dissertação_vinicius_sanfelice

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  • 5/28/2018 Dissertao_Vinicius_Sanfelice

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    UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIACENTRO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    METFORA E IMAGINAO POTICA EMPAUL RICOUER

    DISSERTAO DE MESTRADO

    Vinicius Oliveira Sanfelice

    Santa Maria, RS, Brasil

    2014

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    METFORA E IMAGINAO POTICA EM PAUL RICOUER

    Vinicius Oliveira Sanfelice

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado Programa de

    Ps-Graduao em Filosofia (PPGF), rea de Concentrao em FilosofiaTerica e Prtica, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS),

    como requisito parcial para obteno do grau deMestre em Filosofia

    Orientador: Prof. Dr. Marcelo Fabri

    Santa Maria, RS, Brasil

    2014

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    Oliveira Sanfelice, Vinicius

    Metfora e imaginao potica em Paul Ricouer / por ViniciusOliveira Sanfelice. 2014.

    94 f.: il.; 30 cm.

    Orientador: Marcelo Fabri

    Dissertao (Mestrado) - Universidade Federal de Santa Ma-ria, Centro de Cincias Sociais e Humanas, Programa de Ps-graduao em Filosofia, RS, 2014.

    1. Ricouer. 2. Metfora. 3. Imaginao. 4. Potica. I. Fabri,Marcelo. II. Ttulo.

    c 2014Todos os direitos autorais reservados a Vinicius Oliveira Sanfelice. A reproduo departes ou do todo deste trabalho s poder ser feita mediante a citao da fonte.E-mail: [email protected]

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    Universidade Federal de Santa MariaCentro de Cincias Sociais e Humanas

    Programa de Ps-graduao em Filosofia

    A Comisso Examinadora, abaixo assinada,aprova a Dissertao de Mestrado

    METFORA E IMAGINAO POTICA EM PAUL RICOUER

    elaborada porVinicius Oliveira Sanfelice

    como requisito parcial para obteno do grau deMestre em Filosofia

    COMISSO EXAMINADORA:

    Marcelo Fabri, Dr.(Presidente/Orientador)

    Elsio Jos Cor, Dr.(UFFS)

    Noeli Dutra Rossatto, Dr.(UFSM)

    Santa Maria, 20 de maro de 2014.

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    AGRADECIMENTOS

    Ao professor Marcelo Fabri por ter aceitado orientar essa pesquisa, pelo auxlio epela dedicao, por mostrar o caminho, enfim, no que foi essencial para o desenvolvi-mento desta dissertao.

    Aos professores Elsio Jos Cor e Noeli Dutra Rossatto por aceitarem compor abanca examinadora.

    Aos meus pais e meus avs que me incentivaram em prosseguir com minhaformao acadmica (mesmo quando duvidei).

    Mnica, pela ideia e pela semente inicial dessa dedicao.Ao Gilson, pelo exemplo e por nunca negar o auxlio.Ao Adriano (pelo destino comum), ao Tairon, ao Nano, ao Felipe, por fazerem

    parte.Aos amigos e colegas, especialmente aqueles com quem bebi e aqueles com quem

    ainda bebo (futebol da finitude).A todos os professores do Programa de Ps-Graduao em Filosofia da UFSM. Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Nvel Superior por financiar a

    pesquisa.

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    EPGRAFE

    Crossing frontiers is my profession. Those strips of no-mans land between the checkpoints

    always seem such zones of promise, rich with the possibilities of new lives, new scents andaffections. At the same time they set off a reflex of unease chat I have never been able to

    repress. As the customs officials rummage through my suitcases I sense them trying to

    unpack my mind and reveal a contraband of forbidden dreams and memories. And even

    then there are the special pleasures of being exposed, which may well have made me a

    professional tourist. I earn my living as a travel writer, but I accept that this is a little morethan a masquerade. My real luggage is rarely locked, its catches eager to be sprung

    ( J . G . BA L L A R D Frontiers and Fatalities, Cocaine Nights, 1998, p. 9)

    Presumably all obsessions are extreme metaphors waiting to be born. That whole private

    mythology, in which I believe totally, is a collaboration between ones conscious mind andthose obsessions that, one by one, present themselves as stepping-stones

    ( J . G . BA L L A R D em conversa com Thomas Frick)

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    RESUMO

    Dissertao de MestradoPrograma de Ps-graduao em Filosofia

    Universidade Federal de Santa Maria

    METFORA E IMAGINAO POTICA EM PAUL RICOUERAUTOR: VINICIUS OLIVEIRA SANFELICE

    ORIENTADOR: MARCELO FABRILocal da Defesa e Data: Santa Maria, 20 de maro de 2014.

    Esta dissertao teve como objetivo geral mostrar o desenvolvimento das teorias

    mimtica e imaginativa que Ricoeur formulou a partir do conceito de inovao semnticarelacionado aos enunciados metafricos. Seguimos, com Ricoeur, a insero da mme-sis aristotlica (pr sob os olhos) e da imaginao produtora (doutrina kantiana doesquematismo e jogo livre) na filosofia contempornea, no dilogo com a fenomeno-logia husserliana e com a filosofia analtica atravs de seu vocabulrio (o ver comode Wittgenstein). Procurou-se reconstruir a fundamentao ricoeuriana da produo deimagens poticas, e sua importncia prtica na redescrio da realidade e na arte: a uto-pia e a criatividade. Entendemos que para mostrar essa criatividade dentro da filosofiade Ricoeur foi necessrio fazer referncia s disputas em torno da metfora, do conceitoe da imaginao, e acompanhar a disputa com Derrida acerca da tese de Nietzsche (as

    metfora intuitivas originrias), alm de apresentamos os aspectos cognoscitivos daimaginao potico-criadora. A relevncia prtica dessa teoria, assim como os elementosestticos encontrados nela, discutida atravs dos comentadores que deram primaziaao papel constituinte da imaginao e da metfora (Jrme Cottin, Jean-Luc Amalric).

    Palavras-chave:Ricouer. metfora. imaginao. potica.

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    ABSTRACT

    Masters DissertationPost-Graduate Program in Philosophy

    Federal University of Santa Maria

    METAPHOR AND POETIC IMAGINATION IN PAUL RICOUERAUTHOR: VINICIUS OLIVEIRA SANFELICE

    ADVISOR: MARCELO FABRIDefense Place and Date: Santa Maria, March 20th, 2014.

    This work intends to present the development of Ricoeurs theories of mimesis

    and representation, which he has built upon the concept of semantic innovation linked tometaphor. With Ricoeur, we followed the incorporation of Aristotles mimesis (bringing-before-the-eyes) and productive imagination (Kants doctrine of schematism and freeplay concept) into the contemporary philosophy, drawing parallels with Husserls phe-nomenology and with the analytic philosophy, through its lexicon (Wittgensteins seeing-as concept). We attempted to reassemble Ricoeurs theorization concerning the creationof poetic imagery and its practical importance to the redescription of reality and to art:the utopia and the creativity. In order to identify that creativity in Ricoeurs philosophy,

    we referred to the conflicts of opinion that surround metaphor, concept and imagination,pointing out the opposition between Derridas ideas and Nietzsches theory of intu-

    itive metaphors (first metaphor) and presenting the cognitive aspects of poetic-creativeimagination. The practical pertinence of this theory, as well as its aesthetic elements, isanalyzed under the aegis of views of theorists who emphasized the formative role ofimagination and metaphor (Jrome Cottin, Jean-Luc Amalric).

    Keywords:Ricoeur. metaphor. imagination. poetics.

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    LISTA DE ABREVIAES

    SM La Symbolique du mal (SM). Paris:Seuil, 1960.

    DI De lInterprtation. Essai sur Freud. Paris: Seuil, l965.

    CI Le conflit des interprtations. Paris: Seuil. l969.

    MV La mtaphore vive. Paris: Seuil. 1975.

    TN Temps et rcit, I. Paris: Seuil, 1983. Temps et rcit, II. Paris:Seuil, 1984. Temps et rcit, III. Paris: Seuil, 1985.

    TA Du texte laction. Paris: Seuil, 1986.

    RF Refltion faite. Autobiographie intellectuelle. Paris: Esprit,1995.

    CC La critique et la conviction. Entretien avec F. Azouvi et M. deLaunau. Paris: Seuil, 1995.

    IU Lideologie et lutopie. Paris: Seuil, 1997.

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    LISTA DE APNDICES

    Apndice A - Traduo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

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    LISTA DE ANEXOS

    Anexo A - Normas: Sapere Aude - Revista de Filosofia . . . . . . . . . . . . . . . . 91

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    SUMRIO

    INTRODUO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 131 ENTRE A METFORA E O CONCEITO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161.1 Pequena histria da mmesis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 161.2 Leituras de Nietzsche . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 191.3 A tese de Ricoeur: metfora e imaginao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282 IMAGINAO PRODUTORA: DA TEORIA PRTICA . . . . . . . . . . . . . 33

    2.1 As duas contribuies kantianas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 332.2 Atravs da teoria mimtica e da imaginao . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 372.3 Os fundamentos fenomenolgicos do imaginrio potico-social: a utopia . . . 393 IMAGINAO POTICA E CRIADORA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453.1 Imaginao Produtora e dimenso esttica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 453.2 Atravs de uma teoria ricoeuriana da imaginao . . . . . . . . . . . . . . . . 523.3 Ver como . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 54CONSIDERAES FINAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 56BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 62

    APNDICE . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66

    ANEXOS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91

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    INTRODUO

    O tema da inovao semntica, presente nas obras A Metfora Viva e Tempo e

    Narrativa, ocupa papel central na filosofia da linguagem de Paul Ricoeur. O enunciado

    metafrico, assim como a narrativa, participam do fenmeno da inovao semntica ao

    nvel do sentido, do ainda no dito que surge na linguagem. A linguagem potica, para

    Ricoeur, possui uma referncia especial em relao ao mundo, assim como a fico, atra-

    vs da intriga, reconfigura os termos da narrativa, transformando a realidade do leitor.

    Ambas tornam nosso mundo inteligvel, compreensvel na medida em que podem am-pliar nossa viso ordinria e comum. Nossa proposta, ento, foi de investigar a relao

    entre a inovao semntica e a imaginao produtora, entendida a partir da doutrina do

    esquematismo de Kant, na aproximao de dois termos contraditrios entre si atravs

    da assimilao predicativa, e encontrar o sentido dessa fecundidade da imaginao, que

    para Ricoeur deve ser vinculado com a fecundidade da linguagem. Paul Ricoeur iniciou

    sua pesquisa sobre a relao entre inovao semntica e imaginao produtora reali-

    zando uma pequena histria das interpretaes do termo imaginao, pretendendoevidenciar os principais equvocos dos filsofos que se dedicaram ao tema. Tais equvo-

    cos ocasionaram um rebaixamento do tema. A teoria da metfora viva oferece uma

    alternativa a essas interpretaes, colocando a imaginao no nvel do discurso. Isso sig-

    nifica dizer que a imaginao tem um papel formativo na nossa concepo de realidade

    na medida em que aproxima termos semnticos estranhos e afastados. Derivar a imagem

    da linguagem depende do entendimento da metfora pelo seu uso potico ao nvel da

    frase (enunciado). Os enunciados metafricos oferecem a chave para esse entendimento

    ampliado da linguagem e so condio para uma teoria da imaginao como formulada

    por Ricoeur. A metfora, como nova pertinncia predicativa, uma operao mediada

    pela imaginao. Essa imaginao produz novas tipologias narrativas segundo regras, e

    tambm segundo regras realiza as aproximaes e os afastamentos que configuram as

    metforas. Se a metfora jogo de semelhanas, o sentido das novas metforas se dar

    por esse movimento produzido na linguagem e sintetizado pela imaginao produtora.

    O engendrar do escritor quando realiza uma poesia, por exemplo, causa um efeito

    de ressonncia que a primeira vista parece debilitar o sentido, como um devaneio. Nessa

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    estratgia do discurso metafrico est contido o poder heurstico desdobrado pela fico.

    A criao momentnea de sentido o fenmeno caracterstico da linguagem, e atravs

    desse fenmeno se alcana algo extralingustico. A fora da imaginao produtora o

    que nos permite experimentar algo como vises do mundo, test-las dentro da nossa

    realidade cotidiana. Em suaAutobiografia Intelectual(1995) Ricoeur considera que SM,

    MV e TN poderiam ser intituladas poticas, no sentido de que buscam explorar uma

    criao ordenada, investigando a distino entre sentido e referncia no discurso.1 Se

    privilegiamos MV porque nesta obra, acreditamos, o autor ultrapassa definitivamente

    as polmicas com o estruturalismo e as hermenuticas da suspeita, encontrando em

    sua teoria da metfora um modo frutfero de fundamentar a criao de significado

    um fundamento que servir para sua fenomenologia da leitura, a partir dos enredos

    narrativos, em TN.2 Embora sejam obras que tratem do mesmo fenmeno, a imaginao

    criativa funciona de modo diferente: o que falta teoria da referncia metafrica a

    unanimidade do ato de leitura, a fenomenologia deste ato no havia, ainda, adquirido

    exclusividade sobre a mediao a redescrio, que buscamos nessa dissertao expandir

    para outras experincias artsticas, no havia se tornado a reconfigurao, prpria da

    leitura:Considerava que ela fazia justia ao entendimento que toda a mente no pre-parada tem da questo de a linguagem potica revelar valores da realidadeinacessveis linguagem normal, direta e literal.... a poesia faz-nos ver o quea prosa no pode detectar. (...) Por fim considerava que a argumentao emfavor do ser-como, considerado como correlato do ver-como, punha um fimexatamente como se tratasse de um caso-limite, na teoria central estruturalista,que sustentava que a linguagem no estava aberta ao seu exterior, apenas es-tabelecendo relaes dentro do seu prprio sistema. Ora, para mim, tratava-seprecisamente do contrrio. Era a linguagem, liberta de todos os constrangimen-tos prosaicos, que se encontrava mais apta a celebrar-se a si mesma na sualiberdade potica e a que estava mais disponvel para tentar exprimir o segredo

    das coisas (RICOEUR, 1995, pg. 92-93).A dissertao estrutura-se, em princpio, conforme a importncia dada por Ricoeur

    aos autores. Enunciados metafricos emmesiscriativa: Aristteles. Imaginao produ-

    tora em seus aspectos epistemolgicos e estticos: Kant. A terminologia constantemente

    faz referncia aos autores de lngua inglesa nos quais Ricoeur buscou aproximaes e

    1 Para Ricoeur a distino entre o que dito e aquilo sobre o que algo dito, permite ao discurso sair doestritamente lingustico e alcanar o mundo (RICOEUR, 1995, pg. 84).2 Sobre a passagem da investigao em MV TN e a ligao entre redescrio e reconfigurao: ... oproblema da referncia das afirmaes metafricas e o seu poder de redescrever ao qual viria a ser logoaps acrescentado o poder de refigurar o mundo do leitor atravs dos enredos narrativos forneceram-mea oportunidade para guardar o que designei como a veemncia ontolgica subjacente minha concepode linguagem (RICOEUR, 1995, pg. 109).

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    analogias: o voir comme... de Wittgenstein e de Marcus B. Hester, o aumento icnico

    de Franois Dagognet. De nossa parte, nada parece mais prejudicial que apontar nos

    prprios elementos utilizados nas teorias desenvolvidas em torno da metfora um dos

    problemas principais da filosofia assim, acrescentou-se a discusso sobre a divergncia

    entre Ricoeur e Derrida acerca da metfora e da metafsica e procurou-se, sempre que

    foi pertinente, destacar a importncia que a imaginao adquiriu a partir de Kant con-

    tra a maioria dos pensadores modernos. Procuramos tambm participar de um debate

    que vem ampliando-se nos ltimos anos, sobre o status da imaginao em Paul Ricoeur.

    A primeira obra de referncia dedicada ao tema o livro de Maria Gabriela Azevedo

    e Castro (2002), onde a autora divide a filosofia de Ricoeur a partir das imaginaes

    correspondentes, que so seis: volitiva, social, transcendental, relacionada a suspeita

    psicanaltica, hermenutica, e criadora. Mas o que anuncia que o debate no atingiu seu

    pice so as palestras inditas que Ricoeur proferiu em solo americano. George H. Taylor,

    que tem acesso a elas, enumerou quatro domnios da imaginao produtora: utpica,

    epistemolgica, potica, e sacro-simblica (2006). Finalmente, Jean-Luc Amalric, envol-

    vido com o projeto de transcrio dos inditos ricoeurianos, vem desenvolvendo uma

    sistematizao das imaginaes que operam dentro da filosofia de Ricoeur (2012-3).Uma prvia do que poder guiar o debate subsequente, e que demonstra o longo

    percurso terico de Ricoeur entre autores de diversas escolas filosficas em relao

    ao tema imaginao, pode ser vista em outras palestras realizadas nos anos 1970 e

    publicadas originariamente em italiano.3 Em diversos momentos o percurso que esta

    dissertao realizou entre os autores trabalhados por Ricoeur espelha do texto das

    palestras significante que Kant seja considerado o ponto de reviravolta no tratamento

    filosfico da imaginao, mas no apenas: em sua ltima palestra, dedicada ao temada metfora, ela considerada a soluo metodolgica para o tratamento adequado

    da imaginao. A transcrio dessas palestras, anexada na presente dissertao em

    uma traduo4 conjunta, representa uma condensao do que seria posteriormente A

    Metfora Viva (1975)

    3 RICOEUR, P. Cinque lezioni. Dal linguaggio allimmagine, a cura di R. MESSORI, Aesthetica Preprint, n.66, 2002a.4 RICOEUR, P. Cinco Lies: Da Linguagem Imagem. Trad.: Vinicius Oliveira Sanfelice. Sapere Aude-Revista de Filosofia, Belo Horizonte, v. 4, n. 8, p. 13-36, dez. 2013.

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    1 ENTRE A METFORA E O CONCEITO

    1.1 Pequena histria da mmesis

    EmLe Metaphore Vive(1975) a releitura que Paul Ricoeur faz daPoticade Aris-

    tteles (e da Retrica) insere a metfora nas discusses da lingustica e da filosofia

    contempornea. Na contemporaneidade, Gadamer perguntar se na raiz de toda a clas-

    sificao no h uma metafrica envolvida, Derrida se no toda a metafsica ocidental

    uma exacerbao racionalista desta capacidade de classificar conceitualmente. As ca-pacidades da metfora de unir potica e ontologia sempre interessaram ao poeta e ao

    filsofo1, mas historicamente a metfora na retrica foi se afastando de sua origem

    filosfica para fazer parte de um grupo detroposda linguagem com uso determinado

    (produzir premissas ornamentadas para provas), resultando em seu declnio filosfico.

    Para Aristteles a metfora um transporte dentro da semntica que afeta todas as

    entidades da linguagem que portam sentido nesse processo de mudana de significao.

    Pode ser entendido como um desvio ou como um emprstimo, de qualquer forma asubstituio de um termo por outro dentro de um fenmeno discursivo e produz sentido.

    Para nosso trabalho interessa o componente comum potica e a retrica, que atravs

    de seu trao de composio e construo revela-se numa tenso entre submeter-se ao

    real e criar: ammesisem seu carter potico. A metfora participa dessa tenso como

    instrumento privilegiado de promoo de sentido realizado pela mmesis.

    Na passagem da unidade de referncia da palavra (semitica) frase (semn-

    tica), e desta ao discurso (hermenutica) transformou-se a teoria da substituio do

    sentido para uma teoria do sentido criado a partir da tenso predicativa. No se trata

    mais a metfora como uma figura do discurso e de ornamentao mas enquanto

    enunciado metafrico, no momento semntico, e enquanto discurso ou obra, no mo-

    mento hermenutico. A transio do nvel semntico para o hermenutico que ocorre a

    partir do trabalho de semelhana nos implica, tambm, com uma filosofia da imagina-

    o. Ao fim, o poder heurstico da fico ser a ltima prova da consistncia com que

    1 Cf.: Perceber, contemplar, ver o semelhante, tal , no poeta claro, mas tambm no filsofo, o lancede gnio da metfora que reunir a potica ontologia (RICOEUR, 2005, pg. 49).

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    Ricoeur leu as potencialidades ontolgicas da metfora atravs dammesisaristotlica2.

    A metfora possui duas funes, na retrica envolve prova e persuaso, na potica a

    poesis, ammesise aktharsis, mas uma nica estrutura que pode ser definida como

    transporte ou transferncia do nome de uma coisa para outra, conforme a define Aris-

    tteles: A metfora a transferncia para uma coisa do nome de outra, ou do gnero para

    a espcie, ou da espcie para o gnero, ou da espcie de uma para o gnero de outra, ou por

    analogia (1457b 6-9). Sendo, assim, algo que acontece ao nome e definida em termos

    de movimento (epphora).

    Tomemos algumas proposies sobre o do conceito de mmesis, primeiro em

    Plato e posteriormente em Aristteles. Sabendo que h uma diferena fundamental

    entre os dois autores a respeito desse conceito, pretendo desenvolver essa diferena

    no que importa filosofia da metfora de Paul Ricoeur. Em Plato, no contexto de

    uma discusso sobre as obrigaes do filsofo e do estado em relao verdade, quem

    acaba expulso da repblica so os poetas3. Scrates afirma que as imagens, nas mos

    dos poetas e artistas em geral, so como simulacros que ocupam a terceira posio em

    relao em relao verdade (aquilo que ). Em comparao a ela, a imagem uma

    sombra ou meraaparioproduzida pelo artista, argumentao que depois fundamentara condenao de Homero e dos artistas em geral como promotores da corrupo juvenil:

    (...)a imitao est muitssimo distanciada da verdade, uma vez que toca somente uma

    pequena poro de cada coisa, parte esta que ela prpria apenas uma imagem. E isso,

    parece, a razo de poder ela produzir tudo (PLATO, 2006, pg. 424). Estas linhas

    supem, alm da distncia em relao verdade, a noo implcita de mmesiscomo

    imitao (e cuja traduo pode nos distrair). Para ns no menos prejudicial, assim

    como para a criatividade dos poetas, que os defeitos da imitao sejam compartilhadoscomo sendoos da imagem, pois Ricoeur privilegiar as imagens poticas criadas pelo

    artista. Plato considera ammesisuma cpia, nesse sentido que denomina imitao,

    que pode ser cpia de muitas coisas no h uma delimitao do que pode ser imitado.

    2 No prefcio de MV j anuncia a ligao estreita entre a metfora e a cpula do verbo ser (o ontolgico),e seu sentido tensional em relao verdade, ir desenvolver durante a obra o seu conceito de verdademetafrica.3 Segundo Castro, no livro VI da Repblica Plato encontra uma viso essencialmente epistemolgicada imaginao atravs da clebre teoria da linha: a imaginao ocupa o lugar mais baixo na escala do

    conhecimento, pura opinio, doxa (. . . ) essa dicotomia, entre o mundo inteligvel, onde a razoimpera, e o mundo sensvel, onde a imaginao mimetisa as formas essenciais, que Plato expe no livroVII, na alegoria da caverna. As imagens, imitaes das formas em si, criam um mundo irreal e falso, quemergulha os homens na confuso (2002, pg. 39).

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    Essa tarefa coube a Aristteles, colocando a mmesis no mbito prtico do fazer (da

    poiesis) e no mbito terico das cincias poticas.

    A autonomia da obra de arte origina-se da sua insubmisso aoreal, ao verdadeiro

    (tornando-se incorreto, como nota Ricoeur, traduzirmmesispor imitao). Ela uma

    construo mimtica que representa (imita, recriando) os homens em ao. Aristteles

    diz que prprio do homem produzir essas representaes, e sentir prazer em produzi-

    las e reconhec-las. Dos fragmentos que restaram da Potica, a maior parte trata da

    tragdia. Composta de seis partes, a mais importante a fbula ou muthos(Ricoeur

    prefere o termointriga). Ela a alma da mmesis, por assim dizer, porque organiza siste-

    maticamente as aes. Ordena suas partes constitutivas em uma ordem com incio, meio

    e fim. Outra caracterstica importante que Ricoeur vai reter que a mmesisrepresenta

    o verossmil e o necessrio isso servir de base para Aristteles sustentar que a poesia

    mais filosfica que a histria, pois apresenta verdades mais universais. A ruptura com

    Plato mais forte aqui, pois a verossimilhana precede a questo do verdadeiro ou do

    lgico interpretao dammesisaristotlica por Ricoeur no se fundamenta apenas na

    simples retomada do conceito como inveno ou criao. Domenico Jervolino afirma4

    haver no nexommesis-metfora algo que nos compromete com a noo de verdademetafrica. Outros comentadores, como Vicente de Haro e Alfredo Martnez Snchez5,

    tambm consideram a funo metafrica uma releitura dammesisaristotlica focada

    na criatividade, representada pela inovao semntica. A teoria da metfora de Ricoeur

    fornece uma abordagem hermenutica para a questo de como produzir imagens e no

    apenas consider-las como sombras, sejam elas da percepo ou dos arqutipos plat-

    nicos. Sero imagens poticas geradas pela enunciao metafrica, entendidas como o

    significado emergente da regulao dos predicados conflitantes. a imaginao queregula essa impertinncia semntica e ela que fornece a nova pertinncia. A mediao

    faz emergir uma nova significao. Os enunciados poticos e os metafricos comportam

    uma sada da linguagem para algo alm dela, a partir da ideia de uma referncia dupla.

    4 Cf.: Domenico Jervolino,The Cogito and Hermeneutics: The question of the Subject in Ricoeur , Dordrecht-Boston-London, Kluwer Academic Publishers, 1990. Citado por Vicente de Haro em La mmesis de Arist-teles desde la hermenutica de Paul Ricoeur (Universidad Panamericana), p. 61.5 O artigo de Martnez Snchez (Invencin y realidad. La nocin de mmesis como imitacin creadora en

    Paul Ricoeur. Dianoia, No 57, 2006, pp. 131-166) o mais completo dos que encontramos sobre o tema.

    Recria as influncias e as consequncias da teoria mimtica em Ricoeur, e estrutura-a da seguinte maneira(p. 140): a) preocupao ontolgico-referencial; b) funo cognitiva da arte; c) conceito de mundo ourealidade (como referncia de 2o grau e criao).

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    A abolio de uma referncia de primeira ordem, caracterstica do discurso ordinrio,

    em prol de uma referncia de segunda ordem que emana do discurso potico. As possi-

    bilidades heursticas da fico, e a capacidade deredescrioque to importante para

    Ricoeur, derivam da mmesis aristotlica. Na interpretao de Ricoeur (da Potica) a

    redescrio a da prpria ao humana, ela a recriao estruturada dos homens em

    ao.

    O nexo entremmesise metfora e a noo de verdade metafrica determinam

    o problema da imaginao que afligia Ricoeur nos anos 70 e que deve parte de suas

    dificuldades quela citada identificao platnica entre a mmesis e a imagem como

    sombra. necessrio compreender, ento, como a teoria da metfora desenvolvida por

    Ricoeur estabelece esse nexo, qual o papel dessa noo de verdade e de que forma ela

    determinante para a problemtica da imaginao. A maneira que escolhemos para

    abordar essas questes foi mostrar as divergncias acerca da relao entre a metfora

    e o conceito um campo vasto dentro da histria da filosofia ocidental e da sua crtica.

    Aqui, nos basearemos na interpretao de uma tese nietzschiana acerca da metfora

    intuitiva originria, depois colocaremos como exemplo a leitura crtica que Derrida faz

    do projeto de Levinas o modo levinasiano de abordar a filosofia, sendo parte de umacrtica ontologia e tradio filosfica grego-ocidental. Pretende-se mostrar algumas

    possibilidades da interseco entre o discurso metafrico e o discurso especulativo.

    1.2 Leituras de Nietzsche

    A filosofia francesa tem pelo menos duas peculiaridades notveis para quem se

    dedica ao seu estudo: o uso das metforas no seu discurso e a suspeita de diferentesmatizes que lana filosofia moderna e prpria tradio francesa das luzes. Alm

    disso, pode-se unific-la em uma crtica sistemtica e anti-humanista, que habitaria au-

    tores como Foucault, Althusser, Derrida, Lacan, Lyotard, descrentes das possibilidades

    do sujeito. O pressuposto tico, ou humanista, segundo Nythamar de Oliveira6, uma

    das razes para Ricoeur no estar includo entre queles filsofos contemporneos da

    suspeita que recuperam hiperbolicamente os velhos mestres da suspeita: Nietzsche,

    Marx e Freud. Tomemos como base, para demonstrar o destino peculiar da metfora, as6 Cf.: OLIVEIRA, Nythamar de.Detranscendentalizing Subjectivity: Paul Ricoeurs Revelatory Hermeneuticsof Suspicionin Veritas 49/2 (2004): 235-259.

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    divergncias entre Derrida e Ricoeur sobre a ideia de metfora intuitiva (exposta por Ni-

    etzsche emSobre Verdade e Mentira no Sentido Extra Moral).Ambos parecem reconhecer

    nesse texto a primazia da tese de que toda a linguagem metafrica, embora Derrida

    acentue nele a denncia e a suspeio colocada sobre o conhecimento conceitual, e Rico-

    eur entenda que a tese de toda linguagem ser metafrica exige uma noo ampliada de

    verdade, que inclua os aspectos intuitivos do homem, da sua linguagem e do seu desejo

    ou impulso de criao o que diferente de excluir a conceitualizao ou o conceito. No

    artigoVoltas e Reviravoltas: Acerca da Recepo de Nietzsche na Frana, Scarlett Marton

    percorre a trajetria das principais interpretaes do filsofo nesse pas. Uma carta de

    Andr Gide (1900) sobre a falta de tradues francesas das obras de Nietzsche parece

    indicar o procedimento que no decorrer do sculo XX se tornaria comum: [...] quase se

    pode dizer que a influncia de Nietzsche importa mais que a sua obra ou at que a sua obra

    unicamente de influncia (GIDEapudMARTON, 2009, p. 22). Na contemporaneidade,

    ele se torna o filsofo dos intrpretes[...]sua obra se transforma em suporte dos discursos

    que ela suscita7. Juntamente com Marx e Freud, reunidos num triunvirato por Foucault,

    inauguram a hermenutica da suspeita, ou talvez sejam inaugurados como ferramentas

    para o procedimento da suspeita. Derrida, por exemplo, aplica esse procedimento nostermos de sua crtica metafsica ocidental, incluindo a o estatuto da metfora no

    discurso filosfico. A exposio desse uso se deu num seminrio realizado em 1966, e

    que veio a influenciar diversos trabalhos subsequentes que associaram Nietzsche a uma

    teoria da linguagem.8

    Para o jovem Nietzsche, emVerdade e Mentira no Sentido Extra Moral, a linguagem

    fundamentalmente metafrica e o conhecimento baseado nessa linguagem no pode

    pretender a objetividade que assevera em seus juzos. As imagens transformadas emsom e verbalizadas no so apenas a origem metafrica dos conceitos, so elas mesmas

    derivadas de uma metfora a transposio da experincia sensvel, segundo Nietzsche.

    Nesse processo, as imagens possuem uma produtividade e uma riqueza original que,

    ao serem transportadas de forma arbitrria, engessam a linguagem. Para Ricoeur, que

    entende a metfora no sentido aristotlico de transporte, as imagens esto associadas

    7 Cf.: MARTON, Scarlet. Voltas e reviravoltas. Acerca da recepo de Nietzsche na Frana. In: MARTON,Scarlett. (Org.).Nietzsche, um "francs" entre franceses. 1a ed. So Paulo: Barcarolla, 2009, v. 01, p. 13-52.8 La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines - Confrence prononce auColloque international de lUniversit Johns Hopkins (Baltimore) sur Les langages critiques et les sciencesde lhomme, le 21 octobre 1966.

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    imaginao produtora as imagens so produzidas por uma sntese de dois termos

    heterogneos e contraditrios, que so aproximados no espao lgico. O conflito est

    na prpria linguagem metafrica e a produtividade est na imaginao. Defendemos

    a ideia de que o impulso verdade pode ser positivo se ele for considerado como

    impulso verdade metafrica, ou verdade dos enunciados metafricos sintetizados

    pela imaginao produtora. Acreditamos que a fertilidade do texto nietzschiano est

    na sua proposta alternativa de uma teoria da representao a partir das metforas,

    proposta que consideraremos de maneira anloga teoria da linguagem e da imaginao

    desenvolvidas por Paul Ricoeur.

    A suspeita o que se faz dela: pode ser preveno, preconceito, difamao, entre

    outras coisas. Nietzsche distingue o impulso verdade e o impulso artstico como ca-

    racterstica, respectivamente, do homem racional e do homem intuitivo. Toma posio

    pelo ltimo, que caracteriza como possuidor de uma relao saudvel com a vida, a in-

    constante antpoda da conceitualizao (caracterstica do homem racional). O impulso

    verdade, na crtica ao conhecimento que Nietzsche faz em Verdade e Mentira no Sen-

    tido Extra Moral, nasce do esforo de conservao, primeiro em referncia ao indivduo,

    quando o homem usa o intelecto para enganar o outro, depois em relao coletividade,que est interessada na instaurao da paz entre os indivduos e procura evitar os pre-

    juzos que a falsidade produz. nesse momento que a linguagem aparece para legislar

    conforme as distines de verdade e mentira. A noo de veracidade serve de apoio para

    o instinto de preservao. Nietzsche denuncia essa noo utilitria de verdade atravs

    da gnese da linguagem. A linguagem no adequada para expressar todas as realida-

    des, nem pode sustentar a verdade num sentido forte, seu carter a arbitrariedade.

    Se o conhecimento pressupe a posse de alguma essencialidade, e se o homem buscaalgo como a verdade enquanto tal, a iluso certa a linguagem, fundamentalmente

    metafrica, no permite esse acesso. A origem da linguagem revela as transposies

    o que justifica diz-la metafrica de significaes por instncias distintas: estmulo

    nervoso, imagem, som, palavra. Cada transposio uma metfora.

    Esse trabalho de buscar as origens da linguagem permite o desenvolvimento de

    uma suspeita imputada formao dos conceitos. A atitude de conceituar, segundo

    Nietzsche, acontece porque esquecemos que ela o projetar de nossos elementos nomundo, algo enfim subjetivo, de modo que ao invs de denominar a prpria coisa ele-

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    gemos arbitrariamente uma caracterstica da coisa, no seu exemplo, o serpentear da

    serpente. Assim, o conceituar para Nietzsche o esquecimento de que no existe na

    natureza algo como a folha primordial e a consequente abstrao das diferenas de

    cada folha que encontramos em sua forma individual, com suas caractersticas prprias.

    Com o exemplo da folha primordial ele pretende explicitar a condio do conceito, que

    a de ser o resduo de uma metfora j gasta e esquecida. Assim, o intelecto busca

    um resultado pragmtico para o homem racional (conservao) e um resultado esttico

    para o homem intuitivo. O homem que Nietzsche exalta optou pelo carter imediato e

    mutvel da vida, em contraposio fixao e rigidez do conceito. Esse homem, em seu

    impulso criao de metforas, no nega a vida, ele vive sua atividade criadora. Mas o

    impulso verdade, a conceitualizao, no pode ser positivo se ele for entendido como

    impulso verdade metafrica?

    O esquecimento que possibilitou o conceituar a origem da verdade, de modo

    que essa teoria da representao, sedimentada na antropologia, inconsciente para os

    homens. Eles alcanam o sentimento de verdade como um hbito. Essa caracterstica

    singular do homem, essa aptido de liquefazer a metfora intuitiva em um esquema,

    portanto de dissolver uma imagem em um conceito (NIETZSCHE, 2008, p. 37), entendidaagora como o mbil de uma iluso, proporciona a ordenao de um mundo com suas

    hierarquias regulares e imperativas. Essa a tese nietzschiana que conjuga uma crtica

    antropolgica e uma teoria da representao para atribuir uma suspeita s origens, para

    ele ilusrias, dos rigores do conceito, da lgica, e, principalmente, sobre a pretenso

    ou impulso do homem em alcanar verdade. Para Nietzsche, esquecemos a metfora

    intuitiva originria, a nossa nica posse e aquela que gera o conceito como um mero

    resduo. Aceitando integralmente essa tese, tem-se um homem iludido em sua prepo-tncia e inconsciente da natureza da linguagem. Um homem que toma essas metforas

    originrias como as coisas mesmas, e a si como a medida de todas as coisas.

    Qualquer filosofia que busque implodir a tradio filosfica a partir de suas pre-

    tenses de alcanar a verdade atravs da linguagem e dos conceitos aceitaria a tese

    de Nietzsche como uma possibilidade fundadora, e o filsofo como um Protgoras da

    modernidade. Mas cremos que terminaria reduzindo uma tese profcua sua utilidade

    enquanto procedimento, acrescentando peso ao seu vis antropolgico e perdendo aspossibilidades de refletir sobre isso que chamamos uma teoria da representao. A rela-

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    o de Ricoeur com as leituras da suspeita definitiva. A hermenutica negativa um

    momento necessrio para desmascarar o que est dissimulado, mas a dialtica entre o

    compreender e o explicar, que caracteriza a hermenutica ricoeuriana, impede a reduo

    do sentido do texto sua gnese. Sua relao com o texto derridiano acerca da metfora

    A Mitologia Branca9 de reconhecimento e ultrapassagem. Derrida, em sua leitura

    ps-moderna de Nietzsche, une os termos da lingustica estrutural suspeita lanada

    pelo filsofo para equivaler sua teoria da linguagem ao ceticismo do texto original

    acrescentando a ele conceitos exacerbantes como o de usura, e dediferena. O conceito

    de usura, por exemplo, serve para incluir o discurso filosfico no processo de esqueci-

    mento, sendo esse discurso posterior ao apagamento das figuras sensveis e originais,

    que ele chama de sentido primitivo que o discurso torna metfora (DERRIDA, 1991,

    p. 251.). aqui que a leitura de Nietzsche serve de apoio para a suspeita atribuda

    metafsica ocidental e ao logocentrismo. A crtica de Nietzsche no basta, como Derrida

    demonstra na sua apropriao do texto nietzschiano, para implic-la, enquanto crtica

    ao conhecimento, na condenao da metafsica ocidental, mas, principalmente, ela no

    se reduz a esse papel. A tese de Derrida provm da ideia heideggeriana de que o meta-

    frico existe apenas no interior da metafsica, e toma-a como o fundamento para essaimplicao da metafsica de cunho platnico com a metafrica.

    Em Derrida, o movimento que caracteriza a metafsica ocidental, a passagem do

    visvel para o invisvel ou do sensvel para o no sensvel, constitui toda a histria da

    filosofia como uma tese filosfica, talvez a tese por excelncia, o que significa dizer que

    sua impossibilidade seria a impossibilidade da prpria filosofia. Ele aceita a equivalncia

    feita por Heidegger entre a passagem metafsica do visvel para o no visvel e a pas-

    sagem metafrica do prprio para o figurado. A passagem do prprio para o figurado uma distino especfica, de uma semntica pobre, que reduz a metfora a uma me-

    tafsica caracterizada pela primeira passagem, e que se contrapem a uma ontologia

    mais ampla (que refira ao fim semntico das metforas poticas). Para Derrida, essa

    ligao entre metfora e metafsica tambm se revela na usuraque constitui a metfora

    filosfica. Seu projeto de desconstruo denuncia a entropia resultante dessa ligao

    sua perda de valor, e a morbidez caracterstica das metforas na filosofia. Sua tarefa no

    ocaso da linguagem constatar que o discurso filosfico tanto quanto o sujeito esto ago-9 La Mythologie Blanche(la mtaphore dans le texte philosophique). Primeiramente publicado emPotique(5, 1971), e depois em Marges de la philosophie, Paris, Minuit, 1972.

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    nizantes. Para se aproximar dessa constatao, a tese de Nietzsche, mais uma vez, no

    basta, embora Derrida proceda em conformidade com uma crtica genealgica da for-

    mao dos conceitos, mas a partir de Hegel. AAufhebunghegeliana, que Derrida traduz

    porsuperao, a superao da significao sensvel e usada na significao espiritual

    (RICOEUR, 2005, p. 450). O que caracteriza inovao para Hegel e Ricoeur, para Derrida

    dissimulao da gnese do conceito, idealizao que deve ser desmascarada. o movi-

    mento comum metafsica, ou seja, filosofia que est sendo denunciada. Movimento,

    apagamento, passagem, idealizao, em suas mltiplas formas a superao tomada

    como categoria principal da dialtica, e aqui assegura a distino entre metforas mortas

    e vivas. onde a leitura de Derrida encontra a tese original de Nietzsche, atravs da

    sua utilidade para a desconstruo, pois tudo submetido a ela. O projeto que Derrida

    considerou de incio impossvel teorizar sobre a metfora do texto filosfico fora da

    metfora esgota-se em sua tentativa de revelar a aporia do discurso filosfico. Sua

    denncia da metforausada(sofreu usura) na formao dos conceitos no ultrapassa a

    primeira crtica feita por Nietzsche, sem incluir a possibilidade de uma leitura mais frtil.

    Mas as metforas podem ser reavivadas, e essa possibilidade tambm coloca a filosofia,

    enquanto teoria e discurso, em um moto-contnuo de produo conceitual e metafrica,sempre possveis de serem ligadas pela superao. Ricoeur, no que considera o momento

    polmico dessa discusso, desfaz os equvocos que Derrida coloca como objees: as

    metforasusadasso aquelas que o lxico engessou, causando entropia na linguagem

    atravs de sua sedimentao na polissemia semntica. No preciso nenhuma ontologia

    para responder a essas objees. Elas so respondidas ainda em sua teoria da metfora

    enquanto inovao semntica, ou impertinncia predicativa que faz surgir o novo na

    linguagem, ou, simplesmente, a metforaviva.Expomos as divergncias na leitura de Nietzsche sem negar nenhuma das teses

    colocadas pelo textoVerdade e Mentira no Sentido Extra Moral, apenas desejando mostrar

    o uso que pode ser feito delas ao se ampliar seu carter de denncia. Falta-nos agora

    esboar a convergncia entre a teoria da metfora viva e essas teses, tendo em mente que

    nelas h mais que a denncia, mas principalmente, tendo como horizonte que Nietzsche

    e Ricoeur pensam um cogito que no mais autorreferente ou transparente cogito

    que podemos supor como abalado, ferido, opaco. Ricoeur no poderia chegar a ele sempassar pela hermenutica da suspeita. O outro lado da plenitude da lngua a finitude

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    do entendimento. Tendo o homem esquecido que o conceito antropomrfico e que toda

    a linguagem metafrica, tornou-se possvel a atitude de conceituar (desconsiderao

    do individual/igualao do no igual). Para Nietzsche, essa atitude prpria do homem

    e o distingue dos outros animais: Tudo aquilo que sobreleva o homem ao animal depende

    dessa capacidade de volatilizar as metforas intuitivas num esquema, de dissolver uma

    imagem num conceito (NIETZSCHE, 2008, p.38). Para a esquematizao metafrica,

    nos moldes da interpretao que Ricoeur d para a doutrina do esquematismo de Kant,

    h uma espcie de folha segundo a qual as outras folhas so desenhadas, etc.. Enquanto

    processo geral da imaginao para dar a um conceito a sua imagem, o esquema produto

    da imaginao. Para ficar mais claro o que seria esse produto da imaginao, que exerce

    uma funo de sntese pode-se entend-lo como um monograma da imaginao pura. A

    expresso usada por Kant serve para entendermos a importncia que ter para Ricoeur

    a existncia do esquema como um mtodo para construir imagens, ressaltando o carter

    produtor da imaginao. O esquema do conceito que ordena certas representaes dos

    sentidos (tato, viso, etc.) sob este conceito possibilita que uma pessoa possa dizer isto

    (que vejo, percebo, etc.) uma folha.

    Do mesmo modo, esse metaforizar em sentido estrito, como Ricoeur busca emAristteles, bem perceber o semelhante, portanto uma forma de conceitualizao atra-

    vs da aproximao do que distante. A imaginao far a mediao entre os dois

    termos logicamente distantes, e a partir dessa funo de sntese temos a inovao se-

    mntica: o novo que surge na linguagem. Essas metforas vivas possuem a forma de uma

    tenso entre sujeito e predicado, portanto requerem um ajuste em nossa compreenso.

    Esse ajuste pode ser o mesmo que necessrio para resolver a dicotomia que Nietzsche

    encontra entre a metfora intuitiva e o conceito:Enquanto cada metfora intuitiva individual e desprovida de seu correlato,por isso, sabe eludir a todo rubricar, o grande edifcio dos conceitos exibe ainflexvel regularidade de um columbrio romano e exala na lgica aqueladureza e frieza, que so prprias matemtica. (NIETZSCHE, 2007, p.38).

    A divergncia com Derrida, como afirmamos acima, existe na interpretao da

    Aufhebung (superao) hegeliana, superao da significao sensvel na significao

    espiritual. este o encontro da leitura de Derrida com a tese original de Nietzsche: atra-

    vs de sua utilidade para a desconstruo, pois tudo submetido a ela. A metfora mais

    enigmtica da filosofia, como demonstrava Derrida10, a heliolgica a metfora do Sol.

    10 Cf. DERRIDA, 1991, p.292: O sol no fornece apenas um exemplo, entre todos o mais notvel, de ser

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    O Sol grego proveu as luzes francesas, esse Sol que proporciona a percepo atravs da

    sua luz aparece (fazendo aparecer) na caverna platnica como convite ascenso11 ao

    Bem. Levinas, tambm crtico da ontologia ocidental, percorre uma interpretao mais

    sofisticada para chegar a uma crtica mais severa mais grave dizer o Ser mal, que

    dizer o Ser possui recalques ou o Ser neurtico. E se a luz que ilumina o Ser tivesse

    no Sol um belo ideal, mas existissepara o homem como que surgida de uma guerra?

    Para Levinas, a luz do Ser e a face violenta do Ser andam juntas, e sua unidade neste

    mundo representa a totalizao, mais prxima de Herclito que de Plato:

    O choque entre homens, a oposio de uns em relao aos outros, a oposiode cada um consigo mesmo, fazem brotar as fascas de uma luz ou de umarazo que domina e penetra os antagonismos. A verdade ltima se inflama com

    todas essas fascas do mesmo modo que a histria abarca todas as histrias. Osdois acontecimentos se fundem. A verdade de cada um se realiza na verdadeuniversal, em vez de perder o seu brilho diante do esplendor desta verdade.(LEVINAS, 1995, pgs. 125-126).

    A importncia de mostrar a abordagem metafrica utilizada por Levinas expli-

    citar seu esforo para sair dessa natureza heliolgica do Ser. A dificuldade aqui est

    em sair do Ser sem neg-lo. O dilogo com Husserl e Heidegger ultrapass-los e as

    suas ontologias tambm no neg-los: ir alm, em busca dos antecedentes ticos

    e cotidianos do Ser. A existncia do Ser convida abordagem metafrica, e para Levi-nas a metfora da insnia12 torna compreensvel o confronto entre existncia e ser. O

    estado de vigilncia que consiste em existir seria anterior ao da conscincia, logo,

    ao sujeito e ao objeto. O Ser poderia ser (a eterna vigilncia) se no fosse tambm sua

    insnia sentida. A sada do Ser alcanada pelo caminho em que se percorre a sua

    fragilidade. Voltando para a metfora da insnia a abordagem levinasiana a considera

    uma experincia-limite em que a existncia sentida, em que a transcendncia do Infi-

    nito toma o lugar da Totalidade, de forma que experincia real do eu mim mesmo substituda pela experincia da exterioridade no rosto do Outro. Essa aproximao

    face-a-face entre o eu e o Outro ter que ser percorrida abandonando-se o trajeto da

    sntese, caracterstico do entendimento, e adotando quele do do discurso, da bondade

    sensvel enquanto pode sempre desaparecer, furtar-se ao olhar, no estar presente. A prpria oposio doaparecer e do desaparecer (...) do presente e do ausente, tudo isso s possvel sob o sol. Este, enquantoestrutura o espao metafrico da filosofia, representa o natural da lngua filosfica .

    11 Para Derrida, essa ascenso ideal do homem no existe sem o recalque causado pela dominao de seusinstintos. Consequentemente significa que o recalque existe subliminarmente sob a mitologia branca

    ocidental.12 Cf. LEVINAS, 2000, pp.39-40:A minha reflexo sobre este tema parte das lembranas da infncia. Dorme-se sozinho, as pessoas adultas continuam a vida; a criana sente o silncio do seu quarto de dormir comosussurrante.

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    e do desejo. Novamente, este modo diferente (no violento) de Ser , por sua vez,

    diferente de no-Ser; anterior, e mais, a sua condio. O que Levinas denomina consti-

    tuio pr-originria da subjetividade dada pelas nossas experincias mais ordinrias,

    como, por exemplo, o ato de comer e o de hospedar-se, em que o Ser revela-se como

    necessidade de alimento e abrigo, e como indicao de nosso carter sensvel.

    Derrida faz uma leitura de Totalidade e Infinito, a primeira sistematizao do

    pensamento levinasiano, num texto chamadoViolncia e Metafsica onde reconhece

    a radicalidade desse pensamento como a abertura por excelncia. A dificuldade do

    projeto levianasiano desde j o problema de como enunci-lo numa linguagem que

    ontolgica. Derrida expe esse problema como a necessidade de certa iluminao ao

    Rosto (a epifania levinasiana13 da no-luz). Mas como ilumin-lo se a prpria ilumina-

    o o logos tradicional controlando seus elementos, fazendo aparecer o Ser? Sabemos

    que Levinas est falando de um fenmeno com certa ausncia, especialssima luz antes

    da luz que precisa escapar da ingenuidade da lgica formal, mas que tambm precisa

    aparecer ou pelo menos ser anunciada. Admitindo que essa ambiguidade seja inten-

    cional e instrutiva, Levinas est buscando outra lgica ao invs do ilgico? Se sim, a

    dificuldade de expressar esta outra lgica (num enunciado inserido na lgica ordinria)existe. Mesmo quando, sabemos, a inteno levinasiana indicar uma pr-originalidade,

    anterior constituio dessa lgica.Se no h histria mais que pela linguagem e a linguagem elementarmentemetafrica, Borges tem razo: Talvez a histria universal no seja mais quea histria de algumas metforas. Dessas poucas metforas fundamentais, aluz no mais que um exemplo, mas que exemplo! Quem poder domin-la,quem dir alguma vez seu sentido sem deixar-se primeiro dizer por este? Quelinguagem escapar alguma vez dela? (DERRIDA, 1989, p. 125).

    Uma leitura que entende o discurso como uma linguagem que est alm da

    objetivao implicada no conhecer e na sua consequente posse do outro, poderia

    perguntar pela ausncia de dilogo que o reconhecimento imposto do outro acarretaria14.

    Ricoeur e sua filosofia da linguagem podem ser um auxlio, na medida em que seu

    interesse fundamentar uma interseco entre o discurso especulativo e o metafrico.

    Para ir alm de uma lgica formal devemos entender que no separar os discursos

    pode ocasionar a destruio de ambos. Se as filosofias do neutro (que neutralizam o

    13 Cf. NUNES, 1993, p. 21: O infinito manifesta-se como exterioridade e como resistncia absoluta objectivao e ao conhecimento. A exterioridade do Infinito manifesta-se na sua prpria epifania; mas naresistncia que ele manifesta a sua face.

    14 Cf. FABRI, 1999, p.114:O sentido tico no condena a riqueza de uma abordagem hermenutica da lin-guagem mito-potica e a consequente abertura e renovao que ela possibilita a um emudecimento radical?.

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    outro como ente) e as da subjetividade no podem reconhecer, como aponta Derrida,

    este rosto que est alm da totalizao, ser que uma filosofia do sujeito opaco, no

    transparente para si mesmo, no pode reconhec-lo e, ao mesmo tempo em que aproxima

    o discurso metafrico do especulativo, possibilitar um dilogo entre ambos? A filosofia

    tica de Ricoeur pode ser interpretada sumariamente como a possibilidade de o

    outro vir at ns e ns nos tornarmos outro. Sobre a relao entre Ricoeur e Levinas,

    acreditamos ser mais proveitosa a parte de suas filosofias que se ocupam da linguagem,

    pois ela cumpriria o papel de fundamentao mediadora para podermos construir esse

    sentido tico. Acreditamos que ela uma resposta satisfatria para a questo se o fim

    da modernidade, e do sujeito autossuficiente, no seria tambm o fim do humanismo. 15

    A convergncia entre ambos diz respeito riqueza da linguagem enquanto poder

    metafrico, o que nos remete novamente tese nietzschiana da metfora originria

    mostrando que os filsofos excludos daquela lista acerca do anti-humanismo tambm

    divergem entre si sobre o texto nietzschiano. Mas essa convergncia na riqueza da

    linguagem metafrica encerra tambm a resposta pelo lugar que essa riqueza surge ou

    de onde ela surge. Para Ricoeur a riqueza est em determinado uso da linguagem, que

    revela aspectos ontolgicos no acessveis a uma linguagem ordinria. Para Levinas, estem uma dimenso tica prvia, que promove essa linguagem singular. Como explica

    Fabri em artigo sobre a metfora e a palavra vivaem Levinas:Em primeiro lugar, o falar a Outrem uma sada de si (objetivao ou o Dito) eum ter de prestar contas sobre o que se diz. Em segundo lugar, o movimentode objetivao, por ser um evento da prpria linguagem (relao inter-humana), sempre ultrapassagem do sentido fixado (Dizer). (FABRI, 2010, p. 76).

    Entender o discurso enquanto proximidade do Outro diferente de entend-lo

    como discurso de segunda ordem que est alm do discurso comum e cotidiano. So

    duas riquezas diferentes: para Levinas apalavra vivaest na origem da metfora, para

    Ricoeur os enunciados metafricos significativos originam as metforas vivas.

    1.3 A tese de Ricoeur: metfora e imaginao

    O que Ricoeur denomina o enxerto hermenutico na fenomenologia o reconhe-

    cimento de limites para o entendimento, e que pode ser resumido pela constatao de

    que h mais na experincia de vida do que a teoria pode captar. A fenomenologia de15 A esse respeito, ver:Hermenutica y Filosofa en Ricoeur y Levinas. Conferncia apresentada por MichaelMaidan na Universidade Hebreia de Jerusalm (Mendoza, Agosto de 1999).

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    Husserl, em sua verso idealista, no responderia s objees de um ceticismo radical.

    Em Husserl ainda estamos dependentes da primazia da conscincia na relao sujeito-

    objeto, e no h caminhos de retorno para essa experincia de vida esses caminhos,

    sabemos, foram trilhados pelos seus sucessores: Merleau-Ponty, Heidegger, Levinas, etc.

    Em Ricoeur, h uma contraposio ao sujeito da teoria fenomenolgica tradicional, mas

    tambm h uma contraposio impossibilidade do sujeito nas teorias contemporneas

    como a de Derrida. A imaginao faz a mediao entre a perspectiva finita da percepo

    e o objetivo infinito do verbo (RICOEUR, 2011, p.17). sua proposta para contornar

    a limitao do cogito tradicional: a mediao do mundo cultural, para chegarmos a

    um modo de fazer filosofia que se autodenomina reflexo concreta. Falaremos ento,

    como faz Ricoeur, de um cogito ferido, e de um modo de pensar intencionalmente frag-

    mentrio acreditamos que essa caracterizao geral tambm aproxime sua filosofia de

    Nietzsche, ou, como dissemos antes, no poderia ser realizada sem ela.

    Depois de encontrar no smbolo o momento privilegiado dessa mediao com

    o cogito, Ricoeur, em busca de uma crtica restauradora e no redutora (buscando na

    hermenutica da conciliao uma contraposio hermenutica da suspeita), tentou

    responder s objees de Freud e, posteriormente, do estruturalismo que para ele seassemelhava a uma apologia para um funcionamento annimo de sistemas de signos sem

    ancoragem subjetiva (RICOEUR, 2011, pg. 23). O passo seguinte de Ricoeur seria a

    guinada lingustica que caracterizou boa parte das mudanas na filosofia do sculo XX,

    e que para ele resultou na consolidao explcita de sua hermenutica. nessa guinada

    que sua teoria da metfora viva insere-se, como uma filosofia da linguagem e da imagina-

    o acerca de um discurso especfico, no descritivo, exemplificado pelos poemas e pelas

    narrativas. A linguagem, no discurso potico, tem essa dupla referncia: a si mesma,enquanto jogo que rompe com o real e o cotidiano da linguagem ordinria, e alm de si,

    enquanto possibilidade deredescrevera realidade. A metfora viva uma dessas formas

    de discurso cujos enunciados trazem algo novo linguagem. Com esses elementos, a

    filosofia de Paul Ricoeur investiga a criatividade desses enunciados metafricos a partir

    da distoro, ou desvio, que ao perturbar a ordem lgica existente gera um novo signifi-

    cado. A predicao desses enunciados de um tipo ambguo (eles dizem e no ao

    mesmo tempo), e necessria uma resoluo para essa tenso de termos contraditrios.Essa resoluo, que no exigida pelas metforas mortas, pois elas podem ser traduzi-

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    das em conceitos j existentes, dada pela imaginao. Sua funo participar de uma

    redescrio, a partir de uma criao de sentido que nos faz perceber a realidade como

    hiptese simular conscientemente. Entendemos como impulso verdade metafrica

    essa simulao inspirada pela noo de referncia ambgua identificada na poesia, e

    que diferente da referncia ordinria, dita de primeira ordem. Para Ricoeur, simular

    possvel pelo poder heurstico da fico, revelado no carter tensional entre verdade

    literal e verdade metafrica: no h outra maneira de fazer justia noo de verdade

    metafrica do que incluir a inciso crtica do no (literal) na veemncia ontolgica do

    (metafrico) (RICOEUR, 2005, pg. 388). no limite da sua teoria da metfora que

    Ricoeur encontra Nietzsche.

    Nietzsche, dando continuidade sua tese, diz que a tranquilidade no impulso

    verdade s alcanada pelo:

    [...] esquecimento desse mundo metafrico primitivo, apenas pelo enrijeci-mento e petrificao de uma massa imagtica que, qual um lquido fervente,desaguava originalmente em torrentes a partir da capacidade primitiva da fan-tasia humana (NIETZSCHE, 2008, pg. 40).

    Este esquecimento se completaria com o do sujeito enquanto artisticamente cria-

    dor. Queremos identificar aquicapacidade primitiva da fantasia humanacom a imagina-

    o, mas um tipo especial de imaginao, produtora e artisticamente criadora. Aceitamos

    a tese da metfora intuitiva originria, aceitamos que ela est na origem da linguagem,

    mas acreditamos que o conceito no se esgota como resduo dessas metforas. Que o

    conceituar um jogo mais complexo que igualar o no igual, ou melhor, que ele no se

    esgota em sua vertente antropolgica, encerrada na lgica para a simples sobrevivncia

    da espcie. A crtica mais severa possibilidade do conhecimento, alm da suspeita pre-

    tenso de veracidade, nem foi considerada, e ainda sim, acreditamos que a hermenutica

    fenomenolgica ricoeuriana responde a altura o desafio. Nietzsche escreve:

    A mim me parece, em todo caso, que a percepo correta que significaria aexpresso adequada de um objeto no sujeito uma contraditria absurdidade:pois, entre duas esferas absolutamente diferentes tais como entre sujeito e ob-

    jeto no vigora nenhuma causalidade, nenhuma exatido, nenhuma expresso,mas acima de tudo uma relao esttica, digo, uma transposio sugestiva [...]

    Algo que requer, de qualquer modo, uma esfera intermediria manifestamentepotica e inventiva, bem como uma fora mediadora (NIETZSCHE, 2008, pg.41).

    Como aproximao um dos crticos mais radicais da representao enquanto

    atividade do cogito nos molde cartesiano, e em geral moderno, envolve tambm o cogito

    husserliano. A fenomenologia, como a pensou Husserl, afirma que a relao entre sujeito

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    e objeto de constituio mtua, e a teoria de Ricoeur afirma a possibilidade de uma

    descrio adequada da relao entre sujeito e objeto, atravs de uma esfera intermedi-

    ria, uma noo de conscincia em conformidade s exigncias colocadas por Nietzsche,

    manifestamente potica e inventiva, pois sua fora mediadora a imaginao produ-

    tora. Sobre a relao da imaginao com a modernidade filosfica, Husserl parece ter

    noo quando adiciona uma nota de alerta ao pargrafo 70 deIdeias II, quando elogia a

    fico como essencial para seu mtodo. A fico, que Husserl diz constituir o elemento

    vital da fenomenologia, tambm possui m reputao na tradio filosfica. A exceo

    poderia ser a teoria sartreana, que coloca a imaginao como condio necessria para

    a liberdade humana. No imaginrio do irreal o nada no limitado pela realidade

    emprica atual. Mas a limitao da teoria sartreana identificar a capacidade humana

    para o irreal com base numa imagem de algo ausente a imagem de nosso amigo

    Pierre anloga a um original, ou seja, uma reproduo do nosso amigo Pierre. A

    imaginao, no sendo o irracional e absoluto nada de uma viso romntica, pode

    alterar a realidade ao desdobrar novas dimenses dela. Esse poder de transformao

    s pode ser efetivado se ele no introduzido a partir do nada; para no ultrapassar,

    por exemplo, o limite entre criatividade e esquizofrenia, a imaginao produtiva deveconter o suficiente da imaginao reprodutiva. Onde, ento, h uma imagem que no

    seja duplicao de um original Onde estaremos falando de imaginao produtiva mais

    que de imaginao reprodutiva? Na utopia, que ao mesmo tempo um lugar nenhum

    fora da realidade, mas tambm aponta para uma nova realidade. Na tragdia grega in-

    terpretada por Aristteles, em que a vida humana no duplicada, no sentido platnico

    demmesis, mas atravs dela algo da realidade nos revelado.

    Para voltarmos a Nietzsche, a ideia que para no termos uma cincia estru-turada sobre a iluso, nem os homens serem amparados sobre estrutura to frgil,

    preciso responder as verdades que, segundo Nietzsche, perturbam as outras verdades,

    as cientficas. Se os homens possuem naturalmente o impulso formao de metforas,

    no podendo abandon-lo jamais, e precisam do solo seguro de uma cincia estrutu-

    rada sobre algum tipo de verdade, por que no incorporar ambas as verdades? As do

    tipo intuitivo, provenientes das metforas originrias, e as que residem nos conceitos,

    e consequentemente participam do discurso filosfico? preciso pensar, como Ricoeur,em um jogo tensional entre verdade literal e verdade metafrica. At mesmo na exal-

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    tao da dissimulao artstica entre os gregos Nietzsche e Ricoeur compartilham uma

    ideia de plenitude da linguagem. Pois a riqueza das metforas na filosofia de Ricoeur

    deve ligar a plenitude semntica plenitude natural16. E a liga atravs dammesis, que

    para os gregos no correspondia a uma simples imitao da natureza. Ammesispossui

    composio e criao:

    Toda mmesis, mesmo criadora, sobretudo criadora, est no horizonte de umser no mundo que ela torna manifesto na mesma medida em que ela eleva aomythos. A verdade do imaginrio, a potncia de revelao ontolgica da poesia,eis o que, de minha parte, vejo na mmesis de Aristteles. por ela que a lxis enraizada e que os prprios desvios da metfora pertencem grande tarefade dizer o que . Mas a mmesis no significa apenas que todo discurso estno mundo. Ela no preserva apenas a funo referencial do discurso potico.Enquanto mmesis physeos, ela liga essa funo referencial revelao do Real

    como ato. funo do conceito de physis, na expresso mmesis physeos, servircomo ndice para esta dimenso da realidade que no se manifesta na simplesdescrio do que nela dado. Apresentar os homens agindo e todas as coisascomo em ato, tal bem poderia ser a funo ontolgica do discurso metafrico.Nele, toda potencialidade adormecida de existncia parece como eclodindo,toda capacidade latente de ao, como efetiva (RICOEUR, 2005, pg. 74-75).

    Dissemos que Ricoeur encontra Nietzsche no limite da teoria da metfora viva

    porque a plenitude semntica no basta, preciso incorporar teoria da linguagem uma

    teoria da ao, que seria impossvel sem uma ampliao do conceito de verdade que

    inclua as verdades do tipo intuitivo, originrias da sntese imaginativa dos enunciadosmetafricos. Ricoeur utiliza a anlise estrutural de textos advertindo insistentemente

    que ela no deve ser um sistema de signos sem ancoragem em um sujeito. A questo

    solucionar o problema da referncia a partir da transio da linguagem para a imagem,

    ressaltando o contedo ontolgico j pressuposto na sua teoria da imaginao potica.

    Como demonstram os comentadores de Ricoeur, a origem e o desenvolvimento de sua

    filosofia da imaginao esto em estreita ligao com o seu projeto filosfico em busca de

    um sujeito fragmentado que busca continuamente sua identidade e sua particularidadetica (identidade narrativa e ipsieidade fazem parte desse desenvolvimento). A imagina-

    o ascende no apenas como sntese, mas como constituio dessa identidade. Obter

    clareza sobre seu funcionamento nessa constituio representa um ganho fundacional

    para as teorias que esto aportadas nela.

    16 Mmesisda natureza (sem submisso a ela): A realidade continua a ser uma referncia, sem jamaistornar-se uma determinao. Eis por que a obra de arte pode ser submetida a critrios puramente intrnsecos,

    sem que jamais interfiram, como em Plato, consideraes morais ou polticas e, sobretudo, sem que pese ocuidado ontolgico de proporcionar a aparncia ao real (RICOEUR, 2005, pg. 73).

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    2 IMAGINAO PRODUTORA: DA TEORIA PRTICA

    2.1 As duas contribuies kantianas

    Na tradio filosfica ocidental o conceito de imaginao considerado em se-

    gundo plano, dentro de um paradigma lgico que tem na percepo o ato fundador da

    realidade. Entre tantos filsofos que ilustram essa tradio, citemos apenas dois: Hume,

    na filosofia moderna, e Sartre, no contexto da fenomenologia existencial contempornea.

    Para o primeiro a imagem referida percepo, sendo uma impresso fraca, ou ummero vestgio dela. Para o segundo a imagem referida ausncia de uma coisa. Este

    trabalho pretende apresentar alguns problemas, encontrados pelo filsofo Paul Ricoeur,

    que se originam nesse paradigma. Pretende tambm sugerir que a imaginao possui

    um papel de constituio e reinterpretao do real, no podendo ser considerada de

    matiz inferior, pois ela produtora de sentido. Para Ricoeur, todas as teorias da imagina-

    o (produtora e reprodutora) cometeram o equvoco ou de identificar a imagem como

    uma percepo evanescente, ou de identific-la com a evocao de uma coisa ausente,obscurecendo a diferena entre imaginrio e real:

    Dizer que as nossas imagens so faladas antes de serem vistas renunciar auma primeira evidncia falsa, aquela segundo a qual a imagem seria, primeiroe por essncia, umacenadesenvolvida numteatromental perante o olhar deum espectador interior; mas renunciar, ao mesmo tempo, a uma segundaevidncia falsa, aquela segundo a qual esta entidade mental seria o tecido emque talhamos as nossas ideias abstratas, os nossos conceitos, o ingrediente debase de uma qualquer alquimia mental. (RICOEUR, 1989, p.217).

    Ricoeur aborda a imaginao como produtora de sentido atravs do uso metaf-

    rico da linguagem, vinculando-a com sua teoria da metforaviva, especificamente com

    o fenmeno da inovao semntica. Essa abordagem busca na doutrina kantiana do es-

    quematismo um suporte para o trabalho da imaginao produtora de derivar a imagem

    da linguagem. Dentro da teoria do conhecimento de Kant, a doutrina do esquematismo

    busca resolver o problema de aplicar aos fenmenos em geral os conceitos puros do

    entendimento. Para ocorrer a sntese entre dois termos heterogneos, h a necessidade

    da mediao de um terceiro termo, homogneo categoria e ao fenmeno. Essa re-

    presentao mediadora pura Kant a denomina esquema transcendental. O anlogo ao

    esquema kantiano o cone, homogneo linguagem e imagem o cone a matriz

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    da nova pertinncia. Assim, o esquema liga o lgico e o sensvel, e o cone liga a imagem

    e o sentido.

    Em sua teoria da metfora, que um dilogo com a obra aristotlica, as entida-

    des heterogneas sero termos contraditrios em determinado enunciado metafrico,

    enunciado que de incio se apresenta sem sentido, at que o terceiro termo realize a

    sntese que aproxima o que est afastado. Esta aproximao produto da imaginao

    produtora: O trabalho da imaginao de esquematizar a atribuio metafrica. Como

    o esquema kantiano, ela d uma imagem a uma significao emergente. Em vez de ser

    uma percepo que se esfuma, a imagem uma significao emergente. (RICOEUR, 2000,

    p.219). Ricoeur pensa o enunciado metafrico como uma atribuio predicativa imper-

    tinente, transgressora, por relacionar campos semnticos heterogneos e logicamente

    incompatveis. A imaginao ser o mediador entre esses dois termos, distantes em sen-

    tido lgico, e a partir dessa funo de sntese teremos a inovao semntica: o novo que

    surge na linguagem. Essas metforasvivaspossuem a forma de uma tenso entre sujeito

    e predicado, portanto requerem um ajuste em nossa compreenso. Do conflito semntico

    inicial produzimos, atravs da imaginao, imagens poticas que animam nossa experi-

    ncia interior. Essa ligao entre o esquema kantiano e o esquema que Ricoeur aplicaaos enunciados metafricos precisa ser entendida luz de uma concepo de linguagem

    fecunda e plena: ela tem um papel ontolgico.1

    Como se entende que a linguagem contm um papel ontolgico, e sabemos que

    sintetizar termos heterogneos em um enunciado metafrico ver como, a suspenso

    dessa linguagem de primeira ordem tambm suspenso de um mundo de primeira

    ordem, que Ricoeur denomina omundo da vida. O trabalho da imaginao produtora

    permitir que experimentemos vises de mundo reveladas pela leitura de textos poticos evoltarmos para ummundo da vidatransformado, redescrito. Essa definio de imaginao

    deve ser decomposta, pois ela opera em trs nveis diferentes. No primeiro nvel a

    imaginao opera atravs da significao metafrica uma nova significao, ela aproxima

    dois termos distantes no espao lgico. Corresponde a esse nvel o rompimento com

    Hume (lembremos, um dos tericos da imagem enquanto vestgio da percepo) e a

    1 Na pg. 13 do artigo La Vida: Um relato en busca de narrador in gora Papeles de Filosofa(2006),Ricoeur afirma, sobre a relao que Kant estabelece na 1a Crtica entre o esquematismo e as categorias:Assim como em Kant o esquematismo designa a fonte criadora das categorias e as categorias designam oprincpio de ordem do entendimento, tambm a construo da trama constitui a fonte criadora do relato e anarratologia representa a reconstruo racional das regras subjacentes atividade potica. Aqui, trata-se defazer uma analogia com a atividade de construo da intriga.

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    associao Kant. No segundo nvel a imaginao opera uma ampliao icnica que

    no redutvel a uma imagem mental rplica de uma coisa ausente. No terceiro nvel

    a imaginao tem como funo a suspenso (epoch), ela estar relacionada dimenso

    do irreal e ao elemento da fico.

    A imaginao no apenas esquematiza a assimilao predicativa entre termospelo seuinsightsinttico em similaridades nem simplesmente retrata o sentidograas exposio de imagens provocadas e controladas pelo processo cognos-citivo. Ao contrrio, contribui concretamente ao epoch de referncia usual e projeo de novas possibilidades de reescrever o mundo. (RICOEUR, 1992,p.155).

    Com o juzo de gosto, na terceira crtica, Kant aprofunda o papel da imaginao

    dentro de seu sistema, mas agora ela tratada em um mbito esttico e no apenas

    dentro de uma epistemologia - livrando-se das limitaes da percepo e do conceito.

    Para Kant o juzo de gosto est relacionado liberdade da imaginao:

    Somente onde a faculdade da imaginao em sua liberdade desperta o enten-dimento e este sem conceitos traslada a faculdade da imaginao a um jogoregular, a a representao comunica-se no como pensamento mas como sen-timento interno de um estado de nimo conforme a fins. Portanto, o gosto afaculdade de ajuizar a priori a comunicabilidade dos sentimentos que so liga-dos a uma representao dada (sem mediao de um conceito). (KANT, 2008,p.142).

    A ideia que agrada a Ricoeur a de um jogo gratuito em que imaginao e inte-

    lecto fecundam-se mutuamente, a ideia de um esquematismo sem conceito pelo que a

    imaginao produz uma ordem (formas atravs de regras). A descrio do jogo em Kant,

    embora refira (ainda e sempre) ao problema das entidades heterogneas que necessi-

    tam de um terceiro termo mediador, coloca a imaginao num incessante processo de

    criatividade que nunca se esteriliza. Liberdade da imaginao em conformidade a regras

    constitui o enigma da criatividade. A criatividade pode ser entendida como o esprito em

    sentido esttico. Este esprito o princpio vivificante no nimo que caracteriza o gnio.

    Assim entendida a criatividade est presente mais no esquema, produto da imaginao,

    que no conceito. Esta finalizao da inverso esboada na primeira crtica permite que

    a funo da imaginao seja figurar as ideias da razo (que precisam ser objetivadas),

    e apresent-las na forma de serem mais que o conceito. Ricoeur interpreta assim a

    afirmao kantiana de que as produes da imaginao levam a pensar alm do que o

    conceito colhe, e a isso poderamos acrescentar, justo por esse ultrapassar o conceito,

    que se abre a possibilidade da criao.O gnio a resposta para a questo de como pode ser produzida a beleza, sendo

    ela uma ordem sem conceito. Como exemplo daquilo que possui o princpio vivificante

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    da alma, no jogo das faculdades experenciamos a beleza por aquele nimo presente no

    gnio e que nos serve de modelo. Kant afirma que a faculdade da imaginao produtora

    mesmo muito poderosa na criao como que de outra natureza a partir da matria que a

    natureza efetiva lhe d (KANT, 2008, pg. 159). E assim Ricoeur, que antes concordava

    com Kant no papel elementar que a imaginao ocupa no plano cognoscitivo (pela

    doutrina do esquematismo), agora concorda que as ideias estticas (como a poesia

    em especial) so um bom exemplo de uso da faculdade da imaginao. Quando as

    faculdades de conhecimento esto em harmonia sentimos um prazer singular que, alm

    de comunicvel, inesgotvel. A filosofia de Ricoeur, enriquecida com as contribuies

    da filosofia analtica e o dilogo com a semntica ps-estruturalista, entende que no

    processo de leitura (textos metafrico-poticos) temos experincias de outra ordem que

    no meramente objetiva-conceitual mas ainda assim, entendida como jogo regrado,

    a experincia esttica d vida s faculdades de conhecimento e prpria linguagem.

    A contribuio da filosofia kantiana para a filosofia da imaginao de Paul Rico-

    eur dupla: daCrtica da Razo Pura, a doutrina do esquematismo entendida como o

    ponto de partida para uma inverso no tratamento da imagem pela tradio filosfica;

    daCrtica da Faculdade de Juzo, o juzo de gosto o responsvel por colocar a teoria daimaginao sob o domnio da esttica e no mais da epistemologia. A doutrina do esque-

    matismo forneceu imaginao um papel na constituio dos fenmenos, ela participa,

    agora, da constituio da realidade objetiva, como funo mediadora incorporada ao

    juzo de percepo. Ainda que a sntese figurativa seja regulada pela sntese intelectual,

    portanto que a imaginao esteja na primeira contribuio limitada, a descoberta dela

    como mtodo para produzir imagens tem a capacidade de alterar seu statusfilosfico. A

    segunda contribuio ir radicalizar essa inverso. No oitavo estudo empreendido porRicoeur emA Metfora Viva(Metfora e Discurso Filosfico), e que busca responder

    questo sobre a interseco entre o discurso potico e o especulativo, o jogo harmo-

    nioso entre imaginao e entendimento considerado conforme Kant o descreveu no

    pargrafo 49 da sua Crtica da Faculdade do Juzo: o esprito, que princpio vivifi-

    cante do jogo e busca o pensar a mais, para Ricoeur a alma da interpretao. E

    a interpretao uma modalidade de discurso que est entre a esfera do metafrico e

    do especulativo, ou seja, ela quer a claridade do conceito, de outro procura preservar odinamismo da significao que o conceito detm e fixa (RICOEUR, 2000, p.464). Para Fer-

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    nanda Henriques, que dedicou dois artigos leitura e herana kantiana em Paul Ricoeur,

    a aproximao entre inovao semntica e Dichtung(poesisou literalidade) refere-se

    ao modo nico de expressar a realidade pela mediao da linguagem potica, sendo

    uma criao radical de sentido, fomentando assim seu enraizamento ontolgico. As duas

    contribuies que buscamos explicitar aqui, para Henriques esto relacionam-se tambm

    com o conceito deprende-ensemble2, que designa tanto o papel mediador da metfora

    como a intriga ou enredo: uma funo anloga quela que a regra do conceito tem no

    que respeita intuio, que a de conferir inteligibilidade e universalidade (HENRIQUES,

    2006, p. 14). Trata-se da ideia de configurao, de matiz kantiana (no sentido de uma

    universalizao do particular, de extrair uma configurao ao tomar em conjunto), que

    busca oferecer inteligibilidade.

    2.2 Atravs da teoria mimtica e da imaginao

    No outono de 1975, Paul Ricoeur proferiu dezoito palestras em solo americano,

    palestras que foram editadas e publicadas anos depois, por George Taylor. Seu tema

    central a dialtica entre ideologia e utopia, mas, como em outros textos e palestras do

    mesmo perodo, o interesse de Ricoeur parece estar dirigido para um reestabelecimento

    do papel da imaginao na histria da filosofia. Acreditamos que a imaginao mais

    que um conceito funcional na filosofia de Ricoeur, que ela tece os seus muitos temas

    dispersos. O que chamamos reestabelecimento do papel da imaginao comea pela

    histria dos seus prejuzos, ou melhor, dos preconceitos dos filsofos com a imagem.

    Neste livro que rene suas palestras americanas a ideologia e a utopia so entendidas

    como um produto da imaginao e narradas a partir da sua m-fama. Em outras pales-tras, proferidas dois anos antes, Ricoeur escreve que a imagem, enganosa j em Plato,

    mero resduo da percepo na filosofia de Hume3. Teremos em mente que a tradio

    filosfica trata a ideologia e a utopia de um modo igualmente prejudicial, e limitante:

    2 Em uma conferncia que antecede a publicao de TN, Ricoeur afirma que o termo tomado deemprstimo Louis O. Mink, enquantotomar em conjunto: esse ato oferece um parentesco notvel com ojulgamento reflexivo na Crtica da faculdade de julgar, a qual, segundo Kant, opera ao mesmo tempo noplano do julgamento esttico de gosto e no do julgamento teleolgico aplicado s totalidades orgnicas.O ato da intriga tem uma funo similar enquanto extrai uma figura de uma sucesso in Entre tempo enarrativa: concordncia/discordncia. Kriterion [online]. 2012, vol.53, n.125, pp. 299-310.Confernciaproferida aoGroupe de Recherches sur la Philosophie et le Langage, Grenoble 1981 1982.3 Cf.: Richard Kearney aponta este mesmo descaso com a imaginao em Espinosa, para quem as ideiasimaginrias so inferiores s ideias da razo, esto distantes da verdade eterna, e em Leibniz, para quema verdade no precisa ser representada pela mediao de imagens.

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    uma contraposta realidade e cincia, e a outra considerada como sonho e fantasia. O

    conceito de ideologia referido a Karl Marx, considerado o paradigma quanto ao tema

    e os demais autores tratados no livro (Louis Althusser, Karl Mannheim, Jrgen Haber-

    mas) so discutidos em relao a esse paradigma. Nele, a contraposio entre ideologia

    e realidade comea emA Ideologia Alem(1846), onde a primeira considerada uma

    distoro que se contrape prxis (que caracteriza o indivduo vivo e ligado a sua con-

    dio material). Mannheim, o primeiro a incluir ideologia e utopia no mesmo quadro

    conceitual, as diferencia, mas contrape ambas ordem: a primeira a legitima, a outra

    a fragmenta. Por outro lado, em Althusser, a ideologia contraposta cincia, ou seja,

    ao marxismo - cuja tese principal, nessa interpretao, trata da relao causal entre as

    foras annimas da infraestrutura (base da sociedade) e a superestrutura (cultura, arte),

    que ideolgica e reage infraestrutura. O problema, para Ricoeur, considerar essa

    relao entre foras econmicas e ideias como causal e aqui ele introduz Max Weber

    para pensar essa relao dentro de um quadro motivacional. Entendida como uma moti-

    vao da classe dominante, a ideologia alcana um segundo nvel, onde ela no funciona

    mais como distoro, mas como legitimao que preenche o hiato entre a crena dos

    governados e a pretenso dos governantes. Para encontrar os pontos positivos da utopiae da ideologia, Ricoeur vai aprofundar esses conceitos, indo alm da interpretao mar-

    xista. Os pressupostos do argumento de Ricoeur so que a ideologia, conceitualmente,

    s pode ser entendida como distoro ou como legitimao a partir da estrutura da ao

    que para ele simblica. A prxis pode ser distorcida, mas essa distoro faz parte

    da prpria prxis: ela possui uma parte ideolgica. Esto implcitas aqui discusses que

    Ricoeur teve com Habermas e outros autores sobre as possibilidades da hermenutica

    enquanto cincia social, principalmente sua defesa da hermenutica como cincia crticae, consequentemente, a identificao da interpretao das distores ideolgicas como

    processos de dessimbolizao. A ideologia cumpre um papel mediador na sociedade:sua

    funo positiva realizar (fazer aparecer) uma integrao que preserva a identidade

    social. A funo positiva da utopia a de questionar essa integrao a partir de um ponto

    de vista ideal e essa dialtica que para Ricoeur forma o juzo crtico. Ela inclui tam-

    bm o lado patolgico de ambas as imagens sociais proporcionadas pela imaginao: a

    ideologia como distoro, e a utopia como loucura. A importncia da dialtica mostrarque socialmente elas se curam a ideologia fornecendo o elemento de identidade para

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    a utopia e a utopia fornecendo o antdoto para a rigidez e a petrificao da ideologia.

    2.3 Os fundamentos fenomenolgicos do imaginrio potico-social: a utopia

    Neste tpico pretendemos esboar uma sistematizao do percurso que permitiu

    a Paul Ricoeur tratar a utopia e a ideologia como produtos do imaginrio social no

    sentido em que o desenvolvimento dessa dialtica o resultado do reestabelecimento do

    papel da imaginao que nos referimos na introduo. Aps a histria dos prejuzos ou

    dos preconceitos dos filsofos em relao imagem, Kant proporcionou imaginao

    um papel constitutivo na realidade dos fenmenos atravs de sua doutrina do esquema-

    tismo, e assim reverteu o problema da submisso da imagem em relao percepo,

    dividindo a imaginao em reprodutora e produtora. Ricoeur parte dessa ideia de imagi-

    nao enquanto produo de imagens, ou seja, enquanto mtodo. Quando introduz um

    vocabulrio husserliano, ele considera a imaginao na mesma medida em que Husserl

    afirma que a imaginao (o poder de ficcionalizar) o gesto filosfico por excelncia. A

    teoria husserliana da imaginao que Ricoeur faz uso aqui composta do tratamento

    que o tema recebeu nasInvestigaes Lgicas, e no famoso pargrafo 70 emIdeias. Nas

    Investigaesa imagem ser discutida em termos de uma teoria do conhecimento, como

    crtica Brentano (os diferentes modos segundo os quais os objetos esto dados

    conscincia). EmIdeiasela identificada com o poder do irreal ou do quase real. Rico-

    eur prope uma distino entre figurar e imaginar, para clarificar o aumento do papel da

    imaginao entre um contexto e outro. No um simples aumento, uma identificao

    da imaginao com o filosofar e nisso reside, alis, grande parte da permanncia de

    Husserl em Ricoeur, principalmente atravs das variaes imaginativas:Mesmo Husserl pode dizer: a fico o elemento vital da fenomenologia,como de todas as cincias eidticas. Em concluso, o poder do quase pareceser a fonte comum da reduo transcendental, ou epoch, e da reduo eidtica. mediante o prprio poder da fico que a crena natural colocada distnciae que o fato submetido s variaes imaginativas reveladoras do invarianteeidtico. Em ambos os casos, o imaginrio a casa vazia, que permite ao jogodo sentido iniciar. (RICOEUR, 2002, p. 55)

    Mas Ricoeur precisou ir alm do projeto husserliano, mesmo permanecendo her-

    deiro da reduo transcendental enquanto neutralizao da existncia. O enxerto her-

    menutico realizado atravs da linguagem apresentada como uma potencialidadeontolgica que remete imaginao produtora. Nesse sentido, a imaginao, tal como

    pensada na investigao ricoeuriana, a prpria epoch. A oposio Husserl diz res-

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    peito necessidade da compreenso ser mediada pela interpretao, o questionamento

    de um primado da subjetividade. Contextualizando a imaginao dentro do projeto fi-

    losfico de Ricoeur, encontraremos a questo do smbolo (especificamente a simblica

    do mal) e a dificuldade de lidar com um conceito to polissmico afinal, podemos

    estruturar a funo simblica, podemos pretender dom-lo via uma topologia social,

    mas muito difcil dizer o que no , ou o que no pode ser um smbolo. preciso

    encontrar um sistema, ou melhor, uma funcionalidade, dentro de um sistema maior, que

    para um hermeneuta sempre a linguagem, e que possibilite pensarmos a recriao da

    realidade de um modo estruturado, o que significa dizer: que comporte junto ao seu

    poder a sua resoluo de verdade, o se