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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Estudos Urbanos, área de especialização em Antropologia, realizada sob a orientação científica do Professor Doutor José Mapril.

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Dissertação apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção

do grau de Mestre em Estudos Urbanos, área de especialização em Antropologia,

realizada sob a orientação científica do Professor Doutor José Mapril.

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Aos meus pais

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AGRADECIMENTOS

Prelúdio

Na praia do Bico do Mexilhoeiro, tentando disfarçar o encontro imaginado com

a senhora que agora observo pela primeira vez, aproximo-me e pergunto-lhe,

conversando com cuidado:

- Esta casinha está aqui há muito tempo, não está? - reparo com simpatia. - Está

sim, eu nasci aqui - responde-me a senhora em contentamento, enquanto varre o

chão da sua casa autoconstruída.

Sem saber ainda muito bem como prolongar a conversa, a chuva do instante incita

de seguida o encontro, de maneira inesperada.

- Está a chover. Venha! Entre, esteja à vontade. Maria da Conceição, prazer. -

convida-me.

São três da tarde, não obstante o dia escuro. Entro, ao mesmo tempo que tiro as

botas já molhadas. É uma casa quente, sem grandes enfeites, apesar da fragilidade da

sua construção. Daquele momento, que de modo espontâneo se sucedeu à chuva e à

impossibilidade de encontro com um dos meus informantes, nasceu uma hora de

conversa sobre os tempos da CUF, da pesca e das dificuldades.

Despedi-me da Terra do Nunca em agradecimento e a saber que, da experiência

partilhada, aprendemos a contar com o que é inesperado.

[Diário de campo, Lisboa, 26 de Janeiro de 2018].

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Fim do prelúdio

Assim como este prelúdio, baseado num excerto do meu diário de campo,

também o processo de investigação e escrita desta dissertação se revelou um momento

de mutualidade entre pessoas e um criar de mundo entre observadores, nas viagens das

quais fiz parte.

Agradecer é o momento de não perder estas viagens. Em troca e em

continuidade. Por isso, não posso deixar de relembrar todos aqueles que, de uma forma

ou de outra, foram criando comigo uma experiência que se anunciou já antes do

trabalho, e que contribuíram de forma decisiva para este fim, que é também o princípio.

Sem elas, esta dissertação tornar-se-ia muito mais incompleta e, em algumas situações,

até pouco provável.

Por isso, em primeiro lugar, quero agradecer aos que continuam lá, nas praias

fluviais do Barreiro: ao Sr. Viriato e ao Sr. Dias da Silva, um obrigado pela simpatia e

pelas histórias; a todos os apanhadores que conheci, e que, de diferentes maneiras,

foram sendo mencionados ao longo desta dissertação, devo a confiança nas partidas,

mas também nos regressos.

Pela partilha e orientação incansáveis desde o princípio, um agradecimento

especial ao meu orientador, Professor Doutor José Mapril. Devo-lhe não só o rumo

crítico e sincero, como também o apoio sempre persistente.

Pela disponibilidade e pelas histórias, um especial agradecimento ao fotógrafo

Nuno Andrade.

Pela amizade, um grande obrigado às Professoras Doutoras Paula Godinho, Rita

Cachado e Inês Pereira.

Ao Jannis, agradeço os conselhos e as conversas de tantas horas.

Não menos importante, à minha família. Foram eles que me ensinaram que,

muitas vezes, o que nos prende a um lugar, situação ou estado de alma é essa tão grande

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coisa chamada “motivação”. Por isso, nunca deixaram de saber, apesar das minhas

dúvidas.

A todos os outros, um abraço.

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RESUMO

A TERRA DO NUNCA: UMA ETNOGRAFIA SOBRE CONVIVIALIDADES,

DIVERSIDADE E (IN)FORMALIDADE NA CIDADE DO BARREIRO

SARA MARISA DA COSTA ARANHA

PALAVRAS-CHAVE: Antropologia urbana, (In)formalidade, Convivialidades,

Precariedade, Apanha da amêijoa

Na Margem Sul do Rio Tejo, a apanha de bivalves (ostras, amêijoas,

caranguejos e, mais recentemente, amêijoa-japonesa) representa uma estratégia comum

de sobrevivência. A Terra do Nunca é uma casa autoconstruída de antigos pescadores

localizada na Praia fluvial de Alburrica, Barreiro, que nos evoca narrativas urbanas

sobre como as populações foram "empurradas" para certos setores do mercado de

trabalho. Essas oportunidades de rendimento informais têm sido praticadas por vários

segmentos da população, particularmente por mulheres e jovens negros migrantes,

população cigana, residentes autóctones com baixos rendimentos ou desempregados e

antigos pescadores locais. Com base num estudo etnográfico, esta dissertação pretende

descrever as convivialidades quotidianas em torno de atividades informais numa

paisagem pós-industrial, e os processos por detrás de espaços de diversidades comuns.

Parte-se dos conceitos desenvolvidos por Nina Glick Schiller e Ayse Çaglar

sobre “displacement” e “emplacement” (2016). Segundo as autoras, as situações de

“displacement” não ilustram apenas os fenómenos de deslocação para outros países

(incluindo as mobilidades entre fronteiras), ou para outras cidades. Estão ainda

relacionadas com as manifestações atuais de precariedade, onde os residentes locais –

migrantes ou não – acabam por partilhar situações de desemprego, baixos rendimentos,

ou trabalhos precários a tempo parcial. Como resposta a estas contingências, as formas

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de “emplacement” são definidas nesta dissertação como sociabilidades através das quais

os que partilham uma mesma condição de precariedade recriam novas redes,

encontrando, assim, novas oportunidades de pertença à cidade e a oportunidades de

rendimento que lhes permitam subsistir. Estas estratégias de rendimento são aqui

observadas em situações de acumulação de trabalhos formais e informais, e mapeadas a

partir de um percurso etnográfico pelas praias fluviais do Barreiro. Uma descoberta

interessante é a importância das redes sociais (comerciais e não comerciais) na

capacidade de gestão dos negócios em torno da apanha da amêijoa, que dependem de

uma forte dinâmica local e transnacional.

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ABSTRACT

NEVERLAND: AN ETHNOGRAPHY ON CONVIVIALITIES, DIVERSITY

AND (IN)FORMALITY IN BARREIRO CITY

SARA MARISA DA COSTA ARANHA

KEYWORDS: Urban Anthropology, (In)formality, Convivialities, Precarity, Clam

digging

In the Southern Margin of the Tagus River, bivalve harvesting (oysters, cockles,

crabs and, more recently, of Japanese clams) represents a common strategy of survival.

A Terra do Nunca or Neverland is an informal settlement for fishermen located in Praia

de Alburrica, Barreiro, and it evokes urban narratives about how populations have been

"pushed" into certain sectors of the labor market. These informal income opportunities

have been practiced by various segments of the population, particularly by migrant

black women and young people, gypsy population and local white low-income and

unemployed people, and older local fishermen. Based on an ethnography, this paper

intends to describe these everyday convivialities around informal activities in a post-

industrial landscape and in the process unearth commonplace diversities.

The terms developed by Nina Glick Schiller and Ayse Çaglar on "displacement"

and "emplacement" are useful (2016). According to the authors, displacement situations

do not only illustrate forced mobilities to other countries (including cross-border

mobility) or to other cities. They are also related to the current manifestations of

precariousness where local residents - migrants or not - end up sharing unemployment

situations, low -incomes opportunities, or precarious part-time jobs. In response to these

contingencies, the strategies of emplacement are defined in this dissertation as

sociabilities through which those who share the same precarious condition recreate new

networks in order to find a new way of belonging to the city and income opportunities

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that allow them to subsist. These income strategies are mediated here in situations of

accumulation of formal and informal jobs mapped from an ethnographic route along the

river beaches of Barreiro. An interesting finding is the importance of social networks

(commercial and non-commercial) in the management of clam digging businesses

depending on strong local and transnational dynamics.

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ÍNDICE

AGRADECIMENTOS 2

RESUMO 5

ABSTRACT 7

Capítulo 1: Introdução 10

1. 1. Prólogo na Terra do Nunca 12

1. 2. O ofício do antropólogo urbano 14

1. 3. Viajar para regressar: uma etnografia de bicicleta e as condições de produção do

conhecimento 20

1.4 Esquema de dissertação 26

Capítulo 2: A terra, o rio, a gente 28

2. 1. Prelúdio na Praia de Palhais 28

2. 2. A cidade do Barreiro no tempo e no espaço 31

2. 3. Convivialidades e diversidade na cidade (in)formal 42

Capítulo 3: “Ir por outros caminhos”. Nas dobras dos lugares próximos 47

3. 1. Prólogo entre as praias fluviais: um mapeamento etnográfico 47

3. 2. “Estar por conta própria”: Trajetórias e modos de vida 52

3.3 Os “coletores de amêijoa” 54

Capítulo 4: “Colegas sem patrão”. Relação, apanha e quotidiano 61

4.1. Prelúdio da Praia de Palhais até à Praia de Alburrica 61

4.2. Trocas, redes informais e sociabilidades 65

4.3 “As empresas somos nós”: Técnicas e práticas de trabalho 70

4. 4. Epílogo na Terra do Nunca 75

CONCLUSÃO COM FINAL ABERTO 77

BIBLIOGRAFIA / REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 84

GLOSSÁRIO 89

LISTA DE FIGURAS OU ILUSTRAÇÕES 90

ANEXOS 91

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Capítulo 1: Introdução

A presente dissertação nasceu do meu interesse académico e pessoal por

conhecer diferentes possibilidades de vida. Procura ainda compreender de que forma o

capitalismo contemporâneo afeta a reestruturação das cidades, bem como os modos de

vida de certos indivíduos e grupos, levando-os a criar – voluntária e involuntariamente –

novas realidades.

A partir das práticas e sociabilidades em torno da apanha da amêijoa, procura-se

compreender o papel de certos laços sociais nas estratégias de incorporação social e

económica dos migrantes e não migrantes que partilham uma situação semelhante de

precariedade. De facto, ao longo deste trabalho de campo tornou-se clara a dependência

destes apanhadores às suas redes de sociabilidades, que vão muito para além das suas

dinâmicas comerciais1. Estas redes tornaram-se ainda um elemento interessante nesta

etnografia para mostrar/descrever como alguns destes grupos se vão organizando de

forma informal, de maneira também a participar na dinâmica capitalista global2.

Neste sentido, o que se constrói em termos de convivialidades e coabitações

entre pessoas com diferentes percursos e modos de vida que partilham um quotidiano

comum de incerteza, tornou-se a pergunta de partida desta dissertação. A partir daqui,

procurei focar-me nos conceitos, compreensão e intuição que fui adquirindo ao longo

desta etnografia.

Para o trabalho de campo com observação participante, os dados foram

recolhidos e analisados por mim entre Outubro de 2017 e Abril de 2018, durante a

manhã e a tarde3. Sem o recurso a questionários ou a entrevistas direcionadas4, foram

1 Neste sentido, não poderíamos deixar de dedicar alguns pontos desta dissertação aos discursos sobre o

medo e as conversas entre apanhadores sobre os acidentes de trabalho e o medo da morte; ou sobre a

instabilidade financeira ou a dependência das marés e do clima; e ainda os ritmos, técnicas e práticas

partilhadas por todos. 2 Para um estudo aprofundado sobre este tema, é indiscutível a importância do estudo de José Mapril

sobre migrações e diásporas do Bangladesh. (ver Mapril, 2011, p.327). 3 Por limitações que incidiram sobretudo na falta de transportes públicos noturnos entre o Barreiro e

Lisboa, na falta de luz nas praias fluviais ou no facto dos meus gatekeepers nunca estarem presentes de

noite, realizei o meu trabalho de campo etnográfico apenas durante o dia. 4 Mais do que procurar testar hipóteses específicas, este foi um trabalho de campo exploratório, baseado

na curiosidade pessoal em conhecer e aprender sobre o quotidiano de um conjunto de pessoas com idades,

etnicidades e profissões muito diferentes.

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gravadas ao todo sete entrevistas semi-direcionadas5. Por se tratar de um estudo sobre

uma atividade informal, as conversas e os momentos observados foram registados com

um pequeno bloco de notas e com um telemóvel antigo para não chamar a atenção nos

momentos de convívio e de negócio, os quais foram desenvolvidos posteriormente no

diário de campo, no final de cada dia ou durante as viagens de barco. Os percursos entre

as várias praias fluviais – que consistiram em cerca de quarenta visitas ao terreno –

foram realizados quase sempre sozinha e de bicicleta. Para a análise dos dados, dividi as

transcrições e o Diário de Campo pelos seguintes temas: perceção do ambiente; práticas

e técnicas; diversidade; convivialidades; zonas de refúgio; percursos de vida;

industrialização/desindustrialização; ritmos e percursos; redes informais; caracterização

dos informantes; formalidade/informalidade; discursos sobre o medo; metodologia;

sensações; relação homem/natureza; precariedade; práticas possíveis; modos de vida;

oportunidades de rendimento; estado/ação política; solidariedades; migrações e

conflitos.

Não pretendo com esta dissertação descrever nenhum outro quotidiano passado

no rio para além daquele com quem fui aprendendo (Martins, 2015, p.17). Contudo, a

aplicabilidade deste material a outros estudos sobre apanhadores noutras cidades e

praias poderá servir como porta de entrada para um projeto futuro6.

Estes apanhadores têm entre os vinte e cinco e os sessenta anos. São guineenses,

cabo-verdianos e portugueses. Uns têm poucas qualificações escolares, outros têm

habilitações superiores, outros cursos de formação profissional. São empregados de

balcão e de limpezas, técnicos de vending, amoladores, pastores, músicos e pintores

alpinistas. Uns estão desempregados, uns vão acumulando trabalhos, outros são

apanhadores a tempo inteiro. Alguns são solteiros, outros casados. Uns vivem com os

seus filhos, outros não. Uns são só vendedores, outros apenas compradores, e outros são

compradores que já apanharam e foram investindo algum dinheiro no pequeno negócio.

5 Por vontade do apanhador, não me foi possível gravar a 8ª entrevista. 6 Não quero com isto afirmar que o conhecimento sobre o que é a vida para determinadas pessoas (o

conhecimento antropológico) não mereça ser contextualizado num determinado espaço e tempo, e que

devemos subestimar a importância da experiência da “diferença” adquirida no terreno com aqueles que

estudamos num determinado contexto (Pina Cabral, 1991, p.66).

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Por isso, esta etnografia não pretende ser um estudo sobre uma ‘comunidade’: na maior

parte das vezes, estes apanhadores trabalham apenas quando precisam – em pequenos

grupos ou sozinhos – e vendem a quem está próximo ou paga mais7. Uns são bastante

chegados, outros evitam falar e alguns mantêm uma relação estritamente profissional.

Existem, sim, vários momentos de convivialidade e também de entreajuda, que

procurarei relatar nesta dissertação.

1. 1. Prólogo na Terra do Nunca

Num mundo de instabilidade económica, partilhamos uma condição – a da

incerteza. A Terra do Nunca não é apenas uma casa autoconstruída de antigos

pescadores a viver no Barreiro que hoje em dia vivem também do negócio da apanha da

amêijoa-japonesa; a Terra do Nunca simboliza, igualmente, um retrato atual que nos

mostra como algumas pessoas se viram forçadas a criar o seu “próprio ofício”, e para

quem a rápida multiplicação de amêijoas-japonesas se tornou dádiva num mundo global

feito de impermanência. Esta dissertação é um estudo que parte do negócio informal de

bivalves no Barreiro, para explorar os lugares comuns, as aspirações e os medos de

quem vai sobrevivendo numa cidade pós-industrial, sem nenhuma certeza de maior

estabilidade.

Se a relação entre humanos e não humanos é facilmente negociada, a apanha da

amêijoa-japonesa relembra-nos a importância mercantil de certos recursos naturais e

elucida-nos para o atual estado da nossa economia política global. Nos últimos vinte

anos, a amêijoa-japonesa constitui-se como um recurso valioso para centenas de pessoas

ao longo do estuário do Tejo, atingindo as proporções de um negócio lucrativo para os

seus intermediários. Muitos destes apanhadores são imigrantes do leste da Europa,

sobretudo romenos, mas também é possível encontrar muitos de origem guineense,

residentes autóctones e outros vindos de múltiplas regiões de Portugal, como o Alentejo

e o Algarve. Podendo atingir os 12 euros/ quilo, a amêijoa-japonesa tem encorajado

7 Por terem outros trabalhos e horários diferentes, dificilmente foi possível observá-los a todos no mesmo

dia para a apanha.

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vários circuitos informais, representando um recurso económico alternativo para muitos

destes apanhadores.

Muito semelhante a este contexto, Anna Tsing questiona no seu livro sobre a

comercialização dos cogumelos Matsutake: que tipo de economia é esta que propaga

uma ideia de desenvolvimento ao mesmo tempo que os trabalhos precários representam

o único caminho para escapar à pobreza? (Tsing, 2015, p.15). A comercialização da

amêijoa-japonesa mostra-nos uma das muitas possibilidades de vida de quem teve que

seguir “por outros caminhos”, apesar dos sonhos.

Não obstante ter surgido no estuário do Tejo há cerca de vinte anos, ainda não se

conhecem as razões exatas do aparecimento da amêijoa-japonesa neste território.

Espécie não nativa, a sua rápida reprodução caracteriza uma das razões principais para o

gradual desaparecimento de espécies nativas no estuário do Tejo, como a amêijoa-boa e

a amêijoa-macha. Esta “colonização” tem estimulado uma captura e comercialização

intensiva informal8, como a única solução viável face ao desemprego e à precariedade.

Numa realidade onde é possível observar diferentes oportunidades de criação de

emprego e adaptação económica aos lugares, os recursos do rio tornam-se, também por

isso, mercadorias valiosas num contexto de instabilidade económica. Foi neste

enquadramento que me propus realizar um trabalho de campo com observação

participante.

8 Apesar da apanha de bivalves representar uma prática de subsistência económica importante, com

atividades sobretudo ligadas à apanha de ostras, berbigão, amêijoa boa, a lambujinha e a amêijoa-macha

(Ramajal et al., 2016), desde Maio de 2016 que a captura de alguns bivalves é proibida no estuário do

Tejo devido à "presença de fitoplâncton produtor de toxinas marinhas ou de níveis de toxinas ou de

contaminação microbiológica acima dos valores regulamentares" - segundo o Instituto Português do Mar

e da Atmosfera. De forma a evitar impactos na saúde pública, estes bivalves devem ser depurados, um

processo que pode demorar várias horas e para o qual só até há pouco tempo se avançou com o plano de

construção de infraestruturas, necessárias ao tratamento e valorização destes bivalves. No caso concreto

da captura comercial da amêijoa-japonesa, a arte do berbigoeiro é atualmente a única arte autorizada

(IPMA, 2019).

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1. 2. O ofício do antropólogo urbano

A presente etnografia é o resultado de uma relação e perceção com todos os que

têm estado lá, na Terra do Nunca. Espero que a partir das descrições que compõem esta

dissertação seja possível compreender, através de outras formas, algumas destas opções

de vida.

Tim Ingold escreve que observar é esperar e aprender com as pessoas e com as

coisas, em perceção e em prática (Ingold, 2014, p.387). Esta dissertação é também uma

reflexão sobre o que aprendi, apesar de algumas esperas no acesso ao terreno e à vida

destes apanhadores. E esperar é estar atento, de forma a podermos compreender o que

ainda está a ser dado (Ingold 2014, p. 389). Observar é, por isso, participar, e cabe ao

ofício do antropólogo não apenas descrever, mas também compreender as várias

possibilidades de se ser humano numa determinada situação, em construção com os

informantes – um conhecimento baseado nos saberes práticos e nos discursos sobre o

que tem sido a vida para certas pessoas num determinado tempo e espaço.

Esta procura por “fazer mundo” (Martins, 2015, p.17) tem como pano de fundo

também a cultura, ferramenta para (re)conhecermos (todos nós) um mundo que nem

sempre é mercantilizado. É a partir das experiências e saberes (coletivos e individuais),

que os antropólogos aprendem a reconhecer este mundo que é o nosso, num terreno que

é também lugar de encontro. Numa procura por “olhar e escrever” um quotidiano que

não é o nosso, o estudo das técnicas e dos saberes é, por isso, essencial na produção de

conhecimento em antropologia. O saber fazer antropológico é, pois, um trabalho de

partilha com quem observamos, a partir das suas (e nossas) imaginações e práticas.

Contudo, o trabalho de campo não implica, de todo, um processo de tradução, de

tentar descrever uma cultura diferente da “nossa”. Ao invés, cabe antes ao ofício do

antropólogo produzir e alcançar, de forma crítica, um conhecimento sobre as relações

sociais num determinado lugar também “perto de casa” (Pina Cabral, 1991, p.49). Este

conhecimento que o antropólogo produz, a partir do trabalho de campo com observação

participante, resulta, por isso, da experiência da diferença (ibid, p.50) que encontra

pontos de semelhança. Como observa Pina-Cabral:

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Por virtude do mergulho que o antropólogo efetua num novo mundo cultural

determinado, ele é necessariamente forçado a ver a sua própria cultura como

“diferente”; assim, também a sua sociedade se torna um potencial objeto de estudo.

Uma vez instituída no corpo do conhecimento antropológico a experiência acumulada

da “diferença”, ela torna possível a abordagem da própria sociedade do antropólogo

como “diferente. (Pina-Cabral, 1991, p.50).

Esta ideia de “trabalho ao pé de casa” desenvolvida por Pina-Cabral (Ibid., p.51)

é útil para compreender algumas questões metodológicas que têm vindo a preocupar os

estudos urbanos. Se Pina-Cabral afirmou, em 1991, que o processo de estranhamento

próximo de casa não teria recebido ainda a atenção merecida, e que existe sempre algo

que se esconde “por detrás da fachada urbana da homogeneidade” (Pina-Cabral em

Sarró, 2006, p.181), também a antropologia urbana propôs recuperar essa preocupação.

Procurou ainda ir mais além, ao questionar: de que forma é que as pessoas dependem

umas das outras e coabitam num lugar onde a diferença é “banal”? No seu trabalho de

campo em Hackney, no distrito de Londres, Susanne Wessendorf descreve-nos este

estado de “lack of disruptive drama” (2014, p.3), onde os residentes coabitam entre si e

conscientes da sua diferença, apesar do caráter rotineiro da diferença cultural9.

Neste sentido, o ofício do antropólogo urbano relembra-nos ainda as várias

possibilidades do fazer na antropologia da cidade e a importância da relação entre

etnografia e contexto urbano. A antropologia urbana – que viria a tornar-se subcampo

disciplinar a partir da década de 1960, apesar de já contar com vários estudos

desenvolvidos em diversas cidades dos Estados Unidos entre as décadas de 1940 e 1950

(Mullings, 1987, p.2), revelou-se essencial para alargar as possibilidades de análise nos

estudos da cidade.

Como já vimos, apesar dos estudos urbanos desenvolvidos nos EUA terem-se

9 Como iremos observar, a presente dissertação procura explorar também essa “banalidade consciente”,

onde pessoas com diferentes backgrounds acabam por partilhar o quotidiano, voluntária ou

involuntariamente.

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mostrado de grande relevância entre as décadas de 1940 e 1950 para um novo

pensamento antropológico, não foi antes de 1960 que a antropologia urbana se assume

como subcampo disciplinar: a centralidade temática dos estudos sobre pobreza urbana e

etnicidade afirmam, de facto, uma mudança de paradigma para a antropologia, dos

estudos sobre comunidades “distantes” e por vezes descritas como culturalmente

homógeneas, para a complexidade e heterogeneidade de relações sociais que os estudos

da cidade exigiam.

Se, de facto, podemos referir uma origem comum nos estudos urbanos é, sem

dúvida, a Escola de Chicago – influência partilhada tanto por antropólogos, como por

geógrafos e sociólogos. A partir de antecedentes importantes como Marx, Weber e

Durkheim, foram os estudos de Burgess, Park e Wirth que afirmaram as bases teóricas

para o desenvolvimento dos estudos urbanos e dos seus métodos. Neste contexto, os

modelos de análise e desenho introduzidos pela Escola de Chicago que permitiram

adquirir e desenvolver novas perspetivas para pensar o espaço urbano e as relações

sociais, foram, por isso, acarinhadas e utilizadas também pelos antropólogos de forma a

poderem desenvolver trabalhos de campo intensivos que lhes permitissem debater os

processos de descontinuidade entre os espaços rurais e os ambientes urbanos. Desta

forma, a antropologia urbana veio a distinguir-se pelo seu envolvimento nos estudos

urbanos sobre comunidades étnicas migrantes, subculturas urbanas ou ainda no

acompanhamento etnográfico sobre adaptações e estratégias sócio-culturais em

contextos de pobreza e precariedade (Mayer, 1961; Hannerz, 1969; Lewis, 1966 em

Vertovec et al., 1995). Num contexto de crescente urbanização, os antropólogos viram-

se “forçados” a encontrar novas formas para escrever sobre a complexidade das relações

sociais das pessoas a viver nas cidades alargadas10. Desta forma, foi a partir dessa

mudança que conceitos como “etnicidade” se tornaram essenciais para se conseguir

identificar e analisar interações mais complexas da vida urbana.

Contudo, umas das críticas que emergiu após esta tentativa de mudança de

paradigma foi aquilo que Caroline Brettell observa como “a antropologia na cidade e

10 E pressionados a reformular os paradigmas de análise social no momento em que o homem da tribo

(tribesman) migrou para as cidades em crescimento e rapidamente passou a fazer parte dos homens da

cidade (townsmen) (Brettell, 2008, p.130)

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não da cidade”. Numa fase ainda exploratória, em que a antropologia urbana se está

ainda a definir, Jack Rollwagen dedica uma edição especial sobre a antropologia como

contexto, presente no 4º Volume da Revista de Antropologia Urbana11 (1975a, 1975b).

Este volume não surgiu, obviamente, de um acaso. A ideia de “the city as context”

permite-nos enquadrar de uma maneira mais estruturada as décadas entre 1960 e 1970,

onde, de facto, foram produzidos estudos decisivos para o percurso (e futuro) da

Antropologia Urbana como subcampo disciplinar. Mas se os estudos desenvolvidos na

década de 1960 foram importantes para retratar alguns dos rápidos efeitos da

urbanização12, ainda que à escala de bairro ou de um corner – como retratam os estudos

de Liebow (1967), Hannerz (1969) ou Lewis (1968) – o enquadramento histórico e

económico que poderia definir melhor etnicidades e diversidades continuaram a ser

pouco exploradas dentro da antropologia urbana (Mullings 1987, p. 4). Já mesmo na

década de 1980, a antropologia urbana viria a alargar ainda mais os seus interesses e

estudos a questões sobre movimentos sociais e populares (social movements e

grassroots movements), mudanças na organização laboral, ideologias políticas em

“comunidades” étnicas ou efeitos das dinâmicas económicas nas migrações.

Neste sentido, foram vários os autores que começaram a questionar as limitações

metodológicas da antropologia na cidade, que, em parte, ainda subestimava as

dimensões macroeconómicas que poderiam explicar e contextualizar situações de

pobreza urbana, efeitos de urbanização, e processos de declínio urbano – e o que tudo

isso significava para vários grupos minoritários (Mullings 1987, p.2).

No estudo da cidade torna-se, pois, fundamental ter em conta as variáveis

contextuais, recorrendo a fatores históricos, económicos e políticos. Alguns autores

começam, por isso, a propor nos seus estudos formas de estudar a cidade como

contexto, a partir de uma visão de baixo, com observação participante; mais acima, de

forma a analisar as dinâmicas regionais urbanas; e acima, analisando os sistemas

nacionais e internacionais, numa perspetiva “em casca de cebola” mais histórica que

11 No entanto, a ideia de cidade como contexto revelou-se pouco explorada até 1987, ano em que Nancy

Foner retoma a ideia na sua introdução a uma série de ensaios sobre a relação entre urbanização e

migração e o papel dos novos imigrantes na transformação da cidade (Brettell, 2008, p.130). 12 Entre eles, a disparidade suburbano/urbano e a pobreza urbana.

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etnográfica (Cordeiro, 2003, p.10).

Também Caroline Brettell (2000, 2003, 2006) explora a ideia de “cidade como

contexto” para nos mostrar a importância da História na compreensão das migrações e

de que forma as estratégias de incorporação dos imigrantes variam de cidade para

cidade, tendo em conta a própria situação económica e política do lugar de acolhimento.

A partir deste enquadramento, Brettell desenvolve um estudo histórico e antropológico

em diversas cidades de forma a analisar um conjunto de valores (ou ethos urbano) que

moldam a própria vida económica e institucional destes lugares. Estes valores – propõe

Brettell – determinam as possibilidades de incorporação e atitude de acolhimento

perante os recém-chegados.

Desta forma, a “cidade como contexto” possibilita novas ligações entre a história

urbana e a antropologia urbana, em particular no estudo sobre migrações. De facto,

seria-nos impossível compreender os percursos de vida de quem estamos a observar

sem analisarmos os processos de reestruturação das cidades e de que forma estes afetam

as próprias estratégias de sobrevivência e incorporação de certos grupos. Esta questão

remete-nos para o artigo de Owen Lynch (Lynch, 1994) sobre a “cidade pós-industrial”,

que é, antes de mais, um espaço de poder entre cidades globais onde os processos de

desindustrialização de certas cidades significam apenas a industrialização de outras (p.

36). Sob este ponto de vista, também as palavras de Setha Low, em 1999, sobre o

estudo nas cidades pós-modernas, refletem a importância do estudo das cidades como

contexto13:

Theorizing the city, however, is a necessary part of understanding the changing

postindustrial/advanced, capitalist/postmodern world in which we live. The city as a site

of everyday practice provides valuable insights into the linkages of the global capitalist

economy with the texture and fabric of human experience (Low, 2005, p.2).

13 Ver ainda Nina Glick Schiller e P. Levitt. 2006; R. Allen, 2006; Neil Brenner, 1999; Caroline B.

Brettell, 2006; Caglar 2007; Faist, 2000; Faist e Özveren,. 2004; Neil Smith, 1993.

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De facto, pensar a “cidade como contexto” possibilita o estudo de novos

caminhos analíticos para podermos explicar processos de desigualdade e precariedade,

ou ainda fenómenos como a segregação social e a criação de enclaves étnicos dentro de

dinâmicas de poder (Brettell, 2008). Neste sentido, podemos afirmar que o estudo das

sociabilidades tem possibilitado aos antropólogos compreender o papel (ativo) dos seus

interlocutores na criação de estratégias para lidar com os constrangimentos económicos

impostos por estes mesmos processos - migrantes ou não.

Em contextos de forte desigualdade social, as convivialidades assumem, assim,

um papel preponderante não só para redefinirmos conceitos como etnicidade, como

também nos ajuda a contextualizar os percursos e modos de vida, os ritmos e as práticas

de trabalho de quem sobrevive nas cidades, em conjunto, apesar das diferenças. É a

partir destas reflexões teóricas que esta dissertação procura documentar certas formas de

fazer a cidade (Agier, 2011). Por isso, também a forma como escolhi chegar ao terreno e

estar lá determinou a produção de conhecimento etnográfico.

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1. 3. Viajar para regressar: uma etnografia de bicicleta e as condições de produção

do conhecimento

Ilustração 1

Percurso de bicicleta entre as praias do Copacabana, Palhais, Alburrica, Bico do Mexilhoeiro e Barra-a-Barra durante o trabalho de campo. Gps a partir da aplicação mapmyride. Mapa desenvolvido por Jannis Kühne

No campo da literatura sobre métodos e técnicas em Ciências Sociais, é possível

encontrar um conjunto de guias dedicados a temas tão diversos como o acesso ao

terreno (Pratt, 1986), a escolha do terreno (Hammersley e Atkinson, 2007), ou sobre

etnografias em contextos multi-situados (Marcus, 1998; Falzon, 2009). No entanto,

outras possibilidades de análise qualitativa, tais como as formas de andar (Ingold 2008),

são algumas vezes referidas nos diários de campo dos etnógrafos, mas poucas vezes

desenvolvidas em artigos ou dissertações. Como observa Tim Ingold:

No doubt the topic of walking figures often enough in ethnographers'

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fieldnotes. Once they come to write up their results, however, it tends to be side lined in

favour of 'what really matters ', such as the destinations towards which people were

bound or the conversations that happened en route (Ingold 2008, p.3).

Mesmo no caso das etnografias multi-situadas, a literatura sobre o assunto tende

a imobilizar os lugares onde a vida e as relações são observadas. Esta questão tornou-se

pertinente para o campo de análise desta etnografia a partir do momento em que a

preparação das viagens ao terreno, a chegada e os percursos pelas praias durante o

trabalho de campo começaram a ser planeados e realizados em bicicleta. Inicialmente

com um propósito utilitário, o recurso à bicicleta como meio de transporte revelou-se

mais tarde numa ferramenta importante no acesso ao campo: pelos poucos recursos, por

ser prático e económico, e por permitir chegar aos lugares das praias que de outra

maneira não seria possível, muitos dos apanhadores utilizam a bicicleta para transportar

as amêijoas que apanham até ao local da venda, ou para percorrerem as praias fluviais

em busca de zonas mais propícias para a apanha. Os percursos de bicicleta foram quase

sempre realizados sozinha, de praia em praia e consoante as marés. Este método

permitiu-me encontrar “pontos de encontro” (Wessendorf 2014), lugares de convívio14

nos quais a bicicleta se tornou num pretexto central para aceder ao campo com uma

maior naturalidade, sendo até motivo de conversa entre mim e os apanhadores, como

podemos verificar no seguinte excerto do meu diário de campo:

“Olha lá esses travões todos enrolados. Quando vi essa bicicleta nem quis

acreditar, nem sabia de quem era, afinal era tua”. [Diário de campo, 26 de Janeiro de

2018]

Se o objetivo do conhecimento antropológico é também o conhecimento que nos

obrigue a questionar o que é ser humano em todas as suas multiplicidades, e que nos

14 Além disso, permitiu-me conhecer os diferentes percursos de acesso às praias, tão importantes nas

práticas de trabalho dos apanhadores.

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direcione para certos modos “de viver no mundo e de atender ao mundo” (Hastrup,

2004, p.456 apud Mapril e Matos Viegas, 2012, p.517), nesse sentido propus registar

durante quatro meses percursos diferentes em bicicleta que demonstraram o estilo de

vida destes apanhadores – dos lugares da apanha, aos espaços de convivialidade, até ao

lugar onde a amêijoa é negociada e comercializada. Neste sentido, também a

importância da viagem e da forma como chegamos ao terreno pode-nos recordar a

própria dimensão processualista do conhecimento15.

No processo mútuo de produção etnográfica, compreendemos que o acesso ao

terreno depende muitas vezes de imprevistos. Mas em trabalho de campo estes não se

caracterizam apenas por experiências subjetivas passadas pelo antropólogo. Na verdade,

são parte de um processo que implica uma relação de mutualidade e de experiência

partilhada entre o antropólogo e os seus informantes que pressupõe sempre uma co-

responsabilidade e cedências (ibid, p.514). É este caráter intersubjetivo, de influências

mútuas16que sustenta a produção do conhecimento etnográfico, e onde estes imprevistos

encontram também o seu lugar (Mapril e Matos Viegas, 2012).

Foi num desses “imprevistos” que a minha entrada no terreno foi “negociada”

inicialmente com um apanhador, o Z. Apesar das limitações nas gravações e registos

fotográficos com estes apanhadores, foi o Z. que pela primeira vez partilhou comigo as

várias técnicas de trabalho, as ferramentas, os ritmos e percursos que a cada dia se

tornaram mais próximos enquanto investigadora. Um dos aspetos mais interessantes

desta negociação no acesso ao campo foi também o mais difícil – experienciar

pessoalmente a imprevisibilidade da vida das pessoas que observei. Como referi no

diário de campo:

Por volta das 7h30, apanhei o barco mais uma vez sem saber muito bem quem iria

encontrar. A única situação que tinha certa, e que acabou por não acontecer, era que o Z. iria

15 Por dimensão processualista do conhecimento refiro-me à ideia de intersubjetividade na produção de

conhecimento etnográfico em antropologia (ver Pina-Cabral, 1991; Mapril e Matos Viegas, 2012). 16 Onde a própria presença constante dos informantes, que confrontam o antropólogo em trabalho de

campo, determina o próprio processo de comunicação e, consequentemente, a própria pesquisa

antropológica. (Fabian, 2001, p.77 em Mapril e Matos Viegas, 2012, p.516).

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estar no mar entre as 09h e as 12h. Cheguei por volta das 08h30 e decidi ir mais uma vez até à

praia do Bico do Mexilhoeiro. Mais uma vez, não o encontrei. Será que apareceu? É difícil

reconhecê-los ao longe. [Diário de campo, travessia de barco, 15 de Dezembro de 2017].

Ilustração 2

Percurso registado por gps da estação fluvial dos Barcos até Vila Chã a partir da aplicação mapmyride. Mapa desenvolvido por Jannis Kühne

Do constante equilíbrio entre o chegar a “casa” – a Academia – e o Terreno

(Pina-Cabral em Pedroso de Lima, Maria, and Ramon Sarró, 2006), o encontro

etnográfico é, pois, feito também de acasos. Foi num desses momentos que conheci os

meus gatekeepers na Praia do Copacabana: o sr. Viriato e o sr. Dias da Silva.

A negociação do acesso ao campo e a recolha de informação não são fases

distintas do processo de investigação. As limitações e a forma como aqueles que estou a

observar responderam às minhas aproximações revelam dados já por si pertinentes.

Apesar disso, não posso deixar de observar que o caráter ‘informal’ e impermanente

desta prática condicionou o acesso ao terreno. A dificuldade em encontrar os lugares de

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encontro entre apanhadores, foi, desde logo, o problema inicial. De facto, ao contrário

da observação participante em lugares de trabalho fixo, que me dariam uma maior

certeza de poder encontrar um determinado grupo em lugares e horas específicas, a

mobilidade constante nos ritmos de trabalho “traçou” o meu acesso ao campo. Refiro

traçou e não limitou porque aquilo que em etnografia poderá parecer inicialmente um

problema de acesso ao terreno, pode, igualmente, revelar-se uma oportunidade central

para direcionar a minha investigação.

Desde o princípio deste trabalho, procurei observar atentamente as situações que

fui criando e todas as que simplesmente aconteceram. Maria Cardeira da Silva refere

que “a eleição de um terreno não é uma escolha mas a produção de um lugar” (1997,

p.148), lugar de tensões, de negociações, mas também de cumplicidades, onde todos

nós, investigador e sujeitos investigados, observamos atentamente. Ao longo do

trabalho de campo, ouvi muito mais do que perguntei. Não por falta de interesse, mas

porque as pessoas que fui conhecendo partilharam muito mais as suas vidas nas horas

em que “apenas” estivemos juntos – naquelas praias – do que possivelmente me teriam

revelado em entrevistas. De facto, o enquadramento no fazer etnográfico é fundamental

para a produção de significados, a partir das experiências e dos dados recolhidos no

terreno. À exceção do sr. Dias da Silva e do sr. Viriato, pescadores lúdicos e

reformados, todos os nomes aqui mencionados representam as alcunhas referidas pelo

próprio grupo, como “o Casal Maravilha”, “Velho” ou “Maluco” (e que, por essa razão,

se encontram descritas entre parênteses), ou referem-se a nomes verdadeiros que decidi

mencionar apenas com a primeira letra, como M., ou S. Apesar de ter sido uma questão

que também levantei, poder identificar as praias fluviais na descrição das rotas e

percursos dos meus informantes não se tornou uma preocupação para eles em nenhuma

das entrevistas realizadas.

O trabalho de campo em antropologia urbana permite-nos encontrar não só

mundos distantes, mas os lugares próximos, que se vão transformando à medida que os

vamos descobrindo de outras maneiras sem nunca nos esquecermos de “casa” (e do

nosso papel enquanto cientistas sociais), apesar da viagem (Mendes, 2013). Essa

viagem pertence não só à preparação que antecede o chegar ao terreno, como “às

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leituras consideradas pertinentes, até à seleção das roupas a levar” (Mendes, 2013,

p.144), como também à forma como se escolhe caminhar até ao lugar escolhido – antes

de “estar lá” (Geertz, 1998) e entre o “ estar lá e além” (Hannerz, 2003) – para então

regressarmos. O percurso de bicicleta mostrou-me novos caminhos num lugar que eu já

conhecia. Os que fui conhecendo neste percurso mostraram-me tudo o resto.

Se um dos ofícios dos antropólogos é encontrar pontos de encontro e

semelhança apesar das diferenças, ou os “domains of commonality” descritos por Glick

Schiller e Ayse Çaglar (2016, p. 2), também este capítulo propõe introduzir a discussão

em torno da dimensão processual da produção de conhecimento etnográfico, que

argumentamos aqui constituir-se como um processo resultante de uma relação

intersubjetiva entre o antropólogo e os seus informantes. É esta dimensão processual

que se caracteriza, por vezes, pelo próprio carácter mais espontâneo do trabalho de

campo – pelos imprevistos (de acesso ao terreno) e pela necessidade de caminhar e de

nos movermos (neste caso, de bicicleta) – que resulta dessa impermanência e que me

propus aqui descrever. Em suma, pretende-se neste capítulo contribuir para uma

discussão sobre a importância desta relação de mutualidade em trabalho de campo na

produção de um conhecimento científico que nunca é apenas subjetivo ou objetivo, mas

intersubjetivo. Por isso, coube-me descrever este processo de acesso ao terreno e de

análise dos dados, dos seus imprevistos que influenciaram e reorientaram as relações e

as problemáticas no terreno.

Por último, este capítulo propõe ainda introduzir uma discussão. sobre as

possibilidades metodológicas do trabalho de campo no estudo das convivialidades, num

contexto onde vários residentes com diferentes modos e percursos de vida acabam por

partilhar situações semelhantes de “displacement”, com apoio institucional limitado,

situações de desemprego e poucas oportunidades económicas – e que podemos

relacionar com o processo neoliberal de reestruturação das cidades.

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1.4 Esquema de dissertação

Ao mesmo tempo que encontramos no discurso político sobre integração, coesão

e diversidade uma tentativa de por vezes institucionalizar uma ideia de

multiculturalidade, várias são as formas quotidianas de negociação étnica e religiosa

entre residentes que nos apontam para uma diversidade que acontece muito para além

da que é descrita institucionalmente. O que estes momentos de “everyday multiculture

approaches” (Neal et al., 2013, p. 315 apud Wessendorf, 2014, p.173) nos mostram, é

que, apesar da complexidade dos fenómenos de marginalidade estrutural e dos

processos de etnicidade, a diversidade é também muito mais “corriqueira” e comum do

que certos discursos políticos sugerem (Rampton, 2014, p. 9 em Wessendorf, 2014,

p.174). Esta dissertação procura, por isso, descrever esses momentos em que as pessoas

se aproximam e partilham negócios, subsistências e medos do dia-a-dia – apesar das

suas diferenças.

O primeiro prólogo desta dissertação pretende enquadrar o terreno e as

dinâmicas sociais observadas, em particular, o surgimento e a comercialização da

amêijoa e de que forma estas possibilitaram novos caminhos de subsistência (ver 1.1 do

Capítulo 1).

O ponto seguinte procura desenvolver uma reflexão sobre o papel e ofício das

antropologias no saber fazer – que é não só etnográfico, mas também conceptual e

interpretativo, em múltiplas possibilidades de vida. Reflete-se ainda sobre a

possibilidade de novas contribuições para a produção do conhecimento etnográfico, que

passa por criar formas de produzir um conhecimento que passa em primeiro lugar pela

vida e pelos processos de marginalidades e convivialidades que dela fazem parte (1.2 e

1.3 do Capítulo 1).

Neste âmbito, também a forma como escolhi aceder ao terreno e às pessoas que

quis observar não poderia deixar de fazer parte da introdução. Por isso, dediquei alguns

parágrafos para explicar o processo etnográfico e as condições de produção de

conhecimento, e de que forma a bicicleta se revelou importante no acesso ao terreno

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(1.3 do Capítulo 1).

O prelúdio do Capítulo 2 (2.1 do Capítulo 2) propõe descrever um percurso que

se compôs a partir de várias praias fluviais onde a apanha e as vendas acontecem. Serve

ainda para introduzir aqueles com quem partilhei o quotidiano e fui documentando as

práticas e os ritmos. De forma a enquadrar historicamente este prólogo, é essencial

contextualizar a cidade do Barreiro no tempo e no espaço.

Como nos ensina a antropologia urbana, a cidade como contexto permite-nos

compreender não só o processo das marginalidades e a forma como uma análise mais

aprofundada pode não só explicar a preferência por certas oportunidades de rendimento,

como também nos ajudam a direcionar o olhar etnográfico para aquilo que é a

diversidade numa forma mais espontânea (2.2 do Capítulo 2).

O ponto 2.3 do Capítulo 2 define teoricamente esta dissertação. É um capítulo,

por isso, de propostas teóricas que procuram fundamentar os dados recolhidos. Sem

naturalizarmos os fenómenos que desde sempre foram pertinentes à antropologia, como

a marginalização e o racismo, o estudo das convivialidades propõe-nos imaginar e

explorar os momentos nos quais diferentes modos de vida se encontram, não querendo

limitar o estudo à escala de um bairro ou ao estudo de uma etnicidade em particular.

Se neste ponto é possível encontrar uma perspetiva teórica da antropologia

urbana sobre as diversidades, nos Capítulos 3 e 4 a diversidade é entendida como fator

de vida (Wessendorf, 2014, p.164), analisada etnograficamente. No prólogo do ponto

3.1 do Capítulo 3, propõem-se um mapeamento etnográfico que revisite os percursos e

negócios dos meus interlocutores. Pretende-se com isto ilustrar um terreno que se

reconhece pela sua multiplicidade de praias e armazéns onde os negócios e as

sociabilidades se consolidam.

Nos pontos 3.2 e 3.3 são descritas as trajetórias e os modos de vida dos meus

interlocutores. Estes “coletores de amêijoa” são aqui apresentados a partir das histórias

de vida que foram completando o meu diário de campo, entre conversas, piadas,

gravações e fotografias. Num contexto semelhante de acumulação de trabalhos,

informalidade e precariedade, a confiança destas redes torna-se, por isso, essencial.

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No ponto 4.2 do Capítulo 4, tornou-se particularmente interessante observar que,

apesar do caráter impermanente dos “biscates” e a diversidade de mobilidades que se

interligam com as dinâmicas de negócio na apanha17, a capacidade de gerir os

imprevistos e de manter as redes sociais dos meus interlocutores torna-se essencial nas

estratégias de subsistência.

No ponto 4.3 do Capítulo 4, compreende-se que a capacidade de gestão dos

imprevistos relaciona-se também com as técnicas que estes apanhadores escolhem no

terreno e que influenciam os seus percursos e quotidianos. Além disso, observa-se que a

partilha de ferramentas e de conhecimento sobre as técnicas facilita um contexto de

comunicação onde diferentes culturas e linguagens se encontram.

Capítulo 2: A terra, o rio, a gente

2. 1. Prelúdio na Praia de Palhais

É quase uma da tarde e está um vento insuportável, mesmo agora na Primavera.

Eu e o M. estamos sentados na areia da praia da Terra do Nunca. Apesar de vazia, está

repleta de pegadas, pequenos barcos, galochas de borracha, roupas estendidas a secar,

sacos de plástico e bicicletas amontoadas. Os sacos do lixo com as amêijoas continuam

a fazer parte da paisagem das praias, muitas vezes pendurados em ramos de árvores ou

deixados na areia. Observamos a maré a vazar e a formar pinceladas entre o azul e o

verde intenso, que contrasta com o branco das gaivotas que poisam neste momento ao

longo do rio.

Para mim, a baixa-mar não se assemelha a mais nenhuma paisagem. E quem a

conhece sabe que as marés grandes são as marés boas. Hoje é, por isso, um bom dia

para se “estar na maré”. Tentamos distinguir os apanhadores ao longe pela forma como

caminham e pelas cores das suas roupas: vermelhas, azuis, pretas. Os pescadores hoje

são muitos, mesmo com todo este frio. Debruçam-se horas a fio a raspar com os

17 Como o caso do “Casal Maravilha”, ou da L. e da E. (3.3 do Capítulo 3).

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ancinhos. Os que usam ganchorras18, vestem os fatos de mergulho com as suas boias e

redes: “olha o fio preso na rede”, grita uma apanhadora ao marido, este já no rio.

Ilustração 3

Ganchorras. Desenho realizado por Tomás Quote da Fonseca

O M. já os consegue reconhecer ao longe. Estamos sentados há já algum tempo,

mas sem pressas. Diz-me o M: “Vou-te mostrar a casa dos pescadores, um lugar que as

pessoas da nossa idade não conhecem e nem querem conhecer.” Pegamos na bicicleta e

regressamos os dois até à Musa da Praia, escultura em madeira de frente para o rio e

centro das atenções para quem ainda não conhece o bairro. Chegamos.

São cinco e meia da tarde e o sol faz-nos esquecer o frio desta zona. Procuramos

18 Segundo a página oficial da Direção Geral Arte de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos,

a ganchorra caracteriza-se como “a arte de arrasto de pequena e média dimensão em que a boca é

composta por uma estrutura rígida e o saco é de rede ou constituído por uma grelha metálica [...] arte de

pesca rebocada, a pé ou por embarcações, atua sobre o fundo e visa a captura de moluscos bivalves. A

arte é constituída por um saco de rede cuja abertura está ligada a uma estrutura rígida, de forma e

dimensões variáveis dotada, na parte inferior, de um painel com ou sem dentes que revolve o fundo. Os

bivalves ficam retidos numa espécie de saco ou crivo que permite a saída da água, areia e lodo.”

(Dgrm.mm.gov.pt, 2019).

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abrigo numa das “varandas” das casas construídas pelos próprios pescadores, em

madeira. Casas pintadas à mão, de um azul sempre vivo apesar de existirem há mais de

quarenta anos. Agora que muitos estão ainda na maré a trabalhar, o momento é calmo:

descansa-se e joga-se às cartas. Eu e o M. sentamo-nos uma vez mais a olhar para o rio

e para os os seus barcos, que lentamente se vão afundando na lama. Apanhador e

músico, o M. conhece bem o dia-a-dia de quem escolheu o rio. Aproveita para me

contar outra das suas histórias enquanto bebemos café.

Sete da tarde: as mesas vão-se enchendo à medida que os apanhadores começam

a chegar em grupos. Com botas até ao joelho, sacos de plástico à volta dos pés e com

collants cortados em cima e à volta das botas para “não meter água”, muitos começam a

lavar as amêijoas nos bicos de água que se encontram aqui. Apesar do bom humor, os

discursos sobre os perigos no rio e o frio são uma constante, tal como: “Sabes que não

podes entrar lá pelo meio por causa dos olheiros, tens que contornar pela borda!” – diz o

L. ao M. O comprador chega, um dos apanhadores mete as amêijoas no crivo para

separar a amêijoa grande, que vale mais, da pequena, que vale menos ou que não é

vendida. Guardam as amêijoas na rede e pesam. Tentamos adivinhar o peso de cada

saco: “quem acertar oferece os cafés” – diz o P., o comprador. O dinheiro é logo

entregue em mão. Lavam-se novamente as amêijoas, já dentro da rede.

É um momento de venda e de partilha, trocam-se relatos e cafés, e observa-se o

que cada um vendeu: “vens vender batatas? – perguntam ironicamente, referindo-se às

amêijoas. O M. aponta-me os pontos de encontro daquele lugar: as mesas perto da

margem do rio, os bicos de água, o bar. “As pessoas juntam-se à mesa e no bar para

comer, conversar, jogar cartas e beber – observa, enquanto conversamos – e juntam-se

nos bicos de água para se limparem ou para lavar e vender as amêijoas”. Acaba-se a

venda. Trocam-se as roupas molhadas pelas que já estavam ao sol a secar e muda-se de

sapatos. Amanhã a maré começa a baixar às 09h30. “Vens também amanhã para a

apanha da batata?” – perguntam-me.

Fim do prelúdio

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Este é um relato baseado numa experiência pessoal durante um dia de convívio,

de apanha e venda de amêijoa-japonesa. Pretende ser, por isso, um exercício visual para

imaginarmos as pessoas, o tempo e o lugar onde este trabalho de campo decorreu.

Uma vez que já referi anteriormente a importância da “cidade como contexto”

em antropologia urbana, esta descrição procura servir ainda como um exercício para

podermos enquadrar as dinâmicas comerciais ligadas à apanha deste bivalve a partir do

contexto histórico, económico e social desta cidade.

2. 2. A cidade do Barreiro no tempo e no espaço

Ilustração 4

Delimitação da cidade do Barreiro. Fonte: Open Street Map

O Barreiro é uma antiga aldeia ribeirinha intitulada Vila em 1521. Com

atividades desde sempre ligadas à pesca, salicultura e moagem, é uma cidade que vai

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crescendo à beira do rio, servindo como lugar de passagem de forasteiros entre o Norte

e o Sul do país. Era ainda lugar central no abastecimento para Lisboa com as suas

vinhas, searas, hortas e marinhas de sal, que as águas ricas em peixe ofereciam. Até

quase ao surgimento da Companhia União Fabril (CUF), a maior parte da população

dependia da grande diversidade piscícola que o rio proporcionava, como a lambujinha, o

camarão mouro, as ostras e o lingueirão. Esta população vive, por isso, sobretudo da

pesca, mas também da moagem, de pequenas oficinas, estaleiros, quintas, fazendas e

hortas familiares.

A instalação da indústria dos transportes em 1861 marca um momento de

mudança decisivo. Em particular, influenciado pela construção do troço da linha de

Caminho-de-Ferro do Sul e Sueste, que finalmente possibilitou o transporte de

mercadorias entre Lisboa e o Alentejo: carvão, madeira, sal e vinho, são transportados

nos vapores entre as duas margens do rio Tejo. Esta construção, juntamente com a

respetiva estação fluvial, estimulou, assim, um crescente fluxo laboral, proveniente não

só do Algarve e Alentejo, como também das Beiras. Atraídos pelas possibilidades de

trabalho nas fábricas e de alternativas às más condições de vida, agricultores e

trabalhadores rurais viajavam rumo ao Barreiro, “como para um novo Brasil em

miniatura” (em O eco do Barreiro, 4 de Out. 1930 em Carmona, 2009). Também as

primeiras oficinas viraram o tecido social desta Vila – anteriormente constituído por

agricultores - formando uma nova comunidade de ferroviários.

A partir desta época, a Vila do Barreiro começa, então, a ganhar uma

centralidade comercial que se continuará a desenvolver mais tarde com o crescimento

da indústria corticeira19, bem como a indústria da química adubeira. Todavia, apesar de

se observar uma evidente expansão económica, a falta de matérias primas, tais como o

ferro e o carvão, a baixa instrução da população, a dimensão pequena do mercado

interno e o atraso no sector agrícola, terão influenciado o processo de industrialização

no país e, consequentemente, na Vila. Na paisagem rural que caracteriza o Barreiro até

finais do século XIX, a construção de oficinas e fábricas não se impõe de forma subtil

19 Nas fábricas de cortiça, preparava-se sobretudo cortiça em prancha, rolhas, quadros ou bóias de

salvação para exportação e também para o mercado interno.

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(Nunes de Almeida, 1993, p.24). Segundo Ana Nunes de Almeida, a industrialização no

Barreiro afeta mesmo todo o meio rural, e os seus modos de vida agrícola e formas de

subsistência mais autónomas praticadas pelos pescadores, sobretudo com a poluição das

águas do Tejo20. Paralelamente, os terrenos e as quintas, já mediadas pela especulação

imobiliária, destinavam-se, cada vez mais, a bairros de habitação para os trabalhadores

especializados da CUF, e para a construção de fábricas.

Mas se na memória dos operários mais velhos surgem poucas referências aos

tempos de agricultura, a vida no mar continuou a ocupar um lugar de destaque nesta

paisagem e nos modos de vida de certos grupos da população local. A própria origem da

palavra Barreiro sugere-nos esse facto21. A construção dos moinhos de vento e o

desenvolvimento da indústria das moagens no Barreiro, na primeira metade do século

XIX, indica-nos um momento importante no tecido social e económico desta Vila,

mesmo antes da construção dos caminhos-de-ferro. Assim, os moinhos de vento surgem

aos já existentes moinhos de maré, produzindo, em média, cerca de 17 toneladas diárias

de farinha – fruto do crescimento demográfico e das necessidades de consumo dos

moradores locais. Apesar da forte presença das atividades piscatórias, a paisagem rural

da pequena e média propriedade, e as grandes quintas de veraneio com vinhas, pomares

e searas, são elementos representativos até finais de oitocentos. Exemplo disso são a

Quinta Braamcamp, que semeava vastas terras de trigo até se tornar numa importante

unidade de fabrico de cortiça.

Em 1907, com a instalação da CUF, o Barreiro as dinâmicas económicas do

Barreiro vão transformando a paisagem e o tecido da cidade. Armando da Silva Pais

escrevia que “já em 1861 que começa a definhar a classe piscatória local com o

desenvolvimento da indústria dos transportes” (Silva Pais, 1971, p.13). Ao longo das

décadas de ocupação, a CUF tornou-se até, de facto, numa unidade industrial

20 Os gases vindos das chaminés da CUF e o despejo de resíduos de óleo no rio Tejo são dois dos

exemplos mais marcantes do impacto das indústrias no meio ambiente. 21 Apesar de várias interpretações, o seu nome remonta sempre a um certo modo de “vida no mar”,

fazendo referência, por exemplo, a várias comunidades piscatórias oriundas do Algarve que procuravam

melhores condições de vida nas águas mais ricas do Tejo. Os mais aventureiros, percorriam as praias

fluviais com as suas pequenas embarcações “para lá da barra”, e passaram a ficar conhecidos como os

“Barreiros” (Nunes de Almeida, 1993, p.49).

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independente, desenvolvendo, paralelamente, uma política de fixação dos operários à

fábrica, já antes própria nas fábricas inglesas ao longo do desenvolvimento industrial -

com a construção de padarias, balneários, refeitórios e bairros operários.

Com isto, a Vila do Barreiro é marcada por uma atividade industrial em

crescimento e por um intenso recrutamento de trabalhadores, muitos deles rurais. De

agricultores pobres contratados – muitos deles migrantes – tornam-se operários, muitos

não qualificados ou desempregados, à espera de uma vida melhor. Mesmo assim, a Vila

continua, em parte, a conjugar um quadro económico interessante, que se caracteriza

pelas possibilidades de emprego - quer nas fábricas, dirigidas pela CUF – quer pelas

possibilidades de rendimento, dada a sua localização fluvial, constituindo-.se como

importante fonte de recursos para as comunidades piscatória e agrícola22.

Face a um desaceleramento do desenvolvimento industrial entre 1950 e 1981, o

setor terciário ganha, paralelamente, um maior destaque, com os serviços cada vez mais

evidentes nesta região periférica (apesar das indústrias ainda existentes de refinação de

óleos e indústrias químicas, de reparação e construção naval, e de processamento de

alimentos importados). Até à década de 1960, o Barreiro conquistou uma centralidade

económica que foi perdendo lugar ao longo a década de 1970, testemunhando várias

conturbações, a começar pela crise petrolífera de 1973 e pela recessão económica

europeia, afetando a estabilidade da economia nacional e o papel do distrito de Setúbal

no desenvolvimento do país (idem, p.22). Em segundo lugar, a viragem política de 1974

e a nacionalização das indústrias fragiliza, de igual modo, a situação da Margem Sul. A

par com este momento, o processo de descolonização acaba por condicionar fortemente

o acesso às matérias-primas e aos mercados até então das ex-colónias; a negociação da

entrada de Portugal à CEE; e a conquista de poder do Partido Comunista, trazem

consigo períodos que vão alterar a organização do espaço económico desta região e do

país.

Até 1981, o crescimento demográfico deve-se, em grande parte, aos movimentos

22 De facto, o trabalho na fábrica não excluía as situações de pluriatividade e acumulação de rendimentos,

com atividades agrícolas familiares ou à pesca artesanal, refletindo uma cumplicidade natural entre estes

dois sectores.

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migratórios de trabalhadores no país num contexto de forte expansão urbana, ampliada

pela localização periférica privilegiada desta Vila (idem, p.25). Contudo, na década de

1960, observa-se uma descida da população, consequência dos processos de emigração

para o estrangeiro ou para cidades maiores. Mas entre 1970 e 1981 os dados mostram-

nos um novo fôlego no crescimento populacional do Barreiro, sobretudo devido a

residentes não-naturais. Ao longo dos últimos 125 anos, a história do Barreiro é

fortemente marcada pela sua dinâmica industrial. Até à década de 1960, a indústria dos

transportes e a indústria transformadora são as mais representativas, mas a par com o

declínio da indústria corticeira e com a pouca relevância dada às indústrias da madeira,

metalúrgicas e metalomecânicas, e alimentares (como a seca do bacalhau). Em 1975,

num momento de forte processo de declínio de algumas indústrias, - como a indústria

corticeira, a CUF e a CP são nacionalizadas, marcando um momento de reestruturação

na organização laboral. Em primeiro lugar, a adaptação a novas profissões ou novos

modos de produção nas fábricas, obrigam os operários especializados e “de um só

ofício” a um grande esforço. Além disso, as reformas antecipadas e o encerramento de

muitas fábricas levam a uma maior instabilidade, bem como a uma maior necessidade

de reformulação política e económica23.

Além disso, as profundas transformações políticas que ocorreram em Portugal

na década de 1970, ligadas ao processo de independência das colónias africanas,

resultou num acolhimento de aproximadamente meio milhão de pessoas (Pires et al.,

2010 em Malheiros, 2013, p. 30). No entanto, é ainda na década de 1950 que os

primeiros cabo-verdianos se vêm fixar no país, com a contratação de trabalhadores para

obras públicas24, empregando uma enorme quantidade de trabalhadores estrangeiros. Só

entre 1975 e 1979, o número de residentes oriundo das ex-colónias em África, passou

de meio milhar para cerca de 20 mil pessoas. A partir de 1980, regista-se ainda um

crescimento de 60 mil, no início da década, para cerca de 80 mil, em 1985, “com uma

preponderância dos africanos, nomeadamente dos cabo-verdianos que representavam

23 Contudo, certas reestruturações – como a reformulação das normas de contratação coletiva – permite

proteger o destino de centenas de operários, depois da saída da fábrica. 24 Como a construção da ponte 25 de Abril, a expansão das áreas metropolitanas e a rede de

Metropolitano de Lisboa.

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nestes anos mais de 40% do total de estrangeiros em situação regular no país

(Malheiros, 2013, p.31). A adesão de Portugal à CEE, em 1986, veio ainda estimular

este crescimento. Em relação aos que chegaram à Margem Sul, Jorge Malheiros

acrescenta, no seu livro:

Nota-se uma muito reduzida mobilidade entre os que escolheram as regiões

autónomas da Madeira e dos Açores, e a margem Sul da Área Metropolitana de Lisboa

como primeiro local de residência após a chegada ao país, pois mais de 96% dos

entrevistados residiam nestas regiões no momento de aplicação do inquérito. (Malheiros

2013, p.73).

Tanto o sr. João como o sr. Manuel são casos de vida que nos aponta para as

limitações dos dados estatísticos na investigação. Com setenta e três anos, e nascido em

Santiago, “na praia”, o sr. João veio para Portugal, em 1971. Desde a sua chegada,

viveu sempre no Barreiro, na Vila Chã, Cidade do Sol. Pastor e lavrador em Cabo

Verde, veio para Portugal com uma promessa de trabalho na Mina da Panasqueira, entre

o Cabeço do Pião (Concelho do Fundão) e a aldeia da Panasqueira (Concelho da

Covilhã), onde nunca chegou a trabalhar. Foi um dos primeiros cabo-verdianos a

trabalhar na CUF, onde “havia muitos gases, mas o ordenado era certo”. Trabalhou na

CUF/Quimigal até 2001, como operador de forno. Apesar do trabalho de décadas

fisicamente exigente na CUF, não perde uma oportunidade para sorrir, enquanto passeia

com as suas cabras: “Não vê que já não tenho cabelo aqui? É só dos gases da

temperatura do forno. O forno eram 900 graus. Sulfato de sódio. Depois cansaram-me e

mandaram-me embora”. O sr. João despediu-se de Cabo Verde no dia 3 de novembro de

1971. A sua mulher, também da Ilha de Santiago, chegou a Portugal um ano e meio

mais tarde. A Vitória, hoje em dia a viver na Suíça, nasceu poucos anos depois, em

1974. Vitória, por ser o ano da independência. Seguiu-se a Vitalina, hoje em dia em

França, e o Viriato, a viver na Holanda: “melhor qualidade de vida” – diz-me. Apesar

do “dinheiro certo”, o sr. João viveu durante muitos anos em casas de habitação

precária, até conseguir comprar a sua própria casa, na Cidade do Sol. Hoje em dia, já

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reformado, é pastor e passa o seu tempo a cuidar da sua horta, uma das muitas hortas

“informais” que caracteriza a paisagem de uma zona de fronteira entre a Câmara da

Moita e a Câmara do Barreiro, ocupada hoje em dia por vários cabo-verdianos.

Assim como o sr. João, conheci o sr. Manuel nas hortas, onde muitos continuam

a passar os dias. Com cinquenta e cinco anos e oriundo da Ilha do Sal, o sr. Manuel veio

para Portugal em 1973. “Aqui é terra da minha avó”, contava-me, enquanto falava da

sua avó alentejana, imigrante em Cabo-Verde. Assim como o sr. João, o sr. Manuel já

exerceu várias profissões: de delegado de juventude, trabalhou ainda como professor e

construtor civil entre Cabo-Verde, Portugal e Suíça. Voltou para Portugal há mais de

vinte anos, quando lhe atribuíram nacionalidade portuguesa. Parte dos seus filhos

continua lá. Desde há muitos anos, trabalha como voluntário numa associação de apoio

social, no Vale da Amoreira:

Restituir as comunidades, há muitos anos. Atender pessoas necessitadas. É esse

o meu trabalho agora… porque só dar comida...não chega. Também é preciso educação.

[Diário de campo, cemitério de Vila Chã, Barreiro, junho de 2018].

O caso do sr. João e do sr. Manuel permite-nos identificar, no presente capítulo,

uma relação entre as migrações e expetativas de vida. Se para Alejandro Portes um dos

motivos da emigração é representado pelo desequilíbrio entre a expetativa de consumo e

as oportunidades que o país de origem oferece para satisfazer essas expectativas (Portes,

1999a), outros autores vão mais além ao reconhecer que o consumo não é, no entanto,

igual em todo o lado25 (Mapril, 2012; Appadurai, 1986a). As dificuldades de acesso a

certos recursos e expetativas, o que caracteriza contextos de marginalidade, são aqui

“superadas” por via da produção de lugares de pertença e pelas sociabilidades, muitas

vezes inseridas em contextos informais – como nos é possível observar também aqui no

caso das hortas. Como nos refere o sr. João:

25 Não é, pois, de estranhar o percurso destes dois interlocutores para a Suíça, antes de terem conseguido

cidadania portuguesa e virem trabalhar para a Margem Sul.

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O meu irmão tinha uma barraca ali, depois tiraram e foram fazer a morada ali

no Largo de São Bento...depois... como eu gostava daqui e vinha sempre comecei a

fazer ali fiz um buraco tirei água, depois ali fiquei. Depois resolvi apanhar uma cabra e

mais um cabrito no dia 25 de dezembro. Eles e mais aquele que entrou ali (mostra o

cabrito). Depois, comprei aquela e a partir daí pronto. Começou a criar a criar...tinha

muitos mais mas agora…só tenho estes [...Agora o meu futuro? É o que tá no presente

agora. O meu futuro é o que está no presente. Se tirarem dali [as hortas] já não tenho

mais futuro nenhum...lá tenho que ficar em casa, ou tenho que ir para o banco dos

reformados… jogar às cartas [risos] é… isso… não gosto! [Transcrição de entrevista,

diário de campo, Vila Chã, Barreiro, 10 de Julho de 2018].

Também aqui, estes lugares de pertença não representam unicamente

reproduções dos países de origem (como podemos perceber pelos casos dos

interlocutores cabo-verdianos, que tinham também sido pastores e lavradores na terra de

origem), como também uma estratégia para (re)criar uma noção de conforto e de lar

mais abstrata, face aos medos, ao frio, e à situação de trabalho fisicamente desgastante e

partilhada por todos nestes lugares comuns. Por isso, o estudo de caso apresentado nesta

dissertação não se aproximou tanto das etnografias desenvolvidas por autores como

Karen Olwig (2005, 2007) sobre a ligação entre a produção de lugares de pertença e as

relações sociais que são mantidas entre os países de destino e os países de origem, ou,

voltando um pouco às origens, de Nina Glick Schiller, Linda Basch e Cristina Blanc-

Szanton quando propõem analisar os fenómenos migratórios contemporâneos a partir da

noção de transnacionalismo26 (Glick Schiller et al 1992). Aqui, as estratégias de

“emplacement” acontecem nas lutas imediatas apesar do Estado (e não contra o Estado,

como Pierre Clastres afirmou em 1972), num contexto onde as oportunidades de

rendimento informais não são marginais às instituições económicas e ao Estado, mas

26 Sobre esta questão, já Portes, Guarnizo e Landolt afirmavam que o termo deveria ser delimitado “a

ocupações e atividades que requerem um contacto social regular e sustentado no tempo que se

implementem através das fronteiras nacionais [...] dos novos modos de transição e da multiplicação de

atividades que requerem viagens e contactos transfronteiriços.” (Portes et al. 199, p.219 em Mapril, 2012,

p.32).

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sim interligadas com ambos (Narotzky et al., 2006). Sobre esta dinâmica, comentam o

L. e a C. em relação à formalização da apanha da amêijoa:

Depende um bocado da legislação que for decidida. Porque por lei, cada pessoa

pode apanhar uma média de 5 quilos… se eles pagarem a 17 euros/quilo... epá 5 quilos

já parecendo que não… agora se pagarem 5 euros dão-me 25 euros então? Não é nada!

Dá 50 euros por casal/dia. Cada casal que andasse na amêijoa eram 50 euros/dia. Era o

suficiente para uma pessoa sobreviver. Não tá mau...não, ‘tá péssimo (risos). Não tá

mau, tá péssimo. Tu agora apanhas o que apanhares e vendes [...] e olha, amanhã é o dia

de amanhã.[Transcrição de entrevista, diário de campo, Barreiro, 19 de Julho de 2019].

De facto, os valores e atitudes de acolhimento numa determinada cidade perante

os migrantes e recém-chegados (e que moldam a própria vida económica e institucional

destas cidades), determinam muitas vezes a capacidade de incorporação de certos

grupos (Brettell, 2003; Glick Schiller, 2011; Çaglar e Glick Schiller, 2009, 2015). Para

além das razões económicas que têm marcado as migrações internacionais de forma

geral, são vários os migrantes que continuam à procura de trabalhos precários em

Portugal, muitos deles de natureza informal27. Desde a década de 1970 que a economia

tem vindo a estimular novas formas de emprego e mão-de-obra flexível pouco

valorizada, precária e segmentada. Observando o caso do pós-II Guerra, constata-se que

a flexibilização laboral promovida através do programa alemão de trabalho temporário

com os gastarbeiter (trabalhadores convidados), facilitava o abandono e despedimento

dos estrangeiros imigrantes quando estes já não fossem indispensáveis. Também aqui é

premente pensar, por exemplo, de que forma os reajustamentos económicos globais,

27 Por informalidade, partimos da definição de Keith Hart, onde o autor analisa um conjunto de práticas

que passam pelas práticas económicas não reguladas, atividades de génese ilegal – como a agricultura e

da construção civil (não taxadas) – até à corrupção (Hart, 1973). Assim, pensar a informalidade é pensar

não num setor, mas enquanto processo que confronta e é redefinido a partir das próprias fronteiras

institucionais – que podem ir das atividades domésticas, à circulação de produtos ilícitos (Góis 2016).

Como exemplo, poderíamos olhar atentamente para os casos laborais ligados à construção civil, à apanha

e pesca sem licenciamento, ao serviço doméstico e de hotelaria, como alguns dos exemplos que permitem

ilustrar já aquilo que Alejandro Portes descreve como o mercado de trabalho segmentado ou dual (Light e

Karageorgis, 1994, p. 649 em Peixoto et al., 2009, p.38).

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baseados no trabalho flexível e na subcontratação, acabaram por afetar vários países

através da “informalização” do mercado de trabalho.

Segundo fonte de dados disponibilizados pelo PORDATA (INE, 2011), e

comparando com outras cidades vizinhas da Margem Sul com um percurso económico e

social semelhante, a população inativa no Barreiro por 100 ativos (total e por sexo)

chegou aos 74,1% (Homens) e 95,9% (Mulheres), e os desempregados no Barreiro por

100 ativos (total e por sexo) rondou os 18,4% (Homens) e 17,9% (Mulheres). Como é

possível observar nas tabelas seguintes:

Ilustração 5

Tabela população inativa segundo os censos: total e por sexo

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Ilustração 6

Tabela população desempregada segundo os censos: total e por sexo

Neste enquadramento coloca-se a questão de Keith Hart: quantos residentes é

que estarão realmente inativos e desempregados? (Hart, 1973 [2014], p. 62). Perante

alguma limitação dos dados estatísticos para compreendermos a realidade social, esta

etnografia procura documentar aquilo que caracteriza certos percursos de vida e práticas

de subsistência entre a formalidade e a informalidade.

Esta questão remete-nos novamente para o estudo de Hart sobre as atividades

económicas de um grupo de migrantes oriundos do Norte do Gana – os Fafras (ou os

sub-urban proletariat, como refere o autor – e sobre as condições de trabalho destes

migrantes pouco especializados no Sul do Gana. A multiplicidade de ocupações entre a

formalidade e a informalidade28 é um exercício útil para podermos enquadrar os

próprios percursos dos interlocutores que me relataram as oportunidades profissionais

que foram encontrando, do trabalho assalariado (formal/wage earning) ao trabalho por

conta própria (informal/self-employment) (Hart, 1973 [2014], p.10). Como iremos

28 Muitas vezes descritas por Hart a partir dos percursos dos seus informantes, como é o caso do seu

informante Mr A. D, 45 anos, limpador de ruas, jardineiro e vigilante noturno. Paralelamente, cultivava

ainda os seus próprios vegetais no terreno que conseguira comprar.

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observar, a informalidade não representa apenas uma forma para lidar com os

constrangimentos relacionados com o desemprego, pobreza ou indocumentação.

Castells e Portes (1989) afirmavam que a informalidade passava também por uma forma

de fugir a certas normas e regras de regulação do Estado, como a contratação laboral ou

os custos de segurança social. Já o trabalho de Risa Whitson sobre espaços de poder e

resistência no contexto de trabalho informal na Argentina, mostra-nos que a

informalidade pode ser também uma via para escapar à opressão e ao controlo

estabelecidos por outros atores (Scott, 2009, 2014; Whitson, 2007).

A literatura sobre informalidade é vasta e seria irrealista querer nomeá-la a toda.

Interessa-nos, sim, os percursos económicos entre a formalidade e a informalidade, no

contexto atual de reestruturação neoliberal das cidades (Sassen 1989; Schiller et al.

2016; Harvey 2012, Brenner 2010), podendo questionar: como (sobre)viver apesar da

ruína do mundo? Não pretendo com esta dissertação em torno do negócio da apanha da

amêijoa responder a esta questão. Julgo que, no entanto, pode ajudar-nos a imaginar

formas de convivialidade e de sobrevivência coletiva (Tsing 2013, p. 25) entre pessoas

de etnicidades, culturas e religiões diferentes.

2. 3. Convivialidades e diversidade na cidade (in)formal

“Porque lá do fundo [no rio]

parecemos todos iguais, não é?”

[Entrevista a S., diário de campo, 25 de Julho de 2018]

Penso que ninguém me teria resumido de forma tão rápida a sua opinião pessoal

sobre diversidade. Para o S., a diversidade é o momento da apanha: Como o próprio

refere:

“Se estivermos todos lá ao fundo, é impossível perceberes se aquele é branco ou

se o outro é preto... lá do fundo parecemos todos iguais, não é?” [Entrevista ao S., diário

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de campo, 25 de Julho de 2018]

Apesar dos estudos feitos a partir das diferenças culturais ou étnicas serem

importantes para que possamos analisar fenómenos como o racismo ou a intolerância

cultural, a presente dissertação procura, ao contrário, observar os pontos de semelhança

entre pessoas com percursos diferentes, e não aquilo que as afasta (Glick Schiller et al.,

2016, p.21; Wessendorf, 2014, p.24).

Qual, então, a importância de pensarmos para lá da lente étnica (Glick Schiller e

Çağlar, 2016) como unidade de análise? Na precariedade do mundo29, a entreajuda e os

momentos de encontro ganham um lugar central nas estratégias de vida para lidar com

certos constrangimentos.

Se, por um lado, a noção de precariedade tem sido pensada como uma

consequência das transformações económicas globais, bem como uma condição social e

económica involuntária, por outro, também podemos olhar para as experiências de

precariedade como espaços abertos de encontros improváveis (Baumann, Gerd, 1996;

Gilroy, Paul, 2004; Lamphere, 1992; Schiller, Nina Glick, 2016; Tsing, 2015;

Wessendorf, 2014). Ao longo do trabalho de campo, procurei desta forma observar o

que se constrói em termos de colaborações e convivialidades (não institucionalizadas)

num lugar entre a incerteza e a promessa.

Imaginemos agora um desses espaços. Um lugar onde pessoas com diversas

histórias e percursos de vida partilham não só um quotidiano, como também as razões

pelas quais vieram estabelecer-se aqui. Apesar das diferenças culturais e religiosas,

estas pessoas vivem uma condição comum de precariedade, mas também de esperança.

A este lugar, dá-se o nome de “Zomia”, região montanhosa e geograficamente não

29 Como já foi referido, a precariedade é entendida aqui, sobretudo, como uma condição de

vulnerabilidade, “displacement” e insegurança, e que também podemos relacionar com o estado

económico contemporâneo ligado ao capitalismo neoliberal. A informalidade torna-se, assim, uma das

possibilidades para vários grupos de “ganhar a vida”. Assim como Anna Tsing nos define a precariedade

como a vida sem a promessa de estabilidade (Tsing 2015, p.2), também Anne Allison escreve sobre a

impermanência do quotidiano:”In this uncertainty of time, where everyday efforts don’t align with a

teleology of progressive betterment, living can be often just that. Not leading particularly anywhere, lives

get lived nonetheless” (Culanth.org, 2016).

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traçada30. Com mais de 100 milhões de minorias (como os Akha, Chin, Kare, Lahu,

Uwa ou Yao), “Zomia” poderia ser um desses lugares de “sociabilities of emplacement”

descritos por Ayse Çaglar e Nina Glick Schiller (2016, p.7), zona de refúgio estudada

por James C. Scott para documentar histórias de resistências quotidianas ao poder e à

escravatura, as convivialidades tornam-se aqui elemento central de escapismo à

incorporação forçada (Scott, 2009). Aqui, a marginalidade torna-se a ação voluntária de

quem se vai adaptando à opressão e à dominação, num “tribalismo marginal”, para usar

as palavras de Scott (2009, p.30).

“Zomia” pode servir-nos também aqui simbolicamente para questionar e

problematizar as limitações de uma observação direcionada para o estudo a partir das

diferenças entre comunidades étnicas. Neste sentido, para além de investigações mais

antigas como as desenvolvidas por autoras como Louise Lamphere (1992), as propostas

metodológicas de Caroline Brettell (2003), Steven Vertovec (1996), Mette Louise Berg

e Nando Sigona (2013), ou de Nina Glick Schiller e Ayse Çaglar (2016), têm

contribuído para um debate que articula os estudos urbanos com a antropologia, ao

mostrar, etnograficamente, de que forma a diversidade18 é vivida e construída31.

Neste sentido, pensar a apanha da amêijoa é pensar de que forma (e como) estes

apanhadores acabam por construir certos laços face a fenómenos que se relacionam com

a própria reestruturação atual e neoliberal das cidades. Assim, tal como os textos de

Nina Glick Schiller e Ayse Çaglar sugerem, mais do que pensar em conceitos como

integração, assimilação ou inclusão, a diversidade é aqui entendida enquanto processo à

luz de dinâmicas e discursos políticos locais, regionais e globais (Brenner, 2010;

Harvey, 2006; Glick Schiller et al., 2009, 2016; Berg e Sigona, 2013). A convivialidade

assume aqui um papel de diálogo, de criação de relações sociais. A importância em

30 “Zomia” tem uma extensão de cerca de 2,5 milhões de km2 que vai do Oeste da China, ao Noroeste da

Índia, passando por áreas de cinco outros países como o atual Myanmar (Burma), Tailândia, Laos,

Vietname e Camboja. Na periferia de nove Estados-Nação mas no centro de nenhum, é a maior região

onde as suas comunidades não foram ainda totalmente incorporadas em Estados- Nação, e por isso

continua a constituir-se como um dos maiores espaços não governados pelo Estado.

31 A partir de uma etnografia, que observa vários tipos de sociabilidades entre migrantes recém-chegados

e residentes autóctones, Nina Glick Schiller e Ayse Çaglar abrem, assim, um caminho teórico importante

para esta dissertação.

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observar os “espaços” onde a diferença se esbate e novas relações são construídas

direciona-nos, assim, para o caminho do estudo das migrações que nos pode ajudar a

ultrapassar certas categorias étnicas e religiosas como unidades de análise. Mas se, por

um lado, as etnografias de Nina Glick Schiller e Çaglar sobre

“displacement/emplacement” representam uma importância teórica no caso da apanha

da amêijoa para poder observar as várias relações sociais entre apanhadores a partir das

suas sociabilidades construídas,; por outro, o estudo de James C. Scott sobre “Zomia”

levou-me a encontrar novas respostas teóricas para os dados recolhidos, ao demonstrar

que, por vezes, a marginalidade é, também, uma escolha e uma decisão voluntária de

determinados modos de vida.

De forma a explorarmos as relações sociais que se constroem à luz da apanha da

amêijoa, é importante analisar as dinâmicas comerciais e não comerciais desta prática –

dos negócios, dos ritmos e percursos, até às técnicas e práticas que a compõe. Como

iremos observar nos capítulos que se seguem, a amêijoa-japonesa no Estuário do Tejo

torna-se elemento central na construção de relações que não se baseiam unicamente em

trocas comerciais. Assim, para além das oportunidades de negócio que este bivalve

estimula, servem recorrentemente como tema de conversa sobre receitas culinárias para

preparar as amêijoas em casa, ou ainda como alimento nos vários lugares de

sociabilidade que iremos encontrar mapeados mais à frente desta dissertação. Em suma,

a apanha da amêijoa torna-se, também, uma extensão da própria pessoa, das suas

conversas, relações, medos e modos de vida. Foi a partir desta perceção, que se foi

reorientando ao longo do trabalho de campo, que procurei descrever estas experiências

partilhadas.

Em jeito de resumo, este capítulo procura refletir sobre a importância da cidade

como contexto para enquadrar histórica, social e economicamente os percursos de vida

de quem sobrevive numa cidade pós-industrial, como o Barreiro32. Sobre a

informalidade, partimos de autores que nos mostram empiricamente a dimensão

processual da informalidade (ver Hart, 1973; Mapril, 2010, Ivone Cunha, 2006). O que

32 Ver o ponto do capítulo sobre o Barreiro no tempo e no espaço.

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estes autores nos mostram incita-nos ao capítulo seguinte, permitindo-nos documentar

melhor as histórias de vida e as oportunidades de rendimento encontradas por estes

apanhadores. Neste contexto, o estudo das sociabilidades ganha também um papel

indispensável para compreendermos de que forma certas atividades se caracterizam não

apenas pelo seu valor comercial, mas também pelas relações sociais e reputações que

são construídas a partir destas mesmas atividades.

Num contexto entre a incerteza e a promessa, a atividade da apanha da amêijoa é

também pensada, aqui, como elemento formador de relações sociais, em espaços abertos

para a criação de redes comerciais e não comerciais. Por último, argumentamos que

compreender como, quando e porquê que determinados indivíduos se aproximam, pode

ainda direcionar os estudos antropológicos para uma unidade de análise para lá da lente

étnica.

Os lugares e as convivialidades onde as práticas ligadas à apanha da amêijoa

acontecem assumem-se, assim, importantes para questionar de que forma as relações de

confiança e de negócio entre migrantes e não migrantes, que partilham trajetórias,

ritmos e técnicas de trabalho, são decisivas nas estratégias de incorporação social e

económica. Assim, os capítulos etnográficos apresentados são o resultado de um

trabalho de campo que procurou identificar que formas de mutualidade emergem numa

cidade onde os seus residentes testemunham diferentes experiências de marginalização.

Neste sentido propomos, num primeiro momento, um mapeamento das praias

fluviais que caracterizam as zonas de refúgio destes apanhadores. Pela impermanência

das situações que resultam muitas vezes em discursos sobre o medo, pela

interdependência das relações profissionais, ou ainda pelo caráter incerto das relações

sociais que se vão moldando aos seus percursos e modos de vida mais precários, estas

zonas de refúgio são entendidas também como um limiar das margens que nos

redireciona para uma nova ideia de passagem e de transformação. Percorrer as

convivialidades, as práticas e as técnicas recriadas nestes lugares, torna-se, por isso,

importante para o conhecimento antropológico/etnográfico aqui proposto.

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Capítulo 3: “Ir por outros caminhos”. Nas dobras dos lugares

próximos

“Comecei aqui [na apanha] e fui lá para baixo, para o clube naval. E depois vim para

aqui. Porque fiquei sem trabalho. Já fiz várias coisas… antes das pinturas, trabalhei no

Mcdonalds, trabalhei na metalurgia, ‘tive em França…depois voltei outra vez. E aqui

fiquei”.

S., pintor alpinista e apanhador de amêijoa.

[Transcrição de entrevista, Barreiro, 19 de Julho de 2018].

3. 1. Prólogo entre as praias fluviais: um mapeamento etnográfico

Ilustração 7

Percurso de bicicleta registado por gps a partir da aplicação mapmyride. Mapa desenvolvido por Jannis Kühne

A cidade do Barreiro é composta por várias praias fluviais. No verão, são

bastante utilizadas pela população do Barreiro para tomar banho, conviver e até mesmo

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pernoitar. Mas se para alguns o rio sempre representou um momento de turismo e

desporto, para muitos outros representa também uma oportunidade de negócio entre o

formal e o informal; um momento, por isso, de contradição, próprio de tudo o que está

nas margens, que não está “aqui nem ali; está entre as posições atribuídas e organizadas

pela lei, pelo costume, pela convenção ou pelo cerimonial” – nas palavras de Victor

Turner sobre o estado de “liminaridade”, à luz da proposta desenvolvida inicialmente

por Arnold Van Gennep (1960 [1909]), apesar de distinta (Turner, 1969, p.81 em Pina

Cabral, 2000, p.871). A partir dos estudos de Van Gennep, Turner desenvolve uma

relação entre esse estado de liminaridade e o conceito de marginalidade (Turner, 2008

[1969]). Como demonstra o autor, a marginalidade é o fundamento da própria vida

social e cultural, que as dinâmicas de poder estruturam em “periferias mais ou menos

legitimadas” (Pina Cabral, 2000, p.883), mais ou menos visíveis. Assim como a

reflexão em torno das (in)formalidades, também se torna premente observar o caráter

processual das marginalidades.

Partindo dos caminhos económicos que estas praias tornam reais aos

apanhadores, o estado liminar é também entendido como um período de margem onde

novas relações/sociabilidades são construídas. Sobre este momento de “experiência

partilhada”, Collin Turnbull refere:

Quando o etnógrafo analisa os fenómenos da liminaridade, tem de depender de

uma forma mais profunda da perceção intersubjetiva: tem de saber encontrar dentro de

si o potencial para ser algo de diferente. (Turnbull, 1990, p.75 em Pina Cabral, 2000,

p.872).

Esta “experiência partilhada” (Pina Cabral, 1991, 2000) permite ao etnógrafo,

desta forma, observar o que existe de comum entre quem partilha um contexto

semelhante. Partindo, por isso, do princípio de que a liminaridade é o momento não só

de transição, como também de transformação, que pode acontecer quando as pessoas se

encontram sob “um igualitarismo radical, como resultado do qual, ao desaparecer a

hierarquia, surge uma espécie de companheirismo espontâneo” (Turner, 1969, p.95 em

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Pina Cabral, 2000, p.871), tentei descrever, ao longo do trabalho campo, essa condição

no limiar das margens, onde as técnicas e a entreajuda se revelam elementos

importantes nas oportunidades de negócio.

Nestas praias fluviais nas margens do rio Tejo, a expectativa33 é muitas vezes

feita de dúvida e de imprevisibilidades; de precariedade, mas também de liberdade, dos

que preferem viver na dúvida, como o Z. Ao longo do trabalho de campo percorri cinco

praias fluviais: a Praia do Barra-a-Barra, do Bico do Mexilhoeiro, de Alburrica, do

Copacabana e de Palhais. Como me foi possível anotar, cada praia possibilita técnicas

de apanha distintas, pelas diferentes necessidades de acesso e pelo tipo de condições

naturais que condicionam o material a levar. Por isso, cada apanhador escolhe a praia

consoante o tipo de material e de técnica que prefere usar, nunca deixando de ter em

conta as redes de sociabilidades mais importantes de manter. No caso das mulheres e

dos homens guineenses, por exemplo, raramente chegam até à Praia do Bico do

Mexilhoeiro ou de Alburrica, uma vez que utilizam apenas as mãos e os garrafões. Pelas

boas condições e por ser um lugar mais escondido, estão quase sempre, por isso, na

Praia do Copacabana. Esta foi a praia onde conheci quase todos os meus interlocutores,

à exceção do Z.. Por isso, foi a praia mais importante deste percurso de bicicleta.

Com caminhos e esconderijos que se transformam consoante a maré baixa ou

alta. Ao longe, secava-se o bacalhau em armazéns já desativados. É uma praia onde as

cores se confundem, entre o castanho esverdeado da lama e o azul e branco dos céus e

dos pequenos barcos de madeira. É também violeta, quando a maré sobe, e verde,

encoberta pelas árvores e por um descampado, que hoje serve de lugar de descanso ao

gado que por ali passa todas as semanas e que, em tempos, fora um bairro de habitação

precária. Nesta praia, são muitas as mulheres e os homens guineenses que apanham, que

não têm medo dos “olheiros” de lama do rio, de onde saem de joelhos para não se

afundarem. Este lugar de convívio e de pequenos negócios é passado em torno de um

bico de água, onde se lavam as amêijoas, a roupa e as botas. Aqui, contam-se histórias,

sobretudo de trabalho, e partilham-se vivências face a uma situação comum de

precariedade, onde a própria linguagem se revela elemento central de proximidade e

33 Em alusão ao livro de Paula Godinho, O Futuro é para Sempre, Letra Livre/Através Editora, 2017.

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camaradagem:

“Grandes batatas [as amêijoas] as que colheste na tua horta [no rio]. São para

cozer ou para fritar? E tu? Já passeaste o cão hoje? [para referir o garrafão de 25 L

cortado em cima e preso à cintura]. Mais tarde, alguém pergunta se o “Velho” está de

folga hoje. Em ironia, visto que não há folgas estipuladas, pois ali são todos os próprios

patrões” [Diário de campo, Barreiro, entre Dezembro de 2017 e Março de 2018].

Os perigos do rio são um fator importante na decisão do lugar a escolher. A

imprevisibilidade dos “olheiros” obriga os apanhadores a um mapeamento no terreno

que só a experiência ensina. Por isso, muitos acabam por permanecer na praia que já

conhecem e adaptarem-se às suas características. No caso do Z., só é possível encontrá-

lo na Praia do Bico do Mexilhoeiro, que melhor se adapta às suas técnicas de apanha

com ganchorra, e onde geralmente encontra o seu comprador habitual, sempre

estacionado numa carrinha, perto da avenida da praia.

Na Praia do Copacabana e em Palhais, seca-se a roupa pendurada nas árvores ou

em muros à beira-rio antes de se começar a apanha. Aqui, as zonas de refúgios são a céu

aberto, mas raramente há fiscalização. É uma paisagem selvagem, em toda a sua

imensidão de rio, lama, pássaros e pequenos barcos. Aqui, a ausência de pessoas,

sobretudo no Inverno, permite a estes apanhadores trabalhar e vender com alguma

calma. Por isso, só muito raramente é que estes apanhadores mudam de praia. Pela

dificuldade de muitos em comprar melhores materiais de apanha (e também pelo risco

de estes poderem ser apreendidos pela Polícia Marítima), mas também pela própria

preferência pessoal em relação às técnicas escolhidas.

Em que medida podemos caracterizar estes lugares como zonas de refúgio? Para

além de serem lugares de trabalho, onde as probabilidades de multa e de repressão

constituem sempre um risco, estes lugares revelam-se ainda zonas de proximidade e de

camaradagem entre quem conhece os ritmos, os medos, e os percursos deste negócio.

Em qualquer uma das praias, as conversas sobre o perigo marcam vários momentos

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significativos do quotidiano destes apanhadores:

“Tu sentes-te a afundar completamente. É uma sensação bué parva. Mas ao

mesmo tempo é fixe… é parva...mas ao mesmo tempo...tu fazes assim! E de repente

sentes o duro. Bates com o pé! As primeiras vezes que eu caí dentro dos olheiros não foi

muito fixe, não. É uma sensação um bocado parva e de aflição, a de caíres e teres que

respirar bué da rápido. Dá-te aquela cena no coração”. [Transcrição de entrevista à L. e

C., diário de campo, Barreiro, 18 de Julho de 2018].

Para lidar com os constrangimentos do trabalho, muitos não perdem algumas

oportunidades para gracejar sobre o assunto e para refletir sobre as inter-relações que se

vão formando nas várias praias. Como refere S.:

“Eu a andar aqui no meio do rio já é quase como andar na Avenida, já não

tenho medo. O segredo é continuar a andar. Na apanha… vais a sítios onde ninguém

vai...onde não conheces nada. Também…sei lá, eu não conhecia nada disto, sabias lá se

havia um olheiro ou não. Eu fui acompanhado, mas não se pode confiar aqui em

ninguém, é o que eu penso, aqui não se pode confiar em ninguém”. [Transcrição de

entrevista ao S., diário de campo, Barreiro, 23 de Julho de 2018].

Apesar dos perigos, das marés, a troca de experiências entre apanhadores pode

ser fulcral para prevenir várias situações perigosas. Para citar a C.:

“Tu vais ao fundo, mas não vais logo. Também não vais ser parvo ao ponto de

continuares a andar, se deres mais um passo e aquilo ainda a afundar não vais continuar!

Andas para trás, dás a volta...ou então tens outra tática...bates assim...se o chão mexer

dás a volta, não vais passar, dás a volta. E em muitos mais sítios. Não vês? Os blacks

passam pelo rio, sem medo. E caem dentro dos olheiros, saem e andam...sem medo!”

[Transcrição de entrevista à L. e C., diário de campo, Barreiro, 18 de Julho de 2018].

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Como iremos ainda compreender, também os ritmos e percursos entre

apanhadores tornam-se dinâmicas sociais importantes na formação de negócios e na

construção de coabitações e momentos de sociabilidades. Estes relatos podem servir-nos

aqui como um exercício de semelhança e verossimilhança para nos aproximarmos

daquilo que é a vida destas pessoas.

3. 2. “Estar por conta própria”: Trajetórias e modos de vida

Ao focar-me nos momentos e nas razões pelas quais várias pessoas criam

“domínios, ainda que parciais, de partilha humana” (Schiller et al., 2016, p. 30), esta

etnografia procurará, assim, contribuir para pensarmos para lá da lente étnica. Durante

muitas das entrevistas e observações que realizei, a lente étnica dos meus interlocutores

nunca se esbateu. Contudo, julgo que analisar de que forma, porquê e como estes

apanhadores partilham momentos de perigo, sorte, prisão, pobreza, cansaço, morte e

humor, numa arena comum entre a subsistência e o refúgio, pode realçar a importância

metodológica que o estudo das sociabilidades pode ter para se observar espaços de

diversidades. Num primeiro momento, (de)escrever as trajetórias e os modos de vida de

quem observei tornou-se processo indispensável no fazer etnográfico. Por isso, não

poderia deixar de começar por quem fui aprendendo a aprender, até voltar para “casa”:

O sr. Viriato e o sr. Dias da Silva: Técnicos de reparação de barcos, reformados e

pescadores lúdicos

Conheci o sr. Viriato e o sr. Dias da Silva na Praia do Copacabana, na

coletividade dos pescadores lúdicos. Em Novembro, pedi-lhes um café. A partir daí,

acolheram-me sempre que regressava àquelas praias. Por isso, posso dizer que foram os

meus gatekeepers até “ao fim”. Nascido em Beja, mais precisamente em São Vicente de

Valongo - no monte das Freiras, lugar de montes diversos que nunca chegou a ser vila –

o sr. Viriato, oitenta anos, percorreu a CUF, a Lisnave e o mundo enquanto supervisor

de reparações e construções de navios. Durante o percurso, passou pelo Canadá,

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Holanda, França e África do Sul, país onde mais gostou de trabalhar, particularmente

em Durban, na província de KwaZulu-Natal. Ao longo dos meses, o sr. Viriato mostrou-

me várias quadras que foi escrevendo desde que tinha dezoito anos. A maior parte delas,

são escritas na parte de trás da tabela de marés, por onde também se guia para ir à pesca.

Ainda hoje, convive com vários colegas que conheceu na CUF e na Lisnave. É

sobretudo o sr. Viriato que melhor conhece os apanhadores. E por ter carro, ajudou e

correu vários riscos para ajudar muitos apanhadores no transporte e venda das próprias

amêijoas.

Nascido e criado no Barreiro, o sr. Dias da Silva, setenta e seis anos, chega à

Praia do Copacabana sempre com a sua mota e com o seu cão, o Pirolas. Enquanto

supervisor de reparações e construções de navios, trabalhou na Holanda, França e

Canadá, depois de ter deixado a Lisnave. Atualmente, tanto o sr. Viriato como o sr. Dias

da Silva são pescadores lúdicos e sócios da coletividade de pesca lúdica. Aqui, só os

sócios podem abrir a porta. São eles que nos servem os cafés de cápsulas e que abrem as

portas aos apanhadores e pescadores que lá se reúnem. Por isso, sabem muito sobre os

apanhadores e os seus ritmos de trabalho. Este é o único espaço próximo do lugar da

apanha na Praia do Copacabana, e, por isso, foi desde o início o meu lugar de pretexto

para aparecer regularmente. São muitos aqueles que por lá passam: os apanhadores, que

se encontram antes e depois da apanha para fumar e beber um café, e os pescadores, que

se juntam para conversar sobre futebol, as artes da pesca, as vendas da amêijoa, ou

sobre recordações de trabalho, tendo em conta que muitos trabalharam juntos na CUF e

na Lisnave. Estes pescadores são homens geralmente casados, entre os sessenta e cinco

e os oitenta anos, muitos deles já reformados, que se encontram para conviver e beber

um copo neste lugar repleto de imagens, medalhas e materiais de pesca que vão

ornamentando as paredes. Este lugar é como um espaço de acolhimento para muitos, de

um verde e azul escuros, que nos convida imediatamente a entrar. Quando o tempo o

permite, fazem-se ainda uns churrascos nas mesas de madeira construídas de forma

improvisada perto do bico de água, perto da praia.

- Venha tomar um café, que eu ofereço – dirige-se o sr. Dias da Silva. Durante

esses momentos, sento-me muitas vezes com ele na esperança de ouvir mais uma vez as

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suas histórias sobre os tempos da CUF, e mais umas histórias sobre os apanhadores.

Foi a partir da confiança que fui ganhando com o sr. Viriato e com o sr. Dias da

Silva – apesar de nunca terem sido apanhadores – que me fui aproximando daqueles que

procurei conhecer, os “coletores de amêijoa”34.

3.3 Os “coletores de amêijoa”

O “Casal Maravilha”: Apanhadores de amêijoa, antigos empregados de mesa e técnicos

de instalação de tetos falsos, desempregados

C. e L., 37 e 35 anos, são o “casal maravilha”, como lhe chamam na apanha.

Oriundos da Margem Sul (Alhos Vedros e Seixal, respetivamente), estão sempre

presentes e quase sempre a trabalhar. São magros mas fortes, corpos de quem consegue

aguentar muitas horas curvado. Com um filho ainda pequeno a viver no Algarve, foram

encontrando trabalhos sazonais como ajudantes de cozinha, na construção de tetos

falsos ou como assistentes familiares, até encontrarem o “trabalho da amêijoa”. E aqui,

ganham sempre o seu sustento, por dia: “depois fica difícil procurares outro tipo de

trabalho, porque já não é igual”. Contudo, se para a C. a ideia de arranjar um emprego

“formal” significa ter mais estabilidade – no caso, por exemplo, de ficar de baixa ou

doente – para o L., o namorado, essa questão é fácil de contornar, porque “se todos os

dias puseres cinco euros de parte, quando um dia tiveres doente tens a jarda lá. Eu vejo

o meu futuro bom, digo-te já. A única coisa é só os descontos. É mesmo assim. De

resto...60 ou 70 euros por dia, não ‘tá bom?”.

Ao contrário dos amigos, o S., 35 anos e oriundo do Barreiro, é não só

apanhador há quatro anos, como também pintor alpinista.

O S: Apanhador de amêijoa, pintor alpinista, antigo trabalhador das obras e empregado

do Mcdonald’s.

Na apanha, começou com o primo, depois de ter ficado sem trabalho na

34 Nome referido pelo Z., um dos apanhadores que conheci e que será aqui referido neste mesmo capítulo.

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construção. Antes de ter arranjado trabalho como pintor alpinista, trabalhou no

Mcdonald's e na metalurgia, até ter ido trabalhar para a construção civil em França, para

onde quer voltar. O S. ajudou-me várias vezes com a bicicleta, e, apesar de nos termos

conhecido já tarde durante o trabalho de campo, partilhou comigo o seu perfil do

facebook e muitas fotografias que gosta de tirar ao céu, nos vários momentos do dia, e

aos diferentes ciclos das marés. Apesar de agora só “apanhar à mão”, o seu ancinho

tornou-se famoso, quando apareceu a cavar numa das reportagens da TVI durante a

Páscoa, depois da morte de três apanhadores naquela praia por causa do nevoeiro. Com

os trabalhos que vai acumulando e a sua dedicação em especializar-se no trabalho de

cordas em pintura e reparação, pouco tempo lhe sobra para o resto. Por isso, não pensa

muito no futuro, pensa, sim, na viagem de regresso a França.

Para além do S, da C. e do L.., não é possível falar do “grupo” da Praia do

Copacabana sem nos lembrarmos também do “Maluco”.

O “Maluco”: Apanhador de amêijoa

Com 28 anos, é o mais novo dos apanhadores e nasceu no bairro já demolido de

casas autoconstruídas da Praia do Copacabana. Alto, magro e de grandes olhos azuis -

apesar do aparente desgaste – é o mais provocador dos que aparecem nas praias. Um

dia, perguntei-lhe quem vivia no bairro onde nasceu: “pretos, ciganos, nós, tudo ao

molho. Ciganos… [pensa]...cigano sou eu que ando para aqui a vaguear…há cinco dias

que não durmo. Até já adormeci ali ao fundo em cima das ostras e tudo”. O “Maluco”

vive só da amêijoa. Assim como o “Velho”, conhece muito bem o rio e reconhece quem

está a apanhar, ao longe, só pela maneira como alguém pisa a lama.

O “Velho”: Apanhador de amêijoa, amolador e feirante

O “Velho”, 56 anos, é sobretudo amolador e apanhador. Sempre com a sua

bicicleta, com a qual trabalha, tem sentido de humor apurado.

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Ilustração 8

Bicicleta do “Velho”. Desenho realizado por Tomás Quote da Fonseca

O sr. Viriato e o sr. Dias da Silva. chamam-lhe “o tendeiro”, por ser de etnia

cigana. O “Velho” é sobretudo nómada, que vive das suas vendas na apanha, do seu

trabalho enquanto amolador, e ainda de pequenas reparações e de algumas feiras

ambulantes. Por essa mesma razão, são poucas as vezes que tenho a oportunidade de o

encontrar. Mesmo assim, é muitas vezes o “Velho” que alegra os momentos de

convivialidades e de venda: “Então hoje? A horta estava boa? Não consegui chegar a

tempo de ir também mas vão ver amanhã, como esta maré está, até consigo mais do que

vocês. Amanhã trago para aqui o trator e apanho isso tudo” – diz-nos a sorrir, enquanto

se aproxima com a sua bicicleta de amolador. Juntamente com o “Velho”, a D., a E. e a

L. alegram a Praia do Copacabana.

A L.: Apanhadora de amêijoa, empregada na Autoeuropa

“Das mulheres de cor, tu és a rainha” – escreveu-lhe uma vez o sr. Viriato num

poema. A L., oriunda da Guiné, é uma mulher forte e bonita, de estrutura mais baixa.

Apesar do trabalho cansativo na apanha e do trabalho a tempo inteiro na Autoeuropa,

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não deixa de ser uma mulher alegre, mas desconfiada. O marido, também guineense,

trabalha na construção civil em Inglaterra e em França e só raramente é que a visita em

Portugal. O ano passado, a L. conseguiu finalmente ficar três meses em Inglaterra com o

marido, para o visitar. Sozinha em Portugal e com filhos, trabalha na apanha aos fins-

de-semana e aos feriados, juntamente com a E. e a D., todas mulheres guineenses.

Geralmente, vêm e regressam juntas a seguir ao trabalho, apesar de não viverem na

mesma zona. Tanto a L. como a E., saem sempre do rio a carregar os garrafões com

amêijoas pela cabeça, para não pesar nos braços. É um grupo animado, apesar de não

surgirem muitas conversas: é um momento de negócio e também de desgaste.

A E: Apanhadora de amêijoa e empregada de limpeza em Lisboa

Alta e elegante, apesar do trabalho na apanha não deixa de mostrar a sua

feminilidade nas roupas que escolhe trazer. Para além da apanha e do trabalho de

limpezas em Lisboa, também tem uma das hortas na “zona de fronteira”, onde cultiva

vários tipos de vegetais. Com um filho mudo e sozinha, com o marido a trabalhar no

estrangeiro, é raro ter a sorte de a encontrar nas praias. Apesar de tudo, são as mulheres

que fazem a festa quando se encontram na Praia do Copacabana: falam e riem alto,

molham-se umas às outras enquanto lavam as roupas e as amêijoas no bico de água.

Um dia, perguntei ao sr. Viriato. por que razão as mulheres guineenses só

apanhavam nesta praia, tendo em conta que todas vivem relativamente longe a pé.

Contou-me que antigamente iam para a praia de Palhais, antes de lhes cortarem a água

do bico onde lavavam as amêijoas por causa de queixas anónimas.

O Z: Apanhador de amêijoa, baterista e antigo técnico de som

Apanhador e músico de 46 anos, o Z. foi o meu primeiro informante. Para além

de ter nascido e crescido no Barreiro com as marés, filho de um pai engenheiro de som e

jornalista, foi técnico de som durante 15 anos. Depois de uma longa carreira

profissional, despediu-se para se dedicar à música:

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“Sabes, há pessoas que ainda não encontraram o que as move. E quem encontrou,

muitas vezes desiste porque, lá está, há sempre uma necessidade de corresponder, e

quando conhecem alguém que sente que a vida é mais do que receber dinheiro e ter uma

carreira...está à vista de todos aquilo que sou e que faço. O trabalho não me dá grande

felicidade, já não tenho essa ilusão. Mas claro, tens que ter ambição. Eu tenho ambição,

mas sou eu que decido...estou numa fase qualquer que já não espero muito do trabalho,

que me dê prazer. Eu quero é tocar. Não tenho muitas pretensões, mas continuo a

sonhar muito acordado e não tenho medo de cair. Ainda acho que podemos imaginar

que tudo é possível. E o melhor é imaginar – sentes que vai tudo correr bem, mesmo

com algumas sombras.” [Diário de campo, 23 de Agosto de 2018].

Neste momento, a grande parte dos seus rendimentos vem da apanha e de alguns

trabalhos de instalações de máquinas vending no Alentejo. Para ele o importante é poder

tocar e ter dinheiro para viver e pagar as contas, seja a trabalhar na apanha, num

restaurante, numa fábrica, ou num táxi. A história do Z. na apanha começou com um

amigo que já era mariscador. Pela ligação que tem ao rio e com a ajuda do amigo “que é

bastante trabalhador, mas não sabe como ser empregado, gerir um trabalho normal”, o

Z. apanha quase todos os dias na maré da tarde. Apesar da estabilidade do emprego que

tinha enquanto técnico de som,“ o Z. acabou por escolher trabalhos mais sazonais que

lhe permitam ter mais tempo para se dedicar à bateria. Como refere:

“Sabes, prefiro viver na dúvida do que ter essa certeza. Viver aqui é incrível, tens este

rio… e quando sais da água não há nada que pague isto, este é o meu sentido de

liberdade, é estar aqui.” [Diário de campo, 23 de Agosto de 2018]

Tal como o Z., são vários os que preferiram a dúvida a ter essa certeza. Também

a C. e o L. vão trabalhando onde conseguem, apesar de há dois anos se dedicarem

exclusivamente à apanha, pela flexibilidade de horários. Como é possível observar

nestes casos concretos, a acumulação ou a mudança de trabalhos é recorrente na vida

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dos apanhadores que fui conhecendo ao longo deste trabalho de campo. Para alguns,

pela pouca importância que a carreira possa já representar, como no caso do Z., outras

vezes, pela necessidade de conciliar dois ou três trabalhos, como no caso das senhoras

guineenses, ou ainda, pela incapacidade de adaptação de muitas famílias a horários de

trabalho pouco flexíveis e baixa remuneração, como no caso da C. e do L.

Nas palavras de C.:

“Porque vais fazer como? [sobre a inflexibilidade dos horários de trabalhos] Vais-te

cerrar ao meio? Metade da C. vai para o trabalho e metade da C. vai levar o G. à escola.

Não dá. Quando a gente não tem ninguém! E isso é o que nos leva por outros caminhos,

por outras iniciativas. Que é mesmo assim. Se eu entro às 7 da manhã como é que eu

posso levar o meu filho à escola? Às 8h30? É impossível.” [Transcrição de entrevista,

diário de campo, Barreiro, 18 de Julho de 2018].

O caso do Barreiro permite-nos observar as estratégias35 de certas pessoas36 para

se estabelecerem e criarem ritmos e percursos de trabalho comuns “por conta própria”.

É impossível não questionar a forma como os sistemas económicos afetam os termos

em que os indivíduos se relacionam uns com os outros. Apesar de Judith Butler

descrever a precariedade como “the politically induced condition in which certain

populations suffer from failing social and economic networks...becoming differentially

exposed to injury, violence, and death” (Butler 2009, p. 25 em Shaw e Byler), a

precariedade é mais do que a condição dos nossos tempos (Tsing 2015, p. 26). É

também reconhecermos a nossa vulnerabilidade perante o mundo e sabermos que

35 No sentido de Pina Cabral sobre “estratégias de ação” que “correspondem a situações em que um grupo

determinado, ou, pelo menos, uma camada específica da população de uma sociedade, não consegue obter

os meios necessários à atualização das expectativas criadas pelos ideais hegemónicos (Pina Cabral, 2000,

p.885). Para uma análise mais aprofundada sobre o conceito de estratégia ver ainda Pina Cabral e

Lourenço, 1993, p.119. 36 De acordo com a Câmara Municipal do Barreiro, mais de 70 migrantes (entre os quais brasileiros,

angolanos, romenos, búlgaros, guineenses e cabo-verdianos), solicitaram apoio ao CLAI (Centro de

Apoio ao Imigrante, construído em 2005) do Barreiro logo no primeiro mês. Os problemas mais

recorrentes a serem documentados são “a legalização, prorrogação dos vistos, emprego, retorno

voluntário, saúde e obtenção de nacionalidade portuguesa”.

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dependemos dos outros para sobreviver (Tsing 2015). Compreender a precariedade da

vida é, assim, compreender a necessidade de coabitações e de “sociabilities of

emplacement”, para usar a expressão de Ayse Çaglar e Nina Glick Schiller (2016, p.11).

Neste sentido, julgo que também a apanha da amêijoa no Barreiro nos pode mostrar esta

condição de vida “sem empregos”. Mais, mostra-nos que a nossa capacidade para

partilhar experiências e colaborações em contextos de incertezas torna-se essencial.

As promessas não resolvidas de desenvolvimento e progresso levam-nos à

seguinte questão: como viver num mundo regulado pelo capitalismo e dependente de

uma economia política global com tantas incertezas? Num estado global de

precariedade, não temos escolha a não ser ocuparmo-nos então da esperança (Camus,

2016, p.129). Poderíamos, portanto, concluir que, se a passagem é “um fenómeno social

por excelência” (Pina-Cabral, 2000, p. 872) e se a liminaridade é tudo o que está nas

margens, não poderíamos deixar de descrever os lugares, ou melhor, os entre-lugares

que se caracterizam pelas conversas sobre o medo da morte e do escuro, ou pelas

experiências de informalidade. O estado liminar caracteriza também por isso as praias

fluviais que aqui percorremos, ou o caminho entre elas, “ao mesmo tempo dentro e fora

da estrutura social” (ibid, p.871). Esta ideia dentro e fora de uma vida social presente e

permanentemente recriada37 (Ortner, 1984 apud Pina-Cabral, 2000, p.872) obriga-nos a

trazer estas margens de vida para o centro da nossa discussão. Neste sentido, julgo que a

explicação daquilo que aprendi (e partilhei) no terreno sobre as trajetórias e os modos de

vida de quem fui conhecendo tornou-se essencial para a produção de conhecimento

desta dissertação.

37 Como nos foi possível observar, esta vida social é muitas vezes recriada a partir das sociabilidades, e

que aqui nos propusemos descrever.

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Capítulo 4: “Colegas sem patrão”. Relação, apanha e quotidiano

4.1. Prelúdio da Praia de Palhais até à Praia de Alburrica

São oito da manhã e a maré grande permite caminhar pelo rio em zonas ainda

pouco exploradas. Na Praia de Palhais, caminhamos pela margem do rio com galochas

de borracha até ao joelho. Deixo a minha bicicleta junto às outras, escondidas por baixo

de um monte de pedra próximo do rio, para saltarmos a pequena cerca de arame farpado

a meio da praia que nos impede de continuarmos caminho. Pela praia, já coberta com

pequenas poças de lodo, encontramos o L., a C., e o “Maluco”. “Hoje também vieste” –

comenta a C., enquanto olha para as minhas botas e o meu pequeno balde. Hoje o dia

vai ser longo. Em Palhais, a roupa dos apanhadores continua a secar, pendurada em

muros de pedra junto à praia. Antes de começarmos a trabalhar, a C. e o L. mostram-nos

as amêijoas que já conseguiram apanhar. “Só esta parte da manhã foram 6 quilos.

Quantas amêijoas é que devem estar aqui? Mais de mil amêijoas, para fazer 6 quilos!

Vocês veem aí o pessoal das ganchorras, quando metem aquilo pró ar, tiram com a mão,

mas não vão buscar aquilo com o dedo. Quando a gente apanha sabemos o que estamos

a apanhar”. “Assim, sim. Também ‘tou com os dedos todos cortados, olha lá.” responde

o S. Observam as mãos uns dos outros. “O balde da Sara é que vai estar cheio” –

comenta o “Maluco”. Riem-se. Não me importo, rio-me também.

Enquanto tento apanhar, escorrego várias vezes e fico com medo. “É seguir em

frente, sem medos. Aqui não há problema” – diz-me o S. Mantenho-me o mais próximo

da margem enquanto o observo a apanhar, tentando fazer o mesmo. Doem-me as costas

passados 15 minutos, mas já nem temos aqui areia para nos sentarmos. À nossa volta,

continuamos a ouvir os trabalhadores da Covelo e Pinto a cortar lenha lá ao longe. A C.

e o L. caminham rápido, enquanto vão apanhando. O S. fica perto de mim, mas não sei

por quanto tempo – a maré hoje é grande e tem que se fazer bom dinheiro, este é “o pão

do dia-a-dia”. Quando o tempo e a lua assim o permitem, é preciso aproveitar as duas

marés, mesmo que de noite seja mais perigoso por causa do nevoeiro e do frio.

Hoje é dia de lua cheia e o bom tempo permite ficar-se “do outro lado”38 a

38Ficar “do outro lado” significa ficar no Seixal.

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acampar, para começar a nova maré logo de madrugada. O “Lelo”, que é o único que

tem barco, leva as tendas para montarmos depois da apanha.

Nove da manhã: passado uma hora, as minhas dores de costas já se fazem sentir

bastante. “Não apanhaste nem um quilo, mas para a próxima apanhas mais. Os

primeiros dias são sempre fracos, né? Comecei aqui...apanhei dois quilos e meio!” - diz-

me o S. Apesar de saber que estou ali apenas em trabalho de campo, não deixa de querer

confortar-me.

Procuro apanhar as amêijoas pelos “olhinhos”, pela forma que fazem na areia.

Mas depois de um quilo apanhado, despeço-me dos apanhadores e parto de bicicleta

para a praia da Barra-a-Barra, onde estará o comprador, o “Sírio”, um homem negro

oriundo do Brasil. Na praia da Barra-a-Barra, o frio é quase sempre imenso. Mas na

maior parte dos dias, os apanhadores trabalham apenas com as mãos, apesar de se

avistarem algumas ganchorras cravadas na areia. Aqui, são sobretudo homens de mais

idade, alguns já bem ao longe, curvados. No meio do areal, uma casa de pescadores

completa a paisagem. Sento-me aqui várias vezes, enquanto observo os apanhadores.

Trocam geralmente algumas palavras e umas piadas, apesar de quase sempre

trabalharem sozinhos.

Aqui, carregada com um saco de plástico com as poucas amêijoas que apanhei,

encontro-me com o sr. Viriato, que observa outros apanhadores com os seus binóculos

profissionais.

- Então? Ainda bem que veio, já não a via há algum tempo – comenta.

Conversamos sobre os tempos da CUF, a apanha, e sobre a sua família, enquanto

observamos os apanhadores que saem do rio, à medida que a maré vai enchendo. Ao

fundo, reconhecemos as mulheres guineenses, a E. e a L. O sr. Viriato conhece-as bem,

já as ajudou muitas vezes.

- São simpáticas, qualquer uma das pretas. Eu comecei a ver que elas não tinham

muitas condições. Eu vim tantas vezes trazer a E. aqui. Ela mora ali naqueles prédios

(aponta). Veja, depois de um dia de trabalho, pense no que é vir a pé para aqui.

Para além delas, também os apanhadores que se vão juntando em grupos são

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sobretudo guineenses. À medida que vão terminando o trabalho, carregam as amêijoas

em carrinhos de bebé e em carrinhos de compras pelo caminho de terra batida que vai

dar ao lugar da venda. Só quem conhece o comprador é que se sente à vontade para

entrar ali no “bairro” perto do rio, composto por várias casas autoconstruídas que

servem como pequenos armazéns e oficinas.

- Gostavas de ver uma venda, não era? Esta é a melhor altura, comigo aqui.

Conheço bem o Sírio – interpela-me o sr. Viriato.

Não obstante a experiência do sr. Viriato, o lugar não deixa de transmitir um

ambiente hostil, cheio de pequenos armazéns e oficinas de construção precária. Na

venda, são já muitos os apanhadores que esperam a sua vez para pesar as amêijoas numa

balança de gancho portátil, que quase todos os compradores usam. Aqui, trocam-se

sobretudo experiências passadas na apanha.

- As batatas são pesadas hoje – graceja o K. ao “Sírio”. Cada um põe à vez as

amêijoas no crivo. 10 quilos, 12 quilos, 15 quilos. Depois do negócio, juntam-se todos

em carros e vão-se embora. Negócio feito, amanhã é outro dia.

Enquanto conversamos, chegam as mulheres guineenses, a L. e a E. Ao

contrário do grupo que vai de barco com o “Lelo”, estas mulheres não vão ficar “do

outro lado”: há vários anos que criam os filhos sozinhas e amanhã é dia de trabalho em

Lisboa.

- Foi bom hoje para vocês! – comento, animada.

Riem-se. Apanharam 7 quilos cada uma, e por isso ganham 28 euros cada.

Apesar disso, não deixam de vir à mesma hoje para a maré do fim de tarde. Lava-se as

amêijoas e as redes, antes de as transportarem novamente no saco.

Duas da tarde. Chega o S., a C. e o L., vindos da Praia de Palhais. Vão enchendo

com amêijoas os baldes da Robbialac que o S. costuma usar nos seus trabalhos como

pintor alpinista. A amêijoa pequena que não venderam vai ficar para o jantar, ou guarda-

se para o dia seguinte, para o caso de outro comprador a querer.

Depois disso, é tempo de regressar a casa antes da maré das 18:00: uns vão de

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bicicleta, como o S., alguns a pé, como o L. e a C. e as senhoras, a L. e a E – vivem

todos em bairros diferentes, mas por vezes fazem juntos parte do caminho, por entre as

entradas e os percursos que servem de corta-mato apenas a quem conhece os lugares.

Quatro e meia da tarde. Já voltamos atrasados, deveríamos ter começado a

trabalhar por volta das 16h00, duas horas antes da baixa-mar. Trazemos casacos e

alguma comida e pomos tudo no barco do “Lelo”, junto às tendas. Esta noite não

regressamos.

Fim do prelúdio

O que este relato nos mostra é que uma parte significativa das estratégias de

sobrevivência baseia-se na criação de redes sociais informais, que permitem aos

apanhadores estabelecerem-se e acederem a oportunidades de rendimentos. Estas

dinâmicas ocorrem em situações onde as estratégias de organização comum de um

quotidiano limitado pela falta de oportunidades de emprego, se revelam, por isso,

indispensáveis. As palavras do Nuno Andrade sugerem tal:

“As alturas mais reais são antes e depois da apanha. A maior parte são precários e

pessoas com muitas dificuldades, mas ajudam-se uns aos outros. As pessoas são mais

genuínas e por pouco que tenham há sempre uma partilha e isso é uma coisa... pá,

fantástica. Como é que eles são capazes de sei lá… numa maré má são capazes de fazer

se calhar cinco euros por dia e esses cinco euros são para comprar uma onça de tabaco e

vão ao Lidl e compram uma caixa de pernas de frango e dividem uns com os outros,

porque o outro não apanhou, porque se aleijou numa mão, ou por qualquer motivo, e

fazem jantaradas com os amigos como nós fazemos”. [Transcrição de entrevista, diário

de campo, Lisboa, Junho de 2017]

Este fortalecimento dos laços sociais “from commodities to gifts” referidos por

Pnina Werbner para descrever a partilha dos recursos e de rendimentos em forma de

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comida, bebidas e alojamento (Werbner em Rogers, 1995, p. 213), são também

percetíveis entre os apanhadores nas boleias e transporte das amêijoas, na partilha de

informação sobre as técnicas e os percursos do negócio ou na solidariedade face à

precariedade, ao medo e a situações de pobreza e prisão, retratam a importância destes

encontros.

Contudo, se os laços sociais construídos por trabalhadores migrantes, e descritos

por Werbner, afirmam uma expansão de redes de amizade e entreajuda inicialmente

construídas em contextos de trocas comerciais que se vão desenvolvendo

posteriormente à luz de uma economia de oferta (Werbner, 1995), o que podemos

observar a partir das convivialidades emergentes em torno da apanha da amêijoa é o

caráter mais espontâneo destas relações39, que servem para manter e estabelecer um

estilo de vida dentro de hábitos de consumo, mas também de subsistência. Apesar desta

incorporação a este sistema que ao mesmo tempo os empurra para situações de

marginalidade estrutural, o que estas sociabilidades revelam é que, apesar do cariz

utilitário das dinâmicas comerciais aqui descritas, as trocas não comerciais aqui

observadas também se revelam como elemento agregador de interesses comuns e de

experiências partilhadas, num contexto de interdependência económica/comercial.

Como poderemos ver, os encontros aqui observados mostram-nos de que forma estas

interações podem caracterizar um sistema de troca mais complexo – onde as

expectativas sociais são negociadas – e não apenas para aquilo que são trocas isoladas

entre indivíduos.

4.2. Trocas, redes informais e sociabilidades

O prelúdio descrito no ponto 4.1 ilustra uma das muitas interações que tive a

oportunidade de experienciar durante o trabalho de campo. Julgo que muitas das

conversas que observei entre os apanhadores retratam bem uma partilha que vai para

além da sua situação comum de precariedade. Também as práticas e os percursos

39 Ao contrário da ideia desenvolvida por Pnina Werbner quando afirma o caráter duradouro das relações

de dádiva: “gifts thus reflect the long-term and durable nature of social bonds” (Werbner em Vertovec

etal., 1995, p.213).

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comuns facilitam formas de comunicação que atravessam diferenças culturais, religiosas

e linguísticas (Wessendorf, 2014, p.64). Neste sentido, argumento que as

convivialidades observadas não são limitativas às interações utilitárias. Mais do que

isso, procura-se aqui observar os encontros improváveis e compreender a capacidade de

pessoas diferentes viverem juntas - ideia partilhada por Richard Sennett a partir da sua

noção de “civility” (Sennett, 2005, p.1 em Wessendorf, 2014, p. 64). Esta capacidade

torna-se também, por isso, importante num contexto onde as boas relações sociais são

desejadas. Diz-me a C. num dos momentos da entrevista sobre a partilha de técnicas e

percursos:

“Para tu teres uma noção, vamos imaginar, tudo pode acontecer...porque as pessoas por

vezes [em relação ao não conhecer as técnicas de apanha] … tu dizes-me assim “ olha,

posso ir apanhar amêijoa, ajudas-me? Tipo com os olhinhos40 e tal para eu orientar

algum dinheiro?” E eu digo-te assim “pá, claro, óbvio”, ‘né?” [Transcrição de

entrevista, Diário de campo, Barreiro, 19 de Julho de 2018]

De facto, esta forma de comunicação – ou, para usar as palavras de Buonfino e

Mulgan, “learned grammar of sociability” (Buonfino et al. 2009 em Wessendorf, 2014,

p. 63) – centra-se muitas vezes nas conversas em torno das vendas, dos perigos na

apanha, ou das técnicas e materiais a usar. Como foi possível anotar no meu diário de

campo, num dos momentos de boa disposição entre a E. e o L:

“Essas botas de borracha são muito más para os olheiros, o melhor são os ténis”.

Responde o L.: “Ou então aquelas botas de surf ou as botas do talho brancas.”. O

“Velho”, que entretanto chega, responde rapidamente: “Pá, calça mas é as barbatanas

que daí não escorregas na lama!” [Diário de campo, Barreiro, 10 de Dezembro de

2017].

40 Ver explicação no Glossário desta mesma dissertação.

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Na maior parte dos casos, as redes funcionam como a maneira mais sólida para

gerir o negócio, controlar as vendas e comunicar problemas. Por exemplo, saber de

antemão quem está a comprar no dia e em que praia, é um fator decisivo no sucesso do

negócio (e na sobrevivência). A capacidade de adaptação à imprevisibilidade dos ritmos

e gestão de um negócio “por conta própria”, ilustra bem o estudo etnográfico de Anna

Tsing a partir de interações entre humanos e não humanos mediadas pelas dinâmicas de

comercialização e pelo capitalismo:

Precarity is the condition of being vulnerable to others. Unpredictable

encounters transform us; we are not in control, even of ourselves. Unable to rely on a

stable structure of community, we are thrown into shifting assemblages, which remake

us as well as our others. We can’t rely on the status quo; everything is in flux, including

our ability to survive[…] (Tsing, 2015, p.20).

Esta condição de precariedade que Tsing descreve, é referida pelos meus

interlocutores em situações inesperadas de negócio, e que implicam, por vezes, a

mudança de praia para a apanha. Geralmente, estas mudanças são influenciadas por

questões como as condições climatéricas ou mudança repentina do lugar de compra e

venda. Por isso, o manuseamento das técnicas e práticas de trabalho, ou o conhecimento

dos percursos são indispensáveis para garantir a manutenção do negócio. Também por

isso, estar na posse de ferramentas necessárias à apanha em determinadas praias – onde

as condições do solo obrigam ao uso de materiais que muitos não podem comprar por

razões económicas, como as ganchorras ou os barcos – faz com que alguns apanhadores

partilhem o que têm, como foi possível mostrar no caso das boleias no barco do “Lelo”.

Mais uma vez, estas práticas evidenciaram as dinâmicas de interligação entre estes

apanhadores face a condições de instabilidade que, apesar de comuns, são algumas

vezes experienciadas de diferentes maneiras pelos meus interlocutores, consoante os

horários de cada um, as condições económicas do momento ou certos rituais

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quotidianos que os distingue41. Mas apesar de por vezes ser evidente a formação (e

separação) de pequenos grupos, foram várias as oportunidades de participar em vários

momentos de entreajuda e de sociabilidades:

“Grandes calhaus – comenta o Lelo divertido relativamente às amêijoas que a

L. apanhou, ao mesmo tempo que grita para um dos apanhadores guineenses: - Epá, já

estão lavadas. Já tás a tirar o brilho todo ao material! - Epá, sim, mas tenho que lavar

bem as azeitonas – responde. Riem-se os dois.

Enquanto se prepara a venda, o sr. Viriato vai dando algumas informações aos

apanhadores sobre os lugares de venda e os compradores:

- Acho que o Sírio hoje anda a comprar no Lavradio. Hoje não faz sentido irem

a Palhais. Houve um imprevisto e o comprador ficou sem dinheiro e não está a comprar

mais – informa o sr. Viriato aos apanhadores.”

[Diário de campo, Barreiro, Janeiro e Fevereiro de 2018].

Como aconteceu nesse dia, é comum os compradores “residentes” não

aparecerem, o que força os apanhadores a deslocarem-se da praia onde estão até à praia

onde se encontra o comprador. Neste contexto, uma das solidariedades mais recorrentes

é a ajuda nas boleias entre pessoas. O sr. Viriato é um desses exemplos. Várias vezes,

para não irem carregadas até a outra praia, chega a dar boleia à L. e à E, que não têm

carro, e até mesmo a vender as amêijoas por elas, dando-lhes depois o dinheiro:

“Quando elas têm que ir trabalhar depois da apanha, escrevem o nome de cada

uma nas redes das amêijoas e eu vou lá vender as amêijoas. Uma delas até me queria

dar dinheiro, mas eu não aceitei.”

[Diário de campo, Barreiro, 30 de Junho de 2018].

41 Por exemplo, é possível observar uma separação clara entre os apanhadores que fumam e os que não

fumam, ou reprovam o ato.

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Para além desses momentos de amizade entre o sr. Viriato e as senhoras

guineenses, também são vários os apanhadores que vão de boleia de barco com o “Lelo”

até aos lugares por onde só assim se consegue passar. Em momentos de convivialidades

como estes, observamos quase sempre pontos de união: é a fogueira, onde alguns se

juntam no inverno para assar comida e beber; as mesas de madeira próximas do bico de

água, onde se preparam churrascos; os bicos de água, onde se lavam as amêijoas; as

árvores, onde se penduram as roupas a secar; e o café da coletividade dos pescadores,

onde se juntam sempre os apanhadores de manhã antes da apanha. Geralmente, os

momentos de convivialidade acontecem entre as marés, antes da baixa-mar e depois da

preia-mar (maré cheia). Antes da baixa-mar, os apanhadores juntam-se para se vestirem,

calçarem, fumarem e prepararem o material para a próxima maré. Os momentos da

venda caracterizam-se, sobretudo, pela partilha de algumas piadas e medos, ou para

perceber aquilo que os outros apanharam: ao contrário das lutas imediatas, de Susana

Narotzky, aqui não há competição: “Ninguém come com o dinheiro das amêijoas dos

outros”, diz-me o Z., em conversa.

Uma das observações mais interessantes na construção de convivialidades

prende-se com as dinâmicas de partilha de práticas e técnicas entre estes apanhadores, e

a forma como estas facilitam a comunicação e a construção de coabitações para lá das

diferenças culturais, de forma a resolverem situações inesperadas e manter relações. De

facto, as conversas em torno do seu quotidiano de trabalho nunca deixam de ser uma

presença constante nos elementos de partilha. Numa arena comum de diversidade, como

a que se propõe analisar, as interações entre apanhadores com religiões, situações

económicas e etnicidades diferentes, não são, por isso, incomuns. Para além de algumas

interações espontâneas, existem ainda formações de grupos que se vão construindo pela

partilha de interesses, laços de parentesco ou ritmos de vida comuns. Apesar dessas

interações, é interessante ver que a distinção étnica, por parte dos meus interlocutores,

continuou, em vários momentos, visível (como os meus interlocutores referiam várias

vezes: “as pretas; os blacks, os ciganos, o tendeiro”). Neste sentido, observa-se que as

diferenças e a diversidade tornaram-se aqui, não inexistentes, mas de certa maneira

“banais” (Wessendorf, 2014).

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70

4.3 “As empresas somos nós”: Técnicas e práticas de trabalho

Como me foi possível acompanhar ao longo dos percursos, uma das maiores

diferenças entre as praias são as condições de acesso e a necessidade de adaptação a

diferentes técnicas42. Por isso, um dos fatores que distingue os vários grupos prende-se

com as técnicas e as práticas de trabalho43. Esta diversidade de práticas facilita a

interação e a partilha de ferramentas, roupas, e constituem-se como tema central nos

convívios antes e depois da apanha. Por causa dos riscos de vida neste trabalho, muitos

destes apanhadores acabam por aprimorar uma ou duas técnicas apenas em praias que

lhes são familiares, não correndo riscos de sofrerem acidentes. Contudo, as redes de

negócio até Espanha, as dificuldades climatéricas e a (in)disponibilidade dos

compradores em determinadas praias, acabam por forçar, de certa maneira, os

apanhadores a adaptar-se, o que exige recursos económicos e sistemas de entreajuda.

Como podemos notar, o caráter precário destes quotidianos molda os ritmos e as

próprias técnicas de trabalho destes apanhadores44.

A frequência com que estes apanhadores trabalham varia muito, mas os

apanhadores que conheci de perto trabalham quase todos os dias, ou, caso acumulem

outros trabalhos, alguns dias por semana45. Por isso, as práticas e as técnicas tornam-se

também rotinas diárias e permanentes que podem levar a encontros mais ou menos

habituais com as mesmas pessoas – no café da coletividade, na Praia do Copacabana, ou

42 Para além das ferramentas que se podem usar neste trabalho, a apanha da amêijoa passa também por

um “trabalho de agricultura” - como alguns dos meus interlocutores me descrevem. Um caso disso é o S.,

que vai semeando as amêijoas na “Caldeira do Alemãoº”, onde chegou a apanhar 16 quilos num só

viveiro. Para protegerem a sua “plantação”, os apanhadores escolhem sítios pouco prováveis para os

outros apanhadores. Estas “manhosices” - como refere o Z. a brincar - são realizadas simultaneamente

com outras práticas e convivialidades que vão marcando o seu dia-a-dia destes apanhadores. Estas

“manhosices” - como refere o Z. a brincar - são realizadas simultaneamente com outras práticas e

convivialidades que vão marcando o dia-a-dia. 43 Note-se como exemplo o grupo de homens guineenses, que se distinguem pela forma como carregam

os garrafões de água durante a apanha da amêijoa. 44 Observar, por exemplo, o relato das experiências do Z. - que dificilmente consegue planear a semana de

trabalho; ou as experiências dos apanhadores que ficam doentes e sem o “pão do dia-a-dia”, passando

pelo risco de multa por parte da Polícia Marítima. 45 Este tipo de trabalho não tem horas certas para começar. Tudo depende das marés, do risco e se há

compradores ou não naquele dia. O preço da amêijoa varia consoante a oferta e a procura. Em épocas

festivas como no Natal ou na Páscoa, atinge os 6 euros/ quilo.

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no Bar dos Pescadores, na Praia do Bico do Mexilhoeiro. Como pude constatar, estas

situações de encontros quotidianos, facilitam, de facto, o contacto entre indivíduos com

histórias de vida distintas, contribuindo igualmente para a produção de lugares de

pertenças. As palavras do fotógrafo e arquiteto Nuno Andrade sobre uma casa

autoconstruída de um apanhador, de quem se tornou grande amigo, o Guerra, recordam

que estes momentos de mutualidade – ou “getting alone”, nas palavras de Susanne

Wessendorf (Wessendorf, 2014, p.77) – encontram-se, também, nos lugares onde se

constrói a própria ideia de “casa”:

“Isto aqui é o presépio do Guerra que vive aqui ...os outros vão apanhando

coisas também na areia que vão dando à costa; alguém lhe traz umas máscaras que

apanharam não sei onde; capacetes das obras e duendes...e ele montou o presépio dele.

Isso foi no Natal. Mas era o presépio dele. E o presépio ia mudando, foi sendo

acrescentado. Isto é, por exemplo [mostra outra fotografia], é a mesa, do Guerra... esta

mesa fica mesmo ao pé da barraca, e foi um amigo dele, que tem um pomar não sei

onde, e então lhe ofereceu estas laranjas [...] as pessoas passam, como sabem que ele é

um dos mais necessitados, deixam-lhe um copo de leite... vão lhe deixando coisas. É

giro… há aí um tipo que também lhe deixou alguns tomates…. Então...eu chegava e

descobria sempre coisas diferentes sobre a mesa. A mesa por si só podia ter dado um

projeto.”

[Transcrição de entrevista, diário de campo, Lisboa, Junho de 2017].

“Amanhã é o dia de amanhã”, é talvez uma das frases que os apanhadores mais

utilizam para descrever o seu próprio ritmo de trabalho e a dinâmica de rendimentos na

apanha, onde se recebe diariamente em dinheiro, no momento da venda. Esta

possibilidade permite alguma autonomia para muitos deles, e, por isso, depois de me

relatarem as várias experiências em trabalhos sazonais e de algum tempo à procura de

emprego, são alguns os que desistem e que se dedicam inteiramente à apanha da

amêijoa:

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“A gente desistiu e começamos a ir para a maré, e fica difícil depois como eu te

disse ainda há bocado, voltar um bocado atrás, ‘né? Que é não receberes o teu dia-a-dia

para começares um trabalho. É difícil….em 30 dias…tu comes todos os dias, tomas um

cafezinho todos os dias...fica difícil. Eu sou-te sincera, a gente não anda agora à procura

de trabalho porque a gente gosta de apanhar amêijoa. E olha amanhã é o dia de

amanhã”.

[Transcrição de entrevista, L. e C., diário de campo, Barreiro, 18 de julho de

2018].

A instabilidade leva estes apanhadores, por isso, a procurar oportunidades de

rendimento que possibilitem viver apenas do negócio da amêijoa, fator importante para

quem tem mantido “a sua própria empresa”. Neste sentido, as preocupações debruçam-

se particularmente com a luta em viver o dia-a-dia, dando mesmo, em alguns dos casos,

pouca importância a instituições como a Segurança Social:

“Para chegar um dia e a gente se calhar nem ter reforma...é mesmo assim. A

gente sabe lá. Se eu vivesse para sempre se calhar até pensava dessa forma, sou-te

sincera. Teria outro tipo de preocupações. Epá, mas um dia não vou estar cá, portanto…

eu vivo o meu dia a dia, temos que viver o nosso dia-a-dia”. [Transcrição de entrevista,

L. e C., diário de campo, Barreiro, 18 de Julho de 2018].

Este “viver o dia-a-dia” marca um quotidiano que passa também por certos

confrontos legais relacionados com a apanha e comercialização de bivalves: neste

contexto, a informalidade e a ilegalidade constituem-se como processos de um mesmo

negócio com uma grande diversidade de atores envolvidos – dos apanhadores locais,

aos vários intermediários, até aos grupos que gerem as redes de negócio até chegarem a

Espanha e França46. Pelas grandes probabilidades dos materiais serem confiscados e

46 Se por um lado, a contaminação, poluição e a (ainda) incapacidade institucional para criar um sistema

de depuração e tratamento dos bivalves impossibilita a sua comercialização, por outro, não se revela

muito difícil a pequenos negócios em torno da apanha manobrar a lei com pequenos sistemas de

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pelas próprias limitações económicas de muitos apanhadores, muitos utilizam apenas a

mão ou ancinhos. Estas técnicas requerem pouco material, mas a necessidade de

apanhar em maiores quantidades leva ao uso de técnicas de arrasto, como as que são

utilizadas nos barcos ou com ganchorras47. Muitos, pela necessidade, improvisam ainda

(com materiais baratos) vários apoios que os ajudem a trabalhar com menos esforço e a

passar melhor o tempo dentro do rio, como indica esta prancha de esferovite cortada,

presa com um cordel à cintura, que transporta a rede que os apanhadores utilizam para

irem armazenando as amêijoas que vão apanhando. Mais uma vez, as convivialidades

assumem-se como momentos-chave para se conversar sobre os perigos do negócio e

para se trocar informações sobre o trabalho.

Ilustração 9

Apanha da amêijoa na Praia do Barra-a-Barra. Fotografia tirada em Setembro de 2018

depuração caseiros de pequenos compradores que negociam diretamente com os apanhadores. De facto, à

exceção do sr. Dias da Silva, a maior regulamentação para a comercialização da apanha e comércio é

vista pelos apanhadores como uma proposta que poderá trazer qualidade de vida, dependendo das

condições de segurança e de possibilidade de rendimento. 47 Ver capítulo do Glossário nesta mesma dissertação.

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A respeito da importância do estudo das convivialiades, ou, nas palavras de Paul

Gilroy, sobre a multicultura48 (2004), vários autores têm questionado as limitações de

uma observação direcionada para o estudo a partir das diferenças entre comunidades

étnicas (Baumann. 1996, Vertovec, 1996, Brettell, 2003, Glick Schiller et al., 2006).

Como tivemos a oportunidade de desenvolver, estudos como o de Nina Glick Schiller e

Aysa Çaglar (2009, 2016) têm contribuído para um debate que quer mostrar como,

através da antropologia, podemos contestar ideias essencialistas como raça, etnicidade e

cultura49. Como escrevo no meu diário de campo:

“Pareces uma gaja” – diziam a um apanhador guineense que vestia uns collants

pretos antes de entrar no rio para a apanha. Ao mesmo tempo e no mesmo lugar, um

apanhador autóctone, que cresceu nesta praia do Copacabana num antigo bairro

autoconstruído, pergunta a outro apanhador, de origem romena: “Estas batatas [as

amêijoas] são para fritar ou para cozer?”. Riem-se os dois. Quando chamam batata a

uma amêijoa é bom sinal, quer dizer que a amêijoa é boa para vender.” [Diário de

campo, Lisboa, Fevereiro de 2018]

Como vimos, as práticas50 utilizadas por estes apanhadores mostram a multiplicidade de

maneiras possíveis de partilhar um quotidiano de trabalho marcado pela instabilidade e

dependência de certas redes sociais. Estas formas de encontro relembram o que são as

possibilidades de coabitações, apesar dos crescentes populismos. Além disso, observar

as técnicas partilhadas faz sentido neste contexto para enquadrar um ritmo e modos de

vida praticados em múltiplos lugares de diversidade e partilhado entre residentes, que se

48 Forma de interações espontâneas e modos de negociar diferenças étnicas e culturais que continuam a

acontecer quotidianamente no espaço urbano (Gilroy, 2004). 49 Ou para questionarmos categorias como identidade e diversidade. 50 Nesta praia, o tempo passa de uma outra maneira. Com uma vida que poderia ser para muitos apenas

impermanente, estes apanhadores regem-se por uma tabela de marés pouco previsível. É a partir dela que

organizam a sua vida e consultam os horários e a altura das marés e as várias fases da lua, que informam

se a maré irá, ou não, ser boa para a apanha. Por isso, esta tabela anda sempre com eles.

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estendem para além do bairro. Neste sentido, propõem-se mais estudos que criem novas

categorias para compreender as negociações da diferença nas práticas quotidianas.

4. 4. Epílogo na Terra do Nunca

Encontrei os apanhadores pela primeira vez na Praia do Copacabana, depois do

meu encontro com o Z. Sentados no banco de madeira escondido nas árvores que

ocupam a praia, foi a partir desse dia que, enquanto caminhávamos, me deram a

conhecer as suas técnicas de apanha e práticas. Enquanto percorríamos a praia, a C. E o

L. mostravam-me “os olhos” das amêijoas enquanto as retiravam do rio. Nesse

momento, só pensava que, mesmo tendo passado por ali tantas vezes à procura de mais

informações, dificilmente poderia imaginar a quantidade de amêijoas que se escondiam

nesta textura de rio se eles não me tivessem mostrado. Este método de encontro e de

apanhar com as mãos requer prática e paciência. Sobretudo pede que se conheça bem os

lugares. Subsistir num contexto de perigo e de precariedade requer, por isso, uma boa

dose de imaginação, e uma forte combinação de conhecimento e sensibilidade. A

comercialização desta amêijoa foi a estratégia de obtenção de rendimento que permitiu a

muitos destes apanhadores alguma estabilidade a curto prazo, apesar dos perigos.

Estes capítulos etnográficos procuraram elucidar o argumento teórico em torno

da importância das sociabilidades como unidade de análise, onde o recurso à

informalidade e à entreajuda ganham uma importância central nas estratégias de

incorporação social e económica (Schiller et al. 2016) ou ainda na decisão voluntária de

certos modos de vida (Scott 2009). Já o conceito de liminaridade, desenvolvido por

Victor Turner ajuda-nos aqui talvez a repensar a marginalidade e a informalidade não

como condições sociais estanques, mas enquanto processos51: a marginalidade torna-se

aqui, assim, também o centro - para relembrar Pina-Cabral (2000) e um dos argumentos

desta dissertação.

Na apanha da amêijoa os encontros tornam-se “happenings”, ou, nas palavras de

51 É importante relembrar que se por um lado, pensar em informalidade pode caracterizar algum tipo de

limitação analítica, por outro, pode ser uma ferramenta útil para estudarmos processos de marginalização

(Mapril, 2010).

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Anna Tsing, “contaminações” (Tsing, 2014, p.31). O estudo das convivialidades evoca

também, por isso, a importância destes encontros que não se limitam a nacionalidades,

educação, género ou idade. Aqui, todos são apanhadores. E todos relatam alguma

história de contaminação - e de que forma esta influencia os seus projetos de vida e lhes

aponta novas direções, e que nos recordam esta intersubjetividade que é o mundo

partilhado e que a antropologia não esquece. Este viver com os outros numa arena

comum marcada pela precariedade relembra-nos a nossa capacidade de mudança

perante novas situações e de encontrar pontos de contacto que nos permite sobreviver,

mesmo com medo.

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CONCLUSÃO COM FINAL ABERTO

- Então, a que horas disse que tinha que apanhar o barco? - pergunta-me a D.

Maria da Conceição.

A despedida é sempre um processo com fim aberto. Sei que, no entanto, os meus

percursos de bicicleta pelo Barreiro estão longe do fim, apesar do distanciamento que a

dada altura precisei de manter para começar a escrita desta dissertação52. O regresso fará

parte desta viagem e sei que também começarão outras.

Os acessos ao terreno foram os momentos mais difíceis do trabalho de campo.

Ganhar confiança destes apanhadores em tão pouco tempo foi outro longo caminho. Sei

agora que ter estado sozinha facilitou, em muito, o acesso e a inter-relação entre nós.

Pelo seu caráter exploratório, experienciei algumas vezes momentos de tensão e

desconfiança, que também resultaram em informações úteis sobre o terreno. Durante

meses, descobri sempre alguma coisa, ou alguém, simplesmente por estar lá – mesmo

quando, por vezes, julgava nada acontecer. O como chegar às pessoas foi, assim, a

principal questão metodológica deste trabalho de campo. A seguir, seguiu-se o aprender

a ir compreendendo o que estava a ser dito, e o que não era dito em palavras. As

etnografias mais exploratórias podem levar a alguns atrasos e limitações, pela

dificuldade de acesso ao campo ou pela sua imprevisibilidade, mas também podem

trazer várias surpresas que nós, estudantes e investigadores de ciências sociais, podemos

anotar.

Antes do meu trabalho de campo no Barreiro, fiz parte de uma associação sem

fins-lucrativos sediada num bairro social, em Lisboa. Durante três meses,

desenvolvemos diversas atividades financiadas pelo Programa BIP/ZIP e, durante esse

tempo, tive a possibilidade de realizar um exercício etnográfico com observação

52 Ao longo da escrita, regressei ao campo cinco vezes unicamente para regressar - para me encontrar com

alguns apanhadores mais próximos e para tirar algumas fotografias.

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participante. Uma das minhas últimas notas de campo para esse trabalho pode servir

aqui como um exercício de reflexão sobre como escolhi também chegar às praias

fluviais do Barreiro e a sua influência nos resultados finais:

”Não posso deixar de pensar sobre o que teria sido diferente se tivesse começado este

trabalho de campo sozinha, se tivesse tomado a iniciativa de observar antes as próprias

práticas do quotidiano e as atividades dos próprios moradores do bairro, sem a

mediação de uma associação em contexto de uma iniciativa BIP/ZIP. Conhecê-los de

outra maneira. Seria também interessante. Esse momento aconteceu, foi quando visitei

as hortas informais do bairro, construídas pelo sr. Pedro.” [Diário de campo, Lisboa, 10

de Maio de 2017]

De facto, não tenho dúvida de que o meu percurso sozinha por estas praias,

enquanto mulher, facilitou a minha aproximação a estes apanhadores e tornou mais

rápido o processo de confiança que me permitiu observar as vendas e a apanha em

muitos momentos. Porque, ao contrário da minha experiência nesta associação - onde as

atividades eram planeadas antecipadamente com os moradores do bairro - julgo que o

caráter exploratório deste trabalho de campo facilitou uma observação mais atenta dos

modos e percursos de vida de quem me propus estudar.

Se, por um lado, a etnografia permite-nos participar e observar um mundo que

não é o nosso, da perspetiva do outro (Emerson e Shaw, 2011), por outro, o processo

etnográfico não é apenas a observação participante face (por vezes) a um novo mundo: é

também observarmos a nossa capacidade em produzir conhecimento em situações

imprevisíveis. Os percursos que realizei em bicicleta, a utilização constante do meu

telemóvel antigo sem câmaras ou gravadores, as roupas informais, a pequena máquina

fotográfica antiga e as entrevistas semi-direcionadas (conseguidas apenas na última fase

de trabalho de campo, depois de vários meses de relação com os apanhadores), forma,

sem dúvida, fatores determinantes para a produção de conhecimento e recolha de dados.

Ao longo desta dissertação, procurei argumentar que os meus interlocutores, na

sua maioria apanhadores de amêijoa, organizam-se de forma a conseguirem gerir as

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oportunidades de rendimento que lhes permitam manter um determinado estilo de vida,

que não só lhes possibilite alcançar maior estabilidade, como também ter alguma

flexibilidade de horários e liberdade, por vezes descrita por muitos interlocutores

relativamente “ao trabalho da amêijoa”, como a liberdade sentida por se ser o próprio

patrão53. Num contexto económico e social, onde a especialização técnica e a

escolaridade são muitas vezes de difícil acesso, a inserção no mercado de trabalho

global em Portugal faz-se, muitas vezes e por isso, entre a formalidade e a

informalidade com grande precariedade, sobretudo para quem se encontra em posição

de marginalidade estrutural – como as situações aqui observadas de indocumentação54 e

de baixa escolaridade, ou falta de competências técnicas comprovadas55. Estas

dificuldades, aliadas a uma vontade de alcançar ou manter um determinado percurso de

vida, faz com que estes apanhadores encontrem projetos migratórios que lhes

possibilitem encontrar a diversidade de trabalhos necessários para responder às suas

necessidades. Simultaneamente, a produção destes lugares de pertença e de negócio –

que aqui podemos traçar a partir dos percursos entre as praias que fui mapeando –

tornam mais reais esta dinâmica: muito utilizadas pelos apanhadores para estabelecerem

as suas redes de sociabilidades e negócios, as relações observadas nestas praias estão,

quase sempre, relacionados com a apanha da amêijoa, mas nem sempre diretamente.

Como me foi possível verificar em diversas situações como a venda informal de

cervejas e cafés, nas hortas urbanas de cariz informal, que alguns destes apanhadores

mantêm, e face à entreajuda anotada ao longos destes meses entre apanhadores em

vários momentos, podemos argumentar que, num quotidiano marcado pela instabilidade

das marés, das condições meteorológicas ou da inconstância das vendas, a relação

nestas praias acabam por representar também uma forma de tornar a vida mais estável.

Sobre a (re)produção de um lugar em espaços públicos, José Mapril observa, à luz dos

53 Esta liberdade é referida muitas vezes pelos meus interlocutores. Por exemplo, no caso do Z., que vai

conjugando trabalhos a tempo parcial que lhe permita desenvolver a sua atividade enquanto músico com

maior facilidade; ou nos casos da L. que pode ir conjugando com o seu trabalho na Autoeuropa – entre

fins-de-semana e feriados – de forma a poder juntar dinheiro e passar temporadas com o marido, também

de origem guineense mas a viver entre França e Inglaterra. 54 Como o caso de alguns dos jovens guineenses. 55 Como o caso da C., do L., ou da situação do S., que esperava conseguir um certificado para trabalhar

enquanto pintor alpinista.

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fenómenos migratórios entre Portugal e o Bangladeche, que:

“A ritualização do espaço transnacional é uma forma de produzir novos lugares

de pertença e reproduzir, simultaneamente, os lugares donde se saiu […]. Representa

fixar o movimento, portanto uma reterritorialização, tanto no Bangladeche como em

Portugal.” (Mapril, 2012, p.329).

No entanto, ao contrário do que esta literatura nos mostra, nenhum dos meus

interlocutores partilha uma ideologia de flexibilidade e mobilidade. Partilham, sim,

vários lugares de pertença que se criam em torno de um negócio que é, em si, marginal.

O “montar a casa” nestas praias – com objetos como bonecos ou colares encontrados no

rio e que servem para montar um presépio de Natal, até à construção de mesas em

madeira para churrascos – torna-se também, uma forma de “fixar o movimento”

(Mapril, 2012).56

Depois de concluído o trabalho de campo e de análise de dados, o

enquadramento teórico tornou-se essencial para fundamentar a informação recolhida.

Pensar de que forma é que a precariedade estimula “novos circuitos de sobrevivência”

(Sassen, 2012) e possibilidades de vida (Tsing, 2015), passa também por observar as

estratégias de “emplacement” (Glick Schiller et al., 2016) entre a formalidade e a

informalidade (Hart, 1973; Laguerre, 1994) em zonas de refúgio (Scott, 2009) nos

limiares das margens (Pina-Cabral, 2000), lugares de encontro e de possibilidades de

rendimento onde várias pessoas viram na comercialização da amêijoa uma prática

possível para lidar com a falta de segurança, mas assegurar também certas liberdades.

Neste sentido, somos levados a pensar que, se a vida social está constantemente

a ser recriada, porque não procurar dar ênfase ao que se constrói de comum quando

certos percursos de vida diferentes acabam por se encontrar em vários momentos de

56 Não ignorando as dinâmicas de exclusão social e reestruturação das cidades na economia e política

globais que facilita ou dificulta a inserção no mercado de trabalho e as oportunidades para ascender

económica e socialmente, a marginalidade é aqui entendida como processo que dialoga com outras

dimensões e escolhas de vida e não como um acontecimento. Com efeito, não posso deixar de propor uma

reflexão que questione também até que ponto a marginalidade é também voluntária.

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precariedade semelhantes? Como Abrahams afirma:

“Enfatizar as características comuns da experiência requer uma redefinição da

própria cultura, afastando-se das práticas celebradas, dos comportamentos regulados e

obrigatórios das nossas vidas partilhadas, e enfatizando mais a relativa tipicidade do que

acontece recorrentemente a indivíduos que se encontram em situações semelhantes.”

(1986, p.60 em Pina-Cabral, 2000, p.872).

A partir de uma perceção etnográfica que procurou ser – como afirmamos –

intersubjetiva, esta “experiência partilhada” procura entender as convivialidades como

elemento central na reestruturação social, onde a pessoa surge aqui definida “para lá da

lente étnica”. Este estudo das convivialidades leva ao tema seguinte desta dissertação,

pois permite afirmar o papel da antropologia e das ciências humanas na sua capacidade

para entender como é que as pessoas gerem as suas vidas em situações de forte rutura

económica e política.

A reflexão etnográfica torna-se, assim, parte importante no acompanhamento

das subjetividades do mundo e na procura por compreender a diversidade dos seus

modos de vida. Se a vulnerabilidade da nossa condição pode significar sermos

incapazes de prever a própria vida, também pode estimular aquilo que Camus nos

descreve como “a criação sem amanhã” (Camus, 1942 [2016], p.105). Esta, pode ser

aqui entendida como uma forma criativa de sobrevivência – mais do que de resistência –

que permite atravessar o recorte empírico aqui proposto.

De facto, as “comunidades” continuam a encontrar várias formas de se

interligarem que ultrapassam diferenças étnicas e culturais. Formas essas que, em

situações de dúvida e de instabilidade, tornam-se mesmo inevitáveis e desejadas. Como

estudar, então, situações de diversidade, mobilidade e fragmentação é, por isso, uma das

preocupações desenvolvidas no ponto do capítulo sobre a produção de conhecimento

(Ponto 1.3 do Capítulo 1). Uma das formas – argumenta Karren – é através de narrativas

sobre situações de “displacement” que procurem questionar a capacidade das

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instituições e dos Estados em assegurar direitos fundamentais em contextos de transição

económica e política (Greenhouse et al., 2002, p. 391). Neste sentido, é possível

corroborar a ideia da autora quando afirma que o ofício do antropólogo é, também, o

estudo da instabilidade, incerteza e fragmentação:

“As a result, anthropology has increasingly become the study of instability and

fragmentation, of systems caught in contradictory currents of change”. (Greenhouse et

al., 2002, p. 380).

É neste sentido que se propôs nos pontos 2.1 e 2.3 olhar atentamente para as

interações sociais destes apanhadores, de forma a anotar os vários momentos57 que

procurem proteger uma ideia de estabilidade58. Voltamos aqui, então, à importância das

convivialidades como unidade de análise em etnografia, desenvolvida nos pontos 2.3 e

4.2, e que nos remete para o estudo da diversidade à luz do encontro apesar da

diferença. É certo que a instabilidade redireciona os percursos de vida e os projetos que

traçamos. Num estado global de precariedade, restam-nos poucas escolhas senão

continuar a procurar com os outros.

57 Ou, nas palavras de Ghassan Hage, “any desirable intersubjective” em “spaces of commonality” (Hage,

2014, p.236 apud Glick Schiller et al., 2016, p. 21). 58 Por exemplo, no “montar a casa” nas praias, nas redes de negócio e na preparação das técnicas de

trabalho.

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GLOSSÁRIO

Ancinhos - Instrumento agrícola em forma de pente, usado para limpar ou aplanar terras

agrícolas ou ajardinadas.

"ancinho", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

“Andar aos olhinhos” - Expressão informal que refere o ato de identificar as amêijoas

enterradas no rio pela sua forma circular e que permite apanhar mais rápido.

Cão - Garrafão de cinco Litros cortado por cima utilizado pelos jovens guineenses para

transportar as amêijoas durante a apanha. Geralmente, o garrafão é amarrado com uma

corda pela cintura.

Crivo - Espécie de peneira de fio metálico; Género de coador.

"crivo", em Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

Ganchorra - Saco de rede cuja abertura está ligada a uma estrutura rígida, de forma e

dimensões variáveis dotada, na parte inferior, de um painel com ou sem dentes que

revolve o fundo. Os bivalves ficam retidos numa espécie de saco ou crivo que permite a

saída da água, areia e lodo.

“ganchorra”, em Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimo,

https://www.dgrm.mm.gov.pt/ganchorra

Olheiros - Ponto de onde rebenta a água do solo; Olho-D'Água

"olheiros", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

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LISTA DE FIGURAS OU ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1 .................................................................................................................................. 20

Ilustração 2 .................................................................................................................................. 23

Ilustração 3 .................................................................................................................................. 29

Ilustração 4 .................................................................................................................................. 31

Ilustração 5 .................................................................................................................................. 40

Ilustração 6 .................................................................................................................................. 41

Ilustração 7 .................................................................................................................................. 47

Ilustração 8 .................................................................................................................................. 56

Ilustração 9 .................................................................................................................................. 73

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ANEXOS

ANEXO 1

A Terra do Nunca. Uma etnografia em poemas

1.

Os medos

Tu, que vais ao fundo,

esse modo de andar.

Dás mais um passo!

Caminhas para trás e perdes-te,

lances sucessivos de sorte

e de regresso,

para mais um dia de trabalho às amêijoas que negaste ao lodo

e que não colheste.

As tuas mãos e as praias de consolo

livram-te de mais um dia,

do bater assim de repente, em profundidade…

Porque se o chão estremece,

revoltas-te de joelhos.

Não vês que te pões diante do rio, sem medo? - pergunta alguém,

um apanhador como tu e sabe.

Se morreres,

é cansado mas a rires-te,

da imprevisibilidade dos momentos que se disfarçam,

e do rio que não cai

para te dar abrigo.

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2.

O trabalhador do rio

Estilhaças-te solitário no rio

onde te curvas horas a fio com ancinhos

contra o sol que te enegrece a cara,

nos momentos em que duvidas das próprias mãos.

Guias-te pelas marés na sucessão dos dias,

para te achares duas horas antes e duas horas depois da baixa-mar.

Muitas vezes, vais ao encontro de quem não sabes se aparece,

ou se voltarás a encontrar.

Tu, que procuras esta incerteza à permanência dos dias que não levaste contigo,

que preferiste o rio que se recusa

quando se toma por lama

e que te afunda, em certeza.

Resistes ao frio quando não vives sozinho

e perguntas ao apanhador que te está próximo:

“Então Firmino, safas-te ou não?”

Acenas à beira-mar adentro,

a água à superfície dos joelhos.

E convives. Contigo e com os outros,

certo que dependes disso. Ris-te como quem sabe.

3.

A Realidade

Dizes-me enquanto te sentas sem pressas na Terra do Nunca,

praia de roupas estendidas a secar e de bicicletas velhas,

onde o vento é insuportável mesmo na Primavera.

Vou-te mostrar a casa dos pescadores, um lugar que as pessoas da nossa idade não conhecem e

nem querem conhecer.

Desde pequeno que sabes que as marés grandes são as marés boas.

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Apesar do cansaço, reconheces quem te é próximo apenas pela forma como pisam a lama,

ao longe no rio

as pernas e as mãos cansadas

a raspar horas a fio com ancinhos presos aos fatos de mergulho,

e bóias e redes cheias de futuro.

Ninguém nasceu para o mesmo - desabafas com confiança.

A realidade.

Mesmo com o frio que te corta as mãos,

sabes que o futuro é o que está no presente,

mas também esse depende do tempo e das marés.

A sorte nunca dependeu de nós - pensas, curvado na areia

enquanto uma apanhadora grita ao marido que foge dos olheiros.

Olha o fio preso na rede.

Gritam um com o outro como quem sabe, sem se ouvirem.

Conheces bem os barcos cheios de lama,

as casas pintadas de azul vivo à mão, mesmo depois dos quarenta anos.

Mas ainda assim foges do tempo a andar de bicicleta,

Com baldes de amêijoas a esquecerem-se do frio.

No teu mundo e no teu tempo bebes tudo e fumas todos os cigarros,

próprio de quem escolheu o rio e sente medo.

Medo da morte e do dia de amanhã de não apanhares nada.

E no rio, escondes a ansiedade e o frio com galochas que amarras aos pés.

Mas sorris sempre, estremecido!

Sabes que não podes entrar aqui pelo meio por causa dos olheiros, tens que contornar pela borda

- dirias-me.

O negócio torna-se para ti numa forma de subsistência,

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por vezes voluntária,

entre quem compra e quem vende,

o beijo ou o dinheiro como recompensa.

Que Acaso as tábuas de marés condenam,

quando começam a subir e perdes o fundo.

Acaso de indiferença do trabalho que para ti nunca acaba.

Este medo da morte e da vida que te faz rir,

a ti - viajante - que regressas todos os dias de barco a casa para venderes por pouco o que

apanhaste.

4.

A Praia

Ao longe, secava-se o bacalhau.

É uma praia, como dizer… vacilante.

Farta de barcos, terra e fumo

entre o castanho-verde de lama

e o azul vivo do que não escolhemos.

Na Praia do Copacabana namoras,

lugar que se declara a ti em vasos de água,

banquete sem expectativas.

A este lance, a partilha

onde supões subsistência.

Apesar das mãos maltratadas,

mulheres e homens guineenses alegram-se até à preia-mar

sobre o crivo que rege o que há-de vir

e os efeitos das horas inclinadas.

Estendes-te então de bicicleta receptivo

cobrindo a fraqueza.

Tudo pode acontecer - ironizas o teu próprio trabalho.

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E reclamam-se histórias,

medos contados

sem competição ou farsas do destino.

E esperas, condição primordial da vida que se expulsa.