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UNIVERSIDADE FEDERAL DO ESPRITO SANTO CENTRO DE CINCIAS HUMANAS E NATURAIS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL DAS RELAES POLTICAS

GILTON LUS FERREIRA

UM DESEJO CHAMADO METRPOLE: A modernizao urbana de Vitria no limiar do sculo XX

Vitria ES 2009

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GILTON LUS FERREIRA

UM DESEJO CHAMADO METRPOLE: A modernizao urbana de Vitria no limiar do sculo XX

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social das Relaes Polticas, da

Universidade Federal do Esprito Santo (UFES), como requisito para obteno do Grau de Mestre em Histria. Orientadora: Prof. Dr. Maria da Penha Smarzaro Siqueira.

Vitria ES 2009

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Dados Internacionais de Catalogao-na-publicao (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo, ES, Brasil)

F383d

Ferreira, Gilton Luis, 1966Um desejo chamado metrpole : a modernizao da cidade de Vitria no limiar do sculo XIX / Gilton Luis Ferreira. 2009. 175 f. : il. Orientadora: Maria da Penha Smarzaro Siqueira. Dissertao (mestrado) Universidade Federal do Esprito Santo, Centro de Cincias Humanas e Naturais. 1. Vitria (ES) - Histria - Sc. XIX. 2. Renovao urbana - Vitria (ES) - Sc. XIX. 3. Cidades e vilas - Vitria (ES) - Sc. XIX. 4. Urbanizao Vitria (ES) - Histria. I. Siqueira, Maria da Penha Smarzaro. II. Universidade Federal do Esprito Santo. Centro de Cincias Humanas e Naturais. III. Ttulo. CDU: 93/99

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GILTON LUIS FERREIRA

UM DESEJO CHAMADO METRPOLE: A MODERNIZAO URBANA DE VITRIA NO LIMIAR DO SCULO XX

Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social das Relaes Polticas do Centro de Cincias Humanas e Naturais, da Universidade Federal do Esprito Santo, como requisito para obteno do Grau de Mestre em Histria.

Aprovada em: Vitria, 03 de dezembro de 2009.

COMISSO EXAMINADORA:

______________________________________________ Dr. Maria da Penha Smarzaro Siqueira (Orinetandora) (Programa de Ps-Graduao em Histria Social UFES)

______________________________________________ Dr. Lcia Maria Machado Bgus (Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais PUC/SP)

______________________________________________ Dr. Sebastio Pimentel Franco (Programa de Ps-Graduao em Histria Social UFES)

______________________________________________ Dr. Eneida Maria Souza Mendona (Programa de Ps-Graduao em Arquitetura e Urbanismo UFES)

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memria dos meus avs e sogro. Aos meus pais, Natlio e Julita: Pelo amor, estmulo e alegria constantes.

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H duas maneiras de no sofrer. A primeira parece fcil para a maioria das pessoas e consiste em aliar-se ao inferno at no mais sent-lo. A segunda difcil e exige aprendizado contnuo e constante e consiste em saber quem e o qu, no meio do inferno, que no inferno e preserv-lo e abrir espao! (TALO CALVINO)

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AGRADECIMENTOS

Agradecer pressupe correspondncia. O gesto que tenta compensar de maneira equivalente uma ao anterior, isto eu jamais conseguiria. A atitude afetuosa de manifestar gratido talvez me caiba: Deus, por me fazer crer que os que semeiam com lgrimas, ceifam em meio a canes; esposa Tnia, amor e esteio; aos filhos Lucas e Andr, amores transcendentais; aos amigos Felipe Osrio e Hosmar Scaramussa, pelas mos estendidas no difcil recomeo; Professora Doutora Maria da Penha S. Siqueira, minha orientadora, pelo caminho das pedras; Professora Doutora Lcia Maria Machado Bgus, pela disponibilidade e honra em participar da Banca Examinadora; ao Professor Doutor Sebastio Pimentel Franco e Professora Doutora Eneida Maria Souza Mendona, pelo convvio instrutivo e por terem aceito compor a Banca Examinadora; Enaile Carvalho, pelo caminho das fontes e a desprendida colaborao; aos colegas do Ncleo Cidades, pela graa, fora e vontade estimuladoras; companheira Bruna Madeira, pelo exemplo de superao; ao irmo Giovanilton, pela doce harmonia; aos demais irmos, pelo fraterno exemplo da perseverana; a dois grandes mestres: minha professora da 1 4 sries, Maria Ins Sagrillo Pegoretti, pela excelncia na arte das primeiras letras e s afveis lembranas do amigo e o professor Joo Pedro de Aguiar; e ao PPGHIS, pelo profcuo magistrio e pelas portas abertas. Essa rede de fortes ns me proporciona significados imprescindveis para insistir, superar e ser feliz.

RESUMO

As concepes urbansticas espelhadas, principalmente, no modelo parisiense do Baro de Haussmann influenciaram vrias cidades brasileiras nos sculos XIX e XX. A reestruturao urbana passou a ser perseguida por administradores das diversas cidades brasileiras, entre elas, Vitria, capital administrativa do Esprito Santo desde o Perodo Colonial. Com o advento da Repblica, o passado colonial, que em sua longa trajetria fora imprimindo suas marcas na arquitetura da cidade, viria sofrer um forte processo de transformao que mudaria a paisagem e a dinmica urbana da capital capixaba. O presente estudo tem por finalidade apresentar a influncia do ideal moderno na reestruturao urbana da cidade de Vitria no limiar do sculo XX. A pesquisa emprica se pautou em trs corpus documentalis produzidos entre os anos de 1892 e 1912: anlise dos Relatrios de Governo do Estado do Esprito Santo, da documentao da municipalidade e da iconografia existente. Assim, o presente estudo historiogrfico resgatou a gnese do processo de modernizao urbana da cidade de Vitria, que teve incio no fim do sculo XIX e se estendeu s dcadas iniciais do sculo XX.

Palavras-chaves: Cidade de Vitria, Modernizao Urbana, Cidades, Urbanizao, Histria Urbana, Sculo XIX.

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ABSTRACT

The urban concepts, specially mirrored on the Haussman Baron Parisian model, have influenced several Brazilian cities in the 19th and 20th centuries. The urban restructure turned out to be sought after by city administrators of many Brazilian cities, including Vitria, the administrative capital of Esprito Santo since the Colonial Period. With the advent of the Republic, the colonial past that stamped for a long time its marks on the city architecture would suffer a strong transformation process changing the landscape and urban dynamics of the capixaba capital. The purpose of this study is to present the influence of the modern ideal on the urban restructure of the city of Vitria in the 20th century edge. The empirical research was guided by three corpus documentalis produced between 1890 and 1912: analysis of Government of State Reports, municipality documentation and existing iconography. Therefore, this historiographic study has brought back the genesis of the urban modernization process of the city of Vitria that started in the end of the 19th century and extended to the beginning decades of the 20th century.

Key words: City of Vitria, Urban Modernization, Cities, Urbanization, Urban History. 19th Century.

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LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1: So Sebastio do Rio de Janeiro/RJ ca. 1624........................................ 62 FIGURA 2: Recife e Olinda ca. 1630 ......................................................................... 64 FIGURA 3: So Caetano nas Gerais e Mato Dentro/MG (1732)...................................65 FIGURA 4: Rio de Janeiro, 1890 ...................................................................................67 FIGURA 5: Um tempo de convices e descobertas ................................................... 70 FIGURA 6: Exemplos de Obras em Londres e Paris .....................................................72 FIGURA 7: Vista Panormica da Exposio Nacional de 1908. ....................................76 FIGURA 8: Alternativas de Moradia na Capital Federal............................................... 84 FIGURA 9: Higienismo em Ao................................................................................... 86 FIGURA 10: Demolio de Cortios...............................................................................87 FIGURA 11: Porto do Rio de Janeiro Planta N. 1.....................................................97 FIGURA 12: Porto do Rio de Janeiro Planta N. 7.................................................... 98 FIGURA 13: Porto do Rio de Janeiro Planta N. 5.................................................... 99 FIGURA 14: Teatro Municipal...................................................................................... 101 FIGURA 15: Avenida Central Rio de Janeiro............................................................103

11 FIGURA 16: "Espiritu Santo" Vitria e Vila Velha (1624) ........................................ 107 FIGURA 17: "Perspectiva da Villa de Victoria (1805)................................................109 FIGURA 18: Capela de Santa Luzia, Vitria/ES. ......................................................... 112 FIGURA 19: Casa de Importao e Exportao Comisses e Consignaes.......... 116 FIGURA 20: Exportadores de Caf...............................................................................117 FIGURA 21: Vitria no sculo XIX ............................................................................... 119 FIGURA 22: Projeto do Novo Arrabalde...................................................................... 121 FIGURA 23: Traado que definiu a Avenida Vitria.................................................... 122 FIGURA 24: Loteamento do Novo Arrabalde .............................................................. 123 FIGURA 25: Modelo de Casa para Proletariado..........................................................124 FIGURA 26: Entrada do Porto de Vitria 1912 ........................................................ 125 FIGURA 27: Vista do porto velho em Vitria 1912..................................................126 FIGURA 28: Avenida da Alfndega, incio do sculo XX............................................. 133 FIGURA 29: Perspectiva lateral do Teatro Melpmene 1912.................................. 136 FIGURA 30: Casa Popular, N. 41............................................................................... 137 FIGURA 31: Casa Popular, N. 42...............................................................................138 FIGURA 32: Vista geral da Fbrica de Cal Vitria, 1912 ......................................... 145

12 FIGURA 33: Melhoramentos da Capital Vitria, 1912 .............................................149 FIGURA 34: Caf Globo Trinxet & Cia. ....................................................................150 FIGURA 35: Caf Rio Branco, de Rodolpho Ribeiro de Souza.................................... 151 FIGURA 36: Praa Santos Dumont e Rua do Comrcio ............................................. 152 FIGURA 37: Aterro do Campinho 1910.................................................................... 154

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LISTA DE TABELAS

TABELA 1: Principais Exportaes Brasil 1821-1890.................................................78 TABELA 2: Crescimento Anual da Populao do Rio de Janeiro ................................. 82 TABELA 3: Morte por doenas transmissveis.............................................................. 88 TABELA 4: Movimento Martimo de alguns Portos Brasileiros .................................... 96 TABELA 5: Focos de Febre Amarela (1895) ............................................................... 132 TABELA 6: Calamentos realizados em Vitria, janeiro de 1896 ............................... 139 TABELA 7: Arrecadao Estadual do Esprito Santo (1892 a 1899) ..........................140 TABELA 8: Exportaes e Importaes (1909-1911) .................................................146 TABELA 9: Receita e Despesa do Esprito Santo (1908-1912)...................................146 TABELA 10: Arrecadao Prevista com os Servios Bsicos ......................................148 TABELA 11: Prdios Construdos e Reconstrudos em Vitria (1908-1912) .............. 153

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SUMRIO

INTRODUO ................................................................................................................ 16 1. OBRA DO HOMEM, CRIAO DA HISTRIA ............................................................25 1.1 Da aldeia a uma nova condio de convivncia.....................................................25 1.2 O lcus da cidadania .............................................................................................. 29 1.3 sombra da Pax Romana .......................................................................................33 1.4 Definida pela muralha ............................................................................................ 38 1.5 PARIS: capital mundial do sculo XIX ................................................................ 44 1.5.1 Um tempo impregnado do seu contrrio ................................................................. 44 1.5.2 A gnese de um fenmeno Universal .......................................................................50 1.5.3 A catedral e o profeta.................................................................................................. 55 2. O CENRIO MODERNO NO BRASIL..........................................................................59 2.1 Antecedentes da modernidade: o contexto urbano colonial e imperial ................59 2.2 No rol das naes civilizadas e progressistas ........................................................ 69 2.3 A sobremesa que financiou o desenvolvimento nacional ......................................78 2.4 A Limpeza da Cidade...............................................................................................81 2.5 La Ville Merveilleusse ............................................................................................. 90

15 3. A ILHA E O ESPELHO: o ideal moderno e a reestruturao urbana da cidade de Vitria (1892 a 1912) ..................................................................................................104 3.1 De Vila Cidade: concepes urbanas de Vitria................................................104 3.2 A Cidade Desejada: Vitria na virada do sculo................................................... 113 3.3 Arranjos para a modernidade ............................................................................... 131 3.4 Enfim, a modernizao! ........................................................................................142 CONSIDERAES FINAIS............................................................................................ 157 REFERNCIAS .............................................................................................................. 161 Fontes Primrias .......................................................................................................... 161 Fontes Bibliogrficas.................................................................................................... 165

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INTRODUO

Morada incerta e inevitvel do homem moderno, a cidade tornou-se palco ideal para encenao das prticas e dos feitos da modernidade, [...] picadeiro de todas as pequenas ocupaes imaginveis (BENJAMIN, 1989:35). Fonte inesgotvel de indagaes, a modernidade adotou a cidade como seu habitat natural e a partir dela nos remete a formulaes diversas. Cidade e modernidade, no fim do sculo XIX e no limiar do sculo XX, sero o verso e o reverso de um tempo em ebulio, um tempo em que a vida se apresenta radicalmente contraditria, um tempo em que [...] tudo parece estar impregnado do seu contrrio (MARX & ENGELS, 1998:19). Tratada por Baudelaire como um estado de transitoriedade, de celebrao do novo, de negao da tradio, de criao e recriao de vnculos e desencaixes, a modernidade pode ser concebida a partir de categorias chaves como o progresso e a ruptura, caracterizada por uma sucessiva descontinuidade, formando um modo de vida fragmentrio em que se justapem elementos novos e antigos (URBANO, 2007). A questo da modernidade reporta-se a um grande arco de modificaes nas estruturas econmicas, sociais e polticas que abalaram o mundo ocidental. Estas transformaes estruturais foram produzidas atravs da conjuno de vrios movimentos que atingiram o continente europeu a partir do final da Idade Mdia. Em termos de tempo e espao, a modernidade [...] refere-se ao estilo, costume de vida ou organizao social que emergiram na Europa a partir do sculo XVII e que, posteriormente, tornaram-se mais ou menos mundiais em sua influncia (GUIDDENS, 1991:11). A cidade, como receptora de prticas e variantes temporais, vivenciou o permanente conflito entre estes dois estados de espritos, o tradicional e o moderno. Era um tempo em que os ares modernizadores da Europa ditavam o ideal urbano para o resto do mundo ocidental. A dinmica poltica e econmica europia acabavam por redefinir os padres sociais da poca; estilos de vida que cruzavam os mares formando redes internacionais de comrcio e de tecnologias, impulsionadas pela Revoluo Francesa e Industrial. Em sntese, as posies polticas e filosficas, provenientes de pases europeus, arregimentavam adeptos em vrios cantos do mundo, com seus hbitos e costumes influenciando e transformando prticas culturais de diversas sociedades. Era um tempo em que o novo padro europeu de vida e de organizao urbana tornava-se referncia to forte que alm de se apossar do imaginrio

17 coletivo, ainda tinha o poder de destruir e erguer cidades segundo suas concepes (PIRES, 2006). Ao entusiasmo proveniente desse tempo de triunfo da sociedade capitalista que surgira entre os sculos XIX e XX, convencionou-se chamar de Belle poque, perodo marcado pela forte convico de que o progresso material iria solucionar todos os males de uma afoita humanidade. nesta ambincia que as cidades passam a adquirir valor como instrumento especfico de realizao da misso civilizadora. A cidade passou a ser local privilegiado para contemplao e gozo das inovaes modernizadoras e do conforto material proporcionado pela sociedade industrial. Neste contexto, a reestruturao urbana foi a condio necessria para se alcanar patamar cada vez mais elevado de acesso ao progresso. Paris, da segunda metade do sculo XIX, remodelada por Georges-Eugne Haussmann, se fez referncia e marco inaugural de um processo que elevou a capital francesa condio de modelo urbano, espelho para vrias outras cidades do mundo. A fora das concepes urbansticas desenvolvidas por Haussmann influenciou cidades da Europa e atravessou oceanos tornando-se o grande paradigma da modernidade. O Brasil, dos sculos XIX e XX, no estava alheio ao fenmeno que se universalizava. A cidade do Rio de Janeiro, governada por Pereira Passos (1902-1906), promoveu uma grande reforma urbanstica inaugurando, no pas, o processo de modernizao urbana. Inspirado nas reformas de Haussmann e do prefeito da Capital Federal, vrias cidades brasileiras viriam adotar o modelo estabelecido como paradigma de progresso e vida moderna. Nos grandes centros urbanos da poca a influncia de uma cultura exgena era evidente. Havia enorme contingente populacional, vida social, poltica e econmica pulsantes, capitaneado por uma elite desejosa por balizar suas vidas, costumes e espaos em padres modernos de existncia. No entanto, no foi apenas nos grandes centros que se pde verificar a fora do fenmeno. O Estado do Esprito Santo, no limiar do sculo XX, tinha em sua capital, Vitria, uma cidade portadora de vida social e cultural limitadas por tradies arcaicas, populao modesta prxima a 10.000 habitantes e precria infra-estrutura herdada do Perodo Colonial. Mesmo assim, Vitria presenciou a luta entre antigos valores e prticas modernizadoras e testemunhou um processo de modernizao urbana em escala diferenciada da Capital Federal, certo, mas de idntica lgica e valores.

18 Compreender as especificidades da ocorrncia do fenmeno da modernizao urbana no contexto capixaba foi o desafio da pesquisa. O recorte da investigao esteve concentrado nos anos finais do sculo XIX at os anos iniciais do sculo XX, mais especificamente no perodo do primeiro governo republicano do Presidente de Estado Jos de Melo Carvalho Moniz Freire at a concluso do governo do Presidente de Estado Jernimo de Souza Monteiro, de 1892 at 1912. Um Desejo Chamado Metrpole: a modernizao da cidade de Vitria no limiar do sculo XX analisa a gnese do processo de modernizao urbana da Capital do Estado, em um perodo histrico onde o Esprito Santo era considerado satlite, que segundo definio tem: [...] carter secundrio, no dispe de autonomia necessria para reger seu destino e, por isso, depende de outra entidade que lhe proporcione meios de sobreviver politicamente (SUETH, 2006:24). Apesar do governo provisrio de Afonso Cludio (1889-1890) ser o precursor do processo de desenvolvimento vitoriense, atravs da construo de alguns prdios inspirados no moderno urbanismo francs, incorporando tcnicas inovadoras de construo, foi durante a gesto do Presidente Moniz Freire (1892-1896) que o intento modernizador ganhou propores considerveis. O projeto denominado Novo Arrabalde, [...] projetou a atual malha urbana de muitos bairros da cidade, prevendo, em 1895, sextuplicar o tamanho de Vitria (CAMPOS JNIOR, 1996:19-20). A velocidade da reestruturao urbana iniciada por Moniz Freire foi reduzida nas gestes subseqentes, perodo em que o Estado passou por crises econmicas, recuperando acelerao semelhante somente entre 1908-1912, quando Jeronymo Monteiro, com um forte discurso modernizador e com nova viso de conduo pblica, assumiu prometendo transformaes profundas em todo o Estado, especialmente na capital. Reconhecer no processo de desenvolvimento de Vitria similaridades com o fenmeno universal da modernizao urbana constituiu o objetivo central da pesquisa. Para identificar as possveis conexes foi preciso: entender o processo de desenvolvimento das cidades ao longo da histria das civilizaes; compreender a conjuntura histrica que propiciou o aparecimento da urbanstica moderna na Europa, em especial na cidade de Paris, fonte de influncia para diversas cidades ocidentais; estudar o processo de modernizao urbana brasileiro, especialmente o caso da Capital Federal, Rio de Janeiro, no limiar do sculo XX; e investigar a natureza das transformaes modernizadoras na cidade de Vitria do perodo de 1892 a 1912.

19 As fontes histricas, alm de auxiliarem na definio do recorte temporal, sustentaram a hiptese de que as categorias estruturantes do novo arranjo urbano internacional tambm podiam ser identificadas em planos nacional e local. Jos Geraldo Vinci de Moraes (1994), relata que apoiado pelo Imperador Lus Napoleo e norteado pelos ideais de higienizao, embelezamento e racionalizao do espao urbano, o baro de Haussmann transformaria a velha Paris, de estrutura ainda medieval, em cidade moderna, admirada e invejada em todo o mundo. Esses elementos da trade haussmanniana se fizeram presentes tambm em vrias regies do Brasil a partir da instaurao do regime republicano, guardadas as devidas singularidades regionais. A pesquisa est inserida no campo terico da histria urbana, o que no impediu a utilizao de outros referenciais tericos. Foi necessrio conhecer historiograficamente como esta rea se desenvolveu e se articulou com os outros campos do conhecimento. Com relao aos processos de urbanizao, autores clssicos demonstram acmulo significativo advindo da histria cultural e da histria econmico-social, dando a conhecer a origem e o desenvolvimento das civilizaes at o advento da sociedade burguesa, privilegiando a cidade como objeto de estudo. No entanto, a definio da histria urbana como categoria de anlise de datao recente. Segundo Lus Octvio da Silva (2002), uma confuso h muito persiste entre a histria das cidades, a histria das civilizaes e o territrio de domnio. At bem pouco tempo as chamadas biografias urbanas no eram escritas por historiadores ou especialistas, este gnero, que se consagrou em meados do sculo XX, utilizava uma narrativa convencional para elevar uma determinada localidade e destacar os acontecimentos relevantes. Com uma apresentao cronolgica, destacando figuras ilustres e datas significativas, as biografias urbanas, sem se importar em realizar uma abordagem de processos mais vastos e aprofundados, to pouco expor contextos sociais e seu dinamismo, adotavam o padro positivista em suas narrativas. Por outro lado, a histria do urbanismo, que dizia acerca da organizao fsica dos territrios urbanos, era escrita por arquitetos e urbanistas, nem sempre com formao de historiador. Esta produo compunha os escritos no mbito da histria da arte e/ou da arquitetura, que tinha seus interesses mais focados em aspectos fsico-espaciais do que no mbito da histria da produo cultural. O interesse pelo universo urbano multidisciplinar e vrias so as reas que influenciam e contribuem para seu conhecimento e transformao. Os campos disciplinares da demografia, da arquitetura, do urbanismo, da geografia e das cincias sociais so algumas reas que mantm relao direta com a histria urbana. Dessa multiplicidade contributiva surgiram

20 novas modalidades de estudo.1 A partir de ento, as relevantes abordagens temticas, nas quais o urbano trabalhado como instrumento de interpretao histrica, no sentido de definir o papel das cidades durante o desenvolvimento do capitalismo, passou a ser visto como questo central para o estudo da histria urbana. No entanto, a produo historiogrfica, de cunho heterogneo, d a conhecer poucas referncias tericas comuns, no sendo suficiente para gerar uma identidade que venha estabelecer e consolidar o campo especfico da histria urbana. Os pesquisadores em cincias sociais ocupavam boa parte das suas pesquisas em estudos sobre o processo de desenvolvimento, industrializao e urbanizao na tentativa de abordar o urbano de forma significativamente diferente daqueles trabalhos em biografias das cidades e histria do urbanismo, at ento hegemnicos. A dcada de 1960 foi especialmente profcua a esse respeito, porm foi em meados do sculo XX que comearam as primeiras articulaes no sentido da constituio de uma rea de conhecimento especfico que viria consolidar a histria urbana. Essas articulaes se originaram nos pases com maior acmulo de produo historiogrfica: Gr-Bretanha e Estados Unidos (DA SILVA, 2002). Pesquisas historiogrficas sobre o urbano no obtiveram a mesma reputao, nem mesmas dimenses trabalhadas, variando a escala de estudo conforme o pas. No Brasil, o olhar sobre esse campo de pesquisa historiogrfica permite identificao mais apropriada se observada pela lente da regionalizao (PESAVENTO, 1995:5-6). Os estudos referentes a este campo temtico se comportam de maneira diferenciada, indo das obras de divulgao, passando por ensaios e artigos, at as anlises mais amplas e profundas advindas de estudos avanados em forma de teses e dissertaes.

Luis Otvio da Silva (2002) nos relata ainda que, a tais modalidades somaram-se vrias outras distintas contribuies de historiadores, que apresentaram interesses no urbano, como o caso de Franois Bedarida, fundador do Institute dHistoire du Temps Prsent, em 1978. Outro exemplo a publicao peridica Annales dHistoire Economique et Sociale que teria desempenhado um papel central no despertar do interesse pelo urbano entre historiadores da Europa, enquanto que no caso dos EUA, podemos constatar que o urbano passa a ser encarado como objeto de pesquisa, pelos historiadores, no final do sculo XIX. Estes ltimos desenvolveram interesse de anlise no fenmeno imigratrio, principalmente na dcada de 1920, quando esta nao se fez majoritariamente urbana. Destacado papel na aproximao dos historiadores temtica urbana teve Arthur M. Schlesinger quando, a partir de 1932, passou a dirigir a American Historical Association Commitee; sem contar o grande reconhecimento de historiadores em cujas obras o urbano e a cidade figuram como protagonistas, como o caso de Fernad Braudel e Henri Pirene.

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21 No estado do Esprito Santo h poucas pesquisas cientficas acerca do tema, bem como ncleos de investigao acadmica ou instituies voltadas para tal fim, o que torna ainda mais desafiadora as iniciativas existentes. Dos estudos sobre a capital capixaba, dois artigos destacam-se tanto pela temtica como pelo contedo. O primeiro, de 2006, intitulado Vitria no Comeo do Sculo XX: modernidade e modernizao na construo da capital capixaba, de Maria da Conceio Francisca Pires (2006), analisa o processo de modernizao capixaba na virada do sculo XIX para o sculo XX, dentro do contexto histrico de transformao das cidades brasileiras realizando, concomitantemente, um balano historiogrfico. O segundo artigo, de 2004, da arquiteta urbanista Michele Monteiro Prado (2004), baseado em sua Dissertao de Mestrado, sob o ttulo A Modernidade e Seu Retrato: imagens e representaes das transformaes da paisagem urbana de Vitria (ES) 1890/1950 tem mais proximidade com o campo da histria social do que da histria urbana. Prado realiza um estudo das representaes do imaginrio urbano no espao das cidades e reconstitui um panorama das transformaes da paisagem de Vitria no perodo proposto. No livro Urbanismo no Brasil 1895/1965, sob coordenao de Maria Cristina da Silva Leme (1999), encontramos uma bibliografia referente aos diferentes contextos urbanos brasileiros, reunidos a partir do trabalho de pesquisadores de oito cidades: So Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Porto Alegre, Belo Horizonte, Niteri e Vitria. A obra diz respeito formao urbanstica nas referidas cidades, sendo tambm um expressivo guia de fontes. O trabalho apresenta-se como relato e anlise crtica do processo de edificao das cidades brasileiras no limiar do sculo XX, bem como expe as idias propulsoras do intento. Constri uma sesso com farto material documental de grande valor para pesquisas afins, dando a conhecer os planos urbansticos projetados para cada uma das cidades em estudo. De forma biogrfica, esta coletnea de pesquisas expe o percurso profissional e geogrfico de trs geraes de urbanistas que exerceram atividades em vrias cidades brasileiras e apresenta as principais revistas, acervos e bibliotecas consultadas pelos autores, em forma de guia de fontes. O trabalho pode ser visto como um valioso mosaico que retrata a expresso fundadora do urbanismo no Brasil. No entanto, como todo mosaico, tem a qualidade de agregar partes que se complementam, porm no evita a exposio dos seus recortes. Em outros termos, o trabalho no se faz acompanhar de uma reflexo do processo de modernizao urbana das cidades brasileiras no intuito de evitar o aspecto fragmentrio do fenmeno pesquisado.

22 O Novo Arrabalde, obra publicada no ano de 1996, por Carlos Teixeira de Campos Jnior (1996), fruto de sua dissertao de mestrado, busca compreender o processo de urbanizao de Vitria partindo do primeiro plano urbanstico da cidade, traado no final do sculo XIX, pelo engenheiro Saturnino de Brito. O Desenvolvimento do Porto de Vitria 1870-1940, de Maria da Penha Smarzaro Siqueira (1995), estuda a conjuntura do capitalismo industrial do sculo XIX e a insero do Imprio do Brasil e da Provncia do Esprito Santo nesta conjuntura, expondo o contexto capixaba mediante os acontecimentos nacionais. Siqueira tem como referncia o movimento martimo comercial do Porto de Vitria, bem como a histria da construo, do aparelhamento e da consolidao de sua importncia para o comrcio exportador capixaba, pretendendo a autora evidenciar a situao socioeconmica do Esprito Santo na virada dos sculos XIX e XX. O breve relato de algumas das obras bibliogrficas consultadas nos fala de um quadro duplamente desafiador: primeiro, de ingressar em uma rea do conhecimento ainda muito jovem, em processo de sedimentao do seu ordenamento conceitual; segundo, de contribuir para a produo cientfica capixaba em campo acadmico pouco explorado, carente de novas leituras e interpretaes dos acontecimentos histricos locais pelo vis da histria urbana. Os desafios elencados solicitam ateno e coerncia quanto ao posicionamento metodolgico. Para tanto, definimos o mtodo histrico analtico como ferramenta de auxlio reflexo situando, como j exposto, o objeto de estudo num contexto de investigao mais amplo para melhor compreenso de sua natureza e evoluo no contexto social. Apoiando-se em um marco temporal pr-estabelecido, o mtodo nos assegurou a percepo histrica e a interpretao dos fatos, buscando chegar o mais prximo possvel da realidade passada. Aliada a uma perspectiva local, nacional e internacional, o estudo permeou a interpretao do objeto luz da transformao radical e universal que viveu a Europa no perodo entre os sculos XIX e XX, inaugurando um novo padro de organizao urbana, imprimindo suas indelveis marcas na cidade e no imaginrio de seus habitantes. Para melhor compreenso foi necessrio investigar os processos que produziram os fatos delimitados no recorte temporal e que deixaram registros no tempo e no espao. Ao aceitar a proposio de Marc Bloch (2002:73), que afirma ser o conhecimento histrico "um conhecimento atravs de vestgios", foi necessrio buscar as fontes histricas e reconstituir possveis existncias para pessoas no tempo pretrito, seus contextos, locais de atuao,

23 formas de vivncia e legado produzido. Desta forma, realizou-se o levantamento de fontes primrias revistas, peridicos, discursos e notas oficiais , disponibilizadas por sistemas de rgos governamentais: Arquivo Pblico Nacional, Biblioteca Nacional, Arquivo Pblico Municipal da Cidade do Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles RJ, Arquivo Geral do Municpio de Vitria, Arquivo Pblico do Estado do Esprito Santo, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica IBGE, Instituto Histrico e Geogrfico do Esprito Santo, Biblioteca Central da Universidade Federal do Esprito Santo e Instituto Jones dos Santos Neves. Para trabalhar a documentao, oriunda das fontes primrias, utilizamos o mtodo de anlise crtica documental e iconogrfica, interpretando as informaes coletadas de forma qualitativa, o que no impediu a realizao de algumas sries quantitativas quando necessrias. O resultado final deste processo de investigao est contido nas pginas que seguem estruturadas em trs captulos distintos, porm complementares. O primeiro captulo se consolidou como um vo de reconhecimento histrico, ou seja, uma rpida passagem por vrios perodos, na tentativa de compreendermos a origem e o desenvolvimento das cidades e sua misso civilizadora. Ainda no Captulo 1, se faz a abordagem do processo de evoluo urbana na longa durao, a desnaturalizao do conceito de cidade, observando o apogeu e declnio de vrias formas de organizao das comunidades humanas. Enfim, uma abordagem qualitativa fundamentada por meio de pesquisa bibliogrfica, resultando no resgate histrico que vai da gnese das cidades instituio dos princpios fundadores da urbanstica moderna. No segundo captulo resgata-se o contexto urbano colonial brasileiro, como antecedente da modernizao que viria no perodo posterior, quando dos esforos para inserir o Brasil no rol das naes civilizadas e progressistas. Percorre-se a trajetria de insero nacional no modelo agroexportador discutindo a nova posio do pas na diviso internacional do trabalho, situao que, dentre outras, ter influncia direta na ocorrncia do fenmeno da modernizao urbana brasileira, em especial, na Cidade Maravilhosa. Por meio da iconografia, de pesquisa bibliogrfica e de fontes primrias foi possvel realizar a anlise do fenmeno modernizador brasileiro tendo como referncia o caso da cidade do Rio de Janeiro, no limiar do sculo XX. No terceiro e ltimo captulo, a discusso trilhos os caminhos que desembocaram na elevao da Vila de Vitria condio de cidade, em 1823, chegando ao entendimento da seqncia histrica e as motivaes desencadeadoras do incio do processo que, no alvorecer da Repblica, possibilitaria identificar os elementos caracterizadores da ocorrncia do fenmeno da modernizao urbana, tambm na Capital capixaba. Neste captulo, a pesquisa emprica se

24 pautou em trs corpus documentalis produzidos entre os anos de 1890 e 1912: os Relatrios de Governo do Estado do Esprito Santo, a documentao da municipalidade, bem como anlise da iconografia existente nos centros de documentao consultados. Por fim, como proposto nesta explanao, os captulos acabam por se complementarem, reconhecendo que o fenmeno urbano se fez de forma universal, respeitando as devidas escalas e realidades, como nos casos de Paris, Rio de Janeiro e Vitria.

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1. OBRA DO HOMEM, CRIAO DA HISTRIA

A condio humana compreende algo mais que as condies nas quais a vida foi dada ao homem. (Hannah Arendt)

1.1 Da aldeia a uma nova condio de convivnciaA existncia de ncleos urbanos no se trata de um fenmeno eminentemente contemporneo. De certo, os ncleos representam o resultado da sedentarizao e sociabilizao do homem, consolidados em diferentes contextos. Assim sendo, na trajetria da civilizao, a cidade se apresentou como um estabelecimento singular, podendo sofrer mutaes brandas ou radicais das mais variadas ordens e a sua existncia no est vinculada a uma necessidade natural do homem, mas sim da necessidade de se viver em comunidade. A constituio da cidade pode ser considerada como um fenmeno que teve incio num dado momento histrico e, portanto, tambm pode ter um fim. Os diferentes conceitos que envolvem a compreenso da cidade no tempo cidade antiga, cidade moderna, cidade contempornea, entre outras , geram dificuldades quanto a determinao de um marco histrico que defina em qual contexto teria surgido os primeiros traos urbansticos que passaram a modificar a prpria concepo de vida do homem. O presente trabalho recupera algumas concepes urbansticas com o objetivo de compreender o conceito da cidade moderna, muitas vezes posto como fenmeno embrionrio da conformao urbana atual. Caractersticas dos povos e das cidades antigas e medievais sobreviveram aos seus tempos e espaos e ainda hoje influenciam na arquitetura, no direito, nas artes, dentre outros fatores que compe a sociedade. Torna-se importante para o estudo da Histria Urbana, pela vertente da Histria Cultural, o resgate de elementos de determinadas civilizaes que de alguma forma ultrapassaram o seu tempo influenciando sociedades posteriores. Traos culturais como a lngua, os costumes e at mesmo a arquitetura, quando sobrevivem s suas civilizaes de origem, passam a influenciar outras pocas e contribuem para o conhecimento histrico sobre as sociedades passadas, alm de servirem de termmetro quanto a magnitude daquelas civilizaes. A habilidade de transformao do meio com a predisposio para a vida em

26 sociedade so elementos que foram capazes de fornecerem caractersticas essenciais onde se encontra o marco inicial de formao da cidade. Algumas aldeias tomaram formas urbanas somente nos ltimos cinco mil anos, quando a organizao social comeou a se tornar cada vez mais dinmica e exigir um grau de comunicao mais refinado. Os acontecimentos histricos sucessivos passaram a exigir, cada vez mais, produo e distribuio intensivas, bem como uma rede muito mais complexa de tecnologias e sociabilidades. Em sntese, quando o homem foi capaz de transformar e dominar o meio natural, coadunando com a presena da escrita, da centralidade poltico-administrativa e cultural, foi possvel criar condies para a manuteno da sociedade nos diferentes contextos histricos. Para a autora Maria Stella Bresciani (1997:14) a cidade [...] o produto da arte humana, simboliza o poder criador do homem, a modificao/transformao do meio ambiente, a imagem de algo artificial, um artefato enfim. Diante do exposto, a cidade passa a ser entendida como local de estabelecimento aparelhado, diferenciado e ao mesmo tempo privilegiado, sede da autoridade poltica e de sua administrao. A cidade nasce da aldeia, mas no apenas uma aldeia que cresceu.[...] quando as indstrias e os servios j no so executados pelas pessoas que cultivam a terra, mas por outras que no tm esta obrigao, e que so mantidas pelas primeiras com o excedente do produto total. Nasce, assim, o contraste entre dois grupos sociais, dominantes e subalternos: mas, entrementes, as indstrias e os servios j podem se desenvolver atravs da especializao, e a produo agrcola pode crescer utilizando estes servios e estes instrumentos. A sociedade se torna capaz de evoluir e projetar a sua evoluo (BENEVOLO, 2005:23).

A busca pela gnese da cidade sempre contou com o auxlio de estudos dos remanescentes fsicos das antigas civilizaes, no entanto no so apenas materialidades em forma de abrigos, armas e instrumentos que conseguem nos falar sobre a complexa histria da organizao dos agrupamentos humanos, mas tambm suas mais variadas formas de relaes scio-culturais. Invenes como o ritual e a linguagem muito tm a nos dizer, porm sua riqueza cultural pouco se registrou na longa durao e nem sempre foram levados em conta no processo de reconhecimento do que se convencionou chamar de cidade.Situaremos em bases falsas todo o problema da natureza da cidade, se procurarmos apenas estruturas permanentes, amontoadas por trs de uma muralha. Para chegar mais perto das origens da cidade, cumpre-nos, assim penso, suplementar o trabalho do arquelogo que procura a mais funda camada na qual possa reconhecer uma obscura planta baixa, a indicar a existncia de uma ordem urbana. Se quisermos indicar uma cidade, devemos seguir a trilha para trs, partindo das mais completas estruturas e funes urbanas conhecidas, para os seus componentes originrios, por mais remotos que se apresentem no tempo, no espao e na cultura, em relao aos primeiros tells que j foram abertos. Antes da cidade, houve a pequena povoao, o santurio e a

27aldeia, o acampamento, o esconderijo, a caverna, o monto de pedras; e antes de tudo isso, houve certa predisposio para a vida social que o homem compartilha, evidentemente, com diversas outras espcies animais (MUMFORD, 2004:11).

Mesmo lanando mo das fontes arqueolgicas dificilmente se chegar s origens da cidade, apesar de existirem algumas hipteses explicativas que orientam o estudo da histria urbana. Mumfort (2004:13) prope ser a cidade dos mortos a precursora da cidade dos vivos, ou seja, o ato de cultuar os entes falecidos teria motivado a fixao do homem e, conseqentemente, o aparecimento dos primeiros ncleos urbanos. Assim, os mortos foram os primeiros a se fixarem ao territrio, a terem uma morada permanente a qual, frequentemente, os vivos retornavam a fim de estabelecer alguma forma de relao entre esses dois mundos.Desta crena primitiva derivou para o homem a necessidade de uma sepultura. Para a alma se fixar na morada subterrnea destinada a esta segunda vida, impe-se igualmente que o corpo, ao qual a alma est ligada, se cubra de terra. A alma que no tivesse seu tmulo no tinha morada. Era errante. [...] O ser que vive debaixo da terra no se encontrava to desprendido do humano que no tenha necessidade de alimento. Por isso, em certos dias do ano, se leva a refeio a cada tmulo. [...] Desde os mais recuados tempos, deram estas crenas lugar a normas de conduta. Como, entre os antigos, o morto necessitava de alimento e de bebida, concebeu-se ser dever dos vivos satisfazer-lhe esta sua necessidade. O cuidado de levar aos mortos os alimentos no esteve a cargo do capricho ou dos sentimentos variveis dos homens; foi obrigatrio (COULANGES, 1971:14-20).

Essa aptido espiritual de atrair o no-fixado para o relacionamento, to forte como a faculdade do comrcio, constituiu-se como um trao essencial da personalidade das cidades ao longo da histria. No decorrer do tempo, as cidades carregaram e transmitiram uma herana que muito nos diz de sua essncia, funes e finalidades. Questionando a vertente de trabalhos que relacionam a revoluo agrcola como responsvel pela fixao do homem e a formao do territrio urbano, Souza (2003) argumenta que somente a fixao do homem no seria suficiente para a formao das cidades. Segundo o autor:[...] as primeiras cidades surgem como resultado de transformaes sociais gerais econmicas, tecnolgicas, polticas e culturais , quando, para alm de povoados de agricultores (ou aldeias), que eram pouco mais que acampamentos permanentes de produtores diretos que se tornaram sedentrios, surgem assentamentos permanentes maiores e muito mais complexos, que vo abrigar uma ampla populao de noprodutores: governantes (monarcas, aristocratas), funcionrios (como escribas), sacerdotes e guerreiros. A cidade ir, tambm, abrigar artesos especializados, como carpinteiros, ferreiros, ceramistas, joalheiros, teceles e construtores navais, os quais contribuiro, com suas manufaturas, para o florescimento do comrcio entre os povos. Em vrios sentidos, por conseguinte, a cidade difere do tipo de assentamento neoltico que a precedeu, menos complexo (SOUZA, 2003:45-46).

28 Sendo verdade que antes da cidade houve a sociabilidade, a sensao de pertencimento a uma determinada comunidade, como o morar prximo e o compartilhamento de um passado comum, faz sentido se considerar a continuidade transmitida da aldeia cidade, materializada nos bairros e nas suas relaes de vizinhana. Assim, em vrios aspectos formais e sociais pode-se registrar na aldeia a presena embrionria da cidade: o local de residncia e de culto; as vias pblicas e a praa; os locais de reserva de gua e abastecimento; bem como formas iniciais de governo, direito e justia. No entanto, como j exposto, a cidade no se fez de uma aldeia que cresceu surgiu da evoluo social capaz de introduzir um novo fator histrico, ampliar a massa fsica existente e provocar uma transformao alterando suas propriedades iniciais. Corroborando com Coulanges (1971:152), o nascimento da cidade pode ser compreendido a partir do momento em houve a juno de grupos pr-existentes. A cidade superou as dimenses da restrita vida na aldeia e passou a ser um smbolo do possvel, a materializao das ilimitadas possibilidades humanas. Tendo que enfrentar a complexidade da vida comunitria em grandes dimenses, dando novos usos e formas cidade, surge um comando centralizado dominando toda estrutura social antes localmente governada. Dessa maneira, a cidade passa a contar com um ncleo central religioso, poltico, econmico e social expresso pela cidadela. Assim, o exerccio do poder imprime uma nova configurao vida comunitria. A ascenso do governante-sacerdote faz tambm ascender o espao destinado ao culto e ao exerccio do poder. Palcio ou templo a cidadela refletiu a imagem do poder, uma funo que precedeu a todas as outras, quando o rei tornou-se mediador entre os deuses e os homens. Talvez resida aqui, nesta exata passagem histrica, as foras necessrias ao estabelecimento do universo urbano, a mola propulsora responsvel pelo salto da aldeia cidade, talvez aqui tenha se estabelecido a condio necessria ao desenvolvimento da maior e mais complexa obra do homem criada pela histria: a cidade. A juno do poder da realeza com o poder divino era a condio que faltava para instituio do controle absoluto sobre os homens. O poder originado pela unio dessas duas grandes foras foi, sem dvida, o dnamo que impulsionou os novos empreendimentos da civilizao. Assim, tanto a realeza como o clero tiveram suas funes e seus poderes ampliados, bem como um local para exerc-los, pois agora no apenas os reis, mas tambm os sacerdotes desfrutavam de majestosos palcios e templos, estabelecendo-se, desta forma, todo um sistema rgido de estratificao social para sua manuteno (MUMFORD, 2004:40-43).

29 A magnitude dos templos elevou os olhares ao cu, construiu uma crena no sobrenatural e exaltou de tal forma as possibilidades humanas que aqueles que da cidade se apossaram, por um ato deliberado de vontade, se puseram a domin-la continuamente. Mais do que ampliar suas dimenses geogrficas ou demogrficas, a transformao da aldeia em cidade revela uma mudana de direo e finalidade, aonde a vida urbana impeliu uma indita forma de organizao social e com ela um processo evolutivo sem precedentes. As experincias vivenciadas pelas primeiras civilizaes de que se tm notcias, egpcia e mesopotmica, influenciaram a composio das sociedades clssicas estabelecidas na Grcia e em Roma, onde as vrias geraes satisfizeram o desejo de imortalidade deixando s geraes posteriores seus ideais materializados sob formas variadas: pinturas em paredes, esttuas, inscries em templos, palcios adornados, enfim, as cidades tornaram-se uma representao do cu, nas quais o inconsciente coletivo era representado em pedra ou metal, em forma de homens-animais, deuses e reis. Pela leitura feita sobre o desenvolvimento da cidade, observa-se no existir um padro entre o neoltico e a Antiguidade tardia. Desta maneira, as concepes espaciais das cidades se caracterizaram pela diversidade do ordenamento das construes pblico-religiosas e particulares, definidos pela civilizao que a habitava. A situao viria a se alterar com o aparecimento das cidades gregas e romanas.

1.2 O lcus da cidadaniaA exploso urbana ocorrida inicialmente nos vales dos Rios Nilo e Eufrates, conseguiu vencer as ilhas rochosas do mar Egeu. De cidade fortificada, a cidade grega alcanou, no sculo V a.C, estgio de desenvolvimento na qual as instalaes urbanas conseguiam associar vrios elementos scio-espaciais dando-lhe carter universal, menos rgido e mais livre, contrapondo-se cidade at ento conhecida. Pelo testemunho de Pausnias, os gregos antigos entendiam que o sistema da Polis pressupunha uma determinada paisagem urbana. Construes que evidenciassem e destacassem a presena da autoridade pblica; que fornecessem ambientes para a disseminao e circulao dos valores confirmadores de uma dada identidade cultural tanto para o conjunto dos cidados como para grupos sociais especficos.

30 Moses Finley (1963:47-49) define a palavra Polis, origem de termos como poltico, a partir de seu significado clssico como: [...] estado que se governa a si mesmo. O mesmo autor explica que diferentemente do conceito de cidade como local definido geograficamente, a Polis Grega, apesar de ocupar um espao definido, era constituda pela reunio de pessoas, condio necessria para a prtica do auto-governo que prevalecia em Atenas. H muito se sabe que os gregos romperam com um passado tribal, geralmente por meio de violentos e numerosos conflitos, e empenharam-se em derrubar as instituies da realeza, por volta do sculo VI a.C.. Na esteira da histria, a civilizao da Hlade vivenciou em processo que resultou na produo do milagre grego, expresso utilizada para designar um conjunto de invenes institucionais, literrias, artsticas e cientficas que acabou exercendo forte influncia sobre o pensamento moderno. Talvez a maior contribuio advinda desse conjunto de invenes seja a prpria Polis, forma poltica original com a participao dos cidados na defesa e gesto dos assuntos comuns da cidade, bem como as instncias de deciso coletiva e a tarefa de mediao e arbitragem dos conflitos e suas respectivas penas.A Lei como princpio da organizao poltica e social concebida como texto pblico, elaborado por um ou mais homens guiados pela reflexo, aceita por aqueles que sero a eles sujeitos, objeto de um respeito que no exclui modificaes minuciosamente controladas, tal provavelmente a inveno mais conhecida da Grcia Clssica; ela que d sua alma Cidade, seja ela democrtica, oligrquica ou real (PISIER, 2004:04).

Esta ambincia constituiu uma nova cultura urbana. O fenmeno grego, de natureza multifacetada com rebatimentos nos vrios aspectos do processo de convivncia das comunidades humanas, mesmo possuindo feies prprias, constituiu-se como referncia tanto nos costumes como na paisagem de outros contextos, materializando em outros espaos urbanos feies da vida na sociedade helnica. Para os gregos a instituio e o ordenamento do territrio urbano no eram os nicos pr-requisitos constituio de uma cidade, a poltica e as mais variadas formas de relaes sociais, num movimento de profcuo dilogo scioespacial, influenciavam a forma de uso e ocupao dos espaos. A gnese da cidade grega vinculava-se ocupao estratgica de uma colina por uma questo de segurana onde abrigava a acrpole e a cidadela, porm na cidade baixa, parte integrante e indissocivel do seu conjunto, que ocorriam as relaes polticas, sociais e econmicas. Os limites geogrficos de seu territrio eram barreiras montanhosas e a ligao com o mundo exterior se realizava por via martima. Este fato depositava no porto um papel de grande destaque no processo de intercmbio comercial e cultural ao despachar e acolher os fluxos de

31 pessoas e mercadorias tornando-se um importante elemento na desconstruo da vocao hermtica da cidade-fortaleza, ao colocar o universo do alm mar sua porta. Portanto, justificvel ter sido em Atenas a cidade onde se formou a concepo urbanstica da antiguidade clssica.Hipdomos de Mileto, filho de Eurifron, foi o primeiro que, sem ter participado de modo algum na administrao dos negcios pblicos, realizou a tarefa de escrever a respeito da melhor forma de governo. Inventou a arte de traar diversos quarteires, em uma cidade, para demarcar-lhe as divises, e cortou o Pireu em diferentes sees. [...] Constitua-se de dez mil cidados a sua Repblica, e dividia-se em trs classes: uma de artesos, outra de lavradores, a terceira dos guerreiros, sendo que apenas estes tinham armas. Dividia, do mesmo modo, o territrio em trs partes: as terras sacras, as terras pblicas e as terras particulares (ARISTTELES, 2002:56-57).

Marshall (2000:121) observa que mesmo se tratando da fase inicial de desenvolvimento do urbanismo, houve a preocupao de criar formas de melhorar o ambiente citadino, empregando projetos voltados ao ordenamento da urbe como [...] lugar do corpo sadio, imprio da razo disciplinadora. Assim, o marco inicial do urbanismo clssico pode ser identificado no Plano Hipodmico, de Hipdomos de Mileto, que previa a reestruturao do Porto de Atenas atravs da adoo da norma ortogonal, onde as ruas e as construes seguiam em forma de grade. O advento da condio urbana, como modus vivendi, inaugura uma tradio que se estabeleceu como base da nossa cultura e ps nas relaes sociais a centralidade antes exercida pelos deuses. Vrios so os espaos que abrigavam a comunidade citadina, necessrios ao seu funcionamento: o Pritaneu, edifcio pblico onde os cidados ilustres se reuniam para as refeies, receber estrangeiros e ofertar sacrifcios ao deus protetor da cidade; o Buleutrion, espao que abrigava o bul, ou seja, a Assemblia dos Cidados; a gora, que designava tanto a assemblia dos cidados como a praa do mercado relacionada s atividades econmicas e sociais tpicas da vida urbana, alm de ser o lugar de reunio, debate e deliberao coletiva. A gora talvez seja o espao que, na antiguidade clssica, melhor incorporava a idia de lugar constitudo e constituinte das relaes sociais, tanto que inicialmente ela designava o ato de se reunir, refletir e debater sobre assuntos comuns passando a representar, concomitantemente, um espao livre de edificaes, delimitado por mercados e feiras, assim como por edifcios de carter pblico. Portanto, a gora manifestava-se como expresso mxima da esfera coletiva na urbanstica grega, sendo o espao pblico por excelncia. nela que o cidado grego

32 convivia com o outro, onde ocorriam as discusses polticas e os tribunais populares, portanto o espao da cidadania. O processo de concentrao de riqueza experimentado, especialmente por Atenas, em funo do comrcio martimo e do crescimento demogrfico, talvez tenha sido a razo pela qual a palavra gora tenha agregado um novo sentido, quando esta passou a abrigar atividades mais ligadas s funes econmicas do que polticas. Isto no implicou em uso exclusivo de uma ou outra funo, mas uma supremacia da praa de mercado sobre a assemblia. Assim, a profuso de artesos e comerciantes na gora no ocasionou a perda de sua significncia poltica, mas, aos olhos de atentos observadores da tradio clssica, a poluiu. As novas atividades desenvolvidas na cidade e, principalmente, na gora ou praa, como espao urbano de uso mltiplo, mesclando prticas polticas com prticas de mercado, podem ser observadas, nos relatos de Aristteles (2002), como a causa da degradao e da decadncia da tradio poltica clssica. Que, por sua vez, ir propor como soluo degenerao poltica em Atenas, uma gora livre dos elementos denotativos do mundo do trabalho, por meio da reorganizao do espao urbano. conveniente que os edifcios dedicados ao culto das divindades e aqueles reservados para os banquetes pblicos dos primeiros juzes sejam agrupados num local apropriado a sua finalidade, a no ser que a lei dos sacrifcios ou o orculo de Ptia no indique um local especial e determinado. Tal local deve ser suficientemente visvel a fim de que a majestade dos deuses possa nele manifestar-se, e bem fortificado a fim de que nada possa temer de parte das cidades vizinhas. ainda de toda convenincia que abaixo desse local se ache a praa pblica, feita igual quela da Tesslia, que se chama a Praa da Liberdade (ou gora Livre). Tal praa ser desimpedida de tudo o que se vende ou compra: os artesos, os agricultores e os que desempenham profisses desse tipo no devero dela se acercar, a menos que os chamem os magistrados. Ela no deixar de oferecer um espetculo agradvel, se as salas de exerccios dos homens de idade nela forem construdas. Efetivamente, conveniente que os exerccios mesmos sejam separados de acordo com a idade, que alguns magistrados vigiem incessantemente as salas dos jovens, e que os ancios possam ser admitidos na dos juzes. A presena e as vistas dos juzes inspiram a real modstia e a reserva conveniente aos homens livres. A praa que vai servir de mercado para os produtos de toda espcie deve ser separada da Praa da Liberdade, e colocada de tal modo que seja fcil para ela levar tudo o que chega por mar e as mercadorias do pas. [...] desejamos que a praa localizada na cidade alta seja dedicada ao descanso e que o mercado atenda a todas as transaes entre os particulares (ARISTTELES, 2002:139, Grifo nosso).

Grosso modo, o pensamento aristotlico pe em evidencia, ou quem sabe inaugura, uma idia que ser absorvida e, muito frequentemente, posta em prtica pelos sistemas de planejamento urbano do mundo ocidental, idia fundamentada na seguinte premissa: [...] desde que as caractersticas distintivas do espao urbano conformam os modos de exerccio de cidadania, a

33 reordenao do espao da polis requisito indispensvel para a reordenao da poltica (MAGALHES, 2005:45). Assim, a alternativa apresentada por Aristteles, para a recuperao do exerccio da cidadania e da virtude perdida no desempenho das atividades polticas era o reordenamento da cidade. Tanto que, com o amadurecimento do fazer democrtico, as assemblias peridicas em Atenas passaram a ocorrer na colina de Pnyx, um novo ambiente para o desempenho das funes democrticas e o exerccio da cidadania, muito embora a gora mantivesse o seu carter inalterado, com o Buleutrion e o Pritaneu. A idia de que a cidade no era apenas o resultado puro e simples de um aglomerado humano com suas edificaes, agradava a gregos e romanos. Os espaos comuns, destinados a vida coletiva, representados pelas edificaes oficiais, praas, santurios, locais de reunies, mercados, dentre outros, juntamente com a crena de ser o solo citadino um ambiente sagrado, alimentavam essa convico.

1.3 sombra da Pax RomanaA concepo romana de cidade, apesar de agregar muito das civilizaes conquistadas por este imprio, apresenta especificidades que merecem destaque. Em sua tentativa de mostrar as relaes entre ritos religiosos e a fundao das cidades romanas, Joseph Rykwert (2006) argumenta que na antiguidade aceitava-se a idia de que todas as coisas possuam outro significado alm do prprio, ou seja, no caso das cidades, havia a possibilidade de alguma coisa subjacente forma e funo. De maneira bem direta, o referido autor afirma que ao traado urbano de uma cidade havia uma correspondncia com cerimoniais elaborados, cujas aes utilizadas em sua fundao constituam um modelo conceitual. A lendria explicao sobre a fundao de Roma provavelmente se trata da narrativa mais difundida acerca da fundao de uma cidade: o assassinato de Remo, praticado por seu irmo Rmulo, motivado por ter cometido o sacrilgio de saltar sobre um lugar sagrado e inviolvel, o fosso demarcatrio das futuras muralhas da cidade. Uma lenda forte e significativa a povoar o imaginrio de fundao das cidades, um fratricdio. Alguns autores vem correspondncia da lenda de fundao de Roma com o ato de mesma monta cometido na inaugurao da vida em sociedade, a morte de Caim, o fratricdio mais famoso da histria.

34 Correspondncia ou no, impossvel ignorar que a construo cultural sobre a idia de cidade e vida coletiva, considera serem os termos praticamente sinnimos. Seja por um ato cruel e/ou sagrado, a consagrao do urbano, mesmo em tempos remotos, transmite a idia da complexidade de se viver em sociedade, graas a dificuldade que envolve as relaes humanas. Roma antiga no se constituiu pela simples vontade dos seus mltiplos deuses, as culturas etrusca e helnica muito tm a nos contar sobre esta civilizao, que ao longo da histria tantas outras influenciou, em especial os novos modelos de organizao do espao urbano. O poderio militar proporcionou a conquista de novos territrios, mas foi utilizando o urbanismo como instrumento poltico que o imprio assegurou a romanizao das novas ocupaes. Em outros termos, a expanso do Imprio Romano se fez pela conquista, mas tambm pela submisso, em um smbolo da onipresena do sistema poltico, social e religioso que emanava do poder central, coadunando com o conjunto de costumes e traos culturais difundido s mais distantes terras conquistadas.Neste aspecto, as cidades romanas e, muito particularmente, as que foram fundadas especificamente por cidados romanos separados da metrpole e s quais se d o nome de colnias so uma imagem de Roma. Reproduzem to fielmente quanto possvel as instituies, os monumentos, os cultos da cidade-me, a Urbs, a Cidade por excelncia, e encontramos em toda a parte, nos locais mais remotos das provncias mais longnquas, as caractersticas essenciais da capital (GRIMAL, 2003:11).

Era comum s cidades conquistadas a manuteno de um razovel grau de autonomia no que diz respeito as suas tradies e costumes, at porque [...] em Roma, todas as raas se associavam e se misturavam: h latinos, troianos, gregos e, dentre em pouco, houve tambm sabinos e etruscos (COULANGES, 1971:439). No entanto, com o desenrolar da nova ordem, a aculturao tornava-se praticamente inevitvel de forma que a remodelao urbana das provncias era desenvolvida imagem e semelhana da cidade-me, tornando o urbanismo um instrumento capaz de transformar a cidade em uma realidade bastante concreta. Monumentos com a dupla funo, de alimentar o esprito cvico e exprimir o prestgio da cidade; rede de infra-estruturas das mais diversas, necessrias ao suporte das aglomeraes humanas; obras sanitrias propcias ao conforto e sociabilidade; anfiteatros para jogos e espetculos; frum, praa e mercado com seus pitorescos edifcios para o exerccio da religio oficial, das assemblias polticas e dos negcios; enfim, uma srie de espaos construdos para atender s mais variadas prticas

35 cotidianas necessrias ao convvio social imposto pela condio de vida urbana dos romanos. Desta forma, realizar o exerccio de pensar na antiga cidade de Roma no h como deixar de se reportar ao imprio, do qual esta se tornara sede. E pensar no Imprio Romano, no h como se esquivar daquela que fora sua mais forte caracterstica: uma grande construtora de cidades.Durante os sculos III e II a.C., Roma deixou suas marcas numa srie de novas colnias destinadas a emigrantes romanos e regionais. Das doze cidades originais da Toscana e das trinta cidades do Lcio, o Estado romano, no perodo de Augusto, tinha semeado mais trezentas e cinqenta cidades na Itlia peninsular e outras oitenta na Itlia setentrional (MUMFORD, 2004:230).

A ao expansionista do Imprio Romano e a criao de novas cidades imagem e semelhana da cidade-me, alm de compor a estratgia de romanizao dos novos territrios, fora uma realizao social das mais valiosas que Roma pde ter feito a si mesma. Com exceo de poucos equipamentos, as novas cidades eram edificadas de forma padronizada, ou seja, um conjunto urbano-arquitetnico presente em todas as colnias que em quase nada ficava devendo capital a no ser nas dimenses do tecido urbano. Parecia haver um planejamento quanto limitao de suas populaes e essa regulao demogrfica favorecia a uma relativa auto-suficincia e um equilbrio rural-urbano. Esses fatores de boa qualidade urbana nas novas cidades s tinham a contribuir com a harmonia tambm da matriz do imprio, que conseguia manter certo controle sobre a presso de demanda, o que no ocorreria se a expanso se desse continuamente nos arrabaldes de Roma. O advento da expanso dos domnios territoriais do imprio fez com que os romanos elaborassem uma doutrina urbanstica uniforme para sua rede de cidades, uma vez que o grande nmero de localidades e a baixa qualificao dos primeiros ocupantes, geralmente soldados, no favoreciam inovaes. Aps a conquista de territrios alheios e, mais especificamente na fundao de novas cidades, era necessrio planejar o assentamento, detalhar suas funes e seu ordenamento, articular os vrios equipamentos com as localizaes mais adequadas, mas nem sempre o tempo tcnico necessrio coincidia com o tempo poltico exigido, o que forava a realizao praticamente paralela do planejamento e da edificao das cidades: [...] assim os fundadores romanos contentavam-se em aplicar um plano simples, sempre o mesmo, e que tinha o mrito de ser facilmente compreensvel (GRIMAL, 2003:17). As cidades eram planejadas como simples unidades, com quarteires de aproximadamente setenta e cinco metros de cada lado, com amplos espaos livres e edificaes pblicas que se

36 localizavam no incio das principais vias. No sculo I a.C. essas vias sofreram com o congestionamento de trfego, chegando a serem temas de regulamentos municipais tanto em Roma como nas provncias. Um plano simples, sempre repetido e de fcil compreenso derramava seus efeitos colaterais sobre a cidade. A urbanstica de tabuleiro de xadrez parece no ter evoludo com as novas conquistas e com a experincia em se construir centenas de cidades, ou mesmo a engenharia romana de posse dos problemas de trfego apresentado por Roma e propagado s provncias no conseguiu san-los ou resolv-los a contento.[...] as estradas que cortavam o campo, levaram o grosso do trfego a um ponto de encontro do centro da cidade, em vez de tocar a rede de ruas numa tangente nos arrabaldes ou de pelo menos formar uma grande praa vazia, livre do trfego, perto do centro, a um lado da avenida. Assim, o antiquado cruzamento do centro produziu uma quantidade mxima de desnecessrio congestionamento. E, embora a cidade pudesse ser dividida em vici vizinhana ou bairros, com seus prprios centro ou mercados menores , nada havia na prpria rede de ruas que servisse para identificar essa unidade ou tornar mais coesiva a sua vida (MUMFORD, 2004:233-234).

A problemtica levantada por Lewis Mumford refora a tese de uma fragilidade conceitual romana no planejamento de suas cidades, com o traado urbanstico baseado em figuras geomtricas de fcil assimilao como o retngulo e o quadrado, que prevaleceram entre as formas adotadas para projetar as cidades. Por sua vez, as figuras geomtricas eram cruzadas por duas retas perpendiculares entre si e sobre os medianos das laterais do quadrado ou do retngulo. Ao eixo norte-sul, os romanos denominaram cardo, ao eixo situado na direo leste-oeste, recebeu o nome de decumanus, que viera a constituir o antiquado cruzamento do centro citado acima por Mumford. O imprio fez questo de mostrar toda sua pujana corporificando-a nos elementos de um grande conjunto urbanstico, implantado no centro daquela que se tornaria uma cidadereferncia elementos que transbordaram os limites do seu tempo. Assim, edificaes monumentais foram erguidas: um conjunto de Fruns comunicantes entre si, englobando praas que traziam no centro um templo consagrado divindade reverenciada pelo prncipe promotor; circunscrevendo as praas colunatas a oferecer abrigo e elegncia aos logradouros; adaptao de vrios prdios destinados s reunies, leituras e servios oficiais; tudo isso em escala gigantesca. Conforme relata Pierre Grimal (2003:49), com esse novo ritmo de intervenes urbansticas [...] tratou-se de liberar o centro de Roma e criar vastos espaos para passeio, negcios e lazer [...], recuperando, dessa maneira, o atraso em relao a vrias outras cidades. Conclui Grimal que: Roma tinha-se verdadeiramente se transformado na rainha das cidades,

37 podendo servir de modelo s inmeras cidades provinciais que prosperavam no ocidente ao abrigo da Pax Romana. Roma se desenvolvia como uma cidade aberta que se expande sobre um territrio cada vez maior. Os muros erguidos por Marco Aurlio circunscreviam apenas o ncleo central da cidade que, por volta do sculo III, contava com cerca de 1 milho de habitantes exibindo uma imponncia de verdadeira capital de um imprio que dominava todo o Mediterrneo e, provavelmente, era a maior e mais populosa cidade do mundo j construda at o sculo XIX (BENEVOLO, 2005:163-175). Para fazer a estrutura urbana funcionar, com uma populao cada vez maior, no foram poucos os instrumentos e recursos tcnicos necessrios. Alm da organizao, do grande esforo e do trabalho coletivo, a cidade necessitava da estabilidade poltica do imprio para prover os meios sua existncia. Desastres involuntrios, invases inimigas e pestes acarretaram fortes perodos de desabastecimento, insegurana e disperso da populao urbana para os campos. Foi o princpio do fim. Como bem frisou Mumford (2004:266), [...] caiu o imprio, mas Roma continua em ns. Lngua, direito, organizao militar e famlia, mesmo nos dias atuais carregam razes romanas. A queda foi inevitvel, porm, no imaginrio coletivo, permaneceu a fora de uma cidade que imprimiu no tempo e no espao todas as efmeras glrias deste mundo. Pela anlise feita quanto ao desenvolvimento da cidade durante ao Perodo Clssico e, coadunando com Marshall (2000:116), tem-se que:Polis e Oikos, Urbes e Villa, Civis e Domus, cidade e morada, esto entre os produtos fundamentais da experincia de gregos e romanos antigos, transmitidos como conceitos e como cdigos culturais desde a Antiguidade aos tempos atuais, inclusive por meio de teorias, de plantas e pinturas e tambm dos vrios projetos polticos inerentes da cidade.

No entanto, a cidade romana foi a que mais transmitiu sua condio urbana prevalecendo, na atualidade, a influencia do Estatuto do Imprio Romano que previa a ordem dos espaos e suas ocupaes sempre associadas a estrutura do poder poltico, que se relacionava com a expanso do Imprio (GOMES, 2002). Tomando como referncia o prprio Direto Romano, a cidade passa a ser pensada, de forma racional, com base na lei escrita:

38A lei se exprime pela forma como as coisas so organizadas e distribudas no territrio segundo uma carncia formal que lgica e deve atender a preceitos estabelecidos pela idia geral, e um tanto quanto vaga de equilbrio entre o bem comum e as liberdades individuais (GOMES, 2002:32).

O Direito Romano sobreviveu ao prprio imprio que o criou passando a influenciar as naes modernas, que se inspiraram nos Cdices Romanos ao redigirem suas leis, muitas vezes voltadas para o ordenamento dos espaos territoriais. A incluso e ordenamento de espaos e pessoas, como ocorreram em Roma, acaba por diferenciar essa cidade clssica da Polis Grega, definida pelo sistema poltico e o posicionamento do cidado dentro desse sistema. Portanto, a trajetria dos grandes imprios pode ser tratada a partir da formao, apogeu e declnio, o Romano no foge a regra. A decadncia do Imprio Romano, durante o sculo V, contribuiu para que as cidades deixassem de ser o centro das relaes humanas. No perodo subseqente, mesmo continuando a existir, as cidades ganharam novos contornos e foram adaptadas as necessidades medievais por uma questo de segurana.

1.4 Definida pela muralhaA queda do Imprio Romano, sob os efeitos da crise poltica e econmica, desestruturou suas cidades levando-as runa com a desintegrao de suas redes de produo e sociabilidades, pulverizou pelos campos seus habitantes em busca de sustento e redeno. O cristo, herdeiro dos escombros de um mundo pago, passou a reconstruir novo tecido e novo lao cvico que viriam a se constituir em outro padro de urbanidade desencadeando, na longa durao, um movimento intenso e quase invisvel que redesenhou o modelo de cidade medieval. Muito embora as cidades nunca tenham deixado de existir no Perodo Medieval, as estruturas urbanas no se constituam como o cenrio principal das relaes sociais e, em determinados aspectos, tenderam ao declnio. Com a decadncia do Imprio Romano, no sculo V, e o gradual povoamento do ocidente pelos invasores germnicos, a centralidade polticoadministrativa deixa de existir, propiciando o surgimento de arranjos urbanos descentralizados e submetidos demanda dos ncleos feudais. Entretanto, Roma como erroneamente pode parecer, no deixou de existir, nem as cidades conquistadas e colonizadas pereceram de forma tal tornando-se inviveis e inabitveis abruptamente. Trata-se de um processo lento e gradual que inibiu o desenvolvimento das cidades durante o perodo subseqente ao declnio do ltimo grande imprio da Antiguidade

39 Clssica, ou seja, o romano. As populaes reduziram-se transformando o ambiente citadino, quando muito, em local de passagem. As cidades ficaram cada vez mais vulnerveis s invases e a vida sujeita a todo tipo de agresses as quais ficavam cada vez mais difcil de serem evitadas. Com a produo sofrendo constantes quedas e as freqentes ameaas de exrcitos invasores, no restavam muitas alternativas populao seno a fuga para as montanhas ou lugares menos turbulentos como os mosteiros, locais que ofereciam proteo e alguma estabilidade frente s incertezas daquele contexto.Na realidade, o mosteiro era uma espcie de plis: uma associao, ou melhor, uma ntima fraternidade de pessoas que pensavam da mesma forma, no reunidas apenas para cerimnias ocasionais, mas para permanente coabitao, nem esforo para conseguir na terra uma vida crist, dirigida exclusivamente, com unicidade de esprito para o servio de Deus. [...] A colnia monstica tornou-se, na realidade, uma nova cidadela: um ponto religioso de apoio, que impedia que a retirada geral se encaminhasse por uma s estrada. Era, porm, uma cidadela da alma e seu palcio era a Abadia. (MUMFORD, 2004:270).

O declnio populacional, provocado pela fome, pela doena, ou pela queda do ndice de natalidade, reduziu as populaes urbanas e as cidades no tiveram como manter o dinamismo por meio de seus centros de produo e comrcio. A cultura crist em ascenso, surgida nessas circunstncias, s tomou forma urbana por volta do sculo XI, no entanto, a vida na igreja e nos monastrios j revelava as necessidades de uma era de inquietao com nfase no recinto fechado, na necessidade de proteo e segurana, no perene e no contnuo. Tudo leva a crer que essa necessidade de segurana superava todas as demais, constituindo-se numa obsesso urbana. Assim, essa forte e permanente necessidade fez com que se reconstitusse um antigo instrumento de amparo urbano, a velha e conhecida muralha: Na verdade, foi to bem sucedido esse modo renovado de conseguir segurana que, por volta do sculo X, o mosteiro de Saint-Omer tinha-se tornado uma cidade (MUMFORT, 2004:274). Definida pela muralha, a cidade medieval se constituiu pela mutao de ncleos dominados por uma autoridade eclesistica ou por um leigo, que governavam de seu palcio episcopal ou de seu castelo. A lenta e progressiva reunio desses burgos permitiu a evoluo urbana do ncleo primitivo da cidade que expandiu suas fronteiras sobre certa poro do territrio ao redor, o que, concomitantemente, proporcionou seu crescimento, ampliao da base tributria e, quem sabe, tenha criado uma primeira noo de subrbio. certo que j existiam em Roma os arrabaldes, por exemplo, os arrabaldes dos marinheiros, da plebe, como a malafamada Suburre; mas a unidade contempornea entre cidade e subrbio, to interdependentes, data da Idade Mdia (LE GOLF, 1998:17).

40 Nesse sentido, a cidade revelou-se tambm espao de excluso, propcio ao desenvolvimento da pobreza e da marginalidade para aqueles que no conseguiam integrar-se ao novo sistema hierrquico constitudo. Outros segmentos, que de certa forma j se encontravam integrados socialmente, desejavam algo diferente daquilo que o sistema feudal podia apresentar. Conseqentemente, setores ligados s atividades comerciais e artesanais pretendiam ver garantidas melhores condies para o desenvolvimento de suas atividades econmicas forjando, assim, o movimento comunal, que se ps em defesa das liberdades e das aspiraes do mercado, consolidando a fora da burguesia.O movimento, portanto, rene um certo nmero de pessoas diversas que, tendo arrancado o poder dos senhores, conservam-no coletivamente e formam um grupo que toma o nome de burgueses, podendo tambm estes virem desses burgos, esses subrbios que representam as novas formas de moradia e de organizao da cidade. A denominao comuna surge quando existe a outorga, pelo senhor, de uma carta de liberdades e de privilgios: ela consagra o reconhecimento de uma forma indita de organizao coletiva (LE GOFF, 1998:98).

No tocante aos aspectos da dominao poltica na cidade, George Duby (1993) ressalta ser preciso considerar primeiro que o crescimento dos centros urbanos est relacionado com as cortes dos grandes senhores, havendo, portanto, uma ligao entre a vitalidade urbana e o poder senhorial. Ou seja, a cidade se define como um domnio que pertence a um ou vrios senhores, representando um enclave territorial perante o mundo rural. Esses senhores concedem ou outorgam parte de seus direitos s comunidades urbanas ascendentes. Contudo, essa concesso nem sempre foi acompanhada pela aceitao geral dos citadinos, de forma que grande parcela dos direitos teve de ser arrancada fora. Concesso ou conquista, aes aparentemente conflitantes, mas geradoras das garantias de segurana numa cidade fortificada, ao mesmo tempo em que ajudaram a revigorar as rodas de comrcio, quando o seu desenvolvimento exigiu a expanso de novas fronteiras urbanas. O comrcio, o acmulo de capital, a produo manufatureira, enfim, todos esses fatores reunidos auxiliaram para que as cidades retomassem o curso do desenvolvimento urbano. De acordo com a anlise de Perry Anderson (1989), a histria do apogeu das cidades medievais est relacionada com o progresso da civilizao material, fruto da produo de excedentes agrcola e da evoluo demogrfica assistida na Europa ocidental partir do sculo X. Durante o referido perodo, as cidades voltaram a apresentar-se de forma consolidada, sob uma nova dinmica de crescimento, em nmero considervel e com um tambm considervel grau de prosperidade que as conduziram a um nvel de supremacia em relao ao mundo rural.

41 As evidncias levam em conta uma srie de fatores causais da nova ordem, como por exemplo, a estabilizao dos ltimos povos invasores, as inovaes tecnolgicas na agricultura e a manuteno do comrcio internacional realizado pelas cidades martimas. Desta forma, aps o ano 1.000, o crescimento econmico na Europa incrementa e impulsiona a expanso urbana. Essa expanso, situada entre 1150 e 1330, pode ser acompanhada atravs de alguns indicadores. O aumento do contingente demogrfico, descrito por Rossiaud (1981:99), expem ser fruto de um processo pr-industrial, que alteraria todo o panorama do medievo, abrindo caminho para a consolidao das naes europias que nele surgiram:Por volta de 1250, a rede urbana da Europa pr-industrial j estava traada: Paris era uma das maiores cidades, com cerca de 200.000 habitantes, as metrpoles italianas contavam com o contingente populacional que variava de 60.000 a 150.000 habitantes. Centenas de pequenas cidades cobriam o mapa da Europa, com uma populao que variava de 1.000 a 10.000 habitantes.

A crescente populao urbana exigia a expanso territorial da cidade na mesma escala. Quanto ao aumento da superfcie, Bonnassi (1985:53) descreve ter possibilitado a ampliao das cidades existentes e o surgimento de outras, na medida em que [...] algumas cidades, como Bordus, possuam de 30 a 170 hectares, outras ampliavam a construo de sucessivas muralhas e havia ainda a criao de cidades novas, tais como Villeneuve e Neuville. O terceiro indicador que propiciou a retomada do crescimento das cidades, na Europa Ocidental, a partir do sculo X, refere-se ao desenvolvimento do aparelho urbano que, segundo Le Goff (1998:64), significou:Alm da importncia das feiras e do comrcio, que conferiam cidade sua funo econmica, merece destaque a funo religiosa, exercida pelas ordens mendicantes; a funo cultural das escolas e universidades e a funo poltica, onde se percebe as lutas pelo domnio do poder nas cidades.

A fundao das cidades novas e o desenvolvimento das cidades-Estado foram interrompidos em meados do sculo XIV por uma srie de doenas, em especial a peste disseminada entre os anos de 1348 e 1349, tendo como conseqncia a queda demogrfica. Independente desta intercorrncia, j no sculo XIII, a estrutura principal da cidade medieval se encontrava bastante consolidada, porm no mais assume a forma esttica adquirida na Alta Idade Mdia. A muralha, que mantinha a cidade protegida do mundo exterior, se expande sobre os arrabaldes de forma concntrica e irregular. Quanto a dinmica da populao, a dicotomia centro e periferia definia os estamentos da sociedade a partir dos espaos urbanos ocupados por ricos e pobres. O centro da cidade era o espao de concentrao por excelncia e ali se

42 encontrava uma rede qualificada de infra-estrutura e intervenes arquitetnicas: palcios, catedrais e mercados. Outro aspecto era a existncia de uma rede de vias irregulares, porm organizadas de tal maneira a constituir um conjunto urbanstico coerente de bairro e cidade, por meio da hierarquizao de ruas em principais e secundrias. As casas e ruas eram guardadas por torres que tinham dupla funo: exprimir segurana e opulncia. Destaca-se tambm que as cidades de maior porte apresentavam espaos pblicos com estruturas complexas a abrigar a sede de diversos poderes, em mais de uma rea central de carter governamental, religioso, coorporativo ou comercial. Pela anlise das caractersticas constata-se a existncia de uma preocupao quanto ao ordenamento urbano, que previa a diviso dos espaos pblicos e privados, com traados de ruas e bairros. Este conjunto de caractersticas morfolgicas, ao contrrio do que possa parecer, conseguiu gerar um padro construtivo coerente, com unidade esttica e difundir-se por toda Europa na segunda metade do sculo XII. O estilo gtico tanto ficou reconhecido como linguagem internacional que mereceu do pai da arquitetura moderna esta singela homenagem:Quando as catedrais eram brancas a Europa havia organizado as atividades produtivas segundo as exigncias imperativas de uma tcnica nova, prodigiosa, loucamente temerria, cujo emprego conduzia a sistemas de formas inesperadas formas com um esprito que desdenhava as regras de mil anos de tradio, e no hesitava em projetar a civilizao numa aventura desconhecida. Uma lngua internacional favorecia a troca de idias, um estilo internacional era difundido do Ocidente para o Oriente, do Norte para o Sul [...]. As catedrais eram brancas porque eram novas. As cidades eram novas: eram construdas de todas as medidas, ordenadas, regulares, geomtricas, segundo um plano [...]. Sobre todas as cidades e todos os burgos cercados de novos muros, o arranha-cu de Deus dominava a paisagem. Tinha sido feito mais alto do que se podia, extraordinariamente alto. Era uma desproporo no conjunto; mas no, era um ato de otimismo, um gesto de altivez, uma prova de maestria. O novo mundo comeava. Branco, lmpido, jovial polido, ntido e sem retornos, o novo mundo se abria como uma flor nas runas. Tinham sido deixados para trs todos os usos reconhecidos, tinha-se dado as costas ao passado. Em cem anos o prodgio foi levado a termo, e a Europa foi mudada (LE CORBUSIER, 1963:17-18, traduo livre).

Portanto, a partir do sculo XII, transforma-se a configurao da cidade medieval sobre modificaes em termos espaciais e populacionais, mesmo com a preservao de alguns aspectos histrico-culturais dos sculos anteriores.A nova cidade medieval, portanto, fez-se principalmente a partir de uma implantao anterior, cidade galo-romana, mosteiro da Alta Idade Mdia, castrum do comeo do feudalismo, entre o sculo IX e X. A histria muda, mas faz-se sempre no mesmo local. Da as iluses da continuidade (LE GOFF, 1992:33).

43 A centralidade administrativa, religiosa, econmica e das demais relaes sociais, retorna ao ambiente urbano, que se apresenta como um [...] teatro especifico de uma vida de relaes, que lentamente se distingue daquela que talha as sociedades rurais (MENJOT; BOUCHERON, 2005:18). Assim, a concepo de um mundo urbano, para a Idade Mdia, pode ser tratada atravs da identificao de perodos distintos. A muralha, representao que mais distingue a cidade medieval das demais surge como sinnimo de defesa contra a ameaa eminente de invaso e subjugao que se apresentavam naquele contexto de instabilidade e crises. A partir do sculo XII, a trajetria das cidades da Europa Ocidental, retoma seu curso desenvolvimentista, que prossegue at a chegada da modernidade e o surgimento do smbolo de urbanizao que seria perseguido pelas demais naes espalhadas por diferentes continentes. Durante o perodo que se estendeu entre o fim da Idade Mdia at o sculo XV as unificaes e reestruturaes dos estados-nao europeus concentraram as foras dos diversos pases desse continente. Aqueles que, como Portugal e Espanha, conseguiram atingir a centralidade poltica passaram a canalizar seus empreendimentos na poltica expansionista com a fundao de colnias na frica e nas Amricas. Frana e Inglaterra, envolvidas em conflitos internos e externos, foram coadjuvantes durante o Perodo Colonial, o que exigiu dessas naes alternativas falta de colnias. Na conjuntura do Perodo Moderno, as colnias do Novo Mundo passaram a ser os principais produtores e fornecedores de alimentos para a Europa, alm de criar condies para os investimentos em outros setores da sociedade europia, o que propiciou o desenvolvimento urbano desse continente. O espao urbano sobrepe-se ao rural, e a trajetria seguinte exps a formao de um modelo a ser seguido mesmo no perodo subseqente.

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1.5 PARIS: capital mundial do sculo XIXAo que denominamos cidade moderna , de certa forma, uma derivao dos mais importantes acontecimentos scio-econmicos e poltico-culturais das Revolues Francesa e Industrial (ERIC HOBSBAWM).

1.5.1 Um tempo impregnado do seu contrrioA remodelao dos espaos e das sociedades, durante os sculos XVIII e XIX, pode ser tratada a partir da anlise do processo de transformaes profundas, radicais e universais, que tiveram como palco a Europa. Surgia a sociedade baseada na ideologia liberal que nasceu e iou ao poder uma burguesia politicamente excluda do Antigo Regime, mediante um processo de Revolues Burguesas que tiveram lugar de destaque, principalmente, na Frana e na Inglaterra. Entretanto, no se trata de eleger um fenmeno-evento, a exemplo da industrializao, como nico responsvel pela urbanizao das cidades europias a partir do sculo XVIII. O estudo dos processos revolucionrios europeus do referido sculo serve como objeto de anlise na medida em que, naquele contexto, houve a problematizao das cidades modernas e/ou industriais. Entretanto, no se busca na presente pesquisa eleger uma causa a Revoluo Industrial como o nico responsvel pelo efeito gerado a urbanizao moderna. Em certa medida, o surgimento do fenmeno industrial contribuiu para a acelerao das transformaes sociais. Ou seja, o processo de modificao das relaes de sociabilidades foi otimizado com a transferncia das relaes de produo para o ambiente urbano, o que, coadunando com as relaes polticas e sociais prprias deste ambiente, contribui para que a questo urbana fosse tratada com mais veemncia pelo poder pblico. Dessa maneira, a sociedade ocidental do sculo XIX viu surgir uma nova cincia dedicada ao estudo das cidades, o urbanismo, que no sculo seguinte, encontraria sua configurao cientfica (BRESCIANI, 2002:18-20). Diante do exposto, torna-se necessrio, mesmo que de forma sintetizada, conhecer os fenmenos revolucionrios que serviram de alavanca para o processo da urbanizao moderna. Pondo fim s estruturas do Absolutismo e do Feudalismo, surge a ordem capitalista e, concomitantemente, a potencializao das capacidades humanas de produzir mercadorias,

45 tecnologias e servios. A partir da Revoluo Industrial2 a humanidade experimenta, pela primeira vez na histria, a capacidade de produo industrial e desenvolvimento em larga escala. Enquanto a Revoluo Industrial inglesa moldou a economia do mundo ocidental e impulsionou o processo de modernizao dos meios de produo, a Revoluo Francesa proporcionou s transformaes econmico-sociais do perodo numa linguagem poltica, baseada no liberalismo e na democracia. j o mundo moderno no qual vivemos. Embora estejamos convivendo hoje com um momento ainda mais intensamente marcado pela saturao tecnolgica, podemos perceber que dentro dessa configurao histrica moderna, definida a partir da passagem do sculo, que encontramos nossa identidade (SEVCENKO, 1998:11).

Sob o governo da burguesia se afirmam tanto a liberdade econmica quanto poltica, fatores semelhantes que iro possibilitar o surgimento do indivduo moderno, para quem as luzes do pensamento liberal se acenderam. Neste recente elemento urbano, o citadino, que testemunha em meio s multides um mundo em processo de modernizao, foi impelido a desvendar infinitos cdigos num universo repleto de imagens, to distinto do seu ambiente agrrio original.O crescimento vertiginoso da populao e sua concentrao nas cidades sintomas de condies da mutao industria