dissertacao familiares santo oficio

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Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Departamento de Histria

SOCIEDADE E INQUISIO EM MINAS COLONIAL: OS FAMILIARES DO SANTO OFCIO (1711-1808)

Aldair Carlos Rodrigues

So Paulo 2007

Universidade de So Paulo Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas Departamento de Histria

SOCIEDADE E INQUISIO EM MINAS COLONIAL: OS FAMILIARES DO SANTO OFCIO (1711-1808)Dissertao apresentada ao Programa de ps-graduao em Histria Social do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de mestre em Histria

Aldair Carlos Rodrigues

Orientadora: Profa. Dra. Laura de Mello e Souza

So Paulo 2007

I Aos meus queridos pais, Luciana e Jos Carlos, pelo apoio incondicional

Aos meus irmos, Ronaldo, Gilmar e Janaina

Ao meu querido sobrinho e afilhado, Raul, pela alegria que trouxe a nossa famlia

II RESUMO: A proposta deste trabalho analisar a relao estabelecida entre a Inquisio portuguesa e a sociedade de Minas colonial (1711-1808) por meio dos Familiares do Santo Ofcio. Estes eram agentes civis do tribunal inquisitorial, encarregados de denunciar, confiscar e prender os acusados de prticas herticas. Em troca, eles obtinham uma srie de privilgios e, sobretudo, prestgio social. Como podiam ser leigos, esses personagens alcanavam uma infiltrao mxima entre a populao, representando, assim, um elo entre a Inquisio e a Sociedade. As principais problemticas do trabalho so: quem eram os Familiares de Minas? o que significava ser Familiar? Por que s-lo?

Palavras-chave: Inquisio portuguesa Familiares do Santo Ofcio Minas colonial

ABSTRACT: The purpose of this study is analyzing the relation stabilized between Portuguese Inquisition and the colonial Minas society (1711 1808) through Familiares do Santo Ofcio. Those were inquisitional tribunal civilians agents, charged of accusing, confiscating and arresting the accused of heretical practices. In exchange, they achieved a set of privileges and, above all, social prestige. As they could be laymen, those personages have reached a maximum infiltration among the people, representing, thus, a link between Inquisition and Society. The main questions of this study are: who were the Familiares de Minas? What meant being Familiar? Why being one of them?

III AGRADECIMENTOS Em primeiro lugar agradeo a Laura de Mello e Souza, minha queridssima orientadora e amiga, por ter acreditado no meu trabalho e me apoiado constantemente. Ela valorizou as descobertas da pesquisa documental e, atravs das reunies da orientao e da leitura/ correo dos relatrios Fapesp, apontou caminhos que levaram o trabalho a ganhar esse formato final. Considero-me privilegiado por ter estudado Minas colonial sob sua generosa orientao! Sou imensamente grato a Fernanda Olival, amiga e orientadora da minha pesquisa em Portugal, por ter me guiado atenciosamente nos arquivos lusos. Seu profundo conhecimento da documentao da Torre do Tombo foi decisivo para o rendimento da minha pesquisa. Fernanda, generosamente, passou-me bibliografia fundamental e discutiu comigo os rumos da dissertao; alm de ter me ajudado a ler documentos indecifrveis! Ao meu amigo querido e ex-mestre, Luiz Carlos Villalta, por ter me ensinado cuidadosamente os primeiros passos da pesquisa histrica, quando eu era seu orientando de Iniciao Cientfica no ICHS-UFOP. A ele agradeo ainda o apoio para que eu ingressasse no programa de mestrado em Histria Social da FFLCHUSP. A Andra Lisly Gonalves, amiga e ex-orientadora de Iniciao Cientfica, pelo incentivo e ateno que sempre me dedicou. Sou grato ao professor Renato Venncio por ter me apresentado aos Familiares do Santo Ofcio atravs dos documentos do Arquivo da Cmara de Mariana, quando eu era aluno dos seus seminrios de Brasil Colnia. Ele convenceu-me do quanto era importante estudar esse grupo de agentes inquisitoriais. Nos seus cursos, aprendi a explorar os arquivos de Minas. Aos membros da minha banca de qualificao, Bruno Feitler meu consultor nos assuntos inquisitoriais e ris Kantor minha interlocutora nas questes do Bispado de Mariana , sou grato pelas crticas e sugestes decisivas aos rumos deste trabalho, muitas delas aqui incorporadas. Ambos,

generosamente, continuaram acompanhando a minha dissertao.

IV Dividi com a Cidinha (Maria Aparecida Menezes Borrego), amiga querida, as angstias e as muitas alegrias de realizar esta dissertao. Ela foi a minha interlocutora constante; acompanhou cada passo da realizao deste trabalho, desde a pesquisa arquivstica escrita do texto final o qual leu integralmente e corrigiu com toda a ateno. Sua generosidade sem tamanho! A Mrcia Moiss Ribeiro, amiga e companheira de pesquisa em Portugal, pelas palavras de incentivo e leitura crtica do texto final da dissertao. Nas minhas andanas pelos arquivos mineiros, contei sempre com a generosidade de Maria Teresa e Maria Jos Ferro. Aos meus queridos amigos da poca da graduao no ICHS-UFOP: Gustavo Barbosa, Adriana Benfica, Sabrina, Renata Dirio, Bruno Gianez, Marcela Marques, Heullia, Emmanuel e Wal. A Maykon Rodrigues, pela ajuda com a transcrio dos documentos de Mariana e pelos galhos que me quebrou. A Cirlia, amiga de sempre. A Renata Resende, pela acolhida em Sampa. Aos amigos uspianos: Augusto, Dheisson, Ana Nemi, Vani, Fabi e Julio carioca querido! Aos meus companheiros de apartamento, Lucas e Paty. Rosana Gonalves, pela leitura crtica dos meus textos e pela amizade carinhosa. Com ela, Simone e Mateus passei momentos inesquecveis em Portugal sobretudo no Bairro Alto! s simpticas funcionrias da Torre do Tombo, sempre solcitas, por ter tornado ainda mais agradvel o meu cotidiano de pesquisa em Lisboa. Lembro aqui de Dona Cu, Ldia, Adriana, Dra Odete, Suzana e Dona Brbara. Agradeo s instituies que tornaram vivel a realizao deste trabalho. FAPESP, agradeo pela bolsa de dois anos que permitiu dedicar-me integralmente ao mestrado; alm da bolsa, a reserva tcnica possibilitou que eu fizesse cpias de documentos, realizasse pesquisa em Minas e participasse de congressos. Ctedra Jaime Corteso/ Instituto Cames, na pessoa de Vera Ferlini, pela bolsa que viabilizou minha pesquisa nos arquivos portugueses. Ao Instituto Cultural Amlcar Martins, de Belo Horizonte, por um semestre de bolsa, durante a reta final deste trabalho. A Coseas/ USP pela bolsa-moradia/ CRUSP, na pessoa de Neusa.

V SUMRIO Parte I Familiares do Santo Ofcio e Ao Inquisitorial em Minas

Introduo Captulo 1: A Inquisio na Capitania do Ouro 1.1 Notrios e Comissrios do Santo Ofcio em Minas 1.1.1 Comissrios e Ao Inquisitorial 1.2 Justia Eclesistica e Inquisio em Minas 1.2.1 A Articulao entre o Bispo, o Vigrio da Vara, o Vigrio-Geral e o Comissrio 1.2.2 Devassas Eclesisticas e Ao Inquisitorial 1. 3 O Papel Auxiliar dos Clrigos No Agentes do Santo Ofcio

01 15 18 29 36

37 44 46

Captulo 2: Familiares do Santo Ofcio e Ao Inquisitorial em Minas 2.1 Funes 2.1.1 Prender, Confiscar e Conduzir 2.1.2 Denncias 2.2 Prestgio e Poder Inquisitorial: Usos e Abusos do Ttulo de Familiar 2.3 As Prticas Heterodoxas dos Familiares de Minas

53 54 54 56 63 74

Parte II Distino Social e Familiatura do Santo Ofcio em Minas

Captulo 3: O Cargo de Familiar do Santo Ofcio: Definio e Requisitos 3.1 Habilitar a Familiar do Santo Ofcio: os Procedimentos 3.2 Problemas nos Processos de Habilitao: Honra e Limpeza de Sangue 3.3 Padece Da Fama: Rumores de Sangue Infecto e Habilitao ao Santo Ofcio 3.4 A Persistncia da Fama: Basta a Habilitao no Santo Ofcio?

80 84 91

94 100

VI 3.5 As Instituies do Antigo Regime Portugus e o Atestado de Limpeza de Sangue 3.6 As habilitaes reprovadas 3.7 Problemas nos Outros Requisitos 104 107 110

Captulo 4: a Formao da Rede de Familiares do Santo Ofcio em Minas 115

Captulo 5: Perfil e Recrutamento da Rede de Familiares do Santo Ofcio de Minas 5.1 Naturalidade 5.2 Idade 5.3 Estado Civil 5.4 Ocupao 5.4.1 A Entrada no Setor Mercantil 5.4.2 O Vocabulrio Social e as Atividades Mercantis 5.4.3 Diversificao dos Investimentos 5.5 Cabedal 142 142 146 149 155 158 162 173 177

Captulo 6:Familiatura do Santo Ofcio e Distino Social em Minas 6.1 Ordens Terceiras 6.2 Cmaras e Ordenanas 6.3 Ordem de Cristo

181 187 195 197

Consideraes Finais Fontes Referncias Bibliogrficas

208 212 218

VII NDICE DE TABELA E GRFICOS Tabela 1: Expanso dos Quadros Burocrticos Inquisitoriais Tabela 2: Habilitao de Comissrios do Santo Ofcio em Minas Tabela 3: Cargos Ocupados pelos Comissrios na Esfera Eclesistica Tabela 4: Assunto das Correspondncias Enviadas a Minas 27 31 34 37

Tabela 5: Crimes contra a Inquisio cometidos por oficiais e no oficiais do Santo Ofcio no Imprio portugus, 1544-1805. Tabela 06: Durao dos Processos de Habilitao Tabela 7: Custo do processo em mil ris Tabela 8: Familiares do Santo Ofcio Habilitados pela Inquisio portuguesa Tabela 9: Familiaturas expedidas para o Brasil e Lisboa Tabela 10: Total de Familiares Habilitados no Brasil no Sculo XVIII Tabela 11: Formao da rede de Familiares por Perodo e Comarcas Tabela 12: Naturalidade dos Familiares do Santo Ofcio de Minas Tabela 13: Idade dos Familiares de Mariana no momento da habilitao Tabela 14: Ocupao dos Familiares do Santo Ofcio de Minas Tabela 15: Ocupao dos pais dos Familiares do Santo Ofcio de Mariana Tabela 16: Atividades Mercantis dos Familiares de Mariana Tabela 17: Movimento Geral de Diversificao dos Investimentos Tabela 18: Cabedal dos Familiares de Mariana Tabela 19: Os Familiares do Santo Ofcio de Mariana nas Ordens Terceiras 75 102 103 132 135 137 143 153 158 166 169 174 185 188 200

Grfico 1: Familiares do Santo Ofcio Habilitados pela Inquisio portuguesa 133 Grfico 2: Relao Sentenciados/ Familiares Grfico 3: Familiaturas expedidas para o Brasil e Lisboa Grfico 4: Total de Familiares Habilitados no Brasil no Sculo XVIII Grfico 05: Formao da Rede de Familiares em Minas 134 136 139 141

Grfico 6: Formao da Rede de Familiares de Minas por Comarca e Perodo 144 Grfico 7: Ocupao dos Familiares do Santo Ofcio de Minas 167

VIII ABREVIATURAS AHCMM Arquivo Histrico da Cmara Municipal de Mariana AHU Arquivo Histrico Ultramarino/ Projeto Resgate AHCSM Arquivo Histrico da Casa Setecentista de Mariana AEAM Arquivo Eclesistico da Arquidiocese de Mariana BNL Biblioteca Nacional de Lisboa CGSO Conselho Geral do Santo Ofcio HOC Habilitaes da Ordem de Cristo HSO Habilitaes do Santo Ofcio IANTT Instituto dos Arquivos Nacionais/ Torre do Tombo IL Inquisio de Lisboa m. mao doc. documento

1 INTRODUO

Esta dissertao procura esclarecer a relao estabelecida entre a Inquisio portuguesa e a sociedade colonial por meio dos Familiares do Santo Ofcio grupo de agentes civis do tribunal inquisitorial - em Minas Gerais setecentista Embora vrios estudiosos tenham se dedicado ao tema da Inquisio na colnia, a historiografia brasileira tem explorado muito pouco os aspectos institucionais da atuao do Santo Ofcio na Amrica portuguesa, sobretudo no que diz respeito aos agentes. Tal tema comeou a ganhar destaque na produo brasileira1 a partir da dcada de 1970. Neste decnio, foram publicadas duas teses importantes sobre o assunto: Cristos Novos na Bahia2, em 1972, e A Inquisio Portuguesa e Sociedade Colonial3, em 1978. De Anita Novinsky, Cristos-novos na Bahia tem como preocupao principal esclarecer a especificidade que o fenmeno marrano4 no seu aspecto religioso e social adquiriu na Amrica Portuguesa. A autora investiga as condies histricas da migrao dos cristos-novos para a Colnia e a sua insero no espao social, econmico e administrativo da sociedade baiana entre 1624-54. Novinsky endossa a tese de Antonio Jos Saraiva de que a Inquisio portuguesa lutava contra a ascenso da classe burguesa constituda, em suaNo pretendemos aqui dar conta de todos os trabalhos que tangenciaram a temtica da Inquisio na Colnia, mas sim apontar as tendncias principais da historiografia atravs dos estudos de maior repercusso. O fio condutor de nossa discusso historiogrfica se apoiar sobre a forma como os aspectos institucionais da Inquisio no Brasil aparecem nos trabalhos e sobre a maneira como os agentes inquisitoriais foram abordados. Organizaremos a discusso historiogrfica em torno de trs eixos temticos: (I) a Inquisio no Brasil, de modo geral; (II) a Inquisio em Minas; (III) os Familiares do Santo Ofcio na Colnia. 2 NOVINSKY, Anita. Cristos-novos na Bahia. So Paulo: Perspectiva, 1972. Aps anos de pesquisa e levantamentos exaustivos nos arquivos portugueses, a autora publicou tambm trs importantes guias de pesquisa que tm facilitado muito o trabalho de historiadores que se dedicam temtica da ao inquisitorial no Brasil: _______________. Inquisio: prisioneiros do Brasil. Rio de Janeiro: Expresso e cultura, 2001; _________________. Rol dos culpados: Fontes para a Histria do Brasil. Rio de Janeiro: Expresso e Cultura, 1992; _________________. Inquisio: inventrio de bens confiscados a cristos-novos: fontes para a histria de Portugal e do Brasil. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1976. 3 SIQUEIRA. A Inquisio portuguesa e a Sociedade Colonial. So Paulo: tica, 1978. 4 A autora entende como marranos os descendentes dos judeus que viviam na Pennsula Ibrica ou nas suas colnias, regies onde a religio judaica era proibida.1

2 maioria, por indivduos de ascendncia judaica. Como veremos mais adiante, essa tese, segundo a qual a Inquisio funcionava uma arma da nobreza contra a burguesia comercial, tem sido relativizada por trabalhos recentes sobretudo no que se refere ao sculo XVIII.5 Alm de produzir diversos trabalhos sobre a perseguio do Santo Ofcio aos conversos, Novinsky orientou vrias teses acadmicas coerentes com a sua perspectiva em relao problemtica dos cristos-novos.6 Ademais, atuou na divulgao de fontes sobre a ao inquisitorial no Brasil relativas, principalmente, aos rus cristos-novos. Na tese A Inquisio portuguesa e a Sociedade Colonial, Snia Siqueira trabalha com uma vasta documentao, em especial com a que resultou das Visitaes do Santo Ofcio s capitanias baiana e pernambucana. Nesse estudo h a preocupao em investigar a estrutura atravs da qual a Inquisio, associada aos interesses da Coroa, atuou na Colnia. Privilegiando a anlise do funcionamento das Visitaes na regio nordestina, a tese de Siqueira um dos raros trabalhos que se detm nos aspectos estrutural e institucional da Inquisio.TORRES, Jos Veiga. Da represso promoo social: a Inquisio como instncia legitimadora da promoo social da burguesia mercantil. Revista Crtica de Cincias Sociais, 40, Outubro de 1994, pp. 105-135. 6 CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. A questo da pureza de sangue em Portugal e Brasil Colnia: cristos-novos. So Paulo: FFLCH/ USP, 1980. (Dissertao de Mestrado). Este trabalho foi publicado em duas ocasies:CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito Racial no Brasil-Colnia: os cristos-novos. So Paulo: Brasiliense, 1983. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Preconceito Racial em Portugal e Brasil-Colnia: os cristos-novos e o mito da pureza de sangue. 3 edio revista e ampliada. So Paulo: Perspectiva, 2005. BROMBERG, Rachel Mizrahi. Trajetria de vida de um capito-mor na Colnia: Miguel Telles de Mendona So Paulo: FFLCH/ USP, 1981. (Dissertao de Mestrado). NAZRIO, Luiz Roberto Pinto. Autos-de-f como espetculos de massa. So Paulo: FFLCH/ USP, 1989. (Dissertao de Mestrado). SILVA, Lina Gorenstein Ferreira da. Inquisio no Rio de Janeiro setecentista: uma famlia cristnova. So Paulo: FFLCH/ USP, 1989. (Dissertao de Mestrado). CAROLLO, Denise H. M. de Barros. A poltica inquisitorial na restaurao portuguesa e os cristosnovos. So Paulo: FFLCH/ USP, 1995. (Dissertao de Mestrado). ___________________________. Homens de negcio cristos-novos portugueses e a transformao do Antigo Regime. So Paulo: FFLCH/ USP, 2001. (Tese de Doutorado). FERNANDES, Neusa. A Inquisio em Minas Gerais no sc. XVIII. So Paulo: FFLCH/ USP, 1997. (Dissertao de Mestrado). JUNIOR, Adalberto Gonalves Arajo. Os Cristos-novos e a Inquisio no sculo de ouro em Gois. So Paulo: FFLCH/ USP, 1998. (Dissertao de Mestrado). SANTOS, Suzana Maria de Souza. Marranos e Inquisio (Bahia, sculo XVIII). So Paulo: FFLCH/ USP, 1997. (Dissertao de Mestrado). __________________________. Alm da excluso: convivncia entre cristos-novos e cristosvelhos na Bahia setecentista. So Paulo: FFLCH/ USP, 2002. (Tese de Doutoramento).5

3 Na dcada de 1980, assistimos expanso dos trabalhos ligados temtica da ao inquisitorial na Colnia. Inspirados pela histria das mentalidades sobretudo e pela micro-histria italiana com destaque para os trabalhos de Carlo Ginzburg , os pesquisadores brasileiros, tal como seus colegas europeus, empreenderam anlises revigoradas a partir da utilizao de fontes inquisitoriais e eclesisticas, trazendo baila temas at ento intocados, tais como feitiaria, sodomia, bigamia, sexualidade e moralidade. Como expoentes deste grupo de renovao historiogrfica em torno do tema Inquisio, podemos destacar Laura de Mello e Souza, Ronaldo Vainfas, Luiz Mott e Lana Lage da Gama Lima. Laura de Mello e Souza, em O Diabo e a Terra de Santa Cruz7 - tese publicada em 1986 , estudou a feitiaria e a religiosidade popular na Amrica portuguesa entre os sculos XVI e XVIII. No obstante o empenho repressivo e depurador das instituies imbudas do projeto contra-reformista, a feitiaria e a religiosidade popular continuavam existindo e adquiriram especificidade na Colnia. Especificidade esta resultante da interpenetrao de mltiplas crenas e tradies culturais. Para a autora, a complexidade adquirida pela religiosidade popular em terras brasileiras contou com elementos e contribuies de origem europia e com o desenrolar da colonizao, africana e indgena. Ronaldo Vainfas, em Trpico dos pecados8 tese de doutorado publicada em 1988, abordou a sexualidade e a moralidade na Amrica portuguesa. O autor privilegiou a anlise do que era pregado pelas instituies em busca da depurao da f e da sexualidade e o confronto deste projeto com as condutas morais e sexuais vigentes na Colnia. Luiz Mott se destacou na historiografia brasileira devido s suas pesquisas no mbito da sexualidade e moralidade no Brasil colonial, mais especificamente sobre a prtica repressiva da Inquisio em relao aos sodomitas. O autor se

7

SOUZA, Laura de Mello e. O Diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1986. 8 VAINFAS, Ronaldo. Trpico dos pecados: moral, sexualidade e Inquisio no Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1988.

4 dedicou tambm ao estudo dos cultos afro-brasileiros e questes respeitantes ao sincretismo no perodo colonial.9 Lana Lage da Gama Lima foi outra historiadora que se deteve na temtica da sexualidade e moral catlica em sua tese de doutoramento.10 A autora tratou da perseguio do Santo Ofcio ao pecado da solicitao ad turpia, quando os padres solicitavam s confitentes a praticarem relaes sexuais no momento da confisso. Em relao produo historiogrfica recente sobre a temtica da Inquisio no Brasil, destacamos a tese de Bruno Feitler, Inquisition, Juifs et nouveaux-chrtiens au Brsil. O objetivo principal do autor foi estudar os cristosnovos da Paraba e Pernambuco perseguidos pela Inquisio em virtude das suas prticas e crenas religiosas e analisar a insero desses personagens no espao social daquela regio nordestina entre os sculos XVII e XVIII. Como, num primeiro momento da tese, o autor estudou detidamente o funcionamento da engrenagem inquisitorial e seus agentes nas regies mencionadas, podemos dizer que esse um dos raros trabalhos sobre a ao inquisitorial na Colnia que conjuga o aspecto institucional do Santo Ofcio e os seus alvos. De modo geral, a tendncia da historiografia brasileira pautou-se pelo estudo de temas que foram alvos do tribunal inquisitorial, tais como o cristonovismo sobretudo , a feitiaria, a bigamia, a sodomia, a solicitao. Na medida em que os trabalhos citados investigam os perseguidos pelo Santo Ofcio, eles revelam a ao inquisitorial na Colnia; ao mesmo tempo, a anlise dessa produo historiogrfica aponta para uma lacuna: a escassez de estudos detidos sobre o aspecto institucional da atuao do Tribunal na Colnia, sobretudo no que diz respeito aos agentes.

9

Dentre outros, ver principalmente: MOTT, Luiz. Escravido, homossexualidade e demonologia. So Paulo: cone, 1988. ___________.Rosa Egipcaca: Uma Santa Africana no Brasil. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1993. 10 LIMA, Lana Lage da Gama. A Confisso pelo Avesso: O Crime de Solicitao no Brasil. 3 vols. So Paulo: FFLCH/USP,1990. (Tese de doutorado)

5 Portanto, em relao a esse primeiro eixo de anlise a Inquisio no Brasil, de modo geral , podemos dizer que o nosso trabalho busca preencher tal lacuna, ou seja, procura jogar luz sobre o aspecto institucional da presena da Inquisio na Amrica portuguesa enfocando um grupo dos agentes inquisitoriais, os Familiares do Santo Ofcio e sua complexa e multifacetada relao com a sociedade colonial.

Sobre a presena da Inquisio em Minas Gerais, os trabalhos so muito escassos e pouco aprofundados. Destacamos aqui os trabalhos de Jos Gonalves Salvador, Luiz Mott, Neusa Fernandes, Caio Csar Boschi e Luciano Figueiredo. Da mesma forma como ocorre na historiografia brasileira tangente ao tema do Santo Ofcio na Colnia, em relao capitania mineradora predominou o estudo dos alvos da ao inquisitorial, com destaque para os cristos-novos. Jos Gonalves Salvador trata da presena e do papel desempenhado pelos cristos-novos no descobrimento e desenvolvimento socioeconmico das Minas. O autor presume que a ao do Santo Ofcio na Capitania se devia prosperidade alcanada por ela decorrente da explorao do ouro, durante o sculo XVIII.11 Em A Inquisio em Minas Gerais no Sculo XVIII, Neusa Fernandes segue a linha interpretativa de Jos Gonalves Salvador. A autora procura demonstrar a importncia e papel dos cristos-novos no povoamento e desenvolvimento da capitania de Minas Gerais, sobretudo no campo mercantil. Entretanto, ao ocuparse mais da descrio e do resumo do contedo dos processos contra os cristosnovos, realiza pouca problematizao em torno do tema.12 Abordando uma temtica diferente, mas ainda voltada aos alvos do Santo Ofcio, temos o artigo de Luiz Mott, Modelos de santidade para um clero devasso

SALVADOR, Jos Gonalves. Os cristos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro. So Paulo: Pioneira, 1992. 12 FERNANDES, Neusa. A Inquisio em Minas Gerais no sc. XVIII. Rio de Janeiro: Eduerj, 2000.

11

6 O autor analisa vrios processos de clrigos das Minas setecentistas que caram nas garras da Inquisio por praticarem o pecado de sodomia ou de solicitao.13 Numa linha diferente dos trabalhos acima, temos os estudos pioneiros de Luciano Figueiredo Barrocas Famlias14 e de Caio Csar Boschi As Visitaes Diocesanas e a Inquisio na colnia , que se concentram na anlise da estrutura do Santo Ofcio e no, propriamente, em seus alvos. Embora sintticos, estes so os nicos trabalhos voltados para o aspecto da engrenagem institucional da Inquisio montado nas Minas. No entanto, conforme veremos ao longo desta dissertao, a relao de complementaridade entre as Devassas Eclesisticas e a Inquisio em Minas foi tratada de forma superestimada pelos autores. De maneira geral, a temtica inquisitorial na regio das Minas tem recebido pouca ateno da historiografia brasileira. Talvez isto se deva ao fato da zona mineradora no ter sido alvo das Visitaes do Santo Ofcio, cuja documentao produzida - quando da incurso pelas capitanias do nordeste colonial embasou as pesquisas de muitos estudiosos. Em relao a esse segundo eixo em torno do qual organizamos a discusso historiogrfica, o nosso trabalho procura aprofundar e ampliar a anlise da presena da Inquisio em Minas, destacando os agentes e o aspecto institucional que permitiu ao Santo Ofcio alcanar a regio do ouro.

Especificamente sobre os Familiares do Santo Ofcio tema deste trabalho podemos citar, inicialmente, trabalhos de carter ensastico, como os de Novinsky15 e David Higgs16. Nos respectivos artigos, ambos definem o cargo de Familiar na hierarquia inquisitorial e o seu papel nas atividades do Santo Ofcio.MOTT, Luiz. Modelos de santidade para um clero devasso: a propsito das pinturas do cabido de Mariana, 1760. Revista do Departamento de Histria: UFMG, Belo Horizonte, n. 9, p. 96-120. 1989. 14 O autor aborda esse tema no tpico A pequena Inquisio, pp. 41-69. In: FIGUEIREDO, Luciano. Barrocas famlias: vida familiar em Minas Gerais no sculo XVIII. So Paulo: Hucitec, 1997. 15 NOVINSKY, Anita. A Igreja no Brasil colonial: agentes da Inquisio. Anais do Museu Paulista, tomo XXXIII:17-34, 1984. 16 HIGGS, David. Comissrios e Familiares do Santo Ofcio ao fim do perodo colonial. in: NOVINSKY, Anita, CARNEIRO, M. L. Tucci (orgs.). Inquisio: ensaios sobre heresias, mentalidades e arte. So Paulo: EDUSP, 1992.13

7 Numa anlise preliminar de rus brasileiros, Novinsky pressupe uma ao intensa dos Familiares na Colnia, e, ao final do artigo, apresenta uma lista de candidatos que no obtiveram o cargo pela ausncia dos requisitos necessrios. J Higgs faz apontamentos ocupao, residncia, naturalidade sobre um conjunto de Familiares habilitados nas ltimas dcadas do sculo XVIII (17701800). So trabalhos genricos, mas pioneiros, pois chamam a ateno dos historiadores para a raridade de estudos sobre o tema dos agentes inquisitoriais e importncia de novas e mais aprofundadas pesquisas. Com a dissertao de mestrado Em Nome do Santo Ofcio: Familiares da Inquisio portuguesa no Brasil Colonial17, Daniela Calainho realizou o primeiro trabalho de ps-graduao sobre os Familiares. A autora demonstrou a relevncia do estudo desses agentes para a compreenso da realidade colonial brasileira e realizou os primeiros levantamentos estatsticos sobre a rede de Familiares da Amrica portuguesa. A proposta de Calainho foi examinar tais agentes sobretudo ao nvel das suas funes. Os dados para a anlise desse aspecto foram buscados nos regimentos inquisitoriais e em menes episdicas de sua ao em trabalhos da historiografia brasileira que tangenciaram a temtica do Santo Ofcio na Colnia. Em decorrncia disso, a anlise sobre a atuao efetiva dos Familiares pouco aprofundada. Apesar de ter enfocado os Familiares sobretudo a partir das suas funes inquisitoriais, Calainho no ignora que a familiatura poderia ser utilizada como uma forma de distino social. Ao analisar superficialmente o perfil social dos Familiares da Colnia, a autora demonstra que o grupo ocupacional mais representativo de sua amostragem era aquele ligado ao comrcio e vido por distino social. O trabalho mais aprofundado j realizado sobre os Familiares da Inquisio portuguesa Agents of Orthodoxy, tese de doutoramento de James Wadsworth.CALAINHO, Daniela Buono. Em nome do Santo Ofcio: familiares da Inquisio portuguesa no Brasil colonial. Rio de Janeiro: UFRJ, 1992. (Dissertao de Mestrado). A autora dialogou sobretudo com a produo historiogrfica brasileira sobre a Inquisio realizada na dcada de 1970 e 1980, nomeadamente, Anita Novinsky, Luiz Mott, Laura de Mello e Souza e Ronaldo Vainfas.17

8 Apoiado em uma vastssima documentao indita, sobretudo da Torre do Tombo, o autor analisou vrios aspectos da rede de Familiares de Pernambuco, entre 1613 e 1820, chegando concluso de que a familiatura era procurada porque oferecia distino e prestgio social aos habitantes da Capitania. Alm de revelar o perfil social da rede, Wadsworth pesquisou vrios documentos de natureza legislativa que esclareceram pontos importantes do estatuto e privilgios dos Familiares. Ademais, analisou a organizao dos Familiares de Pernambuco em companhias militares e na irmandade de So Pedro mrtir. Por no utilizar a documentao inquisitorial resultante diretamente da ao do Santo Ofcio tais como cadernos do promotor e processos de rus , o autor subestimou as funes institucionais dos Familiares. No trabalho de Wadsworth, esses agentes praticamente no aparecem cumprindo suas funes inquisitoriais. Apesar de indubitavelmente a familiatura ter se voltado mais para uma funo social, ou seja, oferecer prestgio e distino social sobretudo a partir de finais do sculo XVII e at o terceiro quartel do sculo XVIII , no podemos esquecer que os Familiares do Santo Ofcio eram agentes da Inquisio e, enquanto tais, cumpriam uma srie de funes.18 Em relao a esse ltimo eixo em torno do qual organizamos a discusso historiogrfica, a nossa dissertao segue na esteira dos que foram produzidos por Wadsworth com nfase na funo social da familiatura e Calainho com enfoque maior na funo institucional dos Familiares. Pretendemos avanar a discusso no que diz respeito a insero social dos indivduos que se tornaram Familiares. Alm da documentao inquisitorial, analisaremos conjuntos

documentais compostos por fontes camarrias, documentao das ordenanas, habilitaes da Ordem de Cristo, inventrios e testamentos.

18

Em relao s familiaturas, o autor chegou a afirmar que a Inquisio transformou-se de um tribunal de represso em uma instituio de promoo social nos fins do sculo XVII. P. 21. WADSWORTH, James. Children of the Inquisition: Minors as Familiares of the Inquisition in Pernambuco, Brazil, 1613-1821. Luso-Brazilian Review, n. 42:1, 21-43, 2005.

9 No que diz respeito problemtica da distino social, destacamos ainda Francisco Bethencourt e Jos Veiga Torres. Numa perspectiva comparativa e de longa durao, o primeiro analisou as Inquisies italiana, espanhola e portuguesa entre os sculos XVI e XIX, verificando que o Santo Ofcio era uma instituio dinmica e que, por isso, conseguiu se adaptar a diferentes contextos. Sobre os agentes inquisitoriais, o autor chama ateno para a necessidade de estud-los para se comear a esboar uma imagem mais rigorosa do enraizamento social das Inquisies e dos jogos de poder em que estiveram envolvidos.19 Em artigo pioneiro Da Represso Religiosa para a Promoo Social: A Inquisio como instncia legitimadora da promoo social da burguesia mercantil20 apoiado em dados estatsticos respeitantes habilitao de Familiares do Santo Ofcio, Jos Veiga Torres demonstrou que para entendermos o papel histrico desta instituio no podemos nos apoiar apenas na perspectiva da represso. Devemos ir alm, trabalhar tambm com a perspectiva da promoo social. A estatstica das habilitaes dos Familiares fornece uma imagem nova da Inquisio. Desde o ltimo quartel do sculo XVII, a expedio de familiaturas passou a ocorrer num ritmo destoante da represso inquisitorial. O nmero de Familiares habilitados aumentava na medida em que a atividade repressiva inquisitorial (nmero de sentenciados) diminua. O grupo que mais foi contemplado pela Carta de Familiar do Santo Ofcio no momento de maior expanso das habilitaes (ltimo quartel do sculo XVII ao terceiro quartel do sculo XVIII) foi o dos comerciantes, provavelmente, porque este foi o que mais a procurou. Portanto, os Familiares do Santo Ofcio no podem ser analisados apenas como meros instrumentos da ao inquisitorial, a familiatura deve ser vista tambm pelo vis da promoo social. Esta perspectiva pode revelar os interesses profanos aos quais a Inquisio, atravs desses agentes, se submeteu. Esta perspectiva relativiza a tese de Antnio Jos Saraiva, endossada emBETHENCOURT, Francisco. Histria das Inquisies: Portugal, Espanha e Itlia sculos XV-XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 13. 20 TORRES, Jos Veiga. Da represso promoo social: a Inquisio como instncia legitimadora da promoo social da burguesia mercantil. Revista Crtica de Cincias Sociais, 40, Outubro de 1994, pp. 105-135.19

10 muitos estudos sobre o Tribunal do Santo Ofcio portugus, segundo a qual a Inquisio tratou de colocar a nobreza do seu lado (ou de colocar-se ao lado da nobreza) utilizando para isso as possibilidades oferecidas pela instituio de familiatura do Santo Ofcio.21

A historiografia brasileira, na medida em que estudou a perseguio inquisitorial a certos delitos, aponta para um enquadramento da Inquisio na perspectiva da represso inquisitorial. J a leitura dos trabalhos de Bethencourt e Torres nos aponta para um enquadramento mais sociolgico do Tribunal, sobretudo no processo de enraizamento social da instituio inquisitorial. Nesta dissertao, buscaremos conjugar as duas perspectivas. Entretanto, partiremos do pressuposto de que a funo social da familiatura do Santo Ofcio assumiu, a partir de finais do sculo XVII e ao longo da maior parte do sculo seguinte, um papel de maior relevncia se comparada a sua funo institucional. Sendo assim, o enfoque sobre a familiatura como um smbolo de distino social ganhar um espao maior. Em outras palavras, nos interessa mais o indivduo das Minas que se tornou Familiar do que o agente da Inquisio em sua funo institucional. Ao conjugar as duas perspectivas de anlise, o nosso objetivo esclarecer a multifacetada e complexa relao estabelecida entre a Inquisio portuguesa e a sociedade colonial. Queremos desvendar o que significava ser Familiar do Santo Ofcio em Minas colonial. O recorte espao-temporal deste trabalho a Capitania de Minas Gerais entre 1711 e 1808. A primeira baliza o ano de criao das vilas de Mariana, Vila Rica e Sabar; o que, inserido num movimento maior do estabelecimento do aparelho administrativo nas Minas, representa um novo perodo na colonizao da Capitania, sobretudo no que diz respeito preocupao normalizadora das autoridades.22 Acreditamos que a ao inquisitorial na Capitania pode ter ganhado

21 22

SARAIVA, Antnio Jos. Inquisio e Cristos-novos. Lisboa: Ed. Estampa, 1985. p. 136. Sobre a questo da urbanizao em Minas, implantao do aparelho administrativo e controle das populaes, ver: SOUZA, Laura de Mello e. Desclassificados do Ouro: a pobreza mineira no sculo XVIII. 4 edio revista e ampliada. So Paulo: Paz e Terra, 2004. Cf. sobretudo o tpico a

11 fora nesse momento de busca de maior controle social sobre a populao. O segundo marco cronolgico 1808, ano da transferncia da Corte portuguesa para o Brasil, seguida da abertura dos portos coloniais. A vinda dos Braganas para o Rio de Janeiro causou profundos impactos no processo de colonizao da Amrica portuguesa.23 Alm disso, a invaso napolenica abalou a estrutura inquisitorial portuguesa, agravando a decadncia desta instituio.

Para o desenvolvimento das problemticas elencadas acima, organizamos a dissertao em duas partes. Na primeira, em dois captulos, abordaremos os Familiares na perspectiva da represso inquisitorial. Na segunda, em quatro captulos, trataremos da familiatura como uma forma de distino social. Na parte I nos interessa mais o Familiar do Santo Ofcio do que o habitante das Minas que obteve a familiatura; j, na parte II alteramos o enfoque analtico e nosso olhar se volta para o habitante das Minas que se tornou Familiar. O captulo 1 trata do funcionamento da estrutura institucional que permitiu a ao do Santo Ofcio nas Minas, com nfase nos agentes e sistema de transmisso de denncias. Alm de suprir uma lacuna historiogrfica j que existem poucos trabalhos sobre a Inquisio em Minas , a nossa proposta aqui examinar a mquina a qual os Familiares pertenciam, de modo a subsidiar a anlise da atuao efetiva desses ltimos. A documentao que embasa o captulo composta pelos registros de provises da Inquisio de Lisboa24, onde pudemos coletar dados sobre a formao da rede de Comissrios e Notrios do Santo Ofcio nas Minas; registrospreocupao normalizadora, pp. 144-167. Segundo a autora, o perodo mais intenso do processo urbanizatrio foi o compreendido entre 1711 e 1715, encerrando-se em 1718, quando Assumar criou a vila de So Jos Del Rei. Neste intervalo, em 1714, situa-se tambm a criao das trs primeiras comarcas da Capitania: Vila Rica, Rio das Velhas e Rio das Mortes. 23 Sobre a vinda da Corte em 1808 e a crise do sistema colonial portugus, ver: NOVAIS, Fernando. Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial (1777-1809). So Paulo: Hucitec, 1979. 24 Nesses livros eram registradas todas as habilitaes dos agentes da hierarquia inquisitorial, desde Inquisidores-Gerais at Familiares do Santo Ofcio. Embora tenhamos encontrado Familiares residentes em Minas cujas cartas no foram localizadas nesta documentao o que demonstra que nem todas as habilitaes eram ali registradas so fontes onde podem ser feitos os levantamentos e amostragens mais completas dos agentes inquisitoriais. Cada registro, na maioria das vezes, traz o nome do agente, sua respectiva filiao, ocupao, naturalidade, residncia, o cargo para o qual foi habilitado e a data de expedio da sua habilitao.

12 de correspondncias25, nos quais verificamos a comunicao entre a Inquisio e os seus agentes na Capitania; cadernos do promotor do Tribunal de Lisboa26, que esclareceram o sistema de transmisso de denncias e composio de sumrios contra habitantes das Minas. Alm disso, utilizamos os regimentos inquisitoriais para examinarmos, ao nvel da legislao, o papel reservado aos agentes inquisitoriais na ao do Santo Ofcio e o funcionamento da mquina inquisitorial. A questo central do captulo 2 a ao efetiva dos Familiares do Santo Ofcio. Como esses agentes atuavam numa regio to distante da sede do Tribunal de Lisboa? De que forma eles manipulavam a autoridade inquisitorial? Como se comportavam enquanto agentes efetivos do Santo Ofcio? De que maneira os Familiares manipulavam a autoridade inquisitorial? Os Familiares sero enquadrados aqui na perspectiva da represso inquisitorial. Os cadernos do promotor, sobretudo, os processos de rus e os regimentos inquisitoriais so as fontes privilegiadas para o desenvolvimento das questes deste captulo. A parte II inicia-se com o captulo 3, cuja questo central a maneira pela qual algum se tornava Familiar do Santo Ofcio. Tal procedimento fundamental para entendermos porque a familiatura oferecia prestgio social aos indivduos que a obtinham. Dentrpe os requisitos exigidos para a habilitao, daremos destaque para a limpeza de sangue. O conjunto documental que subsidia a discusso constitudo sobretudo pelos processos de habilitao27 dos Familiares do Termo de Mariana. O tema do captulo 4 o desenvolvimento da rede de Familiares do Santo Ofcio em Minas. Aqui, por um lado, consideramos o contexto da formao social da Capitania e, por outro, o contexto maior de expedio de familiaturas para as reas sob jurisdio da Inquisio portuguesa. Para tanto, nos valemos dos livros

25

Ainda no sabemos o grau de rigor com que as correspondncias eram registradas nestes livros, mas provvel que nem todas o fossem. Ao todo, percorremos esta documentao do ano de 1692 ao de 1821. Dessa forma, pudemos verificar tudo que foi enviado para a Capitania de Minas durante a sua existncia, com exceo da dcada de 1770, perodo para o qual a documentao lacunar. Encontramos, ao todo, 110 registros que tiveram como destino capitania mineradora. 26 Esse um importante conjunto documental que funcionava como um depositrio de denncias e sumrios de uma grande variedade de delitos. A partir daqui, dependendo do parecer do Promotor do Santo Ofcio, as denncias e sumrios poderiam virar processo. 27 Consultamos ao todo 111 processos de habilitao.

13 de registro de proviso da Inquisio de Lisboa. Nesta documentao, coletamos os dados referentes ao ano de habilitao e comarca de residncia do Familiar. Dessa forma, foi possvel observar a formao da rede de Familiares das Minas ao longo do tempo e do espao. Alm de termos compulsado dados sobre os agentes de toda a capitania mineradora, entre 1711 e 1808, contabilizamos tambm as informaes referentes a todos os Familiares residentes na Colnia, entre 1713 e 1785.28 Neste ltimo caso, distribumos os dados por capitania e ano de habilitao. Com isso, podemos comparar a formao da rede de Familiares de Minas com a rede das demais regies da Amrica portuguesa. No captulo 5, o nosso objetivo esclarecer o padro de recrutamento da rede de Familiares de Minas e o perfil sociolgico dos agentes. Atravs do estudo prosopogrfico do grupo, queremos compreender porque os habitantes da capitania quiseram ser Familiares do Santo Ofcio? Em que momento de suas vidas eles pediam a habilitao na Inquisio? Que tipo de estratgia a familiatura representava em suas trajetrias? O captulo possui duas divises. Na primeira, atravs dos registros de provises, analisamos, de forma mais quantitativa, o perfil geral dos Familiares de Minas, considerando a ocupao, a naturalidade e o estado civil do grupo. Em seguida, passamos a utilizar tambm fontes qualitativas. A nossa escala de anlise aqui se reduz e nos restringimos aos Familiares do Termo de Mariana. O conjunto documental basilar desta segunda etapa do captulo composto pelos processos de habilitao dos Familiares de Mariana e seus respectivos inventrios e testamentos. Uma das justificativas para a reduo da escala de anlise para o Termo de Mariana o fato deste trabalho ser a continuao de uma pesquisa de Iniciao Cientfica cujo recorte espacial era aquela regio.29 Portanto, na medida em que28

Embora tenhamos procurado nos livros anteriores a 1711, pois comeamos pelo livro 108 (16941704), no encontramos Familiares habilitados naquela Capitania na primeira dcada do sculo XVIII. 29 RODRIGUES, Aldair Carlos. Os Familiares do Santo Ofcio e a Inquisio portuguesa em Mariana no sculo XVIII: o caso dos privilegiados do nmero. Revista de Estudos Judaicos, Belo Horizonte, ano 6, n. 6, pp. 114-122, 2005-2006.

14 prosseguimos aquela investigao, a anlise se aprofundou e, ao mesmo tempo, sentimos a necessidade de alargar o trabalho para toda a Capitania. Em segundo lugar, esse recorte se justifica pela natureza extensa da documentao utilizada neste trabalho. Os processos de habilitao contm, em mdia, 80 flios; por isso no tivemos condies de pesquisar os processos de habilitao dos 457 Familiares de Minas. Pertencente Comarca de Vila Rica, o Termo de Mariana abrangia 13 freguesias, possuindo ao final do sculo XVIII e incio do XIX cerca de 5000 habitantes. Primeira cidade da Capitania de Minas por ordem rgia de 23/04/1745, Mariana era um centro religioso, pois abrigava a sede do Bispado mineiro (aps o desmembramento da regio da jurisdio do Bispado do Rio de Janeiro em 174548); um centro administrativo, contando com um grande nmero de advogados, tabelies e o corpo administrativo da Cmara e Cadeia; um centro educacional, principalmente, a partir da criao do Seminrio de Mariana em 1750, atraindo um grande nmero de estudantes no s voltados para a carreira eclesistica e professores.30 O captulo 6 tambm est dividido em duas etapas. Na primeira, procuramos compreender os elementos que tornavam a familiatura uma marca social distintiva; j a segunda trata da insero da familiatura na constelao de outros smbolos e ttulos de distino social camaristas, irmos das ordens terceiras, oficiais das ordenanas, cavaleiros da Ordem de Cristo. Para tanto, utilizamos testamentos sobretudo para elaborarmos um mapa das irmandades s quais os Familiares pertenciam , listagem de vereadores das cmaras de Mariana e Vila Rica, processos da Ordem de Cristo e habilitaes do Santo Ofcio. Nesse sentido, queremos verificar as potencialidades, limites e peculiaridades do ttulo de Familiar, bem como situar a familiatura na escala de valor simblico das insgnias.

Este trabalho foi desenvolvido no Departamento de Histria da UFOP, sob orientao dos professores Luiz Carlos Villalta e Andra Lisly Gonalves. 30 LEWKOWICZ, Ida. Vida em famlia: caminhos da igualdade em Minas Gerais (sculos XVIII e XIX). So Paulo: FFLCH/ USP, 1992. (Tese de Doutoramento). pp. 31-77.

15 PARTE I FAMILIARES DO SANTO OFCIO E AO INQUISITORIAL EM MINAS

CAPTULO 1 A INQUISIO NA CAPITANIA DO OURO

A proposta deste captulo esclarecer como ocorreu a montagem e funcionamento da mquina inquisitorial qual os Familiares pertenciam em Minas. Quais os agentes que compunham essa engrenagem? Como eles eram recrutados? No contexto da colonizao da Capitania, verificaremos como ocorreu a relao entre a atividade inquisitorial e a estrutura eclesistica da regio. Diferentemente do que ocorrera nas colnias espanholas31, a Amrica portuguesa no contou com um Tribunal do Santo Ofcio prprio, apesar da malograda tentativa do seu estabelecimento no perodo filipino.32 Com efeito, a Colnia ficou sob a gide da Inquisio de Lisboa, que exercia jurisdio tambm sobre outras partes do Imprio luso: as Ilhas Atlnticas, Norte e poro ocidental da frica. O nico Tribunal instalado no Ultramar portugus foi o de Goa. Apesar de nunca ter tido uma sede na Colnia, a Inquisio portuguesa agiu aqui por meio de diversas estratgias, que variaram no tempo e no espao. As Visitaes, a colaborao dos Bispos e das Ordens regulares (sobretudo a Companhia de Jesus), a Justia Eclesistica e uma rede de agentes, composta principalmente por Comissrios e Familiares, foram os principais mecanismos utilizados pelo Santo Ofcio para atingir o Brasil. Antes do envio das Visitaes Colnia e da formao da rede de agentes prprios, a colaborao dos Bispos foi muito importante para a atuao do Santo Oficio na Amrica Portuguesa. Os Prelados agiam realizando denncias, tirando sumrios e enviando os rus para Lisboa. Assumindo feies diversas, essa31

Em 1569-70, foram criados Tribunais no Mxico e Lima; antes, em 1517, havia sido criada uma estrutura mista entre uma Inquisio episcopal e a Inquisio espanhola. Em 1610 foi instalado o Tribunal de Cartagena de ndias, cuja jurisdio abarcava as Antilhas, partes da Amrica Central e costa nordeste da Amrica do Sul. Cf. BETHENCOURT, Francisco. Op. Cti. p. 52. 32 Cf. NOVINSKY, Anita. Cristos Novos na Bahia. So Paulo: Perspectiva, 1992. 2 ed. pp. 108109. SIQUEIRA, Snia. Op cit. pp. 135-139. FEITLER, Bruno Guilherme. Op Cit. pp. 64-69.

16 relao entre membros da esfera eclesistica e Inquisio existiu durante todo o perodo Colonial. No final do sculo XVI, a Inquisio passou a enviar Visitaes Amrica portuguesa. Realizada pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendona entre 1591 e 1595, a primeira delas atingiu as capitanias da Bahia, Pernambuco e Paraba. A Bahia seria novamente visitada entre 1618 e 1621 por Marcos Teixeira.33 Ainda na dcada de 1620, embora a documentao seja mais escassa, temos notcia de uma outra Visitao que percorreu o Brasil, passando pelo Esprito Santo, Rio de Janeiro, Santos e So Paulo. Para esta ltima, apesar de vrias denncias recebidas, apenas uma pessoa foi processada, Izabel Mendes, acusada de Judasmo.34 As Visitaes ocorridas no Brasil durante o final do sculo XVI e incio do XVII integram um contexto maior em que outras reas do lado atlntico do Imprio foram tambm visitadas: Aores e Madeira em 1575-6, 1591-3 e 1618-9; Angola em 1596-8, 1561-2 e 1589-91.35 A estratgia de ao do Santo Ofcio atravs das Visitaes foi utilizada sobretudo no sculo XVI e na primeira metade da centria seguinte. A partir deste perodo as Visitaes entram em decadncia. Sobre esta matria, concordamos

Os livros dessas Visitaes foram publicados: ABREU, Capistrano (ed.). Primeira Visitao do Santo Ofcio s partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendona. Confisses da Bahia, 1591-1592. So Paulo: Paulo Prado, 1922; ABREU, Capistrano (Org.). Primeira Visitao do Santo Ofcio s partes do Brasil pelo licenciado Heitor Furtado de Mendona. Denunciaes da Bahia, 1591-1593. So Paulo: Paulo Prado, 1925; FRANA, Eduardo de Oliveira, SIQUEIRA, Snia (Orgs.). Segunda Visitao do Santo Ofcio s partes do Brasil pelo Inquisidor e Visitador Marcos Teixeira. Livro das Confisses e Ratificaes da Bahia, 1618-1620, Anais do Museu Paulista, XVII, 1963; GARCIA, Rodolfo (org.). Livro das denunciaes que se fizeram na Visitao do Santo Ofcio cidade de Salvador da Bahia de Todos os Santos do estado do Brasil no ano de 1618, Anais da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, 49, 1927, pp. 75-198; _____________. Primeira Visitao do Santo Ofcio s partes do Brasil pelo Licenciado Heitor Furtado de Mendona. Denunciaes de Pernambuco, 1593-1595. So Paulo: Paulo Prado, 1929. 34 Sobre essa Visitao, consultar: GORENSTEIN, Lina. A terceira Visitao do Santo Oficio s partes do Brasil (sculo XVII). In: FEITLER, Bruno, LIMA, Lana Lage da Gama, VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). A Inquisio em Xeque: temas, controvrsias, estudos de caso. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006. pp. 25-32. Sobre Izabel Mendes, p. 27. Para essa Visitao, diferentemente das que ocorreram no Nordeste, nos lembra Gorenstein que no h livros. Segundo a autora, a documentao que demonstra a existncia desta Visitao o processo de Izabel e os Cadernos do Promotor, ambos do IANTT. 35 BETHENCOURT, Francisco. Op Cit. p. 217.

33

17 com Bethencourt, para quem a Visitao do Santo Ofcio ao estado do Gro-Par, ocorrida entre 1763-69, foi excepcional sob todos os pontos de vista.36 Concomitante ao declnio das Visitaes, notamos um crescimento do nmero das habilitaes de agentes inquisitoriais expedidas pelo Santo Ofcio, cujo pice foi atingido no sculo XVIII. Isso significa que a Inquisio foi mudando sua estratgia, passando a se apoiar cada vez mais na rede de agentes prprios composta principalmente por Comissrios, Notrios, Qualificadores e Familiares. Essa expanso da hierarquia inquisitorial pode ser observada no quadro abaixo, cujos dados excluem os Familiares dos quais no trataremos por ora , mas adiantamos que a difuso de sua rede seguiu a mesma tendncia geral verificada para os outros agentes. Tabela 1 Expanso dos Quadros Burocrticos InquisitoriaisPerodo Comissrios Notrios Deputados e Inquisidores 1580-1620 1621-1670 1671-1720 1721-1770 1771-1820 132 297 637 1011 484 00 00 142 404 189 38 117 94 119 62 47 110 287 419 62 Qualificadores No especificados 00 00 33 20 1

Fonte: TORRES, Jos Veiga. Da represso promoo social: a Inquisio como instncia legitimadora da promoo social da burguesia mercantil. Revista Crtica de Cincias Sociais, 40, Outubro de 1994, pp. 105-35. P. 130.

A ao do Santo Ofcio ocorrida na Capitania de Minas Gerais, cujo povoamento e colonizao ocorreu no setecentos, se insere nesse contexto maior de desaparecimento das Visitaes Inquisitoriais e crescimento da rede de agentes. A nossa anlise do funcionamento da engrenagem inquisitorial em Minas leva em conta, por um lado, esse contexto global da atuao inquisitorial no Imprio colonial portugus e, por outro, o contexto especfico da Capitania. Dentro deste ltimo, destacaremos como as variantes regionais sobretudo a

36

Ibidem. p. 215.

18 estruturao da instituio eclesistica e a criao do Bispado de Mariana influenciaram na ao do Santo Ofcio ocorrida na Capitania.

1.1 Notrios e Comissrios do Santo Ofcio em Minas

A engrenagem inquisitorial que permitiu a ao do Tribunal de Lisboa em Minas era composta por trs grupos de agentes: os Comissrios, os Notrios e os Familiares. Alm dessa rede e integrada a ela foi relevante a complexa articulao ocorrida entre a Justia Eclesistica da Capitania e o Santo Ofcio. Primeiramente, trataremos da formao da rede de Notrios e Comissrios: seu recrutamento e ao; em seguida, abordaremos as questes relacionadas ligao estabelecida entre os mecanismos da justia eclesistica e a Inquisio. Nas partes relativas aos Notrios, os Regimentos Inquisitoriais s especificam as atividades desempenhadas por esses agentes na sede dos Tribunais da Inquisio: passar certides, comisses, ris e termos diversos. Eles tinham que ser Clrigos de ordens sacras que saibam bem escrever, de suficincia e capacidade conhecida para poderem cumprir com a obrigao de seu ofcio; e podendo-se achar letrados, sero os preferidos aos mais. Alm disso, teriam as mais qualidades exigidas a todos os agentes inquisitoriais: ser cristovelho de boas virtudes e comportamentos. A remunerao dos Notrios seria de um vintm para cada selo que colocassem nos papis do Tribunal do Santo Ofcio e para o que escrevessem nos processos receberiam o que pelo Promotor lhe for contado.37 A rede de Notrios de Minas era composta por 8 agentes, tendo se habilitado 1 na dcada de 1740, 4 na dcada de 1760 e 3 na de 1750. A Comarca de Vila Rica contava com 3 desses agentes, a de Rio das Mortes, tambm com 3, a de Rio das Velhas e a do Serro Frio, com 1 cada.38

Regimento de 1640, Livro I, Tit. VII. In: Revista do IHGB, Rio de Janeiro, jul./ set. 1996. n. 392. Daqui em diante, todas as vezes que referirmos aos regimentos da Inquisio, entende-se que utilizamos a verso publicada na Revista do IHGB, conforme citado. 38 IANTT, HSO; IL, Provises de nomeao e termos de juramentos (livros 104-123).

37

19 Os Notrios no ocupavam cargos importantes na hierarquia eclesistica da regio, aparecendo na documentao apenas como Presbtero Secular, Sacerdote do Hbito de So Pedro, Clrigo.39 Para as atividades dos Notrios fora das sedes dos Tribunais, caso dos que se habilitaram em Minas, no temos muitas informaes a respeito da legislao que as regulava. No que toca ao, encontramos apenas um Notrio agindo na Capitania, e uma nica vez. Trata-se do Pe. Julio da Silva e Abreu, habilitado em 1765, que, em 1778, realizou uma denncia envolvendo proposio e superstio na freguesia da Piedade da Borda do Campo, Comarca do Rio das Mortes.40 Mesmo que no tenham agido em nome do Santo Ofcio de forma expressiva, os Notrios eram representantes da instituio inquisitorial nas freguesias em que moravam. Isso certamente lhes garantia mais prestgio no meio em que viviam.

Diferentemente dos Notrios, a rede de Comissrios, atuando de diversas maneiras, constituiu-se num mecanismo fundamental para o funcionamento da engrenagem inquisitorial em Minas. Esses agentes eram a autoridade inquisitorial mxima na Colnia. Dentro da hierarquia dos agentes da Inquisio, eles se subordinavam diretamente aos Inquisidores de Lisboa. Alm das qualidades exigidas para todos os postos inquisitoriais ser cristo-velho, sem ascendente condenado pela Inquisio, ter bons costumes , a ocupao do cargo de Comissrio tinha como requisitos que os candidatos fossem pessoas eclesisticas, de prudncia e virtude conhecida, e achando-se letrados sero preferidos. As principais funes dos Comissrios eram ouvir testemunhas nos processos de rus; realizar contraditas; coletar depoimentos nos processos de habilitao de agentes inquisitoriais; fazer prises e organizar a conduo dos presos; vigiar os condenados que cumprissem pena de degredo nas reas de sua

39 40

IANTT, HSO; IL, Provises de nomeao e termos de juramentos (livros 104-123). IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 319, fl. 24.

20 atuao.41 Como os Comissrios no atuavam na sede dos Tribunais inquisitoriais e acumulavam o cargo juntamente com outras atividades desempenhadas na qualidade de eclesisticos, eles integravam o grupo de agentes inquisitoriais que no recebiam um salrio fixo da Inquisio. Eles ganhavam seis tostes por cada dia que trabalhassem.42 Dentro do contexto geral de expanso de toda a hierarquia de agentes inquisitoriais mostrado no quadro acima, a rede de Comissrios do Santo Ofcio comeou a ganhar flego nas ltimas dcadas do sculo XVII. O seu pice foi atingido no sculo XVIII, quando alcanou a cifra de 1011 habilitaes no perodo que vai de 1721 a 1770, um aumento de 524 agentes em relao aos 50 anos anteriores, que era de 637.43 De maneira geral, muito pouco se sabe sobre a rede de comissrios presentes e atuantes na Amrica portuguesa. Luiz Mott tem sido pioneiro ao chamar ateno para a necessidade de se estudar este aspecto da ao inquisitorial ocorrida na Colnia.44 At o momento, contamos com dados de alcance regional sobre as redes de Comissrios. Em um levantamento incompleto, Siqueira encontrou 80 Comissrios para as capitanias de Bahia e Pernambuco, distribudos da seguinte forma: 8 no sculo XVII, sendo 6 para a Bahia e 2 para Pernambuco; 67 no sculo seguinte, sendo 36 para a primeira e 31 para a ltima.45 J Wadsworth, num estudo exaustivo para Pernambuco, entre 1611-1820, encontrou 68 Comissrios, alm de 62 Notrios e 14 Qualificadores.46

Dos Comissrios e Escrives de seu cargo. Reg. 1640, Liv. I, Tit. XI. Regimentos do Santo Ofcio (sculos XVI-XVII). 42 Dos Comissrios e Escrives de seu cargo. Reg. 1640, Liv. I, Tit. XI. 43 TORRES, Jos Veiga. Op Cit. p.130. 44 MOTT, Luiz. A Inquisio em Sergipe. Aracaj: Score Artes Grficas, 1987. p. 60. ___________. Um nome... em nome do Santo Ofcio: o cnego Joo Calmon, comissrio da Inquisio na Bahia setecentista. In: Universitas, Salvador, jul.- set. 1986, n. 37. pp. 15-32. ___________. A Inquisio no Maranho. In: Revista Brasileira de Histria, So Paulo, n. 28, vol. 15. 45 SIQUEIRA, Snia. Op Cit. p. 163. 46 WADSWORTH, James. Agents of Orthodoxy: inquisitional power and prestige in colonial Pernambuco, Brazil. University of Arizona, 2002. (Tese de doutoramento). p. 53.

41

21 No caso da Capitania de Minas Gerais, Wadsworth fala em 13 Comissrios,47 porm pesquisando em diversas fontes, sobretudo nos Livros dos Termos de Provises e Juramentos da Inquisio de Lisboa, encontramos 23, cuja distribuio por comarcas era a seguinte: Vila Rica que abrigava Mariana, a sede do Bispado , 14; Rio das Velhas, 06; Rio das Mortes, 02 e, por ltimo, a do Serro do Frio, 01. A evoluo dessa rede por perodo, comarca e freguesia pode ser observada no quadro abaixo: Tabela 2 Habilitao de Comissrios do Santo Ofcio em Minas (sculo XVIII)ANO (em ordem COMARCA48

FREGUESIA

crescente) dcada de 1720 (?) 1724 1726 1729 1730 1733 1733 1746-51 (?) 1747 1749 1750-53 (?) 1752 1754-57 (?) 1758 1758 1760 1763 1766 1766 1769 1770 Vila Rica Vila Rica Rio das Velhas Rio das Velhas Vila Rica Rio das Velhas Vila Rica Rio das Velhas Vila Rica Vila Rica Rio das Velhas Rio das Mortes Vila Rica Vila Rica Vila Rica Rio das Mortes Vila Rica Rio das Mortes Vila Rica Vila Rica Vila Rica Vila Rica Mariana Sabar Rio das Pedras Vila Rica Raposos Mariana Sabar Mariana Vila Rica Caet Borda do Campo Mariana (Sumidouro) Mariana Mariana So Joo Del Rei Mariana (Furquim) Prados Mariana Vila Rica Vila Rica

47 48

Ibidem. p. 53. Aqui levamos em conta a Comarca da Jurisdio secular, pois a rea de jurisdio da Comarca eclesistica no necessariamente coincidia com a primeira.

221789-1815 (?) 180349

Vila Rica Serro do Frio

Itabira do Campo Vila do Prncipe

Fonte : IANTT, HSO; IL, Provises de nomeao e termos de juramentos, liv. 104-123.

Para alm dos desenvolvimentos econmico e social da regio, a montagem da rede de Comissrios em Minas est ligada estruturao da instituio eclesistica no territrio da Capitania. Esta constatao pode ser explicada se considerarmos que a exigncia da Inquisio para a ocupao do cargo de Comissrio era o candidato ser eclesistico. Dos 23 habilitados, 16 tiveram suas patentes expedidas depois da criao do Bispado de Mariana ocorrida em 1745-48.50 Outro dado que evidencia a relao entre criao do Bispado e a evoluo da rede de Comissrios o local de residncia destes ltimos: 8 so de Mariana, sede episcopal, sendo que 6 foram habilitados antes de 1745. Em Minas, as Ordens Regulares foram proibidas de se estabelecerem oficialmente, sendo alvo de uma poltica da Coroa que cerceava a sua presena e atuao na regio.51 Devido fraca presena oficial dos clrigos regulares em Minas no sentido de sedentarizados, de modo que a Inquisio pudesse neles se apoiar , os Comissrios s poderiam ser recrutados entre os membros da hierarquia eclesistica secular. Com exceo de Minas, nas outras regies sob sua jurisdio, a Inquisio eventualmente se apoiava no clero das Ordens Regulares, sobretudo nos padres da Companhia de Jesus. Esse fato pode ser facilmente verificado se observarmos os destinatrios das correspondncias do Santo Ofcio dirigidas Colnia. PorAlguns nomes de Comissrios das Minas foram encontrados na documentao do Registro Geral do Expediente da Inquisio de Lisboa, IANTT, pois nem todos tiveram suas patentes registradas nos Livros de Provises, ambos do fundo Inquisio de Lisboa. importante ficar atento, quando se consulta a documentao inquisitorial, para a distino entre comissrio delegado para uma diligncia especfica e o cargo de Comissrio do Santo Ofcio. 50 Sobre a criao do Bispado de Mariana, Cf. KANTOR, Iris. Pacto Festivo em Minas Colonial: A Entrada Triunfal do Primeiro Bispo na S de Mariana. So Paulo: FFLCH/USP, 1996. 51 Sobre essa questo, Cf.: BOSCHI, Caio. Como Filhos de Israel no Deserto? (ou a expulso dos eclesisticos em Minas Gerais na 1 metade do sculo XVIII). Vria Histria, Belo Horizonte, n. 21, pp. 119-141; RESENDE, Renata. Entre a ambio e a Salvao das Almas: a atuao das Ordens Regulares em Minas Gerais (1694-1759). So Paulo: FFLCH-USP, 2005. (Dissertao de Mestrado). Renata Resende demonstra como o clero regular se fez presente em Minas, apesar da poltica da Coroa que impedia a sua instalao oficial na Capitania.49

23 exemplo, no Rio de Janeiro, vrias comisses eram enviadas ao Comissrio Estevo Gandolfe, membro da Companhia de Jesus. Numa delas, datada de 1718, constavam duas diligncias a serem realizadas pelo jesuta para que tomasse juramento dos Familiares Manoel Pires Ribeiro e Simo Alves Chaves, recm habilitados.52 Em So Paulo, os Reitores do Colgio dos Jesutas tambm se faziam de Comissrios da Inquisio. Eles eram encarregados de executar diligncias mesmo que no tivessem se habilitado formalmente como agentes inquisitoriais.53 Segundo Feitler, no Nordeste, entre 1702 e 1729, os Jesutas foram os correspondentes privilegiados dos Inquisidores nas regies de Pernambuco e Paraba, apesar de o Tribunal j contar com a participao de agentes prprios na ao inquisitorial que ali se desenrolava. Essa relao j vinha desde o perodo da S Vacante de Olinda (1693-1697), quando o Reitor do Colgio dos Jesutas, Felipe Coelho, era o principal destinatrio das correspondncias que a Inquisio endereava quela regio.54 Na frica, a partir do sculo XVII, Filipa Ribeiro da Silva encontrou colaboradores da Inquisio entre os Franciscanos nas regies de Cabo Verde e na Guin e, no caso de So Tom e Prncipe, Capuchinhos italianos e Agostinhos Descalos.55 Tanto na frica Ocidental, como na Amrica portuguesa mesmo que no fosse de forma prioritria e variasse de acordo com o contexto havia uma relao entre os Regulares, a estrutura eclesistica e o Santo Ofcio. Em Minas, essa relao no ocorria, por isso a criao do Bispado e a decorrente atrao de um clero melhor qualificado para a Capitania teve influncia no recrutamento da rede de Comissrios e na ao inquisitorial ocorrida na regio. Analisando a insero dos Comissrios no espao eclesistico da capitania mineradora, notamos que eles se situavam em uma hierarquia, tanto no momento da habilitao como nos casos para os quais dispomos de informaes nos52 53

IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 20, fl. 249. Por exemplo, ver: IANTT, IL, Livro 20, Registro Geral do Expediente, fls. 252-252v. 54 FEITLER, Bruno. Inquisition, Juifs et nouveaux-chrtiens au Brsil: Le Nordeste, XVIIe et XVIIIe sicles. Louvain: Leuven University Press, 2003. pp. 94-99. 55 SILVA, Filipa Ribeiro da. A Inquisio na Guin, nas Ilhas de Cabo Verde e So Tom e Prncipe. Revista Lusfona de Cincia das Religies, Lisboa, n. 5, v. 6, 157-173, 2004. P. 159.

24 cargos que vo ocupando ao longo de suas carreiras. Alguns acumulam postos dentro do Cabido; outros atingem a colocao mxima do Juzo Eclesistico Vigrio-geral e outros no passavam de simples vigrios ou procos. Tabela 3 Cargos Ocupados pelos Comissrios na Esfera EclesisticaComissrio Ano de Habilitao 17891815(?) 1746-51 1750-53 1754-57 dcada de 1720 (?) 1724 1726 1729 1730 1733 1733 1747 1749 Cargo no Momento da Habilitao Vigrio Colado Vigrio Colado Vigrio Sem Informao Vigrio Colado, Vigrio da Vara, Visitador Vigrio Sem Informao Vigrio Colado Sacerdote, Vila Rica Vigrio Vigrio Colado Vigrio Geral Vigrio da Vara, Vila Rica Vigrio Colado Arcipestre e Vigrio Geral Tesoureiro Mr da S de Mariana Vigrio da Vara Vigrio Cnego Magistral, Mariana Vigrio Colado Vigrio Vigrio da Vara de Vila Rica Visitador Episcopal (1729-30), MestreEscola (1742), Deo (1756) Cargos Ocupados (alm do j referido no momento da habilitao) Cnego prebendado Procurador e Governador do Bispado, Visitador Episcopal

Manoel Acursio Nunam Pereira Loureno Jos de Queiroz Coimbra Henrique Pereira Manoel Nunes de Souza Flix Simes de Paiva Francisco Ribeiro Barbas Jos Pinto da Mota Joo Gomes Brando Manuel Freire Batalha Jos Matias de Gouva Jos Simes Geraldo Jos de Abranches Igncio Correia de S Feliciano Pita de Castro Manoel Cardoso Fraso Castelo Branco Teodoro Ferreira Jacome Jos Sobral de Souza Joo de S e Vasconcelos Joo Rodrigues Cordeiro Manoel Martins de Carvalho Joo de Oliveira Magalhes

Arcediago Procurador e Governador do Bispado, Vigrio Capitular, Vigrio Geral, Cnego Doutoral, Tesoureiro mor; Mariana

1752 1758

1758

Vigrio-geral, Governador do Bispado, Reitor do Seminrio de Mariana, Visitador Episcopal

1760 1763 1766

1766 1769

25Nicolau Gomes 1770 Vigrio Colado, Xavier Raposos Fabiano da Costa 1803 Proco Pereira Fonte: IANTT, HSO; IANTT, IL, Provises de nomeao e termos de juramentos (livros 104-123). Sobre os Cargos na hierarquia, retiramos a informao de: TRINDADE, Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsdios para sua Histria. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953. Vol. I; CHIZOTI, Geraldo. O Cabido de Mariana (1747-1820). Franca: UNESP, 1984. (Dissertao de Mestrado).

A relao entre o desenvolvimento da rede de comissrios e a criao do Bispado de Mariana pode ser constatada tambm a partir da anlise dos registros das correspondncias enviadas pela Inquisio s Minas que abarcam todo o sculo XVIII, exceto a dcada de 1770. Quando analisamos a data de envio das diligncias, notamos que antes de 1745-48, quase no houve comisso encaminhada aos Comissrios e aos outros Clrigos residentes na Capitania.56 Do total de 110 registros, apenas 7 foram enviados antes da entrada de Dom Frei Manuel da Cruz na S de Mariana. Esse fato se relaciona atrao de um clero mais graduado para ocupar os postos criados no Bispado, sobretudo em sua sede. A anlise dos destinatrios das correspondncias revela que a tendncia era a Inquisio dar prioridade aos Comissrios que ocupavam postos mais elevados na hierarquia eclesistica do Bispado de Mariana. No cmputo geral de 110 correspondncias enviadas s Minas, abarcando o sculo XVIII, os Comissrios foram os destinatrios de 89. Destacando esse grupo, observamos que Incio Correia de S que ocupou, ao longo se sua carreira, o posto de Cnego da S de Mariana, VigrioGeral, Tesoureiro-mr foi o que mais contou com a confiana dos inquisidores, pois a ele foram encaminhadas 25 diligncias, entre 1754 e 1768. Alm dos cargos j citados, Incio Correia de S exerceu ainda um papel importante quando tomou posse como procurador do novo Bispo de Mariana, Dom Frei Domingos da Encarnao Pontevel, em 29 de agosto de 1779. O Comissrio governou o Bispado at 25 de fevereiro de 1780, data em que o Prelado de

56

Todos as informaes sobre as correspondncias foram retiradas de: IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livros 19-24.

26 quem ele era procurador chegou para tomar posse na S de Mariana.57 O fato de Incio Correia de S ter ocupado cargos-chave na hierarquia eclesistica do Bispado teve influncia direta no nmero de comisses que a Inquisio lhe enviou. Alm da importncia que a Inquisio dava aos indivduos que ocupavam o topo da hierarquia eclesistica local, certamente havia um interesse por parte do alto clero da Capitania em servir Inquisio. Ser agente do Santo Ofcio era uma forma de se obter prestgio e, alm disso, poder ascender na prpria hierarquia clerical, ou at mesmo na inquisitorial. Especialmente no caso do Clero que ocupava postos no Cabido e tinha ambio de ascender nos quadros da Igreja, ter servios prestados ao Santo Ofcio no curriculum era um elemento importante para a concretizao de seus anseios. O segundo Comissrio de Minas para quem mais os Inquisidores encaminharam diligncias (16, entre 1751 e 1781) foi Loureno Jos de Queiroz Coimbra. De origem minhota, veio para o Rio de Janeiro em 1734 e, com apenas 23 anos, D. Frei de Guadalupe o fez Vigrio Colado de Sabar. Em 1748, no ano da instalao do Bispado de Mariana, Coimbra exerceu um papel fundamental ao governar interinamente a nova Diocese por nove meses, preparando a chegada de Dom Frei Manuel da Cruz. Segundo Raimundo Trindade, Coimbra partira de Sabar em 25 de fevereiro de 1748 e no dia 27 chegou em Mariana seguido de mais de mil cavaleiros, do ouvidor de sua comarca e de numeroso Clero, gente luzida que, vestida de gala, em vistosa tropa, o acompanhou Cidade. Ao regressar para Sabar, de onde havia sado como Vigrio Colado, voltava, nomeado pelo novo Bispo, como Vigrio da Vara daquela Comarca eclesistica, onde residiria at sua morte.58 Alm dos dois Comissrios referidos, destinatrios de quase a metade das correspondncias dirigidas a Minas, outros 13 em um universo de 23 receberam diligncias a serem executadas. Foram eles: Flix Simes de Paiva, entre 1749 e 1758, 9 diligncias; Teodoro Ferreira Jacome, entre 1760 e 1764, 6;TRINDADE, Cnego Raimundo. Arquidiocese de Mariana: subsdios para sua histria. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1953. p. 151. 58 TRINDADE, Raimundo. Op Cit. pp. 78-82.57

27 Nicolau Gomes Xavier, entre 1795 e 1801, 6; Jos Sobral, entre 1761 e 1766, 6; Feliciano Pita de Castro, entre 1754 e 1764, 5; Manuel Freire Batalha, entre 1733 e 1742, 05; Geraldo Jos de Abranches, entre 1749 e 1753, 04. Quanto a outro grupo de 05 Comissrios, foi encaminhada apenas 01 correspondncia para cada um. O destino mais freqente das correspondncias, cujo contedo se referia, em geral, execuo de diligncias, era a sede do Bispado, seguida da Comarca de Sabar, Vila Rica e So Joo Del Rei. Se em Mariana as diligncias eram freqentemente encaminhadas aos Comissrios com postos no Cabido ou na Justia Eclesistica, fora da sede episcopal, era dada uma preferncia aos Comissrios que ocupavam os postos de Vigrio da Vara, caso, por exemplo, de Sabar e So Joo Del Rei. Outros dois assuntos eram responsveis pelo fluxo das correspondncias entre a Inquisio e as autoridades eclesisticas de Minas. Primeiramente, temos a demanda por habilitao de Familiares do Santo Ofcio e, depois, o funcionamento da engrenagem que havia gerado denncias e sumrios cujos desdobramentos resultaram em investigaes e mandados diversos para apurao dos casos. Veja-se o universo de 110 registros de correspondncias referentes a Minas: Tabela 4 Assunto das Correspondncias Enviadas a Minas59Perodo Habilitao de Familiar 00 00 02 04 23 35 Ordem de Priso 00 00 01 02 07 01 Ordem de soltura 00 00 00 00 01 02 Instrue s 00 00 00 00 01 00 Investiga o/ Sumrios 00 00 00 02 15 11 Repreens oa Agentes 01 00 00 00 00 01 Carta ao Cabido 00 00 00 00 00 02 Total

1710-20 1721-30 1731-40 1741-50 1751-60 1761-7059

01 00 03 08 47 52

Levamos em conta aqui a freqncia com que um assunto aparece em cada diligncia. No caso das habilitaes de Familiar, por exemplo, em que, numa mesma correspondncia vm sempre diligncias referentes a mais de um candidato, computamos apenas habilitao 01. Numa mesma correspondncia podem aparecer diligncias diversas, como mandado de priso e diligncias de habilitao a Familiar do Santo Ofcio, neste caso computamos uma para cada assunto. Quanto ao destinatrio, consideramos o primeiro, pois a Inquisio sempre indicava um segundo nome caso o primeiro no pudesse realizar a diligncia, vindo sempre a expresso: ausente a.

281771-80 00 00 00 00 1781-90 00 00 00 00 1791-00 03 02 01 00 1801-10 00 00 00 00 Total Geral 68 13 04 01 IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livros 19-24. 00 01 14 00 43 02 00 00 00 04 00 00 00 00 02 02 01 20 00

Um primeiro dado a ser observado na tabela acima a coincidncia entre as diligncias tocantes a habilitaes de Familiares e investigao/ sumrios concentradas entre as dcadas de 1750 e 1770. Jos Veiga Torres afirma que a expanso do quadro de Comissrios como de outros cargos da Inquisio portuguesa visava acompanhar a demanda por habilitaes ao cargo de Familiar do Santo Ofcio. Os Comissrios exerceriam atividades relacionadas burocracia dos interrogatrios. Esta constatao corroboraria a tese do autor de que a Inquisio passou da represso para a promoo social a partir das ltimas dcadas do sculo XVII. No tocante represso, o autor se baseou na queda do nmero de sentenciados, e, quanto promoo social, ancorou-se no extraordinrio aumento do nmero de Familiaturas. No caso de Minas, a evoluo da rede de Comissrios acompanhou, de modo geral, a tendncia observada para o Imprio. A maior parte dos registros de correspondncias endereadas Capitania relativa habilitao de Familiares, portanto, a formao da rede de Comissrios acompanhou sim a evoluo da rede de Familiares. Por outro lado, o nmero de diligncias referentes a mandados de priso, sumrios, contraditas, investigaes e inquritos, de modo geral, concentrarem-se tambm entre as dcadas de 1750 e 1770. Portanto, no caso de Minas, os Comissrios no estavam apenas atuando nas habilitaes ao cargo de Familiar, embora essa fosse a atividade que mais exercessem em nome da Inquisio. Isto porque o perodo em que os Comissrios da Capitania mais se ocuparam da habilitao de Familiares do Santo Ofcio foi tambm aquele em que mais exerceram atividades relativas ao repressiva do Tribunal.

29 1.1.1 Comissrios e ao inquisitorial

As informaes que temos acerca da atuao dos Comissrios em Minas datam da dcada de 1730. Antes deste perodo, nenhuma correspondncia endereada Capitania foi encontrada no Registro Geral do Expediente. Nos Cadernos do Promotor importante conjunto documental que funcionava como um depositrio de denncias e sumrios de uma grande variedade de delitos , as informaes acerca da atuao inquisitorial na Capitania mineradora tambm so muito escassas para as duas primeiras dcadas do setecentos. Na dcada de 1730 e at meados do sculo, encontramos Manuel Freira Batalha atuando como o principal Comissrio de Minas, cuja residncia ficava na Cabea da Capitania. Ele era bacharel formado em Cnones e se habilitou ao cargo de agente da Inquisio em 1730, quando era proco em Vila Rica. Batalha era bastante ativo na regio, tanto que foi visitador diocesano um ano antes de sua habilitao e tambm em 1730, quando j era Comissrio, tendo percorrido vrias freguesias da Comarca do Rio das Mortes e de Vila Rica.60 Manuel Freire Batalha foi um esteio importante para a ao inquisitorial nas Minas durante as dcadas de 1730 e 1740, perodo em que os habitantes da Capitania processados pela Inquisio, cristos-novos em sua maioria, receberam duras penas.61 No Registro das Correspondncias enviadas pela Inquisio de Lisboa s Minas antes da criao do Bispado de Mariana, consta que Batalha foi o destinatrio de todas as cartas.62 A primeira referncia a Minas no Registro das Correspondncias aparece no ano de 1732 em carta enviada ao Comissrio do Rio, Loureno de Valadares Vieira. Nesta, ordenava-se o envio do retrato de Miguel de Mendona Valladolid, condenado pena capital pela Inquisio, para que fosse posto na freguesiaBOSCHI,Caio Csar. As Visitas Diocesanas e a Inquisio na Colnia. Revista Brasileira de Histria, So Paulo, v. 7, n. 14, p. 151-184. p. 182. TRINDADE, Cnego Raimundo. Op. Cit. p.. 60. Este aspecto da relao entre Visita Eclesistica e Inquisio ser tratado mais adiante. 61 Sobre os cristos-novos em Minas, ver: FERNANDES, Neusa. A Inquisio em Minas Gerais no sculo XVIII. Rio de Janeiro: Eduerj, 2000; SALVADOR, Jos Gonalves. Os cristos-novos em Minas Gerais durante o ciclo do ouro. So Paulo: Pioneira, 1992. 62 IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22. Agradeo a Bruno Feitler por ter me cedido gentilmente a transcrio do registro das correspondncias deste livro.60

30 onde era morador sobre a portada da Igreja da parte de dentro. Embora no tenha sido explicitado o destinatrio da diligncia, tudo indica que ela fora enviada a Manuel Freire Batalha.63 Em setembro de 1732 encontramos outra correspondncia referente a Minas, desta vez especificando que era destinada ao Comissrio das Minas Gerais ou alguma pessoa de confiana. Na diligncia havia trs mandados de priso, com seqestro de bens, referentes a Manoel Gomes de Carvalho, Manoel de Matos Dias e Manoel da Costa Ribeiro. Alm disso, trazia o retrato de Diogo Correa do Vale, relaxado pela Inquisio, para que fosse colocado na Igreja principal das Minas de Ouro Preto em cima da porta da parte de dentro. Junto da comisso, iam tambm os interrogatrios da habilitao de Joo Moreira de Carvalho ao cargo de Familiar do Santo Ofcio.64 muito provvel que Batalha tenha sido o responsvel por essas diligncias, j que era o nico Comissrio residente em Vila Rica naquele momento. Em 30 de outubro de 1733, uma outra correspondncia com destino s Minas foi registrada, ficando agora explcito que o destinatrio era o Comissrio Manuel Freire Batalha. Nesta, eram remetidos 10 mandados de priso, alm de comisso para ratificar testemunhas do sumrio que tinha sido enviado por aquele Comissrio ao Tribunal de Lisboa contra Joo de Moraes Leito, acusado de ter confessado sem ordens. Novamente, eram enviadas diligncias tocantes a habilitaes de Familiares.65 Em resposta a esta comisso, Batalha escreveu Inquisio, no ano seguinte, uma longa carta de 8 flios, na qual oferece um panorama geral da ao inquisitorial nas Minas at aquele momento, terras onde soava de mui longe a voz do Santo Ofcio.66 Alm da carta de seu punho, o Comissrio remeteu em anexo uma lista elaborada pelo tesoureiro do Fisco Real, contendo o nome de 16 rus das Minas, quase todos cristos-novos, que haviam sido presos e tiveram seus bens63 64

IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 29v. IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 41. 65 IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 69v. 66 Todas as informaes referentes a esta carta a partir das quais passamos a falar, em: IANTT, CGSO, M. 4, doc. 12.

31 confiscados, cujo valor lquido total somava 21:892$775 (21 contos, 892 mil e 775 ris), uma verdadeira fortuna. Na referida carta, alm de tratar de problemas relacionados ao Juzo do Fisco e aos Familiares do Santo Ofcio principais temas da correspondncia e que sero por ns abordados em tpicos especficos , o Comissrio dava conta de prises ordenadas pela Inquisio e rus a serem enviados ao Santo Ofcio, como, por exemplo, Ana do Vale, Helena do Vale e Joo de Morais Leito. Em um dos inmeros pargrafos, o Comissrio especificamente reclamava de sua baixa remunerao diante dos altos custos dos mantimentos e vida nas Minas, argumentando a respeito:s por exemplo (por no irmos mais longe; pois no o estamos ainda da quaresma) basta dizer a V Em.a que sendo os regalos dela um pouco de bacalhau, que mais ofende o olfato, do que lisonjeia o paladar custam tanto duas libras s dele, como pode custar uma arroba da mais singular da nossa Corte, um frasco de azeite dezoito tostes, um de vinagre o mesmo, um de vinho outro tanto, um alqueire de milho doze, ou quinze tostes, quando barato, que custa seis vintns dentro em Lisboa, um de farinha, que o po comum, dezoito e vinte e mais, um po como o de dez[r] do Reino oito vintns, umas casas, e no das de melhores cmodos duas, trs e quatro moedas cada ms (...)

Depois da reclamao, o Comissrio informava aos inquisidores sobre os seus esforos para executar os vrios mandados da Inquisio que paravam em suas mos. Sobre isso, ele dizia: estou conservando correspondncias por todos estes sertes com as pessoas em que considero inteligncia para qualquer emprego. Uma delas era o superintendente das Minas Novas, em cujo local se encontravam alguns refugiados da Inquisio. Alm do superintendente, Batalha informou que mantinha correspondncia com os Goiazes, para onde alguns acusados haviam se refugiado. Em sua carta, Batalha relatava aos inquisidores sobre a dificuldade de se cumprirem todas as diligncias devido disperso dos rus pelas Minas,

32 afirmando que outros se acham mortos e outros to penetrados em os sertes que quase impraticvel dar lhe alcance. Ao final da carta, o Comissrio tocou no assunto sobre a via pela qual as correspondncias e notcias sobre a Inquisio chegavam capitania mineradora. Ele pedia ao Tribunal que as cartas e mandados de priso passassem a ser enviados nas bolsas da Secretaria de Estado com os pregos de El Rei, que vm para o governador das Minas, porque estes os trazem de fora da barra os capites do Rio, que j tem prprio a espera e so os primeiros que partem. O argumento para que as correspondncias passassem a vir por tal via era que, do contrrio, chegavam s Minas 10 ou 12 dias depois de chegarem as primeiras cartas vindas na frota recm aportada no Rio de Janeiro. Estas, que chegavam primeiro, traziam as listas e relatos dos autos de f ou notcias, que pem de acordo aos cmplices para se retirarem. Chegando, ento, as notcias da possibilidade da perseguio que o Santo Ofcio lhes movia, os rus e acusados tinham mais tempo para fugir, j que as cartas da Inquisio ao Comissrio no eram as primeiras a chegarem s Minas. Foi o que aconteceu com o denunciado Joo Roiz Mesquita, que vindo do Serro um dia antes das cartas chegarem s mos de Manuel Freire Batalha, fugiu para o Rio de Janeiro com bastante cabedal, segundo informava o Comissrio. Apesar de termos localizado somente uma dessas cartas de natureza excepcional e de carter bastante pessoal, em que um Comissrio das Minas escreve ao Tribunal de Lisboa dando informaes muito diversificadas e amplas, a mesma faz referncia a diversas outras, indicando-nos que havia uma importante troca de correspondncias entre a Inquisio e seus agentes. Neste exemplo do Comissrio Batalha, notamos que do lado de l do Atlntico vinham mandados para se fazerem diligncias diversas, ordens de priso, inquritos, seqestros e confiscos de bens, listas de autos de f e retratos de rus para serem pendurados nas igrejas das freguesias dos condenados. Da parte de c, eram dadas informaes ao Tribunal sobre o paradeiro dos perseguidos, o apoio das autoridades locais na perseguio dos rus, a relao do

33 Santo Ofcio com outras instituies nas Minas, as deficincias da mquina inquisitorial que funcionava na regio e sugestes de melhoria. Dando continuidade ao rastreamento da comunicao do Comissrio Batalha com a Inquisio de Lisboa, aps quase uma dcada sem registro de correspondncias dirigidas s Minas, encontramos uma carta, datada de 16 de janeiro de 1742. Atravs dela eram remetidos dois mandados de priso contra o Pe. Antnio Alves Pegas e o Pe. Manoel Pinheiro de Oliveira, alm de uma comisso de investigao contra Joo de Lemos Saldanha, acusado de bigamia. Importante se notar aqui o aumento do nmero de diligncias tocantes habilitao de Familiares. Nesta referida correspondncia67

aparecem

11

habilitandos cujos processos estavam em andamento.

O ltimo registro de uma correspondncia dirigida a Batalha datado de 10 de abril de 1742, em que lhe foi enviada uma comisso contra a escrava Luzia, presa no aljube do Rio de Janeiro sob ordem do Ordinrio, para que se ratificassem as testemunhas que depuseram contra a mesma e a remetesse presa a Lisboa.68 Mas Manuel Freire Batalha no se limitava a executar as ordens que vinham de Lisboa. Nos Cadernos do Promotor, podemos encontrar vrias denncias que foram feitas a ele e encaminhadas ao Santo Ofcio, inclusive vindas do Tejuco69, freguesia distante de Vila Rica. Na referida documentao tambm encontramos tal Comissrio realizando sumrios e enviando-os para Portugal. Em 1742, por exemplo, foi responsvel por realizar o sumrio contra Domingos Morato, morador na freguesia de Catas Altas, Termo de Mariana, por ter feito desacatos a imagens.70 No sabemos a data exata at a qual Batalha atuou, mas o fato que em 1748 o Vigrio Flix Simes de Paiva j ocupava seu posto de Comissrio em Vila

67 68

IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 260. IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 267. 69 IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 295, fl. 40v. 70 IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 295, fl 245.

34 Rica. O novo Comissrio recebeu diversas comisses referentes habilitao de Familiares do Santo Ofcio e uma diligncia contra o Frei Francisco de Santana.71 At a criao do Bispado de Mariana, em 1745-48, Batalha foi, sem dvida, o Comissrio mais importante em Minas e para ele convergia muito do que ocorria na Capitania relacionado Inquisio. Como vimos, at denncias de freguesias longnquas lhes eram encaminhadas. Essa convergncia era tributria do fato deste Comissrio residir na sede administrativa da Capitania. As vias de comunicao, tanto para o que vinha do Reino, como para o que vinha das diversas freguesias de Minas concorriam para l. O lugar de entreposto administrativo e entreposto inquisitorial se confundiam em Vila Rica. Com a criao do Bispado de Mariana, os Comissrios residentes na sede episcopal ganharam mais importncia. Ocupando o lugar de cabea eclesistica da capitania, os assuntos relacionados Inquisio agora passaram a convergir para Mariana e com mais intensidade. Uma das evidncias de tal fato que Incio Correia de S, como vimos, desde quando foi Cnego do Cabido at quando ocupou o posto de Vigrio-Geral, foi o Comissrio para quem a Inquisio mais enviou correspondncias em Minas. Se nos registros das correspondncias notamos mais os Comissrios recebendo diligncias a serem feitas, nos Cadernos do Promotor podemos verific-los atuando sobretudo nas denncias. Nesta documentao, podemos conferir com mais clareza o grau de envolvimento da populao das Minas com a mquina inquisitorial e a intermediao exercida pelos Comissrios. Quando as pessoas, por diversos motivos, sentiam a necessidade de fazerem denncias ao Tribunal do Santo Ofcio, recorriam aos Comissrios. Esta foi a via mais utilizada por aqueles que foram Inquisio com o objetivo de delatar. Dessa forma, por exemplo, procedeu Luis da Costa Atade em 1770, quando denunciou Ana Jorge por cometer desacatos com imagens catlicas ao Comissrio de Mariana, Joo Roiz Cordeiro.72 Em 04 de abril de 1776, Rita de Souza, moradora em Nossa Senhora das Congonhas do Sabar, denunciou Jos,

71 72

IANTT, IL, Registro Geral do Expediente, Livro 22, fl. 380v. IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl. 234.

35 de nao nag, ao Comissrio da freguesia de Raposos, Nicolau Gomes Xavier, por estar envolvido em prticas supersticiosas com suspeitas de feitiaria.73 No era s para denunciar a terceiros que as pessoas procuravam os Comissrios, tambm o faziam com o intuito de se auto-denunciarem para descarga de suas conscincias. Assim fez Manoel Coelho de Souza, em 1772, morador na freguesia de Antnio Pereira, quando se denunciou ao Comissrio Joo Roiz Cordeiro, por ter procurado benzeduras. Outro que se auto-denunciou ao dito Comissrio foi Francisco, escravo Banguela, em 03 de maio de 1772.74 Em 1770, o Comissrio Joo Roiz Cordeiro tambm recebeu a auto-denncia da Crioula forra Catarina Maria de Oliveira, moradora na cidade de Mariana, por praticar supersties.75 Observando, ento, este aspecto das denncias realizadas

espontaneamente, os Comissrios foram o principal elo atravs do qual a populao dava respostas presena da Inquisio em Minas. Mas esses agentes inquisitoriais teriam tambm um papel central na complexa articulao ocorrida em Minas entre os mecanismos da Justia Eclesistica e o Tribunal de Lisboa. Este aspecto da atuao do Santo Oficio na capitania mineradora ser o tema do prximo tpico.

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IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl. 273. Ambos os casos em: IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl. 134. Muitos casos de auto denncia aos Comissrios podem ser encontrados nos Cadernos do Promotor, para alguns exemplos, ver, no livro 381, as fls. 132, 156, 219, 221, 324, 325, 384, 75 IANTT, IL, Cad. Promotor, Livro 318, fl. 230.

36 1.2 Justia Eclesistica e Inquisio em Minas

Na Amrica portuguesa, como vimos, antes mesmo dos Visitadores do Santo Ofcio percorrerem a Colnia, a Inquisio j contava com o apoio dos Bispos para aqui atuar. A colaborao entre as duas esferas, variando de acordo com o contexto76, iria perdurar durante todo o perodo colonial. Analisando, em geral, as Constituies Primeiras do Arcebispado da Bahia, de 1707 que no sculo XVIII regulou os principais aspectos do funcionamento da Igreja , e, em particular, os pargrafos referentes jurisdio inquisitorial, notamos que cabia esfera eclesistica encaminhar os casos suspeitos de heresia para o Tribunal da Inquisio, se deparasse com eles em sua jurisdio. Os casos passveis de serem enviados ao Santo Ofcio eram os seguintes: casados que recebessem Ordens Sacras, e os que, depois de ordenados, se casassem (Livro I, Ttulo LXIX, 297); feitiarias, sortilgios e supersties que envolverem manifesta heresia ou apostasia na f (Livro V, Tit. V,903); blasfmias consideradas herticas (Livro V, Tit. II); quem disser missa no sendo sacerdote e sacerdote que celebrando no consagrar sobre coisas acomodadas para se fazerem malefcios e sacrilgios (Liv. II, Tt. X). Se tais casos delitos s eram dirigidos ao Tribunal do Santo Ofcio aps serem julgados pela justia eclesistica e considerados heresias, havia outros que iam direto para a Inquisio: Judasmo (Liv. V, Tit. I), Bigamia (Livro I, Ttulo LXIX, 297), Solicitao e Sodomia (Liv. 5, Tt. XVI, 959). Constituies:Portanto ordenamos e mandamos que se houver alguma pessoa to infeliz e carecida do lume da razo natural e esquecida de sua salvao (o que Deus no permita) que ouse cometer um crime que parece feio at ao mesmo Demnio, vindo notcia do nosso Provisor ou Vigrio Geral, logo com toda a diligncia e segredo se informem, perguntando algumas testemunhas exatamente; e o mesmo faro os nossos Visitadores, e achando provado quanto baste, prendam os

Sobre este ltimo diziam as

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Bruno Feitler ressalta que foi na Bahia, at finais do sculo