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O Primado do Imaginário na Tradução da Literatura Juvenil ou O “Estrangeiro” como fonte de aprendizagem e construção do Eu Maria Olinda Vieira da Silva Reis 2010

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leitura aprendizagem libertaçao, parabens.

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  • O Primado do Imaginrio

    na Traduo da Literatura Juvenil

    ou

    O Estrangeiro como fonte de aprendizagem

    e construo do Eu

    Maria Olinda Vieira da Silva Reis

    2010

  • O Primado do Imaginrio

    na Traduo da Literatura Juvenil

    ou

    O Estrangeiro como fonte de aprendizagem

    e construo do Eu

    Dissertao de Mestrado em Traduo, apresentada Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, sob a orientao do Prof. Doutor Joo Domingues.

    Maria Olinda Vieira da Silva Reis

    2010

  • Aos meus pais,

    ao Tino, ao Duarte e Ins

  • Agradecimentos

    Ao Doutor Joo Domingues que me apontou o caminho do mundo fascinante da

    traduo da literatura juvenil;

    minha colega, Ins P. Coutinho, que me abriu as portas da sua ampla biblioteca de

    famlia e partilhou comigo as suas impresses de leitora crtica de Harry Potter;

    Dra. Isabel Nunes que teve a amabilidade de me receber para trocar algumas

    impresses sobre os incontveis e, por vezes, incontornveis problemas que

    rodearam a traduo e coordenao da saga Harry Potter;

    s minhas amigas Clia Lopes e Fernanda Martins, incansveis companheiras de

    percurso acadmico e profissional;

    s minhas irms, pelo seu carinho e apoio quando mais necessitei.

  • Palavras-chave

    abertura ao Outro; censura; cultura; distncia cultural; identidade;

    imaginrio; legibilidade; literatura infantil; literatura juvenil; modelos

    dissimilatrios; modelos assimilatrios; perfis de leitor; processo de

    referenciao; processos de traduo.

    Resumo

    Traduzir a literatura infanto-juvenil pode levar o tradutor a recorrer a

    metodologias diferenciadas, em funo do pblico a que se destina. Se

    as prticas assimilatrias parecem adequar-se ao pblico infantil, j a

    traduo de obras destinadas aos adolescentes e jovens dever

    potenciar estratgias de pendor dissimilatrio, uma forma de contribuir

    para o alargamento e enriquecimento do imaginrio desses jovens

    leitores, mais aptos para compreender e integrar o Estrangeiro.

  • Mots-cl

    Ouverture lAutre; censure; culture ; distance culturelle; identit;

    imaginaire; lisibilit; littrature enfantine; littrature jeunesse; modles

    dissimilatoires; modles assimilatoires; profils de lecteurs; processus de

    rfrenciation; procds de traduction.

    Rsum

    Traduire la littrature pour les enfants et pour la jeunesse peut amener

    le traducteur recourir des mthodes diffrencies, selon le public

    auquel elle sadresse. Si les pratiques assimilatoires semblent plus

    appropries aux enfants, par contre, la traduction de livres adresss aux

    jeunes adolescents devra privilgier des stratgies dissimilatoires, ce qui

    permettra de contribuer llargissement et lenrichissement de

    limaginaire des jeunes lecteurs, plus aptes comprendre et intgrer

    ltranger.

  • Keywords

    opening to the 'Other'; censorship; culture; cultural distance; identity;

    imaginary; clarity; children's literature; youth literature; dissimilation

    models; assimilation models; reader profiles; referenciation process;

    translation processes.

    Summary

    Translating children's literature can lead the translator to use different

    methodologies, depending on the intended audience. If assimilation

    practices seem to fit the child audience, it appears that the translation of

    books for teenagers and young people should enhance dissimilation

    strategies, in a way to help broaden and nourish the imaginary of young

    readers, more able to understand and integrate the strangeness.

  • NDICE

    INTRODUO ........................................................................................................................ 1

    CAPTULO 1 TRADUO E CULTURA PERSPECTIVAS TERICAS E PRTICAS ................... 5

    1.1. Entre a teoria e a prtica da traduo ......................................................................... 5

    1.1.1. Os modelos assimilatrios..........................................................................................11

    1.1.2. Os modelos dissimilatrios .........................................................................................14

    1.1.3. Prticas tradutivas conciliadoras .................................................................................17

    1.2. A traduo da cultura ............................................................................................ 19

    1.2.1. A distncia cultural como medida .............................................................................21

    1.2.2. Processos de transferncia cultural .............................................................................26

    CAPTULO 2 TRADUZIR A LITERATURA INFANTO-JUVENIL ............................................ 33

    2.1. Especificidades da literatura infanto-juvenil ............................................................. 34

    2.1.1. Exigncias e reconhecimento de um gnero ................................................................34

    2.1.2. Um universo pouco homogneo .................................................................................36

    2.2. Como o autor e o tradutor impem a sua viso do mundo ........................................ 38

    2.2.1. Autoridade e Censura................................................................................................38

    2.2.2. O critrio de legibilidade ............................................................................................43

    2.3. Os jovens leitores em face do desconhecido ............................................................. 46

    2.3.1. Os componentes de uma leitura de sucesso.................................................................46

    2.3.2. A referenciao ao mundo do texto ............................................................................50

    2.4. O contributo da traduo na formao do imaginrio do leitor ................................ 55

    2.4.1. A construo do imaginrio .......................................................................................55

    2.4.2. Formar e educar o imaginrio.................................................................................57

    2.5. Traduzir para diferentes leitores ............................................................................... 59

    2.5.1. Diferentes perfis de leitor ..........................................................................................59

    2.5.2. Modelos tradutivos diferenciados na traduo infanto-juvenil .........................................61

    2.5.2.1. O caso das sagas infanto-juvenis .....................................................................66

  • CAPTULO 3 ESTUDO DE CASO ......................................................................................... 69

    3.1. O corpus ..................................................................................................................... 71

    3.1.1. Orientaes e critrios de escolha ..............................................................................71

    3.1.2. Anlise dos factores textuais externos e internos..........................................................73

    3.1.2.1. Os autores e a sua obra ..................................................................................73

    3.1.2.2. Os leitores .....................................................................................................77

    3.2. A cultura no TP ....................................................................................................... 85

    3.2.1. As marcas culturais explcitas .....................................................................................87

    3.2.2. As marcas culturais implcitas .....................................................................................90

    3.3. A intermediao cultural ............................................................................................ 93

    3.3.1. Anlise da distncia cultural entre o TP e o TC .............................................................93

    3.3.2. Tipos de interveno do tradutor ................................................................................98

    3.3.2.1. O emprstimo ..............................................................................................98

    3.3.2.2. O decalque ...................................................................................................99

    3.3.2.3. A explicitao ............................................................................................. 100

    3.3.2.4. A adaptao ................................................................................................ 102

    3.3.2.5. A equivalncia ............................................................................................. 103

    3.4. Consideraes finais ................................................................................................ 104

    CONCLUSO ...................................................................................................................... 107

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS ...................................................................................... 111

    ANEXOS ............................................................................................................................. 117

  • Et il me rpta alors, tout doucement, comme une chose trs srieuse :

    - Sil vous plat dessine-moi un mouton.

    Quand le mystre est trop impressionnant, on nose pas dsobir. []

    Alors, faute de patience, comme javais hte de commencer le dmontage

    de mon monteur, je griffonnai ce dessin-ci.

    Et je lanai:

    - a cest la caisse. Le mouton que tu veux est dedans.

    Mais je fus bien surpris de voir silluminer le visage de mon jeune juge:

    - Cest tout fait comme a que je le voulais! Crois-tu quil faille

    beaucoup dherbe ce mouton ?

    SAINT-XUPRY, A., Le petit prince

    http://2.bp.blogspot.com/_3WQv4c9g4Mo/SaxpNkSVEXI/AAAAAAAAAWA/IVp7h9z7dm0/s1600-h/10362pw150.jpg

  • [1]

    INTRODUO

    Aos olhos do Principezinho, uma simples caixa com trs orifcios pode abrigar a

    ovelha que ele queria. Esta personagem, que fez de Le petit prince um dos livros mais

    lidos e mais traduzidos de sempre, pertence ao imaginrio de toda a criana e adulto

    que leu o livro que Saint-Exupry dedicou ao seu amigo Lon Werth, quand il tait petit

    garon. A imagem sugestiva, com a qual abro esta introduo, permite traduzir a

    ideia-chave que se encontra no ttulo e subttulo deste trabalho e, ao mesmo tempo,

    problematizar algumas especificidades que a literatura infanto-juvenil e a sua traduo

    encerram.

    A mensagem implcita no excerto citado vai ao encontro do conhecido aforismo

    do autor, explicitado no dilogo entre a raposa e o Principezinho: On ne voit bien

    quavec le cur, limportant est invisible pour les yeux. O teor desta mensagem reenvia

    para uma imagtica mental que, no mbito desta reflexo, faz todo o sentido. Sublinho

    aqui a importncia do papel da imaginao na criana e no adolescente, assim como da

    sua capacidade de criao e interpretao de imagens e signos que o ajudam a

    apreender e a compreender o mundo e os outros. No nosso mundo mediatizado, no qual

    a criana metralhada com imagens fabricadas e padronizadas em catadupa, o espao

    para a imaginao francamente exguo. Uma das formas de contrariar esta tendncia

    o incentivo leitura que, por se tratar de um processo complexo que envolve

    mecanismos psquicos e cognitivos, obriga a criana a criar as suas prprias imagens, os

    seus prprios smbolos, tornando-a mais autnoma e permitindo-lhe construir o seu atlas

    do conhecimento, de si e dos outros. Neste contexto, a leitura de livros traduzidos, com

    origem noutras culturas e noutras civilizaes, desempenha um papel formador no

    negligencivel, j que obriga a criana e o jovem a atravessar fronteiras, a conviver de

    perto com o Outro, com o Diferente. O tradutor, a par com os educadores, professores,

    editores e pais/encarregados de educao, v-se assim revestido de uma misso

    educativa que acresce a uma outra, no menos importante: a de mediador cultural.

    Ambas representam desafios assinalveis para todo o tradutor que se dedica traduo

    de literatura infanto-juvenil.

  • [2]

    em torno destas duas misses que se articula esta reflexo, levada a cabo no

    mbito do Mestrado em Traduo, e intitulada O Primado do Imaginrio na Literatura

    Juvenil ou O Estrangeiro como fonte de aprendizagem e construo do Eu.

    O ttulo desta dissertao apresenta inequivocamente o imaginrio como uma

    pedra angular da traduo da literatura juvenil. Esse mesmo imaginrio que se alimenta

    de imagens, signos e smbolos de natureza variada, e que encontrar nos livros

    traduzidos um estmulo para a sua abertura e expanso. A importncia destas fontes

    para a compreenso das sociedades e das culturas humanas tem sido sublinhada por

    alguns tericos e investigadores que, opondo-se aos fundamentos da razo e da cincia

    como nica via para o conhecimento, desenvolveram e sistematizaram uma teoria que

    integra fenmenos de pendor mais subjectivo. Destacam-se os trabalhos do socilogo

    francs Gilbert Durand, fundador da cincia do imaginrio, que desde cedo se apoiou

    nas teorias de Jung para demonstrar que cincia e subjectividade no so abordagens

    antagnicas, podendo complementar-se para melhor aceder ao conhecimento. Falar do

    imaginrio em literatura juvenil, como repositrio das imagens mentais, obriga a

    equacionar duas vertentes: o imaginrio como processo e como produto inconsciente.

    Para o aperfeioamento de um e o alargamento do outro pode contribuir o tradutor:

    relativamente ao primeiro, obrigando o jovem leitor a recorrer a imagens armazenadas

    na sua mente, de modo a inferir e deduzir referncias desconhecidas e, para o segundo,

    pondo sua disposio novas imagens de outras realidades, que a literatura capaz de

    potenciar. Desenvolver e alargar o imaginrio do jovem leitor podero ser os objectivos

    de uma metodologia de traduo, para a qual importa preservar o Outro para melhor

    o conhecer e compreender, sobretudo nos tempos actuais em que o mundo nunca

    esteve to prximo de ns. O papel do tradutor ser o de (entre)abrir a porta desse

    desconhecido.

    A fazer jus ao elevado nmero de estudos sobre traduo de literatura infanto-

    juvenil e ao crescente interesse por parte das instituies nacionais e internacionais com

    apoios de vria ordem, a traduo infanto-juvenil tem vindo a ganhar contornos que lhe

    merecem toda a ateno. As razes desta actividade em plena efervescncia esto

    directamente relacionadas com o incremento da produo de literatura infanto-juvenil e

    com o fenmeno da internacionalizao dos bens culturais, associado corrente

    globalizante que alastra pelo planeta, desde os finais do sculo XX.

  • [3]

    A escolha do tema da traduo da literatura infanto-juvenil vai assim ao encontro

    da reflexo emergente sobre a sua problemtica, designadamente sobre o que se

    traduz, como se traduz, porque se traduz e para quem se traduz. No entanto, e devido

    complexidade e abrangncia da temtica, tornou-se necessrio delimitar o estudo,

    restringindo a anlise s marcas portadoras de indcios culturais. A defesa pela

    preservao destas marcas, no intuito de obrigar o jovem leitor a ser confrontado com o

    diferente e o Estrangeiro, constitui a linha mestra deste trabalho, ao longo do qual

    se procurar evidenciar os benefcios de tal metodologia na formao da sua

    personalidade e ampliao dos seus conhecimentos enciclopdicos.

    Considerei importante fazer um enquadramento terico da concepo dualista -

    preservao ou acultarao dos traos prprios de uma cultura -, que marcou, durante

    sculos, a reflexo sobre a traduo. O primeiro captulo incidir sobre as causas e os

    efeitos que as diferentes abordagens tradutivas tiveram, e tm, nas sociedades

    humanas. Esta reflexo no poderia ficar concluda sem algumas abordagens tradutivas

    que propem a adopo de estratgias conciliadoras, diluindo assim o antagonismo que

    caracterizou o estudo da traduo ao longo dos tempos. Esta abordagem parece ser,

    como se ver, predominante no processo de traduo de literatura juvenil.

    Pelo facto de se poder estabelecer um paralelismo entre o processo de autoria do

    texto de partida e o processo de traduo (uma realidade enfatizada por diversos

    tradutlogos, investigadores e tambm tradutores), considerou-se importante analisar

    alguns dos factores que caracterizam a escrita de livros destinados a crianas e jovens.

    Esta anlise, levada a cabo ao longo do segundo captulo, permitiu identificar algumas

    das estratgias dos autores que podero legitimar e fundamentar as opes do tradutor.

    Na verdade, se o escritor recorre a estratgias diferenciadas refiro-me tanto ao

    sistema lingustico, como ao sistema cultural - em funo do perfil do seu pblico (idade,

    grau de maturidade afectiva e intelectual, etc), no se encontram razes para que o

    tradutor tenha que proceder de forma homognea diante de pblicos diferentes.

    Veremos, neste captulo, como pode revelar-se pertinente uma diferenciao

    metodolgica do processo de traduo ( semelhana do que j ocorre no processo de

    escrita). Por outro lado, tornou-se igualmente imprescindvel reflectir sobre o perfil

    psico-social e cognitivo do leitor, bem como sobre o seu papel em face do

    desconhecido. Pareceu-me relevante aprofundar os mecanismos afectivos e

    intelectuais, mobilizados durante as diversas fases do leitor-tipo, assim como as

    competncias convocadas para colmatar eventuais espaos em branco. Veremos,

  • [4]

    ainda, como uma excessiva explicitao, por parte do tradutor, poder comprometer o

    prazer inerente a uma leitura bem sucedida, e contribuir, ainda, para a atrofia do

    imaginrio do leitor, nomeadamente para os adolescentes e jovens, para quem o

    mistrio e o exotismo so fontes de atraco considerveis.

    Para o estudo de caso, que constitui o terceiro captulo, escolhi um corpus

    reduzido, de quatro obras francfonas, no traduzidas em Portugal. Este critrio foi

    determinante, uma vez que se pretendia fazer o levantamento, a classificao e a

    sistematizao das marcas culturais, sem ser movida por preocupaes comparativistas

    ou outras de teor mais crtico (que ocorrem inevitavelmente quando existe uma traduo

    j disponvel). O objectivo da anlise, que integrou alguns dos princpios enunciados ao

    longo dos dois primeiros captulos, foi mostrar at que ponto se pode recorrer ao

    mtodo global de traduo dissimilatria na literatura juvenil.

  • [5]

    CAPTULO 1 TRADUO E CULTURA PERSPECTIVAS TERICAS E

    PRTICAS

    Si la traduction fait perdre lobjet son identit, elle ne

    laura pas traduit, mais dtruit.

    RICHARD, J.-P., Traduire lignorance culturelle

    1.1. Entre a teoria e a prtica da traduo

    Para abordar a questo da traduo da literatura infanto-juvenil, considero

    essencial comear por definir dois conceitos fundamentais em torno dos quais se articula

    este trabalho: traduo e cultura. Importa definir o mbito de cada um deles, j

    que no raro estarem ambos no centro do debate, quer no plano da teoria

    propriamente dita, quer no domnio dos estudos baseados na prtica tradutiva.

    Confinada durante largos anos a discusses pouco profcuas sobre a sua

    definio e alcance, a traduo tem vindo a emancipar-se, afastando-se das

    imprecises e limitaes que a caracterizavam, para ganhar contornos mais ntidos e

    alcanar um estatuto cientfico e acadmico. Ressalta, desta perspectiva diacrnica, uma

    atitude que durante largos anos reduziu a traduo a uma mera equivalncia formal,

    justificada em parte pela abordagem comparativista dos textos de partida (TP) e dos

    textos de chegada (TC)1, deixando de fora outros parmetros importantes que, com o

    tempo, foram sendo resgatados. Estamos longe das querelas que alimentaram durante

    quase dois milnios a crtica da traduo e os esboos tericos que lhe estiveram

    associados. Actualmente, j ningum ousa falar de traio por parte do tradutor,

    sendo quase consensual a existncia de inmeros factores internos e/ou externos que

    podem legitimar as escolhas do tradutor. Esta evoluo explicada, em parte, pelo

    aparecimento do paradigma funcionalista que, apoiado nos estudos de Vermeer (1978) e

    da sua Skopostheory, revestiu a traduo de uma nova dimenso. Com efeito, ao

    aplicar os fundamentos desta teoria traduo, os seguidores do modelo funcionalista,

    C. Nord entre outros, insistiram, ao longo dos seus trabalhos publicados, na ideia de que

    1 Na bibliografia consultada so comummente utilizadas as siglas TS (texte source) e TC (texte cible) e ST (source text) e TT (target text), na lngua francesa e na lngua inglesa respectivamente. Ao longo deste trabalho, recorri s siglas equivalentes TP (texto de partida) e TC (texto de chegada) para favorecer a fluncia da leitura, sempre que se alude aos referidos conceitos.

  • [6]

    o tradutor deve subjugar as suas escolhas funcionalidade determinada pela finalidade

    do TP ou do TC (NORD, 2006) .

    Outros pensadores, das mais variadas reas do saber, podem igualmente ser

    apontados como os grandes responsveis pelo aprofundamento da problemtica da

    traduo. Destaco aqui o filsofo francs P. Ricoeur, que apresenta duas noes de

    traduo: Deux voies daccs soffrent au problme pos par lacte de traduire: soit

    prendre le terme de traduction au sens strict de transfert dun message verbal dune

    langue dans une autre, soit le prendre au sens large, comme synonyme de

    linterprtation de tout ensemble signifiant lintrieur de la mme communaut

    linguistique2. Deixaremos de lado o sentido lato de traduo, que muito se aproxima

    do conceito preconizado por G. Steiner, para quem todo o processo de compreenso,

    seja intralingustico ou interlingustico, um acto de traduo, conforme ele mesmo

    elucida no prefcio que acompanha a 2 edio de Aprs Babel : Une potique du dire et

    de la traduction : Comprendre, cest dchiffrer. Entendre une signification, cest

    traduire. (STEINER, 1998, p. 17). Para a reflexo em curso, s a primeira definio

    interessa. O conceito de traduo, no seu sentido restrito, aqui relevante, uma vez

    que, ao equacionar a traduo como um processo de transferncia, abre novos campos

    de aco, tanto para o tradutor como para o investigador. Tradicionalmente encarada

    como produto e nico objecto de anlise, a traduo passa a integrar competncias

    processuais, baseadas na reflexo e na experincia do tradutor e investigador. O

    conceito tradicional foi assim ampliado e, ao apoderar-se de uma dimenso mais

    dinmica, fez emergir um novo ramo de conhecimento, comummente designado

    Tradutologia.

    Esta viso mais empirista e mais pragmtica da traduo defendida por A.

    Berman3 que afirma que La traduction est une exprience qui peut souvrir et se (re)

    saisir dans la rflexion e define a tradutologia como la rflexion de la traduction sur

    elle-mme partir de sa nature dexprience (BERMAN, 1985 , pp. 16-17) . Para este

    autor, o acto de traduzir aproxima-se do acto de filosofar. atravs do pensamento

    que o tradutor pode legitimar as suas escolhas e, embora no ensine a traduo, como

    refere o prprio autor, a tradutologia dveloppe de manire transmissible

    2 RICOEUR, Paul, Sur la traduction, Paris, Bayard, 2004, p. 21, citada em (RAGUET, 2007, p. 39). 3 O artigo La traduction et la lettre ou lauberge du lointain foi publicado em Portugal, em 1997, pelas Edies Colibri, numa verso traduzida coordenada por Guilhermina Jorge. Faz parte de uma colectnea de textos com o ttulo Tradutor Dilacerado : reflexes de autores franceses contemporneos sobre traduo (JORGE, 1997).

  • [7]

    (conceptuelle) lexprience quest la traduction dans son essence plurielle4 (BERMAN,

    1985 , pp. 22-23). Esta atitude reflexiva, que se estende a todos os que se encontram

    no espao da traduo, permite que a traduo beneficie do conhecimento e

    aprofundamento de vrias disciplinas, cujo objecto de estudo se intersecciona com o da

    traduo, a saber a filosofia, a literatura, a lingustica, a psicanlise, a informtica, a

    sociologia e a antropologia, entre outras.

    Ao penetrarem no domnio da traduo, todas estas disciplinas cientficas

    permitiram clarificar algumas limitaes da traduo, no entanto, medida que esta

    foi alcanando um estatuto de matria multidisciplinar, tambm se intensifica a sua

    complexificao. Esta caracterstica parece justificar a impossibilidade da criao de uma

    nica teoria, porquanto existem tantas abordagens quanto as disciplinas envolvidas5.

    Para abordar a problemtica da cultura na traduo (tema central do nosso

    trabalho), a cincia que merece ser evidenciada a antropologia, pois permitiu que

    fosse lanado um novo olhar sobre a traduo da cultura e dos fenmenos culturais,

    relativizando, ainda que no as erradicando, algumas dicotomias existentes entre os

    modelos tradutivos. Como provam os inmeros estudos e reflexes sobre o acto de

    traduzir a cultura, publicados desde as duas ltimas dcadas, continua a haver dois

    campos opostos entre os que consideram que a cultura do TP deve ser preservada no

    TC a todo o custo e os que propem algumas concesses aos modelos sugeridos. Deixo

    para mais adiante a anlise destas posies mais ou menos estremadas para me

    debruar agora sobre o conceito de cultura que me propus apresentar, e que alarga o

    mbito da traduo sobre o prisma intercultural, com o aparecimento do paradigma

    cultural. P. Bensimon refere-se deste modo essncia da traduo: Depuis les temps

    anciens, la traduction est un des moyens essentiels de la communication interculturelle,

    et lun des modes majeurs du croisement des cultures (BENSIMON, 1998, p. 10). Este

    alargamento componente cultural tem origem no prprio fenmeno de traduo -

    4 O sublinhado corresponde a itlico no original. 5 Tanto George Steiner como Antoine Berman acreditam que no possvel existir uma nica teoria da traduo. O primeiro sugere o termo de hermenutica ou Intelligence de la comprhension, argumentando que Dans les disciplines de lintuition et des rponses stimules de la sensibilit, dans lart de lapprhension et de la responsabilit qui constituent les humanits, il nest point de paradigme ou dcole du jugement qui annulent les autres O autor chega mesmo a comparar a traduo matemtica: Tout comme les mathmatiques, la traduction admet des solutions mais pas de mthode systmatique de solutions (STEINER, 1998, pp. 20, 21, 401 e 533) ; o segundo, prope o ramo da tradutologia que, por integrar a experincia e a reflexo, dois conceitos centrais do pensamento moderno, no uma cincia exacta e objectiva: [] lambition de la traductologie, si elle nest pas dchafauder une thorie gnrale de la traduction (au contraire, elle dmontrerait quune telle thorie ne peut exister, puisque lespace de la traduction est bablien, cest--dire rcuse toute totalisation), est malgr tout de mditer sur la totalit des formes existantes de la traduction (BERMAN, 1985 , pp. 19-20)

  • [8]

    sendo esta entendida como acto de comunicao entre dois povos com lngua e cultura

    diferentes - e assinala o grau de maturidade alcanado pela traduo. Mas vejamos o

    que se deve entender por cultura.

    A definio proposta pelos estudos antropolgicos , por certo, a que melhor

    serve os propsitos deste trabalho. O termo cultura a definido, entendido no sentido

    lato, retomado por J. Svry no artigo publicado na revista Palimpsestes (nmero 11),

    intitulada Traduire la culture: Cest tout un systme de reprsentations du monde,

    une relation instaure entre lhomme, la nature, le cosmos, lici et maintenant et lau-

    del, cest--dire le sacr, qui sest mise en place au gr de lhistoire (SVRY, 1998, p.

    135). Logo se depreende, luz desta definio, que toda a actividade humana passa a

    adquirir um significado cultural. Esta constatao no simplifica o trabalho do tradutor

    que ter de integrar a componente cultural nas estratgias que motivarem as suas

    escolhas, com todos os constrangimentos agravados pela distncia espacial e temporal

    entre o TP e o TC. Os obstculos at podem ser incontveis. Muitos deles foram

    invocados para justificar o conceito de impossibilidade da traduo, este relacionado

    com um outro igualmente castrador: o conceito de intraduzibilidade. Os fundamentos

    que costumam apoiar estas posies so conhecidos: por um lado, lngua e cultura so

    as faces de uma mesma moeda e, por outro, as lnguas no recortam a realidade da

    mesma forma. No entanto, admitir a validade destes argumentos equivale a negar o

    prprio acto de traduo6.

    A reflexo acerca da traduo dos fenmenos culturais relativamente recente, e

    o papel estratgico da traduo na promoo do dilogo intercultural, amplamente

    enfatizado nas sociedades europeias contemporneas, tem ajudado a aprofund-la.

    Objectivamente referenciada como uma das principais metas da construo europeia, a

    comunicao intercultural assenta, por um lado, na preservao das lnguas nacionais, e,

    por outro, na traduo que promove o acesso dos cidados europeus s ideias, ao

    conhecimento e s expresses culturais e artsticas de outros pases. U. Eco7 chega

    mesmo a afirmar que La vritable langue de lEurope, cest la traduction. So posies

    ideolgicas como estas, de essncia poltica muito mais do que cultural ou cientfica, que

    6 Alguns pensadores, como Paul Ricoeur, problematizaram a traduo e identificaram alguns aspectos lingusticos e extra-lingusticos, tais como a polissemia e a conotao, que podem ser invocados como obstculos sua viabilidade (RICOEUR, 2004, pp. 39-48). 7Esta frase, sobejamente conhecida nos crculos da Unio Europeia, sobretudo quando a traduo est na ordem do dia, surge na pgina do Observatoire europen du plurinlinguisme : http://plurilinguisme.europe-avenir.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2502&Itemid=48, consultada a 3 de Fevereiro de 2010.

    http://plurilinguisme.europe-/http://plurilinguisme.europe-avenir.com/index.php?option=com_content&task=view&id=2502&Itemid=48

  • [9]

    tm ditado e influenciado as metodologias e estratgias dominantes da traduo ao

    longo dos tempos. A. Brisset, no artigo intitulado Lidentit culturelle de la traduction,

    enfatiza o papel do contexto cultural no qual se inscreve a traduo:

    Ainsi faut-il montrer qu lencontre de la majorit des modles qui nous reprsentent lopration traduisante, le lieu premier du sens est moins le texte traduire que le lieu culturel quen suscite la traduction, qui exprime la ncessit de cette traduction et en tablit donc la pertinence, une pertinence que reflte alors la chane des choix ponctuels8 (BRISSET, 1998, p. 34).

    Os contextos culturais a que se refere a autora motivam e justificam a

    metodologia tradutiva, e no esto dissociados das representaes culturais que cada

    cultura tem de si prpria e da(s) cultura(s) de origem das obras. Estes factores so, de

    forma mais ou menos consciente, filtrados pelo crivo de representaes cimentadas na

    memria colectiva da cultura de chegada. Na mesma linha de pensamento de A. Brisset,

    L. Mihalache reala a importncia das representaes culturais na construo da

    identidade da traduo e do tradutor:

    La pense traductive construit ainsi une identit de la traduction et du traducteur et montre que la traduction est une institution culturelle qui agit par le traducteur au niveau des reprsentations publiques de la culture daccueil. () Lhistoire de la traduction nous montre pourquoi on traduit dune certaine faon une certaine poque (pourquoi certaines choses sont plus significatives que dautres), comment on traduit, qui traduit et pour qui, et non pas en dernier lieu ce quon traduit. Nous apprenons, grce cette logique holographique de lhistoire de la traduction, nous dprendre de la monotonie dune seule reprsentation ou dune seule idologie pour inscrire la traduction-processus dans un espace discursif lintrieur duquel la traduction-produit est une source inpuisable dinterprtations9 (MIHALACHE, 2002)10.

    A histria da traduo, ao pr em realce as especificidades do contexto cultural,

    permite explicar, por exemplo, como os romanos traduziram dos gregos, como os

    franceses traduziram ao longo de todo o sculo XVII, como se traduziu no passado e

    ainda se traduz sob os regimes totalitrios, como se traduz (e se escreve tambm) nos

    pases colonizados, como se traduz nos pases anglo-saxnicos, para citar apenas

    alguns. De igual modo, os factores provenientes do contexto cultural e as

    representaes que lhe esto associadas deixo deliberadamente de fora os imperativos

    8 Itlicos da autora. 9 Itlicos da autora. 10 Artigo consultado na revista Meta, disponvel na sua verso electrnica, a 5 de Janeiro de 2010: http://www.erudit.org/revue/META/2002/v47/n3/008020ar.pdf

    http://www.erudit.org/revue/META/2002/v47/n3/008020ar.pdf

  • [10]

    de ordem econmica - podem explicar por que motivo durante as ltimas dcadas se

    privilegiou na Europa a traduo-anexao, mas tambm por que razes se privilegiam

    actualmente as tradues de obras de origem anglo-saxnica, em detrimento de outras

    origens. C. Raguet aponta uma explicao para alguns destes fenmenos. Afirma esta

    autora que LEurope, appliquant au culturel ce quelle avait mis en place avec le

    politique, a bloqu louverture culturelle sur lAutre en pratiquant la traduction-annexion

    qui nie loriginalit de la langue-culture (RAGUET, 2007, p. 43). Esta observao no

    deixa de ser pertinente e pode seriamente comprometer os grandes desgnios da Unio

    Europeia na promoo do dilogo intercultural, que s se revelar efectivamente eficaz

    se todas as lnguas e culturas puderem ser acessveis de igual forma. Manter sob silncio

    algumas manifestaes culturais - literrias ou artsticas a pretexto de uma pretensa

    superioridade cultural ou poltica - no garante a convivncia salutar entre os povos.

    Mostrar que se est apto para receber o Outro na sua cultura no evidente e a histria

    da humanidade tem exemplos de sobra.

    Pela forma como preconizaram e praticaram a traduo, muitos so aqueles que

    ajudaram a defender a preservao desse Outro (Goethe, Schleiermacher, Humbolt,

    Berman so alguns desses nomes), mas nem sempre os seus pressupostos foram bem

    recebidos. A primeira querela ter sido desencadeada por So Jernimo, tradutor da

    primeira verso da Bblia em latim, mais conhecida por Vulgata. Defendia o autor que,

    por se tratar de um livro sagrado, dever-se-ia privilegiar a letra, podendo ser adoptada

    maior liberdade para os livros profanos11. No caso da Bblia, esta problemtica emerge

    sempre que est em causa a destruio da letra original para melhor se conformar

    cultura e lngua dos povos12. Foi assim com Lutero quando este traduziu a Bblia para a

    lngua verncula alem. Este conhecido exemplo ilustra a dicotomia que consagrou a

    letra e o esprito em campos opostos e que se foi perpetuando, ainda que com

    algumas nuances. Qualquer que seja a opo terminolgica adoptada, a partir do ngulo

    11 So Jernimo pode ser considerado como um dos primeiros pensadores da traduo, depois de Ccero e Horcio. Na Carta que endereou a Pamquio, d a conhecer a sua posio em relao traduo, distinguindo duas metodologias, a primeira literal para os textos sagrados e a segunda mais livre para os outros textos : Por minha parte, realmente, no apenas confesso, mas proclamo a plenos pulmes que quando traduzo os textos gregos que no sejam as Sagradas Escrituras (onde at a estrutura da frase mistrio) no palavra a palavra, mas o sentido que eu exprimo. (JERNIMO, p. 61) 12 As sucessivas retradues e revises editorais da Bblia ilustram essa necessidade de a conformar ao pblico de chegada. Uma breve olhar comparativo sobre duas edies publicadas em diferentes sculos em Portugal, permitiu pr em relevo, por exemplo, a evoluo ao nvel das formas de tratamento e estruturas sintcticas e a substituio de alguns vocbulos, cados em desuso, como o termo varo que foi substitudo na maioria das occorrncias pelos termos menos conotados: homem ou descendente (Bblia Sagrada: Segundo a Vulgata Latina , Lisboa, Sociedade Astoria, 1842 e Bblia sagrada Para o Terceiro milnio da Encarnao, Lisboa/Ftima, Difusora Bblica, 4 edio, 2002 cf. Genesis 11: 1-9 e 1Reis 9: 5, a ttulo de exemplo).

  • [11]

    com que se encara a traduo, a essncia da questo inicial tende a reaparecer:

    Fidelidade versus Liberdade. Num artigo que dedica adaptao, M. Mariaule (2007, p.

    238) enumera os pares conceptuais que foram surgindo e que podemos elencar, por

    ordem cronolgica do seu aparecimento, sob o primeiro par terminolgico citado, (os

    parnteses referem-se aos autores dos conceitos): literalismo / adaptao (Ccero);

    traduo-descentramento / traduo-anexao (Meschonnic); traduo sourcire /

    traduo cibliste (Ladmiral); traduo tica / traduo etnocntrica (Berman); traduo

    semntica / traduo comunicativa (Newmark); foreignization - ou resistncia /

    domesticao ou traduo fluente (Venuti). Por detrs de todos estes conceitos,

    identificamos as duas instncias de referncia que justificam o acto de traduo e

    motivam o seu processo: a montante, o autor do TP, e a jusante, o leitor do TC. Para o

    tradutor, mediador entre ambas as instncias, F. Schleiermacher via duas sadas: Either

    the translator leaves the author in peace, as much as possible, and moves the reader

    toward him. Or he leaves the reader in peace, as much as possible, and moves the

    author toward him (SCHLEIERMACHER, 1813 , p. 149). A esta viso dualista e

    antagnica da traduo, alguns pensadores propem uma outra via que obriga o

    tradutor a assumir um papel de intermedirio, oscilando permanentemente entre um e

    outro plo, negociando todos os elementos com vista a atingir o melhor equilbrio

    possvel. Interessa, por isso, perceber o que caracteriza cada uma das metodologias

    tradutivas, designadas globalmente por modelos assimilatrios e modelos dissimilatrios

    e, mais adiante, reflectir sobre alguns dos princpios metodolgicos para se alcanar uma

    traduo que concilie TP e TC.

    1.1.1. Os modelos assimilatrios

    Os Romanos foram os primeiros povos, de que h memria escrita, a praticarem

    a traduo assimilatria de forma inequvoca. Traduziram da cultura e civilizao gregas,

    sorvendo compulsivamente dos textos escritos os ensinamentos sobre o mundo real e

    mitolgico e sobre a natureza humana. Marcaram, contudo, cada um dos elementos

    importados com a chancela romana, apagando toda e qualquer identificao sua

    origem. Os exemplos mais conhecidos deste fenmeno de aculturao so as figuras

    que povoam o imaginrio mitolgico. Foi assim, por exemplo, que Zeus se tornou Jpiter

    e que Afrodite passou a designar-se Vnus. No entanto, a histria da traduo est

    repleta de exemplos desta natureza. Para quase todos estes fenmenos culturais,

    assimilveis a verdadeiros saques culturais, surgem as mesmas explicaes: a

  • [12]

    necessidade de afirmao da superioridade poltica e/ou cultural; o imperativo de

    aniquilao da cultura mais fraca; a ameaa da identidade por outras culturas

    emergentes, entre as mais evidentes. Os argumentos contemporneos so, porm, mais

    moderados e invocam a necessidade de ir ao encontro do pblico de chegada, de modo

    a que os leitores do pblico do TC no sejam confrontados com quaisquer elementos

    estranhos que indiciem tratar-se de uma obra traduzida. L. Venuti o teorizador mais

    frequentemente citado para ilustrar a denncia da traduo assimilatria. Foi ele que se

    debruou sobre a (in)visibilidade do tradutor e apontou o dedo forma como se traduz

    na cultura anglo-americana. Segundo este autor, neste contexto cultural, a avaliao da

    traduo passa pela invisibilidade do tradutor com base nos seguintes critrios:

    A translated text, whether prose or poetry, fiction or nonfiction, is judged acceptable by most publishers, reviewers, and readers when it reads fluently, when the absence of any linguistic or stylistic peculiarities makes it seem transparent, giving the appearance that it reflects the foreign writers personality or intention or the essential meaning of the foreign text the appearance, in other words, that the translation is not in fact a translation, but the original (VENUTI, 1995, p. 1).

    Interessa paradoxalmente dar a iluso da transparncia, a iluso de que the more

    fluent the translation, the more invisible the translator, and presumably, the more visible

    the writer or meaning of the foreign text (VENUTI, 1995, p. 2). Mas no passar disso

    mesmo: de uma iluso, e no mago do paradoxo est o advrbio presumably. Quando

    estes so os preceitos que orientam o processo de traduo, ningum duvida de que o

    TC se apresenta esvaziado da essncia do TP. A primazia do critrio de legibilidade faz

    diluir e apagar todos os elementos susceptveis de causar estranheza aos leitores do TC.

    Este modelo que prevalece no espao anglo-americano, embora no sendo caso

    nico no mundo actual, j teve outrora o seu apogeu nesta mesma Europa que hoje

    tanto o critica. Referimo-nos ao sculo XVII, em Frana, perodo em que as tradues

    ficaram conhecidas como Les Belles Infidles. Desde logo nos perguntamos: que

    factores podero explicar o facto de duas culturas, separadas geograficamente por mais

    de 5000 quilmetros e cronologicamente por mais de 4 sculos, se comportarem da

    mesma forma em matria de opes tradutivas. Se cruzarmos os elementos decorrentes

    da anlise diacrnica e sincrnica, encontramos factos de ordem cultural e poltica que

    tm muito em comum. Comeo pelo segundo caso citado, mas primeiro em termos

    histricos. A Frana atravessou, no sculo XVII, um perodo que ficou conhecido nos

    anais da histria como Le Grand sicle. o sculo de Louis XIV, o Rei-Sol, da Acadmie

  • [13]

    franaise, do esplendor da cultura e lngua francesas, estendendo a sua influncia alm

    fronteiras. A Frana , nessa altura, o pas do gosto requintado, das Belles lettres. Por

    todo o lado, imitam-se os seus palcios, a sua moda, a sua literatura, as suas ideias

    filosficas, o seu savoir-vivre. A lngua francesa a lngua dos eruditos, falada por toda

    a elite poltica e intelectual europeia.

    No caso do espao anglo-americano, embora a anlise possa surgir distorcida

    pela proximidade temporal, identificamos uma cultura que se estende escala mundial,

    caracterizando o fenmeno de globalizao. Os Estados Unidos da Amrica, de forma

    mais notria do que a sua congnere lingustica europeia, exportam para os quatro

    cantos do mundo a sua cincia, tecnologia, literatura, arte, cinema, gastronomia, por

    vezes tambm a sua poltica; em suma todos os bens cientficos, tecnolgicos e culturais

    que compem o seu esplio. Em quase todos os continentes, as competncias em lngua

    inglesa passaram a ser referncia obrigatria em qualquer curriculum acadmico e

    profissional.

    Em ambas as situaes sumariamente descritas, identificamos uma cultura que

    exerce sobre os outros povos o seu poder, seja ele poltico, econmico ou cultural. Nas

    duas situaes, o prestgio internacional e/ou universal granjeado pelas duas culturas

    assinalvel. So estes mesmos factos que explicam embora no legitimem - a

    metodologia assimilatria levada a cabo nestes pases. So ainda estas circunstncias

    que explicam o facto de nesses pases, embora em pocas diferentes, se traduzir um

    nmero reduzido de obras estrangeiras e da aprendizagem de lnguas estrangeiras no

    ser considerada prioritria. Esta relao unilateral com o resto do mundo faz sobressair

    uma relao deficitria com o Estrangeiro, com o Outro, por culpa de um contacto

    espordico e enfraquecido. Os riscos, a longo prazo, podem atemorizar os mais

    incrdulos: reforo da prepotncia e hegemonia poltica e cultural; incapacidade para o

    dilogo intercultural; intercmbios comprometidos; sentimentos xenfobos;

    aniquilamento das lnguas e culturas minoritrias13 por fora da hegemonia lingustica e

    cultural. Por outro lado, os efeitos decorrentes deste fenmeno de dominao cultural e

    poltica so igualmente inquietantes nos pases receptores ou importadores de cultura.

    13 So conhecidos os ataques do linguista Claude Hagge hegemonia da lngua inglesa (e tambm da lngua espanhola), assim como as suas consequncias, como o desaparecimento anual de cerca de 25 lnguas no mundo. Informaes obtidas no artigo de Caroline Monpetit, a propsito da publicao do dicionrio Le dictionnaire amoureux des langues do autor, consultado na pgina Le devoir.com, a 2 de Abril de 2010: http://www.ledevoir.com/culture/livres/277649/claude-hagege-pour-la-survie-de-babel. Por seu lado, tambm George Steiner aponta a difuso universal do ingls como factor de destruio da variedade lingustica natural (STEINER, 1998, p. 631).

    http://www.ledevoir.com/culture/livres/277649/claude-hagege-pour-la-survie-de-babel

  • [14]

    Estes pases desenvolvem muitas vezes um certo fascnio em relao cultura emissora,

    conotada com prestgio, fortuna e sucesso, levando-os adopo de prticas

    dissimilatrias, que podem reflectir uma imagem de submisso. Este fenmeno

    conhecido como o paradigma da influncia, que veicula a ideia de que a cultura emisora

    superior (JURT, 2007, pp. 96-97).

    Os dois exemplos, separados no tempo e no espao, exemplificam a prtica

    tradutiva de assimilao e os seus potenciais efeitos em termos culturais. Mas a histria

    da traduo revela que a Europa foi sucessivamente atravessada por correntes opostas e

    que, embora ao longo dos sculos XVIII, XIX e XX se tenham aplicado os princpios

    defendidos por Perrot dAblancourt nas suas Belles infidles, tambm se ouvia uma voz

    contrria, a voz dos defensores das prticas dissimilatrias que, a partir da Alemanha,

    seguiam de perto os ensinamentos de Goethe, para quem o Outro era um bem valioso a

    preservar.

    1.1.2. Os modelos dissimilatrios

    Contra a uniformizao e homogeneizao do mundo cultural, para as quais a

    traduo pode contribuir de forma mais ou menos consciente, opem-se todos os que

    advogam a metodologia dissimiliatria. Uma das crticas modernas, dirigida aos modelos

    assimilatrios, pertence ao teorizador francs, A. Berman, quando afirma: La vise

    mme de la traduction ouvrir au niveau de lcrit un certain rapport lAutre, fconder

    le propre para la mdiation de ltranger heurte de front la structure ethnocentrique de

    toute culture, ou cette espce de narcissique qui fait que toute socit voudrait tre un

    tout pur et non mlang, (BERMAN, 1984, p. 16). Este autor, que nunca se cansou de

    reivindicar os benefcios do enriquecimento cultural e da dimenso tica que lhe est

    intrinsecamente ligada, esclareceu quanto prpria essncia da traduo:

    Or, la traduction, de par sa vise de fidlit, appartient originairement la dimension thique. Elle est, dans son essence mme, anime du dsir douvrir ltranger en tant qutranger son propre espace de langue. Cela ne veut nullement dire quhistoriquement il en ait t toujours ainsi. Au contraire, la vise appropriatrice et annexionniste qui caractrise lOccident a presque toujours touff la vise thique de la traduction. La logique du mme la presque toujours emport. Il nempche que lacte de traduire relve dune autre logique, celle de lthique. Cest pourquoi, reprenant la belle expression dun troubadour, nous disons que la traduction est, dans son essence, lauberge du lointain14 (BERMAN, 1985 , pp. 75-76).

    14 Itlicos do autor.

  • [15]

    Neste excerto, A. Berman denuncia os desvios etnocntricos e aposta na preservao do

    estrangeiro atravs da estratgia tradutiva literalizante, ou seja dissimilatria. Na sua

    ptica, a lngua e o texto de chegada devem tornar-se os anfitries da cultura do TP. O

    autor reitera, deste modo, que a abordagem literalista a nica que serve os propsitos

    da traduo, quer em termos culturais, quer em termos lingusticos, criticando

    veementemente os modelos etnocntrico e hipertextual. Para escapar s traies que

    ambos os modelos produzem, A. Berman (1985 , p. 49 e seg.) denuncia um conjunto de

    treze foras, que denomina foras deformantes, as principais responsveis pelo

    desrespeito, esvaziamento, supresso, adulterao e domesticao da letra do TP.

    Segundo o autor, devero ser neutralizadas por parte do tradutor as seguintes

    estratgias tradutivas: racionalizao que leva o tradutor a passar do concreto do TP ao

    abstracto no TC; clarificao atravs de parfrases, explicaes e reduo monossemia

    no TC a polissemia do TP; alongamento pelo desdobramento, acrscimo do texto

    original; enobrecimento do TP com recurso a uma retorizao do TC; empobrecimento

    qualitativo, consistindo na perda da riqueza sonora e icnica, destrudo uma boa parte

    da significao e da matria falante do TP; empobrecimento quantitativo que atenta

    contra o tecido lexical, fazendo perder parte da sua profuso lexical; homogeneizao da

    obra que decorre da tendncia em unificar aquilo que heterogneo na obra de origem;

    destruio dos ritmos quando se agride a pontuao, por exemplo; destruio das redes

    significantes com o desrespeito pela cadeia dos significados-chave; destruio dos

    sistematismos do TP quando se leva a cabo, por exemplo, os primeiros processos

    enunciados; destruio ou exotizao das redes vernculas da fala, mesmo em textos

    cujo objectivo mostrar a oralidade verncula; destruio das locues, como no caso

    das equivalncias das expresses idiomticas e, por fim, o apagamento das

    superposies de lngua que ameaa a existncia de vrias lnguas que caracteriza a

    prosa. Para A. Berman, estas tendncias deformantes destroem a letra do texto,

    quando essas se tornam dominantes e sistemticas. No entanto, o autor no nega que

    elas possam ser necessrias em algumas circunstncias.

    Todos ns compreendemos a pertinncia de alguns dos princpios de A. Berman,

    embora eles sejam pouco elucidativos quando esto em causa os factos e os objectos

    culturais. A estratgia que submete o tradutor a encontrar uma equivalncia a todo o

    custo - lembremos o conceito de equivalncia dinmica de E. Nida - h muito que deixou

    de ser vlida para a traduo de referentes culturais. Sabemos, a ttulo de exemplo,

    que do ponto de vista cultural, ainda que o seja no plano funcional, Tour Eiffel no

  • [16]

    equivale Torre de Belm, nem o Elyse o equivalente do Palcio de Belm. Mas,

    posta de lado esta questo que rene algum consenso no seio dos estudos em

    Traduo, no faltam detractores maioria dos pressupostos enunciados por A. Berman.

    Alguns, como J.-R. Ladmiral, acusam-no de querer reduzir o texto a um documento-alvo,

    distinguindo duas variantes: [] selon que laccent aura t mis sur le versant

    linguistique ou sur le versant culturel de ce complexe etnholinguistique de la langue-

    culture, il y aura eu philologisation ou ethnologisation du texte source (LADMIRAL,

    1998, p. 26).

    A histria da traduo na Europa atesta inmeros exemplos de prticas

    dissimilatrias: nos tempos ureos do Romantismo, perodo caracterizado por um

    enorme fascnio e atraco pelo singular, o extico e o estranho, importava a

    manuteno de todos os elementos estrangeiros, indispensveis para recriar a cor local

    do TP; nos pases mediterrneos dos quais Portugal que aps longos perodos de

    isolamento e inrcia cultural, se abriram progressivamente cultura europeia, importou-

    se literalmente a lngua e a sua cultura atravs de emprstimos e neologismos e, mais

    recentemente, a Europa (para no dizer o mundo inteiro) que, rendida aos ditames da

    cultura cientfica e tecnolgica de origem anglo-saxnica, decidiu adoptar, por respeito

    diro uns, por comodismo acusaro outros, a sua terminologia e os seus conceitos.

    Como se depreende do exposto, muitos so os motivos que justificam a adopo

    de estratgias que preservam a identidade cultural e/ou lingustica do TP. Actualmente,

    as razes invocadas por teorizadores e tradutlogos tm um pendor mais humanista e

    justificam-se em face de uma tendncia cultural e lingustica homogeneizante que pe o

    mundo (quase) inteiro a falar uma mesma lngua e a apregoar as mesmas ideias. Ao

    promover o encontro entre culturas, de que falava A. Berman, o tradutor est a

    favorecer a educao para a alteridade. luz destes preceitos, o tradutor reassume o

    papel de mediador cultural e o seu texto deixa de ser visto como um espelho para

    passar a ser uma janela sobre o mundo, de acordo com as palavras de F. Wuilmart com

    que termina o seu artigo La traduction littraire: source denrichissement de la langue

    daccueil: [] cest grce son texte qui ne se veut plus un miroir mais une fentre

    que la merveilleuse diversit bablienne pourra se maintenir sans heurts et que la

    diffrence, les diffrences seront non seulement comprises, enfin, mais surtout

    apprcies et partages (WUILMART, 2007, p. 135).

  • [17]

    1.1.3. Prticas tradutivas conciliadoras

    Percebemos pelo exposto anteriormente que o apagamento da identidade

    cultural do texto de origem , hoje, praticamente inadmissvel e que, no mbito deste

    trabalho, se defende a sua preservao. Por detrs desta assumpo, est a perspectiva

    intercultural que assenta no pressuposto de que as sociedades modernas se constroem

    numa base pluricultural e que a diversidade que integra a mestiagem cultural fruto de

    maturidade social. Mas o respeito por todas as marcas culturais inerentes ao TC uma

    prtica que, levada ao extremo, como o pretendia A. Berman, pode obscurecer de tal

    modo o TC que, em vez de aproximar o leitor do TC ao autor do TP, o afasta

    irremediavelmente. A perspectiva de intermediao levanta, como se v, algumas

    questes de ordem prtica, porque a janela que serviu de comparao a F. Wuilmart

    (Vide ponto 1.1.2.), pode ter vidros mais ou menos transparentes e a viso sobre a

    cultura do TP pode variar de acordo com o grau de compreensibilidade, inteligibilidade e

    aceitabilidade do pblico de chegada. A tarefa de limpar esses vidros, deixando-os mais

    ou menos lmpidos, da competncia do tradutor. Dito por outras palavras, ele que

    ter de conciliar o Estrangeiro com a lngua e cultura receptora, uma tarefa que o

    tradutlogo B. Friot compara ao fenmeno da imigrao: Traduire, cest intgrer des

    textes trangers, en faire en somme des immigrs qui, dune faon ou dune autre,

    bousculent notre identit culturelle, ne serait-ce que parce quils font dire notre langue

    des ralits quelle nest pas prte, demble, exprimer (FRIOT, 2008, p. 194). Ao

    tradutor, que se espera que seja um bom anfitrio, ser sempre possvel adoptar

    estratgias de coabitao cultural e forar a um entendimento que surgir de

    negociaes e concesses mtuas, semelhana do conhecido modelo institucional

    poltico francs de cohabitation15.

    Cabe ao tradutor gerir essas duas foras culturais presentes no acto de traduo,

    tendo conscincia de que as suas escolhas podero contribuir para a valorizao ou

    depreciao da cultura do TP. A sua responsabilidade , por isso, grande. Esta ideia

    retomada por J. Koustas que relembra os efeitos que a traduo tem na formao da

    imagem do Outro, citando A. Lefevere:

    The way in which translations are produced matters because translations represent their originals for readers who cannot read these originals. In other words: translations create the image of the original

    15 Este termo que se imps em Frana, nos anos 1980, passou a integrar a linguagem poltica e jornalstica, sendo utilizado para descrever a situao institucional que obriga coexistncia de um Chefe de Estado e de um Primeiro-Ministro, apoiado numa maioria parlamentar, com polticas opostas.

  • [18]

    for readers who have no access to the reality of that original (KOUSTAS, 1998, p. 108).

    A realidade pode ser distorcida, deformada, podendo contribuir para a criao de

    novos esteretipos ou cimentar velhos clichs, porque a imagem da realidade

    veiculada no TC poder diferir da do TP. Por vezes, por culpa do editor que dita as

    escolhas, mas tambm por culpa do tradutor, j que ambos filtram a cultura do TP

    atravs das suas representaes da cultura do TP e da cultura do pblico de chegada.

    Tais atitudes, de valorizao ou desvalorizao, quando levadas ao extremo, podem ter

    fortes repercusses, ao ponto de influenciar a redistribuio das cartas sociais do campo

    do poder16, conforme nos explica J.-M. Gouanvic (1998), ao aplicar os conceitos de

    campus e habitus de P. Bourdieu no domnio da traduo da literatura.

    Do tradutor, revestido de novas funes, espera-se que no desvirtue nem o TP

    nem o TC. Adquire, assim, um estatuto que lhe era desconhecido. A relao que deve

    estabelecer entre a cultura do TP e a do TC deve assentar no princpio da tica de que

    falava A. Berman, mas ainda no princpio de lealdade defendido por C. Nord (2006):

    As an interpersonal category referring to a social relationship between

    people who expect not to be cheated in the process, loyalty may replace the traditional intertextual relationship of fidelity, a concept that usually refers to a linguistic or stylistic similarity between the source and the target texts, regardless of the communicative intentions and/or expectations involved. It is the translator's task to mediate between the two cultures, and I believe that mediation can never mean the imposition of the concept of one culture on the members of another (NORD, 2006, p. 33).

    Tanto a tica como a lealdade devero, por conseguinte, ser atributos indispensveis do

    tradutor, que agir como um verdadeiro rbitro do processo e que dever fundamentar

    as suas escolhas no desvirtuando os princpios aludidos. Essa relao dever favorecer

    o encontro entre o Outro (aquilo que o leitor do TC desconhece e diferente) e o

    Mesmo (aquilo que o leitor do TC e aquilo que conhece), um encontro que, no meu

    entender, no precisa de ser violento como preconiza A. Berman - uma vez que no

    contacto com o Outro que o Mesmo se reconhece enquanto identidade cultural. Todavia,

    esse encontro s ser efectivo mediante uma condio, como nos diz P. Bensimon: []

    aucune traduction ne peut tre mdiatrice entre deux cultures dissemblables ou peu

    16 J.-M. Gouanvic, no seu artigo Les enjeux de la traduction dans le champ littraire: le roman amricain traduit dans lespace culturel franais au lendemain de la seconde guerre mondiale, publicado na revista Palimpsestes, n 11 Traduire la culture , esboa uma anlise baseada nos princpios sociolgicos apresentados por Pierre Bourdieu, tendo evidenciado as relaes estreitas entre literatura e sociedade, e o impacto da traduo da literatura americana nos modelos sociais, estticos e tambm culturais franceses (GOUANVIC, 1998).

  • [19]

    compatibles si elle ne prend en compte lhorizon dattente de son destinataire, les ides

    et les pratiques - la doxa - en vigueur dans la socit rceptrice (BENSIMON, 1998, p.

    10). Esta posio, que reflecte a de muitos tradutlogos, vem esbater a tradicional

    dicotomia entre as prticas assimilatrias e dissimilatrias, mas tambm entre os

    conceitos de traduo e adaptao. Quando esta passa a ser encarada como uma

    estratgia pontual, e no como uma prtica dominante, representa um recurso

    imprescindvel ao equilbrio entre TP e TC. Atravs desse recurso, e de outros que sero

    apresentados mais adiante, o tradutor poder erguer a ponte entre a cultura do TP e a

    cultura do TC.

    Estes pressupostos so particularmente relevantes para o tema deste trabalho

    que defende a importncia da preservao da cultura do TP na literatura juvenil, como

    uma fonte inestimvel de aprendizagem, mesmo que, para o conseguir, a voz do

    tradutor se tenha, por vezes, de sobrepor voz do narrador. Uma forma de ir ao

    encontro do leitor para melhor o aproximar do autor, como veremos ao longo dos

    captulos 2 e 3.

    1.2. A traduo da cultura

    Importa definir, antes de mais, o que se entende por traduo de cultura.

    Consiste na transferncia de elementos prprios a uma determinada cultura, que se

    encontram referidos num dado texto, para os integrar na cultura do pblico a quem se

    destina o novo texto. um processo que pode ocorrer dentro de uma mesma lngua, por

    exemplo, na reescrita de um texto clssico para se conformar s exigncias culturais da

    nova comunidade. O caso da Bblia um exemplo paradigmtico, quando no decurso

    das suas revises se eliminam algumas referncias consideradas inadequadas e

    ultrapassadas em face da evoluo de alguns preceitos sociais e morais17. A reescrita

    das Cartas Constitucionais, tidas como documentos de referncia universal, tambm elas

    foram submetidas a uma reviso cultural: Tous les hommes naissent et demeurent

    libres et gaux en droit que se encontrava consagrado no artigo 1 da Declarao dos

    Direitos do Homem e do Cidado de 1789, passou a ter uma redaco mais conforme

    s polticas e valores contemporneos na Declarao Universal dos Direitos do Homem

    de 1948: Tous les tres humains naissent libres et gaux en dignit et en droits. A

    transferncia cultural dentro da prpria lngua ocorre ainda entre pases que falam a

    mesma lngua (pelo menos partilham a mesma matriz lingustica), mas que vivenciam

    17 Ver nota 12.

  • [20]

    culturas muito diferentes, como o caso dos pases lusfonos, francfonos, hispnicos

    e anglfonos. A transferncia cultural entre estes pases nem sempre pacfica e, ainda

    actualmente, as tenses latentes entre pases colonizadores e pases colonizados,

    resultantes dos movimentos colonialistas do passado, tardam a desaparecer. Falar a

    mesma lngua nunca foi garante de entendimento entre os povos, basta lembrar os

    dios fratricdas dos irlandeses e dos espanhis que travaram - e continuam a travar -,

    na Europa, lutas sangrentas em nome de uma identidade cultural e/ou religiosa, para

    citar apenas aqueles que esto mais prximos de ns.

    O processo de transferncia da cultura de uma lngua para uma outra no difere

    muito da que se opera na traduo intralingustica. Alguns tradutlogos, como M.

    Lederer (1998), sugerem mesmo que se adoptem as metodologias seguidas pelos

    escritores biculturais que escrevem para um pblico culturalmente distante, mas falando

    a mesma lngua. Essa autora alerta-nos, ainda, para um outro facto importante que

    ajudar o tradutor na sua misso intercultural, levando-o a relativizar as perdas que ela

    considera inevitveis:

    La traduction est communication et la communication quelle seffectue dans un cadre unilingue ou multilingue, nest jamais intgrale ; () il ne peut sagir de transmettre la totalit de la culture trangre. Il faut accepter le fait et se fliciter de ce que la traduction transmette une bonne part de la culture de lAutre, rapprochant ainsi les peuples (LEDERER, 1998, p. 171).

    Um dos requisitos para se ser um mediador cultural competente no mbito da traduo

    possuir competncias biculturais, um conjunto de competncias que acrescem s

    competncias bilingues, uma vez que se parte do princpio de que lngua e cultura esto

    intimamente ligadas, de acordo com as palavras de M. Ballard, citadas por C. Raguet:

    [] les langues (et les textes) sont lmanation dune culture (RAGUET, 2007, p. 40).

    A sua principal funo ser, num primeiro momento, a de detectar as marcas carregadas

    culturalmente, quer estas sejam referidas de forma implcita ou explcita e, num segundo

    momento, decidir da sua pertinncia em manter as referncias subentendidas no plano

    do implcito ou traz-las para a superfcie, recorrendo s estratgias tradutivas que esto

    ao seu alcance. Dever ainda ajuizar do grau de explicitao das marcas explcitas e

    determinar se se torna necessrio adicionar informaes, para colmatar a ignorncia do

    leitor do TC. No entanto, as competncias biculturais a que aludimos anteriormente

    podem tornar-se um obstculo avaliao dessa distncia cultural entre o TP e o leitor

    do TC, uma vez que, devido ao seu biculturalismo, o tradutor pode ser levado a

    considerar uma referncia como conhecida quando, na realidade, ela desconhecida.

  • [21]

    Assim, semelhana do que acontece com as interferncias lingusticas, o tradutor pode

    ser vtima de interferncias culturais, e passar por cima de referncias que, no contexto

    da traduo, entenda-se em funo do pblico a que se destina, requerem uma

    explicitao. Mas o que move o tradutor e o que determina a sua interveno? o que

    vamos ver no ponto que se segue.

    1.2.1. A distncia cultural como medida

    O conceito de distncia cultural apresentado por J.-P. Richard no artigo que

    intitulou Traduire lignorance culturelle, publicado na referida revista Palimpsestes (n

    11). O autor define o conceito do seguinte modo: Cette notion dsigne gnralement

    lcart peru entre la culture dorigine et la culture daccueil (RICHARD, 1998). O autor

    analisa o conceito e distingue dois tipos de distncia cultural: a distncia cultural externa

    e a distncia cultural interna. Relativamente primeira, que define como a distncia que

    se observa entre o texto a traduzir e o texto traduzido quando as culturas respectivas

    no coincidem, considera que sobreavaliada, e por vezes imaginria; ao passo que a

    segunda, a que estrutura o TP, quando no ignorada, frequentemente subavaliada.

    Segundo o autor, a distncia cultural interna que levanta problemas ao tradutor:

    Lauteur de luvre originale a cent manires dinstaurer une distance culturelle []. Il sagit toujours de produire une intelligibilit relative dont il appartient au traducteur et cest l toute la difficult de jauger le degr. lui de reprer la ligne de partage entre lecteurs exclus et lecteurs complices; lui de dresser la carte du savoir et de lignorance dans la culture de dpart. Quand lauteur cre une distance culturelle entre son texte et une partie de son lectorat, le traducteur doit se faire son tour ajusteur dignorance18 (RICHARD, 1998, p. 152).

    Percebemos que esta ltima noo vem baralhar o tradutor, cioso por aproximar a

    qualquer preo o autor do leitor, ou vice-versa. Proponho ilustrar de forma grfica as

    duas distncias culturais avanadas por J.-P. Richard, de modo a visualizarmos como

    ambas funcionam. O esquema A mostra a distncia cultural externa entre o TP e o leitor

    18 Itlicos do autor.

  • [22]

    do TC, antes da traduo. Esta figura ilustra duas culturas totalmente heterogneas. Mas

    nem sempre isso acontece, por isso, cabe ao tradutor efectuar uma anlise, de modo a

    avaliar o grau de interveno que a obra a traduzir requer. Caso haja elementos

    partilhados por ambas as culturas, poder existir logo partida uma zona de interseco

    cultural entre o autor e o leitor do TC. Quanto figura B, que ilustra a distncia cultural

    externa depois da traduo, apercebemo-nos que existe obrigatoriamente uma zona de

    interseco que, de acordo com a perspectiva da traduo cultural, representa a

    desejvel aproximao entre o leitor do TC e o autor. Esta zona ser, por conseguinte, a

    mais ampla possvel, mas no abarcar, partida, a cultura do texto de partida, na sua

    totalidade.

    Figura A distncia cultural externa (total) antes da traduo

    Figura B distncia cultural externa depois da traduo

    Analisemos agora a distncia cultural interna que permite, segundo o autor,

    distinguir os leitores cmplices e os leitores excludos do TP, e que podemos ilustrar do

    seguinte modo:

    Figura C distncia cultural interna no TP

    A figura C ilustra a relao existente entre o autor do TP e os seus leitores. So leitores

    falantes da mesma lngua e partilhando culturalmente as mesmas referncias, a no ser

    que o autor tenha em mente outros leitores de outras culturas, o que, no mercado

    livreiro internacional actual, no de excluir. essa relao que determinou a sua

    autor do TP

    leitor do TC

    autor

    leitor cmplice

    leitor excludo

  • [23]

    deciso de deixar implicitamente algumas referncias e explicitando aquelas que

    considerou lacunares.

    Quando o TP transposto para uma nova cultura, que poder ser mais ou menos

    distante em termos culturais, a tarefa do tradutor complexifica-se, pois ter que

    combinar a distncia cultural interna com a distncia cultural externa e determinar

    exactamente onde comea e onde acaba a sua intermediao cultural. Quando estas

    duas distncias se aliam, o tradutor tende a confundi-las e passa a explicitar

    compulsivamente no TC todas as marcas implcitas no TP, porque parte do princpio de

    que o leitor do TC mais ignorante culturalmente, entenda-se - do que o leitor do TP.

    Esta postura pode ainda, por outro lado, alterar a relao inicial prevista entre autor e

    leitor. Se considerarmos o facto de existirem vrios tipos de leitores cmplices no TP,

    cada um com um grau varivel de aptides de leitura, apercebemo-nos de que uma

    intermediao abusiva por parte do tradutor pode modificar significativamente o

    espectro de leitores no TC. As figuras que seguem mostram como a relao entre

    leitores cmplices e leitores excludos pode diferir na situao do TP e na do TC.

    Figura D distncia cultural interna antes da traduo

    Figura E distncia cultural interna depois da traduo

    Na figura D, percebemos que existem vrios leitores-tipo (o nmero de leitores-tipo

    varivel), definidos em funo da bagagem cultural de cada um e da sua capacidade em

    decifrar o sentido de inferncias e marcas implcitas. Temos, assim, o leitor-tipo 1

    autor

    leitor 1

    leitor 2

    leitor 3

    leitor excludo

    autor

    leitor tipo pode inclui leitor 1; leitor 2, leitor 3 e ainda

    leitor excludo

    novo leitor excludo

  • [24]

    culturalmente mais apto, o leitor-tipo 2 revelando uma maior ignorncia cultural e,

    finalmente o leitor-tipo 3 que, embora detentor de uma menor capacidade de

    interpretao cultural, ainda faz parte dos leitores cmplices do TP. De fora, fica o leitor

    excludo por no reunir as competncias culturais mnimas, que inevitavelmente

    abrangem as competncias lingustica e textual, para se tornar um potencial leitor.

    Tambm aqui ser difcil, embora no impossvel - encontrar um leitor que partilhe

    integralmente a cultura do autor. A figura E permite visualizar a distncia interna depois

    da traduo, isto no texto de chegada, depois da interveno do tradutor. A pretexto

    de uma inteligibilidade mxima, porque parte do princpio de que o seu leitor ignorante

    culturalmente, o tradutor tende a eliminar a distncia cultural interna existente no TP. E

    esse desejo de incluso, se levado at ao extremo, tender a homogeneizar o perfil do

    leitor-tipo do TC, e restringir o leque de leitores inicialmente previsto pelo autor. O novo

    leitor-tipo apresenta-se com o mesmo grau de competncias de leitura, as mesmas

    capacidades hermenuticas, os mesmos conhecimentos enciclopdicos. O leque de

    leitores-tipo do TC mais reduzido, pois as diferenas que existiam entre os vrios

    leitores cmplices do TP so anuladas. Alm disso, o novo leitor-tipo pode ainda

    compreender o leitor excludo previsto na situao do TP, uma vez que a distncia

    cultural interna, sendo totalmente anulada com a interveno do tradutor, autoriza a

    entrada de novos leitores19. Por outro lado, poder surgir uma nova situao algo

    paradoxal: o leitor-tipo 1, aquele que culturalmente se encontrava mais prximo do

    autor, poder passar a fazer parte dos leitores excludos do TC, por achar que este lhe

    deixa uma margem muito exgua para uma leitura desafiadora, que o obrigue a mobilizar

    competncias de leitura de nvel mais elevado. Este fenmeno pode, de forma

    apriorstica certo, ajudar a explicar o facto do sucesso editorial de algumas obras no

    contexto do TP se revelar um fracasso no contexto do TC. TP e TC no visam

    necessariamente os mesmos leitores quando est em causa a manuteno ou a

    anulao da distncia interna e da distncia externa.

    O autor do artigo citado no nega que a combinao entre a distncia cultural

    interna e a distncia cultural externa um problema acrescido para o tradutor e, como

    vimos na figura E, pode dar lugar a algumas derrapagens quando a medida exacta no

    19 Para ilustrar este fenmeno, podemos citar o comentrio de um comentador televisivo, nos dias que se seguiram ao desaparecimento do Nobel da Literatura, Jos Saramago, no qual afirmava que a obra deste autor era mais fcil de ler nas sua tradues do que nos originais. A provar-se esta afirmao, e segundo o pressuposto de Jean-Pierre Richard, o leque de leitores do TC seria consideravelmente mais alargado do que no TP.

  • [25]

    respeitada. Ele prprio adverte contra o uso abusivo de notas explicativas que, quando

    em demasia, cria o efeito inverso ao pretendido: [] une masse de notes obscurcit le

    sens, comme trop de lumire aveugle (RICHARD, 1998, p. 156). Sobre o problema da

    sobretraduo, outros tradutlogos se pronunciaram, como J. Svry que alerta contra o

    perigo de se antropologizar a literatura com o uso abusivo de notas explicativas (SVRY,

    1998, p. 136) e M. Lederer que denuncia a inutilidade do recurso explicitao, sempre

    que o contexto permitir esclarecer o sentido:

    Il est de lintrt du traducteur de ne jamais perdre de vue quil traduit pour un lecteur qui ragit au texte et dont le bagage cognitif est sans cesse largi et remani par sa lecture ; le lecteur dcouvrira lui-mme la culture de lAutre au fil du rcit, voire dautres ouvrages pourvu quil soit intress (LEDERER, 1998, p. 171).

    A problemtica da distncia cultural afigura-se mais complexa se tivermos em

    considerao o conceito de intertextualidade que, inevitavelmente, integra todo o tipo de

    texto. As referncias intertextuais so normalmente geridas pelo autor em funo da

    cultura dos leitores do TP, fazendo-as vir superfcie ou mantendo-as de forma mais

    ou menos implcita. No caso do TC, caber ao tradutor concluir sobre a pertinncia e o

    grau de explicitao necessrios. Uma escolha no andina que poder afectar a leitura,

    tal como nos diz C. Nord:

    [] both the source and the target text form part of a system of intertextual relationships. This means that the effect of the target text can be predicted comparing it to the (possible, normal, usual) effects of existing texts from the target culture. If the text conforms to conventional patterns of a particular class of texts, the text form will not attract the readers' attention, which allows for an easier processing of the information contained in the text. On the other hand, if a text shows strange, unconventional form patterns, the audience may wonder why the author chose these original forms and whether they are meant to convey an extra amount of information (NORD, 2006, p. 39).

    Mais uma vez, fica nas mos do tradutor a deciso de sua interferncia ou do seu no

    envolvimento, ciente de que uma didactizao exagerada do TC poder afastar leitores

    inicialmente previstos. A sua opo, por certo, ter em linha de conta o deixar algum

    espao para a imaginao que se encarregar do preencher os no-ditos, ingredientes

    indispensveis para uma leitura apaixonante. Este requisito particularmente relevante

    no caso da literatura em geral e da literatura juvenil em particular. Sobre a imaginao e

    da sua relevncia no processo central de leitura nos deteremos no prximo captulo.

  • [26]

    1.2.2. Processos de transferncia cultural

    O tradutor intercultural estar particularmente atento s marcas culturais. So

    marcas que alguns tradutlogos designam por realia (SCHREIBER, 2007), xnismes

    quando so conservadas literalmente no TC (SERGEANT, 1998) ou culturmes, que

    segundo a definio de M. Ballard, retomada por C. Raguet, so signos que reenviam

    para referentes culturais, isto elementos cujo conjunto constitui uma civilizao ou

    uma cultura (RAGUET, 2007, p. 44). Abarcam, grosso modo, todas as actividades

    humanas: costumes, desde o modo de vestir s formas de cumprimentar, modo de

    organizao do tempo (calendrios), sistemas de parentesco e estruturao em funo

    do grupo social e etrio, e ainda as representaes simblicas e mitolgicas. Reportam-

    se muitas vezes a factos ou objectos, mas podem extravasar esse domnio ao

    integrarem ideias e pensamentos veiculados pela lngua, atravs de provrbios e

    aforismos, por exemplo.

    Do ponto de vista da traduo, nem todos as marcas culturais tm a mesma

    importncia. R.-M. Vassalo (1998), autora e tradutora de livros para crianas, apresenta

    uma hierarquia dos elementos culturais. Assim, num primeiro patamar, encontram-se os

    elementos culturais de grau zero que chamam imediatamente ateno: vesturio,

    habitat, ocupao do espao, ritmos dirios, horrios, gastronomia. Num segundo

    patamar, incluem-se os pormenores da vida escolar, jogos, lazer e desportos; e acima

    destes, entre a cultura que designa para turistas e cultura profunda, aparecem os ritos,

    festividades religiosas ou pags, etc. Diz a autora que todos estes elementos

    representam noes familiares para o leitor do TP, desempenhando um papel de cor

    local para o leitor do TC. Segundo R.-M. Vassalo, a explicitao destas marcas depende

    do papel que desempenham no TP. Acrescenta ainda, no ltimo patamar, os elementos

    qui font quune culture est une culture, irrductible toute autre (VASSALO, 1998, p.

    191). So elementos de profunda dimenso cultural, alguns constituindo uma verdadeira

    dor de cabea para os tradutores: referncias histricas, polticas e sociais, falares

    vernculos, lendas, folclore, locues e provrbios Para a autora, a transposio dos

    elementos dos primeiros grupos facilitada pelo recurso a notas de rodap, notas

    prvias, entre outras, j as seguintes so mais delicadas por se situarem no plano do

    pensamento e do inconsciente, e acrescenta a propsito:

    On touche ici lirrductible par excellence, la charpente invisible de toute culture, celle dont chaque groupe humain btit le rel sa manire. Difficiles cerner, toujours en filigrane. L se forment les attentes, les croyances

  • [27]

    profondes, les obsessions, avoues ou non, propres chaque culture. L souvrent les fosss entre culture source et culture daccueil [] (VASSALO, 1998, p. 191).

    Para estas situaes, o tradutor ter de analisar o grau de especificidade cultural e a

    funo que a cultura desempenha no TP, de acordo com a tipologia textual do TP. Se se

    tratar de textos transmissores de cultura, para adoptarmos a distino avanada pela

    autora referida anteriormente, que visam fazer descobrir uma cultura, justifica-se o

    recurso aos processos explicativos, uma vez que a finalidade a de limitar as perdas. O

    tradutor por ao dispor dos seus leitores notas preliminares, notas de rodap, glossrios

    que viro a ser lidos ou no. Por outro lado, existem ainda os textos que esto

    ancorados numa cultura lendas, narrativas tradicionais. Para estes, sugere a autora, o

    tradutor ponderar entre favorecer a imerso cultural, deixar em suspense ou esclarecer

    os elementos culturais. J nas obras de imaginao pura, carregadas de mistrio, recusa

    qualquer tipo de nota explicativa, embora reconhea que o fosso entre as culturas pode

    ser traioeiro. Acredita, contudo, que os recursos explicativos tendem a sobrecarregar o

    texto e que se devem evitar quando o prprio texto, pela sua coerncia interna, cria um

    micro-cosmos que no carece de explicitao de pormenores.

    Tambm J.-P. Richard (1998) apresenta uma soluo metodolgica para o

    problema da transferncia cultural, sempre que no exista coincidncia. Segundo ele,

    deve-se conservar o sistema cultural do TP, pois a cultura receptora que deve recriar o

    sistema cultural do TP, extravasando o prprio texto. Aponta os editores como os que

    possuem a chave para o problema, recorrendo a prefcios, ilustraes, notas, desde que

    estes tenham funo de esclarecer e no de obscurecer.

    Por vezes, o tradutor chamado a intervir no plano macro-textual quando, por

    exemplo, no existe equivalncia ao nvel das convenes de tipologia textual ou quando

    os elementos pragmticos da comunicao, como os registos de lngua, no so

    coincidentes. Mas frequentemente ao nvel das marcas micro-textuais que ele

    instado a interceder. So conhecidos os processos tcnicos que esto ao seu dispor:

    emprstimo (retoma total do significante); decalque (traduo palavra a palavra de um

    sintagma); explicitao (transforma uma informao implcita no TP numa informao

    explcita no TC), adaptao (processo livre que consiste em substituir um fenmeno do

  • [28]

    TP por um semelhante no TC) e equivalncia (para traduzir provrbios e expresses

    idiomticas, por exemplo), para citar apenas os mais comuns20.

    Em termos de transferncia cultural, nem todos estes processos tm o mesmo

    peso; por conseguinte, quando adoptados de forma predominante, podem favorecer ou

    comprometer a finalidade intercultural. Os processos mais respeitadores do TP so o

    emprstimo e o decalque; a meio caminho entre o TP e o TC, encontra-se a explicitao

    e, no extremo oposto, a adaptao e a equivalncia que, centrados exclusivamente na

    cultura do TC, apagam toda e qualquer marca genuinamente cultural do TP. o que

    normalmente acontece com a traduo dos provrbios. Mas mesmo em relao a estes,

    no , no entender de J. Svry (1998, p. 141), um processo inevitvel. Relativamente

    traduo dos provrbios, que designa de concentrados de cultura, este tradutlogo

    considera que possvel encontrar equivalentes na cultura europeia, no entanto, no

    de inviabilizar a traduo literal, sem o recurso equivalncia, desde que estejam

    assegurados o ritmo e a aliterao, caractersticas prprias do provrbio. Nesta linha de

    pensamento, observamos que, na traduo de alguns provrbios, a equivalncia no

    apaga as marcas da cultura de origem; outros h, no entanto, em que essas referncias

    ficam comprometidas. Assim, Amor com amor se paga tem como equivalentes

    Lamour ne se paie quen amour em francs e Love is the reward of love em ingls.

    Porm, as perdas culturais so mais evidentes nos seguintes casos: Demi-pain vaut

    mieux que rien du tout, Mais vale comer palha do que nada, Half an egg is better

    than an empty shell; Changement de pture rjouit les veaux, Nem sempre

    galinha, nem sempre sardinha, ou ainda Chaque prtre loue ses reliques, Cada um

    puxa a brasa sua sardinha21. Verificamos que cada uma das verses encerra

    elementos especficos da sua cultura e reenviam para contextos que nem sempre so

    coincidentes, quando transpostos para a cultura de chegada. Na perspectiva de J. Svry,

    as verses literais Melhor meio-po do que po nenhum, Mudana de pastagem

    alegra os vitelos, Cada padre preza as suas relquias seriam opes vlidas, j que

    esta soluo permite-nos chegar mais perto do texto e da cultura de partida.

    Relativamente aos processos de adaptao e equivalncia, no raro estes

    suscitarem alguma controvrsia do ponto de vista cultural, a no ser que sejam

    20 Cf. SCHREIBER Michael Transfert culturel et procds de traduction: lexemple des realia, in De la traduction et des transferts culturels, textes runis par C. Lombez et R. Von Kulessa, Paris, LHarmattan, 2007, pp. 185-194. 21 Estes provrbios foram retirados do Dicionrio de Provrbios de R. C. Lacerda, Helena R. C. Lacerda e Estela Abreu, Contexto, Lisboa, 2000.

  • [29]

    combinados com um dos trs primeiros. Alis, o recurso simultneo de dois processos

    no invulgar e, no quadro da perspectiva intercultural, at desejvel, pois permite

    conservar a marca do TP atravs do emprstimo ou decalque e concili-la com a sua

    correspondente ou com uma explicao. Citando alguns exemplos: para traduzir le

    village wendat (Vide em anexo Quadro I, referncia 1), o tradutor pode optar por

    conservar o termo em itlico, recorrendo ao emprstimo e acrescentar, piscando o

    olho ao leitor e eliminando a distncia cultural, temporal e espacial, a aldeia dos ndios

    wendat; se o tradutor se deparar com a frase da personagem de Le pome indigo, de

    Rgine Detambel, Elle conduisait, nous tions le 14 juillet 1989 (Vide em anexo

    Quadro XII, referncia 11), vai por certo manter a data, mas o sentido e a referncia

    cultural s sero totalmente preservados se adicionar a informao de que se trata de

    um dia feriado importante, traduzindo Era ela que conduzia, foi no feriado nacional de

    14 de Julho de 1989. Esta informao adicional explicita ao leitor do TC a importncia

    da data, que permitiu personagem memorizar o dia exacto da ocorrncia dos factos

    (neste caso a morte da companheira num acidente de viao).

    No caso da traduo da literatura em geral, e muito particularmente a literatura

    para crianas e jovens, o processo das notas explicativas, nomeadamente as notas de

    rodap, revela-se pouco eficiente, uma vez que obriga o leitor a sair do texto para

    esclarecer uma marca cultural que, n