

7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 41

REFERÊNCIAS ...................................................................................................................... 44

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1 INTRODUÇÃO

Você acaba de iniciar a leitura da dissertação teórica que acompanha um filme de

longa-metragem chamado António Um Dois Três. O filme é a história de um rapaz que foge

da casa do pai e vai buscar refúgio na casa da ex-namorada. Lá, além dela, ele encontra uma

outra garota que está hospedada por um dia para ir ou voltar da Rússia. Este “ir ou voltar” não

se trata de um erro. O filme é composto de três partes, e nelas o encontro entre o rapaz

português e a rapariga portuguesa se repete de alguma forma, sempre pela primeira vez. Não

há uma única realidade verdadeira. No entanto, o filme de avança de uma parte até a outra. Da

primeira até a terceira, não traçando uma linha reta, linear, mas uma linha curva, talvez uma

espiral. A presente dissertação não servirá como ferramenta de decifração do filme, mas como

uma companhia a mais na deambulação de um jovem rapaz pelas ruas e diferentes versões da

cidade de Lisboa.

O presente trabalho dissertativo não pretende somente expor um conjunto de

referências, ou simplesmente justificar as escolhas empregadas, mas compor um bom

anteparo, ser extensão, um mata-borrão da criação de um filme, onde num primeiro momento

é possível perceber que abordo em cada capítulo alguns focos.

Inicialmente temos a presente introdução. Em seguida, no segundo capítulo, em

tom de prólogo, está o próprio ato de criar, numa defesa política da reconstrução de uma

realidade cotidiana, tendo como ponto de partida um poema de Roberto Bolaño. Já no terceiro

está o ator Mauro Soares, corpo de António Um Dois Três, cujos gestos escrevem o filme e o

conceito de encenação. No quarto penso o modo de produção como método de criação.

Escrevo, no quinto capítulo, sobre uma ideia não-linear do tempo a partir de um ensaio do

escritor argentino Jorge Luis Borges. Por último, no sexto capítulo, elaboro reflexões sobre

teatro e cinema, em conversa com a atriz Sofia Dinger, a partir da obra de Jean Renoir.

Meu desejo é que a escrita demonstre de maneira ensaística como esse conjunto

de temas – roteiro, direção, produção – não pode ser abordado em categorias separadas;

primeiro porque todas elas são temas dentro do próprio filme, ou melhor dizendo, o filme é

também sobre um filme a ser feito, e todos os fios que estão expostos em sua construção são

pensados como elementos expressivos deste1, mas também porque toda escolha de um filme,

das dimensões do quadro à saturação dada na correção de cor, cresce de maneira orgânica,

1 “Eu chamaria de ‘moderno’ o cinema que ‘assumiu’ essa não-profundidade de imagem, que a reivindicou e que pensou construir – com humor ou com furor – uma máquina de Guerra contra o ilusionismo do cinema clássico, contra a alienação das séries industriais, contra Hollywood”. (DANEY, 2007, p. 231). 2 BOLAÑO, Roberto. La universidad desconocida. Barcelona: Anagrama, 2007. p. 88.

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sem hierarquias. Portanto, nega o padrão industrial, que distribui o filme em departamentos,

realização, elenco, fotografia e arte, e nasce a partir da possibilidade que ressurge de tempos

em tempos em diferentes partes do mundo: um cinema calcado na liberdade e no jogo.

Terei atingido meu objetivo caso esta dissertação possa, após a primeira, a

segunda e a terceira, ser lida como uma quarta realidade do filme. Esta quarta dimensão – que

na verdade pode ser predecessora; um grau zero de realidade, apesar de não ser composta por

imagens e sons em movimento – é privilegiada, por misturar personagens, elenco, equipe,

referências, memórias, fantasias e sonhos de cinema num único plano: o escrito. Que após ser

lida a dissertação o filme esteja aberto a possibilidades ainda mais diversas do que antes.

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2 UM LUGAR ENTRE AS ÁRVORES

“La violencia es como la poesía, no se corrige.

No puedes cambiar el viaje de una navaja

ni la imagen del atardecer imperfecto para

siempre

Entre estos árboles que he inventado

y que no son árboles

estoy yo.”2

O poema acima, de autoria de Roberto Bolaño, está presente na compilação La

universidad desconocida, que reúne boa parte de sua obra poética. Faz parte da sessão En la

sala de lecturas del infierno e reúne alguns dos temas que perseguiram Bolaño em sua obra,

mais conhecida pelos romances Os detetives selvagens e 2666. Estão aí a violência, a reflexão

sobre a poesia, o espelhamento, imagens de grande visceralidade, uma ideia ambígua de

falsidade e a presença da figura do escritor, do artista, em nosso mundo.3

O poema é composto por duas estrofes que primeiro traçam uma ideia pessimista

de inevitabilidade, de desimportância do ato de criação em meio à barbárie e ao terror, e

termina, com seus três últimos versos, por instaurar o papel do artista em meio ao próprio

universo que ele cria. Bolaño compara a poesia com a violência; identifica uma semelhança

entre as duas para, a seguir, notar a fragilidade de uma em relação à outra. A poesia não pode

vencer a violência (“el viaje de una navaja”) nem mudar algo que correu mal (o que seria um

“entardecer imperfecto”?). Contudo, ela tem outra força, como demonstrado na segunda

estrofe, e que revela o pensamento do autor sobre a criação literária e, por conseguinte, sobre

a arte.

Bolaño, apesar de ser cético sobre a falsidade dos objetos que cria ao produzir

poesia, encontra um lugar no mundo, e declara a possibilidade de existência em meio às

árvores que ele mesmo inventara. A poesia não é capaz de mudar absolutamente nada, mas

2 BOLAÑO, Roberto. La universidad desconocida. Barcelona: Anagrama, 2007. p. 88. 3 Outros elementos não estão representados. O mais importante deles é um sentido de humor bastante cáustico

que sua escrita oferece. Como no conto “O retorno”, que conta a história de um fantasma que se depara com seu antigo corpo sendo traficado para servir de prazer sexual para um famoso estilista. In: BOLAÑO, Roberto. Putas assassinas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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pode criar e recriar mundos, instaurando uma possibilidade de existência que a violência ou o

tempo são incapazes de destruir, ainda que provisoriamente.

António Um Dois Três, em seu conteúdo e forma, tenta justamente fazer este

exercício, isto é, a partir da inevitabilidade dos fatos, pensar em como o ato de criação é capaz

de recompor a realidade. No meu caso, enquanto realizador, reconstruir a partir dos mesmos

elementos três histórias que possuem uma pequena linearidade, mas que podem ser vistas

como episódios distintos; no caso do personagem António, superar o fantasma da ex-

namorada, mas também conseguir viver em Lisboa sem dinheiro, relacionar-se com o amigo

em crise, apaixonar-se uma segunda vez... E a isso, a essa reconstrução sucessiva de

realidades, pode ser dado um sentido subjetivo, mas também político.

Roberto Bolaño tem uma importância seminal na construção da minha

sensibilidade. Sua criação literária, seus labirintos, desenham uma América Latina caótica e

misteriosa, que combina erudição e verve beatnik. Um poeta sem pátria, escritor latino-

americano que em seus diferentes exílios (Chile, México e Espanha), assim como em suas

diferentes vidas – como vigia de um camping ou vendedor de bijuterias –, criou uma pátria

para si e para seus leitores.4

Eu me senti acolhido desde o primeiro livro que li, os contos de Putas Assassinas,

talvez por sentir-me tão desgarrado quanto Bolaño. A força de sua presença é por mim

assumida em alguns dos meus curta-metragens, como na fantasmagoria noir de Mauro em

Caiena, num vídeo feito sob o título Estrela distante, mas mais diretamente no uso livre de

um dos seus contos, Gomez Palácio, na concepção do média-metragem História de uma pena.

Mais do que inspiração, a literatura de Roberto Bolaño me convoca por sua multiplicidade (no

4 Em sua última entrevista, para a revista Playboy do México, em 2003, Bolaño, ao ser perguntado sobre o que para ele seria a pátria, responde: “Lamento ter que te dar uma resposta tão cafona. Minha única pátria são meus dois filhos, Lautaro e Alexandra. E talvez, mas em segundo plano, alguns instantes, algumas ruas, alguns rostos ou cenas ou livros que estão dentro de mim e que algum dia esquecerei, que é o melhor que alguém pode fazer pela pátria”. In: MARISTAIN, Mónica. La última entrevista a Roberto Bolaño. Disponível em: http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-843-2003-07-21.html. Acesso em 10 de novembro de 2016. Já em Literatura e Exílio, conferência dada em Viena no simpósio “Europa e América Latina: Literatura, Migração e Identidade”, Bolaño é ainda mais radical: “A cantilena, entoada por latino-americanos e também por escritores de outras regiões depauperadas ou traumatizadas, insiste na nostalgia, no regresso ao país natal, e para mim isso sempre me soou como mentira. A única pátria do escritor de verdade é sua biblioteca, uma biblioteca que pode estar em estantes ou na memória. O político pode e deve sentir nostalgia, é difícil para um político prosperar no estrangeiro. O trabalhador não pode nem deve sentir nostalgia: suas mãos são sua pátria”. In: BOLAÑO, Roberto. Literatura e Exílio. Edições Chão da Feira, 2015. Disponível em: http://chaodafeira.com/cadernos/literatura-e-exilio/. Acesso em 10 de novembro de 2016.

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sentido “enciclopédico” dado por Italo Calvino em uma de suas conferências5, e cujo máximo

denominador comum é o romance 2666) e resistência.

O ato aqui de criar um espaço para si, entre árvores inventadas por ele mesmo, é

um gesto de resistência que, na obra de Bolaño, está na vida de diversos personagens e que

ressoa em sua própria biografia. Ambos, escritor e personagens (e em alguns casos

personagens que são poetas, escritores, repórteres etc.), confrontam-se com seus próprios

estados de angústia, e por circunstâncias as mais diversas se encontram em sombrias

atmosferas de violência. Seja por motivos mais simples, como a falta de dinheiro (a exemplo

do conto “Vagabundo na França e na Bélgica”, de Putas Assassinas), seja por mistérios

indecifráveis numa Paris do começo da década de 1930, como no romance Monsieur Pain,

tudo serve para a criação destas imagens. O banheiro feminino que vira esconderijo durante a

invasão da universidade pelo exército (Amuleto), uma exposição fotográfica onde são exibidas

fotos de vítimas da ditadura chilena (Estrela distante). Seus personagens nunca estão em suas

zonas de conforto e repetidamente se deparam com a falta de sentido e com a barbárie da

realidade na qual estão inseridos.

É possível traçar alguns paralelos entre o poema de Bolaño e a famosa

conferência do filósofo francês Gilles Deleuze intitulada O ato de criação, dada a alunos de

cinema em 1987. Um deles é a ideia de necessidade: “É preciso que haja uma necessidade,

tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser

que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade”.6 Bolaño

em mais de um momento deixa explícito esse compromisso com sua própria escrita. Há um

compromisso mencionado em sua última entrevista e que servirá para romantizar ainda mais

sua figura após seu falecimento: “Roberto Bolaño vive em Blanes, Espanha, e está muito

doente. Espera que um transplante de fígado lhe dê paz para viver com essa intensidade que

tanto louvam aqueles que têm a sorte de viver com ele na intimidade. Dizem eles, seus

amigos, que às vezes se esquece de ir ao médico enquanto escreve”.7 O que nos interessa

aqui, mais do que alimentar a ideia de um artista alçado à condição de lenda, é a ideia de

Deleuze de que o artista cria por necessidade, mas não por uma necessidade de se comunicar.

5 “O que tom a forma nos grandes romances do século XX é a ideia de uma enciclopédia aberta, adjetivo que certamente contradiz o substantivo enciclopédia, etmologicamente nascido da pretensão de exaurir o conhecimento do mundo encerrando-o num círculo. Hoje em dia não é mais pensável uma totalidade que não seja potencial, conjectural, multíplice.” In: CALVINO, Italo. Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras. 2002. p. 131. 6 DELEUZE, Gilles. O ato de criação. In: MAIS! Folha de São Paulo, 27 de junho de 1999. 7 Disponível em: <http://www.pagina12.com.ar/diario/suplementos/radar/9-843-2003-07-21.html>.

Acesso em: 10 nov. 2016.

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Em uma conferência, ele critica firmemente essa ideia de uma arte comunicativa,: “A obra de

arte não é um instrumento de comunicação. A obra de arte não tem nada a ver com a

comunicação. A obra de arte não contém, estritamente, a mínima informação”.8 Mas então

que espécie de necessidade é esta? Deleuze então menciona, assim, a existência de uma

intensa afinidade entre a obra de arte e o ato de resistência. Para tanto, cita nesta altura o

escritor André Malraux:

André Malraux desenvolve um belo conceito filosófico: ele diz uma coisa bem simples sobre a arte, diz que ela é a única coisa que resiste à morte. [...]. Reflitamos... O que resiste à morte? Basta contemplar uma estatueta de 3.000 anos antes de Cristo para descobrir que a resposta de Malraux é uma boa resposta. Poderíamos dizer então, de forma mais tosca, do ponto de vista que nos interessa, que a arte é aquilo que resiste, mesmo que não seja a única coisa que resiste. Daí a relação tão estreita entre o ato de resistência e a obra de arte. Todo ato de resistência não é uma obra de arte, embora de uma certa maneira ela faça parte dele. Toda obra de arte não é um ato de resistência, e, no entanto, de uma certa maneira, ela acaba sendo.9

Construir um espaço para si, entre árvores inventadas por si mesmo. “O ato de

resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de

resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta

entre os homens”.10

Tais palavras de Deleuze vão encontrar ecos no filme de curta-metragem de Jean-

Luc Godard Je vous salue Sarajevo (1993), um vídeo-ensaio em que o diretor francês,

fazendo uso de sua própria voz em off e de uma fotografia de Ron Haviv da guerra da Bósnia

expõe seu pensamento alarmado sobre o estado do mundo. Transcrevo aqui a narração de

Godard, constituída com fragmentos de Louis Aragon (Le Crève-Coeur) e George Bernanos

(La Joie):

De certa forma, medo é a filha de Deus, redimida na noite de sexta-feira santa. Ela não é bela, é zombada, amaldiçoada e renegada por todos. Mas não entenda mal, ela cuida de toda agonia mortal, ela intercede pela humanidade. Pois há uma regra e uma exceção. Cultura é a regra. E arte a exceção. Todos falam a regra: cigarro, computador, camisetas, TV, turismo, guerra. Ninguém fala a exceção. Ela não é dita, é escrita: Flaubert, Dostoyevski. É composta: Gershwin, Mozart. É pintada: Cézanne, Vermeer. É filmada: Antonioni, Vigo. Ou é vivida, e se torna a arte de viver: Srebenica, Mostar, Sarajevo. A regra quer a morte da exceção. Então a regra para a Europa Cultural é organizar a morte da arte de viver, que ainda floresce. Quando for hora de fechar o livro, eu não terei arrependimentos. Eu vi tantos viverem tão mal, e tantos morrerem tão bem.

8 Ibid. 9 Ibid. 10 Ibid.

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Em António Um Dois Três há uma necessidade de falar de amor como um ato de

resistência frente à morte, à frustração das relações que terminaram mal, à ausência de

dinheiro numa cidade com altas taxas de desemprego jovem e à própria crise do fazer

artístico, no sentido de apresentar uma narrativa que diz “apesar de... vive-se aqui”.11 À

maneira de Lubitsch, cujas narrativas também nascem dos encontros e confrontos entre sexo e

dinheiro, o filme fala de um rapaz que constrói, através da mentira e do teatro, uma maneira

de se reinventar, e tal reinvenção é capaz, inclusive, de furar realidades. António é um artista,

por construir uma obra artística, mas também por viver. A vida não é só matéria para

construção de uma obra de arte. A vida em si é a obra de arte.12

11 Em crítica para a revista Cinética, o crítico Filipe Furtado escreve sobre o filme Bárbara, de Christian Petzold, que narra a história de uma enfermeira alemã que tenta ultrapassar a barreira entre as duas alemanhas na década de 1970: “O que torna, porém, Barbara um grande filme é a sua recusa de se encerrar no museu de época que acomete tantos passeios por regimes totalitários, e a consciência que o filme exibe de que, a despeito de todos os problemas, há pessoas que vivem e seguirão vivendo ali. Barbara não é um filme que pergunta ‘como vivem aqui?’, mas um que afirma ‘vive-se aqui’, o que é algo completamente diferente. [...]. As imagens encontram imenso prazer na paisagem local (as caminhadas de bicicleta da protagonista, seu encontro furtivo com o amante da Alemanha Ocidental), assim como o filme exibe uma atenção para cada pequeno gesto genuíno que sublinha o quão poderosos estes pequenos momentos podem ser”. Disponível em: <http://www.revistacinetica.com.br/barbara.htm>. Acesso em: 15 de Novembro de 2016. 12 Barthes (2009, p. 373) apud Brecht: “Toda arte contribui à maior arte de todas. A arte de viver”.

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3 I PUT A SPELL ON YOU

“De onde parto? Do objeto que quero expressar?

Da sensação? Parto duas vezes?”

(Robert Bresson)13

Entre os primeiros escritos do projeto que se transformaria em António Um Dois

Três estava o seguinte parágrafo:

Parto do corpo de um rapaz, nem tão novo nem tão velho, no interior de um quarto. Talvez esse corpo tenha acabado de acordar, e talvez a luz do sol penetre o aposento. Quando penso nele, nesse rapaz, penso por vezes no Chaplin encarnando Charlot, apesar de não imaginá-lo em demasiado silêncio, nem que se comunique por pantomimas. Penso no Chaplin talvez porque a figura do Charlot, e deste rapaz que imagino respirando, existindo, sejam igualmente vivazes, e que o quadro os contemple de corpo inteiro, talvez para tentar captar essa vivacidade. E que esses corpos não tenham pudor de se contorcer, caminhar, pular, se mover. E que haja uma simplicidade enorme no enquadramento destas figuras, que os vejamos da maneira mais direta, tentando captar a força de suas presenças no interior destes quadros14.

Havia desde então a convicção de que o filme precisava não só de um intérprete;

um ator capaz de falar e mover-se pelas intenções evocadas num guião (já que não havia à

partida um guião). Havia, na verdade, a convicção no caminho inverso ao processo natural de

escolha de elenco. Gostava de me sentir convocado por um modo de falar, um modo de se

mover, para que então surgisse um filme. Antes de haver um roteiro, antes mesmo de haver

uma história, existia uma convicção de que este filme, à maneira como estava sendo

elaborado, deveria ter como ponto de partida uma pessoa. Eu, enquanto diretor, poderia

oferecer a essa pessoa, esse ser movente cheio de pensamentos sobre si e sobre o mundo,

possibilidades de estar em cena. Teria de pô-lo em ação. Minha função era a de ser um

calígrafo; já o ator seria a própria matéria escrita.

A primeira vez que vi Mauro Soares foi numa fotografia: deitados num piso de

madeira, um garoto e um cachorro olham-se nos olhos. O garoto sorri; o cachorro, quem sabe.

13 BRESSON, Robert. Notas sobre o cinematógrafo. Porto: Porto Editora, 2003. 14 MOURAMATEUS, Leonardo. Texto inédito. 2014.

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A cena invoca alguns sentidos. Leveza, embriaguez, humor. Mas também certo

estranhamento. Olhar nos olhos de um cão, tratá-lo como gente, agir como um. Apesar dos

dois corpos estarem estáticos, não é estagnação que a imagem invocava. A fotografia, posada,

parece ter surgido segundos após o gesto de deitar do rapaz. Ou parece ser um instantâneo de

uma brincadeira entre um animal doméstico e o seu dono. Uma amiga chega a me dizer que o

padroeiro das crianças é o mesmo padroeiro dos bêbados. A imagem possui a qualidade de

sintetizar a relação, já notada por Merleau-Ponty15, que há entre infância e animalidade.

Não consigo ser preciso no que me atraiu na fotografia, que foi tirada por uma

amiga, Carolina Thadeu, que atua como Sara em António Um Dois Três. Sua ternura? Certa

paz e bom-humor? A beleza da composição e dos animais enquadrados? O olhar trocado entre

cão e humano? Ou, na verdade, todas as possibilidades que surgem de um enquadramento, de

uma fotografia que anuncia tudo o que poderia um filme?

Bresson tem uma série de aforismos sobre seus “modelos” que poderiam caber

muito bem aqui. Eis um deles: “Modelo, belo por todos esses movimentos que não faz (que

poderia fazer)”.16 Cheguei até esta foto devido a um acaso muito semelhante aos muitos que

surgem no filme. E essa imagem resistiu a tal ponto que gerou um desejo, e depois um

impulso. Desejo de encenar aquela presença numa narrativa. Transformar afeto em obra.

Imagem em Cinema. Tentei revivê-la nos momentos finais de António Um Dois Três,

contextualizando-a numa cena inspirada pela mansidão e pela diversão da fotografia tirada

por Carolina. Pus em cena algo que aquele corpo me inspira, com a intenção de que essa

minha sensação se reconstruísse nos espectadores que irão assistir à cena posta. É justamente

esta mise-en-scène que faz a ponte, no cinema, entre a criação de um mundo e a presença de

um ator.

No artigo “O que é a mise-en-scène”17, o diretor e teórico francês Alexandre

Astruc afirma que o realizador cinematográfico cria as condições para que seus temas e

modos surjam em cena, mas que não são estes que obcecam o artista. Para ele, seria

15 “O mundo se oferece também aos animais, as crianças, aos primitivos, aos loucos que o habitam à sua maneira, que também coexistem com ele, e hoje vamos observar que, ao reencontrar o mundo percebido, tomamo-nos capazes de encontrar mais sentido e mais interesse nessas formas extremas ou aberrantes da vida ou da consciência, de modo que, por fim, e o espetáculo do mundo e o do próprio homem que recebem um novo significado”. MERLEAU-PONTY, Maurice. Conversas. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 33-40. 16 Ibid. 17 ASTRUC, Alexandre. O que é a mise-em-scène? In: Cahiers du Cinéma, n. 100, outubro de 1959, p. 13-16. Traduzido por Matheus Cartaxo. Disponível em: <http://focorevistadecinema.com.br/FOCO4 /mis eenscene.htm>. Acesso em: 10 nov. 2016.

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justamente o próprio ato de pô-los em evidência, o próprio ato de criar, “Algo que ele

conhecia desde sempre, mas que ele não pode se impedir de verificar”.18

Para Astruc, a mise-en-scène (a partir de agora traduzida aqui como encenação) é

uma maneira de dar a si mesmo o espetáculo da criação deste mundo. “O artista procura, lá

onde ele pensa poder achá-las, as condições de sua criação”. No caso de António Um Dois

Três, é no corpo mesmo do ator que isso acontece. Explicando de outra maneira: se minha

obsessão pelo filme é no modo como o corpo do ator cria histórias e desenvolve, a partir da

ação, uma ou diferentes versões de um mesmo personagem, eu deveria fazer com que, no

filme, o personagem se transformasse justamente num ator. O filme António Um Dois Três

aponta, assim, para uma dobra sobre si mesmo. Uma fita de Moebius.

Figura 1 -Mauro Soares e Hegas

Fonte: Carolina Thadeu (2014)

Astruc não responde em seu artigo à pergunta que lhe dá título, “O que é a misé-

en-scéne?”. Diversos outros críticos e teóricos vão se perguntar o mesmo, nunca chegando a

um consenso. O que há em comum em todos eles, no entanto, é que a encenação é um

princípio estético fundamental ao cinema. Um dos artigos-base sobre a encenação no cinema,

“Sobre uma arte ignorada”19, de Michel Mourlet, é explícito quanto a isso, mas também o é na

importância que dá ao ator na construção da encenação.

18 Ibid. 19 MOURLET, Michel. Sobre uma arte ignorada. Tradução de Luiz Carlos Oliveira Jr. Disponível em:

<http://arqueologiadocinema.blogspot.pt/2009/05/sobre-uma-arte-ignorada_18.html> Acesso em: 10 nov. 2016.

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Em Mourlet, encenação pode ser resumida como a “[...] disposição dos atores e

dos objetos, os seus movimentos no interior do quadro”. Seu pressuposto é singular porque

declara de maneira pioneira (1949) e ousada que até então o cinema foi mal avaliado, e

transforma em equívocos tanto “[...] os manifestos da época do cinema mudo que

consideravam o cinema a arte da imagem ou da montagem, quanto as afirmações recentes que

aproximavam o cinema da matéria literária”.20 Para Mourlet, o centro e a origem dessa

encenação é o ator. Ele explicita sua fascinação pela presença do ator enquanto ferramenta

principal na construção da ação cinematográfica. Parece claro que a encenação, feita de

quadro, movimento, duração, centralidade etc. só é possível graças à “abertura” dada pela

presença física do ator em cena, pela sua gestualidade e pulsão. Tão melhor a encenação quão

melhor o diretor orquestrar essas qualidades do ator em relação aos elementos de linguagem

cinematográfica.

A proximidade mais aguda do corpo do ator veiculará as assombrações e a vontade de sedução, engendrando uma direção de gestos raros, uma arte da epiderme e das entonações de voz, um universo carnal – noturno ou ensolarado. Não uma demonstração, uma sentença, o suporte sacrificado de uma operação superficial do intelecto, mas a linha melódica, com seus crescendos, suas pausas, suas irrupções, movimentos secretos do ser, nos concernindo ao mais vivo de nós mesmos pelas vias do perigo e da exaltação.21

Mourlet encontra no ator e na sua relação com o cenário, em sua presença física

nos espaços que habita, o ponto de chegada único ao cinema, que o difere sobretudo das

demais linguagens. 22

A imagem-embrião de António Um Dois Três, o sorriso, o olhar, o gesto de

permanecer deitado, encarar um cão, enfim, todas as emanações da presença física de Mauro

serviram de matéria-prima inicial para a construção de um “personagem” que catalisa em si o

catálogo natural de disposições físicas do próprio ator. É da primordial relação minha com os

atores, e deles entre si, que os “personagens” são criados, e por isso mesmo, dramaturgia.

Dentro do círculo de Mauro, um melhor-amigo torna-se melhor amigo dentro do filme.

Dentro do meu próprio círculo pessoal, uma garota brasileira se transforma na garota

20 AUMONT, Jacques. O cinema e a encenação. Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2008. 21 Ibid. 22 Em reportagem para TV alemã durante a rodagem de seu primeiro longa-metragem, Jean Marie Straub diz: “A

cena que rodamos ontem, a Variação Goldeberg 25, executada pelo Sr. Leonhardt ao cravo, é uma tomada muito simples em close-up. Nós começamos com as mãos dele, muito simples, no teclado, e subimos até seu rosto e as mãos permanecem fora de quadro, e continuamos focando em seu rosto. [...]. Algo está acontecendo em seu rosto que, para mim, seria um puro momento cinematográfico”.

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brasileira desconhecida do filme. Não são relações óbvias, fáceis. Há aí uma fé em estabelecer

relações entre pessoas, objetos, cenários, cortes. Uma fé de que no interior desses

cruzamentos surja um filme. Encenar também é fazer essas escolhas iniciais. Responder por

onde se começa um filme.

Parti de um corpo. O corpo de Mauro. De seu olhar, de suas histórias, de sua voz.

Um exemplo disso é a cena em que António canta I put a spell on you no largo do Carmo, que

surgiu de uma outra, presente num espetáculo de teatro em que Mauro cantava Ces gents la,

de Jacques Brel. Quando Mauro canta Jacques Brel, ele não está somente a cantar. A máscara

de Brel – intérprete de canções de matizes assumidamente teatrais, às vezes satíricas – sobre o

rosto de Mauro fixa nele um élan de cancioneiro, de artista de feira popular que antes eu não

identificara. António é Brel, mas também é Homero; também é Baal. Num gesto tão simples

quanto caminhar, pular e se mover, Mauro/António desperta todo um imaginário possível.

Estabelece conexões entre sua voz e a memória. Utilizando-me de um gesto que antes

presenciara, assim como na reconstrução da fotografia com o cão, o ponho a cantar. António

canta em busca de algumas moedas, mas ao mesmo tempo canta sobre amor, e o faz porque

viu outro cantar antes dele. Paixão e presença. Sua voz ressoa no quadro e para fora dele. E

quando ele olha para a câmera (num movimento que depois se repetirá, mas agora dirigido

para Débora, na terceira parte do filme), ele olha para o espectador mesmo, e diz: “Eu estou

aqui”. Espera-se, assim, que a imagem tenha alcançado, ainda que só por um instante, o

estado que um dia foi evocado por Mourlet, quando escreveu:

O ponto de chegada do cinema, [...] consiste em despir o espectador de toda distância consciente para precipitá-lo em um estado de hipnose mantido por um encantamento de gestos, de olhares, de ínfimos movimentos do rosto e do corpo, de inflexões vocais, no seio de um universo de objetos radiantes, injuriantes ou benéficos, onde alguém se perde para se reencontrar engrandecido, lúcido e apaziguado.23

Este trecho poderia muito bem descrever, de maneira absolutamente honesta, o

instante em que o amor acontece.

23 Ibid.

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4 SORTE NO JOGO

“O primeiro argumento de um filme é o seu

orçamento.”

(Gustavo Dahl)24

O cinema surgiu a esteira da Revolução Industrial. Apesar do apelo popular, o

aparato técnico possuía um valor alto, que compensava sua tecnologia, mas também sua

novidade (algo que sobrevive nos dias de hoje, com câmeras com capacidades, resoluções,

velocidades e preços sempre maiores). Esse pressuposto econômico, cunhado primeiramente

com algum grau de ingenuidade, serviu para alimentar um dos dogmas mais difíceis de serem

quebrados. O que diz o cinema, o verdadeiro cinema, só pode ser feito dentro de uma certa

forma, obedecendo a uma determinada linha de concepção, feitura e distribuição, associando

cinema a uma arte essencialmente cara.

A maneira mais óbvia de deslegitimar os métodos de produções alternativos, tema

geral deste capítulo, foi associando a forma ficcional-narrativa a orçamentos maiores. Só é

possível contar histórias se houver dinheiro. Quantos menos dígitos o orçamento de um filme

tiver, se filme houver, mais experimental-documental ele há de ser. A origem de tal dogma

data do primeiro cinema. Basta pensarmos que a criação da gramática cinematográfica —

com o close, a elipse, a montagem paralela, elementos fundamentais para a solidificação de

um dispositivo ficcional-narrativo - aconteceu em sintonia com o estabelecimento da

indústria. A história é contada de maneira bastante simples, e irônica, por Godard em

Scénario du film Passion:

Então o cinema que copia a vida, que veio da vida, representa a vida, começou com um roteiro não escrito. Você colocava as coisas num carro, como Mack Sennett, e começava a filmar. Você tinha um amigo fantasiado de policial, uma garota enfeitada como uma banhista, um jovem rapaz fazendo o amado. Você tinha êxito, então você elaborava. Cada dia custava dinheiro. O contador perguntava para onde o dinheiro ia. E ele escrevia: Banhista, 100 francos. Policial, 50 francos. Namorado, 3 dólares. Então gradualmente isso se tornou: ‘Um policial se apaixona por uma banhista, sendo afugentado por seu namorado’. A contabilidade deu origem ao roteiro, originalmente só uma nota de dinheiro a ser gasto.

24 Aforismo atribuído a Gustavo Dahl parafraseando um “crítico italiano comunista” desconhecido, como

descrito na apresentação da mostra “Cinema de Garagem”. Disponível em: <http://www.cinemade garage m.com/2012/curadoria.html>. Acesso em: 10 nov. 2016.

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Mesmo a categorização que separa ficção do documentário e do cinema de caráter

mais experimental serviu mais a indústria do que ao Cinema. Quem, de maneira provocativa,

resumiu isto foi o realizador Pedro Costa, em conferência na Universidade de Tóquio:

No começo do século, em 1900, estavam, de um lado, os primeiros diretores que escreveram ficção e os roteiros diziam o quanto custavam as coisas – era realmente econômica a história de amor, ou uma comédia romântica, ou um melodrama. Do outro lado, havia os diretores que filmavam sem roteiro, que também filmaram histórias de amor, quero dizer, o gesto de amor num filme erótico ou pornográfico, porém sem roteiro. [...]. O que interessa aqui é que documentário e ficção no cinema nasceram ao mesmo tempo, com a mesma ideia de amor. Exceto que, por um lado, começou como uma espécie de economia, que depois se tornou uma indústria, e então uma necessidade; tornou-se uma lei de mercado.25

O trabalho de Pedro Costa nos dá um dos melhores exemplos, atualmente, de

forma alternativa de produção, em combinação com um desejo ficcional que surge sobretudo

dos elementos ditos documentais. Ele também é um bom exemplo de como um modo

“franciscano” de produzir não é de modo algum obstáculo para sua arquitetura fílmica. É,

antes, justamente o contrário.26 A seguir, na mesma conferência, o realizador conta sobre tal

estratégia, e como esta vincula-se à própria criação do cinema:

No começo do século, houve pessoas que foram bem-sucedidas em incidir alguma ficção no documentário e um pouco de documentário na ficção e, consequentemente, um pouco de dinheiro na esfera privada e um pouco da esfera privada no dinheiro. Podemos dizer que os primeiros diretores foram aqueles que sintetizaram os filmes de ficção e documentário, ou seja, que criaram uma síntese entre o quase privado – o filme documentário –, realizado em sua própria esquina, numa aldeia, em casa, e o filme feito em público, em que se mostrava tudo. Essa síntese entre o público e o privado aconteceu com Griffith, que realizou um filme de guerra que era também um filme pornográfico.27

É somente a partir dos cinemas novos que modos de produção alternativos vão

ganhar evidência. Sob influência do neorrealismo, em meados dos anos 1960 – quando a

barreira entre o público e o privado deixou provisoriamente de existir, ou melhor dizendo, 25 COSTA, Pedro. Uma porta fechada que nos deixa a imaginar. In: O cinema de Pedro Costa. Catálogo da

mostra homônima no Centro Cultural Banco do Brasil, setembro de 2010, p. 147. 26 “Thom Andersen, cineasta americano, profesor y amigo, presentó una vez la película (Cavalo Dinheiro)

afirmando que hay en ella una idea de respeto, de no traicionar a esa clase social, a esa gente con la que trabajo. Pero también decía que la película presenta una solidaridad distinta, inédita, nunca vista. Y puede ser cierto. Trabajamos con la idea de no traicionar, no sacrificar nada ni nadie. Forma y fondo han de corresponderse, y el dinero es el menor de nuestros problemas. Hay que romperse la cabeza para encontrar la solución cinematográfica que no traicione esa solidaridad, esa cosa a la que me cuesta poner nombre. Y hay mucho esfuerzo puesto en esa película, me gusta que se vea el trabajo, el esfuerzo, la dificultad, la decência”. Disponível em: <http://www.elespanol.com/cultura/cine/20160922/157484483_0.html>. Acesso em: 10 nov. 2016.

27 Ibid.

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quando após a Segunda Guerra Mundial o cinema passou a ser construído em cima de ruínas,

casas sem paredes, países sem bandeira –, e com o auxílio de uma tecnologia mais barata e

portátil, as nouvelles vagues espalharam-se pelo mundo.

O cinema se tornou uma máquina pesada, dispensiosa, distante e artificiosa. A utopia do cinema direto, depois da nouvelle vague e dos primeiros filmes de John Cassavetes, é a de (re)familiarizar o cinema. Levá-lo de volta à simplicidade de seus inícios, misturando-o com o ordinário da vida. [...]. Com a câmera na mão e os microfones mais leves, a ferramenta se adapta ao corpo, a técnica se torna roupa, a máquina tende a se tornar prótese. Tudo isto – máquina mais leve, menos rígida, menos técnica, mais barata, mais fácil de ser manipulada, transportada, financiada – se traduz ao mesmo tempo por uma subversão dos modos de fazer instituídos, por um descarte dos monopólios de produção, por uma banalização, enfim, do gesto cinematográfico.28

No começo da década de 2000, com o barateamento e a melhoria das câmeras

digitais e com a circulação repentina de um catálogo de filmes raros, perdidos, ou demasiado

recentes através da pirataria cibercinéfila, o fenômeno do filme de baixo orçamento fez

explodir uma série de movimentos em países distintos, como China (Quinta geração), Estados

Unidos (Mumblecore) e Brasil. Tal fenômeno, posterior ao cinema da retomada dos anos

1990, despertou uma nova geração para o cinema e desencadeou, no Brasil, pelo menos três

relevantes acontecimentos: A criação de cursos superiores e escolas técnicas de cinema; o

fortalecimento de pólos alternativos de produção (Recife, Fortaleza e Belo Horizonte), longe

do monopólio do eixo Rio-São Paulo; e a multiplicação de festivais de cinema como

alternativa para o escoamento e circulação dessa produção.

A alcunha posta nessa produção – Novíssimo Cinema Brasileiro – não contempla

de maneira assertiva o fenômeno, porque não se tratou de um movimento homogêneo, visto

que os criadores desses filmes variavam entre cineastas amadores, coletivos artísticos, artistas

visuais, e realizadores autorais), nem interessou os realizadores que começaram a produzir,

nessa época, a escrita de um manifesto de caráter estético-político como um dia o fora o

Estética da fome, de Glauber Rocha29, para o Cinema Novo Brasileiro. As causas e efeitos

desse fenômeno ainda estão a produzir vasta bibliografia no Brasil. Exemplos disso são o

28 COMOLLI, Jean-Louis. Ver e poder: a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo

Horizonte: Editora UFMG, 2008. p. 109. 29 Disponível em: <http://www.tempoglauber.com.br/t_estetica.html>.

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ensaio de Cesar Migliorin, intitulado Por um cinema pós-industrial30, os artigos de Denilson

Lopes31, além do catálogo da mostra Cinema de Garagem32.

Minha entrada no bacharelado em Cinema, ainda em Fortaleza, coincidiu com o

auge deste fenômeno, em 2010. Neste mesmo ano produzi meus primeiros filmes de curta-

metragem. Contudo, ao mesmo tempo em que considerava que o caráter da minha produção

(feitas com câmera emprestadas e filmadoras de baixa resolução) uma alternativa à

precariedade da infraestrutura, sentia-me convicto de que era justamente devido a isso que eu

estava fazendo os filmes mais fiéis ao meu próprio modo de vida, mais fiel àquilo que estava

ao meu redor, não somente em termos de dramaturgia, mas também em termos de produção.

Explicando de outro modo: a maneira como aqueles filmes eram produzidos, com

câmeras fotográficas e com atores que eram amigos que também eram atores não era a única

possibilidade de fazer estes filmes – eu poderia esperar e aplicar em editais as histórias que

tinha em mente –, mas a urgência destas histórias exigia também uma urgência dos meios de

produção, e nesse ponto dramaturgia e produção se uniam. Em Charizard, por exemplo, um

casal pobre ocupa a casa de um casal de classe média e utiliza o local para dar festas. É foi

justamente isso que foi feito para que se pudesse construir o filme: utilizar uma casa de classe

média e ali fazer um filme e uma festa. Outro exemplo está em Lição de esqui, em que dois

amigos encenam uma briga no supermercado onde trabalham para conseguir o dinheiro do

seguro. Num dos pontos altos do filme, o ponto de vista parece ser de uma câmera de

segurança que filma os amigos a brigar. Talvez tenha sido para esta câmera que a briga de

Sândio e Victor foi feita. Nesse curta-metragem, que dirigi com Samuel Brasileiro33, há um

gesto de autorreflexão sobre precariedade, desespero e amizade que espelha nosso próprio

sentimento de viver na cidade de Fortaleza. Lição de esqui foi meu único filme financiado por

edital. Falo aqui somente dos curtas de ficção, já que nos documentários isso é levado ao

limite. Em A festa e os cães34, por exemplo, as fotografias tiradas por uma câmera fotográfica

de plástico durante sua limitada existência são a própria coisa a ser filmada, como símbolo da

30 MIGLIORIN, Cesar. Por um cinema pós-industrial – Notas para um debate. In: Revista Cinética. Disponível

em: <http://www.revistacinetica.com.br/cinemaposindustrial.htm>. Acesso em: 10 nov. 2016. 31 LOPES, Denilson. No coração do mundo. São Paulo: Rocco, 2012. 32 Evento ocorrido em 2012 no Rio de Janeiro que compilou uma parte desta produção que fora exibida em festivais de cinema 33 Samuel Brasileiro, director brasileiro. Seu primeiro longa, “O Animal Sonhado”, foi exibido em festivais como a Mostra de Cinema de Tiradentes. 34 Curta-metragem de caráter documental estreado em 2015 no Cinéma du Reél, Paris. No filme mãos passam uma série de fotografias sobre uma mesa. As fotografias registram o cotidiano de jovens fortalezenses, a agitada vida noturna e a presença de cães nas ruas do subúrbio da cidade. O filme começa sendo narrado. As narrações se transformam em diálogos após a entrada de outros narradores. No fim o dispositivo muda ao vermos dois primos conversarem a respeito de uma música que é tocada no quarto de um deles.

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minha partida e da chegada à vida adulta do meu grupo de amigos. Já não há câmera; é

preciso construir um novo modo de viver. Nos meus filmes de curta-metragem o meio de

produção é matéria para a dramaturgia, e vice-e-versa.

Não é à toa que em António Um Dois Três a produção, o roteiro e as escolhas de

encenação não tenham se dado de maneira separada, nem mesmo paralela, mas sim misturada.

A primeira proposta oferecida a Miguel Ribeiro, produtor do filme, era construir sem

orçamento, a quatro mãos, três curtas-metragens com um mesmo personagem, tendo como

inspiração as comédias de Chaplin ou Tati. Se os três filmes teriam alguma conexão, isso

ainda não estava claro, porque o mais importante era respeitar a autonomia de cada um dos

segmentos, como um mundo coeso, que em contato com os outros segmentos, ou mundos,

pudesse multiplicar seus respectivos significados. A estrutura de produção criada, com

segmentos filmados a cada seis meses, tinha como mote desenvolver cada uma das peças num

dos semestres do mestrado, a fim de discutir e reestruturar o projeto a partir daquilo que já

tínhamos.

Isso deixaria, portanto, para a futuro a decisão das curtas-metragens, juntas,

produzirem uma única longa-metragem. Além disso, facilitaria para a equipe técnica termos

poucos e concentrados dias de trabalho a cada seis meses pois essa equipe, toda voluntária,

poderia organizar-se em seus outros afazeres. No caso de termos algum desfalque, teríamos

tempo para conseguir substituições. Assim como no filme muda-se de casa, vai-se morar no

porão de teatro e canta-se na rua por algumas moedas, movidos pela insistência e pelo desejo

do presente. António, o personagem, era um tipo de espírito jovem um tanto selvagem que

estava presente na alma da equipe; em Aline Belfort, que vinha da Rússia com seu

equipamento de filmagem para gravarmos o filme, ou em Deborah Viegas, que vinha do

Brasil para fingir ser Débora, uma garota que durante o filme inteiro está em processo de

mudança, indo ou voltando.

Após a filmagem e montagem do primeiro segmento, decidiu-se que o filme já

não seria feito por curtas-metragens independentes, mas um filme de longa-metragem

tripartido, por se aproximar de maneira mais generosa da poética que buscávamos, de dobras

possíveis, realidades paralelas, nunca legitimando nenhuma delas como verdadeira. Isso nos

aproximava dramaturgicamente daquilo que era o próprio filme, uma reestruturação a cada

seis meses das peças que tínhamos. Um bom exemplo disso é o uso dos espaços no filme,

como no caso do apartamento de Mariana, que mudou nas três partes do filme. Em termos de

produção, mudou porque não conseguimos emprestado o mesmo local a partir do segundo

segmento; em termos dramatúrgicos, mudou por ser uma boa maneira de demonstrar como

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António não consegue reconhecer direito o local após voltar à casa da ex-namorada depois de

meses sem estar ali, dando uma “piscadela” para a possibilidade de os personagens

suspeitarem que há realidades correndo em paralelo. Talvez ao espectador esse tipo de

elemento quase não interesse; trata-se de uma espécie de subtexto. Mas para a produção era

importante que soubéssemos disso e, assim, estivéssemos todos em sintonia sobre como o

filme usa o “erro”, a descontinuidade como matéria criativa.

O segundo exemplo disso é a imagem da Rua do Benformoso, por onde António

passa nas três partes do filme, e que se transformou de um segmento a outro de maneira

inesperada, mas “intimamente” esperada, já que a zona sofre dos males da especulação

imobiliária. Por exemplo, a placa de “EM VENDA”, exibida no primeiro segmento, não

estava mais presente no último segmento, nem as pichações presentes na primeira parte,

cobertas com tinta na segunda e presentes novamente na terceira.

Figuras 2, 3 e 4 - Frames de António Um Dois Três

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Fonte: arquivo pessoal do diretor.

O aforismo que diz que todo filme é um documentário sobre sua feitura, que às

vezes é atribuído a Rohmer, às vezes a Rivette, tem sua origem em André Bazin, quando

escreveu que “Todo filme é um documentário social”.35 Bazin, mais conhecido como defensor

da habilidade fotográfica do cinema de reproduzir a realidade, defende que um filme de ficção

conta a verdade, mas mais necessariamente à maneira que o fazem os sonhos.

The realist destiny of cinema—innate in photographic objectivity—is fundamentally ambiguous, because it allows the ‘realization’ of the wonderful. Precisely like a dream. The oneiric character of cinema, linked to the illusory nature of its image as

35 BAZIN, André. Every film is a social documentary. In: Film Comment, v. 44, n. 6, 2008, p. 40-41.

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much as to its slightly hypnotic mode of operation, is no less crucial than its realism.36

Se Bazin continua argumentando em seu artigo que um filme tem como objetivo

satisfazer o desejo das massas, e que essa é a natureza (algo freudiana) inerente ao cinema,

interessa-me sobretudo que um filme exponha esse caráter ambíguo de realidade e de

alucinação.37 Que um filme possa tanto documentar aspectos da paisagem e dos seres que

estão em frente à câmera, conservando aspectos de suas existências e documentado um

processo de criação, quanto que esses elementos contem uma história.

36 Ibid. 37 “Toda imagem deve ser sentida como objeto e todo objeto como imagem. A fotografia representava, pois, uma

técnica privilegiada para a criação surrealista, já que ela materializa uma imagem que participa da natureza: uma alucinação verdadeira.” BAZIN, André. O que é o cinema? In: XAVIER, Ismail (Org.). A experiência do cinema: antologia. Edições Graal: Embrafilmes, 1983. p. 121.

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5 NO CAMINHO DOS CÃES

“Porque nos inquieta que o mapa esteja contido

no mapa e as mil e uma noites no livro As Mil e

Uma Noites? Porque nos inquieta que D. Quixote

seja o leitor de D. Quixote, e Hamlet espectador de

Hamlet? Julgo ter dado com a razão de tais

coisas. Todas estas inversões sugerem que, se as

personagens de uma ficção podem ser leitores ou

espectadores, nós mesmos, seus leitores e

espectadores, podem ser fictícios. Em 1883,

Carlyle afirmou que a história universal é um

infinito livro sagrado que todos os homens

escrevem e lêem e tratam de entender, e no qual

também são escritos”.38

(Jorge Luis Borges)

A obra de Jorge Luis Borges está cheia de labirintos, espelhos e bibliotecas. Em

seus poemas, ensaios e contos, questões teóricas de caráter filosófico e histórico se misturam

com especulações sobre o maravilhoso, as realidades paralelas, os sonhos e a natureza do

tempo. Em Nova refutação do tempo39, Borges gera (entrevê, ou pressente) uma teoria fruto

de toda uma vida consagrada às letras e às perplexidades da metafísica. Berkeley e Leibniz o

ajudam na construção desta refutação. Borges nega “[...] um tempo único, em que todos os

factos se encadeiam”.

Cada instante é um átomo. Nem a vingança nem o perdão nem as prisões nem sequer a olvido podem alterar o passado, que é invulnerável. Não menos vãos me parecem a esperança e o medo, que se referem sempre a factos futuros. Quer dizer, a factos nos ocorreram, a nós que somos o minucioso presente. [...]. Cada momento que vivemos existe, mas não o seu imaginário conjunto. O universo, a soma de todos os factos, é um conjunto não menos ideal do que o de todos os cavalos com os quais sonhou Shakespeare – um, muitos, nenhum? -, entre 1592 e 1594. Acrescento: se o tempo é um processo mental, como pode ser partilhado por milhares de homens, que são, além dos mais, diferentes?40

38 BORGES, Jorge Luis. Novas Inquirições. Lisboa: Editorial Querco, 1984. p. 64. 39 BORGES, Jorge Luis, opus citi, p. 199-219. 40 Ibid., p. 206.

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De forma parecida, Kurt Voneggut cria uma espécie extraterrestre em um de seus

mais famosos romances, capaz de ver em quatro dimensões, em vez de três, ou seja, capaz de

ver e navegar no tempo. O seguinte diálogo está presente em Matadoro 5, de 1969:

— (...) Estamos onde temos de estar neste momento... a 480 milhões de quilômetros da Terra, a caminho de uma distorção no tempo que nos levará a Tralfamador em horas em vez de séculos. — Como... como é que vim parar aqui? — Só um outro terráqueo é que lhe poderia explicar. Os terráqueos são grandes explicadores, explicando porque este acontecimento está estruturado como está, contando como outros acontecimentos podem ser realizados ou evitados. Eu sou um tralfamadoriano, que pode ver o tempo inteiro como o senhor veria uma parte das Montanhas Rochosas. O tempo inteiro é o tempo inteiro. Jamais muda. Não se presta a advertências ou explicações. Simplesmente existe. Examine-o, momento por momento e verá que somos todos, como já disse antes, insetos em âmbar.41

Vonnegut parece concordar com Borges, que por sua vez concorda com Josiah

Royce, filósofo americano citado pelo autor argentino: “[...] todo presente em que algo ocorre

é também uma sucessão”42.

Para Borges43, a linguagem, que é de natureza sucessiva, “[...] não possui aptidão

para pensar o eterno, o intemporal”, atuando de maneira oposta, ou seja, linear. Resta a ele,

através da linguagem, publicar um relato íntimo que descreve uma caminhada ao acaso que

fizera anos antes, quando, ao se deparar com uma rua desconhecida, imaginara estar em “mil

oitocentos e tantos” e estar, naquele instante, “[...] na posse do sentido oculto, ou perdido,

dessa palavra inconcebível, eternidade44”.

O tempo, se é que podemos intuir essa identidade, é uma ilusão. Não podemos distinguir ou separar um momento de seu aparente ontem, e outro do seu aparente hoje; fazendo-o, é quanto basta para o desintegrar. [...]. Mas nem sequer temos a certeza da nossa pobreza, posto que o tempo, facilmente refutável quando entendido no domínio dos sentidos, o não é no do intelecto, de cuja essência parece inseparável o conceito de sucessão. Permanece, pois, na patente irresolução destas páginas, como mera anedota emocional, a entrevista ideia, o momento verdadeiro do estase e a possível insinuação da eternidade de que tal noite se mostrou pródiga.45

Já a mim, resta contar um segredo em relação ao António, o personagem.

Talvez seja o primeiro momento em que o faço nessa dissertação, então, por favor, não o

41 VONNEGUT, Kurt. Matadouro 5. São Paulo: LPM, 2005. 42 BORGES, Jorge Luis. Novas Inquirições. Lisboa: Editorial Querco, 1984. p. 208. 43 Ibid. 44 Ibid. Grifo do autor. 45 Ibid. p. 210-211.

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conte a ninguém. Na terceira parte do filme, quando António olha para cima após ouvir um

ruído que parece ser de um avião, talvez seja essa espécie de epifania que o salta, quando

percebe que talvez ele não vivenciara aquilo da partida da rapariga brasileira pela primeira

vez, mas outras tantas. Talvez por isso António corra, porque ele sente que nesta realidade ele

não vai deixar Débora ir embora. Borges vai se utilizar da famosa frase de Heráclito (pai da

dialética); do pensamento de Borges utilizo-me eu. Borges escreve:

De cada vez que recordo o fragmento 91 de Heraclito, Não entrarás duas vezes no rio, admiro a sua destreza dialéctica, já que a facilidade com que aceitamos o primeiro significado (‘o rio é outro’) nos impõe subrepticiamente o segundo (‘Sou outro’) e nos concede a ilusão de o termos inventado.46

Especulo que seja por isso que cada vez que a realidade do António Um Dois Três

se repete, o personagem António mesmo muda, porque a realidade tem elementos da mesma,

mas agora já é outra. Coincidentemente ou não (que sentido teria a palavra coincidência nesse

ensaio?), utilizo, no filme, uma paródia do escritor hondurenho Augusto Monterroso para a

frase de Heraclito, que percorre caminhos distintos, mais subversivos, mas chegam no mesmo

ponto: “Quando o rio é lento e se conta com uma boa bicicleta ou cavalo, sim, é possível

banharmo-nos duas (e até três, consoante as necessidades higiénicas de cada um) vezes no

mesmo rio”.47 Borges, quando fala sobre coincidências, ou sobre banhar-se duas vezes no

mesmo rio, por sua vez diz: “[...] esses momentos idênticos, não serão o mesmo momento?

Não bastará um único termo repetido para dissipar e confundir a série do tempo? Os leitores

apaixonados de Shakespeare não serão, literalmente, Shakespeare?”.48

5.1 DOBRAS

Há um poema de Roberto Bolaño que ilustra bem a intercessão de dois momentos

para dentro de uma mesma espécie de realidade. O poema, chamado “Amanecer”49, fala sobre

um poeta sozinho em sua casa, enquanto lá fora, nos subúrbios, um jovem rapaz vê tratores

construindo edifícios.

46 BORGES, Jorge Luis. Novas Inquirições. Lisboa: Editorial Querco, 1984. p. 207. 47 A citação de Monterroso é utilizada por Roberto Bolaño na epígrafe de A literatura nazi na América, um livro,

espécie de romance, que compila biografias imaginárias de escritores panamericanos fascistas. A citação aparece, aqui, como uma espécie de alerta sobre o círculo vicioso da barbárie na América e no mundo. Em António Um Dois Três, a citação tem um relevo mais literal, isto é, sobre uma realidade passível de ser repetida.

48 Ibid., p. 207. 49 BOLAÑO, Roberto. La universidad desconocida. Barcelona: Anagrama, 2007. p.16.

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Créeme, estoy en ele centro de mi habitación esperando que llueva. Estoy solo. No me importa terminar o no mi poema. Espero la lluvia, tomando café y mirando por la ventana un bello paisaje de pátios interiores, con ropas colgadas y quietas, silenciosas ropas e mármol en la ciudad, donde no existe el viento y a los lejos sólo se escucha el zumbido de una televisión en colores, observada por una família que también, a esta hora, toma café reunida alrededor de una mesa: créeme: las mesas de plástico amarillo se desdoblan hasta la línea del horizonte y más allá: hacia los subúrbios donde costruyen edifícios de departamentos, y un muchacho de 16 sentado sobre ladrillos rojos contempla el movimento de las máquinas. El cielo en la hora del muchacho es un enorme tornillo hueco con el que la brisa juega. Y el muchacho juega con ideas. Con ideas y con escenas detenidas. La inmovilidad es una neblina transparente y dura que sale de sus ojos. Créeme: no es el amor que va a venir, sino la beleza con su estola de albas muertas.

A imobilidade do tempo e um céu prestes a desabar fazem com que o poeta

imagine e encontre um jovem rapaz, talvez ele mesmo aos 16 anos de idade, a quilômetros de

distância de onde o poeta mais velho está. Ante a imagem do jovem poeta, ansioso com

ideias, imagens fixas ou a espera por um amor ainda ausente, o poeta mais velho escreve,

preservando na escrita seu traço de serenidade, que dali a pouco algo aparecerá ao mais novo:

a beleza, talvez em forma de poema, talvez em forma de chuva.

De maneira parecida, em António Um Dois Três, Susana (Sofia Dinger) fala um

poema de Nicanor Parra (“Aromos”)50, que narra o encontro com um amigo numa rua onde

com árvores em flor.

Paseando hace años Por una calle de aromos en flor Supe por un amigo bien informado Que acababas de contraer matrimonio. Contesté que por cierto Que yo nada tenía que ver en el asunto. Pero a pesar de que nunca te amé —Eso lo sabes tú mejor que yo— Cada vez que florecen los aromos —Imagínate tú— Siento la misma cosa que sentí Cuando me dispararon a boca de jarro

50 PARRA, Nicanor. Aromos. Disponível em: <http://cvc.cervantes.es/literatura/escritores/parra/antolog ia/aro

mos.htm>. Acesso em: 10 nov. 2016.

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La noticia bastante desoladora De que te habías casado con otro.

Cada vez que o poeta sente cheiro das acácias, ele revive o mal-estar. Mas se

tivermos em consideração o pensamento de Borges, não se trata de uma rememoração a la

Proust, mas, antes, realidades que se tocam e entram em loop. Da mesma maneira, quando

Johnny (Daniel Pizamiglio), em António Um Dois Três, vê a linha de luzes da cidade de

Lisboa para além do Tejo e fala do seu antigo amor, é a voz de Débora que termina a história,

como se ela tivesse narrando o que aconteceria consigo e com António caso ambos tivessem

se encontrado nesse universo, afastados pela distância entre países, ou simplesmente porque

Débora é uma espécie de probabilidade, de amor em potencial, que ganha voz nessa cena.

O material literário e teórico aqui presente não foi inserido de maneira pensada,

como peças de um enigma, como um conjunto de influências manobradas e inseridas no

roteiro do filme. Não nego em momento algum a influência da poesia e da sensibilidade de

Parra, Bolaño, Monterroso, Vonnegut e Borges, mas me parece que, após tanto ler esses

autores, no momento da construção de um filme como António Um Dois Três, suas ideias e

imagens surgem de maneira natural no tecido do filme, como um dia Berkeley e Leibniz

foram para Borges na escrita de seus contos metafísicos. Quando me descubro relendo um

poema de Bolaño ou de Nicanor Parra que me dão pistas sobre o meu próprio fazer, mais do

que chaves para abrir a obra ao entendimento – algo inútil –, é entre as árvores que um dia

eles criaram que me ponho à sombra. E descubro que antes e depois de mim sempre houve e

haverá quem se pergunte: ao invés de quem sou eu, quem sou eu agora?

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6 O TEATRO DAS MATÉRIAS

“Tous les films sont sur le théâtre, il n'y a pas

d'autre sujet.”

(Jacques Rivette)

A primeira vez que vi Sofia Dinger foi numa curta-metragem. O filme51 era um

registro de uma performance/improvisação filmado por André Lage num espaço que eu viria

a conhecer depois, o Atelier Re.Al, de João Fiadeiro, onde o coreógrafo oferecia workshops

de seu método de composição. O registro foi gravado neste mesmo espaço e apresenta Sofia

durante alguns minutos a falar com os companheiros de workshop enquanto ouve um áudio

que ela mesma fizera tempos antes com o pai, tentando ensiná-lo a canção Lullaby, de Tom

Waits. A maior parte do filme enquadra seu rosto; rosto que sorri e chora enquanto ouve o

registro do pai aprendendo a cantar a canção.

Por uma série de coincidências Sofia reapareceu na minha vida. Amiga de amigos,

parecia-me não só bom como necessário que ela tivesse um pequeno papel no filme que

desenvolvi em Lisboa, António Um Dois Três, depois que aqui vim morar. A partir desse

contato, descobri que Sofia havia feito um monólogo tempos antes, no qual ela divide a cena

– graças aos efeitos de uma projeção de vídeo – com Jean Renoir, o diretor francês,

responsável por dezenas de filmes de diferentes gêneros, como A regra do jogo, Passeio ao

campo e O rio sagrado. Tais filmes são unidos por um apelo estético preciso que combina

teatralidade e cinema, com experimentações estéticas pioneiras e uma direção de atores

moderna.

No dia 20 de setembro conversei por Skype com Sofia Dinger, que faz Susana em

António Um Dois Três, sobre, entre outras coisas, Jean Renoir. Não sobre seus filmes, mas

sobre seu modo de encarar o mundo, que está em seus filmes.

LEONARDO ...Eu não sou teórico e é justamente por isso que a gente está tendo essa

conversa agora. Porque eu queria pensar essa dissertação não como uma carta

descrevendo como foi o processo do filme. Ou uma maneira de explicar, um manual de

instruções do filme. Decifrando toda a lógica dele, que eu mesmo não sei. Eu queria que

essa dissertação fosse um bom acompanhamento pro filme. Mas sobretudo eu queria que 51 Lullaby, de André Lage, 2011.

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essa dissertação fosse um António Quatro, outra versão do filme. Mas talvez nem quatro

seja, talvez seja António Zero. Porque vai estar lá escrito um monte de desejos, que

balizaram a criação do filme mas também a construção dele.

SOFIA É uma prequela.

LEONARDO É, pode ser. Eu tô gravando nossa conversa.

SOFIA Que medo!

LEONARDO (Risos) Quando eu pensei em fazer esse capítulo contigo jamais pensei numa

entrevista mas sim uma conversa sobre cinema e sobre vida. Sobre Renoir (informação

verbal).52

Segundo o Dictionnaire du cinema53 dirigido por Jean-Loup Passek (2001, p.

3994), a filiação de Jean Renoir a seu pai, o pintor impressionista Auguste Renoir, sempre lhe

significou muito. Ao pintor o diretor deve “[...] sua sensibilidade, sua cultura, sua filosofia de

acordo com o mundo (‘A vida é um estado, não um negócio’), sua estética (‘Eu sou um

homem do século XIX e eu preciso da observação como ponto de partida), sua integração

social...”. Em 46 anos de carreira (entre 1924 e 1970), Jean Renoir alcançou, pelos “jovens

turcos” da Cahiers du Cinema, o status de maior cineasta francês ainda vivo.

Com diferentes fases e com uma carreira prolífica, não é fácil definir um “estilo-

Jean Renoir”. Há preocupações, interesses, mas sobretudo uma filosofia, um modo de olhar e

fazer. Raymond Durgnat, em seu livro sobre Renoir54, escreve que o diretor parece sugerir em

seus escritos e entrevistas que “respeita a palavra ‘arte’ numa frase como ‘a arte da medicina’

mas considera suspeita a palavra arte com uma inicial A”. Para Renoir, “A consciência do

rigueur deve servir ao artista assim como para qualquer prática em qualquer ofício. A única

diferença é que a arte tem como papel a interlocução entre o coração e as almas das pessoas”.

A fala de Renoir “[...] se refere simples e naturalmente a vida e arte como aspectos uma da

outra”.

52 Trecho de conversa via Skype entre Leonardo Mouramateus e Sofia Dinger. 53 PASSEK, Jean-Loup. Dictionnaire du Cinema. Paris: Larousse, 2001. 54 DURGNAT, Raymond. Jean Renoir. Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1974. p.4.

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Concebo então um roteiro que acho perfeito e me dou conta de que esse roteiro não corresponde à realidade viva e que a realidade viva só pode ser abordada com minha colaboração, talvez minhas discussões, talvez minhas querelas, talvez minhas brigas terríveis, com os atores, com o câmera, com o operador, com todo mundo! Dessa espécie de debate é que nasce a matéria viva do filme.55

Pergunto à Sofia qual a relação dela com o Cinema.

SOFIA Antes tudo sou uma pessoa que vê muito cinema. E encontro no cinema uma espécie

de companhia. Uma espécie de lugar quando preciso estar comigo e ao mesmo tempo não

me sentir sozinha. Fazer eu não fiz muita coisa ainda, então me vejo no sítio da pessoa

que está do lado de cá do ecrã. Há realizadores como o Renoir, que literalmente... e isso

vai te parecer exagerado, mas ele quase que me salvou a vida, Leonardo. Porque eu

estava mesmo mal, e claro que eu não me ia matar, mas a ideia de morte me passava

muito pela cabeça naquela altura. Não que eu fosse fazê-lo. Porque eu tive um tio que se

matou. Então eu sei o que significa pelo menos para minha família o que é uma pessoa

matar-se. Então sei todas as consequências, pra uma família... Nessa altura da minha vida

eu tava mesmo com muita falta de lucidez. E foi ao ver os filmes do Renoir, e

principalmente ao ler o que ele disse, que eu lentamente voltei a confiar. Eu criei com ele

(e ele obrigatoriamente não é meu realizador favorito, mas é aquele com quem me

comprometi de uma maneira mais profunda)... Ele foi meu amigo, durante dois anos.

Porque obriguei-o completamente nos filmes dele, naquilo que ele escrevia, no que ele

pensava. Então eu posso dizer que minha relação com cinema, numa das piores alturas da

minha vida, fez com que eu sentisse muita vontade de estar aqui. Como é que ele diz?

‘Eu amo muito a realidade porque ela me concede alegrias infinitas.’ E foi com essa frase

que ele me conquistou. Foi esse o começo de tudo. Porque eu estava a precisar ler essa

frase.

LEONARDO Mas como isso começou? Com um livro? Um filme? Ou uma série de

coincidências...

SOFIA Eu tinha sido convidada para a noite do manifesto no (Teatro) Maria Matos. Na

proposta eles convidaram uma data de pessoas e nós tínhamos 10 minutos para fazer um

manifesto. E o único critério é que não podia ser lido por nós. Tínhamos de usar o

55 RENOIR, Jean. O passado vivo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1991. p.84.

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material de outra pessoa: um político, um ensaísta, um escritor... e como tu eu não sou

uma teórica, minha ideia de política tem muito mais a ver com os gestos do dia-a-dia, a

minha personalidade não é muito impositiva. Eu aceitei aquilo porque falar um manifesto

não era nada óbvio, mas em quem eu iria me encontrar de maneira tão transparente que

eu pudesse dizer que era aquilo que eu acreditava? Foi muito complicado, mas um amigo

me presenteou com o texto de uma entrevista dada pelo Renoir. E depois, a partir daqui,

por coincidência, um outro amigo me emprestou um DVD com um documentário:

‘Preparação do ator por Jean Renoir’56. Então, se eu iria usar as palavras dele, seria ele a

ensaiar-me. Pus-me, portanto, no lugar da atriz.

No momento da conversa Sofia está na Bélgica, eu no Brasil. Cinco horas nos

separa. Nossa conversa é toda cheia de pequenos fragmentos de histórias, e muitas risadas.

Existe uma profunda afinidade entre nossas maneiras de pensar, apesar da maior parte do

tempo estarmos em lados distintos de um mesmo dispositivo. E há para além disso um

profundo respeito de ambos pelo entusiasmo que é depositado no ato de trabalhar, e que

encontra comunhão no pensamento feito Cinema de Jean Renoir.

André Bazin foi um dos críticos mais entusiastas da obra e do pensamento de

Renoir. Seu livro póstumo dedicado ao diretor (fruto do trabalho de François Truffaut, que

coordenou a compilação de anotações e áudios inacabados e fragmentados, e de materiais

dispersos em jornais e revistas) clarifica a importância desse no estabelecimento das bases

teóricas do crítico. A ideia de cinema impuro, por exemplo, parece ter saltada diretamente dos

filmes do cineasta francês. Outro momento em que Bazin parece encontrar em Renoir

inspiração para suas teorias é quando o crítico expõe o peculiar método de escolha de elenco

do diretor:

Renoir não escolhe seus atores, como é feito no teatro, por sua adequação ao papel que vão interpretar, mas sim por aquilo que, como o pintor, sabe que serão capazes de nos mostrar. Por isso os melhores momentos de interpretação têm em seus filmes uma beleza quase indecente, a memória que se conserva deles é pouco mais do que o seu brilho, um brilho que nos obriga a baixar os olhos. O ator é colocado além de si mesmo, surpreendido em uma espécie de nudismo essencial que não tem nada a ver com a expressão dramática e que constitui, sem dúvida, a luz mais decisiva que só o cinema, juntamente com pintura, pode, entre todas as artes, jogar sobre o corpo humano.57

56La direction d’acteur par Jean Renoir, de Gisèle Braunberger, 1969.57 BAZIN, André. Jean Renoir: Periodos, Filmes y Documentos. Barcelona: Paidos Iberica, 1999. p.181.

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LEONARDO Existe qualquer coisa no modo dele de olhar e de fazer que é muito específico

e que somente alguns diretores se aventuram nesse lugar, somente alguns atores, porque

é um lugar muito instável. Tem muito mais a ver com um modo de agir em relação ao

mundo do que de fato um método.

SOFIA Eu acho que tem muito a ver com o modo de viver. Porque o que sinto em relação a

ele, também o modo como eu o construí, e também aquilo que me faz muito ligada a ele,

e que eu acho que transparece de maneira muito vibrante na maioria dos filmes dele... ele

tem uma história muito engraçada, que ele vê-se como um homem que comprou um

buquê de flores para dar à mulher que ama, e no caminho ele vai a preparar o discurso

todo, e na verdade o que ele vai dizer é completamente diferente de tudo aquilo que ele

preparou. Mas o ele ter se preparado apesar de tudo, vai ajudar a que aquele momento

seja honesto. Eu adoro essa ideia, porque ele diz outra coisa maravilhosa, que é muito

difícil ser honesto quando estamos sozinhos. Que só os grandes escritores conseguem

fazer isso. Ele precisa dos outros para aceder à sua profunda honestidade.

SOFIA Ele sempre deixava a porta do estúdio aberta, que é para a vida irromper. Claro que

isso é uma imagem também...

LEONARDO É uma imagem do estúdio, mas é uma imagem que aparece muito nos filmes

dele, janelas, portas, câmeras que entram e saem por portas, e como as coisas se

transformam, o que é íntimo vira público, e uma briga familiar vira uma questão da

cidade... e é bonito como o pensamento dele está nos filmes, os filmes exalam aquilo que

foi vivido. Uma das coisas mais bonitas que dos filmes dele é como de repente uma cena

extremamente engraçada e meio patética vira uma tragédia, e o contrário também, as

sequências são muito longas, coisas paralelas acontecem... tudo isso eu gosto não só

porque ele é um grande realizador com uma mise-en-scène absurda, mas também porque

é assim que eu também sinto como é a vida. Algo que me identifico profundamente no

modo como vejo o mundo.58

Paro por um instante para ler um fragmento escrito por Jean Renoir:

58 Trecho de conversa via Skype entre Leonardo Mouramateus e Sofia Dinger.

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“Na natureza, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, disse Lavoisier. Essa constatação genial explica toda a história do mundo. Explica, em todo caso, o processo da chamada criação artística. Então vamos evitar dar ao artista o nome de criador, que só pertence a Deus, e agradecer o dom que tem de transformador. Se ele é grande, transforma não só os elementos necessários a seu modo de expressão, mas também o mundo que o cerca. Em torno de um grande artista “tudo se transforma”. As casas, os animais e os seres humanos, as pessoas que vivem em torno dele, as mulheres que ama, o jardineiro que cultiva seus legumes, o médico que cuida dele, o cozinheiro que o alimenta, o carteiro que traz suas cartas, a natureza inteira, tudo acaba se parecendo com ele”59.

Depois continuo:

LEONARDO Eu tinha preocupação no António Um Dois Três que o fazer artístico e o

cotidiano de um diretor de teatro como o Johnny fossem realidades coladas uma à outra.

No começo o Johnny quer dar um novo fim a sua relação com o ex-namorado através de

uma peça de teatro, mas ele descobre através do contato com as pessoas, com o amigo

iluminador António... ele percebe que a vida dele – não só a peça de teatro – deve ir pra

outra direção. Ele só consegue ser honesto com seu próprio trabalho quando ele é honesto

consigo mesmo.

SOFIA É com os outros que ele aprende a ser honesto consigo mesmo. [...]. Eu acho que nós

todos temos quebras, fendas como o Fitzgerald fala, eu acho mesmo que aceder a essas

fendas por muito que doa... há algumas que são só efusões de bem-estar e de prazer, há

algumas que te obrigam a ir a desertos, mas eu acho que indo profundamente nesses

desertos, habitando esses desertos, se estraçalhando nesses desertos para depois voltar,

acho que é também uma forma de homenagear o tempo que vives. Tem a ver com Renoir,

uma ideia de liberdade em tudo o que carregas contigo, uma forma de exercer essa

liberdade de maneira absoluta, em mostrares tua alegria mas também tua dor. Ele falava

que no fundo é encontrares tua forma de expressão, seja a ser um padeiro, seja a ser um

pintor... Ele odiava portas feitas por máquinas porque elas não tinham erro. Numa porta

feita à mão, ele conseguia ver nas linhas da madeira a expressão da alma que a tinha

feito. A expressão da alma vê-se nos erros.

LEONARDO O cinema me proporciona uma possibilidade de vida, de estar junto, e de fazer

que nenhuma outra coisa me proporciona. Uma das coisas mais fortes que me falaram

sobre cinema não foi um diretor que me disse, mas foi o João Fiadeiro, numa época em

que ele estava em crise com seu trabalho em dança, ele me disse numa conversa que na

59 RENOIR, Jean. O passado vivo. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1991. p.170.

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dança as coisas desapareciam rapidamente, e no cinema as coisas duravam um pouco

mais. Eu ouvi com ênfase a essa expressão um pouco mais. O cinema não dura para

sempre, não é eterno, nem mesmo dura muito. O que resta é o trabalho, o momento

presente em que estamos juntos a trabalhar neste filme, a encenar, montar e exibir.

SOFIA Tu fala isso e eu lembro de histórias. O Renoir também tem toda uma entrevista sobre

isso. Sobre como as pessoas têm a ilusão de que o cinema é eterno, quando não é, ele diz

esqueçam isso! Até fisicamente vai desaparecer. Portanto esqueçam essa ideia de

eternidade, faz-se cinema melhor sem isso, vive-se melhor sem isso.

SOFIA Eu gostei das coisas como ocorreram. Porque eu te senti muito no equilíbrio entre tua

epifania, tua dramaturgia, mas ao mesmo tempo muito atento a todos imprevisíveis que

nós trazíamos, e a deixar que esses imprevisíveis ganhassem corpo no trabalho. Porque

como atriz sentes-te valorizado no que és, porque essa pessoa convidou-me por que eu

sou eu e é exatamente isso que ele quer. Por um lado, há um compromisso muito grande

em fazeres alguma coisa contigo mesma, e ao mesmo tempo há uma confiança que tu já

existe.

LEONARDO Tem uma frase do Rohmer que eu penso muito enquanto dirijo. ‘Realizar bem

é simplesmente não matar o que se filma’. O cinema coloca muitas etapas e elementos

entre o que há na frente da câmera e o filme pronto. Há a câmera, a luz, o som, a edição, a

projeção... a cada um desses elementos, aquilo que havia de vivo fica mais distante.

Como fazer com que esses elementos façam parte, sejam constitutivos, e que eles não são

obstáculos, que a vida continua. Diferente da pintura ou do teatro o cinema tem muita

tralha. E quanto mais você aproxima a experiência vivida da experiência projetada,

melhor.60

Antes de começar a fazer cinema, antes mesmo de começar a estudá-lo, compartilhava

com meus amigos (principalmente com aqueles que dividia os ensaios do teatro e o dia-a-dia)

que mesmo que eu não viesse a fazer filmes de maneira profissional, gostaria de poder filmá-

los, e com eles improvisar as mais variadas histórias. E que quando fossemos idosos, e

tivéssemos não muito mais do que a nós mesmos, pudéssemos nos divertir ao assistir juntos

60 Trecho de conversa via Skype entre Leonardo Mouramateus e Sofia Dinger.

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todos aqueles filmes mal-acabados, mas que registravam da maneira mais genuína possível a

nossa vida juntos. Pois, no fim das contas, até que fui feliz. Fiz filmes que tive vontade de fazer. Fiz com pessoas que eram mais que colaboradores, eram cúmplices. Está aí, acho, uma receita de felicidade: é trabalhar com gente de quem se gosta e que gosta de você. A vantagem de ter 80 anos é que se tem muita gente para gostar.61

61 RENOIR, Jean, opus cit, p. 182.

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7 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A arte do cinema é dar aos lugares e aos actores (até se se lhes dá um texto ou se existe um guião muito trabalhado) uma certa liberdade. Dito de outra maneira, a arte do cinema - coisa, de certa forma, muito simples - é não matar o que se filma62.

Eric Rohmer

Como aproximar a experiência vivida da projetada? Como aproximar a experiência

escrita da filmada? Como fazer um filme como quem propõe uma alternativa ao atual estado

das coisas? Como fazer cinema se estamos rodeados por tantos problemas de gravidade muito

maior? Como fazer filmes de amor como quem faz filmes políticos? Como fazer um filme?

Durante boa parte da concepção de António Um Dois Três me perguntei sobre como

ser fiel às angústias das diversas crises da atualidade. Qual era o sentido de fazer um filme

com um modo de encenação bastante transparente. Me perguntei se aquela seria só mais uma

história centrada num indivíduo, com angústias um bocado egoístas. Mas ao estar em contato

com meus amigos, com as pessoas que fizeram o filme, percebia imediatamente que essas

histórias deviam ser contadas porque essa história não era só minha ou de António.

Redescobria que nenhuma história era simples o suficiente para não ser contada, ou banal o

suficiente para não ser política, e serena o suficiente para não ser urgente, e que sobretudo são

as histórias pequenas as que tem maior dificuldade de serem encenadas, porque ninguém

parece ver nelas matéria suficiente para algo de 95 minutos de duração.

Algumas perguntas se repetem desde que fiz meu primeiro filme de curta-metragem.

São elas mesmas o estímulo maior para fazer um próximo trabalho, e um outro depois desse.

São pouco mais do que perguntas retóricas, mas são sobretudo um reconhecimento de que o

cinema não se encontra fechado, e entre tantos filmes possíveis há aqueles que estão à espera

de serem feitos, nem que seja para mais uma vez pôr em cena o namorado, a namorada e o

policial, e renovar em quem faz e em quem vê uma alternativa à vida que se leva. Mais

importante do que encontrar as melhores respostas é fazer a si mesmo melhores perguntas, e

essas eu encontrava com as pessoas com as quais trabalhei (sim, como um dia falou Renoir, é

muito difícil ser honesto consigo mesmo quando se está só). Perguntas bem mais simples, e

que pareciam resumir-se a: “E agora António?”, parafraseando Carlos Drummond de

62 Rohmer, Eric. Conte d'Hiver. In: Cahiers du cinema, nº 452, Fevereiro, 1992. Disponível em: http://cine-resort.blogspot.pt/2012/10/conte-des-quatre-saisons-por-eric-rohmer.html. Acesso em: 11 de novembro de 2016.

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Andrade, um poeta que parece ter feito uma casa na linha que liga seu próprio coração ao

coração do mundo.

António vai até a casa da ex-namorada, dali vai parar no porão de um teatro, e depois

canta no Largo Camões em busca de algumas moedas para tomar um café, a seguir ele já é

um iluminador, e após algum tempo o ator de uma peça..., há ali perto sempre uma rapariga a

dormir, mas ela não é uma bela adormecida, é mais como se ele fosse um sonho dela. António

é sempre outro para ser o mesmo, o rapaz que encontra em meio a angústia que a maior parte

do tempo está fora de campo, remetida no filme, uma estratégia de sobrevivência, como o

Charlot cozinhando o próprio sapato.

A presente dissertação, com a intenção de ser lida como mais uma realidade do filme

António Um Dois Três, dissertou sobre como a criação de mundos é uma necessidade do

artista frente à barbárie do mundo, e ao mesmo tempo um ato de resistência. Depois,

descreveu-se uma ideia de mise-en-scène a partir de uma realidade concreta, e do ator

protagonista do filme. A produção, e sua estreita relação com a criação dramatúrgica e de

direção, é um aspecto abordado no capítulo seguinte. Após isso, verificou-se em poemas de

Bolaño e Nicanor Parra uma afinidade com uma teoria de Jorge Luis Borges que elimina as

barreiras entre passado, presente e futuro, e que vai encontrar ecos em António Um Dois Três.

Por fim, em conversa com uma das atrizes do filme, Sofia Dinger, falou-se sobre Jean Renoir,

e sobre vida e Cinema como realidades complementares.

Numa outra realidade do filme um rapaz acorda em seu quarto após um sonho. Nesse

sonho havia um casa pedindo emprestado um leitor de vídeo para a vizinha de baixo. Quando

essa vizinha empresta ao casal o leitor de vídeo fala que há uma fita presa dentro, e que caso

consigam consertá-lo até poderiam ficar com o aparelho. Depois vemos a vizinha ouvir o

barulho da cama a ranger no andar de cima. O sonho acaba no rosto da vizinha, entre

comovida e irritada com o barulho que a cama do casal faz.

O rapaz que sonhou conta tal história para um amigo e para outro. Eles riem e gostam

da imagem. O rapaz que sonhou, que é diretor, trata de juntar uma imagem com outras que ele

coletou (alguém enrolado num edredom – tirada de uma tarde de outono; alguém que dorme

num trem – tirado de um romance de Kawabata; alguém que canta na rua – tirada das

caminhadas da cidade; alguém que diz pra ele para aprender a perder...), e escreve um

conjunto de diálogos, em português brasileiro, que dali a pouco virarão palavras do português

de Portugal.

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Pouco a pouco um filme é feito, com as cores básicas que a vida oferece, com quase

nenhum dinheiro, com fragmentos de conversas, e situações talvez um pouco dramáticas mas

sempre bem-humoradas.

Mas talvez esse rapaz seja só o sonho de um outro rapaz, alguém que dorme dentro de

um cinema.

E quando esse novo rapaz acordar com os aplausos da plateia e for para rua, sentirá no

corpo a violência com que o dia lhe golpeia.

E nesse momento ele sentirá uma ternura imensa por todas as coisas.

Lisboa, Novembro de 2016

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