dissertação_rg_corrigida

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  • 7/22/2019 Dissertao_RG_corrigida

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS

    DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    RAFAEL GODOI

    Ao redor e atravs da priso: cartografias do dispositivo

    carcerrio contemporneo

    So Paulo

    2010

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    UNIVERSIDADE DE SO PAULO

    FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANASDEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    Ao redor e atravs da priso: cartografias do dispositivo

    carcerrio contemporneo

    Rafael Godoi

    Dissertao apresentada ao Programa dePs-Graduao de Sociologia da Faculdadede Filosofia, Letras e Cincias Humanas daUniversidade de So Paulo, para a obteno

    do ttulo de Mestre em Sociologia.Orientadora: Profa.Dra. Vera da Silva Telles.

    So Paulo

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    A pai e me, pelo passado; a Erika, pelo presente.

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    Agradecimentos

    A Vera Telles, pelo apoio, orientao e pacincia. A Fernando Salla e Marcos Alvarez

    pelo dilogo continuado e pelas sugestes no exame de qualificao. A Eliane Alves,

    Daniel Hirata, Jos Csar Magalhes, Carlos Freire, Tatiana Maranho, Fernanda

    Matsuda, Alessandra Teixeira pelos estudos compartilhados. Por ajudas vrias nas

    atividades curriculares do programa de ps-graduao: Srgio Adorno, Sylvia Garcia,

    Maria Helena Oliva Augusto, Myriam Mitjavila, ngela de Souza, Vicente Filho. Por

    ajudas vrias em situaes vrias: Rodrigo Godoi, Robert Cabanes, Gabriel Feltran,

    lvaro Gullo, Alvino S, Fabio Candotti, Douglas Anfra, Ana Gabriela Braga, Gislene

    Souza, Bianca Briguglio. Da expedio Barcelona: Agncia de Cooperao

    Internacional do Ministrio de Assuntos Exteriores da Espanha, a Teresa Berteli,

    Montserrat Ventura, Verena Stolcke, Alex Coello, Aurora Gonzlez, Julio Zino, Gloria

    Urtasun. Oficina Social de Antropologia e Priso, a Dario Malventi e lvaro

    Garreaud. A todos os interlocutores da pesquisa e a todos aqueles que na vida privada

    fizeram comigo essa travessia.

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    Resumo

    Nesse trabalho, a incidncia da priso para alm de seus limites fsicos e institucionais

    problematizada a partir da explorao e confrontao de dois contextos sociais distintos:

    a Catalunha e So Paulo. Os vasos comunicantes que conectam a priso a outros

    territrios sociais, bem como as experincias de diversos agentes que fazem a mediao

    entre o mundo prisional e a sociedade mais ampla, so questes abordadas atravs de

    uma perspectiva analtico-descritiva, visando evidenciar a produo de um

    multifacetado campo social estruturado ao redor e atravs das instituies prisionais.

    Explorando diferentes trajetrias que se conformam nesse campo possvel

    problematizar algumas das circunstncias do processo de massificao do

    encarceramento, assim como outras importantes alteraes recentes no dispositivo

    carcerrio contemporneo.

    Palavras-chave: priso, dispositivo carcerrio, encarceramento em massa, vasos

    comunicantes, mediadores, sistema penitencirio, Catalunha, So Paulo.

    Abstract

    This work intends to problematize the impacts of prison beyond its physical and

    institutional limits. Such aim is achieved through exploration and confrontation of two

    different social contexts: Catalonia and So Paulo. The communicating vessels, which

    connect jail to other social territories, and the experience of several agents, that provide

    mediation between prison and the rest of society, are questions treated through an

    analytical-descriptive perspective, intending to show up the production of a multifaceted

    social field that is structured around and through prison institutions. Exploring different

    paths in this field, it is possible to problematize some circumstances of mass

    imprisonment process, as well as recent changes in the penal contemporary mechanism.

    Key-words: prison, penal mechanism, mass imprisonment, communicating vessels,

    mediators, penitentiary system, Catalonia, So Paulo.

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    Sumrio

    Agradecimentos........................................................................................................................4Resumo.................................................................................................................................5

    Abstract................................................................................................................................5

    Sumrio........................................................................................................................................6

    Introduo................................................................................................................................8

    1 Hiptese produtiva............................................................................................................21

    1.1 - (D)efeitos...................................................................................................................22

    1.2 - Prisionizaes.............................................................................................................25

    1.3 - A hiptese produtiva..................................................................................................30

    1.4 - Mediaes..................................................................................................................37

    ......................................................................................................................................37

    2 Massificao do encarceramento......................................................................................43

    2.1 - Pauta...........................................................................................................................43

    2.2 - So Paulo, Brasil........................................................................................................48

    2.3 - Catalunha, Espanha ...................................................................................................55

    3 Vasos comunicantes.........................................................................................................603.1 - Estimativas.................................................................................................................60

    3.2 - Os vasos comunicantes...............................................................................................65

    3.3 - Mediadores.................................................................................................................74

    4 Percursos de campo .........................................................................................................77

    4.1 - Em Barcelona.............................................................................................................77

    4.2 - Em So Paulo ............................................................................................................86

    5 Uma abordagem (im)possvel...........................................................................................96

    6 Uma cartografia do dispositivo carcerrio catalo..........................................................101

    6.1 - Marco Zero...............................................................................................................102

    6.2 - Manola.....................................................................................................................105

    6.3 - (Re)estruturaes......................................................................................................108

    6.4 - Rotinizaes.............................................................................................................110

    6.5 - Aurora......................................................................................................................112

    6.6 - (Des)ajustes..............................................................................................................114

    6.7 - (I)migrantes..............................................................................................................118

    6.8 - Novas peas..............................................................................................................123

    6

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    6.9 - (I)mobilizaes.........................................................................................................124

    6.10 - (In)concluses........................................................................................................128

    7 Uma cartografia do dispositivo carcerrio paulista.........................................................130

    7.1 - Marco Zero ..............................................................................................................130

    7.2 - Pedro........................................................................................................................134

    7.3 - Gravitaes...............................................................................................................138

    7.4 - Amaro .................................................................................................................... 144

    7.5 - Tectnicas................................................................................................................148

    7.6 - (Re)ajustes................................................................................................................153

    7.7 - (Re)aes..................................................................................................................159

    7.8 - Reverberaes .........................................................................................................165

    7.9 - Enlaces ....................................................................................................................172

    7.10 - (In)concluses........................................................................................................175

    Consideraes finais.............................................................................................................177

    Imagens................................................................................................................................181

    Bibliografia...........................................................................................................................183

    Filmografia.......................................................................................................................201

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    Digo: o real no est na sada nem na chegada: ele se dispe para a gente no meio

    da travessia.

    Guimares Rosa, em Grande Serto: Veredas.

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    Introduo

    A presente pesquisa deve ser encarada como um percurso parcial, prtico e terico. Um

    trecho, um caminho possvel, partindo de um ponto especfico sem chegar num lugar

    pr-determinado. Um trecho, portanto, feito de desvios, de enganos, intuies,

    bifurcaes, obstculos, contornos e atalhos. O que segue deve ser lido como o relato de

    um percurso inacabado, um dirio de viagem que est longe de encerrar-se. O ponto de

    partida pode ser precisado, os instrumentos de orientao utilizados podem ser

    enumerados, descritos, analisados. J o ponto de chegada no passa de um entreposto

    provisrio, ponto de parada e reflexo sobre o trecho percorrido e ainda a percorrer, um

    novo ponto de partida.

    O incio dessa jornada se d no cruzamento de duas pistas de dois conjuntos de

    evidncias empricas que motivaram, conduziram e determinaram os (des)caminhos

    de toda a empreitada. Em primeiro lugar, a primeira pista: em diferentes bairros

    perifricos da cidade de So Paulo, um grupo de pesquisadores com os quais aprendia e

    colaborava encontrou a priso. Mas no somente aquela priso-possibilidade

    onipresente para os que se atreverem a cruzar os limites da legalidade instituda, e sim

    uma priso-realidade, uma priso-presena, e para pessoas que no necessariamente

    cometem ou cometeram um delito tipificado. Uma priso que circula de boca em boca,

    de gesto em gesto, que sim ameaa em sua virtualidade, mas que, sobretudo, determina,

    coage, conforma efetivamente prticas e discursos de um grande nmero de habitantes

    daquelas localidades, estejam envolvidos ou no em negcios ilcitos.

    Encontrou-se, verdade, uma priso-passado, a do relato de egressos do sistema

    prisional, de pessoas marcadas, estigmatizadas, excludas da sociedade, e que ali

    circulam normalmente, misturam-se desapercebidamente nos encontros fortuitos de

    bairro, que esto absolutamente includas em famlias extensas e nucleares, em

    sociabilidades de lazer e de mercado, desde o time de futebol, passando pelo bar e

    mercearia, at o ponto de trfico de drogas.

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    Encontrou-se ainda uma priso-presente, aquela vivida pela me, pela sogra, pela

    mulher, pelos filhos de um encarcerado. Priso-presente que se materializa nos fins de

    semana, nos dias de visita, no trajeto ao presdio distante, na longa fila de longa espera,

    na revista vexatria, na visita ntima; mas tambm uma priso-presente a todo instante,

    nas necessidades bsicas mais dificilmente supridas, no planejamento da viagem de

    visita, na produo do pacote de roupas, artigos de higiene e alimentos a levar ao

    encarcerado no esperado dia pacote volumoso conhecido como jumbo , nas

    negociaes de turno de trabalho da mulher que o inflexvel dia da visita impe, na

    troca de cartas e favores, no cuidado trocado de crianas vizinhas numa noite de fim de

    semana, etc. A ampla circulao dessa priso-passado-presente faz da priso-futuro

    daquela priso-possibilidade onipresente uma possibilidade mais freqente, maisconhecida, esperada e espervel. Essa, uma priso-virtualidade que no necessariamente

    paralisa, aterroriza, dissuade, mas que por tanta familiaridade, entra no clculo do

    futuro, que quase mensurvel em seus efeitos com alguma antecedncia, que pode ser

    vista por alguns como uma etapa da vida seno necessria, ao menos inelutvel, e por

    muitos outros como algo naturalizado, normal para quem escolher seguir um

    determinado caminho na vida.

    Esse primeiro conjunto de evidncias advm da experincia de Iniciao Cientfica1,

    quando transcrevi e editei uma srie de entrevistas feitas em bairros perifricos da

    cidade de So Paulo, e que me fizeram perceber a importncia da priso como ponto de

    entrecruzamento de trajetrias em determinados territrios urbanos perifricos. Essa

    constatao aparecia sob vrios registros. Em primeiro lugar, era possvel entrar em

    contato com um nmero significativo de trajetrias de vida marcadas pela experincia

    penitenciria, seja de egressos do sistema prisional, seja de parentes prximos ou

    amigos de presos, que passavam (ou no) pela experincia peridica da visitao. Em

    segundo lugar, pelos relatos era possvel verificar que a experincia carcerria

    mobilizava uma complexa rede de apoio, que ora garantia itens bsicos de

    sobrevivncia para famlias que tiveram seus provedores presos, ora viabilizava

    recursos para a visitao, para pagar advogados, e para garantir a montagem e o envio

    do jumbo. Em terceiro lugar, era possvel ficar sabendo do impacto local, na forma de

    tenso e preocupao com filhos, maridos, parentes e amigos, das rebelies prisionais,

    1 Desenvolvida entre 2004 e 2006, sob orientao da Profa. Dra. Vera da Silva Telles, nos quadros dapesquisa Cidade e trabalho: mobilidades ocupacionais e seus territrios (CNPq, 2003-2006).

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    grandes e pequenas, que, quela altura, j eram freqentes em So Paulo. Finalmente,

    tambm era possvel ficar sabendo da marcante presena de pessoas envolvidas no

    mundo do crime em estreita relao com presos, e inscritas nas redes sociais que

    conformavam a sociabilidade cotidiana daqueles bairros perifricos paulistanos. Foi

    esse conjunto de indcios da existncia de redes sociais estruturadas e mobilizadas em

    torno da priso, envolvendo um significativo nmero de agentes, que serviu como um

    dos pontos de partida para esse trabalho.

    O segundo conjunto de evidncias, a segunda pista se cruza com a primeira nessa

    estruturao de um mundo do crime que passa pela priso e se articula com as redes

    vicinais de bairros perifricos. Trata-se nomeadamente da estruturao da faco

    prisional Primeiro Comando da Capital (PCC) para alm dos limites prisionais, da sua

    capilaridade em diferentes territrios urbanos, que se expressa espetacularmente em

    eventos de grande repercusso miditica como aes de resgate, roubos milionrios,

    grandes esquemas de trfico de drogas e armas, ou nos Ataques do PCC de maio de

    2006. Mas, tambm, um transbordamento que perceptvel no discreto financiamento

    de cestas bsicas a familiares de presos, no pagamento de advogados, na circulao de

    uma linguagem, de um conjunto de cdigos de conduta, de protocolos sociais, que vo

    compondo os repertrios de um lado e outro das muralhas. Essas evidncias de

    diversificadas prticas externas de um grupo que se estrutura no interior da priso,

    indubitavelmente, tambm colocam o problema de um transbordamento da priso para

    fora de seus limites.

    No cruzamento dessas duas pistas iniciou-se um percurso de investigao acerca da

    presena da priso para alm dos seus limites materiais ou institucionais, e, de imediato,

    uma questo se imps. Num breve e prvio levantamento de dados foi possvel perceberque uma formulao amplamente aceita e difundida para expressar o sentido do

    transbordamento da priso: a priso se faz presente alm de seus limites fsicos sempre

    desestruturando vnculos sociais, sociabilidades e formas de vida, ou seja, a presena

    externa da instituio prisional pensada nos termos de efeitos imediatos e negativos

    que impe sobre os grupos e territrios que alcana, seja sob o signo da

    desestruturao familiar, seja sob o signo do crime organizado. Por um lado, diz-se

    que algo de bom e desejvel destrudo; por outro, que algo de nefasto construdo.

    Ainda que no sejam discursos congruentes, sob uma mesma racionalidade que se

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    formula o problema.2 Porm, os conjuntos de evidncias encontrados principalmente a

    primeira pista pareciam apontar para o sentido contrrio dessa viso geral: o que

    chamava a ateno era exatamente a dimenso estruturante da presena prisional

    naqueles territrios perifricos, os vnculos que eram criados, mantidos, reconfigurados

    em torno de uma priso-passado-presente-futuro que parecia se normalizar e se rotinizar

    no bairro. Se a chegada da priso implicava num primeiro momento ou na escala de

    uma residncia num impacto desestruturante do ambiente familiar e da rede vicinal,

    sua presena continuada parecia implicar em processos mais amplos de reestruturao

    de prticas, discursos e vnculos sociais, que no poderiam ser satisfatoriamente

    descritos em termos estritamente negativos.

    Por outro lado, Foucault (1996), j em Vigiar e Punir, advertia para a importncia de

    no se analisar os efeitos de poder das instituies punitivas como meramente

    negativos. Sua anlise da positividade e produtividade do poder disciplinar que se

    corporifica no sistema carcerrio, mas que se estende por outros territrios tambm

    me servia de referncia para entrever algo sendo produzido exatamente onde de modo

    reiterado se denunciava a destruio. Nestes termos, o ponto de partida da pesquisa a

    evidncia de que a priso estrutura um campo de agentes, prticas e discursos muito

    alm de seus limites institucionais desdobra-se numa espcie de ponto cardeal que

    orienta todo o percurso de investigao.

    O aprofundamento da pesquisa bibliogrfica permitiu-me perceber que esse tipo de

    problemtica no se impe somente no contexto paulista ou brasileiro, mas entra em

    ressonncia com um importante debate terico aberto acerca da redefinio do lugar da

    priso na sociedade ocidental. Debruando-se, principalmente, sobre os contextos

    britnico e estadunidense, Garland (1999, 2001, 2005) estabelece alguns marcosreferenciais inescapveis para essa problematizao. Esse autor coloca no foco de sua

    reflexo os efeitos societrios das mudanas recentes nas polticas de controle do delito

    e justia penal que, desde a dcada de 1970, so progressivamente regidas por um maior

    2 importante considerar que cada formulao tem suas prprias implicaes. Por um lado, o discurso dadesestruturao familiar associa-se a demandas assistenciais e de promoo do bem-estar das pessoasdireta e indiretamente afetadas pelo encarceramento, enquanto o discurso do crime organizado vem

    associado a demandas de confrontao, represso e eliminao de uma ameaa considerada iminente.Para alm dos desdobramentos prticos e discursivos de cada formulao, o que se pretende ressaltar que ambas as formulaes comungam uma mesma concepo negativa do transbordamento da priso.

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    rigor punitivo, resultando no que chama de encarceramento em massa. 3Sob essa nova

    cultura punitiva cultura do controle, nos termos de Garland (2005) a priso vai se

    tornando uma instituio socializadora de amplos setores da populao, de negros e

    latinos nos Estados Unidos, de imigrantes estrangeiros na Europa. Melhor compreender

    os significados dessa socializao penitenciria ampliada, segundo o autor, tarefa

    premente da investigao sociolgica. Diversos autores corroboram essa preocupao,

    muitos se dedicando a explorar as causas desse processo como Zimring e Hawkins

    (1991), Christie (1993), Wacquant (2007), Mauer (2001), Tonry (1999), Kuhn (2001),

    Downes (2001), entre outros ; e outros se debruando sobre suas conseqncias entre

    eles, Braman (2003), Comfort (2003, 2007), Mauer e Chesney-Lind (2002), Travis e

    Waul (2003), etc.

    Cunha (2002), por sua vez, trabalha com questes que apresentam outros paralelos

    importantes com os conjuntos de evidncias que serviram de ponto de partida para esse

    percurso investigativo. Essa autora desenvolve a tese de eroso das fronteiras entre

    bairros e prises, estabelecendo alguns marcos para a reflexo acerca do redefinido

    lugar social da priso, bem como da dinmica de estruturao de um campo de agentes,

    prticas e discursos articulados num bairro em funo da priso (e tambm numa priso

    em funo do bairro). Segundo a antroploga portuguesa, uma recente extenso do

    mercado varejista da droga em determinados bairros perifricos de Lisboa se deu

    atravs da mobilizao de redes familiares e vicinais, que h muito se articulavam

    ancoradas em prticas de sobrevivncia, desenvolvidas nos percalos da informalidade.

    A introduo do mercado da droga no repertrio de prticas locais implicou numa

    importante alterao na economia poltica dos ilegalismos populares lisboetas, bem

    como, simultaneamente, no desenvolvimento de um novo perfil de polticas criminais

    de represso ao trfico, que passa a focar a atuao policial nesses territrios. O

    resultado previsvel o encarceramento progressivo de agentes de uma mesma rede

    familiar e vicinal, rede que se desestrutura, mas se reestrutura e se atualiza entre o bairro

    e a priso. Nestes termos que a autora descreve o processo de eroso das fronteiras entre

    bairros e prises, e problematiza uma redefinio da experincia carcerria, que vai

    perdendo, em grande medida, o carter estigmatizante que sempre teve, para tornar-se

    cada vez mais um expediente normal e previsvel na vida daquelas populaes.

    3 Processo, segundo Garland, dotado de duas caractersticas bsicas: 1 a guinada ascendente e semprecedentes das taxas de encarceramento; e 2 a concentrao social dos efeitos desse aumento emdeterminados grupos populacionais.

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    As referncias em Foucault, Garland e Cunha foram fundamentais para que delimitasse

    um plano inicial de pesquisa, uma direo a tomar. Projetei uma pesquisa de carter

    exploratrio, fundada na coleta de histrias de vida de pessoas que estabeleceram, em

    algum momento, um contato direto ou mediado com o mundo prisional, residentes de

    algum bairro perifrico no qual se verificasse altos e crescentes ndices de

    encarceramento. O objetivo principal era prospectar os processos e dinmicas de

    estruturao de um campo de agentes, prticas e discursos pautados pela priso nessa

    localidade, estruturao que, por sua vez, era entendida como um dos efeitos difusos,

    produtivos e positivos, do processo de massificao do encarceramento fenmeno

    tambm verificvel em So Paulo.

    Mas isso no era tudo, a estratgia inicial desenvolvida nas primeiras etapas da pesquisa

    ainda envolvia outros dois aspectos fundamentais, que visavam cuidar para que o

    percurso realizado permanecesse, o mais fielmente possvel, orientado pela presena da

    priso no bairro, e pelas estruturaes sociais que pautava, e no pela presena do

    mundo do crime e suas prprias estruturaes um desvio, ento, imaginado

    existente e considerado iminente, dado o entrecruzamento contnuo dessas duas sendas,

    certamente interligadas, mas no necessariamente redutveis uma outra.

    A primeira precauo metodolgica estratgica foi o estabelecimento dos vasos

    comunicantes que conectam o bairro priso como foco primordial de prospeco de

    informaes no decorrer do trabalho de campo. Em outras palavras, os processos de

    estruturao das visitas, dos jumbos, a troca de cartas, os procedimentos de recepo

    de presos em sadas temporrias, ou de egressos do sistema ou seja, tudo o que

    implicasse uma efetiva comunicabilidade entre o mundo prisional e o bairro, e ao redor

    do que se estruturaria um campo de agentes, prticas e discursos eram vistos comofatores determinantes na conformao e consolidao da presena prisional no bairro, e

    a eles se deveria prestar maior ateno no decorrer da pesquisa. sabido que esses

    vasos comunicantes sempre existiram, que a priso sempre se caracterizou por certo

    grau de porosidade, mas entendia-se que os vasos comunicantes se revestiam de maior

    importncia analtica nesse contexto punitivo reconfigurado, no qual a priso se torna

    instituio socializadora de determinados (e amplos) grupos populacionais.

    A segunda precauo metodolgica foi o estabelecimento de uma estratgiacomparativa para melhor identificar as estruturaes sociais que se do a partir da

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    presena da priso no bairro. Num contexto como o paulista, parecia insuficiente pautar

    o exerccio investigativo nos vasos comunicantes, uma vez que se sabia haver uma

    ampla incidncia da faco prisional na dinmica estruturante desses vasos. A crescente

    importncia da faco prisional na gesto urbana dos negcios do crime, e suas

    mltiplas interseces com as redes vicinais de bairros perifricos pareciam misturar

    demasiadamente o que poderia ser visto como efeitos estruturantes da presena prisional

    e do mundo do crime no bairro. A sada encontrada foi procurar empreender a mesma

    pesquisa em contextos sociais distintos, dotados de diferenciadas dinmicas criminais

    principalmente algum em que no se verificasse a existncia de algo como o PCC ,

    mas que se aproximassem sob uma mesma tendncia de incremento do encarceramento.

    Por contraste, imaginava-se poder melhor identificar, isolar e caracterizar o campo deagentes, prticas e discursos que se estrutura a partir da priso e de seu incremento

    numa dada localidade, distinguindo-o das estruturaes societrias prprias ao mundo

    do crime.

    Como se pode imaginar principalmente em se tratando de uma proposta sociolgica

    de carter exploratrio as dificuldades de um estudo comparativo se situam mais nas

    possibilidades materiais do que na justificao terica. Realizar pesquisa de campo em

    contextos sociais suficientemente distantes exige recursos que so difceis de um

    pesquisador iniciante captar. No obstante, foi-me concedido o privilgio de contar com

    uma bolsa de estudos integral oferecida pelo Ministrio de Assuntos Exteriores da

    Espanha, para realizar atividades de pesquisa durante um ano nesse pas. 4De tal modo,

    o estudo do campo de agentes, prticas e discursos, que se estrutura num bairro ao redor

    dos vasos comunicantes que o conectam priso, inicia-se num campo distante e

    desconhecido: a regio metropolitana de Barcelona.

    A despeito da manuteno de um mesmo ponto cardeal no horizonte da pesquisa e de

    tantas precaues metodolgicas, a viagem Catalunha, seguramente, representou um4 Simultaneamente aprovao no processo seletivo do Programa de Ps-Graduao em Sociologia daUniversidade de So Paulo (PPGSUSP), fui beneficiado pela Agncia Espanhola de CooperaoInternacional, do Ministrio de Assuntos Exteriores da Espanha (MAE-AECI), com uma bolsa integral(becas-MAE) para a realizao doMster Oficialem Investigao Etnogrfica, Teoria Antropolgica eRelaes Interculturais do Departamento de Antropologia Social, da Universidade Autnoma deBarcelona (UAB). De tal modo, ainda em setembro de 2007, fui para Barcelona, onde imediatamenteiniciei as atividades discentes previstas no curso e desenvolvi um projeto de pesquisa que adaptava asquestes levantadas no projeto apresentado na USP para o contexto espanhol. Em setembro de 2008,

    apresentei o relatrio de pesquisa intitulado Entre la Calle y la Crcel: una investigacin etnogrficaexploratoria sobre el flujo carcelario-urbano que pasa por Barcelona (GODOI, 2008a) a bancaavaliadora composta pelos professores Verena Stolcke, Montserrat Ventura e Alex Coello.

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    primeiro desvio no percurso da investigao. Nos oito meses de trabalho de campo

    desenvolvido na Europa encontrei muita dificuldade para entrar nas redes de

    sociabilidade que se conformam num bairro em funo da priso. Na tentativa de

    contornar os obstculos que se interpunham, procurei acionar o que entendia como

    mediadores estratgicos entre o mundo pblico e prisional principalmente acadmicos

    especialistas e profissionais do sistema penitencirio imaginando que por meio deles

    poderia encontrar as pistas necessrias para alcanar a projetada unidade de anlise, um

    bairro com altos e crescentes ndices de encarceramento. A ttica de explorao de

    campo se mostrou proveitosa em quatro meses iniciava trabalho de campo em Sant

    Ildefons, bairro popular de uma cidade satlite de Barcelona. Porm, o tempo dedicado

    a contornar os obstculos foi muito maior do que se imaginava. Mesmo no bairro, e jem contato direto com egressos e familiares de presos, todo um tempo, uma caminhada,

    um contornamento foi necessrio para se ganhar a confiana dos interlocutores e chegar

    a abordar os problemas que estavam no foco da pesquisa, de tal modo que quando o

    campo estava relativamente bem preparado, j era tempo de voltar ao Brasil.

    Em So Paulo, dificuldades anlogas se impuseram no percurso. Mesmo num contexto

    social mais bem conhecido, os 14 meses de pesquisa de campo tambm se mostraram

    insuficientes para a imaginada insero num bairro com elevados ndices de

    encarceramento. Desse modo, tambm em So Paulo, a maior parte do percurso de

    campo foi dedicada ao contornamento dos obstculos que se interpunham a uma

    aproximao mais efetiva dos agentes, prticas e discursos que se estruturam ao redor

    da priso num bairro.

    A concluso inescapvel que se segue desses tortuosos percursos que uma

    investigao sobre a priso tarefa das mais delicadas e complexas, que nem umdesenho de pesquisa razoavelmente preciso, e nem as precaues metodolgicas

    consideradas mais estratgicas, so inteiramente suficientes quando se deixa o

    planejamento e se parte para a caminhada. Em suma, possvel concluir que a pesquisa

    sobre a priso, principalmente se voltada para a sua presena exterior, suas

    implicaes societrias externas, envolve uma srie de questes e dificuldades que so,

    elas mesmas, dignas de um detida problematizao sociolgica.

    De qualquer maneira, ainda que no se tenha alcanado o ponto imaginado, o percurso,por si s, impe questes para a reflexo. Na tentativa constante de chegar ao bairro,

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    todo um campo de agentes, prticas e discursos que se estruturam, em ambiente aberto,

    ao redor e atravs da priso, pde ser explorado e mais bem conhecido, tanto em

    Barcelona, quanto em So Paulo. Para abord-lo, restava ajustar o foco da investigao

    ou, seguindo na metfora do viajante, recuperar os desvios e contornos percorridos,

    pontuando-os num novo mapa, com outros marcos referenciais e outros pontos cardeais.

    Em primeiro lugar, deve-se admitir que parte significativa da pesquisa no se deu junto

    aos vasos comunicantes que ligam a priso a um determinado territrio perifrico

    urbano, mas sim junto a mediadores que, pela natureza de suas atividades, ligam a

    priso a diversas outras dimenses do mundo social. Trata-se de operadores do direito,

    profissionais da sade, educao, e segurana penitenciria, de militantes de direitos

    humanos, assistentes sociais, voluntrios de organizaes no-governamentais,

    estudantes e pesquisadores de universidades e centros de pesquisa. Estes, mesclados a

    egressos, familiares e amigos de presos se articulam num campo poltico que se

    estrutura em torno das prises, e que ultrapassa suas delimitaes jurdico-institucionais.

    Em outras palavras, esse conjunto de agentes estrutura ao redor da priso um campo de

    contnua problematizao, no qual mltiplas prticas, discursos, saberes, crticas,

    resistncias, invenes polticas circulam, defrontam-se, entram em disputa

    conformando o que Foucault (1980, 1987) chamaria de dispositivo carcerrio. Portanto,

    em segundo lugar, deve-se admitir que o foco da pesquisa transitou dos efeitos

    societrios territorializados do aumento do encarceramento para uma abordagem

    analtico-descritiva de algumas peas, mecanismos, funes e disfunes do dispositivo

    carcerrio contemporneo. Faz-se necessrio, desde j, delimitar minimamente o que se

    entende por esse dispositivo.

    Foucault trabalha a noo de dispositivo em diferentes ocasies sem, no entanto,engess-la num conceito de postulado definitivo. Em Vigiar e Punir (1996), debrua-

    se sobre o dispositivo disciplinar; em Segurana, Territrio e Populao (2006),

    sobre o dispositivo de segurana; e em Histria da Sexualidade I (1987), sobre o

    dispositivo da sexualidade. Numa entrevista acerca dessa ltima obra publicada em

    Microfsica do Poder (1980) possvel encontrar uma de suas mais claras

    formulaes sobre essa noo estratgica que atravessa boa parte de sua produo:

    Atravs deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjuntodecididamente heterogneo que engloba discursos, instituies,

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    organizaes arquitetnicas, decises regulamentares, leis, medidas

    administrativas, enunciados cientficos, proposies filosficas, morais,

    filantrpicas.Em suma, o dito e o no dito so os elementos do dispositivo.

    O dispositivo a rede que se pode estabelecer entre estes elementos . Em

    segundo lugar, gostaria de demarcar a natureza da relao que pode existir

    entre estes elementos heterogneos. Sendo assim, tal discurso pode

    aparecer como programa de uma instituio ou, ao contrrio, como

    elemento que permite justificar e mascarar uma prtica que permanece

    muda; pode ainda funcionar como reinterpretao desta prtica, dando-lhe

    acesso a um novo campo de racionalidade. Em suma, entre estes elementos,

    discursivos ou no, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanas de posio,modificaes de funes, que tambm podem ser muito diferentes. Em

    terceiro lugar, entendo dispositivo como um tipo de formao que, em um

    determinado momento histrico, teve como funo principal responder a

    uma urgncia. O dispositivo tem, portanto, uma funo estratgicadominante. Este foi o caso, por exemplo, da absoro de uma massa de

    populao flutuante que uma economia de tipo essencialmente

    mercantilista achava incmoda: existe ai um imperativo estratgicofuncionando como matriz de um dispositivo, que pouco a pouco tornou-se o

    dispositivo de controle-dominao da loucura, da doena mental, da

    neurose. (FOUCAULT, 1980, pp.137-138 grifo meu)

    Na seqncia da entrevista, Foucault segue explorando os processos caractersticos de

    um dispositivo, e para tanto recorre ao exemplo do dispositivo carcerrio:

    Um primeiro momento o da predominncia de um objetivo estratgico.Em seguida, o dispositivo se constitui como tal e continua sendo dispositivo

    na medida em que engloba um duplo processo: por um lado, processo de

    sobredeterminao funcional, pois cada efeito, positivo ou negativo,

    desejado ou no, estabelece uma relao de ressonncia ou de contradio

    com os outros, e exige uma rearticulao, um reajustamento dos elementos

    heterogneos que surgem dispersamente; por outro lado, processo de

    perptuo preenchimento estratgico. Tomemos o exemplo do

    aprisionamento, dispositivo que fez com que em determinado momento as

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    medidas de deteno tivessem aparecido como o instrumento mais eficaz,

    mais racional que se podia aplicar ao fenmeno da criminalidade. O que

    isto produziu? Um efeito que no estava de modo algum previsto de

    antemo, que nada tinha a ver com uma astcia estratgica produzida por

    uma figura meta ou trans-histrica que o teria percebido e desejado. Este

    efeito foi a constituio de um meio delinqente, muito diferente daquela

    espcie de viveiro de prticas e indivduos ilegalistas que se podia

    encontrar na sociedade setecentista. O que aconteceu? A priso funcionou

    como filtro, concentrao, profissionalizao, isolamento de um meio

    delinqente. A partir mais ou menos de 1830, assiste-se a uma reutilizao

    imediata deste efeito involuntrio e negativo em uma nova estratgia, quede certa forma ocupou o espao vazio ou transformou o negativo em

    positivo: o meio delinqente passou a ser reutilizado com finalidades

    polticas e econmicas diversas (como a extrao de um lucro do prazer,

    com a organizao da prostituio). isto que chamo de preenchimento

    estratgico do dispositivo. (Idem, 1980, p.138)

    O dispositivo como um conjunto complexo, diferenciado, movedio, em aberto,

    desprovido de coerncia interna, mas conformado por uma estratgia dominante, por

    uma urgncia histrica imperiosa, e por tantas outras urgncias e estratgias que vo se

    impondo, se justapondo, e se contrapondo.

    Portanto, em terceiro lugar, preciso deixar claro que no se quer pretender, a partir do

    percurso realizado nessa pesquisa, produzir uma analtica exaustiva um mapa

    completo do dispositivo carcerrio contemporneo. Trata-se, to somente, de

    apresentar uma cartografia parcial, um mapa de percursos possveis, trilhas abertas quepassam pelo dispositivo carcerrio, mas que tambm se conectam a outros campos de

    problematizao, porque guiadas pelos contornamentos da busca de um bairro, pelas

    trilhas abertas pelos interlocutores que foram sendo encontrados nesse percurso, e por

    uma mirade de descobertas inerentes prtica de explorar um terreno desconhecido.

    Finalmente, resta pontuar que, segundo o material coletado e esse outro jogo de

    referncias, a proposta comparativa perde sentido. Os percursos em Barcelona e So

    Paulo, que para serem comparveis eram para ser bem territorializados e paralelos,cruzaram-se num obstculo comum, e desdobraram-se em outras questes e territrios.

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    De tal modo, desde a perspectiva dos traados que atravessam o dispositivo carcerrio,

    as diferentes dinmicas da criminalidade imaginadas como uma espcie de desvio

    comprometedor na formulao original da pesquisa , bem como as muito variveis

    estruturaes societrias prospectadas que emanam da priso em territorialidades

    difusas, acabam por ser reinscritas nessa cartografia como marcos sinalizadores

    adicionais, como dados do campo de possibilidades que o dispositivo encerra (ou abre).

    Isto , a pesquisa na Catalunha, ao invs de ajudar a isolar os efeitos societrios do

    encarceramento em massa, acaba por ampliar o repertrio de possibilidades de

    estratgias, agentes, discursos, prticas, conflitos e tambm de resistncias que so

    conformveis no dispositivo.

    Eis os principais marcos do percurso geral que o presente trabalho procura expressar, e

    que devero ser mais bem situados e qualificados no decorrer das prximas pginas. De

    todo modo, uma ltima marcao precisa ainda aqui ser feita: a despeito de tantos

    desvios, contornos e reavaliaes de percurso, no horizonte figura o mesmo ponto

    cardeal: a indagao acerca dos processos de estruturao de um campo de agentes,

    prticas e discursos ao redor e atravs da priso, para muito alm de seus limites fsicos

    ou institucionais.

    Agora, resta indicar esquematicamente como essas questes se distribuem no trabalho.

    No primeiro captulo Hiptese produtiva apresento o que chamei de ponto cardeal

    da pesquisa, a perspectiva terica e analtica adotada, suas causas e circunstncias. No

    segundo captulo Massificao do encarceramento , depois de sistematizar alguns

    trabalhos e problemas que pautam a discusso sobre o aumento do encarceramento,

    realizo uma primeira aproximao aos contextos punitivos estudados. O terceiro

    captulo Vasos comunicantes visa situar a escala do problema do transbordamentoda priso; explorar alguns dos vasos comunicantes e das estruturaes societrias que

    promovem; e apontar os sentidos da passagem de foco do trabalho de campo dos vasos

    comunicantes para os mediadores. No quarto captulo Percursos de campo

    procuro explicitar o trabalho de campo realizado em Barcelona e em So Paulo, para

    esclarecer ao mximo as circunstncias empricas que levaram ao deslocamento no eixo

    da pesquisa. O quinto captulo Uma abordagem (im)possvel o da realizao da

    passagem, onde se problematizam as dificuldades experimentadas e a sada encontrada.

    No sexto e stimo captulos Uma cartografia do dispositivo carcerrio catalo e

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    Uma cartografia do dispositivo carcerrio paulista exploro as configuraes e

    alteraes recentes no dispositivo carcerrio operante em cada contexto estudado. No

    captulo final, mais do que uma concluso, um balano do percurso realizado, uma

    sistematizao dos avanos efetuados e de possveis direes a seguir.

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    1 Hiptese produtiva

    Nina5 mora com Ktia e Marcelinho. Nina me de Ronaldo, Ktia mulher dele e

    Marcelinho filho. Ronaldo est preso h mais de dez anos. As duas se conheceram

    dentro da priso, num dia de visita. Ktia, muito jovem e ainda grvida, desesperava-se

    por no ter condies de criar o filho que viria. Ronaldo igualmente, por mais que

    trabalhasse na penitenciria, sabia que o dinheiro que recebia seria insuficiente para

    garantir o sustento do primeiro filho. Nina, viva e aposentada, assumiu a

    responsabilidade de colaborar na criao do neto enquanto o filho estivesse preso,

    chamou a nora para morar com ela. Juntas, durante a semana, as duas fazem o jumbo

    que uma delas levar para Ronaldo no dia de visita. No jumbo e tambm no prato de

    Marcelinho, arroz, feijo, macarro que so doados por vizinhos solidrios e

    conhecedores das dificuldades daquela famlia.

    Aisa, como Marcelinho, foi concebida numa visita ntima, no interior de um presdio.

    At os quinze anos de idade, cresceu tendo o pai dentro de uma priso muito distante.Comemorou aniversrios, brincou, fez amizades dentro de uma unidade prisional desde

    sempre. Cedo se acostumou a viajar para visitar o pai, a no falar sobre sua condio de

    encarcerado, a ocultar como pudesse, meias, cuecas, escovas de dente para presentear o

    pai dentro da priso. Por mais que o pai estivesse preso e distante, a relao familiar era

    forte e, na medida do possvel, saudvel; ele sabia de tudo que se passava com ela,

    trocavam cartas e lembranas, viam-se freqentemente, conversavam francamente,

    amavam-se. Enquanto seu pai esteve preso, ela sonhava com uma vida normal que viria

    com a sua libertao. Quando ele foi solto, o sonho no se concretizou, de modo que

    aquela famlia carinhosa e unida a despeito da priso, ruiu quando a priso deixou de

    agir sobre ela. Na rua, ele envolveu-se em ilegalismos diversos, ficou violento com a

    mulher, ausente com a filha, sumiu, arrumou outra mulher, outros filhos, outra famlia,

    que passou a visit-lo quando ele voltou a ser preso.

    Eis alguns fragmentos de histrias de vida que mostram famlias se estruturando a

    despeito da priso de um de seus componentes, ou mesmo a partir da priso de um de5 Todos os nomes so fictcios.

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    seus componentes. Famlias estruturadas ao redor da priso, em cuja estruturao

    concorrem diversas geraes e tambm amigos e vizinhos, que vo, como podem,

    preenchendo as lacunas deixadas pela priso do chefe-provedor. Nesses ambientes

    familiares, a ausncia do chefe-provedor tambm a presena da priso. A priso

    presente e circulando o tempo todo, em lembranas doloridas (ou no), em conversas

    triviais, em contas (de dvidas, de dias), em sonhos feitos e refeitos a cada momento.

    Foi no ambiente familiar que primeiro identifiquei indcios de estruturao de um

    campo social, promovido e produzido por uma instituio prisional que se faz cada vez

    mais presente. E foi a partir da que me deparei com o problema do extravasamento da

    priso, da priso agindo fora dela, e isso de uma maneira imprevista, porque produtiva.

    1.1 - (D)efeitos

    To logo procurei referncias e estudos que me ajudassem a compreender trajetrias e

    famlias como essas, deparei-me com formulaes que podem ser exemplarmente

    sintetizadas na seguinte frase:

    cuando se encarcela a alguien, se produce un proceso de

    desestructuracin familiar () hundimiento y destruccin de la familia,

    ruptura de las relaciones del hogar, ruptura de las relaciones con los

    componentes de la familia, o con alguno/a de ellos/as, problemas psquicos

    graves, especialmente para la madre, o problemas de salud graves para

    otros miembros de la familia. A todas estas consecuencias se tiene que

    aadir, adems, el rechazo social. (OSPDH, 2006, pp.137-138)

    Desestruturao, ruptura e estigma tm sido as noes fundamentais para a reflexo

    sobre a ao da priso num ambiente familiar ou comunitrio. Goffman (1988) lanou

    as bases para esse campo de problematizao em Estigma: notas sobre a

    manipulao da identidade deteriorada, originalmente publicado em 1963 , ao

    discutir o efeito contaminador do estigma de uma pessoa sobre outra que lhe prxima.Os efeitos deletrios da ruptura de laos familiares e da estigmatizao de familiares de

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    presos discutido e desdobrado, por exemplo, no trabalho de Pueschel e Moglia (1977),

    The effects of the penal environment on familial relationships. No Brasil, ainda que

    escassa a teorizao sobre essa questo, possvel identificar trabalhos que

    desenvolvem essa mesma perspectiva sobre o tema, como o de Miyashiro (2006),

    Filhos de presidirios: um estudo sobre estigma.

    J no contexto estadunidense, Comfort (2003, 2007) formula a hiptese de

    prisionizao secundria, como um dos processos que afetam principalmente as mes,

    esposas e namoradas de presos que continuamente passam pela experincia de visitao

    em uma unidade prisional. A autora analisa a dinmica social da visitao num presdio

    de segurana mxima da Califrnia, destacando as alteraes comportamentais e

    simblicas que esse processo especfico de socializao introduz na vida dessas

    mulheres.

    Travis e Waul (2003) organizaram uma publicao dedicada ao tema dos efeitos do

    encarceramento em diferentes nveis, intitulada Prisoners Once Removed: the impact

    of incarceration and reentry on children, families and communities. O livro

    composto por trs partes: na primeira so discutidos os impactos do encarceramento

    sobre o indivduo que passa pela priso; na segunda, os impactos sobre seus filhos esuas famlias; e na terceira, os impactos sobre as comunidades locais de onde saem e

    para onde voltam. Em todas as partes, segundo os editores, existe uma preocupao em

    avaliar como os servios sociais, sanitrios, educacionais e correcionais podem se

    integrar de uma maneira mais efetiva para melhor atender as necessidades de

    indivduos, famlias e comunidades desestruturados pelo encarceramento.

    Com uma abordagem menos programtica, Mauer e Chesney-Lind (2002) organizaram

    o livro Invisible Punishment: the collateral consequences of mass imprisonment, no

    qual, entre tantas questes sobre os efeitos do incremento do encarceramento, aparecem

    trabalhos que repem a questo da desestruturao que o crcere promove na

    organizao familiar e comunitria. Braman (in MAUER e CHESNEY-LIND, 2002,

    pp.117-135), ao concluir o seu artigo intitulado Families and Incarceration, resume a

    tnica mais ou menos compartilhada por esses estudos que se voltam para a questo das

    conseqncias mais amplas do encarceramento e de sua intensificao:

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    The overuse of incarceration harms the families of prisoners as much as, if

    not more than, the prisoners themselves. It does so not only through direct

    costs that families bear, butby restructuring families and by distorting and

    diminishing the relationships between family and friends. In these sense,

    the incarceration of an offender is not simply the sanctioning of an

    individual, but part of a broader corrosion of social bonds bonds that

    sustain people, particularly people in difficult circumstances. And as these

    bonds are strained, the resources available to members of the family, both

    material and emotional, are also diminished. As a result, not only individual

    families suffer from the overuse of incarceration, but the extended networks

    of kinship and friendship that make up a community suffer as well.(BRAMAN in MAUER e CHESNEY-LIND, 2002, p. 135 grifos meus)

    A hiptese geral que subjaz nessa ordem de anlises dos efeitos do encarceramento a

    de que a priso tem a desestruturao como efeito primordial: desestruturao

    individual, familiar e comunitria.

    De toda forma, essa ordem de problematizaes contrastava com o que mais vinha me

    chamando ateno nas trajetrias e famlias que pesquisava. As famlias de Marcelinhoe Aisa seguramente enfrentavam diversos problemas, debilidades financeiras, afetivas,

    preconceito. Porm, no eram famlias propriamente destrudas, eram famlias

    singulares, diferentes, distantes de um padro imaginado de famlia ideal, mas no

    destrudas. Rechao social seguramente existia, mas existiam tambm pessoas solidrias

    que colaboravam no sustento da famlia. As relaes entre me e filho, pai e filho(a),

    marido e mulher no eram relaes contnuas, dirias, mas no se pode dizer que fossem

    relaes rompidas.

    Essa bibliografia parecia-me por demais taxativa: a priso impe defeitos num ambiente

    familiar; enquanto os relatos como os de Nina e Aisa, levavam-me a crer que a priso

    impe efeitos, que podem ser dolorosos, desagradveis, mas que no so absolutamente

    destruidores, podendo ser tambm reestruturantes, produtivos, e num sentido muito

    preciso. O vnculo entre Nina e Katia foi produzido na priso, o cotidiano delas de

    manufatura de jumbo e visita semanal produzido pelo encarceramento de Ronaldo;

    as prprias existncias de Marcelinho e Aisa, no limite, foram tambm produzidas napriso; como tambm o vnculo afetivo entre Aisa e seu pai foi produzido e mantido s

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    enquanto ele esteve preso. So diversas as produes que a ao da priso impe num

    crculo familiar, para descrev-la meramente como destruio, corroso, etc.

    Suspendendo, ainda que provisoriamente, a hiptese da desestruturao familiar comoefeito primordial da priso, esta passa a aparecer como um componente mais da

    socializao de famlias como as de Marcelinho e de Aisa. E nessa ao socializadora

    do crcere para alm de seus limites que procurava focar a investigao. De toda forma,

    se aquela perspectiva parecia prevalecer, cabia-me aprofundar o estudo sobre o processo

    de socializao que o crcere promove, identificando e compreendendo as matrizes

    analticas que faziam ver a destruio onde estava vendo produo.

    1.2 - Prisionizaes

    A especificidade da socializao prisional constitui um tema caro teoria social, tanto

    que se lhe atribuiu um nome prprio: prisionizao. O termo prisionizao aparece pela

    primeira vez na obra de Clemmer (1958), The Prison Community, publicada

    originalmente em 1940. Nesse trabalho, o autor sintetiza aspectos estruturantes da

    cultura prisional e atenta para os meios pelos quais essa cultura conforma atitudes nos

    indivduos que passam pela priso. A idia de prisionizao desenvolvida com

    referncia noo de assimilao. A assimilao uma variante da socializao na

    medida em que supe que um indivduo previamente socializado num determinado

    contexto pode ser assimilado a outro, se passa por um segundo processo socializante:

    () the term assimilation describes a slow, gradual, more or less

    unconscious process during which a person learns enough of the culture of

    a social unit into which he is placed to make him characteristic of it

    (CLEMMER, 1958, pp.298-299).

    Segundo Clemmer, da mesma forma que o processo de assimilao de imigrantes nos

    Estados Unidos poderia ser chamado de americanizao, a assimilao de indivduos

    no ambiente prisional poderia ser nomeada de prisionizao. O processo deprisionizao experimentado, em alguma medida, por todo homem que passa por uma

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    penitenciria, implicando numa reinterpretao geral da vida. Atravs dele, novos

    significados so atribudos a noes fundamentais que organizam a experincia humana,

    como o abrigo, o vesturio, a alimentao, o trabalho, etc.; elementos fundamentais da

    vida, que na priso invariavelmente passam a ser administrados por outrem.

    O autor ainda apresenta fatores universais que caracterizam o processo de prisionizao,

    como um catlogo dos principais efeitos do encarceramento sobre o indivduo preso: 1

    aceitao de uma posio social inferior; 2 progressiva acumulao na memria de

    fatos concernentes organizao prisional; 3 desenvolvimento de novos hbitos de

    alimentao, vesturio, trabalho e sono; 4 adoo da linguagem local; 5 o

    reconhecimento de que necessidades fundamentais no podem ser satisfeitas no devido

    ambiente; e 6 o desejo de conseguir um bom trabalho no interior do presdio. Na

    medida em que se verificam esses fatores gerais nas atitudes de um preso, possvel

    identific-lo como um membro da comunidade prisional, que foi socializado na

    cultura da priso.

    Clemmer sustenta que existem graus de prisionizao, e mltiplos fatores que

    determinam a velocidade e o alcance do processo para cada indivduo como a durao

    da pena, os atributos de personalidade, o grau de contato com elementos do ambienteexterno priso, e a integrao ou no a grupos de poder no interior da unidade.

    Interessava-lhe especialmente os casos de prisionizao nos seus graus mais altos, pois,

    segundo ele, nesse estgio que se aprofundam as atitudes anti-sociais e se desenvolve

    uma ideologia criminal no indivduo.

    Sykes (1958) outro autor que discute a especificidade do processo de socializao no

    interior da comunidade prisional. Em Society of Captives: a study of a maximum

    security prison, o autor analisa as dinmicas formal e informal de interao dos presos

    entre si, e destes com o conjunto de funcionrios, num estudo que se aproxima da

    anlise da cultura prisional proposta por Clemmer. Mas, por sua vez, para qualificar o

    processo de socializao dos internos, Sykes privilegia outros elementos e processos

    estruturais. Segundo esse autor, a cultura da priso pode ser mais bem descrita pela

    enumerao e anlise das privaes que a vida prisional implica. Descrevendo o que

    chama de dores do encarceramento que do ensejo elaborao de prticas e

    significados sociais que so prprios ao ambiente Sykes apresenta os traoscaractersticos da cultura prisional e do processo de prisionizao. Segundo esse autor,

    26

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    as privaes de liberdade, de bens e servios, de relacionamentos heterossexuais, de

    autonomia e de segurana constituiriam as bases estruturais do desenvolvimento de uma

    cultura e identidade especficas priso.

    Outro estudo que se dedica a analisar a conformao do sujeito a partir das privaes

    que lhe so impostas Manicmios, Prises e Conventos, de Goffman (1974),

    publicado pela primeira vez em 1961. Ainda que esse autor no se proponha a analisar

    especificamente o processo de socializao na priso, esse estudo estabelece

    importantes marcos tericos e analticos que foram posteriormente mobilizados em

    estudos sobre a prisionizao. Goffman prope uma anlise da socializao em

    instituies totais, que, segundo ele, se caracterizam como um local de residncia e

    trabalho onde um grande nmero de indivduos com situao semelhante, separados da

    sociedade mais ampla por considervel perodo de tempo, levam uma vida fechada e

    formalmente administrada. (GOFFMAN, 1974, p.11) As instituies totais podem

    compreender desde o monastrio religioso, o hospital psiquitrico at a priso, j que

    em todos eles:

    Em primeiro lugar, todos os aspectos da vida so realizados no mesmo

    local e sob uma nica autoridade. Em segundo lugar, cada fase daatividade diria realizada na companhia imediata de um grupo

    relativamente grande de outras pessoas, todas elas tratadas da mesma

    forma e obrigadas a fazer as mesmas coisas em conjunto. Em terceiro

    lugar, todas as atividades dirias so rigorosamente estabelecidas em

    horrios, pois uma atividade leva, em tempo predeterminado, seguinte, e

    toda a seqncia de atividades imposta de cima, por um sistema de regras

    formais explcitas e um grupo de funcionrios. Finalmente, as vriasatividades obrigatrias so reunidas num plano racional nico,

    supostamente planejado para atender aos objetivos oficiais da instituio.

    (GOFFMAN, 1974, p.17-18)

    Segundo Goffman, o ingresso numa instituio total impe uma srie de desvios na

    carreira moral do indivduo, que so experimentados como degradantes, e constituem

    mortificaes do eu. Por carreira moral, o autor faz referncia ao processo geral de

    socializao, que se desenvolve na constante interao do indivduo no interior de

    27

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    diferentes grupos sociais.6 J as mortificaes do eu podem ser entendidas como

    mutilaes que so impostas numa identidade previamente constituda. Para o autor, a

    primeira mutilao do eu que uma instituio total impe a prpria barreira que separa

    o interno do meio externo, impossibilitando que o individuo se mantenha atualizado

    sobre o que acontece na sociedade em geral, operando uma espcie de desculturao e

    destreinamento para a vida em liberdade. A segunda mutilao a perda do nome, e

    sua substituio por um nmero e/ou apelido, geralmente percebidos como humilhantes.

    A perda absoluta de espaos e momentos de intimidade, a submisso a procedimentos

    humilhantes, a perda de controle sobre as atividades so outras das mutilaes

    destacadas por Goffman.

    A essas mutilaes, no eu mortificado, sobrepem-se uma srie de ajustes secundrios

    que visam a adaptao do sujeito vida na instituio, de forma que se possa conservar

    um mnimo de domnio sobre o meio. Sistemas informais de comunicao, estratgias

    para obteno de satisfaes proibidas, ou mobilizao de meios proibidos para a

    obteno de satisfaes permitidas so alguns elementos que caracterizam esse sistema

    de ajustes. Diferentemente de Clemmer, que diferencia o processo de prisionizao em

    termos de grau quantitativo e ritmo, Goffman identifica diferentes possibilidades de

    desenvolvimento de ajustes secundrios, conformando diferentes sujeitos adaptados ao

    ambiente institucional. A adaptao pode rumar ou para uma converso absoluta do

    sujeito, que passa a se identificar com os objetivos institucionais; ou para uma

    acomodao passiva e utilitria, que visa o aproveitamento mximo dos benefcios

    possveis no ambiente interno; ou para uma recusa intransigente de tudo o que a

    instituio obriga e oferece; ou para uma alienao profunda, que torna o individuo

    indiferente a quase tudo que no lhe toque o corpo.

    Clemmer, Sykes e Goffman demarcam o campo de problematizao do processo de

    socializao no interior do ambiente prisional, e baseando-se neles ou se opondo a eles

    que toda uma bibliografia sobre a prisionizao se desenvolveu. Para citar alguns

    exemplos possvel mencionar os trabalhos de Wheeler (1961), Socialization in

    correctional communities; de Edwards (1970), Inmate adaptations and socialization

    in the prison; e de Kaminski (2003), Games Prisoners Play: allocation of social roles

    in a total institution. No Brasil, Thompson (2002) em A Questo Penitenciria,

    6 Para uma discusso mais detida sobre carreira moral, ver: GOFFMAN (1988).

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    originalmente publicado em 1976 e Ramalho (2002) com O Mundo do Crime: a

    ordem pelo avesso, publicado pela primeira vez em 1979 so pioneiros nesse debate

    acerca da socializao prisional.

    J em Manicmios, Prises e Conventos, Goffman expandia o campo de

    problematizao sobre a socializao em instituies totais para o corpo de funcionrios

    da instituio, discutindo as especificidades desse tipo de trabalho sobre seres

    humanos.7 O psiclogo Zimbardo (1973, 2004), a partir do experimento que conduziu

    em 1971 na Universidade de Stanford8, aprofunda-se na reflexo sobre a ao do meio

    na constituio dos sujeitos, dando especial ateno para as transformaes na

    personalidade de indivduos que ocupam posies de poder num ambiente prisional.9

    Ainda sobre a socializao dos profissionais do encarceramento podem ser citados os

    trabalhos de Duffee (1974), The correctional officer subculture and organizational

    change; de Jacobs e Retsky (1975), Prison Guard; e de Ellis (1979), The prison

    guard as a carceral Luddite: a critical review of the MacGuigan Report on the

    penitentiary system in Canada.

    A prisionizao de funcionrios de priso, portanto, tambm constitui uma linhagem

    dessa ampla bibliografia sobre a socializao prisional. No Brasil, Thompson jindicava a importncia de a reflexo sobre as instituies penitencirias abarcar esse

    aspecto especfico. A psicloga Lopes (1998) abordou o tema em sua pesquisa de

    mestrado; e Chies et. al. (2005), retomando sugestes de Thompson, desenvolveram

    uma pesquisa especfica sobre a prisionizao de funcionrios num presdio de Pelotas,

    Rio Grande do Sul.

    A passagem para anlises da socializao prisional de familiares de presos

    prisionizao secundria, nos termos de Comfort uma derivao, uma continuidade,

    uma ampliao de toda essa discusso acima apontada. O privilegiar na anlise os

    aspectos desestruturantes da ao institucional sobre as famlias de presos deriva da

    maneira de se conceber a ao da priso sobre os prprios presos. Dores do

    encarceramento ou mortificaes do eu conformam um substrato de desestruturao

    7 Ver: GOFFMAN (1974), pp.69-83.8 Experimento de simulao de uma priso, com voluntrios desempenhando os papis de presos e

    vigilantes.9 Os resultados do experimento esto disponveis na internet, ver: http://www.prisonexp.org/ (Consultafeita em maio de 2010).

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    http://www.prisonexp.org/http://www.prisonexp.org/
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    de uma carreira moral do processo de constituio de uma individualidade qual,

    s posteriormente se acresceriam ajustes secundrios, esboos e tentativas de

    reestruturao identitria. Mas esboos que so sempre insuficientes para reparar uma

    identidade que fundamentalmente desfigurada pela priso. Assim se concebe a

    socializao pela priso, seja de internos, seja de funcionrios de priso, seja de

    familiares de presos.

    Sem desconsiderar a importncia desse campo de problematizao, preciso ponderar

    que existem outras formas de se pensar a priso, que poderiam oferecer outras matrizes

    de interpretao para a ao da instituio prisional para alm de seus limites fsicos.

    1.3 - A hiptese produtiva

    To relevante quanto essa literatura sobre os diversos efeitos desestruturantes da priso

    um campo de problematizao que procura indagar priso sobre sua especificidade

    frente a outras formas de punio, sobre suas funcionalidades estratgicas, suas causas

    obtusas e fundamentais. Uma tradio que se alinha anterior ao verificar que a priso

    no exatamente o instituto de regenerao que apregoa ser, mas que se afasta

    daquela ao empreender outros percursos analticos a partir dessa constatao. Nesse

    outro plano de referncias, questes sobre o que a priso desestrutura, como a priso

    reprime ou distorce individualidades e grupos sociais so deslocadas, cedendo lugar a

    indagaes sobre o que produz a punio em forma de priso, como a punio em forma

    de priso funciona e como ela conforma individualidades e grupos sociais. Opera-seassim uma passagem de foco dos efeitos desestruturantes da priso para os processos

    estruturantes da punio (em forma de priso e/ou no). De um lado, o trabalho de

    Rusche e Kirchheimer (1984), de outro, o de Foucault (1996) constituem os alicerces

    desse segundo campo.

    Rusche e Kirchheimer em Punio e Estrutura Social, originalmente publicado em

    1939 sustentam que para analisar sociologicamente um sistema punitivo necessrio,

    em primeiro lugar, suspender o nexo explicativo entre delito e pena, de modo que a

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    forma da punio numa determinada poca possa ser analisada com referncia s

    relaes positivas que mantm com as estruturas sociais e econmicas nas quais se

    insere. Ou seja, ao invs de indagar sobre o que a priso busca reprimir sobre sua

    relao negativa com o delito questionar sobre o que a priso busca operar sua

    relao positiva com o sistema produtivo.

    A forma especfica da punio num determinado perodo histrico, segundo esses

    autores, no seria uma funo da criminalidade, de suas formas e intensidades, mas

    antes, uma funo do grau de desenvolvimento do sistema produtivo, das condies de

    oferta e demanda de fora de trabalho, e das condies de vida das classes mais pobres

    de uma populao. De acordo com eles, o desenvolvimento econmico de uma

    sociedade e as oscilaes entre oferta e demanda de mo de obra determinam variaes

    no valor atribudo prpria vida humana, condicionando as escolhas por mtodos

    punitivos mais ou menos severos. Em Punio e Estrutura Social, a anlise da

    variao das formas de punio abarca o processo de desenvolvimento econmico e

    social desde a Baixa Idade Mdia at as tendncias observveis nos regimes totalitrios

    nazi-fascistas do sculo XX. Para explicitar as linhas gerais do argumento dos autores

    de uma maneira esquemtica, basta indicar que o estudo demarca trs grandes perodos

    no desenvolvimento da punio. Um primeiro perodo caracterizado por um regime de

    produo feudal, no qual se verifica um excedente de mo de obra e uma conseqente

    baixa valorizao da vida humana. Nesse perodo, aqueles criminosos que no tinham

    propriedades eram punidos de um modo extremamente cruel, com variados tipos de

    penas corporais e freqentemente com a pena capital. O segundo perodo o

    mercantilista, da empresa colonial e dos primeiros desenvolvimentos da manufatura;

    quando havia uma aguda escassez de mo de obra, e, portanto, uma maior valorizao

    da vida humana. Nesse contexto histrico, as penas capitais e os castigos corporais

    entram em declnio, e os criminosos passam a ser punidos atravs de procedimentos

    mais produtivos, com trabalhos forados nas metrpoles, nas galeras e nas colnias. O

    terceiro perodo o do sistema produtivo capitalista industrial, no qual ainda que as

    oscilaes entre oferta e demanda de mo de obra sejam extremamente rpidas e

    dinmicas em linhas gerais, possvel verificar um excedente de mo de obra, e uma

    conseqente desvalorizao da vida humana. Desse modo, a punio se faz menos

    produtiva, e a priso passa a ser a pena por excelncia, funcionando segundo uma

    31

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    dinmica que estabelece que as condies de vida internas aos presdios devem sempre

    ser piores do que as piores condies de vida existentes do lado de fora das instituies

    penais.

    Rusche e Kirchheimer realizam uma extensa reflexo sobre os motivos pelos quais a

    desvalorizao da vida humana no perodo moderno no implicou um retorno

    substantivo s penas corporais e capitais. Para explicar esse aparente enigma, que

    contradiria os fundamentos do argumento, os autores analisam detalhadamente o

    desenvolvimento das casas de correo, as funes econmicas e sociais do trabalho

    penal, os percalos do processo de industrializao em diferentes pases, os avanos

    polticos e ideolgicos da burguesia, atentando, principalmente, para as repercusses

    tericas e prticas de todo um novo pensamento penalista que emergiu no perodo do

    Iluminismo. atravs desse minucioso trabalho analtico que os autores formulam a

    hiptese da priso dissuasiva, e identificam o princpio de less eligibility (de piores

    condies de vida dentro da priso do que as piores condies de vida fora) como

    organizador da pena de priso no sistema produtivo capitalista.

    A esse princpio fundamental se submetem os programas de reforma das prises,

    desenvolvidos em diferentes pases ocidentais nos ltimos sculos. Esses programas queapregoam um tratamento mais racional e humanizado do criminoso e que atravs da

    priso visam regenerar e reinserir o criminoso na sociedade nunca podem se realizar

    plenamente, uma vez que seus avanos e recuos dependem mais das condies

    exteriores do mercado de trabalho do que da capacidade administrativa dos gestores

    penitencirios. Por isso, contraditoriamente, o discurso ideolgico reformador quase

    sempre acompanhado de uma realidade de superpopulao carcerria, de pssimas

    condies de higiene e sade no interior dos presdios, de cio generalizado (ou detrabalhos meramente punitivos, sem funes econmicas relevantes), de altos ndices de

    mortalidade no interior dos presdios, etc.; atributos que evocam os tradicionais castigos

    corporais e capitais, e fazem do nvel de vida no interior da instituio penal sempre

    mais baixo do que o nvel mnimo fora da priso.

    Foucault em Vigiar e Punir, originalmente publicado em 1975 vai recuperar

    alguns dos preceitos estabelecidos por Rusche e Kirchheimer para desenvolver suas

    anlises, especialmente no que se refere s especificidades e positividades de uma formade punio:

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    Do grande livro de Rusche e Kirchheimer podemos guardar algumas

    referncias essenciais. Abandonar em primeiro lugar a iluso de que a

    penalidade antes de tudo (se no exclusivamente) uma maneira de

    reprimir os delitos e que nesse papel, de acordo com as formas sociais, os

    sistemas polticos ou as crenas, ela pode ser severa ou indulgente, voltar-

    se para a expiao ou procurar obter uma reparao, aplicar-se em

    perseguir o indivduo ou em atribuir responsabilidades coletivas. Analisar

    antes os "sistemas punitivos concretos", estud-los como fenmenos sociais

    que no podem ser explicados unicamente pela armadura jurdica da

    sociedade nem por suas opes ticas fundamentais; recoloc-los em seu

    campo de funcionamento onde a sano dos crimes no o nico elemento;mostrar que as medidas punitivas no so simplesmente mecanismos

    "negativos" que permitem reprimir, impedir, excluir, suprimir; mas que

    elas esto ligadas a toda uma srie de efeitos positivos e teis que elas tm

    por encargo sustentar(e nesse sentido, se os castigos legais so feitos para

    sancionar as infraes, pode-se dizer que a definio das infraes e sua

    represso so feitas em compensao para manter os mecanismos punitivos

    e suas funes). (FOUCAULT, 1996, pp.24-25 grifo meu)

    Porm, no que diz respeito a essas funes, Foucault se afasta da teoria materialista

    histrica de Rusche e Kirchheimer para os quais a funo primordial de qualquer

    sistema punitivo seria operar uma certa regulao de oferta e demanda de mo de obra.

    Para Foucault, diferentes sistemas punitivos expressam diferentes racionalidades,

    diferentes relaes de poder, respondem a problemas estratgicos distintos, constituem

    arranjos especficos de poder-saber, que so desprovidos de uma funo essencial que

    os unifique e totalize. Enquanto Rusche e Kirchheimer privilegiam as determinaes

    econmicas de um sistema punitivo, Foucault se debrua sobre a especificidade das

    relaes de poder e saber que o conformam.

    Vigiar e Punir comea pela contraposio de descries de um brutal ritual de

    suplcio e de um sbrio regulamento de uma casa de deteno para jovens. No contraste

    gritante entre as duas formas punitivas, o autor situa o seu problema de investigao.

    Compreender a passagem de uma forma punitiva a outra sim considerar as

    transformaes econmicas, mas tambm considerar a mudana de racionalidade, de

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    objeto, de prticas e das formas pelas quais o poder se exerce. Foucault sustenta que o

    suplcio era um ritual poltico de produo, demonstrao, afirmao do poder soberano,

    do poder do rei sobre a vida e a morte de seus sditos. J a priso e seu minucioso

    regulamento so expresses de um poder disciplinar, de uma racionalidade que interpela

    as disposies para o crime, mais do que o crime em si, de um poder que no se exerce

    num episdio pblico e ostensivo sobre um corpo em evidncia, mas sim discretamente,

    continuamente, indefinidamente, e sobre a quantidade de corpos que se considere

    necessria e possvel.

    Na passagem do suplcio priso, o que pode aparecer como suavizao, humanizao,

    racionalizao da pena, deve ser visto, segundo Foucault, como intensificao, extenso

    e maior produtividade da punio. Prender ao invs de esquartejar no punir menos ou

    mais humanamente, punir mais com menos recursos, punir mais eficazmente, punir

    economicamente. Para explicar essa eficcia econmica da priso Foucault recorre a

    deslocamentos que se davam no plano dos ilegalismos populares. Segundo o autor, no

    Antigo Regime perodo de preeminncia do poder soberano , existia uma ampla

    tolerncia entre os ilegalismos das elites e das classes populares. Os delitos que

    acionavam os mecanismos punitivos do suplcio eram aqueles que atentavam direta ou

    simbolicamente contra o corpo do rei, contra o poder soberano. Mas, com o avano da

    industrializao, a conseqente proliferao das mercadorias em circulao e em

    estoque, a ascenso dos estratos burgueses s esferas de poder, e o aumento

    pronunciado das populaes urbanas, os ilegalismos populares tendem aos crimes

    contra a propriedade, despertando maior ateno das novas classes dominantes. Desse

    modo, fez-se necessrio um tipo de sistema punitivo que deixasse menos lacunas s

    prticas ilegais, que fosse mais eficiente, mais extensivo e menos custoso em termos

    econmicos e polticos. A pena de priso, defendida pelos reformadores do sistema

    penal e propagada com mais humana frente aos suplcios, tambm atendia sub-

    repticiamente essas demandas de regularidade e eficincia econmica da punio.

    Poder-se-ia objetar que a priso foi sempre ineficaz nessa pretensa tarefa de se opor e

    prevenir a proliferao dos ilegalismos populares contra os interesses e os direitos de

    propriedade das novas elites, na medida em que ao invs de reprimir a delinqncia, a

    priso a produzia, a profissionalizava. Ao incluir essa possvel crtica no prprio

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    mecanismo de implantao da punio em forma de priso, Foucault sofistica seu

    argumento, indicando outros sentidos para a produtividade e a eficcia da priso.

    Foucault mostra como a implantao da priso, a crtica de sua ineficcia e odesenvolvimento de programas para sua reforma so processos sincrnicos e

    articulados. A formulao das mesmas crticas10 e dos mesmos princpios

    reformadores11 so peas que compem e fundamentam a implantao e extenso da

    pena de priso, porque a eficcia da priso no seria exatamente a de reprimir ou

    prevenir os ilegalismos populares, mas sim de geri-los diferencialmente. Ou seja, a

    priso no fracassa absolutamente ao produzir uma delinqncia organizada e

    profissionalizada, uma vez que essa mesma delinqncia pode ser utilizada, penetrada e

    mobilizada para operar outros ilegalismos, isolar uns, evidenciar outros. Nas palavras do

    autor:

    Mas talvez devamos inverter o problema e nos perguntar para que serve o

    fracasso da priso; qual a utilidade desses diversos fenmenos que a

    crtica, continuamente, denuncia: manuteno da delinqncia, induo em

    reincidncia, transformao do infrator ocasional em delinqncia. Talvez

    devamos procurar o que se esconde sob o aparente cinismo da instituiopenal que, depois de ter feito os condenados pagar sua pena, continua a

    segui-los atravs de toda uma srie de marcaes (...) e que persegue assim

    como delinqente aquele que quitou sua punio como infrator? No

    podemos ver a mais que uma contradio, uma conseqncia?Deveramos

    ento supor que a priso e de uma maneira geral, sem dvida, os castigos,

    no se destinam a suprimir as infraes; mas antes a distingui-las, a

    distribu-las, a utiliz-las; que visam, no tanto tornar dceis os que estoprontos a transgredir as leis, mas que tendem a organizar a transgresso

    das leis numa ttica geral das sujeies. A penalidade seria ento uma

    maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerncia, de dar

    terreno a alguns, de fazer presso sobre outros, de excluir uma parte, de

    10 A priso no reduz a criminalidade, provoca a reincidncia, fabrica delinqentes, permite a suaorganizao coletiva, etc.11 O objetivo da priso transformar os indivduos, os presos devem ser separados segundo suas

    especificidades, a durao da pena deve variar segundo os progressos do indivduo, o preso deve trabalhare se educar, os profissionais da priso devem ser especializados, e o egresso da priso deve ser assistido

    para no reincidir.

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    tornar til outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. Em

    resumo, a penalidade no reprimiria pura e simplesmente as ilegalidades;

    ela as diferenciaria, faria sua economia geral. E se podemos falar de

    uma justia no s porque a prpria lei ou a maneira de aplic-la servem

    aos interesses de uma classe, porque toda a gesto diferencial das

    ilegalidades por intermdio da penalidade faz parte desses mecanismos de

    dominao. Os castigos legais devem ser recolocados numa estratgia

    global das ilegalidades. O fracasso da priso pode sem dvida ser

    apreendido a partir da. (FOUCAULT, 1996, pp.226-227 grifo meu)

    Portanto, a conformao da delinqncia, a estruturao de um meio delinqente dentro

    da priso e que se estende para fora dela so elementos que permitem interpelar o

    encarceramento em sua positividade, em sua produtividade estratgica. Tal hiptese

    produtiva coextensiva ao domnio do ambiente familiar do preso, uma vez que a

    crtica produo da delinqncia tambm formulada nesses termos, como Foucault

    indica ao enumerar as crticas que sempre se faz para denunciar o fracasso da priso:

    Enfim a priso fabrica indiretamente delinqentes, ao fazer cair na

    misria a famlia do detento: A mesma ordem que manda para a priso ochefe de famlia reduz cada dia a me penria, os filhos ao abandono, a

    famlia inteira vagabundagem e mendicncia. Sob esse ponto de vista o

    crime ameaa prolongar-se. (FOUCAULT, 1996, p.223 citando

    CHARLES LUCAS,De la rforme des prisons, 1838, p. 64.)

    Foucault situa a priso numa estratgia geral de controle social, atravs da gesto

    diferencial dos ilegalismos que por sua vez se d via a produo de uma delinqncia

    domesticada, manipulvel, operacionalizvel, seja para viabilizar lucrativos mercados

    ilcitos (como a prostituio no sculo XIX), seja para policiar e minar associativismos

    populares (pela infiltrao de informantes e agitadores), seja para eclipsar, pelo

    escndalo que provocam, outros ilegalismos que so e devem ser tolerados. Assim tem-

    se uma outra matriz analtica para se pensar a priso e seus efeitos sobre indivduos,

    famlias e comunidades, que no se limita denncia da desestruturao que a priso

    impe, mas que parte dessa desestruturao, que a reinsere num campo poltico

    estratgico, que precisa ser mais bem entendido e problematizado. nesse horizonte dequestes que se pretendeu pautar o presente trabalho. De todo modo, entre a

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    implantao da priso nos sculos XVIII e XIX e sua atualidade muita coisa mudou, de

    forma que algumas mediaes se fazem necessrias.

    1.4 - Mediaes

    As inverses e cuidados analticos que possibilitaram a formulao do que aqui chamei

    de hiptese produtiva devem ser retidas como grade geral de interpretao, como uma

    perspectiva do olhar. Uma perspectiva que agora se volta para uma priso j bastantetransformada, uma priso que desde o ltimo tero do sculo XX vem aceleradamente

    distanciando-se daquele modelo de priso disciplinar.

    Uma primeira demarcao de distncia entre o que Foucault analisou e o que aqui se

    pretende analisar que atualmente no se entende que a priso continuamente fracassa

    em seus objetivos declarados. Novos objetivos se estabeleceram, de modo que se faz

    possvel afirmar o anteriormente impensvel: a priso funciona! Sobre essa significativa

    guinada no pensar e no exercer o poder de punir, que Garland (1999, 2001, 2005) focouboa parte de seu trabalho nos ltimos anos. De acordo com esse autor, at a dcada de

    1970, os sistemas punitivos ocidentais funcionavam sob uma configurao que ele

    chama de penal-walfare (GARLAND, 2005, p.71). Pode-se conceber essa

    configurao em relativa continuidade com a priso disciplinar analisada por Foucault,

    obviamente, acrescida de um conjunto de sofisticaes. Tais aprimoramentos decorriam

    tambm do jogo entre a constante crtica da ineficcia e a reafirmao de um programa

    regenerador, na medida em que o objetivo declarado do complexo penal-welfare eraainda reabilitar o delinqente para o convvio social. A partir dos anos 1970, a

    impossibilidade de se atingir esse objetivo deixa de impor sofisticaes ao programa

    punitivo; o prprio objetivo reformado, passando a ser concebido como a

    incapacitao, a anulao, a excluso, a eliminao de indivduos delinqentes em nome

    da segurana da sociedade. Nas palavras do autor:

    Em claro contraste com o que era a viso convencional no perodo

    anterior, o pressuposto dominante atualmente que a priso funciona`,

    37

  • 7/22/2019 Dissertao_RG_corrigida

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    no mais como um mecanismo de reforma ou reabilitao, mas sim como

    meio de incapacitao e castigo que satisfaz a demanda poltica popular de

    retribuio e segurana pblica. Os ltimos anos testemunharam uma

    destacada reviravolta na sorte da priso. Uma instituio com uma longa

    histria de expectativas utpicas e tentativas peridicas de reinventar-se

    (...) finalmente viu sua ambio reduzida drasticamente incapacitao e

    ao castigo retributivo. (...) No curso de poucas dcadas deixou de ser uma

    instituio correcional desacreditada e decadente, para se constituir em um

    pilar macio e aparentemente indispensvel da ordem social

    contempornea. (GARLAND, 2005, p.51 traduo e grifos meus)

    O declnio do ideal de reabilitao a marca atual da pena de priso, e segundo o autor,

    ele se insere num conjunto mais amplo de reconfiguraes, tanto nas formas de se

    conceber e se exercer a punio, quanto nas formas de se conceber o prprio Estado,

    seus limites e atribuies. Nestes termos, a crise do papel social da priso se relaciona

    com a crise do Estado de Bem-Estar e da prpria sociedade industrial. Impossvel

    recuperar aqui todo o percurso analtico de Garland, que vai desde o jogo de relaes

    entre grupos de poder e operadores do sistema penal-welfare nos Estados Unidos da

    dcada de 1970, at as macro-transformaes sociais, culturais, polticas e econmicas

    que se do no mundo ocidental no perodo ps-guerra. Trata-se de um processo por

    demais complexo para ser deslindado no escopo desse trabalho. O que possvel

    apresentar esquematicamente um conjunto de alteraes que, articuladas ao declnio

    do ideal de reabilitao, reconfiguram o que o autor chama de campo do controle do

    delito e justia penal.

    De acordo com Garland (2005), com o declnio do ideal de reabilitao, as sanespunitivas readquirem o carter expressivo, retributivo e vingativo que predominava nos

    tempos dos suplcios. Se anteriormente as polticas penais eram pautadas por certa

    confiana na razo e no progresso, agora so pautadas por uma sensao difusa de

    medo, de urgncia e de ameaa. A figura da vtima passa a ocupar uma posio central

    no interior do campo; ela reiteradamente evocada para justificar a necessidade de

    punies mais duras, exemplares, expressivas; na sua exposio se apia uma s