dissert - joao batista ferreira

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  • Departamento de Psicologia Social e do Trabalho Grupo de Estudos e Pesquisas em Sade e Trabalho - GEPSAT

    Trabalho, sofrimento e patologias sociais

    Estudo com trabalhadores bancrios e anistiados polticos de uma empresa pblica

    Joo Batista Ferreira

    Orientadora: Profa. Dra. Ana Magnlia Mendes

    Braslia (DF), abril de 2007

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    Departamento de Psicologia Social e do Trabalho Grupo de Estudos e Pesquisas em Sade e Trabalho - GEPSAT

    Trabalho, sofrimento e patologias sociais

    Estudo com trabalhadores bancrios e anistiados polticos de uma empresa pblica

    Joo Batista Ferreira

    Dissertao apresentada ao Instituto de Psicologia da Universidade de Braslia, como requisito parcial obteno do ttu-lo de Mestre em Psicologia.

    Orientadora: Profa. Dra. Ana Magnlia Mendes

    Braslia (DF), abril de 2007

  • 3

    Banca Examinadora

    Professora Doutora Ana Magnlia Mendes

    ____________________________________________ Presidente da Banca

    Instituto de Psicologia Universidade de Braslia

    Professor Doutor Odair Furtado

    ____________________________________________ Examinador

    Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo

    Professor Doutor Francisco Moacir de Melo Catunda Martins

    ____________________________________________ Examinador

    Instituto de Psicologia Universidade de Braslia

    Professora Doutora Maria Isabel Tafuri

    ____________________________________________ Suplente

    Instituto de Psicologia Universidade de Braslia

  • 4

    No a violncia de poucos que me assusta, mas o silncio de muitos

    Martin Luther King

  • 5

    Para Mnica,

    segundo sol, cano de fascnios e espantos.

  • 6

    Este trabalho dedicado aos participantes desta pesquisa, aos que sofrem as conseqncias das patologias sociais,

    s pessoas que orientam suas vidas contra todas as formas de desrespeito e humilhaes.

  • 7

    Agradecimentos

    professora Ana Magnlia por suas orientaes, confiana, incentivo,

    competncia, boas conversas e amizade.

    Aos professores Odair, Francisco e Isabel que gentilmente aceitaram parti-

    cipar da banca examinadora desse trabalho.

    Ao professor Mrio Csar Ferreira e Gardnia Abbad pelos ensinamentos,

    bom-humor e agradvel convivncia.

    Ao Lucas, Virgnia e Jos Carlos, famlia prxima e distante que mesmo na

    ausncia se fez presente.

    Dona Nan, Dudu, Mariana e Caetano, nova famlia, renovadas alegrias.

    Aos amigos, amigas e colegas de curso e do Grupo de Estudos Grupo de

    Estudos e Pesquisa em Sade e Trabalho GEPSAT: Cleide, Adriana, Leonar-

    do, Vitor, Emlio, Beth, Leda, Luana, Hozana, Valeska, Rogrio, Carol, Vincius,

    Simone, Srgio, Luciane, Paloma, Rodrigo, Geovana, Evanise, Cleverson, Le-

    andro, Tnia, Nathlia, Ldia, Carla boas e carinhosas lembranas das pala-

    vras e presenas que marcaram essa intensa caminhada de questionamentos,

    compreenses, descobertas e sentidos do admirvel, enigmtico, paradoxal e

    complexo mundo novo em que vivemos.

    Aos amigos, amigas e colegas de trabalho: Walter, Luciano, Carmem, Jo-

    o Carmo, Lizete, Marlos, Rauber, ngela, Marcelo, Mrio, Carlos Alberto, Pa-

    trcia, Nbia, Laila, Lisiane, Ndia, Ana Lourdes, Rubens, Paulo Csar, Carlos

    Roberto, Rosa, Barbosa, Mariana, Wiliam, Ricardo, Daniela, Rambo, Tadeu,

  • 8

    Everton, Euclides pelo incentivo, apoio e a convivncia, fundamentais para a

    realizao desse per-curso.

    Aos novos amigos e amigas Naila, Sheila, Alexandre, Dom e Ieda que a-

    companharam parte dessa caminhada.

    Ao Cludio e Guarabira e demais integrantes da Associao Nacional dos

    Anistiados Polticos da ECT pela participao e colaborao nesta pesquisa.

    Miriam e Pacheco do Sindicato dos Bancrios do Distrito Federal pela

    ateno e colaborao.

    Adriane Reis de Arajo e Lis Soboll por seus comentrios atenciosos,

    esclarecimentos e ricas interlocues.

    Aos alunos da disciplina Tpicos Especiais em Psicologia pelo exerccio de

    um belo espao de discusso e aprendizagem.

    Snia do Instituto de Psicologia pelo apoio simptico e as flores na hora

    certa.

  • 9

    Resumo

    Esta pesquisa investigou a influncia da organizao do trabalho nas vivncias de sofrimento, estratgias de mediao e as patologias sociais de sobrecarga, violncia e servido voluntria, em bancrios e trabalhadores anistiados polti-cos de uma empresa pblica de comunicao. O referencial terico a psicodi-nmica do trabalho e o enfoque psicossocial. Pretendemos caracterizar a orga-nizao do trabalho; identificar os sentimentos e estratgias defensivas utiliza-das; e caracterizar a dinmica da transformao das estratgias defensivas nas patologias sociais da sobrecarga no trabalho, violncia e servido voluntria. A metodologia utilizou entrevistas abertas e semi-estruturadas com quatro traba-lhadores voluntrios de cada categoria profissional, totalizando oito participan-tes. Foram realizadas entrevistas individuais com os bancrios e uma entrevista coletiva com os trabalhadores anistiados polticos. Os anistiados se reportaram s situaes vivenciadas na dcada de 80, quando a empresa de comunicao na qual trabalhavam era "comandada" por militares com um estilo de gesto percebido pelos entrevistados como burocrtico e autoritrio, mas que j incor-porava prticas recentes do modelo capitalista, como a terceirizao. Nessa dcada, os trabalhadores anistiados foram discriminados e demitidos, tendo si-do posteriormente reintegrados ao trabalho e indenizados, por via judicial. Os relatos dos bancrios se referiram s situaes vivenciadas nos ltimos cinco anos. A empresa dos bancrios entrevistados est inserida em um mercado competitivo e passou por sucessivas reestruturaes produtivas, especialmente a partir de 1980. As entrevistas foram gravadas e submetidas anlise de con-tedo temtica. Os resultados sinalizaram que a organizao do trabalho para os dois grupos, de modo geral, foi caracterizada por: presso para atingir me-tas, sobrecarga de trabalho, segregao de funcionrios, humilhaes, discri-minaes e violncias psicolgicas. Essas situaes geravam sentimentos que configuravam intenso sofrimento, mediado por estratgias defensivas que ten-diam a ser coletivas para os trabalhadores anistiados e individuais para os ban-crios. Diante das intensas vivncias de sofrimento, no entanto, as estratgias utilizadas nos dois grupos em algumas situaes entraram em processo de e-xausto. Esse processo resultou em adoecimentos psicossomticos e adoeci-mentos das situaes de trabalho. Estes ltimos aqui identificados como pato-logias sociais da sobrecarga, violncia e servido voluntria. Com base na dis-cusso dos resultados, so propostos os conceitos de estratgias perversas da organizao do trabalho e zelo perverso. O estudo possibilitou a caracterizao da organizao do trabalho, sentimentos, estratgias defensivas e a configura-o da dinmica da transformao dessas estratgias em patologias sociais. A compreenso dessas patologias sociais recente e est em fase de desenvol-vimento. Isso acentua os desafios deste trabalho na tentativa de contribuir para a elaborao e amadurecimento desses conceitos. Palavras-chave: psicodinmica do trabalho; patologias sociais; sofrimento no trabalho; sobrecarga de trabalho; violncia psicolgica; servido voluntria.

  • 10

    Abstract

    This research investigated the influence of work organization in experiencing sufferings, mediation strategies and the social pathologies of work overload, vio-lence and voluntary servitude in bank workers and political amnestied workers from a public communication company. The theoretical reference is the psycho-dynamic of work and the psychosocial approach. We intend to characterize the work organization, identify the feelings and the defensive strategies used, and characterize the dynamic of the transformation of defensive strategies into the social pathologies of work overload, violence and voluntary servitude. The methodology used open and semi-organized interviews with four volunteer workers from each professional category, making up eight participants. Individ-ual interviews were made with bank workers and a group interview with the po-litical amnestied ones. The political amnestied workers reported the experiences they had in the 80s when the communication company they worked for was then run by the military with a management style seen by them as bureaucratic and authoritarian, but one which already had modern capitalistic characteristics as outsourcing. In that decade, the political amnestied workers were discriminated and fired. These workers were hired back afterward and compensated by legal means. The reports from the bank workers mentioned the experiences theyve had in the last five years. The company they belong to is in a competitive market which has been influenced by a series of productive reorganizations, especially from 1980 on. The interviews were taped and sent to analysis of theme content. The results showed that the work organization for both groups was in general characterized by: pressure to achieve goals, work overload, workers segrega-tion, humiliation, discrimination and psychological violence. These situations brought about feelings that showed intense suffering, mediated by defensive strategies which tended to be collective for political amnestied workers and indi-vidual for bank workers. However, due to intense experiences of suffering, the strategies used in both groups started to wear off. This process resulted in psy-chosomatic illnesses and illnesses caused by working conditions. The ones caused by working conditions are identified as social pathologies of overload, violence and voluntary servitude. Based on the discussion of the results, con-cepts of perverse strategies of work organization and perverse zeal are pro-posed. The study made the characterization of work organization possible as well as feelings, defensive strategies and the configuration of the dynamic of the transformation of these ideas into social pathologies. The understanding of these social pathologies is recent and under a development process. It empha-sizes the challenges of this work in the attempt of contributing to the formulation and maturation of these concepts. Key words: psychodynamic of work; social pathologies; suffering at work; work overload; psychological violence; voluntary servitude.

  • 11

    Sumrio

    Introduo ................................................................................................................... 14

    1. A insustentvel leveza do ser-trabalhador na ps-modernidade ...................... 23

    Tudo o que slido desmancha no ar...................................................................... 26

    Patologias sociais do admirvel mundo novo ........................................................... 28

    Violncia no trabalho como patologia social ............................................................. 36

    Assdio moral: patologia da solido e silncio ......................................................... 42

    Conseqncias da violncia psicolgica e assdio moral ........................................ 48

    2. Admirvel mundo novo do trabalho: olhar da psicodinmica ........................... 51

    Sentir, pensar e inventar no limite do impossvel...................................................... 53

    Entre a sabedoria e os riscos de subtrao do desejo ............................................. 61

    A reinveno da vida no trabalho.............................................................................. 66

    Retratos do trabalho: estudos empricos .................................................................. 71

    3. Mapas e bssolas quadro terico...................................................................... 79

    Objetivos e interrogaes ......................................................................................... 84

    4. Caminhos da experincia metodologia ............................................................. 86

    Contexto de trabalho dos anistiados......................................................................... 88

    Contexto de trabalho dos bancrios ......................................................................... 91

    Narradores ................................................................................................................ 94

    Narrao das histrias .............................................................................................. 95

    Anlise das histrias ................................................................................................. 96

    5. Espao da palavra - resultados............................................................................. 98

    Resultados das entrevistas com os trabalhadores anistiados .................................. 98

    Resultados das entrevistas com os bancrios........................................................ 106

    Comparao dos resultados de trabalhadores anistiados e bancrios .................. 113

  • 12

    6. Espao de discusso da palavra ........................................................................ 116

    Organizao do trabalho dos anistiados................................................................. 117

    Organizao do trabalho dos bancrios ................................................................. 122

    Sentimentos e estratgias dos anistiados............................................................... 126

    Sentimentos e estratgias dos bancrios ............................................................... 129

    Transformao das defesas em patologias sociais ................................................ 134

    Articulao das patologias sociais .......................................................................... 139

    Estratgias perversas da organizao do trabalho e zelo perverso ....................... 140

    7. O resto silncio?................................................................................................ 144

    Referncias ............................................................................................................... 151

  • 13

    Primeira Cena

    "Em 85, na primeira greve, eu era do processamento de dados. O pessoal des-

    sa rea comeou a fazer um movimento dentro do processamento de dados,

    porque a situao foi ficando difcil. A gente trabalhava por tarefa. A gente tinha

    que dar 50.000 toques por turno. Se no desse a produo, voc tinha que tra-

    balhar no sbado para dar a produo do sbado e mais o que ficava faltando

    para fechar a produo toda. Ns trabalhvamos no turno da madrugada. Para

    voc mudar de turno, voc tinha que dar a maior produo. 'Quem ganhou este

    ms foi fulano: vai para a manh ou vai para tarde'. Por isso, muitas pessoas

    daquela poca esto aposentadas como eu, aos 40 anos. Eles estipulavam

    uma produo altssima e a gente dava. Eles aumentavam e a gente dava. E-

    les aumentavam mais e foram aumentando. Quando eu entrei no tinha produ-

    o. Foram aumentando at que eles colocavam para 70 mil toques. Eu no

    tinha mais condies de trabalhar. As cadeiras eram ruins aquelas cadeiras

    de plstico, de bar, muito desconfortveis. Tinha gente que segurava o teclado

    assim, no colo. E eles no davam folga para a pessoa. Tinha uma garota que

    hoje est praticamente aleijada. Isso verdade, no brincadeira... Ela segu-

    rava este dedo aqui... e eles no dispensavam esta moa. At que foi para o

    INSS. Ela ficou to mal que teve um distrbio nervoso... Ela estava grvida.

    Sentiu um pulo aqui na barriga. Comeou a chorar. E depois... ela perdeu o

    beb... Ela perdeu o beb... So situaes da poca de 85" (trabalhadora anis-

    tiada poltica).

  • 14

    Introduo

    Para se chegar mudez, que grande esforo da voz.

    Clarice Lispector

    O resto silncio. Palavras finais de Hamlet que deixaram a pena de

    Shakespeare e se inscreveram na posteridade. Palavras que sinalizam uma

    resignada ou vagamente melanclica compreenso de finitude e antecipam a

    proximidade da ausncia de sons e movimentos que, de repente, se calam pa-

    ra sempre. Em Hamlet, a referncia ao silncio anuncia o fechamento da corti-

    na que, ao cobrir a cena final da pea de teatro, desvela a face eternamente

    vazia e inconsciente da morte.

    A resignao e a aceitao das perdas que a vida nos impe fazem parte

    dos caminhos incontornveis da experincia humana. Resignao que exerci-

    tamos, ao longo da vida de formas variadas. Ao renunciarmos aos onipotentes

    desejos infantis e ao prazer permanente, ingressamos no interminvel jogo de

    mediaes entre nossos desejos e os desejos dos outros, o que torna a vida

    em sociedade possvel. Essas renncias configuram um preo do processo de

    socializao, denominado por Freud (1930/1969) de mal-estar na civilizao.

    As culturas e as leis das diversas sociedades, em ltima instncia, encar-

    nam formas variadas de represso dos comportamentos considerados indese-

    jveis. A conteno do desejo pode resultar em complexos aparatos represso-

    res de dominao, manuteno de privilgios e poder que podem levar ao iso-

    lamento, excluso e at destruio de quem seja percebido como ameaa.

  • 15

    Como nos regimes totalitrios e com roupagem mais sutil, sofisticada e multi-

    facetada nas modernas sociedades capitalistas de consumo.

    Mais trgico que o silncio real e/ou metafrico expresso na fala de Ha-

    mlet, o silncio em vida instaurado na dominao simblica que impede a

    manifestao da palavra, do dilogo, da expresso da subjetividade e da articu-

    lao do coletivo. O silncio produzido, na viso de Kundera (1993), por "toda

    forma de opresso; a intrincada rede de constries pblicas e privadas que

    acaba por aprisionar cada existncia em suas malhas cada vez mais cerradas".

    Dominao simblica traduzida por Mrio Quintana em Rua dos Cataven-

    tos:

    Da primeira vez em que me assassinaram, Perdi um jeito de sorrir que eu tinha. Depois, a cada vez que me mataram, Foram levando qualquer coisa minha.

    Quando olhamos ao redor, para o tempo que nos foi dado viver, muitas

    vezes nos deparamos com paisagens humanas imersas em silncio. Em con-

    traponto aos exuberantes avanos tecnolgicos e da gesto de processos, as

    paisagens da ps-modernidade esto impregnadas de situaes que levam ao

    sofrimento, ao adoecimento e at morte das pessoas.

    Comportamentos adoecidos. Reflexos de uma dinmica social que coloca

    a razo econmica acima da razo poltica, que exacerba e ao mesmo tempo

    dissimula a lgica dos fins que justificam os meios, do predomnio das aes

    de curto prazo, das identidades constitudas via capacidade de consumo, da

    banalizao da injustia social.

  • 16

    Dinmica que leva precarizao do trabalho e seus efeitos malficos: in-

    tensificao do sofrimento subjetivo, neutralizao da mobilizao coletiva, es-

    tratgias defensivas do silncio, da cegueira e da surdez, ao individualismo e

    ao adoecimento.

    As estruturas psquicas individuais no so mais frgeis do que antiga-

    mente. A eroso da mobilizao coletiva contra as adversidades que constitui

    uma perda de recursos para a sade. Todas as organizaes coletivas, inclusi-

    ve as sindicais, esto em crise. As formas clssicas de solidariedade esto em

    processo de desestruturao. Diante dos constrangimentos no trabalho, todos

    se encontram cada dia mais sozinhos. H um crescimento desmesurado das

    patologias decorrentes das perseguies no trabalho e, diante das persegui-

    es, a solidariedade entra em declnio. Todas as novas patologias relaciona-

    das ao trabalho so, hoje, patologias da solido, entre elas o assdio moral

    (Dejours, 2004a).

    As tendncias deste cenrio para a sade mental das pessoas, principal-

    mente nos ambientes de trabalho, so apontadas no estudo da Organizao

    Mundial de Sade (OMS) e Organizao Internacional do Trabalho (OIT). As

    perspectivas para os prximos vinte anos so pessimistas quanto ao impacto

    das novas polticas de gesto da organizao do trabalho na sade mental. A

    pesquisa sinaliza o predomnio das depresses, estresse, angstias e outros

    danos psquicos (Blanch, 2005).

    O presente trabalho surgiu de uma questo inserida nesse contexto de

    precarizao da sade no trabalho. Ao conversar com uma organizao de tra-

    balhadores, identificamos a necessidade de avanar na compreenso das situ-

  • 17

    aes que resultam em excesso de trabalho, violncias e uma silenciosa resig-

    nao diante dessas situaes que se configuram como patologias sociais.

    A abordagem escolhida para o estudo foi a psicodinmica do trabalho que

    se mostra adequada para a investigao das patologias sociais em estudo,

    pois privilegia a anlise do trabalho com base no sofrimento dele decorrente e

    do modo como ele mediado, podendo produzir assim comportamentos pato-

    lgicos. Amplia, desta forma, as possibilidades de compreenso da organiza-

    o do trabalho, especialmente diante da tendncia de muitas empresas de re-

    duzir as situaes de violncia e assdio, por exemplo, a questes meramente

    individuais, deixando de consider-las patologias em funo da legitimao da-

    da pelas organizaes como algo natural e necessrio para garantir a produ-

    o. Nesse sentido, os conceitos desenvolvidos pela psicodinmica do trabalho

    contribuem para a compreenso das patologias sociais decorrentes do mundo

    do trabalho.

    Na escolha do tema, nos orientamos pela premissa metodolgica da psi-

    codinmica do trabalho de que a demanda seja formulada pelos trabalhadores.

    Nessa perspectiva, falar e ser ouvido parece ser o modo mais poderoso de re-

    fletir sobre a prpria experincia. Somente a enunciao da experincia permi-

    te sua elaborao. A palavra faz nascer o que no existia antes de ser pronun-

    ciada (Dejours, 2004a).

    A partir disso e tendo em vista parcerias anteriores do Grupo de Estudos

    e Pesquisa em Sade e Trabalho (GEPSAT) do Instituto de Psicologia da Uni-

    versidade de Braslia, consultamos inicialmente o Sindicato dos Bancrios de

    Braslia para conhecer as demandas da categoria relacionadas sade. Identi-

  • 18

    ficamos um crescimento significativo nos ltimos anos de consultas e denn-

    cias a respeito de violncias psicolgicas e assdio moral.

    Considerando essa demanda, realizamos, no segundo semestre do ano

    de 2004, levantamento inicial de pesquisas sobre o assunto e verificamos que

    no Brasil este ainda era um tema pouco explorado. Naquele perodo ainda no

    identificamos nenhum estudo no pas acerca dessa temtica, que tomasse co-

    mo base a psicodinmica do trabalho. A partir dessa explorao inicial, decidi-

    mos realizar a pesquisa com a categoria dos bancrios.

    Posteriormente, o GEPSAT realizou levantamento em todos os sindicatos

    do Distrito Federal para mapear as ocorrncias de situaes de violncia no

    trabalho e assdio moral. O resultado mostrou que o Sindicato dos Bancrios

    apresentava a maior quantidade de denncias, o que reforou nossa escolha.

    Estabelecida a demanda e o problema de pesquisa, realizamos estudo pi-

    loto para investigar as situaes de violncia no trabalho, em parceria com a

    Associao de Anistiados Polticos da Empresa de Correios e Telgrafos

    ANAPECT, que se mostrou interessada em participar do estudo.

    Os trabalhadores vinculados a esta associao haviam sido demitidos por

    motivos polticos e obtiveram na justia, conforme dispositivo da Constituio

    de 1988, o direito de serem reintegrados e indenizaes pelas perdas referen-

    tes queles processos. Isso significava o reconhecimento das perseguies e

    injustias sofridas por motivao poltica.

    As narrativas dos anistiados neste trabalho se reportaram ao perodo de

    1980 a 1990, quando ocorreram as situaes que resultaram nas demisses e

    se iniciaram os processos de reintegrao dos trabalhadores, decorrentes das

    aes na justia.

  • 19

    As narrativas dos bancrios faziam referncia a situaes atuais ou recen-

    tes. As situaes relatadas por este grupo, vividas quase vinte anos depois, si-

    nalizavam algumas aproximaes com as histrias dos anistiados polticos, no

    que se refere s formas variadas de violncias no trabalho, sobrecarga no tra-

    balho, o receio de denunciar e uma resignao das pessoas diante das situa-

    es vivenciadas. Essas situaes, em conjunto, podem ser entendidas como

    patologias sociais, que incluem a violncia e outros comportamentos que sero

    tratados nesse trabalho, como a sobrecarga e a servido voluntria. Parte-se

    do pressuposto que o trabalho, ao gerar sofrimento, pode ser um provocador

    de patologias, caso esse sofrimento no seja mediado de modo bem sucedido.

    No caso, o sofrimento negado e minimizado pelas defesas, que podem evolu-

    ir para comportamentos patolgicos.

    Essas patologias sociais resultam do contnuo embate das pessoas com

    seus ambientes de trabalho. A impossibilidade de lidar com as adversidades e

    o sofrimento decorrentes da organizao do trabalho pode levar aneste-

    sia e insensibilidade ao prprio sofrimento e ao dos outros, processo que po-

    de se intensificar a ponto de ser compartilhado pelo grupo.

    Desta forma, o objetivo desta pesquisa consiste em analisar a influncia

    da organizao do trabalho nas vivncias de sofrimento, estratgias de media-

    o e suas patologias sociais (sobrecarga, violncia e servido voluntria) em

    trabalhadores anistiados polticos e bancrios de empresas situadas no Distrito

    Federal, com base no referencial terico da psicodinmica do trabalho.

    Diante do exposto, este estudo se orienta pelas seguintes questes de

    pesquisa:

  • 20

    a) Como se caracteriza a organizao do trabalho nos grupos pesquisa-

    dos?

    b) Quais so os sentimentos e as estratgias de defesa utilizadas na or-

    ganizao do trabalho dos entrevistados?

    c) Como se caracteriza a dinmica de transformao das estratgias de

    defesa nas patologias sociais da sobrecarga, violncia e servido vo-

    luntria?

    A escuta das narrativas foi realizada por meio de entrevistas semi-

    estruturadas e abertas fora do ambiente de trabalho. As histrias narradas fo-

    ram submetidas anlise categorial, com base no critrio de recorrncia dos

    temas.

    Este trabalho ser apresentado em sete captulos:

    O primeiro captulo se prope a uma contextualizao do admirvel mun-

    do novo do trabalho na ps-modernidade. Para isso utiliza como referncia a

    metfora da Insustentvel leveza do ser trabalhador, discute as patologias da

    modernidade a partir de Habermas e as patologias sociais da violncia e ass-

    dio moral.

    O segundo captulo apresenta o olhar da psicodinmica do trabalho sobre

    o admirvel mundo novo do trabalho, os principais conceitos e pesquisas com

    essa abordagem.

    No terceiro captulo so explicitadas as categorias de anlise utilizadas na

    pesquisa.

    O quarto captulo apresenta a metodologia utilizada, os participantes, os

    procedimentos utilizados, instrumentos e a forma de anlise dos dados.

  • 21

    No quinto captulo so expostos os resultados encontrados a partir da a-

    nlise qualitativa das entrevistas realizadas.

    O sexto captulo se refere discusso dos resultados encontrados, com

    base nas perguntas de pesquisa, objetivos e referencial terico.

    O stimo captulo apresenta as consideraes finais apontando as contri-

    buies, limites e sugestes de pesquisas.

    Espera-se que os resultados do estudo possam contribuir para o delinea-

    mento de intervenes voltadas para a promoo da sade na organizao do

    trabalho, tendo em vista que as patologias sociais investigadas podem resultar

    em srios prejuzos sade das pessoas no trabalho que se refletem de forma

    significativa na identidade dos trabalhadores, nas prprias organizaes e na

    sociedade.

  • 22

    Segunda Cena

    "Vivi uma situao conturbada. Eu vou citar o nome, no me importo, [fala o

    nome do gerente]. No me importo. Ainda penso em fazer uma denncia aber-

    ta. A ferida ainda no fechou. Vivi nesse ambiente traumtico. Cheguei aqui

    [fala o nome do setor da empresa] e os mnimos erros, qualquer coisinha boba

    que voc errasse, ele gritava com voc, chamava voc de burra, que no era

    possvel. Eu chorei muito! O engraado que as pessoas ao seu redor, em vez

    de te darem apoio, como eu tive o apoio do [nome do colega], te tratam como

    se voc tivesse errada. Elas... que j tinham sofrido a mesma coisa. S que

    no tinham coragem. Ficavam caladas e te olhavam, como se voc fosse erra-

    da. Se afastavam de voc e a ligavam pra sua casa pra fofocar: olha, eu pas-

    sei por isso tambm. Ento eu falava, a errada no sou eu. A princpio o senti-

    mento que voc tem que voc a errada e o outro que t certo. J tinham

    feito denncias anteriores. A eu disse que ia falar com o [chefe do chefe]. A

    ele: opa! Esse [chefe do chefe] ligou e um outro colega ouviu ele falando: ah,

    porque ela no faz nada certo! Queimou meu filme. Este chefe no mudou.

    No adiantou nada" (bancria).

  • 23

    1. A insustentvel leveza do ser-trabalhador na ps-modernidade

    Jogar com os sentimentos de insegurana e os medos resultantes se torna hoje o principal veculo de

    dominao poltica Zygmunt Bauman

    Alguns filmes so muito significativos. Em O Grande Ditador (1940), h

    uma cena de Chaplin brincando com o mundo que transforma em leveza a per-

    sonificao contempornea da banalidade do mal. Ali, no entanto, no estava

    um ditador, mas o gnio de Chaplin. Ditadores no tm graa. A cena ironiza a

    viso totalitria do mundo que, no seu exagero, pode ser entendida como ver-

    so revisitada do mito grego de Atlas livre do castigo eterno de carregar o

    mundo por tentar roubar o poder supremo dos deuses e capaz de alterar os

    movimentos da Terra de acordo com seus desejos.

    O filme foi lanado no mesmo ano da criao de Auschwitz. Lugar que, no

    seu prtico de entrada, em letras de ferro, anunciava com solenidade perversa:

    o trabalho liberta. Imagem brutal do que a conscincia capaz de fazer para

    justificar o horror. Brutalidade to avassaladora que para Adorno, de acordo

    com Abcassis (1999), depois de Auschwitz no h porque fazer poesia.

    Como puderam fazer aquilo? A pergunta reverbera at hoje.

  • 24

    Chaplin ridicularizou as ambies totalitrias1 uma das caractersticas

    do admirvel mundo novo2. Subliminarmente, utilizou como metfora a experi-

    ncia de peso e leveza, desde sempre presentes na nossa relao com o

    mundo. Metfora que retomaremos neste trabalho.

    Outra cena significativa a do documentrio The Corporation (2003), no

    qual um corretor da Bolsa de Nova Iorque, perguntado sobre seu primeiro pen-

    samento ao saber da exploso das torres gmeas, responde nitidamente exci-

    tado: o ouro vai subir muito!

    Por que aproximar estas cenas? Os filmes refletem regimes sociais e -

    pocas bem diferentes. O mundo se transformou bastante nestes 60 anos. Mas

    em que sentido?

    A realidade social parece confirmar os piores prognsticos: o admirvel mundo novo de Aldous Huxley parece se impor; ou, talvez o pior, confir-ma-se o imaginado por George Orwell em sua obra 1984. No necessari-amente atravs da imposio de um Estado Totalitrio, mas pelo absolu-tismo de mercado que controla todas as esferas da sociedade, impondo o pensamento nico e desenvolvendo formas de controle da privacidade, como por exemplo, os mecanismos de rastreamento e definidores de per-fis de usurios utilizados por empresas comerciais via Internet (Silva, 2004).

    Adorno (1986) percebeu na civilizao moderna o progresso regressivo,

    expresso utilizada para traduzir a natureza paradoxal de um progresso que

    carrega a semente da barbrie.

    As cenas dos dois filmes retratam a banalizao da indiferena, do sofri-

    mento e do mal. O Grande Ditador personifica um regime totalitrio. O corretor,

    1 O filme foi censurado no Brasil pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), no governo de Getlio Vargas, por ser considerado "comunista" e "desmoralizador das Foras Armadas". 2 O livro de Aldous Huxley, de 1932, profetiza uma sociedade totalitria e desumanizada com predomnio das tcnicas e do saber cientfico. "No admirvel mundo novo fictcio de Aldous Huxley, a estabilidade social sustentada pela estrati-ficao social e o condicionamento programado em laboratrios cada um no seu lugar e pelo uso de uma substn-cia, denominada Soma, garantia da solidez emocional e antdoto doena que acomete os crticos, aqueles que tei-mam em contestar o pensamento e a ordem absolutos". Silva (2004a).

  • 25

    um sujeitado agente de uma engrenagem central do capitalismo moderno. Am-

    bos funcionam na racionalidade de um pensamento nico a dominao de

    coraes e mentes.

    O capitalismo globalizante, que apelidamos Capital Total, herdeiro e in-

    dutor de uma viso totalitria do mundo, avessa interlocuo e que exclui

    quem no comunga das mesmas convices. Totalitarismo e Capital Total

    compartilham uma racionalidade da dominao que aqui chamaremos capitota-

    litarismo.

    A banalizao do mal uma das caractersticas marcantes do admirvel

    mundo novo (Dejours, 1999a). Banalizao viabilizada por um processo de ne-

    gao e racionalizao de pensamentos e sentimentos. Os sentimentos so

    negados para confortar e justificar conscincia atos que causam sofrimento

    podendo chegar ao extremo da morte. Desta forma, o que poderia ser um peso

    na conscincia transmutado em algo aparentemente leve.

    Quais as influncias deste cenrio para as pessoas no admirvel mundo

    novo do trabalho? Nosso percurso neste tema se vale, como referncia inicial,

    da metfora do peso-leveza.

    Os conceitos sero emprestados de A insustentvel leveza do ser (Kun-

    dera, 1993) e das reflexes de Calvino (1990, p. 19), acerca daquela obra:

    Muito dificilmente um romancista poder representar sua idia da leveza ilustrando-a com exemplos tirados da vida contempornea, sem conden-la a ser um objeto inalcanvel de uma busca sem fim. (...) O peso da vi-da, para Kundera, est em toda forma de opresso; a intrincada rede de constries pblicas e privadas acaba por aprisionar cada existncia em suas malhas cada vez mais cerradas.

    A partir desta perspectiva, consideramos que o peso da vida pode ser as-

  • 26

    sociado, por exemplo, a sofrimento, tristeza, adoecimento, desigualdade, injus-

    tia, humilhao, entre outros. A leveza pode ser relacionada com prazer, ale-

    gria, vivacidade, sade, felicidade e com os valores da modernidade liberda-

    de, igualdade, autonomia, subjetividade, justia, solidariedade.

    De acordo com Kundera (1993), Nietzsche associa o peso da existncia

    ao mito do eterno retorno, considerado por ele como o mais pesado dos far-

    dos. Para Kundera (1993, p. 11), no mundo do eterno retorno, cada gesto car-

    rega o peso de uma insustentvel leveza".

    Podemos dizer que o eterno retorno estabelece ressonncias com o mito

    de Ssifo, em sua vertente comumente associada s repeties sem sentido e

    alienadas, s existncias aprisionadas em ciclos imutveis.

    Os elementos at aqui reunidos nos oferecem boas pistas para refletirmos

    sobre as influncias da dimenso social no processo sade-adoecimento no

    trabalho. A procura da leveza na ps-modernidade estaria condenada a uma

    busca sem fim? A rede de constries pblicas e privadas aprisionaria cada

    existncia em malhas cada vez mais cerradas?

    Tudo o que slido desmancha no ar

    O que ps-modernidade? O tema demandaria consideraes e anlises

    extensas, comeando por distines entre modernidade e ps-modernidade, o

    que ultrapassa o objetivo deste estudo. O marco da ps-modernidade, conside-

    rado neste trabalho, situado por Jameson (2002, p. 27):

    Os ltimos anos tm sido marcados por um milenarismo invertido segundo o qual os prognsticos, catastrficos ou redencionistas a respeito do futu-ro foram substitudos por decretos sobre o fim disto ou daquilo (o fim da ideologia, da arte, ou das classes sociais; a "crise" do leninismo, da social-democracia, ou do Estado do bem-estar, etc.); em conjunto, possvel

  • 27

    que tudo isso configure o que se denomina, cada vez mais frequentemen-te, ps-modernismo. O argumento em favor de sua existncia apia-se na hiptese de uma quebra radical, ou coupure, cujas origens geralmente remontam ao fim dos anos 50 e comeo dos anos 60.

    A ps-modernidade, ressaltamos, est situada em um contexto mais am-

    plo de transformaes, iniciadas antes dos anos 50, o que nos remete ao pen-

    samento de Habermas. Ao discutir a temtica, Freitag (2003) resgata o pensa-

    mento do filsofo para compreender as estruturas e patologias das sociedades

    ps-modernas, o autor elaborou uma teoria a partir da leitura dos processos

    histricos dos ltimos trs sculos. A Teoria da Modernidade, por ele proposta,

    foi desenvolvida com base na anlise crtica da obra e recortes de diversos in-

    trpretes da modernidade. Isso possibilita uma compreenso da modernidade

    como resultado das transformaes societrias ocorridas nos sculos 18, 19 e

    20, associadas aos eventos surgidos na Europa, que se disseminaram para di-

    versos pases: a Reforma Protestante, o Iluminismo e a Revoluo Francesa.

    Habermas incluiu tambm no contexto da modernidade as sociedades de clas-

    se do capitalismo (liberal e tardio) e as sociedades de classe do socialismo de

    estado.

    As concepes muito diversas das sociedades de classe do socialismo de

    estado e o marxismo configuraram um contraponto ao capitalismo. De acordo

    com Santos (1999a), uma das narrativas centrais da modernidade no sculo 20

    foi a simetria antagnica da solidez do capitalismo e do marxismo e as estrat-

    gias de cada um deles para dissolver o outro no ar. Com a expresso tudo o

    que slido desmancha no ar, Marx e Engels trabalharam a imagem dinmica

    do carter revolucionrio das transformaes produzidas pela modernidade e

    pelo capitalismo nos diferentes setores da vida social. De acordo com o autor:

  • 28

    O mbito, o ritmo e a intensidade de tais transformaes abalaram modos de vida ancestrais, processos de regulao econmica, social e poltica tidas como naturais de to confirmadas histrica e vivencialmente de forma que a sociedade do sculo 19 parecia perder toda a sua solidez, evaporada, juntamente com seus fundamentos (Santos, 1999a, p. 23-24).

    A expresso Tudo o que slido desmancha no ar pode ser entendida

    como sntese da modernidade, pois no lugar da "coeso social fundada na mo-

    ral crist-medieval, dos espaos territoriais bem definidos, de uma compreen-

    so esttica e perene do tempo, a fora dos sentimentos e dos vnculos pesso-

    ais etc., a modernidade impe a insegurana das incertezas" (Silva, 2004).

    Encontramos aqui no paradoxal e plstico movimento de tudo o que

    slido desmancha no ar a utilizao dos conceitos de solidez (peso) e des-

    manchar no ar (leveza) para ilustrar a dinmica revolucionria das transforma-

    es modernas. Tambm apoiada nos conceitos de peso e leveza, mas utiliza-

    da em sentido mais concreto e dialeticamente inverso ao de Kundera.

    Retomando a breve exposio sobre a modernidade, ainda com Haber-

    mas, vemos que os subsistemas da economia e da poltica regulam as trocas

    com outros subsistemas sociais atravs do dinheiro e do poder. A conseqente

    monetarizao da fora de trabalho e a burocratizao da vida acarretam a

    destruio violenta das formas de interao tradicionais.

    Quais seriam as conseqncias disso para o modo de existir na ps-

    modernidade e para o mundo do trabalho?

    Patologias sociais do admirvel mundo novo

    O modelo produtivo da modernidade afeta significativamente o mundo do

    trabalho. Habermas denominou estes efeitos como patologias da modernidade,

    identificadas nos processos de dissociao e racionalizao (Freitag, 2003).

  • 29

    A dissociao refere-se percepo dos processos sociais da vida cotidi-

    ana desconectados do sistema produtivo. A economia e o poder assumem o

    carter de uma realidade naturalizada e regida por leis imutveis. As pessoas

    percebem como natural a submisso s leis do mercado e burocracia estatal,

    contra as quais nada h a fazer. Essa apatia refora as tendncias dissocia-

    o, permitindo que a economia e o Estado sejam controlados por uma mino-

    ria.

    A segunda patologia decorre da primeira. A racionalizao refere-se ao

    processo de transformao institucional decorrente de uma racionalidade ins-

    trumental. Com o fortalecimento do modelo de produo, impem-se aos pro-

    cessos sociais as "regras do jogo", cujo princpio fundamental o da eficcia

    como um fim em si mesmo, com um mnimo de custo e o mximo de benefcios

    para o poder institudo.

    De acordo com Dejours (1999a), Habermas tambm identificou uma ter-

    ceira patologia: patologia da comunicao referente s dificuldades e distor-

    es criadas nesse contexto para a enunciao e confronto das opinies que

    possam representar ameaas ao modelo vigente.

    A compreenso de Habermas, no entanto, na crtica de Antunes (2004),

    no inclui as transformaes mais recentes do mundo do trabalho: a vigncia

    do trabalho abstrato, a fetichizao do mundo das mercadorias e a crescente

    reificao da esfera comunicacional.

    O autor, de certa forma, nos leva a refletir sobre o alcance destas recen-

    tes transformaes, que poderiam at se configurar como novas patologias so-

    ciais.

    Com base nesta ponderao, nos propomos a identificar algumas carac-

  • 30

    tersticas da ps-modernidade que possam sinalizar a existncia destas novas

    patologias. Para isso, recorremos a autores que destacam aspectos desta di-

    nmica que amplificam as patologias anteriormente descritas.

    Ao final desta parte, destacaremos as patologias sociais que sero abor-

    dadas neste estudo: sobrecarga de trabalho, violncia e servido voluntria.

    Na mesma trilha de Habermas, Dejours (1999a) identifica a submisso do

    trabalho racionalidade instrumental e reflete acerca da origem e dos inmeros

    desdobramentos desta racionalidade no mundo do trabalho contemporneo.

    Especialmente a partir de 1980, vivenciamos transformaes qualitativas

    sem precedentes na histria. A razo econmica sobrepe-se razo poltica.

    A racionalidade instrumental propagada como nica sada para a ideologia da

    guerra econmica, que precisa ser vencida para garantir a sobrevivncia da

    nao e a liberdade, o que leva a pensar que a causa justa, que o fim justifica

    os meios.

    Exacerba-se, assim, a afirmao de um pensamento nico, evidenciada

    nas posies de Fukuyama3, que ganhou celebridade instantnea e chegou a

    ser incensado como guru espetacular do Capitalismo Total ao decretar o fim da

    histria.

    O pensamento nico no reconhece o diferente e, neste sentido, se apro-

    xima de uma viso totalitria.

    Para Calligaris (1991), os princpios subliminares de nossa sociedade so

    ditatoriais e totalitrios. Princpios exibidos como democrticos e voltados para

    3 O norte-americano Francis Fukuyama no artigo The end of history, de 1989, publicado na revista The national inte-rest, defendeu a tese de que a histria acabou. Todos os pases se juntariam ao redor do sistema poltico-econmico-democrtico neoliberal. O futuro da humanidade seria o caminho do pensamento nico neoliberal. Em 1992, Fukuyama lanou o livro The end of history and the last man, (no Brasil com o ttulo O fim da histria e o ltimo homem, Rocco, Rio de janeiro, 1992). Posteriormente em 1998, depois das crises econmicas dos anos 90 Fukuyama admitiu o engano em entrevista ao New York Times.

  • 31

    o interesse coletivo, mas que dissimulam o pensamento nico do capitotalita-

    rismo.

    As propagandas de liberdade e igualdade de direitos e oportunidades

    constantemente enaltecem a "avanada democracia capitalista". O acesso

    identidade, no entanto, s possvel para quem tem capacidade de consumo

    (Santos, 1999b e Alvim, 2006).

    Esta lgica produz diversas conseqncias. Os mtodos de gesto de

    forma mais ou menos explcita e com maior ou menor grau de sofisticao ou

    perversidade se contrapem s conquistas sociais e ao Direito do Trabalho.

    Brutalidades nas relaes trabalhistas so denunciadas com poucas conse-

    qncias.

    A manipulao da ameaa como estratgia gerencial, que se utiliza do

    medo e do sofrimento no ambiente de trabalho, um dos mais perversos e fre-

    qentes instrumentos na gesto das empresas. Ameaas de excluso geram

    medo da incompetncia, atenuam reaes de indignao diante da sobrecarga

    de trabalho, do sofrimento, adversidade, injustia que contribuem para a pre-

    carizao do emprego.

    Os acidentes de trabalho e as deficincias das organizaes tendem a ser

    atribudos primordialmente s pessoas. O sofrimento no trabalho ignorado,

    oculto atrs das vitrines do progresso. Em decorrncia, instaura-se uma passi-

    vidade coletiva ligada falta de alternativas (Dejours, 1999a). Passividade co-

    letiva que se manifesta numa espcie de silenciosa resignao e servido con-

    sentida.

    Estas prticas do forma s inmeras ideologias atreladas a um modelo

    produtivo que s se reconhece na lgica da dominao e da competitividade.

  • 32

    No filme The Corporation (2003) so explicitadas as prticas frias, calcu-

    listas e impessoais das organizaes modernas, submetidas e ao mesmo tem-

    po mentoras da racionalidade instrumental que leva negao das responsabi-

    lidades em relao aos sofrimentos e ao mal que causam aos outros.

    Em The Matrix (1999), o modelo produtivo dominante representado de

    forma metafrica. A Matrix "anloga ideologia no sentido ps-moderno, pa-

    ra estruturar o mundo, cria a prpria 'realidade' que nos rodeia em razo da

    nossa dependncia no s de regras, mas tambm da linguagem" (Felluga,

    2003, p. 90).

    Podemos ver nestes filmes, assim como em Blade Runner (1982) e Dog-

    ville (2003), verses ps-modernas das absurdas e pesadas alegorias kafkia-

    nas limitam a liberdade, produzem submisso lgica cega de um ambiente

    de controle, opresso burocrtica, alienao e servido voluntria.

    Essas ideologias refletem um cenrio maior marcado por turbulncias nas

    dimenses social, poltica e cultural que incidem sobre os pressupostos do con-

    trato social atual. H uma crescente fragmentao da sociedade, dividida em

    mltiplos apartheids, polarizada ao longo dos eixos econmicos, sociais, polti-

    cos e culturais. A luta pelo bem comum e suas definies alternativas perdem

    sentido. A vontade geral parece ter-se transformado em uma proposio ab-

    surda (Santos, 1999b).

    O autor destaca a sobrecarga simblica dos valores da modernidade li-

    berdade, igualdade, autonomia e subjetividade, justia, solidariedade que

    passam a ter significados cada vez mais distintos para pessoas ou grupos so-

    ciais diferentes, de modo que o excesso de sentido se transforma em paralisia

    e neutralizao. Essa turbulncia leva ao desaparecimento do tempo e espao

  • 33

    neutros, lineares e homogneos na vida cotidiana e nas relaes sociais, que

    se incorporam nossa percepo dos fenmenos, conflitos e relaes.

    Em conseqncia disso, cria-se estranhamento, desfamiliarizao, sur-

    presa, perplexidade, invisibilizao e silncio. A violncia urbana e seus deri-

    vados nas relaes pessoais e de trabalho seriam exemplos paradigmticos

    desta turbulncia de escalas que nos remetem a um estado de iminente e im-

    previsvel exploso dos conflitos.

    Estas questes se refletem diretamente na discusso do contrato social.

    Alcanamos o ponto crtico da crise da contratualizao moderna: a predomi-

    nncia dos processos de excluso sobre os de incluso.

    Configura-se assim uma crise designada por alguns como desmoderniza-

    o ou contramodernizao. O trabalho vai deixando de sustentar a cidadania

    e vice-versa, perde o papel de produto e produtor da cidadania e reduz-se a um

    "pesado fardo".

    Assim, o trabalho, apesar de estar cada vez mais presente na vida das

    pessoas, vai desaparecendo das referncias ticas que sustentam a autonomia

    e auto-estima dos trabalhadores (Santos, 1999b).

    Crise global tambm descrita por Heller (1999), que v a modernidade

    como grande possibilidade e, ao mesmo tempo, um grande nus, na medida

    em que dificulta a adaptao dos seres humanos que, com pouca clareza dos

    resultados das suas aes, so induzidos enfermidade moderna da deficin-

    cia de significado.

    Deficincia de significado que tambm podemos encontrar na anlise de

    Vandenberghe (2004). A ps-industrializao vista como indutora do desen-

    raizamento das instituies com empregos perenes e como espectro do dura-

  • 34

    douro e massivo desemprego estrutural. Diante deste cenrio, o pleno emprego

    seria possvel apenas em um processo de "brasilianizao" forada do Ociden-

    te4.

    Os elementos descritos at aqui podem ser entendidos como produtores

    das patologias do peso da modernidade e se propagam diretamente no mundo

    do trabalho. Influenciam modos de pensar e sentir, comportamentos, identida-

    des, a organizao do trabalho e poderiam se configurar como novas patologi-

    as, desenvolvidas no grande e muitas vezes invisvel caldo de cultura da

    matriz-pensamento-nico do capitotalistarismo: predominncia dos processos

    de excluso, deficincia de significado, sobrecarga simblica que leva parali-

    sia, passividade coletiva, acesso liberdade e identidade via capacidade de

    consumo, manipulao da ameaa, exacerbao dos fins que justificam os

    meios.

    Nesta perspectiva, Mendes (2007) identificou patologias sociais da sobre-

    carga no trabalho, violncia e servido voluntria no mundo do trabalho.

    Consideramos que, numa dialtica perversa e interminvel, tais patologias

    reforam os comportamentos que lhes deram origem, como as patologias da

    modernidade anteriormente descritas.

    Essas patologias sociais resultam do contnuo embate das pessoas com

    seus ambientes de trabalho. A impossibilidade de lidar com as adversidades e

    o sofrimento decorrentes da organizao do trabalho pode levar aneste-

    sia e insensibilidade ao prprio sofrimento e ao dos outros, processo que po-

    de se intensificar a ponto de ser compartilhado pelo grupo.

    4 O termo brasilianizao entendido aqui como a deteriorao dos nveis salariais, das garantias sociais e das condi-es de trabalho que, obviamente, se referem ao contexto social brasileiro.

  • 35

    A sobrecarga decorre de uma carga de trabalho alm da capacidade das

    pessoas. As ideologias da excelncia e do desempenho, fortalecidas no con-

    texto de precarizao do emprego, reforam esta patologia. A necessidade de

    reconhecimento pode se transformar numa busca patolgica por um reconhe-

    cimento que aplaque minimamente a sensao de desamparo diariamente re-

    forada para os trabalhadores.

    A servido voluntria tem origem na filosofia de La Botie (2001) e, na

    sua verso ps-moderna, relaciona-se s necessidades de emprego e de con-

    forto. Encontra terreno frtil nas organizaes do trabalho que acentuam a con-

    vivncia estratgica baseada em interesses para crescer na empresa, em fun-

    o da cultura do desempenho e no da solidariedade, confiana e coletivo de

    trabalho. As relaes so basicamente de conformismo e a pessoas escondem

    o sofrimento para no se tornarem dissonantes do contexto.

    A perverso nos laos sociais produz sujeitos aprisionados em compor-

    tamentos de se fazer instrumento e alienar o seu desejo na vontade do outro

    (Calligaris, 1991; Martins, 2005). Essa vontade do outro, na viso do nosso es-

    tudo personificada na organizao do trabalho que se configura, dessa forma,

    como reforadora da patologia social da servido voluntria.

    A violncia relaciona-se agressividade contra si mesmo, os outros e o

    patrimnio. As manifestaes destes atos podem ser encontradas no vanda-

    lismo, na sabotagem, no assdio moral e nas tentativas e/ou suicdio. Manifes-

    ta-se quando as relaes subjetivas com o trabalho se deterioram, o que torna

    o trabalho sem sentido. As relaes de solidariedade se diluem e o sofrimento

    se faz mais intenso. Ocorre diante de situaes de estresse e da insensibilida-

    de ao seu sofrimento e das demais pessoas. Resulta da dominao social no

  • 36

    trabalho que pode levar solido, abandono e desolao.

    Estes elementos da ps-modernidade desenham um cenrio de influn-

    cias significativas para a constituio da identidade e, por conseqncia, da

    sade mental das pessoas no trabalho. Os efeitos deste cenrio da moderni-

    dade sobre a sade s recentemente comearam a ser pesquisados (Ferreira e

    Mendes, 2003).

    O cenrio futuro no se mostra favorvel. Estudos realizados pela Orga-

    nizao Internacional do Trabalho (OIT) e a Organizao Mundial de Sade

    (OMS) mostram que as perspectivas para os prximos vinte anos so pessi-

    mistas quanto ao impacto das novas polticas de gesto da organizao do tra-

    balho na sade mental dos trabalhadores. As pesquisas sinalizam o predom-

    nio das depresses, estresse, angstias e outros danos psquicos (Blanch,

    2005).

    A seguir ampliamos a caracterizao da violncia e do assdio moral no

    trabalho, tendo em vista que a demanda para este estudo enfatizou estas pato-

    logias sociais.

    Violncia no trabalho como patologia social

    Ar irrespirvel, a violncia institui um princpio de crueldade, lanando su-as vtimas no mais completo desamparo. Penetra nos poros. Produz ante-paros. Muitas vezes no h o que dizer, no h o que pensar, no h o que imaginar. Resta um silncio inquietante (Sousa e Tessler, 2004).

    A violncia no trabalho pode ser caracterizada por todas as formas de

    comportamento agressivo, abusivo que possam causar dano fsico, psicolgico

    ou desconforto em suas vtimas, sejam estas alvos intencionais ou envolvidos

    impessoais ou incidentais (OIT, 2003).

  • 37

    A violncia no trabalho est muito alm das agresses fsicas. A Organi-

    zao Internacional do Trabalho (OIT, 2003), com base em estudo realizado

    em 36 pases, concluiu que a agresso psicolgica - entendida como intimida-

    o e perseguio sem contato fsico - a forma mais grave de violncia. A

    violncia no ambiente de trabalho tem aumentado no mundo. Argentina, Cana-

    d, Frana, Inglaterra e Romnia so os pases com mais registros. O risco

    maior para professores, no trabalho social, na enfermagem, nos bancos e no

    comrcio.

    Quais so as manifestaes da violncia no trabalho? De acordo com re-

    lao elaborada por Chappell & Di Martinno (2000), em trabalho da OIT, a vio-

    lncia no trabalho se manifesta nos seguintes atos: agresso fsica, interfern-

    cia nos trabalhos, ameaa, intimidao, assdio moral (incluindo sexual ou ra-

    cial), mensagem agressiva, ofensa, comportamento hostil, isolamento, perse-

    guio por grupos (bullying), estupro, extorso, postura agressiva, gesto rude,

    provocao (mobbing), grito, roubo, homicdio, silncio deliberado, insinuao,

    xingamento e outros.

    Os atos de violncia pontuam com linha spera o esgarado tecido da

    histria. Neste sentido, surpreende que poucas vezes o tema seja escolhido

    como objeto de estudo, especialmente porque vem se tornando matria de

    grande repercusso, cada vez mais presente no mbito social e tambm nas

    organizaes.

    Talvez no seja possvel conceituar violncia, mas violncias. A comple-

    xidade do tema, suas mltiplas causas, especificidades e situaes constituem

    dificuldades para se alcanar definies consensuais. O termo tem sido usado

    em situaes muito diversas: violncia do Estado, violncia da mdia, violncia

  • 38

    da excluso social, violncia dos atos criminosos, violncia do e no trabalho,

    violncia na infncia, violncia contra a mulher, violncia dos pequenos gestos

    (Minayo e Souza, 1998; Souza, 2005).

    Filsofos e cientistas sempre se debruaram sobre a violncia, visando explic-la, combat-la e at mesmo justific-la. At hoje existe uma forte tendncia de associar a violncia a fatores biolgicos, concepes religio-sas, doena mental, arbtrio dos sujeitos, questes genticas e de heredi-tariedade, sendo poucos os autores que a estudam no mbito social e em sua processualidade histrica (Barreto, 2005, p. 24).

    Aqui podemos perceber nuances ideolgicas na filiao ao entendimento

    da violncia como comportamento resultante de determinaes instintivas,

    desvinculadas do contexto social no qual ocorre.

    Aceitar que a violncia possa ser naturalizada uma tentativa de diluir o

    terror que ela provoca, de se submeter aos seus efeitos, e de no se implicar

    com as possibilidades, mesmo pequenas, de sua transformao (Souza, 2005).

    Um olhar crtico e descolado desta viso naturalizada pode nos sinalizar

    que a violncia, na sua dinmica dialtica, reflete uma diferena transformada

    em desigualdade, uma forma de dominao, de no-reconhecimento do outro.

    Um processo de coisificao que subtrai das pessoas a sua condio humana,

    o que faz da imposio do silncio um ato de violncia (Chau, 1984, conforme

    Barreto, 2005).

    A violncia, conforme discutido por Minayo (1994, p. 9) uma contrapo-

    sio tolerncia, ao dilogo, ao reconhecimento e civilizao, como mos-

    tram Hegel (1980), Freud (1974), Habermas (1980), Sartre (1980).

    A compreenso da violncia inserida e decorrente do social sugere que

    deve ser analisada em rede, "suas formas mais atrozes e mais condenveis

    geralmente ocultam outras situaes menos escandalosas por se encontrarem

  • 39

    prolongadas no tempo e protegidas por ideologias ou instituies de aparncia

    respeitvel" (Domenach, 1981, p. 40).

    Situaes que se aproximam do que Foucault (1987) denominou de sub-

    misso sem conscincia e sem reao ao abuso psquico ou social.

    Violncia naturalizada no discurso da competncia e da excelncia, ca-

    racterizando o que Guimares (2003) denominou violncia da calma, indutora

    da servido voluntria. Sato e Schmidt (2004) consideram a violncia da calma

    sintnica com o que Dejours (1987) chama de ideologia da vergonha, que es-

    conde o estar doente e faz suportar a adversidade do trabalho em nome do

    "corpo til ao trabalho til".

    Hoje, o discurso da competncia, expresso, por exemplo, em revistas vendidas em bancas de jornal, como a Voc S.A., dentre outras, se pe a servio da violncia da calma, dando "dicas" sobre como sobreviver nesse mundo competitivo, prescrevendo desde cursos e MBAs at modos de apresentao pblica por ocasio de uma entrevista de seleo para o emprego. Mesmo nos momentos de lazer, dizem essas revistas, deve-se buscar a atualizao profissional. O lazer, afinal, pode, tambm, ser capi-talizado para o trabalho (Guimares, 2003). As ponderaes anteriores nos levam a pensar a violncia no contexto da

    ps-modernidade marcado pela racionalidade econmica e instrumental e por

    patologias sociais como instrumento das relaes de dominao na organi-

    zao do trabalho que marcam a experincia da subjetividade, indissocivel

    dos seus laos sociais.

    Nesta perspectiva, Minayo (1994) identifica as imposies contra as pes-

    soas originadas na organizao do trabalho como violncia estrutural, que cau-

    sam desconforto, sofrimento, desgaste, fadiga, adoecimento e at mesmo a

    morte. Essas imposies tm efeito direto nas relaes de trabalho, como ob-

  • 40

    serva Dejours (1999b, p. 11):

    Quando as comunicaes no trabalho so bloqueadas, quando o silncio se impe ou a mentira impera, quando no h espao para discutir aber-tamente o que acontece nos locais de trabalho, a situao se deteriora e o sofrimento humano assume formas incontrolveis, que vo desde o pu-ro cinismo at as manifestaes de violncia individual e social.

    O autor posteriormente, no artigo Violence ou domination (1999c), faz

    uma distino entre violncia e dominao nas relaes de trabalho inseridas

    no modelo neoliberal. Nesse estudo, diferencia a dominao sutil da violncia

    decorrentes da organizao do trabalho, proposio que introduz mais um ele-

    mento de anlise dinmica violncia-dominao e amplia a compreenso

    descrita em A banalizao da injustia social (1999a). Nesta obra, valendo-se

    das reflexes de Arendt (1998) sobre a banalizao do mal, o autor identificou

    uma racionalidade semelhante na utilizao da violncia nos regimes totalit-

    rios e no sistema neoliberal. No neoliberalismo, o lucro e o poderio econmico

    so, em ultima instncia, o objetivo visado. No totalitarismo, a ordem e a domi-

    nao social. Nos dois regimes, a violncia utilizada como instrumento para a

    manuteno de suas respectivas ideologias e, no s foi banalizada, mas per-

    cebida como resultado de um complexo processo de sublimao.

    No artigo Violence ou domination (1999c), o autor prope os instrumentos

    de dominao das empresas no passam pela violncia, mas pela induo da

    tolerncia injustia e ao sofrimento, que, de certa forma, previne o aumento

    da violncia no trabalho. Esses instrumentos no-violentos so reforados por

    sofisticados processos de comunicao interna e externa das empresas, base-

    adas nos princpios da "distoro comunicacional". Essa distoro seria deter-

    minante na dominao simblica que, no somente no-violenta, como con-

  • 41

    tribui para a conteno da violncia nos locais de trabalho. Desta forma, as

    manifestaes de violncia costumam ser explicitamente condenadas pelas

    organizaes de trabalho. Nisso, a eficcia desses mtodos de gerenciamento

    seria mais da perverso que da violncia, o que cria uma situao paradoxal: a

    responsabilidade moral e jurdica recai sobre aqueles que cometem atos violen-

    tos e no sobre os que fazem funcionar o sistema. Em ltima instncia, com a

    dominao simblica da racionalidade econmica e seus estilos de gerencia-

    mento a imputao de responsabilidade da origem da violncia no pode ser

    retroagida. Aqueles que cometem atos de violncia no trabalho passam por

    culpados e no por vtimas.

    Em nosso entendimento, esses mtodos de gerenciamento mais perver-

    sos do que violentos, operam, em ltima instncia, um encobrimento das situa-

    es de dominao. Essas situaes podem se traduzir em violncias decor-

    rentes de aes ou omisses das prprias organizaes.

    Violncia e silncio. Silncio e violncia. Ressonncias de simblicas ri-

    mas perversas de relaes dialeticamente imbricadas. Lanam as pessoas

    numa espiral de patologias e sintomas que se retroalimentam.

    Violncia como imposio do silncio, negao da palavra e do outro. Si-

    lncio como manifestao da violncia, dinmica que, em nosso entendimento,

    se insere na patologia social da violncia anteriormente descrita, por Mendes

    (2007).

    Uma das formas mais significativas e sutis de violncia no trabalho o

    assdio moral, descrito a seguir.

  • 42

    Assdio moral: patologia da solido e silncio

    O assdio moral uma patologia da solido (Hirigoyen, 2002; Dejours,

    2004a). Representa um expressivo risco laboral e de desgaste psicossocial.

    Nos pases socialmente mais avanados, os indicadores sinalizam a importn-

    cia do tema do ponto de vista social, poltico, jurdico, cultural, econmico, or-

    ganizacional e psicolgico. A incidncia varia entre 5 e 25% dos trabalhadores,

    dependendo dos critrios de avaliao utilizados. Pesquisa da Organizao

    Mundial da Sade (OMS) na Unio Europia mostrou que 8% dos trabalhado-

    res (12 milhes) convivem com o tratamento tirnico de seus chefes. Segundo

    a OIT, a mdia de trabalhadores afetados por assdio moral em pases como

    Inglaterra, Frana, Itlia, Sucia, Irlanda, Alemanha, Espanha, Blgica e Grcia

    era de 8,3% (Blanch, 2005).

    Os estudos iniciais sobre hostilidade no trabalho so atribudos a Brodsky,

    que elaborou o conceito de harassed worker nos anos 70. Heinz Leymann utili-

    zou o termo mobbing no universo trabalhista sueco nos anos 80. Outros termos

    empregados: bullying e harassment nos EUA; psicoterror ou acoso moral na

    Espanha; harclement moral na Frana e Ijime no Japo (Hirigoyen, 2002 e

    Aguiar, 2003, Soares, 2006).

    No Brasil, a expresso assdio moral surgiu no campo do direito adminis-

    trativo municipal, em 1999, no Projeto de Lei sobre Assdio Moral da Cmara

    Municipal de SP, voltado para o funcionalismo, inspirado na pesquisa de Hiri-

    goyen (2002).

    O assdio moral pode ser entendido como:

    Exposio prolongada e repetitiva a condies de trabalho que, delibera-damente, vo sendo degradadas. Surge e se propaga em relaes hie-

  • 43

    rrquicas assimtricas, desumanas e sem tica, marcada pelo abuso de poder e manipulaes perversas (Barreto, 2000, p. 22).

    Qualquer conduta abusiva manifestando-se sobretudo por comportamen-tos, palavras, atos, gestos, escritos que possa trazer dano personalida-de, dignidade ou integridade fsica ou psquica de uma pessoa, pr em perigo seu emprego ou degradar o ambiente do trabalho (Hirigoyen, 2002, p. 65).

    Estas definies sinalizam os objetivos do assdio moral: desestabilizar,

    prejudicar ou destruir psicolgica e profissionalmente a vtima, obtendo algum

    outro efeito desejado, como por exemplo: fortalecimento da prpria auto-

    estima, demonstrao de poder, preveno de risco, reduo de ameaa e

    auto-proteo, entre outros.

    Leclerc (2005), Barreto (2005) e Espndula (2006) identificam uma forte

    tendncia das organizaes em atribuir as causas do assdio moral s ques-

    tes individuais. Concepo que desloca o foco da organizao do trabalho pa-

    ra as pessoas com base em clichs deterministas do tipo: "fulano assediador

    porque problemtico", naturalizando estas situaes.

    O assdio moral varia conforme o ambiente, seus atores, caractersticas e

    conseqncias para as pessoas e as empresas. mais freqente nas situa-

    es de assimetria de poder entre assediador e assediado, mas ocorre tambm

    de forma horizontal, entre pessoas com o mesmo poder na hierarquia. Nor-

    malmente os colegas de trabalho, ao presenciar o assdio, no esboam rea-

    o em favor da vtima. Comportam-se como se a situao fosse normal e pas-

    sam a desprezar ou ignorar o assediado por medo de serem demitidos ou tam-

    bm assediados. Menos freqente a situao com o assediador em nvel hie-

    rrquico inferior. Caracteriza-se pela chantagem ou outra forma de presso en-

    volvendo informaes que possam denegrir o assediado (Blanch, 2005; Barre-

  • 44

    to, 2000, 2005; Soares, 2006; Ferreira, 2006).

    As vtimas preferenciais costumam ser: pessoas questionadoras, como

    representantes dos funcionrios ou sindicais; pessoas que se diferenciam por

    competncia ou capacitao; que podem gerar desconforto nos superiores ou

    aos colegas de trabalho; mulheres com filhos pequenos; pessoas com mais de

    45 anos; pessoas com jornada parcial em funo de tratamentos mdicos, co-

    mo DORT. Ou simplesmente pertencerem a grupos de minorias, como homos-

    sexuais e negros (Heloani, 2003; Hirigoyen, 2002; Barreto, 2005).

    Quanto ao ambiente, influenciado pela estrutura organizacional e o con-

    texto sociolaboral. As organizaes hiper-rgidas (burocratizadas) e hiper-

    flexveis (desreguladas, instveis, precrias, imprevisveis, carentes de polticas

    coerentes) induzem s relaes competitivas, conflituosas e marcadas pela fal-

    ta de solidariedade, que configuram facilitadores do assdio moral. Nestas

    condies, a conduta se caracteriza pela liderana autoritria; gesto mediante

    estresse; mentira ou perseguio visando forar o pedido de demisso volun-

    tria, como medida de conteno de gastos por dispensa sem justa causa; fal-

    ta de tica empresarial, impulsora da destruio de redes de apoio social; trato

    despersonalizado e de mau clima organizacional, alm da "estratgia do aves-

    truz" que induz a negar ou ocultar os problemas.

    A caracterizao das situaes de assdio ainda matria controversa. A

    definio da freqncia um dos aspectos centrais nestas discusses. Ley-

    mann e Zapf (de acordo com Arajo, 2006, p. 85) sustentam que a diferena

    entre conflito e assdio no se relaciona ao o que ou como praticada a vio-

    lncia, mas na freqncia e durao. Desta forma, reconhecem o assdio

    quando praticado pelo menos uma vez por semana, por mais de seis meses.

  • 45

    Este critrio, no entanto, objeto de discusses. Dependendo da legislao,

    como na inovadora lei canadense citada por Leclerc (2005, p. 70), esta questo

    recolocada:

    Uma conduta vexatria que se manifesta quer por comportamentos, pala-vras, atos ou gestos repetidos, que so hostis ou no desejados, a qual ofende a dignidade ou a integridade psicolgica ou fsica do trabalhador e que provoca, para este, um meio de trabalho nefasto. Uma s conduta grave pode tambm constituir o assdio psicolgico se ela causa prejuzo e produz um efeito nocivo contnuo para o trabalhador.

    Esta lei caracteriza o assdio a partir das suas conseqncias, mesmo

    diante de uma nica situao, critrio tambm utilizado para caracterizar situa-

    es de assdio sexual, que pode ser estabelecida a partir de uma nica situa-

    o. No Brasil, a legislao sobre o tema ainda insipiente. Segundo a procu-

    radora do trabalho Adriane dos Reis, a caracterizao do assdio a partir de

    uma nica conduta grave uma novidade em termos de legislao.

    A ocorrncia de assdio moral pode ser verificada atravs dos seguintes

    indcios: isolamento e incomunicabilidade fsica; proibio de conversar com os

    companheiros de trabalho; excluso de atividades sociais da empresa; comen-

    trios maliciosos e desrespeitosos; atitudes e referncias maldosas sobre as-

    pectos fsicos, carter, costumes, crenas, condutas, famlia e outros; respon-

    sabilizao por erros de outras pessoas; transmisso de informaes erradas

    ou ocultao de informaes para prejudicar o desempenho profissional; divul-

    gao de rumores sobre a vida privada; designao de tarefas pouco importan-

    tes, degradantes ou impossveis de serem cumpridas; mudana de mobilirio

    sem aviso prvio; mudana arbitrria do horrio do turno de trabalho; manipu-

    lao do material de trabalho como apagar arquivos do computador; colocao

    de um trabalhador controlando o outro, fora do contexto da estrutura hierrqui-

  • 46

    ca da empresa; violao de correspondncia; rebaixamento de funo injustifi-

    cada; contagem do tempo ou a limitao do nmero de vezes e do tempo em

    que o trabalhador permanece no banheiro; advertncia em razo de atestados

    mdicos ou de reclamao de direitos, entre outros (Hirigoyen, 2002; Blanch,

    2005; Barreto 2005; Soares, 2006; Ferreira, 2006).

    As crises no mercado de trabalho, condies e clima de trabalho estres-

    santes, valores socioculturais dominantes, o individualismo, o culto aos instru-

    mentos da violncia, ideologia da lei da selva ou vale tudo no mercado de

    trabalho, os prejuzos e esteretipos sociais so algumas caractersticas do

    contexto sociolaboral onde se desenvolve estas situaes.

    Discutir a natureza jurdica do assdio moral foge aos nossos objetivos,

    mas importante distingui-lo do dano moral.

    Conforme citado por Gabriel (2005), para Savatier (1989), dano moral "

    qualquer sofrimento humano que no causado por uma perda pecuniria, e

    abrange todo atentado reputao da vtima, sua autoridade legitima, ao seu

    pudor, sua segurana e tranqilidade, ao seu amor prprio esttico, integri-

    dade de sua inteligncia, a suas afeies".

    O Cdigo Civil (2002) determina, no artigo 186, que "Aquele que, por ao

    ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar direito e causar dano

    a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilcito".

    O assdio moral pode ser enquadrado no gnero "dano moral" ou "discri-

    minao". A Diretiva 76/207/CEE da Unio Europia adota o critrio da "discri-

    minao". Para Nascimento (2004), classificar o assdio moral como dano mo-

    ral defensvel, mas no reflete sua natureza jurdica e, sim, sua conseqn-

    cia. O assdio moral resultar na obrigao de reparar dano moral causado por

  • 47

    ato discriminatrio violador de um direito personalssimo5.

    A OIT por meio dos Princpios e Direitos Fundamentais no Trabalho, de

    1998, elegeu a eliminao da discriminao como um dos direitos fundamen-

    tais no trabalho. A OIT responsvel pela elaborao de normas internacionais

    referentes ao Direito do Trabalho. As normas da OIT so "sobreprincpios" para

    o ordenamento jurdico de cada pas, que deve concretiz-los (Nascimento,

    2004).

    O que diferencia a violncia psicolgica do assdio moral no trabalho?

    As situaes de assdio moral tendem a ser mais veladas que as demais

    situaes de violncia no trabalho (Barreto, 2005).

    Os equvocos conceituais entre assdio moral e o a violncia organiza-cional ocorrem pelas semelhanas existentes entre os dois fenmenos: comportamentos agressivos de natureza psicolgica, repetitivos, persis-tentes, que podem e geralmente tem repercusses negativas na sade e na vida dos trabalhadores. O que diferencia as duas prticas de violncia a pergunta: para qu a violncia praticada? (Soboll, 2006, p. 137).

    Para a autora, a violncia organizacional, mesmo utilizada de forma sis-

    temtica, se refere ao uso do poder para controlar a coletividade e preservar

    interesses da organizao. Pode levar excluso e causar danos. O assdio

    moral, ao contrrio, no responde aos objetivos de produtividade, mas objetiva

    excluir e prejudicar pessoas ou grupos. Esta diferenciao contraria as ponde-

    raes anteriores, inclusive a explicitada pela procuradora Adriane Reis de A-

    rajo em apresentaes sobre o tema realizadas no Sindicato dos Bancrios

    de Braslia e no XX Encontro de Juzes e Procuradores do Distrito Federal,

    5 Constituio Federal, artigo 5, pargrafo X: so inviolveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito indenizao pelo dano material ou moral decorrente de sua violao. O Cdigo Civil. determina, no artigo 186, que "Aquele que, por ao ou omisso voluntria, negligncia ou imprudncia, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilcito".

  • 48

    ambos em 2006, que entende o assdio moral como "instrumento de gesto".

    A diferena entre conflitos no trabalho e o assdio moral, conforme vimos na

    sua dissertao, est mais na freqncia e na durao das situaes. Em

    complemento, Leclerc (2005, p. 77) identificou que "o assdio tem quase sem-

    pre origem na organizao".

    Conseqncias da violncia psicolgica e assdio moral

    As situaes de violncia e assdio moral podem resultar em graves con-

    seqncias para as vtimas, como sintomas psicossomticos e psicolgicos:

    cefalias, transtornos digestivos e cardiovasculares, fadiga crnica, insnia, hi-

    perinsnia, irritabilidade, ansiedade, estresse, obsesses, fobias, apatias, mal-

    estar geral, crises de choro, dificuldades de ateno e de memria, sentimento

    de indefesa e culpabilidade, vergonha, injustia e desconfiana, perplexidade,

    confuso e desorientao, crises de auto-estima, aumento de peso ou emagre-

    cimento exagerado, aumento da presso arterial, problemas digestivos, tremo-

    res e palpitaes, reduo da libido, sentimento de culpa e pensamentos suici-

    das, abuso de fumo, lcool ou outras drogas, pensamentos negativos, deses-

    perana e pessimismo (Hirigoyen, 2002; Barreto, 2005; Blanch, 2005; Soares,

    2006).

    As conseqncias para as organizaes envolvem o aumento do absen-

    tesmo e dos acidentes de trabalho, a diminuio da produtividade e da compe-

    titividade organizacional, o dficit na qualidade de produtos e servios, a dete-

    riorao da imagem da empresa, ruptura do contrato psicolgico e ameaa de

    sanes econmicas pela responsabilidade por assdio.

    Para a sociedade, representa a precarizao das condies de qualidade

  • 49

    de vida, crises de relaes familiares e comunitrias, custos sociais por enfer-

    midade, aumento do mal-estar, riscos de suicdio, de aborto e divrcios, alm

    do desemprego.

    Diante deste contexto, podemos refletir sobre a causalidade sistmica das

    diversas patologias sociais do peso da ps-modernidade: banalizao do mal e

    do sofrimento, cultura da violncia sutil e da servido, racionalidade econmica,

    predominncia dos processos de excluso, deficincia de significado, sobre-

    carga simblica que leva paralisia, acesso liberdade e identidade via capa-

    cidade de consumo, manipulao da ameaa, a exacerbao da lgica os fins

    que justificam os meios.

    Todas parecem cultivadas no caldo de cultura capitotalistarismo, marcado

    por estratgias de dominao racionalizadas no chamado pensamento-nico.

    Estas patologias se propagam diretamente no mundo do trabalho. Influ-

    enciam modos de pensar e sentir, comportamentos, identidades, a organizao

    do trabalho. O diagnstico dessas enfermidades dimensiona os enormes desa-

    fios para a contnua busca no mundo do trabalho de alegria, prazer, vivacidade,

    sade, valores da modernidade - liberdade, igualdade, autonomia, subjetivida-

    de, justia, solidariedade. Com essa perspectiva, entendemos caracterizada

    uma situao de insustentvel leveza do ser-trabalhador na ps-modernidade.

  • 50

    Terceira Cena

    "Eu entrei [na empresa] e depois veio a tarefa que era construir o partido l

    dentro. Era fcil de mobilizar, de aglutinar o pessoal. Era uma poca de agita-

    o muito grande. Foi em 81. O que chocou foi que comeou um movimento de

    mudana. Em 83, teve companheiros demitidos. A gente fez um ato de manh

    e quando a gente voltou, tarde, tinha sete companheiros demitidos. Ali estava

    um pai de famlia perdendo o emprego. Os companheiros vieram para cima da

    gente: 'como que iam fazer, como que ia fazer?'. A gente pediu um prazo,

    at o outro dia cedo, para ver o que a gente ia fazer. A gente foi atrs de outros

    companheiros no Setor Comercial Sul. No encontrou ningum l. A gente pa-

    rou no meio do caminho. A gente parou sem saber o que ia fazer. Amanh tem

    sete companheiros desempregados nas nossas costas... Isto a me tocou real-

    mente. Da comecei a sentir o sofrimento... Foi ai que a gente decidiu fazer

    uma greve de fome, dentro do quarto subsolo, que era considerada uma rea

    de segurana nacional. Chegamos l e peitamos o pessoal. Ficamos o dia in-

    teiro com fome. No setor trabalhavam 130 pessoas e participaram 122. Era o

    setor de distribuio auxiliar, com carteiros e manipulantes. Mandaram a pol-

    cia. Cortaram a energia e a gua. Neste dia, a gente fez uma promessa: a gen-

    te nunca ia deixar um companheiro daquela luta nossa demitido! Enquanto ti-

    vesse um demitido, a gente ia continuar com a luta!... E nessa luta que a gen-

    te est at hoje!" (trabalhador anistiado poltico).

  • 51

    2. Admirvel mundo novo do trabalho: olhar da psicodinmica

    A incapacidade para sensibilizar-se um fenmeno patolgico

    Hannah Arendt

    A constituio da identidade das pessoas est necessariamente vinculada

    s situaes de trabalho nas quais esto inseridas. Essa viso se aplica ao

    mundo do trabalho e tambm compreenso do "eu" em outras situaes da

    vida. No teatro, por exemplo, de acordo com Kundera (2006), Sartre ope o

    teatro do personagem ao teatro de situaes ao refletir que o eu s com-

    preensvel dentro e por causa das situaes concretas da vida, perspectiva que

    enfatiza a dimenso psicossocial da nossa relao com o mundo.

    A psicodinmica do trabalho, referencial terico deste estudo, caminha

    nessa direo. A abordagem foi desenvolvida pelo psicanalista Christophe De-

    jours, a partir de pesquisas realizadas para compreender os conflitos entre a

    organizao do trabalho e o funcionamento psquico.

    uma disciplina clnica que se apia na descrio e no conhecimento das relaes entre trabalho e sade mental; a seguir, uma disciplina terica que se esfora para inscrever os resultados da investigao clnica da re-lao com o trabalho numa teoria do sujeito (Dejours, 2004, p. 28).

    Derivou da psicopatologia do trabalho, desenvolvida na Frana, no pero-

    do entre guerras. As pesquisas iniciais da psicopatologia do trabalho investiga-

    ram o sofrimento e o adoecimento decorrentes da organizao do trabalho, en-

  • 52

    tendida naquele momento, a partir da tradio taylorista, como uma estrutura

    inflexvel.

    A partir dos anos 80, a psicopatologia passou a investigar como as pes-

    soas driblam as presses organizacionais e evitam o adoecimento. Alcanou,

    assim, uma nova compreenso acerca da normalidade, que de "ausncia de

    doena" passou a ser vista como dinmica de um jogo social de contnuas ne-

    gociaes entre os desejos das pessoas e das organizaes. Esse jogo pode

    resultar em um equilbrio instvel, que precisa ser permanentemente reconquis-

    tado com o auxlio de estratgias de defesa individuais e coletivas.

    A normalidade tornou-se em si mesma enigmtica. Abriu-se, ento, um

    vasto campo de estudos que passou a pensar o trabalho como situao que

    considera os fatores psicossociais e que inclui o prazer.

    Para alm da normalidade como compromisso entre o sofrimento e as de-fesas para evit-lo, a investigao clnica preocupa-se em analisar os mo-tores psquicos e sociais do prazer no trabalho. Descobertas significativas foram feitas desde ento, sobre a inteligncia do corpo, sobre a engenho-sidade e sobre a psicodinmica do reconhecimento que permite transfor-mar o sofrimento em prazer, conferindo sentido e valor a esse sofrimento (Dejours, 2007).

    A psicopatologia do trabalho no alcanava esta leitura. Diante disso, em

    1992, Dejours props a psicodinmica do trabalho, abordagem que no exclu-

    a, mas ampliava a psicopatologia do trabalho. A nova disciplina recebeu influ-

    ncias de outras reas de estudo, como a psicanlise, a ergonomia, sociologia

    da tica e fenomenologia.

    Entender o trabalho como situao implica vinculaes diretas com os la-

    os sociais e o coletivo de trabalho. A partir dessa viso, no se buscam solu-

  • 53

    es individuais, mas intervenes para todas as pessoas submetidas orga-

    nizao do trabalho.

    Outro aspecto importante na passagem da psicopatologia do trabalho

    psicodinmica foi a ampliao das pesquisas do adoecimento para as situa-

    es nas quais as patologias ainda no estavam instaladas. Isto possibilita

    maior compreenso das dinmicas do mundo do trabalho e favorece a ao

    preventiva.

    Com base nestes pressupostos, entendemos que a psicodinmica mos-

    tra-se adequada para a investigao das patologias sociais em estudo, pois

    privilegia a anlise do trabalho com base no coletivo. Amplia, assim, as possibi-

    lidades de compreenso da organizao do trabalho, especialmente diante da

    tendncia das organizaes, apontada no captulo anterior, de reduzir as situa-

    es de violncia e assdio, por exemplo, a questes meramente individuais.

    Sentir, pensar e inventar no limite do impossvel

    O estudo das influncias do trabalho na sade talvez seja um dos objetos

    de pesquisa mais complexos, na medida em que articula diversas categorias

    de anlise. Isto refora a necessidade da delimitao dos conceitos associados

    dinmica trabalho-sade utilizados na presente pesquisa, o que faremos a

    seguir.

    Para o estabelecimento do conceito de trabalho, partimos da clssica vi-

    so freudiana de sade mental que se refere s experincias amar e trabalhar

    como fundamentais para a existncia humana. O trabalho aparece aqui como

    fator de confirmao da identidade individual e coletiva, indispensvel ao senti-

    do que a vida adquire em sociedade.

  • 54

    Partindo dessa viso, Dejours (2004a) considera o trabalho como o maior

    produtor de sentido para a integrao social. Essa produo de sentido que

    se constitui na expresso da subjetividade individual s se viabiliza se houver

    espao para o desejo das pessoas diante dos conflitos inevitveis com o dese-

    jo das organizaes.

    Com base nesta compreenso, propomos aqui denominar trabalho con-

    sentido6 as situaes que viabilizam a implicao da subjetividade das pessoas

    no trabalho: engajamento do corpo, mobilizao da inteligncia, a possibilidade

    de refletir e de reagir s situaes, enfim, o poder de sentir, pensar e inventar.

    Este fenmeno complexo, tendo em vista que no contexto do capitotali-

    tarismo os conflitos com os desejos das organizaes, que podem levar ao so-

    frimento e adoecimento, so inevitveis.

    O trabalho tem efeitos poderosos sobre o sofrimento psquico. Ou bem contribui para agrav-lo, levando progressivamente o indivduo loucura, ou bem contribui para transform-lo, ou mesmo subvert-lo em prazer, a tal ponto que, em certas situaes, o indivduo que trabalha preserva me-lhor a sua sade do que aquele que no trabalha (Dejours, 1999, p. 21).

    O trabalho, nesta perspectiva, um mediador fundamental dos processos

    de sade-adoecimento, e , ao mesmo tempo, peso e leveza. Favorece aspec-

    tos que associamos leveza do ser-trabalhador: prazer, sade, emancipao,

    aprendizagem, solidariedade, mas tambm pode transformar-se num "fardo

    pesado", exacerbar o sofrimento, o peso da presso psicolgica e das doen-

    as.

    6 Consentir, segundo o Aurlio, significa concordar, admitir, tolerar, estar em harmonia.

  • 55

    O conceito de sade alcana uma dimenso que vai muito alm do indiv-

    duo e, de acordo com Dejours (1999b, p. 86), torna-se bem mais abrangente

    quando pensado de forma articulada com o trabalho.

    Definir sade sempre foi uma tarefa considerada quase impossvel. Sade tambm envolve, com