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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS TECNOLOGIAS LIMPAS EM AÇÃO SEGUINDO OS ENGENHEIROS, SUAS REDES E SUAS TRAMAS KELLY CARNEIRO DE OLIVEIRA FONTOURA Salvador 2011

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

    FACULDADE DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS SOCIAIS

    TECNOLOGIAS LIMPAS EM AO

    SEGUINDO OS ENGENHEIROS, SUAS REDES E SUAS TRAMAS

    KELLY CARNEIRO DE OLIVEIRA FONTOURA

    Salvador

    2011

  • KELLY CARNEIRO DE OLIVEIRA FONTOURA

    TECNOLOGIAS LIMPAS EM AO

    SEGUINDO OS ENGENHEIROS, SUAS REDES E SUAS TRAMAS

    Salvador

    2011

    Dissertao apresentada ao Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para a obteno do grau de Mestre em Cincias Sociais.

    Orientadora: Profa. Dra. Iara Maria de Almeida Souza

  • _____________________________________________________________________________

    F684 Fontoura, Kelly Carneiro de Oliveira Tecnologias limpas em ao seguindo os engenheiros, suas redes e suas tramas /

    Kelly Carneiro de Oliveira Fontoura. Salvador, 2011. 115 f. : il

    Orientadora: Prof. Dra. Iara Maria de Almeida Souza Dissertao (mestrado) Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, 2011.

    1. Cincias Sociais. 2. Gesto. 3. gua. 3. Cincia e tecnologia. I. Souza, Iara Maria

    de Almeida. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.

    CDD - 301 _____________________________________________________________________________

  • AGRADECIMENTOS

    A todos aqueles que contriburam direta ou indiretamente para que este trabalho se materializasse, fica aqui meu muito obrigada. A minha famlia pelo incentivo e pela compreenso nos momentos de ausncia.

    Aos amigos, principalmente Murilo e Sabrina, pelo apoio e companheirismo nos momentos difceis. Afinal dissertar algo solitrio, mas felizmente podemos compartilhar nossas angstias e incertezas com aqueles que j passaram ou esto passando pelo mesmo que ns.

    excelente turma de mestrado da qual fiz parte, tive sorte de ter sido membro desta turma to diversa, mas que soube acolher todos. Possibilitando tambm muitas discusses fecundas por meio desta heterogeneidade. Gostaria de destacar alguns colegas com quem tive mais proximidade durante este perodo, so eles: Rafael, Felippe, Jos Maurcio, Rosana e Zaylin.

    Aos professores do Programa de Ps-Graduao em Cincias Sociais da UFBA, representados aqui pelas professoras Miriam Rabelo e Guaraci Adeodato. Elas se mostraram mais do que professoras, duas pessoas com as quais pude aprender um pouco como humanizar as relaes.

    Aos membros do grupo de pesquisa ECSAS, pelos debates sempre enriquecedores das tardes de sextas-feiras. Debates este que contriburam bastante para minha formao enquanto Cientista Social. Aos colegas Luiz Correia pelas leituras de autores como Hannah Arend e Hans Jonas, e Clara Lourido pelas contribuies ao participar da banca de qualificao.

    No poderia deixar de destacar o apoio e parceria de Ana Paula Garcia, figura essencial para o desenvolvimento deste trabalho, devo a ela, em grade medida, tudo o que se tornou esta dissertao.

    Em especial a minha orientadora, Iara Maria de Souza, pelas conversas, pacincia, compreenso, disponibilidade e carinho narelao de orientao.

    Tambm aos professores Elena Gonzalez e Asher Kiperstok por terem aceitado participar da banca de avaliao deste trabalho. Por fim, ao CNPq pelo financiamento da bolsa de mestrado, primordial para o desenvolvimento deste trabalho.

  • Ns mesmos somos hbridos, instalados precariamente no interior das instituies cientificas, meio engenheiros, meio filsofos, um tero instrudos sem que o desejssemos; optamos por descrever as tramas onde quer que estas nos levem. Nosso meio de transporte a noo de traduo ou de rede. Mais flexvel que a noo de sistema, mais histrica que a de estrutura, mais emprica que a de complexidade, a rede o fio de Ariadne destas hist6rias confusas.

    (LATOUR, Bruno, 1994, p. 9)

  • RESUMO

    O objetivo geral desta dissertao compreender como a investigao de engenheiros sanitaristas e ambientais, sobre padres de consumo de gua e utilizao de equipamentos economizadores, pode possibilitar a criao de espaos de calculabilidade em residncias de baixa e mdia renda. Para tanto, procura-se afastar da viso de clculo como algo intrnseco ao ser humano, ou visto puramente como clculo matemtico/utilitrio, no sentido de uma ao marcada pela racionalidade, mas utiliza-se a noo adotada por Michel Callon e Muniesa (2008) na qual o clculo comea por estabelecer distines entre as coisas ou estados do mundo, e por imaginar e estimar cursos de ao associada a coisas ou com os estados bem como suas consequncias. Este trabalho foi realizado por meio do acompanhamento das tramas e redes traadas por engenheiros/pesquisadores do grupo Rede de Tecnologias Limpas (RTL),quando estes desenvolviam um projeto que almejava construir uma metodologia de gesto intra-domiciliar do consumo de gua, a partir das investigaes sobre os padres de consumo, e utilizao de equipamentos e tecnologias economizadoras. Para a construo desta dissertao utilizou-se, de forma central, o aparato terico-metodolgico desenvolvido pelos autores Bruno Latour, Michel Callon, John Law, Karin Knorr Cetina etc. - a Teoria do Ator-Rede ou Sociologia da Traduo, como tambm conhecida. Esta teoria afirma que cada ator traz consigo um emaranhado de redes heterogneas, assim torna-se fundamental escolher um actante para seguir e, neste estudo, elegeu-se uma engenheira sanitarista e ambiental que acabara de ingressar no curso de mestrado, e cujo tema de pesquisa estava diretamente relacionado ao projeto em anlise. A engenheira/pesquisadora identificada no trabalho, ficticiamente, pelo nome Ariadne. Dentro da perspectiva da supracitada, optou-se, metodologicamente, por trabalhar tanto com material produzido pelo grupo de pesquisa (artigos, dissertaes, livros etc.), quanto com a utilizao de documentos formais (leis, decretos, relatrios etc.), alm de dados coletados em campo. Os dados foram coletados de forma indireta, atravs de conversas informais e observaes. Os resultados da pesquisa apontam que os espaos de calculabilidade em residncias de baixa e mdia renda constituem-se enquanto potencial de mudana, ao tentarem incorporar ao cotidiano dos usurios ferramentas para a autogesto do consumo intra-domiciliar de gua. No entanto,osengenheiros/pesquisadores precisam estar atentos para o fato de que os usurios no esto habituados com os novos dispositivos de clculo, assim, torna-se necessria a adequao trama das experincias passadas destes ltimos. J que os trabalhos dos engenheiros/pesquisadores ambicionam a manifestao de novos comportamentos e crenas em relao ao uso cotidiano da gua, por meio dos contra-argumentos que fazem emergir novos padres de utilizao dos recursos hdricos e a maneira como eles podem ser geridos pelas concessionrias. Palavras-Chave: Gesto Intra-domiciliar da Demanda de gua; Espaos de Calculabilidade; Estudos sobre Cincia, Tecnologia e Sociedade; Teoria do Ator-Rede.

  • ABSTRACT

    The main goal of this dissertation is to understand how the research, performed by sanitary and environmental engineers, about the tendencies on water consumption and utilization of water savings equipment, can enable the creation of spaces of calculability in low and middle income households. To this end, we move away from the vision of computation as something intrinsic to human beings, regarded as a purely mathematical calculation/utility in the sense of an action characterized by rationality, and employ the notion adopted by Michel Callon and Musiesa (2008) for whom calculation begins by

    making distinctions between things or states of the world, and by imagining and estimating different courses of action associated with things or with the states and their consequences. This work was carried out by means of monitoring plots and networks designed by engineers/researchers belonging to the group Rede de Tecnologias Limpas (RTL) while they were developing a project that aimed to build a methodology for managing both the household water consumption and the use of saving equipments and technologies by researching on consumption patterns,. For the construction of this work it was used, mainly, the theoretical approach developed by the authors Bruno Latour, Michel Callon, John Law, Karin Knorr-Cetina etc also known as The Actor-Network Theory and Sociology of Translation. This theory states that each actor brings a tangle of heterogeneous networks, so it becomes vital to choose an actant to follow and, in this study, a sanitary and environmental engineer who had just joined the master program was elected and whose research topic was directly related to the project under review. The engineer/researcher was identified in the work, notionally, by the name Ariadne. Within the above perspective, it was decided, methodologically, to work with material produced by the research group (papers, books etc.), with the use of formal documents (laws, decrees, reports etc.) and with data collected on field. Data was collected indirectly, through informal conversations and observations. Research results showed that the spaces of calculability in low and middle income households constitute, by themselves, a potential for change, trying to incorporate tools for self-management of household consumption of water into the daily lives of householders. However, engineers/researchers must be aware of the fact that householders are not to new computing devices, so it becomes necessary to adequate to their past experiences. Since the work of engineers/researchers aspires to the manifestation of new behaviors and beliefs related to the everyday use of water by means of counterarguments that lead to new patterns of water use and how they can be managed by concessionaires.

    Keywords: Household Water Demand Management; Space of Calculability; Social Studies on Science and Technology; Actor Network

  • LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    BID - Banco Interamericano de Desenvolvimento

    BNH Banco Nacional de Desenvolvimento Urbano

    DNOS - Departamento Nacional de Obras de Saneamento

    COBESA Congresso Baiano de Engenharia Sanitria e Ambiental

    COMAE - Companhia Metropolitana de guas e Esgotos

    EMBASA - Empresa Baiana de guas e Saneamento S/A

    CORESAB Comisso de Regulao dos Servios Pblicos de Saneamento Bsico do Estado da Bahia

    FAE - Fundos de Financiamento para gua e Esgotos

    FTC Faculdade de Tecnologia e Cincias

    OMS Organizao Mundial de Sade

    ONU Organizao das Naes Unidas

    PLANASA Plano Nacional de Saneamento

    PAC Programa de Acelerao do Crescimento

    RTL Rede de Tecnologias Limpas

    SAER - Superintendnciade guas e Esgotos do Recncavo

    SEDUR - Secretaria de Desenvolvimento Urbano

    SFS - Sistema Financeiro de Saneamento

    UEFS Universidade Estadual de Feira de Santana

    UESC Universidade Estadual de Santa Cruz

    UFBA Universidade Federal da Bahia

    UFRB Universidade Federal do Recncavo Baiano

    UNEB Universidade Estadual da Bahia

    UNIFACS Universidade Salvador

  • SUMRIO

    INTRODUO 12 1 O SANEAMENTO BSICO NO BRASIL: RASTREANDO OS DEZ METROS CBICOS

    23

    1.1 BRASIL E SUAS POLTICAS PBLICAS DE SANEAMENTO 24 1.1.1 Do particular ao pblico: mudanas de escala 24 1.1.2 O Estado Enquanto Provedor do Saneamento: gesto pblica da gua x promoo da sade

    27

    1.1.3 PLANASA: o foco no planejamento estratgico

    29

    1.2 SANEAMENTO BSICO EM SALVADOR 31 1.2.1 A criao da EMBASA 32 1.2.2 Saneamento e Poltica Tarifria: o caso de Salvador 33 1.2.3 Estrutura Tarifria da EMBASA

    37

    2 TRAANDO TRAMAS DE INTERESSES: O PAPEL DAS REDES SOCIOTCNICAS

    43

    2.1 O CONGRESSO 46 2.1.1 O Painel e as Inscries: tecendo as redes sociotcnicas 48 2.1.1.1 A EMBASA: nmeros rumos universalizao 49 2.1.1.2 Sustentabilidade do Saneamento: mostrar o hoje pensando no amanh

    54

    2.2 A RTL E SUAS REDES 60 2.2.1 O Nascimento da RTL 64 2.2.2 O Laboratrio Enquanto Centros de Clculo

    67

    3 ESPAOS DE CALCULABILIDADE: ENGENHEIROS E USURIOS NO CAMINHO DA GESTO INTRA-DOMICILIAR

    69

    3.1 ARIADNE E O UNIVERSO DA PESQUISA 69 3.1.1O Papel de Ariadne 71 3.2 O PROJETO

    73

    3.3 A DISSERTAO DE ARIADNE: CONTRIBUIES TERICO-METODOLGICAS

    75

    3.3.1 Gesto de Demanda 77 3.3.2 Consumo de gua 80 3.3.3 Residncias de Baixa Renda 81 3.3.4 Sistemas de Distribuio de gua 82 3.3.5 Uso Racional da gua 83

    3.4 PARTE EMPRICA DO PROJETO

    85

  • 3.4.1 Dispositivos de Clculo: tcnica de acompanhamento do consumo

    86

    3.4.2 Gesto da Demanda Intra-domiciliar: mobilizando os usurios 90

    3.5 ESPAOS DE CALCULABILIDADE

    93

    CONSIDERAES FINAIS

    95

    REFERNCIAS

    100

    ANEXO A - REQUISITOS E PROCEDIMENTOS PARA IMPLANTAO DA TARIFA RESIDENCIAL SOCIAL DA EMBASA

    104

    ANEXO B - QUESTIONRIO UTILIZADO NA PESQUISA DE CARACTERIZAO DO CONSUMO RESIDENCIAL 109 ANEXO C - MODELOS DE FICHAS DE CARACTERIZAO DO CONSUMO 112

  • INTRODUO

    H dcadas as Cincias Sociais, em particular, a Antropologia, deixaram de se debruar no

    bojo dos agrupamentos exticos, nos quais o pesquisador (observador-participante) deveria

    imergir por alguns meses, ou anos, a fim de apreender aspectos lingusticos e traos culturais

    peculiares. Neste contexto de investigao etnogrfica, o distanciamento geogrfico parecia

    ser a melhor maneira de o pesquisador manter a neutralidade metodolgica. Ao fim do

    trabalho de campo, o pesquisador, de posse dos seus cadernos e anotaes, retornava ao seu

    gabinete para narrar suas experincias aos seus pares. Assim, as etnografias tinham por

    objetivo, tornar compreensveis aqueles comportamentos e costumes at ento alheios aos

    demais.

    No contexto de pesquisa contemporneo, o distanciamento geogrfico no mais representa um

    elemento propulsor da escolha do campo etnogrfico, sendo o objeto de estudo, tanto uma

    tribo africana, assim como um grupo de engenheiros. Entretanto, Magnani (2002) chama

    ateno para a natureza da pesquisa etnogrfica, sendo a mesma responsvel por possibilitar a

    produo de um tipo de conhecimento especfico, proporcionando um modo de operar, capaz

    de captar determinados aspectos que passariam despercebidos ao utilizar apenas enfoques

    macros e ferramentas como questionrios estruturados. Assim, a utilizao do olhar

    etnogrfico possibilita ao pesquisador observar holisticamente seu campo. E, para este

    trabalho dissertativo, o campo de pesquisa escolhido foi um grupo de pesquisa em Engenharia

    que trabalha com tecnologias limpas na direo de buscar solues dos problemas na fonte.

    Este trabalho comeou a ter vida a partir do momento que cursei como aluna ouvinte, a

    disciplina Estudos Sociais em Cincias e Tecnologia, oferecida pelo Programa de Ps-

    Graduao em Cincias Sociais e ministrada pela Prof Dra. Iara Souza, que aceitou orientar

    meu trabalho de dissertao. Nesta disciplina, pude ter contato com autores como Bruno

    Latour, Karin Knorr-Cetina, Michel Callon, dentre outros, o que desencadeou vrias ideias e

    possibilitou o desenvolvimento do meu projeto de pesquisa. Ter trabalhado como bolsista de

  • 13

    iniciao cientfica num grupo de pesquisa de Engenharia facilitou a elaborao do projeto e a

    escolha deste grupo como lcus de anlise.

    O contato com este grupo de engenheiros iniciou-se em 2006. Neste perodo, tive a

    oportunidade de conhecer mais de perto o seu trabalho, percebendo as peculiaridades, j que

    era realizado numa universidade e, certamente, no o mesmo desenvolvido em construes,

    escritrios e fbricas. Apesar de no ser considerado um cientista, o engenheiro pesquisador,

    no contexto acadmico, desenvolve pesquisas, e concomitantemente, estuda novas

    metodologias e aprimora tecnologias. A curiosidade em desvendar este novo universo fez com

    que estivesse sempre atenta s suas atividades e conversas de bastidores, ou aos seus

    experimentos, atravs da colaborao em suas atividades especficas. Desta forma, foram

    muitas as oportunidades em que fui chamada de sociloga-engenheira, ficando claro que

    nunca fui considerada uma nativa, nem era a minha inteno tornar-me um deles, mas me

    interessava por comear a desbravar aquele mundo que se fazia presente dia aps dia. Assim,

    ao longo de quase dois anos, fui me ambientando a este universo, compreendendo jarges

    tcnicos, objetos e atividades especficas deste grupo profissional.

    Uma peculiaridade deste grupo de pesquisa concentra-se no fato de tentar levar em

    considerao a perspectiva dos usurios, e a incluso de uma bolsista de Cincias Sociais

    indicou um passo concreto neste sentido, pois comeou a imprimir pauta de discusso,

    questes relativas percepo e ao comportamento. Contudo, apesar da incorporao de

    temas relacionados aos usurios, a bolsista de Cincias Sociais era vista como aquela pessoa

    capaz de transitar entre a equipe tcnica composta essencialmente por engenheiros-

    pesquisadores e bolsistas de iniciao cientfica, geralmente estudantes de diversos ramos da

    Engenharia, e a populao alvo. Ao representar este profissional capaz de transitar entre os

    dois universos, exercia uma funo instrumental, construindo questionrios e ferramentas para

    tentar entender o que se passa na cabea das pessoas.

    Aps o trmino da bolsa de iniciao cientfica, passei por um perodo de afastamento das

    prticas dirias do grupo, mas nunca perdi totalmente os laos estabelecidos desde 2006.

    Sempre era convidada a apresentar meu trabalho para os novos membros da equipe, ou,

    auxiliar a elaborao de questionrios e esclarecer questes metodolgicas sobre o estudo da

  • 14

    percepo dos usurios. Com o projeto de mestrado, esta vivncia passou a ser mais

    frequente.

    Antes de iniciar o trabalho de campo, solicitei a permisso do coordenador do grupo de

    pesquisa para desenvolver um estudo etnogrfico sobre eles. Havia demonstrado meu

    interesse e ele no sabia ao certo o que significava um estudo desta natureza, curioso para

    saber do que exatamente se tratava. Desta forma, expliquei brevemente em que consistia.

    Aps a explanao, o coordenador aceitou prontamente abrir as portas do grupo para esta

    sociloga estudar os seus engenheiros-pesquisadores.

    Iniciar o contato com o campo do trabalho dissertativo no foi problemtico, j que, no meu

    caso, ele era bastante familiar. A linguagem j no soava como algo to estranho, assim como

    os objetos, os informantes e as atividades a serem observadas. Se por um lado, poderia

    facilitar a pesquisa, j que a insero parecia ser uma etapa vencida, de outro ngulo, estar to

    familiarizada poderia dificultar as observaes, pois estranhar o familiar uma das mais

    difceis prticas metodolgicas, afinal, como podemos nos distanciar de algo que h tempos

    estamos imersos? O tempo fez com que os lugares se modificassem em relao s posies na

    hierarquia do grupo, assim como aos novos arranjos e as novas configuraes espaciais.

    medida que o tempo passa, novos projetos se iniciam e outros terminam, e com isso, novos

    atores surgem, enquanto outros vo desaparecendo da rede. Com isso, o estranhamento foi

    possvel tanto pelo tempo que passei afastada do grupo de pesquisa, desde o trmino da bolsa

    de iniciao cientfica, quanto pela nova temtica que passava a ser estudada pela

    pesquisadora que seguiria. Desta maneira, apesar de estar familiarizada com o campo,

    existiam muitas coisas que ainda precisavam se fazer compreensveis.

    Este trabalho permitiu uma experincia pessoal de retorno a um ambiente familiar, mas sob

    outra perspectiva, j que deixaria de ser apenas mais um membro da equipe de colaboradores,

    e passaria a ser uma pesquisadora de pesquisadores. Durante algumas visitas de campo,

    procurei brincar com os membros da equipe, dizendo que eles seriam meus ratinhos de

    laboratrio, pois fariam parte do meu objeto de estudo. Eles achavam graa, mas ficavam

    curiosos procurando entender realmente o que eu fazia ali. Muitas vezes tentava explicar, mas

    mesmo assim percebia as feies interrogativas de alguns ao fim das explicaes.

  • 15

    Afinal, por que uma sociloga teria interesse em estudar um grupo de engenheiros-

    pesquisadores? Qual seria o objetivo deste estudo? So muitas as perguntas que poderiam ser

    listadas aqui, mas partindo dos pressupostos dos estudos sobre Cincia, Tecnologia e

    Sociedade (CTS), a tcnica e a cincia tornaram-se objetos de interesse dos cientistas sociais,

    a partir do momento em que estes passaram a desenvolver estudos para repertoriar mais de

    perto, como a tcnica e a cincia funcionam em sua prpria cultura.

    De acordo com Kreimer (2005), a ideia de que existe uma relao entre o conhecimento

    cientfico e a ordem social na qual se desenvolveu foi postulado pela primeira vez h

    aproximadamente oitenta anos. A sociologia da cincia teve no socilogo estadunidense a

    figura percussora destes estudos. Considerar a cincia enquanto instituio autnoma e

    legitimada socialmente possibilitou a Merton, propor teorias de mdio alcance e novos

    conceitos. Para este autor era possvel identificar um ethos da cincia, caracterizado por

    alguns elementos, entre eles, o universalismo do conhecimento produzido, o comunismo entre

    os membros, o desinteresse dos cientistas e o ceticismo organizado. O tipo de conhecimento

    produzido a partir dos preceitos mertonianos estava preocupado em estudar a cincia a partir

    da sua lgica interna.

    Autores como David Bloor contriburam para a transio dos estudos dos cientistas para os

    estudos sobre a cincia. Ou seja, passa-se dos estudos sobre as representaes, a partir das

    vises de mundo dos cientistas, para os estudos dos comportamentos concretos, a partir da

    observncia dos contextos sociais envoltos na produo dos contedos cientficos. Bloor

    tambm indicava o reestabelecimento da simetria total de tratamento entre os vencidos da

    histria das cincias e os vencedores (LATOUR e WOOLGAR, 1997, p. 23). Desta forma,

    estes estudos tambm procuram demonstrar como o papel das Cincias Sociais vai alm de

    analisar as pesquisas cientfico-acadmicas que fracassaram, ou que simplesmente

    representam coisas estabilizadas. Segundo Bruno Latour (1997), os etngrafos de laboratrio

    consideram importante estudar o que produzido pelos cientistas e engenheiros e no apenas

    estudar as relaes de sociabilidade que existem entre eles. Busca investigar a cincia ou a

    tcnica enquanto est sendo fabricada, ou seja, em ao.

    A partir destas investigaes, nasce a Teoria do Ator-Rede, ou Teoria da Traduo, como

    tambm conhecida. Segundo John Law (2008), no ncleo desta teoria reside a metfora da

  • 16

    rede heterognea, ou seja, uma forma de sugerir que a sociedade, as organizaes, os

    agentes e as mquinas so todos efeitos gerados em redes de certos padres de diversos

    materiais, no apenas humanos. Desta maneira, o social seria visto como produto de uma

    rede de materiais heterogneos. Latour (2006, p.7) define o social como um movimento

    muito particular de re-associao ou de reagrupamento. No entanto, o modo como estes

    materiais heterogneos se associam acontece de maneira imprevisvel, no se definindo a

    priori, pois se trata de questo emprica. Assim, caberia Sociologia a tarefa de caracterizar

    estas redes, visando compreender como estes reagrupamentos geram efeitos diversos.

    Para a construo deste trabalho, optou-se por realizar uma investigao adotando o mtodo

    etnogrfico para estudar a cincia enquanto ela est sendo feita, no seu cotidiano, mas

    tambm utilizando alguns princpios metodolgicos apontados pela Teoria do Ator-Rede,

    como no assumir a polarizao entre observaes micro e macro. Contudo, surgem algumas

    dvidas: como estudar o trabalho de pesquisa desenvolvido por um grupo de engenheiros

    enquanto ele est sendo feito? A quem devemos seguir para compreender este cotidiano?

    Como definir a quem seguir? Segundo Bruno Latour (2000), esta seria uma primeira regra

    metodolgica. Definir a quem seguir. O primeiro passo, neste sentido, foi tentar identificar os

    projetos que o grupo desenvolvia. Em segundo lugar, identificar quais os projetos que

    estavam em fase inicial, pois facilitaria o acompanhamento. Mapeei os mesmos atravs da

    participao em algumas reunies do grupo, considerando apenas os aspectos fundamentais

    para me deixar a par do que havia acontecido em minha ausncia.

    No incio de 2009, participei das reunies de planejamento do ano que se iniciava. Reunies

    estas onde o coordenador do grupo de pesquisa queria ficar a par das atividades realizadas nos

    ltimos meses do ano que terminara. Cada pesquisador deveria fazer um balano das

    atividades passadas e apresentar o planejamento das atividades futuras. Participava sempre

    como uma observadora atenta, tomando nota em meu caderno de campo dos novos rumos do

    grupo, tentando mapear quais as novas tramas e redes, identificando os novos atores. Porm,

    ao mesmo tempo em que observava, tambm era observada, pois alguns engenheiros achavam

    algo bastante curioso a minha rotina de ficar fazendo anotaes sobre as reunies. Uma das

    engenheiras-pesquisadoras sempre me perguntava o que tanto escrevia, assim, a curiosidade

    no residia no fato de fazer anotaes, mas sim no volume delas, j que os participantes das

    reunies tambm tomavam nota, mas de maneira pontual. Portanto, o questionamento no

  • 17

    denotava receio de expor suas atividades por causa da minha presena, apenas curiosidade.

    Talvez, caso ali estivesse um pesquisador que nunca tivesse sido membro deste grupo,

    causasse um impacto maior, mas o fato de em algum momento ter sido de dentro facilitava

    a minha incluso ao cenrio das reunies.

    Dentre os projetos em fase inicial, selecionei um que tinha por objetivo investigar padres de

    consumo de gua e utilizao de equipamentos economizadores, visando o uso racional de

    gua em residncias de baixa e mdia renda. Assim, passei a frequentar as reunies mais

    especficas, ligadas diretamente ao projeto que escolhi acompanhar mais de perto. Estas

    reunies geralmente aconteciam s sextas-feiras pela manh, dia em que os pesquisadores e

    bolsistas esto mais livres de suas demais atividades. Nelas so definidas as estratgias que

    devero ser adotadas, planejamento das atividades e apresentao de dados.

    Em pesquisas etnogrficas o pesquisador-observador no precisa impor, necessariamente, um

    filtro analtico definido a priori. Os elementos a serem estudados podem ser identificados a

    partir das conexes e associaes constitudas pelos atores que esto sendo seguidos. Assim,

    depois da escolha do projeto, o prximo passo constituiu-se na definio dos atores que

    seriam seguidos, atravs de suas associaes. Para este trabalho, foi escolhida uma engenheira

    sanitarista e ambiental que havia ingressado h pouco no curso de mestrado, e cujo tema de

    pesquisa estava diretamente relacionado ao projeto em anlise. Ela ser nomeada por Ariadne,

    no por acaso. Trata-se de um nome bastante utilizado nos estudos de CTS, refere-se ao mito

    de Teseu, jovem ateniense que recebeu um novelo de linha, de Ariadne, filha de Minos, rei da

    Creta, para que ele conseguisse enfrentar as aventuras que um labirinto reservava-lhe e poder

    voltar para se casar com ela, e posteriormente, viver em Atenas. Desenrolando o novelo,

    mantendo uma das pontas fixa na sada e segurando a outra, Teseu pode encontrar a sada.

    Desta forma, o Fio de Ariadne passa a ser sinnimo de um mtodo que permite seguir pistas

    para compreender como determinada situao construda.

    Essa trama que o desenrolar do fio de Ariadne tece no foi usado como alegoria de um fazer

    especfico da cincia. A literatura tambm registrou similar emaranhado de sentidos. No

    romance Todos os Nomes, Jos Saramago utiliza o mesmo recurso, para auxiliar sua

    personagem que transita pelo arquivo dos nomes, das histrias que vo sendo reveladas por

    traz de cada nome, ao longo do romance portugus. o fio que permite a personagem de

  • 18

    Saramago avanar pelo labirinto vivo que cada nome vela, desvel-los, mas voltar ao incio,

    vida, com uma trama, um caminho descortinado. Foi assim que atei uma ponta do fio ao

    tornozelo e avancei pela escurido, iniciando as observaes a partir do ambiente de trabalho

    desta engenheira-pesquisadora. As anlises no se restringiram ao espao fsico do grupo de

    pesquisa, antes se devotaram ao fluxo de Ariadne entre as arenas epistmicas e

    transepistmicas1.

    O local de trabalho se constituiu enquanto elemento fundamental para auxiliar o

    pesquisador/observador a localizar e identificar como as tramas so construdas e quais as

    redes devem ser seguidas. Desde a dcada de 1970, quando as etnogrficas de laboratrio

    comearam a ser desenvolvidas, aconteceram algumas transformaes nos estudos sobre

    Cincia, Tecnologia e Sociedade. Para Michel Callon,

    assim que, agora, nos damos conta de que os laboratrios so somente um elemento de dispositivos mais extensos e de que, para compreender a dinmica da produo de conhecimentos e de tcnicas, no basta se interessar somente pelas atividades de laboratrio e pelo que os cientistas fazem, mas importante abordar tambm o conjunto de coletivos heterogneos profissionais e sociais que participa de uma maneira ou de outra, na concepo, elaborao e transporte das inovaes (CALLON, 2008, p. 303).

    Deste modo, minhas observaes no se restringiram apenas ao espao fsico do grupo de

    pesquisa. Tambm acompanhei as apresentaes de alguns pesquisadores no I Congresso

    Baiano de Engenharia Sanitria e Ambiental, que ocorreu em Salvador entre os dias 11 e 16

    de julho de 2010. Nestes momentos, acompanhei Ariadne nas arenas transepistmicas ou

    campos transcientficos, o que me possibilitou dar conta das relaes que vo alm do espao

    fsico do grupo de pesquisa, pois nestas esferas podemos observar como os diferentes atores

    da rede se inter-relacionam. Segundo Bruno Latour (2000, p.330), enquanto os cientistas e

    engenheiros trabalham, vo mapeando para ns e para si mesmos as cadeias de associaes

    que constituem a sua scio-lgica. A principal caracterstica dessas cadeias a

    imprevisibilidade para o observador -, porque elas so totalmente heterogneas.

    1Arenas Transepistmicas ou Campos Transepistmicos um conceito desenvolvido por Karin Knnor-Cetina para demonstrar como o trabalho cientfico perpassado e sustentado por outras relaes e atividades que transcendem o laboratrio. Assim, as arenas so espaos de ao que envolve combinaes de pessoas eargumentos, agregam elementos cientficos e no cientficos. As relaes com esferas consideradas no cientficas e a realizao de papeis e funes no cientficas tambm fazem parte da produo do conhecimento cientfico

  • 19

    Dentro desta perspectiva, optou-se por trabalhar tanto com material produzido pelo grupo de

    pesquisa (artigos, dissertaes, livros, etc.), quanto com a utilizao de documentos formais

    (leis, decretos, relatrios, etc.), alm de dados coletados em campo. Os dados no foram

    coletados de forma direta, por exemplo, utilizando-se questionrios ou roteiros de entrevistas.

    Mas de forma indireta, atravs de conversas informais e observaes. A opo pela no

    utilizao de mecanismo como entrevistas, deu-se como alternativa para preservar a

    espontaneidade das informaes cedidas pelo ator que estava sendo seguido, possibilitando

    uma maior riqueza de detalhes.

    As observaes partiram de dois eixos: o primeiro, a relao de Ariadne com o grupo de

    pesquisa, sendo o segundo, a relao de Ariadne com seu tema de pesquisa. Para Latour

    (2000, p. 331), a nica coisa que podemos fazer observar tudo o que est atado s

    afirmaes. O autor tambm indica que podemos estudar como so feitas as atribuies de

    causa e efeito; que pontos esto interligados; que dimenses e que fora tm essas ligaes;

    quais so os mais legtimos porta-vozes; como todos esses elementos so modificados durante

    a controvrsia. Tomei estes elementos como indicaes metodolgicas sobre as possibilidades

    de observaes, e assim, medida que o trabalho de campo ia sendo realizado, questes se

    revelaram, indicando a necessidade de focar na assertiva que apresenta como os pontos esto

    interligados. Desta forma, as observaes foram me arrastando para uma histria sobre

    calculabilidade e o objetivo geral deste trabalho tornou-se compreender como a investigao

    de engenheiros sanitaristas e ambientais sobre padres de consumo de gua e utilizao de

    equipamentos economizadores podem possibilitar a criao de espaos de calculabilidade em

    residncias de baixa e mdia renda.

    O autor John Law (2008) nos coloca a seguinte questo: por que de vez em quando, mas

    apenas de vez em quando, tomamos conscincia das redes que esto por trs e que constituem

    seja um ator, um objeto, ou uma instituio?. De acordo com o autor, isso acontece, pois

    todos os fenmenos so o efeito ou produto de redes heterogneas, mas na prtica elas so

    simplificadas, tornando-se visvel apenas a sua totalidade.

    Acompanhar as investigaes de Ariadne me levou a notar o aparecimento de uma destas

    redes, ou seja, perceber como a relao de consumo estabelecida entre os usurios dos

    servios de abastecimento de gua e os fornecedores destes servios, constitui-se numa

  • 20

    relao assimtrica, no sentido em que as partes envolvidas nesta relao no possuem as

    mesmas ferramentas. Nota-se que os usurios ocupam posio desfavorvel, pois no

    possuem instrumentos para auxili-los no clculo de suas escolhas ou decises. Por exemplo,

    no possvel comparar o servio de vrios fornecedores, pois apenas uma empresa os

    oferece. Como qualificar um servio quando os usurios no possuem parmetros para

    fundamentar suas decises? Da mesma forma, muito pouco informado aos usurios sobre os

    mecanismos utilizados pelas companhias de saneamento para calcular as tarifas dos servios

    prestados.

    Nesta relao, os engenheiros procuram atuar como uma espcie de intermediadores, ao

    procurar torn-la cada vez mais simtrica. Por meio de suas investigaes sobre os padres

    de consumo de gua e utilizao de equipamentos economizadores, a criao de espaos de

    calculabilidade nas residncias dos usurios pode ser disponibilizada, ou seja, fornecendo-lhes

    subsdios para conhecer a maneira como a gua gasta em sua residncia, calcular o seu

    prprio consumo e compreender a forma como a companhia cobra pelos servios prestados.

    Assim, utilizar equipamentos de controle do consumo possibilita aos usurios a gesto

    domiciliar da gua.

    Para compreender em quais bases est pautada a construo de espaos de calculabilidade,

    torna-se necessria apresentar a definio de clculo adotada neste trabalho. Partiremos da

    noo utilizada por Michel Callon e Fabian Muniesa (2008),que consideram o clculo de uma

    forma que procura expor os elementos e mecanismos que permitem mercados se comportar

    como dispositivos coletivos calculistas. Portanto, como sugerem Callon e Muniesa (2008),

    no reduziremos os usurios a suas competncias calculistas, como o homo economicus

    aludido pela teoria econmica clssica e to temido por socilogos e antroplogos. Segundo

    Aspers (2005), apenas possvel entender o homo economicus em relao ao conjunto de

    ferramentas e conhecimentos que tenha sido adicionado pela produo humana. Portanto, o

    clculo no ser estudado como algo intrnseco ao ser humano, ou visto puramente como

    clculo matemtico-utilitrio, no sentido de uma ao marcada pela racionalidade, ou seja, a

    eficincia da ao, na qual o ator escolhe os meios mais eficientes para alcanar seus

    objetivos. Sendo desta forma, estaramos concebendo um estrategista possuidor de

    conhecimento adquirido a priori:

  • 21

    Clculo no significa necessariamente realizao de matemtica ou mesmo operaes numricas (Lave, 1988). Clculo comea por estabelecer distines entre as coisas ou estados do mundo, e por imaginar e estimar cursos de ao associada a coisas ou com os estados bem como suas consequncias. Iniciando com este tipo de definio usual da noo de clculo, tentamos evitar a distino (tambm convencional, mas muito afiada) entre julgamento e clculo (CALLON & MUNIESA, 2008).

    Assim, a partir da noo de clculo, procurei observar como podem estar interligados

    engenheiros-pesquisadores, usurios e concessionria. Neste trabalho tentei cavar um tnel

    entre os trs, o que poder nos levar a caminhos interessantes. Temos por um lado, a

    concessionria estadual de abastecimento de gua pautada num tipo de calculabilidade de

    mercado (ou econmica), que por ser uma empresa de capital misto, situa-se numa situao

    hbrida, precisando garantir sua sustentabilidade econmica, mas que tambm necessita levar

    em conta as caractersticas do bem com que lida, alm das legislaes que conferem

    universalizao e acessibilidade o status de princpios bsicos para a oferta deste servio.

    Em outra extremidade temos os usurios, possuidores de um tipo de calculabilidade tcita,

    representados aqui por moradores de um bairro popular da Regio Metropolitana de Salvador

    que aceitaram participar de um projeto de pesquisa que visa investigar os padres de consumo

    de gua e a utilizao de equipamentos economizadores em residncias de baixa e mdia

    renda. A partir da instrumentalizao possibilitada pelo engajamento neste projeto, podem

    desenvolver um novo tipo de calculabilidade para gerir o consumo de gua de suas

    residncias. Por fim, temos um grupo de engenheiros-pesquisadores que desenvolvem uma

    srie de dispositivos materiais de clculo para compreender como se do estes padres de

    consumo de gua com o intuito de apresentar a seus pares, e demais pblicos,

    questionamentos a respeito do sistema tarifrio e dos elementos constituintes da demanda por

    gua, a partir do futuro cenrio de escassez hdrica e do comportamento do modelo peneira,

    atual sistema de abastecimento de gua.

    Deste modo, a dissertao est dividida em trs captulos, alm da introduo e consideraes

    finais. Esta diviso procura dar conta das tramas que entrelaam a concessionria de

    abastecimento de gua, os usurios e os engenheiros-pesquisadores, atravs da observncia

    dos elementos constituintes desta trade. Assim, o primeiro captulo, Saneamento bsico

    ontem e hoje: rastreando os dez metros cbicos, visa compreender os motivos da adoo dos

    10m como parmetro para a construo do atual sistema tarifrio dos servios de

    abastecimento de gua. Desta forma, parte de um breve caminhar histrico sobre as polticas

    pblicas de saneamento no Brasil e, mais especificamente, em Salvador, observando algumas

  • 22

    leis e decretos que regulamentam este servio. Outro aspecto abordado neste captulo a

    construo do sistema tarifrio adotado pela EMBASA, observando a calculabilidade

    implicada no processo de construo deste sistema.

    J no segundo captulo, Traando tramas de interesses: o papel das redes sociotcnicas,

    observa-se o entrelaamento entre concessionria e engenheiros-pesquisadores, atravs do

    debate a respeito do atual modelo do sistema de abastecimento de gua e desafios

    tecnolgicos que ocorreu no Primeiro Congresso Baiano de Engenharia Sanitria e Ambiental

    (I COBESA), contrastando-se a calculabilidade implicada nas diferentes perspectivas de

    anlise de um mesmo fenmeno. Neste captulo ainda ser abordada a questo do grupo de

    pesquisa como centros de clculos, espaos nos quais os engenheiros-pesquisadores

    desenvolvem e utilizam dispositivos materiais de clculo para auxiliar a sistematizao das

    informaes coletadas em campo no sentido de fundamentar seus argumentos e suas

    hipteses.

    No ltimo captulo, Espaos de calculabilidade: engenheiros e usurios no caminho da

    gesto intra-domiciliar, apresento a relao dos engenheiros-pesquisadores e usurios no

    desenvolvimento do projeto em anlise, a partir das categorias abordadas pelos engenheiros-

    pesquisadores como, por exemplo, a gesto da demanda, do consumo de gua e uso racional.

    Como tambm a anlise da possvel transformao de residncias em espaos de

    calculabilidade, ao possibilitar que os usurios engajados no projeto possam adotar medidas

    de gesto domiciliar do consumo de gua.

    Neste sentido, espero que o presente estudo possibilite a ns, cientistas sociais, outra forma de

    olhar a questo da calculabilidade, a partir da distino de coisas ou estados do mundo.

  • 23

    CAPTULO I - O SANEAMENTO BSICO NO BRASIL: RASTREANDO OS DEZ METROS CBICOS

    Em 2009, quando cheguei ao laboratrio (o grupo de pesquisa RTL - Rede de Tecnologias

    Limpas) para acompanhar as prticas cotidianas de Ariadne, deparei-me com uma profuso de

    novos assuntos e temticas. Entre os destaques, a gesto da demanda da gua. Na poca em

    que fui bolsista de iniciao cientfica, outras temticas estavam em evidncia, como por

    exemplo, saneamento ecolgico, reuso de gua e otimizao do consumo de gua em prdios

    pblicos e residncias. Estes temas abrangentes estavam relacionados aos projetos nos quais

    trabalhei, mas ao retornar na posio de pesquisadora de pesquisadores, percebia emerso

    de novas temticas. Logo, precisaria me atualizar diante das mudanas ocorridas em minha

    ausncia. Assim, o importante agora seria prestar ateno s conversas e novas discusses

    para anotar e perguntar, com o intuito de tentar compreender estes novos debates.

    Deste modo, tanto as conversas informais, assim como a participao em reunies da RTL se

    tornavam cada vez mais fundamentais para desvendar estas novas tramas. Atravs das

    reunies, comeava a perceber que um ponto importante na avaliao da gesto da demanda

    seria a preocupao e os questionamentos dos engenheiros-pesquisadores em torno do volume

    mnimo adotado como parmetro na construo do sistema tarifrio do servio de

    abastecimento de gua. J que, desde o final da dcada de 1960, este valor foi fixado em

    10m/ms, ou seja, independente do volume consumido mensalmente os consumidores

    residenciais so cobrados pelo valor em R$ referente ao consumo de 10.000 litros de gua,

    mesmo que o volume real consumido encontre-se entre zero e dez metros cbicos mensais.

    No entanto, estes engenheiros-pesquisadores tinham realizado uma pesquisa em dez

    residncias numa localidade de baixa renda e, identificaram que a maioria delas possua

    consumo muito inferior aos 10m mensais estipulados pela concessionria de abastecimento

    de gua. Desta forma, comeam a desenvolver diversos estudos no intuito de comprovar no

    se tratar de apenas um caso isolado, mas como nova tendncia do comportamento de consumo

    desta camada econmica em reas urbanas.

  • 24

    Mas por que 10m? Como foi estipulado este valor? Quais as variveis envolvidas na

    determinao deste valor? Estas dvidas foram emergindo ao passo que o trabalho de campo

    ia sendo desenvolvido. Entretanto, diversas vezes indaguei aos engenheiros-pesquisadores

    como fora definido o valor de 10m, mas sempre recebia respostas vagas e evasivas a respeito.

    Portanto, procurei seguir os caminhos que levassem a esclarecer estas dvidas. Assim, as

    investigaes deste captulo objetivam auxiliar na compreenso dos contextos envolvidos na

    definio deste valor. Neste sentido, o intuito do trabalho era observar brevemente como tem

    sido tratada a questo do saneamento bsico ao longo da histria do Brasil, e as implicaes

    ocasionadas a partir da incluso da mxima da universalizao prestao destes servios, em

    especial, ao servio de abastecimento de gua.

    1.1 BRASIL E SUAS POLTICAS PBLICAS DE SANEAMENTO

    O que fazer com os dejetos humanos? Com fazer chegar gua casa das pessoas? Quem

    responsvel por estas tarefas? Quem paga por elas? Estas perguntas que atualmente aparecem

    reunidas sob o rtulo de questo do saneamento bsico teve no Brasil ao longo dos sculos

    respostas prticas bastante distintas. Portanto, a fim de entendermos o modo como o problema

    se coloca atualmente, pretendo dar um panorama de como esta questo foi tratada em

    diferentes momentos.

    1.1.1 Do particular ao pblico: mudanas de escala

    No perodo colonial o abastecimento de gua e o manejo dos dejetos ficavam a cargo dos

    indivduos. Escravos, chamados de tigres, transportavam os dejetos carregando-os em potes

    sobre a cabea para despej-los em locais desertos. Este servio tambm era oferecido de

    maneira informal em troca de algum ganho, no entanto, as pessoas sem posses desfaziam-se

    dos dejetos em locais prximos de suas residncias, e com isso, ficavam mais sujeitas ao

    contgio de doenas vinculadas falta de salubridade.

    A partir do sculo XVIII o abastecimento de gua passa a ser realizado atravs de chafarizes e

    fontes pblicas, mas a distribuio ficava a cargo de escravos ou de vendedores. O manejo

  • 25

    dos dejetos permanecia ainda sob a responsabilidade dos indivduos. apenas no sculo XIX

    que se tem o incio da instalao das redes de abastecimento de gua domiciliar. Segundo

    Silva (1998, p. 50):

    Apesar da construo dos chafarizes, a oferta em gua no era satisfatria.Parte da populao se abastecia por fontes centrais e a gua era transportada por escravos ou comprada dos vendedores (os pipeiros). Alm disso, medida que cresciam as cidades, a populao mais carente ficava obrigada a realizar longos deslocamentos por falta de chafarizes prximos, ou por serem alguns destes explorados por companhias particulares que comercializavam a gua. Tal fato demonstrava que somente uma minoria da populao sebeneficiava com o atendimento dos servios bsicos. Essa situao tenderia a mudar com a mudana poltica e a consolidao da Repblica.

    Do ponto de vista urbanstico e econmico, a vinda da famlia real ao Brasil, em 1808,

    propiciou o desenvolvimento das cidades, houve crescimento significativo da populao dos

    centros urbanos, e com isso, surgem demandas por infraestrutura, como por exemplo,

    abastecimento de gua e manejo dos dejetos, habitao, transporte, etc. Neste perodo as aes

    de saneamento estavam intrinsecamente relacionadas promoo da sade pblica, atravs da

    inspeo sanitria porturia e do combate s epidemias de febre amarela e clera em cidades

    como Recife, Salvador e Rio de Janeiro. Deste modo, o saneamento deixa de ser uma questo

    apenas de ordem privada, j que envolvia outras dimenses, como as polticas de comrcio

    exterior.

    At as primeiras dcadas do sculo XX, a oferta de infraestrutura restringia-se aos ncleos

    urbanos, deixando margem as localidades mais afastadas e atendendo apenas uma pequena

    parcela da populao. Neste perodo a gesto dos servios de infraestrutura era realizada

    atravs do modelo de concesso, conforme explica Costa (1994, p. 73 apud SILVA, 1998, p.

    52):

    Os governos das provncias e dos municpios no tinham aparato tcnico-administrativo para implementar as aes demandadas pela populao. O prprio estgio de desenvolvimento tecnolgico brasileiro era pueril, enquanto a Inglaterra estava na vanguarda da tecnologia em engenharia sanitria do mundo, detinha capital e hegemonia poltica.

    Desta forma, coube ao Estado brasileiro o papel de regulamentar as concesses, enquanto aos

    investidores estrangeiros, entre eles os ingleses, competia a importao de tcnicas, materiais

    e insumos para operacionalizar os servios de infraestrutura.

  • 26

    Neste sentido, nota-se que as medidas adotadas pelo Estado brasileiro, tanto para controlar

    surtos epidmicos quanto para investir em infraestrutura, eram de carter emergencial, no

    existia uma continuidade das aes, caracterizavam-se sendo pontuais e fragmentadas.

    Segundo Silva (1998, p. 53), as medidas necessrias eram tomadas aps a instalao dos

    problemas, ou seja, quando a situao j tinha se tornado insustentvel, atingindo tambm os

    grupos privilegiados, como no caso das epidemias. A busca de solues para evitar as

    epidemias, fez com que se desenvolvesse no Rio de Janeiro, uma rede de abastecimento de

    gua e esgotos baseado no modelo ingls. A gua ento passaria a ser um bem econmico e

    seria comercializada.

    Por outro lado, observam-se mudanas de escala em relao aos servios de saneamento.

    Estes deixam de ser algo localizado, resolvido por aes individuais, ou um servio oferecido

    por pipeiros e escravos, e tornam-se servios ofertados por investidores estrangeiros em posse

    de capital e tecnologia para investir nas dispendiosas obras de saneamento bsico. Neste

    perodo, o pas ainda no era provido de empresas para desenvolver projetos desta natureza.

    Mas, a partir do final do sculo XIX, a engenharia sanitria nacional desenvolve-se, tendo

    como pioneiro o engenheiro civil Saturnino de Brito. De acordo com Silva (1998, p. 54),

    no perodo final do sculo passado [sculo XIX], a incipiente Engenharia Sanitria Nacional foi de importncia fundamental para o setor de saneamento no Brasil, destacando-se os trabalhos desenvolvidos pelo engenheiro Saturnino de Brito. Nesta fase, as tcnicas de interveno passaram a incorporar os problemas urbanos de maneira mais abrangente sobre o espao da cidade. Diversas transformaes ocorreram nas concepes urbansticas e na infraestrutura, marcada pela criao de novos servios de saneamento e crescimento do abastecimento de gua.

    Investir no aprimoramento da engenharia sanitria nacional possibilitou ao Estado brasileiro

    assumir o papel de provedor dos servios de saneamento bsico e no apenas regulador.

    1.1.2 O Estado enquanto provedor do saneamento: gesto pblica da gua x promoo

    da sade

    Desde a Constituio Republicana de 1891, os servios de infraestrutura urbana e a vigilncia

    sanitria tornaram-se incumbncia do Estado. E, a partir do incio do sculo XX, houve a

    valorizao das intervenes que priorizavam os aspectos sanitrios e de higiene no processo

  • 27

    de promoo da sade, propagando assim a poltica sanitria dos higienistas promovida por

    Oswaldo Cruz. Em 1904, foi criada a Diretoria Geral de Sade Pblica, cujo primeiro objetivo

    foi o combate febre amarela.

    Neste perodo, existiram dois movimentos importantes na rea do saneamento. O primeiro

    consistia na defesa da gesto pblica dos recursos hdricos, atravs da criao de rgos

    pblicos federais, como, por exemplo, a Inspetoria de Obras contra as Secas, dando incio

    formulao de normas de regulamentao da propriedade e aproveitamento dos cursos dgua

    em todo o territrio nacional (SILVA, 1998, p. 55). Neste momento o Estado passa a

    regulamentar a propriedade da gua, dissociando-a da propriedade da terra para investir no

    desenvolvimento do setor urbano-industrial, mas tambm com o intuito de estabelecer o uso

    social da gua. Para tanto, foi criado o Cdigo de guas, atravs do Decreto n 24.643, de

    10/07/1934, no governo de Getlio Vargas, pois considerava que o uso das guas no Brasil

    estava em

    desacordo com as necessidades e interesse da coletividade nacional.Considerando que se torna necessrio modificar esse estado de coisas, dotando o pas de uma legislao adequada que, de acordo com a tendncia atual, permita ao poder pblico controlar e incentivar o aproveitamento industrial das guas.

    O segundo movimento consistia na ao de promoo na rea de sade e saneamento, assim,

    em 1920, foi criado o Departamento Nacional de Sade Pblica. Por intermdio de Carlos

    Chagas, estas aes se estendem para todo o territrio nacional. Liderando o que se

    convencionou chamar de movimento sanitarista, o mdico Carlos Chagas colocou em

    evidncia as condies de sade das populaes rurais, considerando este um dos entraves

    para o Brasil tornar-se um pas civilizado, uma nao.

    A revoluo da dcada de 1930 fez com que emergisse o sentimento nacionalista nas

    configuraes institucionais do Estado brasileiro. O pas comea a investir em indstrias, o

    que muda um pouco a dinmica econmica que sempre teve suas bases nas monoculturas.

    Desta forma, h um grande fluxo de pessoas em direo aos centros urbanos. O que viria a

    influenciar a postura do Estado em relao s polticas pblicas. Conforme Silva (1998, p.

    58),

  • 28

    Desde ento, o Estado passou a implementar e gerir diretamente os servios,introduzindo uma certa modernizao tcnica e administrativa, demarcando um ponto de inflexo, onde diversas concesses de servios foram sendo encampadas. Contudo, essas iniciativas no eram, obrigatoriamente, produto de um estudo preliminar, de carter global esistemtico, mas resultantes das situaes crticas, ou problemticas, surgidas ao longo do processo poltico e da evoluo econmica.

    Observa-se ao longo da histria que as intervenes do Estado brasileiro, na rea do

    saneamento, muitas vezes tiveram o intuito de remediar as situaes instaladas. Entretanto, a

    partir da dcada de 1930, h uma guinada nesta postura e o Estado passa a investir na

    reformulao de instituies pblicas que fossem capazes de gerir os assuntos de sade e

    saneamento.

    No campo especfico da sade, atendendo demanda por integrao ereformulao dos diversos organismos pblicos, as questes tanto de sade como de saneamento, que estavam ligadas a outros setores governamentais, passaram a ser unificadas com a criao do Ministrio de Educao e Sade Pblica. Rodrigues & Alves (1977) ressaltam que a Constituio de 1934 foi a que mais expressamente tratou da Sade Pblica como responsabilidade do governo, prevendo a participao dos municpios nos problemas sanitrios(SILVA, 1998, p.59).

    Assim, observa-se que o Estado assume outra postura em relao gesto de servios

    pblicos, h uma retomada, o Estado no representa mais aquele que apenas confere

    concesses de servios, mas aquele que investe no planejamento governamental.

    Para o planejamento do setor de saneamento, o Departamento Nacional deObras de Saneamento (DNOS), que tinha atuao somente no Distrito Federal, foi estendido a todo o territrio nacional, a partir da experincia adquirida ao atuar na Baixada Fluminense. Desde ento, o DNOS ficou incumbido, alm da execuo das obras de drenagem, aterros e canais, de construir sistemas de guas e esgotos em todo o pas, sendo tais servios,posteriormente, entregues s administraes municipais (SILVA, 1998, p. 63).

    Aps a Segunda Guerra Mundial surgiram instituies internacionais, como a Organizao

    Mundial de Sade (OMS), que comeam a influenciar mudanas institucionais no setor de

    sade pblica e saneamento. Neste perodo, observa-se a transio do modelo de gesto

    adotado pelo Estado, este deixa de ser centralizador e torna-se mais liberal. Segundo Silva

    (1998, p. 64):

  • 29

    No setor de saneamento, destacava-se a busca por uma maior autonomia dos servios atravs das formas de gesto autrquicas, bem como de novos mecanismos e perspectivas de financiamento,visto que as taxas e tarifas dos servios de utilidade pblica, tais como energia, gua e esgotos, eram considerados irreais por parte do governo. Por outro lado, a Constituio de1946 procurou regulamentar a utilizao dos recursos naturais visando explorao econmica dos mesmos, de acordo com os princpios que a nortearam, dando nfase livre iniciativa e propriedade privada, reservando Unio a competncia para legislar sobre as guas.

    Vale ressaltar como neste perodo, ainda no existiam sistemas tarifrios bem delimitados,

    com regras claras e padres estabelecidos para o clculo do preo a ser cobrado pela oferta de

    servios tidos como de utilidade pblica.

    A partir da dcada de 1950, o Brasil assume uma nova postura em relao ao modelo de

    gesto. Desta vez, adota-se o desenvolvimentismo, a poltica econmica promovida pelo

    governo de Juscelino Kubitschek, com o intuito de acelerar o crescimento industrial do pas,

    baseada num Programa de Metas. Entretanto, de acordo com Silva (1998, p. 65),a

    administrao do saneamento continuava distribuda por vrios ministrios e autarquias, com

    pulverizao de recursos financeiros e disperso do pessoal tcnico,acentuando a distncia

    em relao ao que era realizado, neste setor, em outros pases.

    1.1.3 PLANASA: o foco no planejamento estratgico

    Em 1953, foi aprovado o primeiro Plano Nacional de Saneamento para financiar servios de

    abastecimento de gua em municpios, inicialmente, de at 50.000 habitantes, e que ainda no

    possuam rede de abastecimento. Num segundo momento, iria financiar a ampliao dos

    sistemas existentes. Entretanto, segundo Gleizer (2001, p. 15), a partir das falhas encontradas

    neste primeiro plano, foi formulado outro, considerando os seguintes aspectos: a)

    planejamento a longo prazo e b) incio em ritmo lento e acelerao medida em que as

    condies nacionais o permitissem.

    O Banco Nacional da Habitao (BNH), uma autarquia federal criada pela Lei n 4.380, de

    21/08/1964, vinculado ao Ministrio do Interior, tornou-se um rgo primordial para o

    financiamento de projetos de infraestrutura urbana, inclusive no setor de saneamento. O BNH,

    em 1968, implementa, em carter experimental, o Plano Nacional de Saneamento Bsico

    (PLANASA), que s foi formalizado em 1971. O censo de 1970 apontava que 50% dos

  • 30

    brasileiros eram contemplados com sistema de abastecimento de gua. Contudo, apenas 20%

    eram atendidos por sistemas de esgotamento sanitrio (MONTEIRO, 1993). Antes do

    PLANASA, os municpios, isoladamente, criavam seus sistemas de saneamento ao observar a

    distribuio destes sistemas pelo territrio nacional. Era possvel notar o desequilbrio entre as

    diferentes regies do pas. Conforme Monteiro (1993), estas iniciativas individuais

    colaboravam para: a) aumento dos custos operacionais b) mau aproveitamento dos escassos

    recursos humanos qualificados c) inviabilidade dos projetos relativos s comunidades menos

    ricas e d) aumento do valor do investimento requerido.

    Com o intuito de tentar solucionar esta disparidade, o PLANASA fomenta a criao de

    companhias de saneamento bsico para proporcionar a centralizao das aes de

    abastecimento de gua e esgotamento sanitrio no nvel estadual e no mais municipal. Estas

    companhias eram constitudas pelos Governos dos Estados e, deveriam firmar convnio com

    o BNH para a execuo do plano nos Estados. No entanto, nem todos os municpios aceitaram

    integrar esta nova poltica de financiamento das obras de saneamento bsico,

    aproximadamente 25% dos municpios preferiu continuar com suas aes locais, todavia,

    estes municpios ficaram a margem dos financiamentos oferecidos pelo BNH.

    Os investimentos necessrios para este setor eram bastante altos, assim as agncias

    internacionais financiadoras do PLANASA, por exemplo, o Banco Interamericano de

    Desenvolvimento (BID) e Banco Mundial, consideravam que o modelo de gesto realizado

    por sociedades de economia mista de capital autorizado e pessoa jurdica de direito privado

    poderia proporcionar mais credibilidade e segurana.Segundo o artigo 3 do Decreto n

    82.587, de 6/11/1978, o PLANASA tinha por objetivos permanentes:

    a) A eliminao do dficit e a manuteno do equilbrio entre a demanda e a oferta de servios

    pblicos de gua e de esgotos, em ncleos urbanos, tendo por base planejamento,

    programao e controle sistematizados;

    b) A auto-sustentao financeira do setor de saneamento bsico, atravs da evoluo dos recursos

    a nvel estadual, dos Fundos de Financiamento para gua e Esgotos (FAE);

    c) A adequao dos nveis tarifrios s possibilidades dos usurios, sem prejuzo do equilbrio

    entre receita e custo dos servios, levando em conta a produtividade do capital e do trabalho;

    d) O desenvolvimento institucional das companhias estaduais de saneamento bsico, atravs de

    programas de treinamento e assistncia tcnica;

  • 31

    e) A realizao de programas de pesquisas tecnolgicas no campo do saneamento bsico.

    Atravs do item c a adequao dos nveis tarifrios -, nota-se que pela primeira vez, h uma

    preocupao concreta com a questo da construo de um sistema tarifrio, por meio do

    estabelecimento de normas e diretrizes que buscassem o equilbrio entre as diferentes

    possibilidades de pagamento por estes servios, mas no esquecendo o equilbrio entre

    receitas e custos dos servios ofertados. Assim, notar-se- como compreender esta questo

    ser fundamental para observar o quanto esse fator influenciou o estabelecimento dos 10m

    como parmetro para o clculo das tarifas, adotado at hoje pelas concessionrias.

    Agora que foi apresentado um panorama geral sobre como o problema do saneamento tem

    sido tratado em diferentes momentos da histria do Brasil. Partiremos para a observao do

    caso especfico do Municpio de Salvador.

    1.2 SANEAMENTO BSICO EM SALVADOR

    Em relao prestao dos servios de abastecimento de gua e esgotamento sanitrio do

    Municpio de Salvador, desde 1925, estas aes so realizadas pelo Governo do Estado

    atravs de convnio administrativo firmado com a prefeitura. Assim, ao longo dos anos, a

    organizao do Governo do Estado foi se reconfigurando, novos rgo e entidades foram

    criadas para gerir estes servios. Entre eles, podemos citar a Subsecretaria de Sade e

    Assistncia Pblica, substituda pela Superintendncia de guas e Esgotos do Recncavo

    (SAER), instituda pela Lei n 1.549 de 11/01/1961, posteriormente transformada na

    Companhia Metropolitana de guas e Esgotos (COMAE) e, por fim, cria-se a EMBASA, a

    atual responsvel por estes servios, no apenas no Municpio de Salvador, mas em grande

    parte do Estado da Bahia.

    1.2.1 A criao da EMBASA

    O Governo do Estado da Bahia, por meio da Lei Estadual n 2929, de 11/05/1971, criou a

    Empresa Baiana de guas e Saneamento S/A EMBASA para viabilizar a implantao do

    PLANASA. Segundo o Plano Municipal de Saneamento Bsico de Salvador (2008):

  • 32

    Inicialmente, caberia a EMBASA desenvolver projetos, construir, ampliar e reformar diversos sistemas de abastecimento de gua e de esgotamento sanitrio em todo o Estado, enquanto suas subsidirias COMAE e COSEBocupar-se-iam, respectivamente, da operao dos sistemas de Salvador e da Regio Metropolitana e do interior baiano. Em 1975, no entanto, essas companhias foram extintas e seus servios incorporados EMBASA. Instituda como sociedade de economia mista de capital autorizado e pessoa jurdica de direito privado, a EMBASA foi a primeira companhia estadual do pas a capacitar-se para convnios com o extinto Banco Nacional de Habitao BNH, visando a captao de recursos no mbito do PLANASA.

    O Decreto Federal n 82.587, de 6/11/1978 estabelece as responsabilidades das companhias

    estaduais de saneamento bsico, sendo ento, a) executar a programao estadual de

    saneamento bsico, em consonncia com os objetivos e metas do PLANASA b) elaborar

    planos, estudos e propostas tarifrias, de acordo com as normas estabelecidas, submetendo-os

    ao BNH c) aplicar os reajustes tarifrios concedidos, de acordo com as autorizaes emitidas

    pelo Ministro de Estado do Interior d) cumprir as normas expedidas pelo BNH, relativas ao

    Sistema Financeiro de Saneamento (SFS).

    Observa-se, por meio da listagem destas responsabilidades, a submisso hierrquica das

    concessionrias estaduais s normas e diretrizes tanto do BNH, quanto do Ministrio do

    Interior. Assim, percebe-se que o horizonte de ao das concessionrias, em grande medida,

    estava condicionado pela agncia destes atores. No entanto, observaremos as peculiaridades

    das transformaes da poltica tarifria do sistema de abastecimento de gua do Municpio de

    Salvador.

    1.2.2 Saneamento e Poltica Tarifria: o caso de Salvador

    No Municpio de Salvador, a poltica tarifria dos servios de saneamento bsico passou por

    mudanas de marcos regulatrios. No perodo que vai de 1925 a 1961, obedecia s

    deliberaes do rgo da Administrao Direta do Estado, ento responsvel pela prestao

    dos servios. J no perodo de 1961 a 1971, deveria obedecer aos requisitos estabelecidos pela

    Lei Estadual n 1.549/1961 (PMSB, 2008).

  • 33

    A partir de 1971, a poltica tarifria ficou subordinada s normas tcnicas ditadas pelo

    Ministrio do Interior2e BNH, regulamentadas pela Lei Federal n 6.528/1978 e pelo Decreto

    Federal n 82.587/1978. Este decreto definiu algumas diretrizes para o estabelecimento da

    poltica tarifria da prestao dos servios de abastecimento de gua e esgotamento sanitrio,

    dentre elas, podemos destacar os aspectos econmicos e sociais (artigos 10 e 11), e

    concomitantemente, os aspectos tcnicos (artigos 12, 13 e 18).

    Os aspectos econmicos e sociais realam que os servios de saneamento bsico deveriam ser

    assegurados a todas as camadas sociais, atravs da adequao das tarifas ao poder aquisitivo

    da populao atendida. Portanto, as tarifas deveriam ser diferenciadas segundo as categorias

    de usurios e faixas de consumo para garantir o equilbrio entre elas. O pargrafo 2 do Art.11

    diz que a conta mnima de gua resultar do produto da tarifa mnima pelo consumo mnimo,

    que ser de pelo menos 10 m mensais, por economia da categoria residencial. Assim, pela

    primeira vez, definido um volume de gua como parmetro para o clculo da tarifa de gua.

    Porm, quando dispositivos como, por exemplo, leis, decretos, normas ou protocolos

    consolidam-se, o caminho percorrido por meio das controvrsias suspenso, pois estes

    dispositivos representam a objetivao das informaes j que as situaes so estabilizadas,

    ou, como diria Bruno Latour, as caixas-pretas so fechadas3. Apesar de uma lei ser datada,

    seu contedo no pode ser facilmente atribudo a um autor. De acordo com Latour (2001), a

    declarao ou dictum - a conta mnima de gua resultar do produto da tarifa mnima pelo

    consumo mnimo, que ser de pelo menos 10 m mensais, por economia da categoria

    residencial-, surge de um conjunto de situaes, pessoas e juzos, o que o autor chama de

    modificador ou modus. Mas quando as situaes so estabilizadas, o modificador desaparece,

    e apenas o dictum se mantm. Desta maneira, apesar de ter acesso legislao que pela

    primeira vez definiu os 10m como parmetro do clculo para estruturao do sistema

    tarifrio, torna-se difcil ter acesso ao modus desta definio.

    No que diz respeito aos aspectos tcnicos, o equilbrio entre as diferentes tarifas tambm deve

    possibilitar o equilbrio econmico-financeiro das companhias estaduais de saneamento

    2 O Ministrio do Interior tinha a funo de coordenar e controlar a execuo do PLANASA, para tanto fixava metas para definir os nveis de atendimento populao e estabelecer os prazos para o plano atingi-las.3 Para Bruno Latour caixa-preta qualquer actante estabelecido de tal maneira que apenas o seu exterior

    observado, ou seja, as peas que o compes so esquecidas. Estas peas vm tona apenas em situaes controversas.

  • 34

    bsico, visando condies eficientes de operao. Estes aspectos definem as categorias em

    que os usurios sero classificados, sendo ento, a residencial, a comercial, a industrial e a

    pblica. As categorias ainda podem ser subdivididas de acordo com as caractersticas de

    demanda e consumo. As companhias estaduais teriam autonomia para determinar o percentual

    de ligaes medidas e o tipo de medidores que seriam utilizados em sua rea de atuao. O

    pargrafo 1 do Art. 18, diz que: na ausncia dos medidores, o consumo poder ser estimado

    em funo do consumo mdio presumido, com base em atributo fsico do imvel ou outro

    critrio que venha a ser estabelecido.

    Este mesmo decreto define, no Art. 21, que as tarifas obedecero ao regime do servio pelo

    custo, garantindo s companhias estaduais de saneamento bsico, em condies eficientes de

    operao, a remunerao de at 12% (doze por cento) ao ano sobre o investimento

    reconhecido. Alm de definir que os custos dos servios deve ser o mnimo necessrio

    adequada explorao dos sistemas pelas companhias estaduais de saneamento bsico e sua

    viabilizao econmico-financeira. Assim, possvel notar que o estabelecimento de um

    volume mnimo est relacionando aos clculos desenvolvidos visando a auto-sustentao

    financeira das concessionrias estaduais.

    No Estado da Bahia, aps o trmino do PLANASA e revogao do Decreto Federal n

    82.587/1978, criou-se o Decreto Estadual n 3.060/1994 para suprir a carncia regulatria da

    poltica tarifria. Entretanto, este decreto mantinha na prtica as normas anteriores (SETIN,

    2008).

    Nos dias atuais, a poltica nacional de saneamento bsico regida pelas diretrizes

    estabelecidas pela Lei n 11.445, de 5/01/2007. Esta lei, conforme seu artigo primeiro,

    estabelece as diretrizes nacionais para o saneamento bsico e para a poltica federal de

    saneamento bsico. E tem como princpios fundamentais:

    I - universalizao do acesso;

    II - integralidade, compreendida como o conjunto de todas as atividades e componentes de

    cada um dos diversos servios de saneamento bsico, propiciando populao o acesso na

    conformidade de suas necessidades e maximizando a eficcia das aes e resultados;

  • 35

    III - abastecimento de gua, esgotamento sanitrio, limpeza urbana e manejo dos resduos

    slidos realizados de formas adequadas sade pblica e proteo do meio ambiente;

    IV - disponibilidade, em todas as reas urbanas, de servios de drenagem e de manejo das

    guas pluviais adequados sade pblica e segurana da vida e do patrimnio pblico e

    privado;

    V - adoo de mtodos, tcnicas e processos que considerem as peculiaridades locais e

    regionais;

    VI - articulao com as polticas de desenvolvimento urbano e regional, de habitao, de

    combate pobreza e de sua erradicao, de proteo ambiental, de promoo da sade e

    outras de relevante interesse social voltadas para a melhoria da qualidade de vida, para as

    quais o saneamento bsico seja fator determinante;

    VII - eficincia e sustentabilidade econmica;

    VIII - utilizao de tecnologias apropriadas, considerando a capacidade de pagamento dos

    usurios e a adoo de solues graduais e progressivas;

    IX - transparncia das aes, baseada em sistemas de informaes e processos decisrios

    institucionalizados;

    X - controle social;

    XI - segurana, qualidade e regularidade;

    XII - integrao das infraestruturas e servios com a gesto eficiente dos recursos hdricos.

    A poltica nacional de saneamento vem disponibilizando subsdios financeiros atravs dos

    seus planos de acelerao do crescimento, para garantir a universalizao do acesso ao

    saneamento bsico, especialmente para populaes e localidades de baixa renda (BRASIL,

    2007). Assim, a partir de 2007, a EMBASA buscou captar recursos disponibilizados pelo

    PAC para o setor de saneamento bsico, alm de atualizar seus projetos com o intuito de

    atender as metas previstas pelo Programa gua para Todos do Governo do Estado. O

    Programa gua para Todos tem por objetivo estratgico

    proporcionar o atendimento ao direito humano fundamental de acesso gua em qualidade e quantidade, prioritariamente para consumo humano, numa perspectiva de segurana alimentar, nutricional e de melhoria da qualidade de vida em ambiente salubre nas cidades e no campo(BAHIA, 2011).

  • 36

    Segundo informaes do Programa, ele visa atender populaes ribeirinhas, atendidas pelo

    Programa Bolsa Famlia, as residentes nas periferias das grandes cidades bem como nas reas

    de reforma agrria, comunidades indgenas, remanescentes de quilombos, reservas

    extrativistas e ainda as que enfrentam risco de desabastecimento.

    Em 2008, a Lei Estadual n 11.172 criada, alinhada Poltica Nacional de Saneamento

    Bsico. Esta lei instituiu princpios e diretrizes da Poltica Estadual de Saneamento Bsico,

    disciplinou o convnio de cooperao entre entes federados para autorizar a gesto associada

    de servios pblicos de saneamento bsico e outras providncias como a criao da Comisso

    de Regulao dos Servios Pblicos de Saneamento Bsico do Estado da Bahia CORESAB

    (SETIN, 2008).

    A CORESAB um rgo em regime especial vinculado a Secretaria de Desenvolvimento

    Urbano SEDUR, criado em dezembro de 2008, que tem a competncia de exercer as

    atividades de regulao e fiscalizao dos servios pblicos de saneamento bsico, mediante

    delegao enquanto no houver ente regulador criado pelo Municpio, ou agrupamento dos

    Municpios, por meio de cooperao ou coordenao federativa.Destacamos alguns assuntos

    sobre os quais lhe compete editar normas:

    Regime, estrutura e nveis tarifrios, bem como os procedimentos e prazos de seu

    reajuste e reviso;

    Medio, faturamento e cobrana de servios;

    Monitoramento dos custos;

    Avaliao da eficincia e eficcia dos servios prestados;

    A forma de administrao e contabilidade dos subsdios tarifrios e no tarifrios;

    Padres de atendimento ao pblico e mecanismos de participao e informao.

    A CORESAB surge com a ambio de ser uma esfera na qual se promova a prestao dos

    servios de saneamento bsico com a participao do municpio e da sociedade civil. No

    entanto, de acordo com Loureiro (2009)

    O modelo de gesto dos servios de abastecimento de gua e de esgotamento sanitrio preconizado pelo PLANASA, ainda bastante presente no Estado da Bahia, uma vez que a prestao dos servios, em sua maioria, se d via concessionria estadual e os municpios, como titulares

  • 37

    dos servios, se mantm ausentes das questes voltadas ao saneamento sem realizar o planejamento, a regulao e a fiscalizao e pouco incentivando a participao e controle social (p. 19).

    Entretanto, destaca-se a atuao da CORESAB na fiscalizao do regime, estrutura e nveis

    tarifrios, bem como os procedimentos e prazos de seu reajuste e reviso. A seguir;

    apresenta-se a atual estrutura tarifria adotada pela EMBASA.

    1.2.3 Estrutura Tarifria da EMBASA

    A EMBASA classifica seus usurios em subcategorias de acordo com as caractersticas

    descritas a seguir:

    a) Residencial Social:Residncias cadastradas e enquadradas no Programa Bolsa Famlia.

    b) Residencial Intermediria:Residncias com as seguintes caractersticas:- rea construda menor ou igual a 60 m2;- Padro COELBA mono ou bifsico;- Dotadas de no mximo 02 (dois) banheiros;- Com at no mximo 08 (oito) pontos de utilizao de gua;- Inexistncia de piscina.

    c) Residencial Normal:Qualquer residncia no enquadrada nas Categorias Residencial Intermediria e Residencial Social.

    d) Residencial Veraneio:Residncias localizadas nas cidades balnerias, estaes termais com utilizao sazonal.

    e) Filantrpica:Entidades Filantrpicas autorizadas pela Diretoria Executiva.f) Pequenos Comrcios:Pequenos Estabelecimentos Comerciais, no localizados em

    Shopping Centers ou galerias, que possuam no mximo 1 (um) ponto degua e no utilizem gua como atividade final (Farmcias, Sapatarias, Armarinhos, Barbearias, Pequenos Armazns).

    g) Construo:Construes de prdios ou conjuntos habitacionais com 05 (cinco) ou mais unidades.

    h) Industrial:Indstria em geral.i) Pblica:Estabelecimentos Pblicos no residenciais.j) Derivao Rural de gua Tratada:Abastecimento de gua Tratada, para consumo

    residencial, atravs de Derivaes Rurais.k) Derivao Rural de gua Bruta:Abastecimento de gua atravs de Derivaes

    Rurais. l) Derivaes Comerciais de gua Bruta:Abastecimento de gua Bruta, para consumo

    comercial, atravs de ligaes em Adutoras, excetuando-se contratos especiais.

    Para cada categoria, a EMBASA estabelece faixas de consumo diferenciadas. Abaixo seguem

    as faixas de consumo de gua e suas respectivas tarifas para consumos medidos:

  • 38

    Faixas de Consumos

    Residencial Social

    Residencial Intermediria

    Residencial Normal

    Residencial Veraneio Filantrpica

    At 10 m R$ 7,00 p/ms R$ 13,80 p/ms R$ 15,65 p/ms R$ 15,65 p/ms R$ 7,00 p/ms

    11 - 15 m R$ 3,08 p/m R$ 3,55 p/m R$ 4,38 p/m R$ 4,38 p/m R$ 3,08 p/m

    16 - 20 m R$ 3,36 p/m R$ 3,84 p/m R$ 4,68 p/m R$ 4,68 p/m R$ 3,36 p/m

    21 - 25 m R$ 5,01 p/m R$ 5,02 p/m R$ 5,25 p/m R$ 5,25 p/m R$ 5,01 p/m

    26 - 30 m R$ 5,58 p/m R$ 5,60 p/m R$ 5,86 p/m R$ 5,86 p/m R$ 5,58 p/m

    31 - 40 m R$ 6,17 p/m R$ 6,17 p/m R$ 6,46 p/m R$ 6,46 p/m R$ 6,17 p/m

    41 - 50 m R$ 7,08 p/m R$ 7,08 p/m R$ 7,08 p/m R$ 7,08 p/m R$ 7,08 p/m

    > 50 m R$ 8,51 p/m R$ 8,51 p/m R$ 8,51 p/m R$ 8,51 p/m R$ 8,51 p/mFonte: EMBASA, 2011

    A variao das faixas de consumo de gua para o pblico residencial diferencia-se da

    destinada aos outros pblicos, como se pode observar a seguir:

    Faixas de Consumo Comercial

    Pequenos Comrcios

    Derivaes Comerciais de gua Bruta

    Construo e Industrial Pblica

    At 10 m R$ 45,30 p/ ms R$ 19,35 p/ ms R$ 7,45 p/ ms R$ 45,30 p/ ms R$ 45,30 p/ ms

    11 - 50 m R$ 9,94 p/ m R$ 9,94 p/ m R$ 0,84 p/m R$ 9,94 p/m R$ 9,94 p/m

    > 50 m R$ 11,72 p/ m R$ 11,72 p/ m R$ 0,91 p/m R$ 11,72 p/m R$ 11,72 p/mFonte: EMBASA, 2011

    J em relao ao consumo de gua no medido, a EMBASA estabelece um valor fixo a ser

    cobrado mensalmente, referente ao consumo de 10m por ms, no importando se o volume

    real consumido pelos usurios seja superior ou inferior a 10m mensais.

    Subcategorias Tarifa

    Residencial Social R$ 7,00 p/ms

    Residencial Intermediria R$ 13,80 p/ms

    Residencial Normal e Veraneio R$ 15,65 p/ms

    Filantrpica R$ 7,00 p/ms

    Comercial e Prestao de Servios R$ 45,30 p/ms

    Pequenos Comrcios R$ 19,35 p/ms

    Construo / Industrial R$ 45,30 p/ms

    Pblica R$ 45,30 p/ms Fonte: EMBASA, 2011

    Na zona rural h ainda a cobrana sobre as derivaes de gua tratada e gua bruta, cobra-se

    respectivamente R$ 0,97 p/m e R$ 0,93 p/m pelo abastecimento de gua em regies com

    caractersticas rurais.

  • 39

    No que diz respeito distribuio dos usurios por subcategoria e faixa de consumo, pode-se

    destacar a subcategoria residencial social com 45% dos usurios classificados na faixa de at

    10m por ms. Acredita-se que 70% dos usurios residenciais consumam at 15m por ms

    (PMSB, 2008). Segundo os dados preliminares do Censo 2010, divulgados pelo Instituto

    Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE), 55% dos domiclios de Salvador possuem renda

    per capita menor que um salrio mnimo por ms. Apesar das tarifas possurem valores

    relativamente baixos se comparado com outros servios pblicos como, por exemplo, o

    fornecimento de energia eltrica, ainda bastante oneroso para a maioria dos usurios,

    comprometendo parcela considervel do oramento domstico.

    Em 2004, o Governo da Bahia, por intermdio da EMBASA, criou a tarifa residencial social

    com o intuito de viabilizar o acesso ao saneamento bsico com qualidade e baixo custo, para

    a populao carente na rea de atuao da Embasa. Para o enquadramento nesta tarifa, faz-se

    necessrio o atendimento a alguns requisitos, sendo eles:

    a) Ser proprietrio, inquilino ou morador do imvel, tenha ligao de gua da Embasa e seja titular do programa BOLSA FAMILIA do Governo Federal.

    b) Estar adimplente com a Embasa ou se existir dbito, negoci-lo de acordo os critrios estabelecidos (ver item 4.2.4 1- Ser isentado todo dbito vencido at 31/12/2003; 2- O dbito existente a partir de 01/01/2004 at a data do cadastramento ser tratado pelo valor histrico, ou seja, sem juros e multas e ter desconto de 30%, limitando o valor mximo a R$ 120,00).

    c) Preencher ficha de inscrio e anexar cpia de uma conta de gua do imvel e cpia do carto Bolsa Famlia.

    d) Imvel est enquadrado em uma das subcategorias residncias (exceto a subcategoria filantrpica)com uma nica unidade consumidora (economia).

    As dvidas compreendidas entre R$ 1 a R$ 171,50 so abatidas em 30%, e as acima deste

    valor so reduzidas para R$ 120. Nos dois casos, o saldo devedor pode ser parcelado em

    prestaes fixas sem juros, multas ou correes, nas seguintes condies: dbitos at R$ 30 =

    25 parcelas, de R$ 30,01 a R$ 60 = 40 parcelas, de R$ 60,01 a R$ 90 = 50 parcelas e de R$

    90,01 a R$ 120 = 60 parcelas (Ver ANEXO A).

    Em nota apresentada no site, a respeito do ltimo reajuste tarifrio, a EMBASA afirma

    possuir a quarta menor tarifa do pas

    No Nordeste, a Bahia cobra menos pela gua que os estados do Piau, Cear, Pernambuco, Rio Grande do Norte, Alagoas e Sergipe. Frente ao aumento de seus principais insumos, a Embasa reajustou a tarifa de gua e

  • 40

    esgoto em R$ 0,95 para 10 mil litros consumidos, parcelas divididas entre os meses de abril e junho. Dentre as 27 companhias de saneamento nacionais, a Embasa uma das que cobram menos pela prestao de servios. Mesmo com o reajuste, a empresa pratica a quarta menor tarifa mnima para abastecimento de gua, coleta e tratamento de esgoto do pas, na categoria residencial.

    J em notcia publicada, em 05/05/2008, no site da EMBASA, a respeito dos reajustes das

    tarifas de gua, afirma-se que

    o aumento foi calculado a partir do ndice de inflao IGP-M, registrado entre abril de 2007 e maio de 2008, levando em conta, principalmente, os altos reajustes sofridos por insumos derivados do petrleo, como tubos de PVC e Polietileno, e nos produtos qumicos necessrios ao tratamento da gua.

    A mesma notcia ainda traz outro argumento para justificar os reajustes tarifrios,

    O reajuste busca, tambm, recuperar uma pequena parcela dos R$ 1,6 bilho que sero investidos at dezembro de 2010, na implantao e ampliao de sistemas de gua e esgoto em diversos municpios da Bahia para que o Governo do Estado atinja a meta de atender mais de 3,5 milhes de pessoas com gua de qualidade e esgotamento sanitrio dentro do Programa gua para Todos.

    Ainda alega que,

    O aumento da tarifa, no entanto, no cobre os custos da Embasa relativos aoperao e manuteno dos servios, depreciao, proviso para devedores, amortizao de despesas e a completa remunerao do investimento reconhecido. A empresa continua subsidiando parte desses custos, sem repass-los aos seus clientes. Se o disposto no decreto estadual 3.060 e na Lei Nacional de Saneamento Bsico para o clculo das tarifas de gua e esgoto fosse cumprido em sua plenitude, o preo pago pela gua tratada teria que ser reajustado em 51,18%, pois de acordo com a nova regulamentao do saneamento, as concessionrias tero que prestar seus servios com sustentabilidade econmico-financeira.

    Apesar de a notcia anunciar que a empresa no est prestando seus servios com

    sustentabilidade econmico-financeira, o Relatrio Anual da Administrao e Demonstraes

    Financeiras de 2007 revela

    Os resultados financeiros alcanados em 2007 mostram uma trajetria consistente de melhoria dos indicadores. A receita operacional lquida superou em 13,2% a do exerccio anterior e pelo quinto ano consecutivo oresultado do exerccio foi positivo, desta feita R$ 47,9 milhes de lucro. Pela primeira vez, o principal indicador do Gerenciamento Pelas Diretrizes -GPD, o ndice de Eficincia Operacional - IEO -, que reflete os resultados da

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    perspectiva financeira, ultrapassou a meta estabelecida em 11%.

    Segue abaixo grfico apresentando a evoluo do lucro da Embasa entre os anos de 2001 e

    2007.

    Fonte: Embasa, 2008

    Atravs dos trechos da notcia e do relatrio expostos acima, nota-se elementos constitutivos

    de um tipo de calculabilidade, ou, como diria Max Weber, um tipo de racionalidade peculiar

    ao mundo dos negcios, no qual se busca a maneira mais eficiente de produzir o lucro.

    Entretanto, a oferta dos servios de abastecimento de gua difere em alguns aspectos da oferta

    de servios como um todo, afinal, a gua bruta no pode ser considerada um bem privado,

    logo no existe o preo da gua, o valor cobrado pelas companhias de abastecimento refere-se

    coleta e tratamento da gua bruta para sua disponibilizao na quantidade e qualidade para

    atender s necessidades humanas. A gua essencial vida e no possui substitutos diretos.

    Assim, o servio de abastecimento de gua

    se constituem em direito social dos cidados, cujo provimento e acesso universal devem ser garantidos pelo Poder Pblico, observados os pressupostos do princpio da subsidiaridade, em que a insuficincia do Municpio deve ser suprida pelo Estado e, a destes dois, pela Unio (PMSB, 2008).

    Desta forma, este servio deve ser acessvel a todos independentemente se eles tenham

    capacidade de pagar pelo seu uso. Portanto, fundamental que o poder pblico fornea

    subsdios para equilibrar este mercado, buscando condies para que todos os usurios

    possam ter acesso a este bem.

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    Tendo em vista estas caractersticas, as companhias de saneamento bsico encontram-se numa

    situao hbrida, j que se trata de empresas privadas, e como tal, buscam a sustentabilidade

    econmica, mas por outro lado, ao exercer sua calculabilidade, precisa levar em conta

    caractersticas do bem com que lida, alm das legislaes que confere universalizao e

    acessibilidade o status de princpio bsico para a oferta deste servio.

    Por outro lado, atravs do desenrolar das tramas que sustentam o sistema tarifrio dos servios

    de saneamento, tornou-se possvel identificar alguns atores (humanos e no humanos)

    envolvidos e qual contexto possibilitou a adoo dos 10m como parmetro para o clculo da

    conta mnima de gua. No entanto, percebe-se que o questionamento dos engenheiros-

    pesquisadores no est relacionado ao valor cobrado pelo metro cbico de gua tratada, mas

    pelo estabelecimento dos 10m enquanto parmetro para cobrana da conta mnima, pois

    impossibilita aos usurios sentir o impacto econmico das mudanas de comportamento em

    relao ao uso mais eficiente da gua, principalmente em relao s tarifas residenciais, j que

    a RTL adota a hiptese de que o fator econmico um dos principais elementos que

    influenciam as mudanas de hbitos e comportamentos em relao ao uso da gua.

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    CAPTULO II - TRAANDO TRAMAS DE INTERESSES: O PAPEL

    DAS REDES SOCIOTCNICAS

    No desenrolar da vida cotidiana, as redes que constituem atores ou instituies no esto

    visveis, parecem dissolvidas na magnitude da unidade, j que na prtica no lidamos com as

    tramas que possibilitam a existncia desta suposta unidade. Entretanto, apenas em momentos

    nos quais as unidades so posta