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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Educao e Humanidades
Faculdade de Comunicao Social
Marcio Blanco Chavez
A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de
formao audiovisual
Rio de Janeiro
2014
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Marcio Blanco Chavez
A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de formao audiovisual
Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Tecnologias da Comunicao e Cultura.
Orientador: Prof. Dr. Fernando do Nascimento Gonalves
Rio de Janeiro
2014
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CATALOGAO NA FONTE UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta dissertao, desde que citada a fonte. ___________________________________ _______________ Assinatura Data
C512 Chavez, Marcio Blanco. A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de
formao audiovisual / Marcio Blanco Chavez. 2014. 101 f. Orientador: Fernando do Nascimento Gonalves. Dissertao (Mestrado) Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Faculdade de Comunicao Social. 1. Autoria Teses. 2. Cinema na educao Teses. 3. Subjetividade
Teses. I. Gonalves, Fernando do Nascimento. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Comunicao Social. III. Ttulo.
es CDU 791:37(81)
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Marcio Blanco Chavez
A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de formao
audiovisual
Dissertao apresentada como requisito parcial para a obteno do ttulo de Mestre ao Programa de Ps-Graduao em Comunicao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. rea de concentrao: Tecnologias da Comunicao e Cultura.
Aprovada em 26 de maro de 2014
Banca Examinadora:
_______________________________________________ Prof. Dr. Fernando do Nascimento Gonalves (Orientador) Faculdade de Comunicao Social UERJ _______________________________________________ Prof.a Dra. Patricia Rebello da Silva Faculdade de Comunicao Social UERJ _______________________________________________ Prof. Dr. Cezar Migliorin Universidade Federal Fluminense UFF
Rio de Janeiro
2014
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AGRADECIMENTOS
minha famlia que sempre esteve por perto com seu amor.
Karine Mueller que sempre acredita, que me acompanha e nos momentos
difceis me conduz.
Aos meus guias e protetores.
Ao tempo que tudo concebe e transforma.
Aos companheiros de jornada do Ppgcom da UERJ, professores e funcionrios,
que amparam a construo do conhecimento.
Ao meu orientador Fernando Gonalves, sempre disponvel ao dilogo, uma
escuta generosa, um comentador preciso, um incentivador.
Aos integrantes da banca Cezar Migliorin e Patricia Rebello que forneceram
opinies teis e uma avaliao interessada da pesquisa.
Aos realizadores dos filmes que fazem parte desta pesquisa.
As pessoas que muito gentilmente cederam ateno e trabalho para que esta
pesquisa se realizasse: Viviane Ayres (Cinemaneiro), Andr Sandino (Cinemaneiro),
Luiz Cludio Lima (Ncleo Arte Grcia / Subrbio em Transe), Taris Oliveira, Walter
Fernandes, Loureno Cezar, Guilherme Cezar de Oliveira, Sabrine Muller, Ramon
Bezerra, Fernanda Bruno, Theresa Medeiros.
Ao Tito, a vida que se renova.
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RESUMO
CHAVEZ, Marcio Blanco. A questo da autoria na produo de filmes em duas oficinas de formao audiovisual. 2014. 101 f. Dissertao (Mestrado em Comunicao) Faculdade de Comunicao Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
na interseco entre o campo do audiovisual e o da educao que se localiza o interesse desta pesquisa. Ela parte da premissa que o meu objeto aquilo que passvel de ser mapeado, um dispositivo de subjetivao que se d no entrecruzamento de elementos presentes, de maneira mais ou menos direta, nos processos de fabricao de filmes em duas oficinas de formao audiovisual: oficina Cinemaneiro e oficina de video do Ncleo Arte Grcia. Apoiando-se metodologicamente na Teoria Ator Rede, de Bruno Latour, esta pesquisa ir apresentar um rastreamento da rede sciotcnica a partir das figuras discursivas presentes nos crditos dos filmes produzidos nessas oficinas: "No Limite do Horizonte, Complexo de Juninho e Kur, o valor da amizade. Esta pesquisa considera que a investigao sobre a autoria desses filmes revela muito sobre os modos de construo de vises de mundo implicados nos processos de formao em questo. Palavras-chave: Audiovisual. Educao. Coletivo. Metodologia
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ABSTRACT
CHAVEZ, Marcio Blanco. The question of authorship in film production in two workshops audiovisual training. 2014. 101 f. Dissertao (Mestrado em
Comunicao) Faculdade de Comunicao Social, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. It is in the intersection between the audiovisual field and the education that is the interest for this research. It starts from the premise that my object is what is able to be mapped device, a subjectivity that occurs in the intersection of elements present in a more or less direct way, the manufacturing processes of films made in two workshops audiovisual training: oficina Cinemaneiro e oficina de video Ncleo Arte Grcia . Using Actor Network Theory, by Bruno Latour, this research will present a tracking of socio-technical network from discursive figures present in the credits of films produced in these workshops: "No limite do horizonte", "Complexo de Juninho" and "Kur, o valor da amizade". This research considers that the investigation into the authorship of these films reveals much about the ways of constructing worldviews implicated in the formation processes in question. Keywords: Audiovisual. Education. Collective. Methodology
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SUMRIO
INTRODUO............................................................................................. 7
1 O ESPECTADOR COMO CRIADOR NO ENSINO DO AUDIOVISUAL..... 18
1.1 O uso do vdeo pelos movimentos sociais no Brasil............................. 18
1.2 Reduzindo distncias entre espectador e criador na oficina
Cinemaneiro................................................................................................ 24
1.3 Audiovisual e Geografia se unem na oficina do Ncleo Arte Grcia.... 30
1.4 As distncias entre espectador e criador no processo de formao... 33
2 AUTORIA NOS FILMES DE OFICINA........................................................ 40
2.1 A autoria no cinema................................................................................... 40
2.2 A autoria como gesto na direo de Kur, o valor da amizade....... 43
2.3 A autoria no cruzamento entre audiovisual e educao em No
Limite do Horizonte ................................................................................ 51
3 A FICO COMO CAMPO DE NEGOCIAO ENTRE A RAZO E O
AFETO......................................................................................................... 59
3.1 Representao e afeto na escrita de Complexo de Juninho.............. 59
3.2 A fico da oficina e a fico de Kur: uma analogia......................... 66
3.3 No Limite do Horizonte e a importncia dos afetos na construo
do espao geogrfico................................................................................ 69
4 A CONSTRUO DA VISIBILIDADE DA PRODUO AUDIOVISUAL
DE OFICINA................................................................................................. 74
4.1 A afetao mtua entre os filmes e suas vias de circulao................. 74
4.2 A ficha de inscrio faz o filme se dizer coletivo ............................... 76
4.3 A primeira exibio pblica de Kur e Complexo de Juninho....... 77
4.4 A circulao da obra legitima a autoria................................................... 79
4.5 De quem a obra? .................................................................................... 83
CONSIDERAES FINAIS......................................................................... 89
REFERNCIAS........................................................................................... 93
ANEXO A - Cronograma de aulas da oficina Cinemaneiro......................... 99
ANEXO B - Argumento de Kur, o valor da amizade............................... 100
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INTRODUO
Este trabalho de pesquisa o desdobramento de um percurso de 14 anos,
iniciado quando ainda era aluno de graduao em cinema na Universidade Federal
Fluminense. Nesse trajeto, que iria durar 04 anos, passei por diversas disciplinas que
aos poucos me introduziram nesse vasto campo de estudos que o cinema. Tomei
contato com diversas formas de tratar o som e a imagem, conheci cinematografias,
diretores, gneros e todo um universo at ento desconhecido se abriu. Esse caminho
foi percorrido no sem dificuldade e espanto diante da complexidade que a arte
cinematogrfica, atravessada por inmeras reas de conhecimento, o que contrastava
com o gesto banal de assistir a um filme como espectador. Tendo trabalhado em
alguns filmes nesse percurso, em diversas funes, a ponte estabelecida entre teoria
e prtica forjou em mim o sentido do cinema como forma de interveno no mundo.
Na metade do curso resolvi fazer uma oficina em uma favela que ficava ao lado do
campus. Ali passei muitos momentos dos ltimos dois anos de universidade
conversando sobre cinema. Esse meio de expresso esttica acabou por promover e
facilitar a convivncia, a troca de conhecimentos e a construo do afeto entre seus
participantes. Os quatro movimentos entrelaados: o de ver um filme por prazer; o de
estudar o cinema por uma necessidade de compreender e ampliar o sentido desse
gesto; a realizao de algumas obras; e a relao, mediada pelo cinema, com
moradores daquela comunidade tiveram um forte impacto na minha vida, na minha
subjetividade.
Aps a concluso da graduao esses quatro movimentos continuaram se
desenvolvendo e, como em uma dana sem coreografia, seguiram desenhando linhas
de fora que hora se encontravam, hora se distanciavam mas sem jamais perderem a
relao entre elas. Desenvolvi e participei de vrias experincias de ensino em
oficinas, escolas e organizaes no-governamentais. Ao mesmo tempo, de maneira
informal, continuava minha pesquisa, tomando conhecimento de outras experincias
na cidade e no pas que uniam educao e cinema, anteriores ou concomitantes a
minha prpria. Ganhava a percepo de que essas experincias se multiplicavam a
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medida que um novo ciclo de inovao tecnolgica impulsionada pelo digital ia se
disseminando pela sociedade brasileira, a exemplo do que acontecera em outros
perodos, como foi o caso da chegada da tecnologia do vdeo no pas no incio dos
anos 80.
Em 2007 os quatro movimentos se encontraram na criao do Festival Vises
Perifricas, idealizado e coordenado por mim em suas sete edies. O Vises nasceu
com a proposta de discutir e divulgar a produo de projetos educativos em espaos
populares que lanam mo do audiovisual em alguma etapa do seu processo
metodolgico, seja como um fim em si, seja como meio para se alcanar outros
objetivos de interesse dos projetos. O festival comeou com 180 inscries, reunidas
em 06 mostras, e pulou para uma mdia de 500 inscries por edio nos ltimos 02
anos, basicamente no formato de curta-metragem. O nmero de mostras tambm
cresceu, tendo dobrado de nmero na ltima edio em 2012 e includo produes da
regio ibero-americana. Hoje, uma de suas principais mostras a Visorama, que
rene filmes produzidos em oficinas, escolas livres e projetos sociais.
O desejo desta pesquisa surge de uma evidncia reiterada ao longo de 07 anos
fazendo a curadoria da mostra Visorama. Uma parte relevante de filmes nela inscrita
preenchia uma ou mais funes de equipe utilizando o termo coletivo(a). Geralmente
o termo associado funo direo mas ele tambm podia ser encontrado em
funes como roteiro e produo. Dentro dessa mostra tais filmes contrastavam
com outros onde as funes continham nomes de pessoa fsica, um modo mais
comum de se preencher as funes de uma equipe de filmagem. Essa evidncia
colocou em um primeiro momento duas perguntas: afinal o que quer dizer o uso do
termo coletivo no caso desses filmes que chegam ao Vises Perifricas? O que os
diferenciaria de filmes que atribuem suas funes a nomes prprios?
Como coordenador do Vises Perifricas considero ser uma de suas misses
provocar uma reflexo sobre os processos de fabricao dos filmes que participam
dele, ouvir os indivduos que participam desses processos, incluindo a o pblico do
festival se consideramos que o processo no termina com a produo da obra mas se
estende at a sua exibio. Um dos pontos que sempre me interessou e que procurei
explorar nos debates das duas ltimas edies foi acerca da metodologia de ensino.
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Ainda que houvesse um esforo dos realizadores e coordenadores envolvidos nos
projetos para falar sobre o assunto sentia que as falas deixavam lacunas e que o
tempo de debate era insuficiente para esclarecer minhas dvidas. Alm disso,
contribua para provocar essa insatisfao a percepo de uma certa idealizao nas
falas acerca do uso do termo coletivo nos crditos, o que se chocava com a minha
prpria experincia sobre os procedimentos usuais de produo de um filme, onde h
uma ntida hierarquizao de funes e onde cada uma delas desempenhada por
um indivduo ou at mais de um pessoa fsica. As falas no equacionavam a
relao entre as decises que forosamente devem ser tomadas no processo de
realizao de um filme e o prprio processo pedaggico dos projetos onde esses
filmes so realizados.
Partindo dessa percepo esta pesquisa se inicia com um levantamento de
filmes no banco de dados do Festival Vises Perifricas. Foi usado como filtro de
levantamento a ocorrncia do termo coletivo (a) apenas na funo direo. No
objetivo fazer uma anlise estatstica mas, apenas para marcar a relevncia desse
conjunto, em trs anos (2010 a 2012) foram encontrados 101 filmes inscritos onde
consta a palavra coletivo(a) na funo direo. Um dos filmes desse conjunto foi
escolhido para fazer parte dessa pesquisa: No Limite do Horizonte. uma
realizao em parceria do Cineclube Subrbio em Transe, da oficina de vdeo do
Ncleo Arte Grcia (NAG) e do Ponto de Cultura Carpintaria de Montagem. Ele foi
inscrito e exibido no festival em 2012 como direo coletiva.
Quando a pesquisa tem incio nesse mesmo ano a ideia era investigar apenas
filmes j finalizados que apresentassem o uso do termo coletivo na direo. Por
questes metodolgicas surgiu o desejo de se investigar outros filmes a partir do
acompanhamento in locu de seus processos de fabricao. Nessa poca teve incio
na cidade a realizao de uma oficina de cinema realizada pelo projeto Cinemaneiro,
que j havia participado do Vises Perifricas. Em edies passadas do festival essa
oficina compareceu com filmes utilizando o termo coletivo na ficha de inscrio. Isso
fica evidente na consulta ao banco de dados. Decidiu-se ento acompanhar a
produo dos filmes nessa oficina para se investigar o possvel uso do termo coletivo
nesse caso. Dessa forma, surgem os outros dois filmes que fazem parte do objeto:
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Kur, o Valor de uma Amizade e Complexo de Juninho. Eles foram realizados no
perodo de 15 a 03 de Maio de 2013. Embora j tenham sido finalizados e exibidos
publicamente, eles no foram inscritos na edio 2014 do festival1. Nos crditos finais
desses dois filmes todas as funes, dentre elas a de direo, so atribudas a nomes
de pessoas fsicas. Houve ento uma adaptao da proposta inicial e o interesse
desta pesquisa se deslocou para a questo da autoria nos filmes. A pesquisa passou
a se concentrar na investigao dos enunciados que faziam emergir diferentes figuras
de discurso o coletivo no caso de No Limite do Horizonte, e o uso de nomes
prprios ocupando as funes no caso de Kur e Complexo de Juninho.
na interseco entre o campo do audiovisual e o da educao que se localiza
o interesse desta pesquisa. Ela parte da premissa que o meu objeto aquilo que
passvel de ser mapeado, um dispositivo de subjetivao que se d no
entrecruzamento de elementos presentes, de maneira mais ou menos direta, nos
processos de fabricao dos filmes. Deleuze considera o dispositivo uma maquinao,
um conjunto de foras heterogneas que, reunidos sob uma arquitetura, distribuem o
visvel e o invisvel. Os filmes desta pesquisa so resultado desse conjunto de foras
que convergem em dado momento para a sua materializao mas que no se
esgotam neles, e como tal, podem ser vistos como enunciados no discursivos que
produzem efeitos de subjetivao. Por sua vez a maneira como as figuras discursivas
so dadas a ver nos filmes o termo coletivo na ficha de inscrio ou os nomes
prprios nos crditos emergem no interior de regimes de enunciados que mobilizam
oficina, escola, manuais, mquinas de captao de imagem e som, roteiro, alunos,
facilitadores, festival, territrio, etc.
Desde que o Festival Vises Perifricas surgiu ele rene e sistematiza um
amplo panorama de projetos de todo o Brasil que estimulam jovens, em sua maioria, a
dar os primeiros passos na produo audiovisual. Alguns desses jovens tem a
oportunidade de participar pela primeira vez de um festival e trocar experincia com
realizadores de outros lugares do pas. Esta pesquisa assume que a relao ensino-
1 Kur, o valor de uma amizade e Complexo de Juninho foram produzidos no intervalo entre uma edio e outra do Festival Vises Perifricas. No momento que essa dissertao redigida as inscrio para a edio 2014 ainda no estava aberta.
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aprendizagem desses projetos compe um conjunto heterogneo de foras onde
indivduos se posicionam em relao a elas e se constituem como sujeitos. Portanto,
no existe um sujeito pronto e acabado mas processo de subjetivao. No caso desta
pesquisa este processo se d no entrecruzamento de linhas de fora que tm origem
em diversos campos de atividade, desde a etapa de captao de recursos para
financiamento das oficinas, passando pelas metodologias de ensino, produo dos
filmes at o momento em que estes chegam ao pblico.
Os termos ou nomes nos crditos que geralmente acompanham uma obra
audiovisual podem ser vistos como rastros desse processo. Eles evidenciam uma
certa maneira de organizar a produo dos filmes. A equipe dividida por funes e
estas so anlogas as etapas que uma obra cinematogrfica percorre para ser
produzida. Cada etapa por sua vez tem uma forma de organizar e distribuir
responsabilidades por indivduos reconhecidos pela competncia para assumir aquele
trabalho. Geralmente assim que acontece mas claro que esse modelo pode ter
suas excees. Por sua vez, nas oficinas de vdeo que fazem parte desta pesquisa
temos uma situao em que indivduos so estimulados a produzir filmes sem que
possuam uma experincia prvia com esse trabalho, portanto, estariam em uma
situao de aprendizagem, aprendendo a fazer filmes. Esta a regra geral mas que
tambm pode ter suas ressalvas.
O processo de fabricao dos filmes se d no cruzamento de dois regimes de
enunciado, o do cinema que estabelece uma maneira de organizar os crditos de uma
obra com base na experincia dos realizadores. E outro, o da educao que presume
que o pblico alvo dos projetos no tem experincia ou no sabe produzir um filme. O
encontro entre esses dois regimes tem como efeito produzir aes por parte de todos
os envolvidos. nesse encontro que acontecem os processos de subjetivao nas
oficinas. Para efeito desta pesquisa considere-se um rastro desse processo a forma
como os crditos so organizados nos filmes. No caso dos filmes que so abordados
um deles se inscreve no Festival Vises Perifricas como direo coletiva. Os outros
dois atribuem a mesma funo (e outras mais) pessoas fsicas em seus crditos. O
que motiva que em cada um deles estabelea um modo diferente de nomear tais
funes? Essa pergunta ir permear esta investigao do incio ao fim e seus
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desdobramentos iro procurar fazer ver os processos de produo subjetiva que
parecem atravessar e produzir essas nomeaes.
A pesquisa toma emprestado o campo conceitual de produo de subjetividade
do trabalho em conjunto de Gilles Deleuze e Flix Guattari. Eles esto de acordo em
que a subjetividade produzida pelas redes e campos de foras sociais. Eles afirmam
que no h sujeito mas processo de subjetivao. Para Guattari subjetivao :
(...) o conjunto das condies que torna possvel que instncias individuais e/ou coletivas estejam em posio de emergir como territrio existencial auto referencial, em adjacncia ou em relao de delimitao com uma alteridade ela mesma subjetiva. (GUATTARI, 1992, p.19)
A principal hiptese desta pesquisa que os enunciados que organizam de
distintas formas as figuras discursivas presentes nos crditos dos filmes em questo
tem muito a dizer sobre a relao ensino-aprendizagem das oficinas e os processos
de subjetivao que tal relao implica. As linhas de fora que atravessam a
realizao dos filmes prope modos de sentir e induzem formas de subjetividade que
esto em sintonia com os modos de fabricao ou as metodologias de cada uma das
oficinas, bem como das vises de mundo que delas fazem parte. Ao mesmo tempo
essa operao tem um impacto na esttica das obras que nesta pesquisa sero
observadas em funo das condies de aprendizagem, produo e visibilidade
(formas de circulao e de legitimao) de cada filme.
Quais a condies que permitem diferentes configuraes nos crditos de cada
filme? Elas no esto dadas a priori, preciso torn-las visveis, mas no se trata de
um segredo que iremos revelar, algo de oculto por detrs dos filmes. Uma vez
colocado que o objeto desta pesquisa encontra-se na relao entre vrias foras que
o atravessam, preciso estabelecer uma maneira de rastrear as associaes de
foras heterogneas e caminhar entre elas. Nesse sentido usaremos a Teoria Ator
Rede, de Bruno Latour. A TAR , antes de tudo, um mtodo, um caminho para seguir
a construo e fabricao dos fatos. Um dos efeitos propiciados por esta teoria-
mtodo o de evidenciar que os elementos podem ter a capacidade de agenciar ou
produzir efeitos, aes e mudanas num dado contexto. Os filmes no sero
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analisados como obra fechada em si, mas como desdobramentos de agncias e
mediaes presentes em seu processo de realizao. No caso de nosso objeto,
entenda-se como agncia a capacidade que tem os diversos actantes envolvidos
(alunos, facilitadores, oficinas, escolas, discursos, objetos, etc.) de incidir no processo
de aprendizagem e produo dos filmes, modificando-os de acordo com os seus
prprios interesses e vises de mundo. preciso aqui esclarecer que o termo actante2
no se refere apenas a humanos nem supe que ele exista de forma autnoma.
Dentro da relao de aprendizado que se estabelece nas oficinas no so apenas os
humanos ou instituies que agem. Existe uma srie de artefatos tcnicos (cmeras,
manuais, filmes, etc.) que incidem sobre a relao, fazendo com que o curso da ao
nesse contexto assuma direes previsveis ou inesperadas no processo de produo
dos filmes. Os prprios filmes sero considerados actantes na medida em que eles
incidem nos processos de subjetivao na oficina. Os actantes tambm podem agir
pela mediao. Eles transformam e modificam o significado ou os elementos que
supe devem transportar na medida que incidem sobre o curso da ao. Latour difere
mediador do intermedirio3.
Sempre que nos deparamos com um fato visto como natural podemos rastre-
lo como efeito de uma rede de mediaes que subtraem elementos, acrescentam
outros ou apenas os transmitem adiante. A rede no uma coisa e que teria forma
aproximada de pontos interconectados, ela uma expresso que serve para verificar
quanta energia, movimento e especificidade so capazes de capturar nossos prprios
informes (LATOUR, 2005, p.190). Quanto menos esse fluxo de aes for
transformado pelos mediadores mais natural ele parecer, mais ele se aproximar da
ordem dos fatos.
Embora a realizao de um filme de formao j contenha por si s um grande
potencial de controvrsia ao unir condies de produo diferentes esta pesquisa no
2 Ele no a fonte de uma ao seno um branco mvel de uma enorme quantidade de entidades que convergem at ele. (LATOUR, 2005, p.73) No caso desta pesquisa importante compreender a importncia de se atribuir tambm capacidade de ao a no-humanos.
3 Intermedirio seria o que transporta significado ou fora sem transformao: definir seus dados de entrada basta para definir seus dados de sada. J o mediador por simples que ele possa parecer, pode virar algo complexo; pode levar a mltiplas direes. (LATOUR,2005,p.63)
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procura confirmar se os filmes so ou no realizados coletivamente ou se a
distribuio de funes nos filmes entre participantes respondeu a algum critrio
coerente. Partindo do princpio que todo fato uma construo coletiva, e no caso de
um filme isso ainda mais evidente, o que se quer investigar os efeitos de
subjetivao que resultam da organizao dos crditos nos filmes. As figuras
discursivas que aparecem nos crditos so apenas um ponto de partida para se
investigar isso. Em outras palavras, como as condies que tornam visvel os filmes e
seus crditos se configuram como produtoras de subjetividade para os envolvidos no
processo. Essa uma pergunta que estar presente como foco de anlise em todos
os captulos.
Vistos como aquilo que Foucault chamou de enunciados no-discursivos
(DELEUZE,2005) seguiremos o trabalho de fabricao dos filmes, dos sujeitos, dos
objetos; fabricao que se faz em redes-sociotcnicas, atravs de alianas entre
actantes humanos e no-humanos. No caso de No Limite do Horizonte, uma vez que
o filme j se encontrava acabado quando esta pesquisa foi iniciada, uma parte do
rastreamento de seu processo de produo foi feito atravs de entrevistas com os
actantes envolvidos. Outra parte foi feita analisando-se qualquer tipo de actante que
houvesse deixado rastros acerca da produo do filme, sendo ele prprio considerado
um actante. A internet foi fundamental para seguir os rastros de algum desses
actantes (oficina, alunos, professores, cineclube). A partir da observao de seus
crditos no site do Festival Vises Perifricas, tambm considerado um actante
importante nessa rede, identificamos e entrevistamos alguns indivduos que a partir de
seus depoimentos nos levaram a outros. Assim fomos restituindo o movimento de
fabricao do filme.
Em Complexo de Juninho e Kur a observao dos processos de produo
e de autoria foi feito in locu, durante o processo de sua fabricao. A Oficina
Cinemaneiro, onde eles foram produzidos, teve durao de 03 semanas. Durante esse
tempo pude acompanhar e registrar em udio e vdeo alguns momentos-chaves: a
primeira aula, os primeiros exerccios com equipamento de captao, a primeira
reunio para escrever o roteiro, o dia de gravao, a edio do filme e sua primeira
exibio para moradores da Mar, onde a oficina aconteceu e o filmes foram
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produzidos. Trata-se de uma outra forma de rastreamento pois neste caso participei
como observador dos momentos em que o filme foi fabricado antes dele virar uma
caixa preta 4 . Alm da observao foram feitas entrevistas com alguns dos
participantes envolvidos na produo do filme. Ao contrrio de No Limite do
Horizonte esse curta no foi inscrito no festival.
Na verdade, a investigao de processos de produo de subjetividade
pressupe quase sempre um processo em curso. No caso de se rastrear processos
que partem de filmes prontos e acabados a dificuldade de se instalar em um
experincia que remete ao passado evidente. Portanto, acompanhar a fabricao
dos filmes in locu foi fundamental para esta pesquisa pois abriu a oportunidade de se
acompanhar um momento em que praticamente toda a rede de foras ao qual o objeto
se encontra conectado estava presente e atuante.
Os filmes que fazem parte desta pesquisa foram escolhidos levando em conta o
tempo de existncia dos projetos, a sua relao com o Festival Vises Perifricas e a
localizao de forma que o acompanhamento da oficina e o contato com os envolvidos
pudesse ser feita de forma mais frequente e direta. Alm desses pontos j
enumerados, vale destacar que ambos os projetos atendem um pblico morador de
regies da cidade consideradas perifricas, o que refora a importncia da pesquisa
como instrumento til de reflexo no mbito de polticas pblicas para esses
segmentos da populao.
A partir das perguntas provocadas pelos filmes, a pesquisa procura contribuir
para o debate acerca da relao entre educao e audiovisual que atualmente
realizado em diversos fruns espalhados pelo pas, sendo o prprio Vises Perifricas
um deles. A discusso dessa relao ganhou flego com o projeto de lei de n 7.507,
de 2010, que incorpora e acrescenta a Lei n 9.394, de 20 de Dezembro de 1996, das
diretrizes e bases da educao nacional, no seu artigo 26, pargrafo 6, a
obrigatoriedade de exibio de filmes e audiovisuais de produo nacional nas
escolas de educao bsica.
4 Latour retira esse termo da ciberntica onde caixas pretas so colocadas no lugar de sistemas muito complexos.
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Embora a aprovao desta lei seja um passo adiante para a aproximao dos
dois campos, ela se limita a garantir a exibio de filmes dentro da escola. Nesse
sentido a relao audiovisual e educao ainda se encontra fragilizada no mbito mais
formal da educao pela falta de uma perspectiva contempornea que contemple uma
reflexo sobre o campo do audiovisual na escola na perspectiva de sua realizao.
Em uma poca em que o acesso aos meios de produo e difuso audiovisual
enormemente facilitado grande parte da populao, principalmente aos mais jovens,
essa uma falta que deve ser encarada com seriedade.
Tendo apresentado nesta introduo os objetivos da pesquisa e as bases
metodolgicas de investigao a estrutura da dissertao pode ser assim
apresentada: o segundo captulo deste trabalho procura contextualizar a produo dos
filmes em questo. Para comear, feito um breve panorama histrico dos modos de
apropriao do audiovisual pelos movimentos sociais, de onde podemos ver em
perspectiva as atuais experincias de formao audiovisual. A segunda e terceira
parte se encarregam de rastrear os principais actantes envolvidos no processo de
aprendizagem e produo dos filmes em questo, detendo-se mais nas metodologia
das oficinas. Segundo Latour, somente podem ser considerados actantes aqueles
elementos que produzem efeito na rede, que a modificam e so modificados por ela.
Necessariamente um actante deve deixar rastros. Sendo os filmes os actantes que
instigaram essa investigao, a partir do contexto em que eles foram produzidos que
o rastreamento se inicia. A ltima parte do captulo faz uma reflexo sobre como as
metodologias das oficinas instauram distncias entre o espectador e criador e como
essas distncias incidem no processo de fabricao dos filmes.
O terceiro captulo traa um panorama da constituio da funo autor no
campo do cinema. Os filmes desta pesquisa so atravessados por diversas linhas de
fora que, ao interagirem entre si, enunciam sua autoria. Consideramos aqui que as
figuras discursivas presentes nos crditos finais so rastros desse tipo de enunciao.
O interesse deste captulo investigar o modo como os indivduos envolvidos se
posicionam em relao a essas foras. Como isso contribui para organizar as figuras
que surgem nos crditos finais reiterando ou propondo novas formas de
funcionamento do discurso.
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O quarto captulo vai pensar, a partir do pensamento de Jacques Rancire, a
fico como um campo de negociao entre as diversas linhas de fora que incidem
sobre a fabricao dos filmes. A fico como a representao dos espaos anterior a
produo dos filmes ou resultante de uma partilha de afetos provocada pela produo
dos filmes. Essa negociao um lugar privilegiado onde podemos ver como os
indivduos se posicionam em relao as foras que incidem na fabricao os filmes.
Finalmente, o quinto captulo descreve a afetao entre os filmes e suas vias
de circulao fazendo ver com a autoria tambm se constri nesse contato.
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1 O ESPECTADOR COMO CRIADOR NO ENSINO DO AUDIOVISUAL
1.1 O uso do vdeo pelos movimentos sociais no Brasil
Em certa medida o sculo XX foi o sculo das imagens em movimento e ele
seria completamente diferente sem o cinema. O mundo contemporneo o lugar das
imensas e superlotadas metrpoles que se configuram por efeito e influncia de uma
variedade de meios de comunicao. No sculo XIX foram realizadas muitas
pesquisas sobre o papel constitutivo do corpo na apreenso do mundo visvel
(CRARY, 2012). Essas pesquisas geraram um acmulo de conhecimento sobre o olho
humano que teve como uma de suas consequncias a criao da mquina
cinematogrfica. Desde o seu incio o cinema foi usado em contextos polticos
diversos enquanto tcnica de normatizao dos sujeitos e de racionalizao de sua
percepo. O seu alto custo de produo e circulao durante muito tempo afastou as
camadas mais populares da sociedade do polo produtor dessa cadeia. A maior parte
da populao participava dessa relao com o cinema apenas na condio de
observador. Foi apenas com o surgimento da tecnologia do vdeo no final da dcada
de 60 que ela comeou a ganhar autonomia para realizar suas prprias produes.
Nessa poca comeam a surgir as primeiras experincias de vdeo popular na
Europa e Amrica do Norte. Luiz Fernando Santoro (1989), no seu livro A imagem
nas mos, conceitua o vdeo popular como a produo de programas de video com a
participao direta dos movimentos populares em sua concepo, elaborao e
distribuio, inclusive apropriando-se dos equipamentos de video. Santoro entende
como movimentos populares os sindicatos, associaes de moradores, movimentos
dos sem-terra e grupos independentes.
O surgimento dessas experincias aconteceu principalmente por dois motivos:
reduo dos custos de produo e a simplificao operacional dessa tecnologia,
ambas mudanas significativas se comparadas ao cinema e televiso da poca. A
experincia que resultou desse alargamento da faixa de realizadores aconteceu sob o
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esprito de efervescncia poltica da poca e foi enxergada como instrumento de
contrainformao ou militncia com objetivo de se opor informao hegemnica,
oferecendo uma outra verdade livre de discriminao e alienao. Articuladas com a
tecnologia de distribuio da televiso por cabo, essas experincias fizeram surgir as
primeiras TVs comunitrias no incio da dcada de 70, principalmente no Canad e
na Frana. Uma das linhas em torno da qual giravam essas experincias de
contrainformao diz respeito a uma guerrilha receptiva, onde o pblico, assumindo
o papel de agente do discurso audiovisual, tambm desenvolve instrumentos para a
sua leitura crtica.
Surgiu assim um sistema de TV onde a participao do espectador era possvel, os temas ligados ao seu dia-a-dia estavam presentes nos programas, a midiatizao das mensagens pelos profissionais era reduzida, enfim, onde os papis de emissor e receptor estavam sujeitos a permutas, onde o espectador passivo da TV de massa poderia tornar-se ativo. (SANTORO, 1989, p. 25)
Nas palavras de Santoro, o movimento do vdeo popular no Brasil nasceu junto
com a chegada e difuso dessa tecnologia no pas. Lanado no final dos anos 50, s
a partir do incio da dcada de 80 o vdeo comea a atuar na vida do brasileiro.
Primeiramente consumido como um bem de status, o seu uso alternativo ao
domstico inicia-se em 1983 com um curso de capacitao em vdeo especificamente
para grupos que atuavam junto a movimentos populares.
O incio da dcada de 80 marcado pelo afrouxamento das restries polticas
e o incio do processo de retomada da democracia. Os Movimentos de base que se
disseminaram em torno de uma crescente estagnao econmica e social, ento se
ressentiam de um canal de disseminao de suas ideias e reivindicaes. Na poca a
televiso chegava a 100 milhes de brasileiros e possua uma estrutura bastante
vertical, em forma de redes, concentrada nas mos de poucos proprietrios e com
abrangncia nacional. Em um contexto desses os acontecimentos locais no
possuam lugar de divulgao, o que estabelecia uma viso bastante parcial e
centralizadora do que acontecia em territrio nacional. A produo, desde 1982, de
aparelhos de videocassetes nacionais e o interesse de entidades financiadoras
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ligadas a Igreja catlica com vistas a uma democratizao dos meios de comunicao
lanaram terreno para o surgimento de experincias que preconizavam a utilizao da
tecnologia do vdeo como canal de articulao e divulgao dos Movimentos
Populares.
Em 1980 o Documento de So Bernardo, assinado por lderes sindicais e de
movimento de bairro definia o movimento popular como:
Todas as formas de mobilizao e organizao de pessoas das classes populares, direta ou indiretamente, vinculadas ao processo produtivo, tanto na cidade como no campo. So movimentos populares as associaes de bairro, os clubes de mes, os grupos organizados em funo da luta pela terra, e outras formas de luta e organizao popular. Faz parte tambm o movimento sindical, que por sua prpria natureza tem um carter de classe, definido pelas categorias profissionais que dele fazem parte. (SANTORO, 1989, p.59)
As diversas experincias do vdeo popular na dcada de 80 vo acontecer em
um momento onde a rgida dicotomia esquerda-direita comeava a mostrar sinais de
flexibilizao em funo da retomada do processo de democratizao do pas e uma
suposta vitria do capitalismo. Isso ir conferir as primeiras experincias uma maior
abrangncia do espectro social ao valorizar a atomizao de suas manifestaes
polticas. Quem se coloca atrs das cmeras e orienta o seu foco agora sero grupos
ligados diretamente a movimentos populares, como por exemplo os sindicatos e
associaes de moradores e movimentos dos Sem Terra. So dessa poca a TV dos
Trabalhadores e a TV dos Bancrios, o CECIP, todos ligados a movimentos sindicais
de So Paulo.
A maneira como esses grupos vo se inserir nos movimentos populares e as
relaes que estabelecem com as instncias de poder local, com as lideranas e
entidades, sem dvida uma questo-chave da discusso sobre o vdeo popular no
Brasil. Quando esses grupos aparecem normalmente so organizados a partir de
alguma entidade capaz de dar o suporte financeiro e poltico ao trabalho de vdeo,
seja diretamente, com recursos prprios, como acontece na rea sindical, ou
repassando recursos conseguidos no exterior para esse fim, como no caso da TV Viva
de Olinda (mantida pelo Centro Luiz Freire) ou do Projeto Audiovisual (mantido pela
arquidiocese de Teresina). Os movimentos nos quais essas entidades esto inseridas
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definem as necessidades e direcionamento do grupo que realiza a produo de
programas de vdeo, mas que nem sempre privilegia esse tipo de trabalho.
O vdeo realizado passa a substituir a presena fsica de lideranas na tarefa
de ser porta-voz do movimento, e por isso no pode escapar ao seu controle. As
produes dessa poca obedecem ao modelo tradicional de organizao de uma
equipe e trazem sempre a figura do diretor, geralmente um agente externo ao grupo
de pessoas e a situao enfocada na produo. A noo de participao local
compreende mais uma mudana no discurso sobre a situao vivida pela comunidade
do que propriamente uma transferncias de recursos tcnicos com vistas a uma
autonomizao de produo dessa comunidade.
Henrique Luiz Oliveira (2001) faz uma anlise interessante sobre a participao
dos movimentos populares na dcada de 80. Na sua opinio o vdeo trata de contribuir
para a percepo de alguma coisa que deve ser transformada. Mais ainda: tratava-se
de engajar a vontade de indivduos e grupos em uma ao transformadora. O territrio
da existncia diagnosticado como problema, em geral, remete ao mundo do trabalho e
o sujeito da ao invariavelmente um sujeito coletivo: ele se configura como agente
por pertencer a uma organizao que o unifica e potencializa a sua ao. Pela
organizao o indivduo toma conscincia da possibilidade de agir e transformar. Um
exemplo desse tipo de vdeo o Batalha em Guararapes, produzido em 1984 pela
FASE (Federao de rgos para Assistncia Social e Educacional). Os moradores
do Jardim Guararapes, zona oeste do Rio de Janeiro reproduzem sua histria em
forma de fico, tendo como centro a luta contra despejos, mostrando a participao
de associaes e da FAMERJ (Federao das Associaes de Moradores do Estado
do Rio de Janeiro) como articuladores do movimento.
A virada de dcada traz uma preocupao maior com o processo
comunicacional. Assim, o final da dcada de 80 e incio de 90 marcado pelas TVs de
rua, onde a produo e veiculao de vdeos e programas eram feitas de forma
itinerante, geralmente em kombis estacionadas em lugares pblicos. So dessa
poca a TV Viva (Olinda), TV Maxambomba (Baixada Fluminense), TV Sala de Espera
(Belo Horizonte), TV Acabo na Praa (Belo Horizonte) e outras mais. Essas
experincias tiveram uma repercusso muito grande junto a populao pois atuavam
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diretamente nas ruas, discutindo assuntos do dia a dia, como machismo, sexualidade.
Muitas misturavam produo com participao: a comunidade aprendendo tcnicas
de como fazer vdeo, TV.
No incio (em 1982) a Maxambomba percorria os municpios da Baixada Fluminense com o intuito de comunicar temas de interesse da comunidade. Com a produo ainda realizada pelos membros da equipe essa dinmica estabeleceu o perfil de televiso da baixada em virtude do uso de cmeras para as reportagens dos jornais de bairro. Com o tempo houveram modificaes no sentido de tornar a populao no apenas interlocutora mas tambm produtora. Consequncia dessa opo metodolgica, o projeto Reprteres de Bairro se caracterizou pela capacitao tcnica e crtica de elementos da comunidade interessados no processo de produo em vdeo, com vistas a realizao de programas exibidos, a princpio, em Nova Iguau e Municpios da Baixada Fluminense. (LOURENO,1999, p. 17)
Nesse perodo h uma ampliao das formas de vinculao dos indivduos para
alm das relaes de trabalho (a multiplicidade de grupos no-sindicais: mulheres,
crianas de rua, homossexuais, prostitutas, ndios, negros, sem-teto, etc.) e do
interesse pelas estratgias de resistncia desses grupos. Gradualmente se tornou
menos incisiva a denncia das relaes de trabalho e de explorao, ao mesmo
tempo que a problematizao da responsabilidade individual se acentuou. A produo
assume um formato claramente televisivo, com nfase na reportagem. A lei do cabo
que viria a ser criada em 1995 d um impulso a essas experincias. A expresso TV
Comunitria amplamente usada. Nesse contexto j se percebe um envolvimento de
agentes pertencentes ao lugar de atuao da TV. A tnica parece ser utilizao do
vdeo para formao de comunidades em torno dos projetos. A presena de
moradores locais na confeco dos programas torna-se estratgia de aproximao e
identificao com base na recepo dos programas. No entanto as produes ainda
so estimuladas e conduzidas por agentes externos s localidades de atuao. O
apresentador do programa de nmero 19 da TV Sala de Espera, produzida entre 1993
e 97 em Belo Horizonte, faz questo de afirmar na abertura que aquele se trata de um
programa especial:
Est entrando no ar mais um TV Sala de Espera, s que o programa de hoje especial. Ele foi todo feito pelos seus amigos a do Bairro. O pessoal reuniu, escolheu os temas, dirigiu as filmagens e participou da montagem final do
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programa, agora voc confere os resultados. (TV Sala de Espera/ pgm 19, 1993).
Ao longo da dcada de 90 ocorre um recuo dos antigos apoios de
investimentos estrangeiros sob a alegao de que a democracia j se encontrava
consolidada. Muitas das experincias de Vdeo e TV popular que surgiram na dcada
anterior sofreram transformaes ou simplesmente interromperam suas atividades.
Algumas delas, atravs de seus antigos colaboradores, se desdobraram em
Organizaes No Governamentais ou pequenas produtoras independentes. A equipe
da TV Sala de Espera criou uma ONG, a Associao Imagem Comunitria5 que h 20
anos trabalha com o conceito de protagonismo juvenil, realizando Oficinas de
Audiovisual entre jovens dessa cidade. No Rio de janeiro temos o caso da TV
Comunitria Bem TV6 que atua produzindo e exibindo vdeo em sete comunidades de
Niteri .
Os anos 2000 assistem o surgimento de inmeros projetos de audiovisual no
pas (SGANZERLA; PAIVA; MAZER, 2005). Um dos caminhos escolhidos e que se
configurou com um espao de grande interesse e desenvolvimento diz respeito ao da
formao audiovisual ou educao miditica. O foco passa a ser o ensino do
audiovisual em escolas e territrios de baixa renda. As leis de incentivo ganham cada
vez mais importncia, sua forma de aplicao cria um modelo de investimento com
nfase na parceria entre o capital privado e o estado mas com grande ingerncia do
primeiro. Boa parte das oficinas mantida por uma srie de patrocinadores privados,
nacionais e internacionais. O governo federal tambm d importantes passos na
direo de uma poltica pblica mais abrangente como os programas Revelando os
Brasis e Olhar Brasil, da Secretaria de Audiovisual do MinC. Dentre os projetos
organizados por Associaes privadas e que surgem nesse perodo temos as oficinas
Kinoforum (SP), Oficina de Imagens (BH) e o prprio Cinemaneiro (RJ). A oficina de
vdeo do Ncleo Arte Grcia criada em 2003.
A exemplo do que aconteceu na dcada de 80, um novo ciclo de inovao
tecnolgica impulsiona o desenvolvimento dessas experincias. Dessa vez o digital
5 http://www.aic.org.br
6 http://www.bemtv.org.br/portal/
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que vai oferecer argumentos para os discursos em defesa pela democratizao da
mdia em geral e mais especificamente do cinema. Apesar da semelhana os dois
momentos possuem uma grande diferena na forma como os projetos se organizam e
propsitos. O dilogo em maior ou menor grau com o mercado vai gerar uma
diversidade de mtodos de atuao mas com uma afinidade entre eles: uma real
transferncia de recursos tcnicos e conceituais sobre a prtica audiovisual. Muitas
experincias continuaram se inspirando na esttica televisiva e avanando com essa
proposta mas uma novidade que vai fazer a diferena que o cinema passa a ser um
campo de atuao favorvel para esses projetos depois de quase uma dcada de
retomada. No demais lembrar que em 2002 acontece o fenmeno Cidade de
Deus. Para selecionar os atores do filmes os diretores vo criar a ONG Ns do
Cinema, que depois viria a se transformar no Cinema Nosso. Foi este contexto de
otimismo em torno do discurso das Novas Tecnologias que incentivou a configurao
de um conjunto de experincias em diversos estados que, mesmo no podendo ser
delimitado por parmetros claros de afinidade, ainda assim permitiu que milhares de
moradores de territrios de baixa renda experimentassem pela primeira vez a
linguagem audiovisual, exercendo seu direito constitucional de comunicao e
expresso. A seguir iremos descrever as duas experincias de formao audiovisual
que integram esta pesquisa e que fazem parte deste panorama mais recente de
projetos voltados para a formao audiovisual que atuam em locais de baixa renda.
1.2 Reduzindo distncias entre espectador e criador na Oficina Cinemaneiro
A oficina Cinemaneiro um dos projetos que surgiram nos anos 2000 com
ajuda das leis de incentivo culturais. um projeto desenvolvido pela ONG Cidadela
desde 2002 que oferece cursos gratuitos de produo audiovisual em comunidades
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populares do Rio de Janeiro. Em sua pgina online 7 no Facebook, a oficina assim
descrita:
O Projeto Cinemaneiro Oficinas e Exibio de filmes tem como objetivo a democratizao do acesso a bens e saberes culturais, sociais e artsticos, utilizando para essa finalidade, as ferramentas de produo audiovisual. Trata-se do desenvolvimento de cursos gratuitos de realizao audiovisual em vdeo digital para jovens e adultos que, no decorrer das aulas, aprendem a produzir um filme de curta durao desde a ideia at a edio do vdeo.
Na edio de 2013 ele foi patrocinado pela LAMSA (Linhas Amarelas S.A)
atravs da lei Rouanet.8 Ela a concessionria que administra a Linha Amarela, uma
das mais importantes vias expressas da cidade do Rio de Janeiro. Ela faz parte do
grupo Invepar que mantm um instituto com o mesmo nome, responsvel por
mobilizar e apoiar as iniciativas de responsabilidade social do grupo. O conceito de
responsabilidade social do Invepar pode ser encontrada no ltimo relatrio anual da
empresa disponibilizado no site:
A Companhia compreende que gerir os seus impactos na sociedade e no meio ambiente fundamental para criar um ambiente em que seus negcios possam ser impulsionados sem que nenhuma das partes seja esquecida (INVEPAR, 2012, p. 57).
Uma das diretrizes de sua poltica de responsabilidade social o entendimento
da realidade social, econmica e ambiental dos territrios e a efetiva participao das
empresas na dinmica socioterritorial. Os Objetivos do Milnio9 e os princpios do
Pacto Global10 norteiam essa gesto. As 16 comunidades que integram o bairro da
Mar ficam ao largo da Linha Amarela e por isso so contemplados por essa poltica.
7 O endereo eletrnico https://www.facebook.com/Cinemaneiro/info?ref=ts
8 A Lamsa patrocina a oficina Cinemaneiro desde 2007
9 Em setembro de 2000, 189 naes firmaram um compromisso para combater a extrema pobreza e outros males da sociedade. Esta promessa acabou se concretizando nos 8 objetivos do Milnio (ODM) que devero se alcanados at 2015.
10
O Pacto Global uma iniciativa desenvolvida pelo ex secretrio-geral da ONU, Kofi Annan, com o objetivo de mobilizar a comunidade empresarial internacional para a adoo, em suas prticas de negcios, de valores fundamentais e internacionalmente aceitos nas reas de direitos humanos, relaes de trabalho, meio ambiente e combate corrupo refletidos em 10 princpios.
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A Mar se localiza na Zona Norte do Rio de Janeiro e considerada uma rea de
baixo ndice de Desenvolvimento Humano (IDH). No ano 2000 era o 123o colocado da
cidade. No relatrio de 2012 da empresa o Cinemaneiro aparece como um dos
projetos conduzidos pela LAMSA que contribuem para o desenvolvimento
socioeconmico das comunidades.
Ao longo dos seus 11 anos de existncia centenas de jovens passaram pelo
projeto e hoje alguns trabalham nele em funes como produtor e orientador. Os
filmes produzidos em seus cursos participam do Festival Vises Perifricas desde seu
comeo, somando ao todo sete filmes exibidos em quatro edies (2007, 2008, 2010 e
2012). Complexo de Juninho e Kur, o valor da amizade so resultado de uma
oficina realizada em 2013, entre os dias 15 de Abril e 03 de Maio, na Baixa do
Sapateiro, uma das 16 comunidades que formam o Complexo da Mar. O grupo de 15
pessoas que participou da oficina foi composto por moradores de diversas
procedncias e faixas etrias, inclusive moradores da comunidade. Os encontros
aconteceram na Associao de Moradores da Baixa na Rua Nova Jerusalm.
Por meio de observao participante procurei acompanhar o processo de
construo dos filmes, desde o primeiro encontro na Associao de Moradores at a
primeira exibio pblica do filme no Museu da Mar. No primeiro encontro, no dia 15
de Abril, foi fornecido aos alunos um kit contendo uma camisa da oficina com a
logomarca dos patrocinadores e do projeto, uma apostila, uma carta de boas-vindas
com informaes gerais e a grade do curso com os dias de encontro e uma breve
descrio do contedo programtico (Anexo I). Esse kit integra uma das peas de
comunicao que devem ser previstas no projeto enviado para o Ministrio da Cultura
e para o Invepar11. uma contrapartida exigida pela empresa e pela lei Rouanet para
patrocnio do projeto. No total a oficina constituda de 15 encontros de 05 horas
cada, totalizando 75 horas de curso.
Os quatro primeiros encontros so dedicados a uma Introduo histria e
linguagem do cinema. Participei como observador no primeiro dia e o que pude
11
Tanto o Ministrio da Cultura quanto a Invepar disponibilizam um formulrio onde um dos campos a serem preenchidos pelo projeto diz respeito as peas de comunicao que iro integrar a ao contemplada.
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apreender que a oficina procurava construir um percurso de aprendizagem do fazer
audiovisual pautado por funes e etapas que geralmente fazem parte do processo de
realizao de um filme, apresentando essas funes de forma mais ou menos linear
como elas se sucedem nas etapas de pr-produo, produo e ps-produo. Tendo
como base a grade do curso, o rastreamento procurou acompanhar os momentos
onde as diversas linhas de fora que atravessavam a oficina emergissem em decises
e aes.
Em filmes que seguem um desenho de produo com etapas e funes bem
definidas geralmente os sujeitos que integram uma equipe de filmagem possuem
algum conhecimento prvio daquela funo, se reconhece neles a competncia para
fazer alguma coisa. No caso da oficina partia-se do pressuposto que todos os
integrantes da turma se no detinham o mesmo nvel de conhecimento, pelo menos
ingressavam em uma relao desempenhando um mesmo papel, o de aprendizes.
Esse era um pacto implcito desde o comeo e que de certa maneira justificava
mesmo a realizao do projeto, o acesso aos bens e saberes culturais e artsticos.
Dessa forma era difcil avaliar de incio em quais momentos as linhas de fora se
desdobrariam em tomadas de deciso. Na verdade todos os momentos teriam igual
importncia, mas pela impossibilidade de estar presente em todos elegi aqueles que
pareciam mostrar mais relevncia dentro daquilo que pude apreender como um dos
actantes da oficina: a linguagem clssico-narrativa.
Ao longo do percurso fui percebendo que a relao de aprendizagem estava
intimamente relacionada com os momentos de criao dos filmes e que esses
momentos aconteciam de maneira ao mesmo tempo induzida dentro de um certo
propsito pensado pela coordenao da oficina e aberta assimilando as ideias,
saberes e afetos produzidos na relao entre os participantes e entre eles e a oficina.
O primeiro encontro foi iniciado com uma rpida apresentao dos participantes
onde ficou perceptvel a diversidade de interesses, de faixa etria (dos 13 aos 50
anos) e de conhecimentos sobre o cinema (alguns j tendo passado por outras
oficinas de audiovisual). Em meio as apresentaes e comentrios, Walter Fernandes,
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um dos facilitadores12, prope que a oficina tenha como objetivo a realizao de dois
curta-metragem de 05 minutos cada.
Terminada a rodada de apresentao, Walter d incio parte de introduo
histria de linguagem do cinema exibindo e comentando obras do chamado primeiro
cinema (CESARINO, 1995). Comeando por trs das famosas tomadas fotografadas
por Louis Lumire, nesta ordem: A sada da fbrica (1895) A Chegada do trem a
estao de Ciotat (1895), o regador regado (1895). Em seguida sendo exibida a
Viagem a Lua (1902) de Georges Mlis e algo de Griffith. As obras foram
apresentadas como sendo parte da formao da linguagem cinematogrfica, seguindo
uma certa historiografia bem conhecida que entende essa formao como um
processo gradual e evolutivo, precedida pelas pesquisas e invenes no campo da
fotografia. A exibio foi antecedida por uma contextualizao da poca, biografia dos
realizadores e o pedido para que os participantes prestassem ateno em aspectos
como a fotografia e a montagem.
Segundo Walter o objetivo ali era sair da posio de espectadores e assumirem
a de realizadores, enxergando uma tcnica que segundo ele era bem menos
conhecida do que em outras artes, o que deixaria o espectador mais vulnervel. Aqui
o principal da questo passar pro outro lado, no entrar na questo do gosto ou
no gosto, tem que entrar na questo da compreenso e no compreenso
(Fernandes, 2013). possvel ver nesta frase toda uma viso de mundo que est
implicada no formao da oficina e que vai incidir sobre a realizao dos filmes. Ela
parte do princpio que existem dois polos separados, aquele que detm um saber
sobre um certo modo de fazer cinema, representado pelos facilitadores e
coordenadores, e aquele que desconhece esse modo, representado pelos
participantes. Ao mesmo tempo que Walter analisava os filmes ele tambm citava
exemplos de obras e diretores que ao seu ver subvertiam um uso mais vulgar da
decupagem clssica: Sergio Leone, Inquietos (2011) de Gus Van Sant. Os
participantes, por sua vez, procuravam dialogar com os filmes relacionando as
anlises feitas por Walter com filmes e contedos de seus repertrios: As invenes
12
A oficina Cinemaneiro refere-se aos responsveis pela conduo dos encontros como facilitadores.
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de Hugo Cabret (2012); Matrix (1999); O Poderoso Chefo (1972); Os Cavaleiro do
Zodaco.
O meu segundo encontro com a oficina foi durante a aula que levou o nome de
Fotografia e Cmera. Ela foi dada por Alexandre Mizrahi, ex-aluno da oficina. Nesse
encontro resolvi levar uma cmera de vdeo para registrar. A proposta era que o debate
sobre contedo programtico daquele encontro fosse feito todo em cima da prtica dos
alunos. Alexandre pediu que a turma se dividisse em trs grupos e cada um criasse
uma pequena histria que pudesse ser gravada nas imediaes da oficina. Forado a
fazer uma escolha aleatria, acompanhei um dos grupos e fiz o registro de todo o
processo, da discusso at a exibio do trabalho. Como havia apenas uma cmera, o
grupo foi obrigado a esperar um pouco, o que permitiu que eles burilassem mais a
situao e fizessem uma decupagem desenhada em um papel.
Ao fim das gravaes todos voltaram e os trabalhos foram exibidos e avaliados
em grupo. Interessante notar que de uma maneira geral as situaes que foram
gravadas apresentavam uma utilizao condizente com recursos apresentados nos
primeiros encontros: utilizao do ponto de vista (diferentes ngulos de cmera), da
continuidade (corte dentro da mesma cena) e da montagem paralela (aes
acontecendo em espaos diferentes simultaneamente). Algo na verdade esperado uma
vez que esses procedimentos da decupagem clssica haviam sido analisados nas
primeiras quatro aulas e ainda so utilizados de forma massificada pelo cinema e
televiso. O efeito esperado pela oficina parecia estar sendo atingido. Alguns
procedimentos inaugurais da linguagem clssico narrativa, naturalmente assimilados
pelo pblico em geral no convvio com uma cultura audiovisual massificada, estavam
sendo apropriados pelo grupo a servio de suas ideias e, para muitos, pela primeira
vez. Esses procedimentos foram utilizados nos encontros seguintes e passariam a ser
uma caixa de ferramentas para a produo dos filmes. O resultado pela avaliao
certamente gerou uma satisfao, expressada por todos, de estarem atravessando a
linha que separava espectadores de realizadores, o que significava aprender um certo
modo de fazer e produzir cinema.
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1.3 No limite do Horizonte: geografia e audiovisual se unem na oficina do Ncleo
Arte Grcia
No Limite do Horizonte conta a histria de Marta, uma jovem que est prestes
a se casar. Ela mora no subrbio do Rio de Janeiro e trabalha em um salo de beleza.
Marta parece perdida, desestimulada, no tem certeza se est fazendo a coisa certa.
O filme acompanha o cotidiano de Marta pelas ruas do Subrbio, se relacionando com
seus moradores, os eventos locais. A certa altura ela parece caminhar sem rumo e o
filme alterna cenas de sonho e cenas do cotidiano da personagem.
Assim como os dois filmes do Cinemaneiro, o curta No Limite do Horizonte
tambm foi produzido em um contexto de formao audiovisual. Ele foi realizado
atravs de uma parceria entre a oficina de vdeo do Ncleo de Arte Grcia (NAG), o
Cineclube Subrbio em Transe e o Ponto de Cultura Carpintaria de Montagem, os trs
localizados em bairros do Subrbio do Rio de Janeiro. O NAG, como conhecido,
participou do festival Vises Perifricas em seis edies (2001-2012) com oito filmes.
O Subrbio em Transe exibiu 05 filmes em trs edies (2008, 2009 e 2012), incluindo
um longa-metragem. No Limite a quarta parceria entre o NAG e o Subrbio em
Transe e a histria dos dois se confundem. Segundo a pgina online oficial13 do NAG
a oficina de vdeo assim descrita:
A oficina de vdeo pretende ser o lugar onde os alunos podero realizar suas produes audiovisuais, atravs do seu prprio olhar e vivncia (...) Desde j mostramos o interesse de aulas passeios em que os alunos possam perceber e compreender o espao geogrfico onde ele mora e comparar com outras localidades.
O texto de descrio tambm sugere alguns contedos como Introduo ao
cinema Clssico Narrativo; o Cinema Novo Brasileiro; os enquadramentos, os
movimentos de cmera e a inteno dramtica.
13
O endereo http://nucleodeartegrecia.wordpress.com
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31
O NAG fica em Vila da Penha e possui diversas oficinas, dentre elas a
de vdeo. Ele um espao de extenso educacional e funciona ligado a 4a CRE
(Coordenadoria Regional de Educao) que quem repassa a verba distribuda pela
Secretaria Municipal de Educao para esses espaos e as unidades escolares. At
2012 eram 42 espaos espalhados pelas regionais mas que tiveram que ser reduzidos
metade. O NAG foi um dos ncleos mantidos segundo critrios que privilegiaram o
nmero de alunos atendidos. At 2012 eles atendiam alm dos alunos do municpio,
os da rede estadual e particular da regio. A partir de ento por direcionamento da
secretaria passou a atender apenas os alunos da rede municipal dos 08 at os 17
anos de idade. O NAG assim descrito em sua pgina on-line oficial14:
Programa de Extenso Ncleo de Arte uma iniciativa da Secretaria Municipal de Educao e tem como objetivo estimular o potencial criador inerente a cada ser humano, estabelecendo uma relao intuitiva e sensvel do aluno com o que o cerca, de forma a lev-lo a interagir com sociedade em que vive, expressando-se atravs de mltiplas linguagens e produzindo cultura. Oportuniza tambm ao aluno que tenha talento e/ou interesse especfico por determinada linguagem artstica a possibilidade de aprofundar conhecimentos e tcnicas.
Luiz Claudio Lima o professor da oficina de vdeo do NAG desde 2003. Ele foi
chamado a integrar o corpo docente do ncleo 01 ano depois que ingressou na rede
municipal de ensino como professor de geografia e que o NAG comeou a funcionar.
Na poca a Secretaria de Educao props ao ncleo que abrisse uma oficina de
vdeo. Para isso, ofereceu uma capacitao na rea audiovisual a professores da rede
municipal de ensino. Luiz fez parte desse curso e depois foi chamado. Diferente dos
professores das outras oficinas (teatro, dana e artes visuais), que possuem
licenciatura para darem aula nessas reas, poca no existiam professores
licenciados para darem aula de audiovisual. Uma das condies para trabalhar no
NAG que o professor do Ncleo fosse matriculado na rede pblica.
14
O endereo http://nucleodeartegrecia.wordpress.com/video/
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32
Figura 1 - Alunos da oficina de vdeo do Ncleo Arte Grcia gravando um curta.
A relao de Luiz com o Subrbio no se d apenas por ele ser morador e
trabalhar nessa regio. uma relao de afeto com o espao que se deu tambm por
vias do cinema novo, movimento cinematogrfico que Luiz admira e onde vai buscar
muitas referncias para seus filmes e para a oficina. Ele conta que quando era garoto
comeou a gostar de cinema porque tinha um projeto que levava alunos de sua escola
para um cinema que ficava ali perto, no Largo do Tanque, o extinto CineCisne:
A a escola levava a gente pra ver esses filmes de cineastas brasileiros, dentre os quais o Nelson Pereira, Cac Diegues e eu gostava muito desses filmes e eu comecei a gostar ali, ao contrrio dos alunos, meus colegas (...) o pessoal corria atrs da sinopse do filme, na poca no tinha internet, o pessoal ia na locadora e pegava alguns filmes que tinha na locadora, a eu j gostava, aquilo pra mim eu achava legal, me interessei, na poca que eu ia fazer faculdade, eu queria fazer cinema mas foi uma poca ruim, 93...(LIMA,2010)
Gegrafo por formao Lima se graduou com um trabalho sobre Rio 40o
(1957), de Nelson pereira dos Santos e fez a dissertao de mestrado em geografia
sobre filmes do mesmo diretor, Rio Zona Norte (1957) e El Justicero (1966), o que Luiz
chama de a trilogia dos cafajestes cariocas. Hoje Luiz afirma que a relao entre
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cinema e geografia permanece viva na oficina de vdeo do NAG, o que ele procura
explorar incentivando os alunos a criarem em cima do espao onde vivem. Nessa
pequena biografia de Luiz podemos encontrar um dos elementos de criao de No
Limite, curta que todo rodado em locaes da Zona Norte da Cidade.
A oficina de vdeo do NAG acontece durante a semana no contraturno da
escola. Ela atende alunos de escolas municipais ligadas a 4a CRE. Os alunos podem
fazer quantas oficinas quiserem at os 17 anos de idade. Eles podem ingressar no
NAG a partir dos 08 anos de idade. Nesse perodo, podem permanecer na oficina de
vdeo o tempo que desejarem, bastando para isso que se rematriculem. Alm do texto
que consta no site do NAG um vdeo15 postado mostra Luiz explicando com suas
prprias palavras quais so os objetivos da oficina. Ele d nfase no uso artstico e
criativo de novos equipamentos de gravao como mquinas fotogrficas e espera
que o aluno possa sair dali com uma boa noo de como se d a construo de um
produto audiovisual, enxergando a ideologia que h por detrs.
(...) e ento acredito que que aqui na oficina eles tem essa noo, que eles sabem construir, sabem editar, sabem elaborar um roteiro, ento quando eles vo ver um noticirio eles sabem que aquilo ali foi editado, foi roteirizado, teve seleo das cenas, teve uma construo e de uma certa maneira teve ideologia de quem fez (...) (LIMA, 2010)
1.4 As distncias entre espectador e criador no processo de formao
Certamente as duas oficinas (Cinemaneiro e NAG) mantm, por diferentes
caminhos, uma ntima relao com os seus espaos geogrficos e ambas investem
em uma formao que coloca o espectador como produtor do espetculo
cinematogrfico. Elas colocam essa passagem como necessria ao desenvolvimento
de um olhar crtico por parte dos participantes. E do nfase a esse aspecto partindo
da premissa de que existe um desconhecimento por parte do espectador sobre o
15
http://nucleodeartegrecia.wordpress.com/video/
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modo como os produtos audiovisuais so construdos. A maneira como as oficinas
lidam com a passagem do observador para o produtor pano de fundo para a
elaborao da metodologia em ambas as oficinas. Por isso sua anlise pede algumas
consideraes com base em autores que desenvolveram uma reflexo sobre o
estatuto do espectador.
O espectador conforme sugerido por Walter Fernandes, facilitador do
Cinemaneiro, parece ser um sujeito em uma posio vulnervel frente ao uso
massificado de diversas tcnicas empregadas pelo cinema e pela televiso. Na sua
opinio, o telejornal teria um exemplo clssico disso quando faz o uso abusivo do
zoom sobre entrevistados em momentos de maior emoo e o faria para poder
envolver o espectador e vender jornal impresso no dia seguinte. Este tipo de viso
colocada assim de forma simplista tributria aos anos 70, um momento que estava
em voga nos estudos cinematogrficos associar o efeito de realidade (LABEL, 1975)
ou impresso de realidade (XAVIER, 1977) ao seu uso ideolgico. O espectador
visto como uma presa fcil para as ideologias dominantes de qualquer matiz, em
especial a ideologia ligada ao espetculo cinematogrfico norte-americano. Seria
misso do artista trazer o espectador para o centro do espetculo e expor sua
observao e esclarecimento as tcnicas que fabricam a iluso, o engano. Um gesto
que pressupe uma distncia entre espetculo e espectador a ser suprimida pelo
artista esclarecido.
Por sua vez Jonathan Crary vai fazer uma distino entre espectador e
observador no livro Tcnicas do Observador (2012). A palavra espectador
carregaria conotaes especficas, especialmente no contexto da cultura do sculo
XIX (...) [sendo] aquele que assiste passivamente a um espetculo. Em seu livro ele
prefere usar a palavra observador que teria a vantagem de conter um significado
etimolgico mais prximo aos seus propsitos de fazer uma genealogia da viso
descolada de um determinismo das mquinas. Para Crary, o observador aquele que
v como efeito de um sistema irredutivelmente heterogneo de relaes discursivas,
sociais, tecnolgicas e institucionais. No h sujeito observador prvio a esse campo
em contnua transformao. Nesse sentido a noo de observador se aproxima das
ideias de Foucault sobre a constituio do sujeito. Ou seja, para Crary no h um
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observador passivo, vazio, que evoluiria ao longo do curso da histria, ele mesmo
sendo constitudo por um cruzamento de foras que se atualizam e se reconfiguram
no tempo.
Apesar da viso de Label e Crary sobre o espectador se aproximarem no
tocante a uma suposta vulnerabilidade frente aos poderes que o atravessa eles
diferem sobre as causas desse efeito. Para Label a tcnica de representao que
exerce esse poder sobre um sujeito anteriormente dado como permevel a ideologia
dominante. J para Crary a forma de representao mais uma linha de fora dentre
um conjunto heterogneo de relaes discursivas, sociais, tecnolgicas e
institucionais que incidem sobre essa relao. Para ele mquina e sujeito so efeito de
uma mesma operao.
a partir de outros parmetros que Jaques Rancire vai pensar o estatuto do
espectador no seu livro O espectador emancipado (2012). A condio do
espectador no a de um indivduo membro de um corpo coletivo idealizado, nem o
espetculo deve ter a misso de retirar o espectador de sua ignorncia e devolv-lo a
um ideal de corpo coletivo. Rancire faz uma ligao entre o pensamento filosfico de
Plato sobre o teatro de sua poca, a transmisso da ignorncia que torna as
pessoas doentes atravs do meio da ignorncia que a iluso de tica, e o
experimento de alguns autores do teatro moderno como Brecht e Artaud, para quem o
teatro deve tirar o espectador dessa ignorncia entendida tambm como sinnimo de
passividade. Rancire problematiza esse gesto, afirmando que ele incorreria na
constituio de uma distncia, a de que o artista teria algo a dizer ou ensinar que
escapa a capacidade do espectador apreender por si prprio. Inspirado em outra obra
de sua autoria, o Mestre Ignorante (2011), ele vai pensar o espectador com outro
estatuto, o de indivduo com poder de traduzir do seu prprio modo aquilo que ele
est vendo
Ser espectador no a condio passiva que deveramos converter em atividade. nossa situao normal. Aprendemos e ensinamos, agimos e conhecemos tambm como espectadores que relacionam todo instante o que veem ao que viram e disseram, fizeram e sonharam. (RANCIRE, 2012, P. 21).
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A reflexo sobre o estatuto do espectador feita pelos autores citados fornecem
pistas importantes e teis para pensar a relao de foras que incidem sobre o
processo de formao nas duas oficinas. Certamente os discursos que justificam a
passagem espectador-produtor como necessria ao desenvolvimento de um olhar
crtico tomam como premissa geral uma viso bem prxima as de Label. Seria o
equivalente cinematogrfico do mtodo brechtiano que teria como finalidade fazer
passar o espectador de uma atitude passiva de fascinao mistificada a uma atitude
criativa de compreenso. Mas interessante destacar que nos anos 70 o lugar dessa
desconstruo a obra cinematogrfica ao nvel das formas dramticas. No caso das
oficinas ela operada do lado do espectador tomando como premissa a distncia que
existe entre o saber do professor e o saber
dos participantes. Nas duas oficinas os professores agem como o artista esclarecido
dos anos 70. A nica maneira de diminuir a distncia entre os poderes da fico e a
suposta alienao dos participantes, de faz-los ver a ideologia que existe na tcnica
estimul-los a desconstruir esse poder atravs do seu exerccio.
No primeiro encontro Walter vai concentrar seu esforo em revelar a tcnica
que h por detrs de uma suposta ideologia dominante, conferindo uma distncia
entre o seu conhecimento acerca dessa relao e a passividade dos participantes.
Ele dirige o olhar sobre as obras que apresenta, esmia o plano, chama ateno
para detalhes que passariam desapercebidos, faz ver um fora da tela que eles no
conseguem enxergar. interessante o esforo que Walter faz para trazer a ateno
dos participantes para o foco quando eles comentam aspectos da obra que fogem
completamente ao seu direcionamento. Ao contrrio da distncia instaurada pelo
discurso de Walter o espectador passivo, ali representado pelos participantes
presentes na oficina, atravessado por um conjunto heterogneo de foras que que
levam em conta outros referenciais: o conhecimento adquirido na vida cotidiana, os
filmes vistos, o territrio onde eles habitam, a escola que eles frequentaram, as redes
sociais por onde circulam.
Ao criar as condies para que esses mesmos espectadores passivos se
coloquem na condio de produtores fica patente no resultado dos exerccios o quanto
eles j conhecem essas tcnicas e sua capacidade de traduzi-las a seu modo. A
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prtica tem uma importncia fundamental pois o momento em que eles colocam a
tcnica servio de suas sensibilidades, de seus conhecimentos. Quando eles tem
oportunidade de ver por si prprios os resultados do que fizeram se tornam mais
conscientes do seu querer dizer. nesse gesto reflexivo que a metodologia da oficina
se aproxima daquilo que Rancire afirma em o Mestre Ignorante:
Todo saber fazer um querer dizer e que esse querer dizer se dirige a todo ser razovel (...) a pintura, como a escultura, a gravura e qualquer outra arte uma lngua que pode ser compreendida e falada por qualquer um que tenha inteligncia de sua lngua. (Rancire, 2011, p.98)
Para Rancire todos os homens tem em comum essa capacidade de
experimentar o prazer e a pena. A verificao dessa similitude s pode se dar atravs
da alteridade mas no basta aventurar-se na floresta de signos que, por si s, no
querem dizer nada, no mantm qualquer acordo. Para se conceber bem tem que se
enunciar claramente. Bem conceber prprio do homem razovel. Bem enunciar uma
obra do arteso. Com isso Rancire quer dizer que no basta conceber, preciso
aprender a lngua prpria a cada uma das coisas a que se quer fazer: sapato,
mquina, poema, filme. Ele defende que esse esforo seja aprendido com os homens
que trabalharam o abismo entre o sentimento e a expresso, entre a linguagem muda
da emoo e o arbitrrio da lngua. (Rancire, 2011, p.101). Mas o parmetro aqui
a obra e as principais referncias so os artistas de grande expresso. no terreno
da arte que Rancire vai expor sua reflexo sobre as distncias entre espectador e
criador.
O cruzamento entre audiovisual e educao provoca uma reflexo sobre o
lugar do fazer esttico na atualidade, um fazer que cada vez mais reivindicado como
um direito de existncia que escapa aos circuitos institucionalizados de sua fruio
(museus, galerias, etc.) e parece se espalhar por toda parte. Rancire nos aponta
para uma relao entre o espetculo e o espectador que, embora devolva a este
ltimo a autonomia sobre a fruio da obra e o direito ao querer dizer, ainda submete
essa relao a arte institucionalizada e as obras manifestadas no campo social.
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Em uma poca em que se discute as fronteiras entre formas expressivas, os
seus suportes e os limites das prprias prticas artsticas (GONALVES, 2009;
RANCIRE, 2012) de se questionar em que sentido ainda pode-se defender uma
ideia de produo esttica com base apenas no domnio de uma tcnica ou de uma
linguagem. tambm preciso pensar o fazer esttico nessas oficinas fora de um
regime que o enuncia apenas no campo social com base em suas evidncias
materiais, no caso os filmes. Partindo-se da premissa que a sensibilidade esttica est
ligado na atualidade a um regime mais difuso que o da arte e que tem a ver com a
prpria vida, nos arriscamos a dizer que essas experincias de formao audiovisual
se oferecem como lugar de novos regimes de enunciado para a produo esttica de
seus participantes. Essa produo est em todos os lugares.
As formas de fazer das duas oficinas, aquilo que poderia ser chamado de suas
metodologias, so apenas dois exemplos de um leque amplo de caminhos que podem
ser construdos na relao de aprendizado. O trajeto percorrido pelos facilitadores e
participantes no unvoco, ele cheio de paradas, velocidades cruzamentos,
bifurcaes, momentos onde eles se posicionam frente aos diversos actantes
envolvidos na relao de aprendizagem: patrocnio; decupagem clssica; escola;
mquinas; apostila; tempo de oficina, etc. oportuno trazer mais uma vez a reflexo
que Crary faz sobre o observador. Pens-lo junto s mquinas de viso, ambos
atravessados pelas mesmas linhas de fora que impe uma racionalizao da ateno
visual, da sensao e da percepo. Uma vez que viso passou a se localizar no
corpo emprico e imediato do observador, ela passou a pertencer ao tempo, ao fluxo,
morte. (CRARY, 2012, p.32). Mesmo que se possa argumentar que a atual
disseminao em grande escala das mquinas de viso seja uma exerccio mais
sofisticado e complexo do mesmo controle e racionalizao do sujeito humano no sc.
XIX inegvel que ela tambm adquire o carter ambguo e potencialmente anrquico
que o fluxo das redes (MUSSO, 2004) ganham no sc XXI. Metodologias de
formao audiovisual no devem ter como finalidade ltima a produo de filmes.
Estes valem como rastros das articulaes e desarticulaes que os projetos operam
nas linhas de fora que atravessam o contexto de sua aplicao, uma operao
sempre no limite de sua inoperncia.
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A distncia entre espectador e criador guarda relao direta com a questo da
autoria. Foi atravs de um processo lento e gradual de controle dos discursos que
circulam na sociedade que essa distncia instaurada e o autor surge como uma
marca de identificao passvel de ser comercializada. Esse autor o mesmo do
regime de propriedade privada que associa a obra a um sujeito e que se transformou
em um modelo de produo artstica em todos os campos. As obras produzidas nas
oficinas desta pesquisa se inserem nesse regime mas ao mesmo tempo o
transformam na medida em que arriscam novos arranjos de produo. O prximo
captulo ir discutir mais detidamente essa questo.
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2 AUTORIA NOS FILMES DE OFICINA
2.1 A autoria no cinema
A relao quase automtica que hoje se estabelece entre autor e obra no
natural. Historicamente, os textos passaram a ter autores na medida em que os
discursos tornaram-se transgressores com origens passveis de punio, levando-se
em conta fatores sociais, polticos e econmicos em cada poca. Se na antiguidade o
anonimato no constitua um problema e os textos eram colocados em circulao e
valorizados sem questionamento da autoria por sua vez na Idade Mdia o anonimato
passa a ser uma questo. A Igreja Catlica neste perodo a maior responsvel pela
preservao e produo de obras intelectuais e artsticas. Ela passa a exercer um
controle sobre a circulao de discursos, inibindo a divulgao de livros que eram
contra seus dogmas. Isso estimulou a identificao de responsveis pelos textos
profanos, designados como autores. J a partir da Renascena a noo moderna de
autor comea a ganhar forma, estimulada principalmente pela inveno da prensa
tipogrfica que permitiu a reproduo de obras literrias em uma escala maior que no
perodo anterior. A passagem do autor no final do sculo XVIII e incio do sculo XIX
para o sistema de propriedade caracterstico de nossa sociedade estabelece regras
sobre os direitos de autor, direitos intelectuais, de reproduo etc.
Para Foucault a noo de autor constitui um momento forte da individualizao
na histria das ideias, dos conhecimentos (FOUCAULT, 1998, p.38). Ele faz uma
reflexo sobre as condies de funcionamento de prticas discursivas a partir de sua
vinculao com a noo de autoria. Para Foucault o vnculo do nome do autor com o
que nomeia no funciona da mesma forma que o vnculo entre nome prprio e
indivduo nomeado. O autor teria a funo classificatria de fazer um discurso ser
recebido de uma determinada forma. Ele garantiria uma unidade ao discurso, ao
agrupar sob um mesmo nome um determinado nmero de textos, estabelecer entre
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eles uma relao de afinidade, parentesco. Dessa forma pode-se tambm entender a
funo autor como um modo de controle sobre a circulao dos discursos e a maneira
como eles so recebidos no interior de uma sociedade.
Embora o cinema tenha surgido quando o direito do autor j era uma fato na
sociedade a autoria como atribuio de um conjunto de obras a uma individualidade
no foi algo que nasceu com a produo e exibio das primeiras pelculas
cinematogrficas. Franois Jost (2009) em seu artigo O autor nas suas obras vai at
os primeiros anos de formao da linguagem cinematogrfica para escavar as
condies materiais da poca que permitiram o nascimento do autor no cinema.
Segundo ele, antes que um filme pudesse ganhar o status de artefato atribudo a um
autor ele estava a servio de experimentos cientficos no campo da reproduo de
imagens. Os primeiro filmes careciam de uma intencionalidade artstica, portanto, de
um autor. O mito fundador do cinema, o de espectadores que fogem a medida que a
locomotiva avana na tela sobre eles reforaria esse aspecto, a da ausncia do gesto
humano, de uma intencionalidade ou ideia que caracterizaria a obra de arte. Jost
define trs momentos que ao seu ver demarcam no incio do cinema o
desenvolvimento que leva do autor-artfice ao o autor-artista. O polo do ofcio
corresponde ao momento em que o executante pago por metro de pelcula
impressionada. No polo profisso surge a reivindicao do talento, a remunerao
feita com base na experincia. No polo da arte dado destaque a singularidade de
um nome, atestado pela sua assinatura, pela sua biografia.
Ele corresponde precisamente a esta funo-autor que, no cinema como na literatura, permite a um indivduo se apropriar de uma obra, perodo que coincide, em um caso como no outro, com o momento em que surge a questo dos direitos autorais. somente quando o artista comea a emergir como figura unificadora e identificada que a cpia se torna uma prtica condenvel (JOST, 2009, P.17).
O polo da arte corresponde ao desenvolvimento de um modelo de produo
de filmes tornado hegemnico pelos grandes estdios norte-americanos e adotado por
praticamente todas as cinematografias mundiais. Um modelo que divide a equipe de
produo por competncias e atribui cada uma delas a um nome, um autor. A relao
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entre realizao cinematogrfica e discurso aqui penso nas funes chaves de uma
equipe como figuras discursivas e nas suas diversas implicaes, econmicas,
jurdicas, etc. passa necessariamente pela equao dos diversos componentes da
cadeia cinematogrfica: esquema de produo e distribuio, crtica especializada,
mdia, bilheteria de pblico, circulao e premiao em festiv