discursos contemporaneos sobre a velhice-do estatuto biologico ao social

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Perspectivas sobre as pessoas idosas

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  • FUNDAO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLTICA DE SO PAULO ESCOLA PS-GRADUADA DE CINCIAS SOCIAIS

    DISCURSOS CONTEMPORNEOS SOBRE A VELHICE:DO ESTATUTO BIOLGICO AO SOCIAL

    ELAINE CRISTINA SILVA DE MOURA

    So Paulo

    NOVEMBRO 2010

  • FUNDAO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLTICA DE SO PAULO ESCOLA PS-GRADUADA DE CINCIAS SOCIAIS

    Curso de Especializao lato sensu: Scio-Psicologia

    DISCURSOS CONTEMPORNEOS SOBRE A VELHICE:DO ESTATUTO BIOLGICO AO SOCIAL

    Elaine Cristina Silva de MouraOrientador: Fernando Santaella Megale

    So PauloNovembro/2010

  • O tempo real, inexorvel e que arrasta todas as coisas, certamente no depende nem da linguagem, nem do discurso, mas no sofremos disso a no ser a partir do discurso e de seus valores. Um exemplo simples nos faz compreend-lo: o envelhecimento.Ele organicamente inexorvel, mas na atualidade ele se converteu em motivo de grande sofrimento, por causa do discurso atual que faz da juventude um trunfo (...)

    SOLER: 2009: 187

  • DISCURSOS CONTEMPORNEOS SOBRE A VELHICE: DO ESTATUTO BIOLGICO AO SOCIAL

    RESUMO

    O presente trabalho analisa a construo social da velhice, indicando como ela se produz de acordo com o contexto scio-histrico em que vivenciada. Apresenta e discute algumas das formaes discursivas que incidem sobre os idosos na contemporaneidade. Mostra como a emergncia da categoria terceira idade contribuiu para a transformao da imagem da velhice, positivando-a a partir de um modelo baseado no consumo e nas prticas de autocuidado. Apresenta tambm uma reflexo sobre o conceito de bioidentidade, demonstrando como o corpo ganhou centralidade nas formas de subjetivao, a partir da influncia dos discursos biomdicos. Analisa, por fim, como a valorizao de atributos associados juventude atravessa os signos da cultura, articulada s ofertas do capitalismo e se tornam produtores de mal estar e excluso diante do envelhecimento.

    Palavras-chave: velhice, terceira idade, bioidentidade, envelhecimento,cultura contempornea

  • SUMRIO

    INTRODUO...........................................................................................5

    CAPTULO I...............................................................................................9

    Mltiplos Discursos, Vrias Velhices

    1.1. A terceira idade e a emergncia de uma nova imagem para os velhos..................9

    1.2. Discursos contemporneos: envelhecer sob o paradigma da juventude..............12

    CAPTULO II............................................................................................16

    A Velhice Tangvel

    2.1. As bioidentidades : a cincia e o sentido da existncia.....................................16

    2.2. O mal estar na velhice excluso da cena espetacular.....................................19

    CONCLUSO...........................................................................................22

    BIBLIOGRAFIA.......................................................................................25

  • INTRODUO

    A temporalidade, insgnia da vida humana, atesta nossa condio provisria e

    finita. Somos seres marcados pelo tempo, principalmente porque criamos formas de

    atestar a sua passagem, a despeito das diferenas no modo de conceb-lo. A construo

    dos valores que sustentam o sentido do viver nas diferentes culturas se faz a partir de

    uma apropriao especfica do tempo, incluindo-se a ritualizao da vida e da morte.

    Dentre os vrios acontecimentos enlaados temporalidade na constituio do

    sujeito, o envelhecimento parece nos falar mais diretamente deste enlace, assim como

    da percepo de seu afrouxamento. Conjuga mltiplas dimenses: social, biolgica,

    psquica, entre outras. Enquanto processo contnuo e irreversvel produz modificaes

    observveis no real do corpo que operam tambm mudanas nas posies sociais

    ocupadas pelos sujeitos e nas relaes estabelecidas por eles ao longo de sua histria.

    O envelhecimento populacional, fenmeno atualssimo que em alguns pases se

    deu de forma lenta e em outros de forma mais acelerada, mas, de modo geral, pode ser

    observado em vrios continentes, comea a ser lido como acontecimento bastante

    significativo, junto a tantos outros que modificaram profundamente as sociedades

    contemporneas durante o sculo XX. A transio demogrfica, possibilitada pela

    ampliao do acesso a bens e servios de saneamento, sade, s diversas tecnologias e

    s protees sociais, aponta tanto para o aumento da expectativa de vida quanto para o

    aumento da proporo da populao com idade superior a 60 anos. A idade mdia do

    brasileiro em 1940 era de 43 anos e atualmente se aproxima dos 72 anos (Fonte: IBGE).

    E as projees populacionais indicam que at 2025 esses nmeros continuaro a crescer,

    fazendo com que nos prximos vinte anos a populao de idosos torne-se maior que a

    de crianas e jovens.

    Pode-se falar em uma nova configurao social, no apenas a partir destes dados

    demogrficos, mas partindo principalmente da observao da crescente mobilizao de

    idosos em movimentos sociais, da implantao de marcos legais visando garantia de

    direitos, da criao de polticas pblicas especficas e da oferta de bens e servios

    direcionados a este segmento.

    Os impactos gerados pelo envelhecimento populacional no mbito poltico e

    econmico j so observados nas discusses sobre modelos previdencirios, sobre

    5

  • regras para a aposentadoria, na emergncia da profisso cuidador, na controversa

    pactuao entre famlia e Estado para o estabelecimento de uma rede de proteo aos

    idosos e nas propostas de acessibilidade. Entretanto, para alm destas demandas

    relacionadas ao campo da poltica, a velhice tem trazido cena questes antes evitadas

    ou no relacionadas a ela no imaginrio comum. O debate se modificou e temas como a

    incluso digital, a sexualidade, o lazer, ganharam visibilidade na agenda de parte dos

    idosos.

    Os discursos sobre a velhice encerram um conjunto de significantes recorrentes

    que, analisados luz de variados campos do conhecimento, podem revelar traos

    marcantes da subjetividade contempornea, oferecendo subsdios para a formulao de

    questes sobre como o processo do envelhecimento se inscreve nas sociedades

    capitalistas ocidentais.

    Na construo analtica proposta pela psicanlise o sujeito concebido a partir

    da sua interao com o simblico, sem a qual no chega a constituir sua humanidade, no

    sentido de apreender as leis da cultura, seus cdigos e seus interditos. O social ento

    perfaz o sujeito antes mesmo de seu aparecimento biolgico no mundo, ao inscrev-lo

    na ordem simblica anterior e exterior a ele. Ser tambm a dimenso social que

    oferecer ao sujeito os elementos com os quais sero produzidas as formas de

    subjetivao, sendo este um processo scio-histrico contingente, como demonstram as

    diversas formaes sociais, suas formas de gozo e seus respectivos modos de mal estar.

    Posto que o sentido da existncia no dado de antemo, depende sempre de uma

    construo coletiva que engloba as esferas do social e do individual (Kehl, 2004).

    Interessa ento discutir qual o possvel lugar ocupado pelos velhos em uma

    cultura que valoriza atributos dos quais a velhice se v despojada e problematizar

    dilemas que se apresentam ao sujeito que envelhece. Como este lugar se constri,

    apreendido e modificado? Quais discursos do Outro sustentam a velhice no imaginrio

    de todos ns?

    A discusso principia pela desnaturalizao da velhice, apontando sua

    articulao ao mundo social. Sobre o sujeito velho incidem demarcaes eminentemente

    sociais, embora a velhice seja concebida como processo biolgico comum a todos os

    homens e como parte natural de nosso curso de vida. Entretanto, as noes cronolgicas

    e biolgicas permitem no mais que uma viso homogeneizante e parcial sobre o

    processo de envelhecimento, retirando dele as especificidades advindas da rede de

    relaes sociais que constituem os sujeitos. Mesmo porque os discursos sobre a

    6

  • dimenso biolgica do ser so tambm uma construo que tm se modificado ao longo

    do tempo, podendo ser datada e localizada historicamente. Como indica Birman:

    As descobertas biolgicas multiplicam o poder social da medicina, conferindo perspectiva universalizante, presente no discurso naturalista, uma legitimidade que silencia qualquer considerao de ordem simblica e histrica(...) O reconhecimento do carter simblico do corpo impede sua representao como apenas uma mquina antomo-funcional, constituda por mecanismos bioqumicos e imunolgicos.

    BIRMAN: 2005: 12

    A possibilidade de pensar a categoria velho parece definir-se imediatamente por

    oposio categoria jovem, porm, a velhice, entendida como noo construda e

    varivel, nos permite observar por entre suas diversas formas que o velho no se define

    apenas por esta oposio imediata. Esta uma possibilidade localizada em um sistema

    maior de classificaes, onde os grupos sociais so demarcados por valores,

    experincias comuns, qualidades e descontinuidades. Assim, nem sempre existiu o

    modelo hegemnico do velho, tal como o pensamos hoje, apesar do conhecimento sobre

    as diferenas geracionais em outros grupos sociais ao longo da histria e pontuar-se a

    existncia de mltiplas velhices.

    O carter absolutamente varivel do envelhecimento se configura a partir dos

    discursos distintos que so elaborados para vivenci-lo e para represent-lo. Nota-se,

    por exemplo, que em um espao bem curto de tempo se operou uma transformao

    radical na representao da velhice, acompanhada da expanso da longevidade na

    maioria dos pases. Em uma breve exposio podemos mencionar a criao de termos

    como terceira idade e melhor idade, refletindo uma alterao na concepo que

    caracterizava a velhice como perodo no qual predominavam perdas.

    O velho, o idoso, a pessoa idosa e a velhice so construes culturais cuja

    diversidade revela mudanas de status ao longo do tempo. Embora estejam

    correlacionadas ao processo biolgico do envelhecimento que se materializa no corpo,

    elas adquirem significados muito diferentes quando se realizam deslocamentos espaciais

    e temporais.

    Neste panorama, observam-se concepes que atribuem aos velhos, valores

    como sabedoria, experincia, maturidade e enxergam a velhice como perodo de

    serenidade. Observa-se tambm uma concepo que associa velhice noes de

    inutilidade, invalidez, perdas e incapacidade. Mas a concepo que hoje tem ganhado

    7

  • espao aquela que tenta atribuir um novo lugar velhice, lanada agora para ser mais

    um perodo de atividades, no qual o sujeito tem a possibilidade ou a obrigao de

    manter-se ativo e saudvel para desfrutar de ofertas de lazer e de um mercado de

    consumo direcionado a ele.

    Temos os novos velhos, produzidos de acordo com um padro de

    responsabilizao do sujeito pelo autocuidado, recoberto por um vis moral, no qual a

    velhice deve ser gerida e exibida de modo a se encaixar em padres de sade e

    funcionalidade disseminados pelo discurso mdico. Torna-se relevante investigar e

    discutir como os discursos da medicina, apoiados na centralidade que o corpo adquire

    na conformao das identidades e na produo das subjetividades contemporneas,

    promovem tais padres.

    Este estudo pretende realizar uma leitura de alguns significantes que se oferecem

    para ancorar o velho nos discursos dominantes, a partir da anlise das ofertas do

    mercado do antienvelhecimento, utilizando conceitos de campos do conhecimento como

    a psicanlise, a filosofia, a gerontologia e as cincias sociais.

    Tendo como princpio que estes discursos respondem a uma demanda do Outro,

    interrogar os imperativos que incidem sobre os sujeitos nos permite refletir sobre os

    novos paradigmas para a velhice, apontando de que forma articulam-se a elementos

    constitutivos e predominantes em nossa poca, tais como a lgica do consumo, a

    supervalorizao de atributos da juventude e a cultura imagtica.

    Realizar esta interrogao, face s projees populacionais, tem sua relevncia

    justificada. Entretanto, para alm desta perspectiva futura de sociedades cada vez mais

    envelhecidas, so os dilemas do sujeito contemporneo que se pretende investigar.

    8

  • CAPTULO I

    MLTIPLOS DISCURSOS, VRIAS VELHICES

    1.1. A terceira idade e a emergncia de uma nova imagem para os velhos

    Resultante de determinantes sociais, culturais e biolgicos, o processo do

    envelhecimento encerra, na dimenso do sujeito, transformaes corporais, sociais e

    psquicas, formando um registro multidimensional e postulando a existncia de vrias

    velhices. Cada uma delas atada a um discurso especfico, cujo suporte simblico se

    forma a partir de diferenas.

    Ao falar da velhice, os discursos biomdicos tentam defini-la a partir da perda de

    capacidade funcional do organismo associada passagem do tempo. Interpretao que

    parte das transformaes observveis no corpo para criar parmetros totalizantes, que

    referenciam o imaginrio acerca de como se envelhece. Embasam assim o critrio

    cronolgico utilizado para indicar quando uma pessoa pode ser considerada velha, dado

    que o sujeito comea a envelhecer a partir do nascimento. Longe de ser preciso ou

    uniforme, corresponde antes a uma arbitrariedade, j que este processo no ocorre de

    maneira homognea entre pessoas de mesma idade (Groisman, 2002).

    A impreciso da categoria no decorre apenas da impossibilidade de quantific-

    la ou determinar seu incio, com base na idade ou nas alteraes fisiolgicas, decorre

    tambm da observao das mudanas discursivas produzidas sobre ela. A velhice,

    desnaturalizada e descolada do arbtrio biocronolgico, permite notar que o velho no se

    define apenas pela relao contrastiva ao jovem, mas abriga mltiplas faces

    (Mercadante, 2004). Para alm das transformaes no real do corpo, o processo de

    envelhecer reitera a singularidade do sujeito, que chega a ser velho carregando as

    marcas diferenciadoras e constitutivas da sua histria, compondo-se tambm de cortes

    socioeconmicos, socioculturais, tnicos e de gnero.

    O prolongamento dos anos de vida e a longevidade - fenmenos nunca

    experimentados nesta proporo na histria humana - junto s transformaes scio-

    econmicas e polticas, trouxeram consigo um espao a ser revestido simbolicamente

    por novas concepes e produes discursivas. Produziram-se outras formas de

    9

  • classificar, codificar e representar a temporalidade na vida, separando-a em etapas e

    atribuindo injunes valorativas a cada uma delas. Neste contexto, designaes como

    terceira idade, envelhecimento ativo, antienvelhecimento, melhor idade, aposentadoria

    ativa, idoso e pessoa idosa passaram a compor o vocabulrio corrente das conversas

    cotidianas, dos movimentos sociais, das ofertas publicitrias e da agenda poltica.

    Expresses que buscam dotar de autonomia e visibilidade este segmento populacional,

    mas que encerram uma equivocada homogeneizao.

    Debert (2004, pg.2) atestando que as formas pelas quais a vida periodizada,

    as categorias de idade presentes em uma sociedade e o carter dos grupos etrios nela

    constitudos so um material privilegiado para pensarmos na produo e reproduo da

    vida social indica como a noo de curso de vida foi aos poucos sendo

    institucionalizada nas sociedades ocidentais modernas. Assim, a vida humana passou a

    ser concebida como uma sucesso de estgios delimitados pelo critrio cronolgico, e

    cada um deles com caractersticas bem distintas. Os significantes infncia, adolescncia,

    juventude, maturidade, terceira idade foram se constituindo e tomando espao ao longo

    da modernidade, como representaes de diferentes momentos da vida, designando

    atribuies e posies sociais.

    A anlise do significante terceira idade permite reafirmar o carter escorregadio

    das categorias relacionadas temporalidade. A vida, separada em etapas, fases e

    estgios, remete mais uma vez aos vrios modos de se conceber e vivenciar o tempo.

    Algo menos ligado regulao cronolgica que construo simblica. Ressaltamos

    ser este mais um exemplo de discurso que se oferece como possvel resposta, dentre

    outras, para o sujeito vivenciar a velhice, encerrando, muitas vezes, at formas de neg-

    la.

    Interessa notar como a categoria terceira idade, amplamente utilizada para fazer

    referncia s pessoas com mais de 60 anos, emerge de um contexto especfico, no qual

    se conjugam elementos como a formao de um contingente de aposentados com peso

    suficiente na sociedade, demonstrando dispor de sade, independncia financeira e

    outros meios apropriados para tornar reais as expectativas de que esse perodo

    propcio realizao e satisfao pessoal (Debert, Ibid., p.11).

    No imaginrio social, predominam esteretipos associando a velhice a um

    perodo de perdas, esmaecimento dos desejos, decadncia fsica, isolamento, senilidade,

    dentre outras atribuies negativas. A proximidade da morte e as limitaes advindas

    das modificaes corporais pem em questo a finitude e a prpria condio humana.

    10

  • Conforme Goldfarb (1998, pg.15) Perde-se a beleza fsica padronizada pelos modelos

    atuais, a sade plena, o trabalho, os colegas de tantos anos, os amigos, a famlia, o bem

    estar econmico e fundamentalmente, a extenso infinita do futuro {...} Porm, tem

    convivido junto a esta percepo uma concepo que sublinha aspectos positivos,

    podendo resultar em um perodo de atividades e independncia, tal como se pretende a

    chamada terceira idade, apontada por Palcios

    Embora no passado fosse vista como um ltimo estgio homogneo da vida, dominado tambm pelo que se intitula morte social, a velhice, atualmente, um universo altamente diverso, composto de aposentados precoces e mdios, idosos capazes e idosos com vrios graus e formas de limitao. A terceira idade se estende na direo de grupos mais jovens e de grupos mais velhos e redefine de forma substancial o ciclo de vida (...)

    PALACIOS: 2004: p. 8

    O uso do termo terceira idade em substituio palavra velhice pode ser

    interpretado como eufemismo, uma maneira de manter afastado do discurso elementos

    relacionados a ela de forma negativa, por serem alusivos perda de atributos

    considerados centrais para o sujeito sustentar sua existncia social, como autonomia,

    juventude, independncia. Mas tambm denota a construo de uma nova forma de

    conceber, representar e vivenciar o envelhecimento. Conforme indica Maia:

    (...) a adoo de uma nova representao para as pessoas em idade avanada, associada produtividade, passa a compor os discursos sobre a velhice na atualidade. Acompanhando esta modificao, novos estilos de vida esto sendo propostos, culminando na produo de uma nova imagem para a velhice. Um modo de ser velho diferente das imagens comumente associadas ltima etapa do curso de vida proposto, em que s velho quem quer.

    MAIA: 2008: 3

    Nesta nova representao, juventude e velhice descolam-se da regulao do

    critrio cronolgico, transformando-se em valores e modificando a forma como a ordem

    social insere as pessoas medida que envelhecem. Restando ao sujeito aderir ou no a

    determinadas prticas, a fim de manter ou evitar uma ou outra condio, independente

    da idade. Elevada a ideal social, a juventude e seus traos caractersticos, dispostos em

    imagens corporais amplamente difundidas, torna-se um bem a ser alcanado, mantido e

    enaltecido. De acordo com Debert

    11

  • {...} a juventude perde conexo com um grupo etrio especfico e passa a significar um valor que deve ser conquistado e mantido a qualquer idade atravs da adoo de formas de consumo de bens e servios apropriados. Por outro lado, a velhice perde conexo com uma faixa etria especfica e passa a ser um modo de expressar uma negligncia com o corpo, de falta de motivao para a vida, uma espcie de doena auto-infligida {...}

    DEBERT: 2004: 3

    1.2. Discursos contemporneos: envelhecer sob o paradigma da juventude

    Considerando a proposio psicanaltica que entende a constituio do sujeito a

    partir da entrada deste em determinada ordem simblica, atravs da linguagem, se aceita

    tambm o carter dinmico, arbitrrio e varivel desta ordem. So observveis, na

    perspectiva histrica, as transformaes na produo das subjetividades, evidenciando

    que os modos de existncia e seu correspondente sentido provm de uma lgica que

    extrapola a condio biolgica, embora demarquem os sujeitos individualmente.

    Neste contexto, as subjetividades so produzidas no lastro dos ideais de seu

    tempo. E os discursos sobre a velhice referenciam e refletem estes ideais. Ao

    mencionar a emergncia de novas representaes sobre ela, verifica-se a presena de

    atributos e valores que tem predominado entre os diversos segmentos etrios, como a

    centralidade do corpo, a supervalorizao da juventude e da imagem, o consumismo e a

    busca permanente por atividades. Transformando o sujeito em gestor de seu

    envelhecimento e o principal responsvel por ser ou no bem sucedido nesta tarefa.

    se algum no ativo, no est envolvido em programas de rejuvenescimento, se vive a velhice no isolamento e na doena porque no teve o comportamento adequado ao longo da vida, recusou a adoo de formas de consumo e estilos de vida adequados e, portanto, no merece nenhum tipo de solidariedade

    DEBERT: 1999: 35

    Ao discutir a reprivatizao da velhice, caracterizada pela criao de uma srie

    de etapas intermedirias na vida adulta e pela responsabilizao do sujeito quanto ao

    cuidado de si, Debert (ibidem,p.18) demonstra como alguns elementos foram

    fundamentais para a construo deste novo olhar sobre a velhice. Desde as

    transformaes no mundo do trabalho, com a ampliao dos tipos de ocupao e a

    aposentadoria em massa, passando pela expanso do mercado de consumo e a oferta de

    tcnicas a servio do autocuidado. A velhice ento passa a ser vista tambm como etapa

    12

  • privilegiada para o lazer e atividades em geral, um perodo em que se dispe de grande

    quantidade de tempo livre, ideal para por em prtica projetos anteriormente adiados.

    Acionam-se, a partir da, mecanismos de estmulo ao consumo de bens e

    servios, e o mercado se organiza para atender demandas especficas deste segmento

    populacional. A adeso ao consumo passa ao sujeito a impresso de ter garantia de

    permanncia no fluxo da vida social, sem risco de ver-se excludo. Com nfase na oferta

    de estratgias de antienvelhecimento, o corpo e a sade tornam-se alvos prioritrios da

    construo e gesto de uma velhice bem sucedida. Artefatos de toda ordem so

    mobilizados para garantir sucesso na busca por manter-se afastado do espectro

    desmoralizante das doenas ou da falta de vitalidade.

    No campo onde se abrem possibilidades afirmativas e de realizaes para quem

    chega a esta etapa da vida, exige-se, por outro lado, ferrenha disciplina, a fim de se

    desfrutar da longevidade. As ofertas do mercado esto articuladas em diversas frentes:

    as promessas da medicina do antienvelhecimento, a indstria cosmtica, as dietas, as

    cirurgias plsticas, os suplementos alimentares, a rotina de exerccios fsicos, os

    medicamentos, enfim, recomendaes variadas.

    A publicidade, os manuais de auto-ajuda e as receitas dos especialistas em sade esto empenhados em mostrar que as imperfeies do corpo no so naturais nem imutveis e que, com esforo e trabalho corporal disciplinado, pode-se conquistar a aparncia corporal desejada; as rugas ou a flacidez se transformam em indcios de lassitude moral e devem ser tratadas com a ajuda dos cosmticos, da ginstica, das vitaminas, da indstria do lazer.

    DEBERT: 1999:20

    O sujeito instrumentaliza-se atravs da adoo de prticas modeladas pelo

    discurso tecnocientfico para remediar o real do corpo envelhecido, da finitude e da

    morte. Tambm responde a uma demanda do Outro que, na contemporaneidade, tem o

    individualismo, o hedonismo e o narcisismo como marcas centrais. Como indica

    Birman (2000, p.246) o eu que est em questo o tempo todo, alargado e exaltado em

    suas fronteiras (...) a estetizao da existncia que toma volume como estilo

    existencial do sujeito.

    As promessas da modernidade, assentadas na extrema valorizao do indivduo e

    no desenvolvimento do capitalismo, encontraram condies ideais para consolidar a

    noo de gozo irrestrito que marca a contemporaneidade. Frente a isso, a experincia da

    velhice passa a ser revestida por noes que expulsam de seu horizonte aluses a perdas

    13

  • e limites, tanto no que se refere ao corpo quanto aos papis sociais, explicitadas em

    termos como melhor idade.

    Conectado ao fluxo das promessas mercadolgicas e aos discursos da

    publicidade, o sujeito prende-se a lgica do consumo como forma de manter-se ativo, j

    que estas enunciam, principalmente atravs de intensa produo imagtica, valores

    como prazer, culto de si, beleza, satisfao e perfeio.

    Analisando anncios publicitrios de cosmticos em revistas femininas dos

    ltimos 20 anos, Palcios (2004) demonstra como o mercado tem adaptado um discurso

    especfico para oferecer produtos que se destinam a remediar o envelhecimento. Sem

    fazer referncias diretas, com extremo cuidado, tentando manter a velhice longe do

    foco, so agenciadas maneiras indiretas para aludir s mudanas fsicas decorrentes da

    passagem do tempo. Do mesmo modo se tenta demonstrar que tais mudanas no so

    irreversveis, mas passveis de correo, a depender do sujeito.

    No percurso enunciativo da publicidade de cosmticos identificamos um velado jogo de linguagem que determina, por meio de associaes derivadas da relao existente entre dois termos antnimos (as aluses velhice, que deve ser combatida, e as aluses juventude, que corresponde ao estado constantemente almejado), que a busca pela juventude resulta em um comportamento ativo de combate velhice e/ou que o estado de ser velho deve sempre ser acompanhado da busca pela conservao da juventude.

    PALACIOS: 2004: 12

    Em tempos de espetacularizao da vida social , retomando o conceito clssico

    de Debort (1967), a imagem torna-se um tema relevante para a discusso da velhice.

    Estando as relaes sociais convertidas a uma calculada oferta da imagem de si, a busca

    incessante pelo cuidado da aparncia se traduz na busca por manter-se ajustado a um

    padro que elegeu signos identificados juventude como os ideais. Neste recorte

    especfico do mercado do antienvelhecimento, subjaz o discurso que tenta controlar os

    efeitos do tempo sobre o corpo, ou controlar o tempo que retira do sujeito a cobertura

    narcsica ao destitu-lo da juventude. A promessa do antienvelhecimento a promessa

    da manuteno do lao social, atravs da manuteno dos atributos valorizados

    socialmente.

    Neste sentido, a possvel valorizao da terceira idade ocorre na medida em que

    os velhos se mantm ligados a um repertrio de valores e prticas distantes dos

    esteretipos da velhice, ou seja, quando se dispem a viver esta condio resistindo ou

    14

  • negando limites, preocupando-se com a aparncia e a sade; mantendo uma rotina de

    atividades de lazer e consumo assemelhadas a perodos anteriores da vida, conforme os

    imperativos de gozo da cultura contempornea.

    Conjuga-se assim, face ao envelhecimento, a angstia estrutural do temor da

    morte e o mal estar de parecer desviante em uma sociedade na qual a imagem do corpo

    jovem, entregue exaustiva busca da perfeio, tornou-se suporte moral, indicador de

    felicidade e bem estar. As ofertas infindas do mercado frente s vicissitudes do viver

    insatisfaes, perdas, adiamentos produzem a falsa noo de que possvel apartar o

    sujeito de todo mal estar atravs do consumo, como se o desejo fosse tangvel e a

    resposta a ele possvel, eliminando a falta.

    15

  • CAPTULO II

    A VELHICE TANGVEL

    2.1. As bioidentidades : a cincia e o sentido da existncia

    Dentre as vrias formas de se interpretar a velhice, possvel situar tambm um

    discurso que a patologiza, concebendo o envelhecimento como processo passvel de

    tratamento e substituindo os referentes culturais por referentes fsicos. Nesta concepo,

    confunde-se sade com juventude e o olhar sobre a velhice passa a se ater sobre as

    mudanas corporais, observadas exclusivamente como degenerao do organismo

    (Groisman, 2002)

    Partindo da avaliao de Birman (2007) entende-se que esta interpretao

    fundamenta-se em uma passagem de ordem histrica e em uma mudana

    epistemolgica, a partir das quais a medicina cientfica passa a ocupar lugar central na

    regulao da vida social.

    Acerca da modernidade, preciso compreender que as sociedades ocidentais passaram a ser permeadas pelos discursos mdicos, os quais passaram a regular desde ento todas as prticas e laos sociais. Assim, a modernidade ocidental implicou uma medicalizao do campo social como um todo. Desde ento, portanto, nada seria estranho e exterior ao olhar mdico, que passou no apenas a interpretar a totalidade dos acontecimentos sociais, mas tambm a intervir sobre ela.

    BIRMAN: 2007: 533

    A corporeidade amparada pelo estatuto de verdade do saber biomdico -

    passa ento a sobrepor outras dimenses do humano, reduzindo-o a uma contingncia

    funcional, cuja subjetividade se referencia na anatomia e nos processos orgnicos. A

    crena no binmio sade/felicidade se estabelece articulada associao imaginria

    entre perfeio fsica e retido de conduta.

    A imagem de um corpo saudvel, calcado na exterioridade, se sustenta na

    exibio da aparncia rejuvenescida, visto que a perda de atributos da juventude

    corresponderia perda da prpria condio de sade. Alm de demonstrar o fracasso do

    sujeito na tarefa de cuidar de si, tal qual um dever moral, a exposio de marcas, rugas,

    doenas crnicas, fragilidade, dependncia, dentre outras caractersticas que podem

    16

  • acometer os idosos, expe o inexorvel encontro com a finitude e a impossibilidade de

    dominar por completo o curso do viver.

    O conjunto de tecnologias capazes de prolongar a expectativa de vida,

    estendendo artificialmente, por vezes, este perodo, assim como aquelas que se

    oferecem para retardar o aparecimento de sinais de envelhecimento compe hoje um

    movimentado e rico mercado. Representam tanto o desenvolvimento do campo

    tcnocientfico quanto a busca pelo controle da vida, extensivo ao domnio da natureza.

    A promessa do bem estar, conjugando sade e longevidade, se mostra ao sujeito como

    possibilidade de expulsar os conflitos da vida humana prevenindo disfunes fsicas.

    Investe-se na noo de qualidade de vida associada busca de um ideal de

    sade, focado na chamada capacidade funcional do sujeito e em sua performatividade.

    A vivncia da velhice passa a ser redescrita a partir da busca do controle corporal e as

    subjetividades contemporneas conformadas atravs dos discursos da tecnocincia

    (Biehl, xxxx). Neste ponto, a identidade dos sujeitos reitera-se na referncia biolgica e

    extrai dela os significados da existncia.

    Tomada por Lucien Sfez (1996, pg.24) como utopia do sculo XXI, a Grande

    Sade restaria como projeto mundial, expressa em corpos perfeitos, construdos a base

    de controle e preveno. O foco da ateno redirecionado para o viver e para fazer

    viver as biotecnologias.

    Pois, se h um lugar que resiste dissoluo do sentido, este lugar o nosso corpo, centro e foco de uma identidade, portador da continuidade da espcie humana {...} Radiografado, auscultado, em suas menores dobras, substitudo por pedaos, enxertado em todos os sentidos, prometido sobrevida de seus rgos, o corpo humano fonte e foco de pesquisas, tecnocientficas e paracientficas, provocando uma inflao de proibies e de injunes que confluem num discurso de mdia bastante confuso, e de prticas autoritrias at o totalitarismo {...} Desdobra-se ento uma espcie de atividade de controle destinada a preservar a espcie humana dos hbitos singulares dos indivduos, culminando na introduo de uma moral sanitria politicamente correta

    SFEZ: 1996: 41

    Frente ao enfraquecimento de referenciais tradicionais como a famlia, a religio

    e as utopias polticas, a busca pelo sentido da existncia volta-se para o corpo,

    materialidade apontada como capaz de conferir segurana, um saber e uma verdade

    sobre o ser.

    17

  • A face narcisista e hedonista expressa nos valores identitrios da

    contemporaneidade remonta a uma concepo segundo a qual, como demonstra Jurandir

    Freire Costa no artigo A Subjetividade Exterior, o sujeito o ponto de partida e

    chegada do cuidado de si e que Quanto maior, mais imediato, mais constante for o

    prazer, mais feliz o sujeito. Neste cenrio o autor observa a configurao de um novo

    tipo identitrio: a bioidentidade, acompanhada pela bioascese, a exigir alta dose de

    disciplina contra hbitos deletrios. Um modelo pautado pelo individualismo e guiado

    pela noo de qualidade de vida, tributria dos ditames naturalistas. Mais adiante, no

    mesmo artigo, exemplifica O justo o saudvel; o reto o que se conforma ao projeto

    de vida bem-sucedida, do ponto de vista biolgico.(id.ibidem, pg. 3).

    A velhice, analisada sob o paradigma bioidentitrio, confronta o sujeito com o

    ideal de perfeio do discurso cientfico disposto nas prticas bioascticas. Em busca de

    adaptar-se norma, ou seja, ao modelo vigente, o sujeito adere a uma conduta de

    constante autovigilncia e autocontrole. Como indica Ortega:

    O auto-aperfeioamento individual tornou-se um significante privilegiado por meio do qual os indivduos exprimem sua autonomia e se constituem num mundo competitivo. Atravs das numerosas prticas bioascticas, o indivduo demonstra sua competncia para cuidar de si e construir sua identidade.

    ORTEGA: 2003: 65

    Entretanto, o corpo por onde circulam nossos conflitos pulsionais, onde nossas

    representaes recalcadas so traduzidas, por onde expressamos nossas emoes, nossos

    apetites e nossas trocas com o mundo (Messina, 2002, pg 3), mesmo submetido a

    rgida rotina disciplinar , no deixa de ser campo ingovernvel e de permanentes

    transformaes. Diante do processo irreversvel do envelhecimento, da imagem no

    reconhecida, disforme e em desacordo com os padres esperados, o sujeito confronta-se

    com sua impotncia.

    Envelhecer ento pode assumir um carter de falha explcita e reiterada.

    Submetido lgica da intensa exposio, de onde a visibilidade lhe garante existncia

    no mundo social, o sujeito encontra-se tambm vulnervel ao olhar vigilante do Outro.

    A cada sinal que desestabiliza os ndices da boa sade e da imagem idealizada, o sujeito

    considerado inapto, fraco, desviante; alm de ser responsabilizado por no ter

    empenhado os esforos necessrios para evitar tal condio.

    18

  • 2.2. O mal estar na velhice excluso da cena espetacular

    Retomando o texto clssico de Freud (1930), no qual o mal estar descrito como

    condio estrutural do humano, pode-se, a exemplo de Bauman (1998) na crtica ps-

    modernidade, circunscrev-lo aos condicionamentos de um perodo histrico. Para alm

    da anlise sobre a constituio do psiquismo humano e das consideraes acerca da falta

    e do desamparo inerentes a ele, observa-se que os ideais sociais so tambm agentes de

    mal estar. Na perspectiva do saber analtico, o conhecimento que avana sobre a

    singularidade, avana tambm sobre o tipo de lao social disposto pela contingncia

    histrica. Assim, os sintomas que ressoam na atualidade tanto tm a dizer sobre o

    sujeito quanto sobre sua poca.

    Diversas anlises identificam na chamada ps-modernidade uma crise referente

    ao acirramento entre aquilo que o sujeito assume ao cumprir a lgica do individualismo

    colocando-se como centro da cultura, despojado da tradio e da temporalidade - e os

    limites impostos por sua condio transitria, precria e finita. Na anlise de Contardo

    Calligaris (1993), para que advenha o indivduo, nega-se a herana simblica, gerando

    uma ausncia de recursos identificatrios.

    Ora, se uma cultura - a ocidental consiste em fazer do indivduo o valor social maior, preciso entender que esta cultura, quando se transmite, se transmite com o imperativo de odi-la. Pois o indivduo que seu valor supremo, somente poder se afirmar ao recusar a cultura que lhe est sendo transmitida.

    CALLIGARIS: 1193:188

    Apontando outros elementos desta crise, Mario Pablo Fuks (1999, pg.70)

    conclui Na ps-modernidade, ser homem implica em ser reconhecido como imagem

    por outro que tambm o , o que produz um lao social no qual o outro se torna to

    somente um espectador, compondo relaes esvaziadas e superficiais. Adiante comenta:

    Na composio da personagem que identifica o sujeito, num cenrio social concebido como espetculo, a imagem do corpo ganha um papel de relevncia. A exacerbao da lgica de sujeitos-fachada, constitudos de imagem, sem volume nem interioridade, ter fortes efeitos patognicos que envolvem a corporalidade {..}

    FUKS: ibidem: 72

    Se o lugar social da velhice demarcava-se pela transmisso de valores e saberes

    e hoje estes se disseminam atravs de meios diversos, alm de haver uma tendncia a

    19

  • dissolver a temporalidade numa contnua reiterao do tempo presente, Goldfarb (1998,

    pg13) prope Cabe ento perguntarmos sobre a particular subjetivao do ser velho

    em um momento histrico onde a velhice perdeu as atribuies prprias da sociedade

    tradicional{...}.

    O mal estar que caracteriza a condio humana, advindo de sua estrutura

    faltante, incide sobre a velhice de modo pronunciado medida que, na formao social

    atual, grande parte dos velhos encontra-se fora das relaes produtivas do mercado de

    trabalho, fora da dinmica produtor/consumidor, conseqentemente vive sem

    visibilidade social e portanto, inexiste ao olhar do Outro. Na avaliao de Bauman

    (1998), o critrio de pureza da ps-modernidade - tal como um ideal capaz de dar

    segurana aos indivduos contra estranhos e impuros se assenta na aptido de

    participar do jogo consumista e na hostilidade a qualquer coisa constante. Assim,

    aqueles que no se mostram capazes de exercer sua liberdade individual realizando

    escolhas frente s mltiplas ofertas do mercado, so falhos e representam a impureza do

    sistema.

    Em relao s mudanas corporais ocorridas durante o envelhecimento e

    demarcadas na velhice, Messina explicita pontos centrais de outra fonte de angstia,

    face aos rgidos padres estticos de uma cultura focada na imagem do corpo perfeito.

    O corpo do velho, que tem modalidades anatmicas e modalidades de encontro com outros corpos, perde seu estatuto erognico com a eroso natural e irreversvel da velhice. A imagem que ele tem de si prprio no permanece mais assegurada. Algo em seu corpo no se equilibra mais e se destri permanentemente enquanto sua mente permanece inquieta por viver. O velho passa ento a vivenciar uma amarga dicotomia entre corpo e mente.

    MESSINA: 2002: 3

    Para Ortega (2003), a angstia se origina na vulnerabilidade do sujeito ao

    persecutria do olhar do outro, assim como provm da ambivalncia entre o imperativo

    da busca do prazer e a exigncia de controle corporal. A relao contraditria entre

    hedonismo e disciplina precisa contemplar consumo ilimitado e comedimento, servindo

    integralmente ideologia da sade, para a qual os sinais da idade tornaram-se marcas

    de averso e patologia.(pg 65)

    Cabe ento observar que a velhice faz furo no discurso contemporneo e o velho

    torna-se um ser dissonante em um sistema de valores que se fundamenta no efmero, na

    20

  • obsolescncia programada, no consumo, na cultura da imagem e nos ideais ligados a

    juventude. Afinal, vendo-se, aos poucos, despojar-se dos atributos imagticos e dos

    recursos materiais que o tornam apto a participar do espetculo, o sujeito envelhecido

    percebe-se excludo, apartado do olhar do Outro.

    21

  • CONCLUSO

    Considerando a influncia objetiva dos cortes scio-econmicos, culturais,

    tnicos e de gnero na produo de diferenas sobre os modos de vivenciar o processo

    de envelhecimento e a prpria velhice, certas formaes discursivas se impem com

    fora e podem ser descritas como dominantes em uma dada poca.

    Os problemas da velhice desassistida, para aqueles que envelhecem sob o signo

    da pobreza, evidenciam e pem em relevo outras questes, que, embora no tenham

    sido diretamente abordadas no corpo do texto, so de grande importncia nos estudos

    sobre o tema. Em pases onde o debate poltico e a rede de ateno a este segmento

    populacional so incipientes, a discusso ainda se situa na garantia dos direitos mnimos

    e na erradicao da pobreza, condio de grande parte dos idosos.A temtica dos

    direitos dos idosos, das polticas pblicas, da desigualdade social, dos marcos legais, da

    sade pblica, dentre outras, contemplam mais detidamente a velhice fragilizada e

    idosos dependentes, assim como fazem parte da histria dos movimentos sociais em

    busca de visibilidade e representatividade poltica.

    Realizada a reflexo sobre as formas de subjetivao contemporneas, a partir

    de autores que se propem a discutir caractersticas especficas da formao scio-

    histrica atual, possvel observar como os discursos que oferecem suporte simblico

    velhice so diversificados, embora alguns significantes se destaquem pela recorrncia.

    Interrog-los , portanto, leva a conhecer um campo de representaes especficas, que

    nos falam no apenas da velhice, mas situam a posio dos sujeitos a qualquer tempo da

    vida.

    Pode-se reiterar que as mudanas nos discursos sobre a velhice no se deram

    necessariamente a partir da transio demogrfica que vem indicando a expanso do

    tempo mdio de vida das pessoas e trata a longevidade como fenmeno cada vez mais

    comum. Cabe afirmar que estas mudanas, notadamente vinculadas inveno da

    terceira idade (Debert, 1997), so produto de uma transformao mais ampla, tanto nas

    estruturas sociais quanto nas subjetividades. Resultam, portanto, de uma lgica que

    atravessa todas as idades, por estar plenamente articulada s demandas das sociedades

    capitalistas.

    Esta lgica se pauta pela valorizao do estilo de vida identificado juventude,

    que emergiu no ps-guerra e se disseminou atravs de vrios signos da cultura: na

    22

  • msica, na arte, nos comportamentos, na esttica, na sexualidade, na poltica, etc. Por

    isso, atualmente, ao falar de velhice evocam-se vrias representaes sobre a juventude,

    como aponta Maria Rita Kehl, no artigo A Juventude Como Sintoma da Cultura.

    A juventude um estado de esprito, um jeito de corpo, um sinal de sade e disposio, um perfil do consumidor, uma fatia do mercado onde todos querem se incluir. Parece humilhante deixar de ser jovem e ingressar naquele perodo da vida em que os mais complacentes nos olham com piedade e simpatia e, para no utilizar a palavra ofensiva velhice preferem o eufemismo terceira idade. {...} Ser jovem virou slogan, virou clich publicitrio, virou imperativo categrico - condio para se pertencer a uma certa elite atualizada e vitoriosa.

    Kehl: 2004: 1

    Reiterando um modelo de existncia baseado em elementos como a busca

    constante pelo novo, a experincia de intensas sensaes, a rpida e incessante

    substituio de objetos, as relaes fugazes, a idolatria do corpo, o individualismo e

    imperativo consumista , as sociedades capitalistas dispem um suporte simblico no

    qual ser velho exige, muitas vezes, a recusa da velhice. Novamente nas palavras de

    Kehl.

    O efeito paradoxal do campo de identificaes imaginrias aberto pela cultura jovem que ele convoca pessoas de todas as idades. Quanto mais tempo pudermos nos considerar jovens hoje em dia, melhor. Melhor para a indstria de quinquilharias descartveis, melhor para a publicidade melhor para ns?

    KEHL: ibidem: 2

    A propsito da discusso sobre a tentativa de fazer emergir uma verdade sobre o

    ser a partir do que tangvel no corpo, convm dizer que no cenrio onde O sentido da

    vida, antes referido, primordialmente, a valores religiosos, ticos ou polticos foi

    deslocado para o plano do debate cientfico. (Costa,2001,pg.2), tambm foi reduziu o

    espao para se criar coletivamente um saber sobre a existncia.

    Quanto temporalidade, os sentidos do viver quando condicionados a um tempo

    despojado de historicidade, demarcam para o sujeito um empobrecimento da sua

    experincia. A possibilidade de se reconhecer na dimenso temporal, inscrita na

    memria e na valorizao do passado, compe uma dimenso fundamental para o

    homem.

    Assim, os temas discutidos ao longo deste trabalho fizeram referncia ao

    cruzamento entre os valores estruturais da formao histrica atual e algumas

    23

  • caractersticas evidenciadas durante o processo do envelhecimento humano. Levando a

    perceber como os discursos do Outro atuam na conformao das subjetividades, se

    inscrevendo nos sujeitos atravs do lao social.

    Enfim, a despeito das variaes culturais e da singularidade de cada ser, a

    anlise de diversos dispositivos sociais leva a perceber que se tem oferecido aos velhos

    modos de subjetivao que implicam na negao da prpria velhice. Porm,

    considerando as projees populacionais, se lanam questes sobre a possibilidade de

    ocorrerem modificaes profundas nas estruturas das sociedades cuja populao est

    envelhecendo numa proporo nunca antes vista.

    Ao se estender o perodo de vida para um grande contingente de pessoas se

    criam novas necessidades de ordem material e social. Mesmo que os artefatos

    cientficos prometam respostas a elas, a experincia da velhice advoga, principalmente,

    a reinveno da forma de estar no mundo. Logo, as demandas para este novo cenrio,

    como por exemplo a convivncia intergeracional, a proviso de cuidados aos

    dependentes, a reestruturao do espao urbano com metas de acessibilidade, a

    adaptao da rede de bens e servios, etc., devero ser providas por vrias dimenses da

    vida social.

    O recorte terico e metodolgico deste trabalho se ateve em analisar algumas

    ofertas da cultura contempornea para a velhice, utilizando reflexes de autores que

    realizam uma crtica contemporaneidade. Entretanto, o envelhecimento, sendo

    multidimensional, torna imprescindvel que se estruture um olhar multidisciplinar sobre

    ele. Neste sentido, o campo de estudos deve ser ampliado, transcendendo o domnio do

    conhecimento biolgico, para avanar sobre as polticas pblicas, a sociabilidade e as

    produes simblicas, articulando a esfera da subjetividade e da sociedade.

    24

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  • SUMRIOINTRODUOCAPTULO IMLTIPLOS DISCURSOS, VRIAS VELHICES1.1. A terceira idade e a emergncia de uma nova imagem para os velhos1.2. Discursos contemporneos: envelhecer sob o paradigma da juventude

    CAPTULO IIA VELHICE TANGVEL2.1. As bioidentidades : a cincia e o sentido da existncia 2.2. O mal estar na velhice excluso da cena espetacular

    CONCLUSO BIBLIOGRAFIA