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1476 DISPUTAS RELIGIOSAS EM SANTA MARIA – RS NA DÉCADA DE 1930: UM ATAQUE PÚBLICO Renan Santos Mattos Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria – Bolsista CAPES. Beatriz Teixeira Weber Prof. Drª do Programa do PPGH da Universidade Federal de Santa Maria - Orientadora RESUMO: Os anos 1930 a 1945, a chamada Era Vargas, podem ser caracterizados por um encrudescimento de disputas de poder no campo religioso. O espiritismo deparou-se com uma série de conflitos judiciais e instabilidades políticas. Assim, o presente trabalho reporta-se a cidade de Santa Maria-RS, na intenção de apresentar notas iniciais de uma pesquisa de mestrado que tem como temática o movimento espírita. Pretendemos, assim, analisar o manifesto que circulou na cidade em 30 de dezembro de 1930, intitulado “Eles e os ovos”, escrito por Octacílio de Aguiar, respondendo a um ataque sofrido por um grupo de pessoas de diversas congregações quando defendiam a liberdade religiosa no município. Entendemos que esse manifesto ilustra a tensão vivenciada nesse âmbito de disputa de inserção social e política. A pesquisa de mestrado em torno do movimento espírita na cidade de Santa Maria no período em que se convencionou chamar de Era Vargas revela-se instigante. Logo, ao abordarmos o processo histórico de desenvolvimento do espiritismo nessa cidade, bem como sua estruturação enquanto movimento organizado 1 , a discussão em torno das disputas de poder se torna uma prerrogativa. Assim, a opção em torno da trajetória de Fernando Souza do Ó funde-se como uma forma de dar conta dessa perspectiva em que as escolhas individuais, os projetos e lutas permitem a observação de processos, relações no fluxo temporal, almejando evidenciar o sujeito na sua historicidade, a sua compreensão de si e do mundo, possibilitando a inferência do movimento em sua dimensão holística, isto é, permite trazer à tona o conjunto de práticas e idéias presentes no seu interior (SCHIMITH, 2002) Nesse sentido, partimos das conclusões de Marta Borin (2010) em sua tese Por um Brasil Católico: tensão e conflito no campo religioso da república, referente ao desfecho da afirmação e renovação católica no Rio Grande do Sul, simbolizada pela devoção a Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças. Justificamos nosso objeto de pesquisa por entendermos que a cidade, na primeira metade do século XX, foi palco de lutas, envolvendo as diversas crenças presentes na cidade. Logo, as relações igreja católica e estado merecem ser problematizados no que tange a perspectiva de monopólio, 1 Entendemos como grupo organizado em torno da doutrina codificada por Alan Kardec.

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DISPUTAS RELIGIOSAS EM SANTA MARIA – RS NA DÉCADA DE 1930: UM ATAQUE PÚBLICO

Renan Santos Mattos

Mestrando em História pela Universidade Federal de Santa Maria – Bolsista CAPES. Beatriz Teixeira Weber

Prof. Drª do Programa do PPGH da Universidade Federal de Santa Maria - Orientadora

RESUMO:

Os anos 1930 a 1945, a chamada Era Vargas, podem ser caracterizados por um encrudescimento de disputas de poder no campo religioso. O espiritismo deparou-se com uma série de conflitos judiciais e instabilidades políticas. Assim, o presente trabalho reporta-se a cidade de Santa Maria-RS, na intenção de apresentar notas iniciais de uma pesquisa de mestrado que tem como temática o movimento espírita. Pretendemos, assim, analisar o manifesto que circulou na cidade em 30 de dezembro de 1930, intitulado “Eles e os ovos”, escrito por Octacílio de Aguiar, respondendo a um ataque sofrido por um grupo de pessoas de diversas congregações quando defendiam a liberdade religiosa no município. Entendemos que esse manifesto ilustra a tensão vivenciada nesse âmbito de disputa de inserção social e política.

A pesquisa de mestrado em torno do movimento espírita na cidade de Santa Maria no período em que se convencionou chamar de Era Vargas revela-se instigante. Logo, ao abordarmos o processo histórico de desenvolvimento do espiritismo nessa cidade, bem como sua estruturação enquanto movimento organizado1, a discussão em torno das disputas de poder se torna uma prerrogativa. Assim, a opção em torno da trajetória de Fernando Souza do Ó funde-se como uma forma de dar conta dessa perspectiva em que as escolhas individuais, os projetos e lutas permitem a observação de processos, relações no fluxo temporal, almejando evidenciar o sujeito na sua historicidade, a sua compreensão de si e do mundo, possibilitando a inferência do movimento em sua dimensão holística, isto é, permite trazer à tona o conjunto de práticas e idéias presentes no seu interior (SCHIMITH, 2002)

Nesse sentido, partimos das conclusões de Marta Borin (2010) em sua tese Por um Brasil Católico: tensão e conflito no campo religioso da república, referente ao desfecho da afirmação e renovação católica no Rio Grande do Sul, simbolizada pela devoção a Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças. Justificamos nosso objeto de pesquisa por entendermos que a cidade, na primeira metade do século XX, foi palco de lutas, envolvendo as diversas crenças presentes na cidade. Logo, as relações igreja católica e estado merecem ser problematizados no que tange a perspectiva de monopólio,

1 Entendemos como grupo organizado em torno da doutrina codificada por Alan Kardec.

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evidenciando, as lutas empreendidas pelos grupos espíritas no sentido de inserção social e de garantia do exercer sua liberdade de crença2.

Diante dessas questões, o presente trabalho tem por objetivo apresentar notas iniciais de nossa pesquisa. Assim, para dar conta dessas primeiras incursões, analisaremos o manifesto que circulou na cidade em 30 de dezembro de 1930, intitulado “Eles e os ovos”, escrito por Octacílio de Aguiar, respondendo ao ataque sofrido por um grupo de pessoas de diversas congregações quando defendiam a liberdade religiosa no município no intuito de evidenciar a tensão vivenciada. Nesse sentido, inicialmente apresentaremos uma discussão em torno de disputas religiosas, passando para considerações do movimento espírita, e por fim, uma análise do presente no manifesto.

UMA DEVOÇÃO MARIANA – A FORMAÇÃO DE UMA IDENTIDADE CATÓLICA.

Como pressuposto introdutório, mostra-se oportuno levantar algumas considerações sobre o contexto de “restauração católica”3. Assim, ao propomos uma análise de constituição do campo religioso, ou ainda, o embate que se estabelece entre diversas correntes religiosas, é importante entendermos o processo de ruptura Igreja Católica – Estado que se sucedeu com o advento da república.

Nesse sentindo, tal mudança, num contexto em que o Brasil vivia crise tanto econômica quanto social e política, provocou transformações em diversas instituições. A religião, neste caso, sob a representação católica, historicamente associada ao Estado, viu seu monopólio ameaçado, sentindo-se traída diante do rompimento com o estado brasileiro, e findando com o regime de padroado. Paralelamente viu-se a inclinação para catolicismo romanizado no Brasil. Se por um lado a Igreja teve liberdade para formar e nomear seu próprio clero seguindo as diretrizes de Roma, por outro, defrontou-se com a difusão de novas crenças, desestabilizando sua hegemonia, tendo em vista a instituição da liberdade religiosa com a Constituição republicana de 1891.

Logo, é oportuno dizer que tal separação insere-se em investidas modernizantes do Estado Republicano. Nesse sentido, como escreve Flamarion Laba da Costa: “Pretendeu-se que a liberdade individual fosse priorizada, que esses grupos teriam no Estado a sua máxima “entidade protetora”. O Estado deveria ser impregnado do espírito liberal, garantindo leis e normas que assegurassem de todas as formas as liberdades dos seus habitantes criando uma sociedade laica” (2001, p.62).

2 Sobre essa questão Ver Peter Berger referente à disputa Mercado de Bens de salvação diante do processo de pluralização do campo religioso.3 Tomamos como perspectiva a análise de Flamarion Costa acerca da reação católica diante do processo de pluralização do campo religioso brasileiro (2001).

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Diante desse quadro, uma série de medidas foram adotadas pelas autoridades da hierarquia católica na intenção de aproximar-se do Estado e ao estabelecer uma aliança com o poder constituído, tais ações podem ser entendidas como formas de manutenção de sua presença e influência junto ao poder, garantindo posições vantajosas perante a sociedade brasileira e o campo religioso.

Sobre as estratégias tomadas, Flamarion Costa esclarece:

A vantagem estava assegurada em dois campos: Primeiro, o de atração da classe política que via na influência da Igreja católica uma forma de aumentar prestígio e poder perante a sociedade; O segundo, a vantagem para a própria Igreja, que, ao apresentar-se como uma religião íntima do poder político, aumentava sua credibilidade perante a sociedade e assim, de forma mais efetiva, poderia enfrentar e se opor à crescente presença e avanço de outras instituições religiosas. Para atingir esses objetivos, passa a aceitar e não mais tratar como ilegítima a República, buscando a partir desta posição, a aproximação. (2001, p.68)

Diante do processo de “complexização” do campo religioso, portanto, percebe-se o engajamento por parte dos padres católicos no sentido de legitimar a instituição Igreja Católica enquanto norteadora da população. Nesse sentido, embrenham-se num projeto de construção de uma identidade nacional, o que justifica o processo de reificação do outro, ao estabelecer fronteiras, define os inimigos a serem combatidos nos campos político e religioso. No primeiro, os comunistas e os socialistas e, no segundo, os protestantes e os espíritas, entendendo-os como frutos do liberalismo.

Flamarion Costa (2001) destaca ainda que hierarquia da Igreja católica empreendeu, a partir da década de 20 do século XX, um conjunto de ações, denominadas de Renascimento Católico ou de Restauração Católica, que tinham por objetivo a expansão do número de participantes das instituições católicas. Dessa maneira, os bispos arregimentaram um grande número de grupos religiosos por meio de rede de escolas, paróquias com suas associações e a imprensa católica e leiga. Entre os movimentos, destacaram-se as Congregações Marianas, a Ação Católica, acrescentando-se a Liga Eleitoral Católica.

Tal associação entre o poder político e o eclesiástico coincidia a um projeto comum: o controle político e religioso da população. No caso da Igreja, o envolvimento com as causas que interessavam ao Estado, como o combate ao comunismo o anarquismo, pregando o respeito às autoridades, representaram estratégias de aliança com o poder político. Ao mesmo tempo em que se buscou de forma apologética consolidar uma posição pública do catolicismo, isto é, enquanto instituição responsável por esclarecer sobre os perigos que rondavam a sociedade brasileira

Marta Borin (2010) situa a restauração católica em Santa Maria dentro desse contexto nacional. Assim, a autora pontua a difícil a situação do clero católico santa-

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mariense, no final do século XIX, tendo em vista a existência de outras confissões. Porém, a partir dos episódios de 1930, a devoção mariana a Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças consolidou-se no cotidiano das famílias devotas desta importante cidade sul rio-grandense. E, partindo dos conceitos de capital de bens de salvação elaborados por Bourdieu, afirma que o incentivo e o triunfo desta devoção mariana e sua promoção à padroeira do Rio Grande do Sul situam-se no plano das estratégias do clero a favor da legitimação da identidade católica no Estado e seu viés político. Assim, a Igreja católica em Santa Maria delineava seu plano de conquista de fiéis e para o seu reconhecimento como preponderante no espaço da cidade.

Dessa maneira, Borin escreve: tal devoção esteve sempre sob o controle da hierarquia da diocese de Santa Maria e tinha um objetivo maior: legitimar o catolicismo como religião predominante na cidade e no Estado, conquistar e cristianizar a classe operária do Brasil e combater as idéias comunistas, principalmente entre os operários. Estes é que dariam o cunho popular à devoção pois, quando a piedade popular, no caso da devoção a Medianeira, ficava sob a tutela da Igreja, não era mais julgada como “excessivamente sentimental, ignorante e mágica”, mas necessária para afastar o povo devoto das ideologias contrárias ao catolicismo (2010, p.290).

Assim, a Igreja católica santa-mariense atuava dentro de um plano comum: a fé enquanto expressão da nacionalidade. Isso se evidencia na sua associação ao programa nacional de combate ao comunismo. E a autora conclui: “O catolicismo de Santa Maria inseria-se ao projeto nacional de Restauração Católica (é uma das faces desse projeto), dos quais Nossa Senhora Aparecida e o Cristo Redentor são as outras faces”.(Idem, p.291) Citamos, por considerarmos significativo, a relação que Borin estabelece entre fé e política nos seguintes termos:

Assim, para reforçar o processo de Restauração Católica em Santa Maria, em 1930, a devoção a Nossa Senhora Medianeira de Todas as Graças foi uma nova possibilidade de legitimação da presença do catolicismo na cidade. Essa devoção mariana contribuiu para agregar valor simbólico, reforçar, dar respaldo e continuidade às iniciativas do padre Pagliuca e do episcopado de Dom Antônio Reis.As iniciativas do clero santa-mariense contribuíram para que, nos anos de 1930, a Igreja conquistasse, também, o apoio do Estado Varguista, pois as instituições, Igreja e Estado tinham, naquele momento, interesses comuns: a sacralização da sociedade para manter os operários sob o controle do Estado. Assim, o clero de Santa Maria ia ao encontro da ideia motriz da Igreja católica a partir da Revolução de 1930: conquistar a res publica como christiana, na qual a obediência ao Estado e à hierarquia católica, aliadas à fé cristã, fossem objeto central da vida política e social. (..) Foi com essa perspectiva, de cristianizar a população, que o clero diocesano local não só construiu seus templos na cidade, mas entronizou Nossa Senhora Medianeira no Seminário e no Círculo Operário, e ampliou a abrangência dessa devoção no Estado e no País, com o apoio do Arcebispo de Porto Alegre e do governante Getúlio Vargas.(Idem, p. 296)

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Paralelamente a esse quadro, como destaca Arribas, o processo de laicização também representou a disseminação de outras doutrinas religiosas e com a difusão de cultos afro-brasileiros, historicamente restritos a comunidades isoladas. Assim, as diversas manifestações religiosas emergiram firmando-se e demarcando seu espaço em diferentes grupos da sociedade brasileira. Diante do preconceito real sofrido por essas religiões e a concorrência desigual, se comparado com os privilégios da instituição católica, tal processo deu-se com tamanha dramaticidade. Nesse sentido, Celia Arribas aponta para as dificuldades enfrentadas e a constituição de nossa complexidade religiosa nos seguintes termos:

Perseguições e repressões policiais às diversas religiões não-católicas caracterizaram esse início histórico da constituição de um mercado de bens religiosos tendencialmente concorrencial. Foi nesse contexto que as religiões tiveram que se articular e se organizar, fosse doutrinariamente – enquanto crença religiosa codificada e sistematizada –, fosse burocraticamente – nos moldes convencionais de uma instituição religiosa. Esse processo de racionalização e formalização, conduzido em dois níveis de organização, teórico e institucional, parece ter sido sentido como um imperativo, tendo em vista a legitimidade necessária para a consolidação das recém-chegadas religiões. O trabalho de sistematização e de estruturação teve nos intelectuais de cada religião sua fonte principal de energia. Foram eles que pensaram e articularam cada religião nas suas mais diversas dimensões de atuação. (2011, p.02)

No mesmo sentido, Silva (2009, 2010) menciona a expansão das práticas religiosas no espaço público diante da consolidação de igualdade jurídica em relação ao culto católico. E ainda, segundo o autor, tal questão não apenas problematiza a visão teleológica da secularização como irremediável “desencantamento do mundo”, restringindo a religião cada vez mais ao âmbito privado; como estabelece caracteristicamente um processo jurídico-político de definição, legitimação e alocação social do que deveria ser uma “religião”. E conclui, citando Montero, que tal processo acarretou “um intenso conflito em torno da autonomia de certas manifestações culturais de matriz não-cristã, ou da sua legitimidade para expressar-se publicamente” (2009, p.146)

Com esse panorama, o que se pretende fazer aqui é pensar como se articularam as resistências de grupos não-católicos, simbolizada pelo movimento pró-liberdade religiosa, quando se percebe a constituição de redes entre distintas tendências: espíritas, maçons e comunistas. A fim de dar conta dessa perspectiva analisaremos a inserção espírita tanto no contexto nacional quanto municipal.

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O INTANGÍVEL A LUZ DA RAZÃO: MESAS RODANTES, ESPIRITISMO E ESPIRITUALISMO.

Originalmente, o surgimento do Espiritismo relaciona-se a um momento bastante específico e peculiar. Em meados do século XIX, difundiam-se relatos sobre eventos de mesas giratórios, e ruídos estranhos. Assim, os fenômenos convencionalmente chamados de mesas girantes ou mesas falantes tornam-se a sensação nos salões europeus, reunindo frequentadores “em busca de mensagens obtidas através de pancadas produzidas por objetos que mais pareciam obedecer a alguma força desconhecida e autônoma”. (ARRIBAS, 2008, p.19) Surgida em meio ao que se convencionou chamar de Movimento Espiritualista, o espiritismo que mencionamos nesse trabalho corresponde à doutrina elaborado pelo francês Leon Hyppolite Denizart Rivail, pseudônimo de Allan Kardec. Assim, influenciado pelas concepções científicas e filosóficas em voga no século XIX, o autor dedicou-se a compreensão de fenômenos psíquicos e espirituais que estavam acontecendo na Europa e na América naquele contexto, adotando para isso critérios das ciências positivas. Diante disso, afastando-se da feitiçaria e fantasmas em voga no imaginário ocidental desde a Idade Média, o corpo doutrinário emergiu com a intenção de racionalização do mundo espiritual. E tais pressupostos inserem-se também no contexto de contraponto ao materialismo do século XIX, cujas origens remetem ao misticismo, iniciados por Swedenborg4, e prosseguidos por Mesmer5 e Hahnemann6 (DAMAZIO, 1994). Nesse sentido, desde a Idade Média e até mesmo em pleno século XIX, é possível observar o quanto “aparições e intervenções de mortos eram comuns em diversos relatos que descreviam encontros com santos, anjos, demônios ou simplesmente pessoas comuns, seja através de sonhos ou em estado de vigília” (SILVA, 2005, p. 27). Tal teorização, resumidamente, fundamenta-se nos pressupostos como a existência de Deus, da imortalidade da alma, na crença da reencarnação e na pluralidade dos mundos habitados, incorporados com a

4 Emmanuel Swedenborg (1688-1772): Místico sueco de grande projeção no século XVIII, além de ter sido importante cientista. Por relatar contatos com espíritos é considerado o precursor do espiritismo.5 Franz Anton Mesmer (1733- 1815) doutor em Medicina pela Universidade de Viena Defendia que o ser humano e em toda a natureza uma energia magnética capaz de ser manipulada pela vontade e pelo uso das mãos e de ser posta a serviço da medicina. O mesmerismo foi o responsável pela penetração no meio acadêmico do século XVIII de discussões em torno do intangível, abrindo espaços para se discutir a pos-sibilidade científica de se comprovar a sobrevivência da alma, a comunicabilidade entre o mundo físico, concreto, e o “mundo espiritual”, abstrato6 Médico criador da Homeopotia. Filosoficamente a homeopatia é um sistema vitalista, ou seja, um sistema que defende a idéia da existência de um princípio vital, não comprovável empiricamente por ser imaterial, mas que é a causa explicativa da atividade que anima todo o organismo. A força vital é o princípio intermediário entre o corpo físico (princípio material) e o espírito (princípio espiritual). Com tal postulado, Hahnemann superou o dualismo matéria x espírito, herdado do racionalismo. A animação do organismo, isto é, a vida, não se devia à matéria nem ao espírito, mas sim a um terceiro princípio, imate-rial e dinâmico, que ligava aqueles dois. (DAMAZIO, 1994, p. 83/84).

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prática das manifestações dos espíritos. Diante do apresentado, é possível inferir as relações existentes entre o surgimento

do espiritismo e as idéias positivistas e evolucionistas em voga no século XIX. Desta forma, se essas considerações do contexto do século XIX mostram-se reflexões pertinentes, por outro lado é importante considerar as peculiaridades assumidas no contexto brasileiro. O espiritismo Kardecista expandiu-se por todo o Brasil no final do século XIX e início do século XX. As primeiras organizações surgiram na Bahia (1865 e 1874) e no Rio de Janeiro (1873), e a organização de uma Federação Espírita Brasileira data de 1884, numa tentativa de preservar a unidade doutrinária e o esforço de reunir, de modo institucional, a crescente população de fiéis dispersos (CAMARGO, 1961, 1973; DAMAZIO, 1994). E tal processo obviamente não se processou isento de dramaticidade, envolvendo disputas e perseguições em diversas instâncias – religioso-médico –político e judicial.

Tal processo confirma-se com sua interiorização. Em Santa Maria, por exemplo, a mais antiga casa espírita da região está situada na localidade de “Água Boa” (distrito de Rincão dos Feios), e foi criada em 1898, e denominada de Sociedade Espírita Paz e Caridade. Já a primeira sociedade espírita que se tem registro na região central da cidade data de 1910, foi a Sociedade Dr. Adolfo Bezerra de Menezes, hoje situada no bairro Medianeira (BASTOS, 2001, p.24).

Entretanto, foi a partir da década de 1920 que o movimento espírita ganhou outras dimensões na cidade com a fundação em 1921 da Aliança Espírita Santa-mariense, com o intuito de coordenar as entidades e grupos existentes, cuja primeira diretoria só assumiu em 1924. Além delas, foram fundadas instituições importantes em 1929 (Sociedade Espírita União dos Fiéis), 1936 (Instituto Espírita Leocádio José Correia), 1940 (Sociedade Espírita Discípulos de Jesus), 1946 (Sociedade Espírita Amor a Jesus), 1949 (Sociedade Espírita Oscar José Pithan), 1955 (Sociedade Espírita Dr. Antônio Victor Menna Barreto) (BASTOS, 2001).

E essas casas espíritas enfrentaram dificuldades de legitimação, sendo atacadas tanto por instâncias sanitárias quanto religiosas em relação a suas práticas. Lauren Bastos (2001) destaca o processo sofrido por Irmã Rolica, acusada de prática ilegal da medicina na década de 1920, sendo defendida por Fernando do Ó. Assim, a constituição doutrinária no Brasil dá-se nesse contexto de disputa. Como podemos perceber, o espiritismo transitou na fronteira entre ciência, religião e filosofia, e, como destaca Giumbelli (1997), sempre procurou confirmar seu caráter científico na tentativa de conciliar ciência e religião através da mediação da moral ou da filosofia, fato que o colocou em freqüentes batalhas frente ao conhecimento médico que se consolidava. E foram justamente esses aspectos que colaboraram para a ocorrência de polêmicas por onde quer que o Espiritismo tenha passado. Assim, definido das mais distintas maneiras

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por seus diferentes adeptos, recebeu ataques de todas as partes, principalmente dos campos científico e religioso. Assim, a fim de dar conta desse terreno de disputas e confrontos, utilizamos as reflexões de Pierre Bourdieu7. Sobre o Brasil, as análises comumente atribuem que o espiritismo teve características religiosas acentuadas, tendo em vista o caráter religioso e místico de seu povo. Sendo assim, concordamos como Silva que escreve: “o Espiritismo no Brasil não é um simples desvio de uma doutrina racional de origem européia e que sofreu uma contaminação do mágico e do místico, graças a uma predisposição do povo brasileiro para o maravilhoso” (2007, p.54).

Dessa forma, consideramos importantes as considerações de Célia Arribas (2008) quanto o equívoco de se afirmar que o Espiritismo só teria sido constituído como religião ou sido delimitado enquanto tal a partir de constrangimentos e injunções externas a ele. Assim, a socióloga pontua que tal processo resulta de seres humanos. Ao historiar esse processo de transmutação do Espiritismo em religião, levado a cabo por alguns intelectuais da doutrina, principalmente por Bezerra de Menezes e por seus seguidores, a autora conclui que tal estratégia representou o meio pelo qual era possível a doutrina ser aceita – através de muitos esforços práticos e intelectuais. Dessa forma, não se corre o risco de menosprezar todo um trabalho prático e intelectual realizado por agentes especialmente interessados e particularmente envolvidos, seja na definição de seu espaço de atuação, seja na demarcação das fronteiras e a identidade do Espiritismo brasileiro. Diante do apresentado, pode se dizer que construiu-se algo original. E como destaca Silva: “É uma construção original, influenciada pela formação cultural brasileira que já possuía elementos que foram reinterpretados pelo Espiritismo, assim como ele foi reinterpretado por estes elementos: crenças indígenas, africanas e populares de origem européia” (2007, p. 54).

Por outro lado, a alternativa respaldada na “ciência positiva” encontraria entre os maçons, atacados pelo catolicismo ultramontano8, condições propícias de adesões e alianças por parte desses agentes. Assim, o moderno-espiritualismo, como rede de pensamento composta por maçons, espíritas, socialistas, anarquistas, estabelecia afinidades eletivas e alianças intelectuais, em sua maioria, com dupla pertença e de atuação diversificada em espaços da vida social. O que, segundo Marcos Jose Diniz Silva:

Assentava-se nos seguintes fundamentos: (a) difusão da antiga lei dos renascimentos sucessivos (reencarnação); (b) evolução espiritual; (c)

7 Bourdieu traz um sentido ontológico de sociedade. Assim, compreende o mundo social organizado a partir de campos, ou seja, universos relativamente autônomos onde ocorrem disputas em busca de poder – a educação, a burocracia, os intelectuais. Assim, evidencia jogo disputa que é realizado no interior dos diversos campos, logo, para uma compreensão da sociedade, é importante esmiuçar como se dá e quais as formas de relação de poder estabelecidas nesse campo. 8 Ver Flamarion (2001)

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evolução planetário-cósmica; (d) possibilidade de comunicação entre os vivos e os mortos (mediunidade); (e) aliança entre religião e ciência; (f) complementaridade entre todas as crenças religiosas, fundada na unidade das leis divinas; (g) a defesa e a prática da liberdade, da fraternidade e da solidariedade entre todos os povos, crenças e raças.(2010, p.11)

Da mesma forma, Artur Isaia (2007) pontua que tal aproximação pode ser entendida no âmbito de um ideário de inimigos comuns e da luta pela defesa do estado laico e da república. A aliança, portanto, se dava a partir de um ambiente cultural comum. Obviamente que tais questões devem ser problematizadas, pois apesar da relação de cumplicidade, solidariedade e fraternidade, tais redes davam-se em meio a conflitos internos, o que evidencia que as trajetórias individuais diferenciadas desses agentes refletiam sobre condições de alternativas propostas pelas correntes de pensamento.

Diante disso, é possível ainda destacar que tais atuações não se restringiram ao campo espiritual, mas, também no território sócio-político. Tais proposições almejavam intervenção no mundo, “difundindo a mensagem autonomista da transformação do homem, no intuito de impulsionar evolutivamente seu progresso, relativizando da religião tradicional” (SILVA, 2010, p.12). É nesse contexto que entendemos a manifestação objeto de nossa análise no contexto dos anos de 1930-1940.

Considerando ainda, como defende Flamarion Costa, que na década de 1930 houve um acirramento do embate entre católicos e espíritas. Segundo ele, mudanças institucionais geradas pela Constituição de 1934 teriam aproximado a Igreja Católica e o Estado. Nesse sentido, Flamarion cita o padre Julio Maria que, também lançando mão de argumentos da medicina, em 1938, alertava aos seus fiéis:

“Católicos! Fugi da praga espírita! Fugi e nunca permitais que escritos espíritas penetrem em vossos lares. Nunca, por nenhuma razão, assistais a sessões espíritas [...] guerra a esta praga, para preservar a nossa sociedade, como para conservar o equilíbrio mental das pessoas que nos são caras.” (MARIA, 1938, apud COSTA, 2001, p. 97.)

Assim, têm-se a intensificação desse conflito. E, por conseguinte, questionamentos acerca da hegemonia católica enquanto única proposta na solução dos problemas sociais vigentes. Enfim, o rompimento do monopólio católico da manifestação religiosa pública incitava o debate sobre a relação religião e sua relação com a questão privada, pública e estatal. Esse debate sobre as relações entre religião e política no Brasil, e especialmente em Santa Maria, no contexto de acirramento das vertentes religiosas, evidenciam elementos originais de configuração de sociedade. Assim, ao investigar esses intercâmbios religiosos e seu terreno de disputa, pretendemos entender tais peculariedades. Tensões que o evento de 30 de dezembro de 1930 traz aos nossos olhos, e incita a reflexão.

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UM EPISÓDIO – CONSIDERAÇÕES DE UM ATAQUE PÚBLICO

Segundo Borin (2010), apesar da Igreja católica consolidar seu espaço hegemônico a partir da década de 1930, a polarização permaneceu. E, percebendo o avanço do catolicismo em Santa Maria, os grupos anticlericais criam estratégias para se fazer presentes nesse contexto. Assim, segundo a autora, o que estava em jogo era a disputa pelo reconhecimento de espaço sócio-político. Nesse sentido, o evento de 30 de dezembro, organizado pela loja Maçônica Luz e Trabalho com o intuito de discutir a liberdade religiosa, assinala o ambiente de tensão e conflito. Como ponto inicial, questionamo-nos sobre a plausibilidade de um evento enquanto forma de compreensão de uma realidade social. Diante disso, incita-nos, ainda que sucintamente, o retorno do acontecimento no âmbito historiográfico. Nesse sentido, uma infinidade de conceituações emerge desde o início dos anos 1970. De um lado, os estruturalistas defendiam fervorosamente as relações entre estrutura e acontecimento, de outro; história “acontecimental” insurgia no seu sentido “narrativista”. Tais considerações se mostram oportunas, pois o ataque sofrido pelo Movimento, a notícia veiculada no Diário do Interior e o decorrente manifesto emergem como formas de explicações que aparecem no imediato, “a superfície no oceano da história”, parafraseando Brudel, e merecem esclarecimentos. E, concordamos com Marta Borin, quando expõe que manifestações públicas veiculadas na imprensa representam possibilidades de compreensão das situações de conflito e consenso de Santa Maria na primeira metade do século XX, bem como forma de manipulação de interesses para intervenção na vida social e espiritual da sua população. Assim, a autora conclui: “Através da imprensa, percebemos a polifonia da cidade. O veículo de informação facilitou os distintos processos de apropriação e ressignificação dos diferentes discursos, evangélico, maçônico e espírita em relação à Igreja católica e vice-versa”(2010, p.292) Dessa maneira, o Diário do Interior trouxe, em matéria do dia 30 de dezembro, o suceder do evento no qual a Loja maçônica Luz e Trabalho faria uma reunião em praça pública para abordar o tema da liberdade religiosa em “protesto contra a pretendida oficialização da Igreja católica romana” (DIARIO DO INTERIOR, 1931, p.3). A manifestação maçônica ocorreu na praça central, Saldanha Marinho, em frente à Loja Luz e Trabalho. Conforme o jornal, a ocasião reuniu uma multidão “inclusive católicos que procuraram interromper os oradores”. Participaram do evento lideranças religiosas e intelectuais como o reverendo anglicano José B. Leão, pároco da Catedral do Mediador, os professores Cícero Barreto e o Tenente Fernando do O’, ambos da Loja Luz e Trabalho; Diógenes Cony e Octacílio Aguiar. A nota informa que “elementos jogaram alguns ovos sobre a assistência” (DIARIO DO INTERIOR, 1931, p.3)

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“Ele e o ovos” é a repercussão do evento. O texto elaborado por Otacílio Aguiar circulou na cidade em 30 de dezembro de 1930 e corresponde a interpretações do evento e a manifestação aguçada de uma tensão vivenciada no campo religioso. E Otacílio o descreveu da seguinte forma:

Hontem á noite, quando a Liga Liberal pró-Liberdade Religiosa, realisava uma assembléa para tratar de uma reacção eficaz contra as pretenções absurdas do Clero Romano, o templo da Loja Maçônica “Luz e Trabalho” não comportou a massa popular que alli affluiu, e ainda pelo excessivo calor que então fazia foi o povo convidado para a rua, e os oradores começaram a fallar da janella daquelle templo. (AGUIAR, 1930, p. 01)

Em seu conteúdo, Otacilio, ao mesmo tempo em que enaltece a presença maciça da população, como forma de legitimação do apoio popular, estabelece uma definição de fronteiras, instituindo os seus algozes, simbolizados pelos “Elles e o Ovos”, e em sua descrição destaca tanto a sensação de pânico – evidenciando inclusive o temor de uma possível agressão física, quanto os possíveis responsáveis da manifestação opositora, como podemos perceber a seguir:

Em dado momento notamos que da janella lateral do Club Commercial, começaram a jogar ovos podres e agua em copos, nas pessoas que estavam por dentro do gradil da loja da Maçonaria. Aos protestos dos offendidos juntou-se a indignação dos demais, e rapido, como sempre acontece nessas occasiões, foi resolvido invadir o Club Commercial, e assim o fizemos. Já na porta daquelle edifício, tivemos a feliz ideia de convidar o povo, para aguardar em baixo, emquanto um grupo de meia dúzia de pessoas, subiria e faria um enérgico protesto, na altura da offensa recebida, e que, si a nossa integridade phisica alli corresse perigo, daríamos com um tiro de resolver, signal de alarme, para invasão do recinto do Club Commercial. Tal, felizmente, não foi preciso, porque aos nossos protestos em altas vozes acudiram os associados que estavam nas diversas dependências do Club, e attendendo-nos com urbanidade, abriram rigorosa syndicancia, da qual ficou apurado, que os jogadores de ovos fôra o casal sexagenário Sr. Leonel Verissimo da Fonseca e sua Exma. esposa dona Amabilia de tal, que ao sentirem a reacção que se organisava na rua, escaparam-se pelo elevador do Club (AGUIAR, 1930, p. 01)

Apesar do tom de indignação e de reprovação, Otacilio tangencia explicações mais profundas da manifestação de seus opositores. Assim, conclui que:

“Pelo exposto somos forçados a acreditar, que o facto reprovável levado a effeito pelo velho casal, seja a resultante duma dupla involução senil, pois como de todos é sabido, aquelle casal tem perdido ultimamente dois filhos moços, pelos quaes ainda traja pesado lucto.” (AGUIAR, 1930, p. 01)

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“Ele o ovos evidencia” um acontecimento monstro9, em que, considerando a pesquisa em andamento, temos condições de lançar algumas hipóteses que justificariam tal postura. Ao destacar a presença populacional e a oposição como algo localizado, legitima sua posição enquanto alternativa para a solução dos problemas do contexto histórico. Assim, na defesa de novos valores, como a liberdade religiosa, o Estado e ensino laicos, os moderno-espiritualistas professavam à população “não o medo da condenação eterna pelos comportamentos imorais considerados decorrentes da degeneração humana do pecado original, mas as alternativas do esclarecimento (ilustração) e do autoconhecimento”(SILVA, 2009, p.20), assim, tornava-se prioritário uma formação ética e espiritual da sociedade, uma formação de um novo homem, em detrimento ao materialismo em voga nesse contexto.

Além disso, a posição contida de Otacílio pode ser lida como raízes de uma política recorrente dentro do movimento espírita – de silêncios, dos não-ditos e censuras. Estratégias fundamentais para minimizar polêmicas e os riscos que rondavam o movimento espírita no presente contexto. Assim, tendo por referência Orlandi, Pedro Paulo Amorin esclarece sobre essa recorrente postura da Federação Espírita Brasileira nos seguintes termos:

O Espiritismo, considerado a “religião do livro”, da palavra escrita por excelência, fundado no Pentateuco Kardequiano, também é parte integrante da cultura, e como tal, retira do imenso mar que compõe o silêncio as palavras, as quais, nada mais são que uma tentativa de apropriação deste mesmo silêncio, uma tentativa de organizá-lo conforme os seus interesses. Portanto, encontramos no interior do Espiritismo um interdiscurso, o qual permeia todo o seu campo discursivo, composto por uma série de formulações originárias de enunciações distintas e dispersas que no seu todo formam o domínio de sua memória, da qual retira o sentido, independentemente de quem seja o sujeito do discurso, dos conceitos que o constituiComo o silêncio é o real do discurso e este é efeito de sentidos entre locutores, podemos perceber assim o silêncio como produtor de sentidos, tendo o cuidado de perceber que da mesma maneira que o discurso não é transparente, o silêncio também não o é. Portanto, devemos procurar no próprio silêncio o seu significado e não buscá-lo através dele. Desta forma, o silêncio da FEB nos diz muito a respeito do posicionamento dela em relação aos conflitos por ela enfrentados ao longo de sua história.(2011, p. 08)

Com o texto de Otácilio Aguiar é possível perceber a tensão e conflito vivenciado

9 Pierre Nora no texto “O retorno do fato” (1998, p. 183-193), evidencia o papel desempenhado pelos meios de comunicação não apenas por trazerem à cena o acontecimento, mas também ao atribuírem um novo sentido ao acontecimento. Assim, “o acontecimento é projetado, lançado na vida privada e oferecido sob a forma de espetáculo”, possibilitando ao homem vivenciar e dar sentido ao mundo. E, considerando o processo de Vouyerismo em voga, historiador defronta-se com um novo problema: ao promover o ime-diato ao histórico, é um acontecimento sem historiador, que demanda explicação e que faz surgir também aquilo que não é factual, um conjunto de fenômenos sociais que surgem das profundezas e que demandam esclarecimento. O acontecimento-monstro

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na cidade de Santa Maria. Ao mesmo tempo em que sua postura, enquanto interprete, converge para princípios de busca de harmonização e inserção social, omitindo sua posição de inimigo público a ser combativo pelo clero católico. Silêncio este que oculta a lógica de disputa, e que pode ser entendido como estratégia de demarcação de uma presença. E tal estratégia, neste caso, corresponde a “atos de percepção e de a apropriação, de reconhecimento com que os agentes sociais investem seus interesses na luta permanente para definir o que é verdade” (BOURDIEU, 2000, p. 12-13) Diante do apresentado, é possível inferir que o manifesto acima analisado traz indícios claros, como destaca Borin (2010), que a cidade de Santa Maria, no início do século XX, não foi somente um pólo ferroviário, mas também palco de conflitos religiosos, envolvendo o clero católico e as demais vertentes religiosas. Um embate de perspectiva de mundo, de alternativa frente aos problemas que os rodeavam. E tais aspectos abordados mostram-se importante para entendemos nosso objeto de pesquisa. Considerando que ainda temos informações restritas, e que almejamos em nosso trabalho compreender o processo de pluralização no campo religioso brasileiro e suas disputas, inquieta-nos, nesse contexto, a atuação de lideranças intelectuais espíritas brasileiras enquanto forças motrizes do movimento espírita, no sentido de construção de uma ética, ou seja, uma visão de mundo conectada a um estilo de vida, fazendo acrescer, por conseguinte, a força material e simbólica passível de mobilização por seu grupo de seguidores. É nesse sentido que pretendemos pensar a atuação de um espírita. Pretendemos, a partir de sua obra intelectual de Fernando do Ó, intelectual espírita santa-mariense, pensar essa constituição identitária, sua perspectiva de mundo e alternativa social no âmbito do contexto em que se insere.

Fontes:

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