discriminaÇÃo de gÊnero no sistema penal · considerando a necessidade de um olhar específico...

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Edição 09 | Setembro de 2016 DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL Para discur alguns aspectos da discriminação de gênero na jusça criminal, a Rede Jusça Criminal con- vidou mulheres a escrever sobre temas como a selevidade do sistema penal, racismo, direitos sexuais, maternidade no cárcere, revista vexatória, indulto, mulheres indígenas presas e mulas do tráfico. Tradicionalmente quando é dada publicidade para as diversas violências que caracterizam o sistema prisio- nal essas denúncias são ilustradas por homens, em geral confinados em espaços minúsculos, superlotados e carentes de toda sorte de bens materiais. No entanto, há dois graves problemas nesse po de imagem e com os quais este bolem procura romper: a de que esse sujeito (supostamente) neutro violado pela jusça criminal é um homem e de que essas violências são apenas questões de gestão, isto é, eminentemente de- terminadas pela disponibilidade de recursos financeiros. A ruptura aqui não se restringe a apenas dizer que há mulheres impactadas por esse sistema, mas sim que o sistema de jusça criminal como um todo, cujos atores principais são o Poder Judiciário, o Ministério Público, as Defensorias Públicas e a advocacia, produz e reproduz discriminações de gênero que decorrem de escolhas sobre como interpretar e aplicar a lei. A discriminação de gênero na jusça criminal é caracterizada pela reprodução dos fatores de discriminação que se manifestam na assimetria das relações de poder entre homens e mulheres na sociedade, e pelo modo como determinadas condutas são criminalizadas, pela aplicação de regimes penais desproporcionais e pelas formas específicas de discriminação construídas no cárcere. Além disso, não é possível visibilizar e quesonar todas essas prácas sem considerar a interação do gênero com outros eixos produtores de subordinação e discriminação, como raça, classe, etnia e sexualidade. As mulheres são afetadas pelo sistema punivo principalmente pela repressão estatal a uma das principais estratégias de complementação de renda e sustento do lar a que as mulheres sem acesso ao mercado for - mal de trabalho recorrem: o varejo de pequenas quandades de drogas. Acusadas de tráfico na maioria dos casos, mulheres negras e pobres dificilmente têm acesso à liberdade provisória, são submedas a penas altas e têm direitos como progressão de regime, indulto e penas restrivas de direitos significavamente limitados. Dentro do ambiente carcerário, as mulheres ainda enfrentam condições de cumprimento da pena significavamente mais severas do que as previstas na lei na medida em que vêm seu direito à saúde desrespeitado, os direitos sexuais, controlados, os vínculos familiares rompidos e seu exercício da materni- dade controlado pelo Estado. Considerando a necessidade de um olhar específico para o encarceramento feminino, a Organização das Nações Unidas promulgou regras mínimas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privavas de liberdade para mulheres infratoras. As Regras de Bangkok, como ficaram conhecidas, constuem o principal marco normavo internacional e estabelecem um olhar diferenciado para as especificidades de gênero no sistema carcerário. A Rede Jusça Criminal trabalha pela ampla aplicação das Regras de Bangkok. Mesmo quando não são diretamente criminalizados, os corpos de mulheres são objeto de controle e re- pressão do sistema penal. A revista ínma vexatória, que ainda faz parte do codiano de estabelecimentos de privação de liberdade brasileiros, obriga principalmente mulheres - mães, esposas, companheiras e fi- lhas - ao desnudamento, à exposição e revista de órgãos genitais, como condição para a visita à pessoa com quem mantêm vínculo afevo e familiar.

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Edição 09 | Setembro de 2016

DISCRIMINAÇÃO DE GÊNERO NO SISTEMA PENAL

Para discutir alguns aspectos da discriminação de gênero na justiça criminal, a Rede Justiça Criminal con-vidou mulheres a escrever sobre temas como a seletividade do sistema penal, racismo, direitos sexuais, maternidade no cárcere, revista vexatória, indulto, mulheres indígenas presas e mulas do tráfico.

Tradicionalmente quando é dada publicidade para as diversas violências que caracterizam o sistema prisio-nal essas denúncias são ilustradas por homens, em geral confinados em espaços minúsculos, superlotados e carentes de toda sorte de bens materiais. No entanto, há dois graves problemas nesse tipo de imagem e com os quais este boletim procura romper: a de que esse sujeito (supostamente) neutro violado pela justiça criminal é um homem e de que essas violências são apenas questões de gestão, isto é, eminentemente de-terminadas pela disponibilidade de recursos financeiros. A ruptura aqui não se restringe a apenas dizer que há mulheres impactadas por esse sistema, mas sim que o sistema de justiça criminal como um todo, cujos atores principais são o Poder Judiciário, o Ministério Público, as Defensorias Públicas e a advocacia, produz e reproduz discriminações de gênero que decorrem de escolhas sobre como interpretar e aplicar a lei.

A discriminação de gênero na justiça criminal é caracterizada pela reprodução dos fatores de discriminação que se manifestam na assimetria das relações de poder entre homens e mulheres na sociedade, e pelo modo como determinadas condutas são criminalizadas, pela aplicação de regimes penais desproporcionais e pelas formas específicas de discriminação construídas no cárcere. Além disso, não é possível visibilizar e questionar todas essas práticas sem considerar a interação do gênero com outros eixos produtores de subordinação e discriminação, como raça, classe, etnia e sexualidade.

As mulheres são afetadas pelo sistema punitivo principalmente pela repressão estatal a uma das principais estratégias de complementação de renda e sustento do lar a que as mulheres sem acesso ao mercado for-mal de trabalho recorrem: o varejo de pequenas quantidades de drogas. Acusadas de tráfico na maioria dos casos, mulheres negras e pobres dificilmente têm acesso à liberdade provisória, são submetidas a penas altas e têm direitos como progressão de regime, indulto e penas restritivas de direitos significativamente limitados. Dentro do ambiente carcerário, as mulheres ainda enfrentam condições de cumprimento da pena significativamente mais severas do que as previstas na lei na medida em que vêm seu direito à saúde desrespeitado, os direitos sexuais, controlados, os vínculos familiares rompidos e seu exercício da materni-dade controlado pelo Estado.

Considerando a necessidade de um olhar específico para o encarceramento feminino, a Organização das Nações Unidas promulgou regras mínimas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras. As Regras de Bangkok, como ficaram conhecidas, constituem o principal marco normativo internacional e estabelecem um olhar diferenciado para as especificidades de gênero no sistema carcerário. A Rede Justiça Criminal trabalha pela ampla aplicação das Regras de Bangkok.

Mesmo quando não são diretamente criminalizados, os corpos de mulheres são objeto de controle e re-pressão do sistema penal. A revista íntima vexatória, que ainda faz parte do cotidiano de estabelecimentos de privação de liberdade brasileiros, obriga principalmente mulheres - mães, esposas, companheiras e fi-lhas - ao desnudamento, à exposição e revista de órgãos genitais, como condição para a visita à pessoa com quem mantêm vínculo afetivo e familiar.

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Evolução da população prisional por gênero entre 2000 e 2014

Adaptado do Infopen Mulheres de junho de 2014 a partir dos últimos dados disponíveis, divulgados pelo In-fopen de dezembro de 2014. Observa-se que o Infopen de dezembro indica ter havido um erro na coleta do total de mulheres encarceradas, que repercutiu tanto na edição de junho quanto no Infopen Mulheres. Este gráfico corrige o dado sobre o aumento da população carcerária feminina entre 2000 e 2014, que não foi de 567%, mas de 503%.

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Entrevista: “Cada uma de nós tem nossos direitos”

Para começar o debate, partimos daquela que deve ser a protagonista por excelência: Helena, uma mulher de 35 anos, mantida em prisão preventiva por ter furtado uma bandeja de carne, relata em entrevista as condições e os impactos da sua prisão.

Entrevista: Mariana Lins de Carli Silva, transcrição: Nina Cappello, edição: Mariana Lins de Carli Silva e Raquel da Cruz Lima. Ninguém melhor para relatar as violações de direitos decorrentes do encarceramento do que as próprias pessoas presas. No caso das mulheres presas, a rup-tura do silêncio sobre suas histórias e a possibilidade de expressar suas opiniões manifesta uma esperan-ça na busca pelo desencarceramento. As histórias contadas em primeira pessoa são uma tentativa de sensibilização, em especial dos atores do sistema de justiça criminal, ao demonstrar que o conteúdo de um processo criminal é uma vida humana, uma traje-tória notadamente marcada por violências, principal-mente no que diz respeito às mulheres. Helena1, 35 anos, primária, foi mantida em prisão provisória por tentativa de furto de uma bandeja de carne e de uma pomada para assaduras em um supermercado. Mãe de quatro filhos e grávida do quinto, única responsá-vel pelo provimento de sua família, seu depoimento revela a importância e a urgência em aplicar alterna-tivas à prisão de mulheres.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Helena concedeu ao Instituto Terra, Trabalho e Ci-dadania, em março de 2016, no âmbito do projeto “Alternativas à prisão provisória de mulheres: de-senvolvendo estratégias para implantar as Regras de Bangkok no contexto brasileiro”.

1 O nome da entrevistada e seus filhos foram modificados para garantia de sigilo de seus dados.

Helena: Amanhã faz três meses que eu estou pre-sa. Eu estou no 155 [furto].

ITTC: Você foi pra audiência de custódia?

H: Não. Se a gente fosse presa na sexta, até dia 18, a gente tinha ido. Mas nós fomos presas dia 19, no sábado à tarde. Aí não teve. Nós fomos para a audiência só agora, faz um mês e pouco

ITTC: E você já estava grávida?

H: Já estava grávida, de três meses e pouco, quase quatro.

ITTC: Você tem outros filhos?

H: Quatro filhos. A Iara tem catorze, a Michele tem dez, o Gabriel tem oito e a Aninha tem dois anos. Mas agora eu estou aqui sozinha. Minha mãe não vem, porque ela está com eles lá. Ela me mandou uma carta hoje falando que está muito difícil lá pra ela, falou que está desempregada, que não está fácil pra ela.

ITTC: Eu queria saber um pouco de você, de como era a sua vida antes de você vir pra cá.

H: Só tinha três meses que eu estava desemprega-da. Eu trabalho de limpeza, com registro na minha carteira e eu estava morando com os meus filhos, com meus quatro filhos, em uma casa de aluguel. Até que eu parei de trabalhar. Era difícil, porque eu tinha que pagar o aluguel, eu vendi até uma gela-deira nova que eu tinha ganhado para pagar o alu-guel. Nesse dia em que eu fui presa, eu briguei com o dono da casa e aí ele falou assim, “então você vai sair, eu vou te dar de domingo até segunda pra você sair”. Ele até falou pra mim que ia desligar a água e a luz. E eu falei «desligue, se você desligar, você vai ver o que que eu vou fazer». Aí, né, que eu falei, “eu estou grávida e tenho quatro filhos, você não tem que me colocar na rua”.

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ITTC: Como foi o dia do seu flagrante?

H: Eu fui presa dia 19 de dezembro, eu passei o na-tal aqui. Eu fui para o mercado com as meninas... Nós entramos no mercado e aí a gente pegou as carnes, uma das meninas colocou as carnes na mi-nha bolsa. E nesse dia também tinha um lencinho para bebês, da Johnson, e duas pomadas para as-sadura que eu ia levar para a Aninha, que estava assadinha. Deus sabe por que que eu fui roubar. Eu não fui roubar para comprar droga não, eu não fui roubar para eu usar droga não, nada, foi pra eu dar para os meus filhos.

ITTC: Você acompanha sua gestação na unidade prisional?

H: Não, aqui na prisão eu não fiz nada, não tenho nada feito. Só Deus mesmo. A enfermaria é horrível.

ITTC: E você tem alguma atividade de lazer aqui dentro?

H: Tem nada pra fazer lá naquele raio. Eu fico o dia todo na cela. Às vezes, quando eu saio, sento um pouquinho no pátio, doem minhas costas, eu deito lá no chão, fico deitada, até dar a hora da tranca. O dia-a-dia é isso. Três mês assim, sem fazer nada. Só.

ITTC: Como que é ficar sem fazer nada?

H: Deus do céu, é muito difícil... Tem hora que eu choro... aí às vezes que tem tumulto lá, eu vou pra igreja, falo pra Deus, “me tira daqui, que aqui não tem nada”. Amanhã é dia de visita, é o pior dia... (choro) Só isso que eu tenho pra dizer.

ITTC: Como é a cela?

H: É, a gente dorme de “valete”, que é dormir com a outra companheira, também grávida, na mesma cama. Tem doze camas na cela. A minha está com 18 meninas. Então, está todo mundo “na praia”, que é o chão.

ITTC: Como que é a sua alimentação?

H: A comida vem de fora. Tem vezes que vem estra-gado. Um dia desses a gente até negou a comida, não comemos. As comidas aqui estão horríveis.

ITTC: Eu queria falar um pouquinho do seu pro-cesso agora. É a Defensoria Pública que está na sua defesa?

H: Não está. Se estivesse, acho que eu já tinha ido embora. Eu estou com uma raiva desse advogado. O meu processo está no aguarde, vai dar vinte dias agora terça-feira. Nós estamos nesse “aguarde” para ver se eu vou embora ou não vou. Eu creio que eu vou embora, é a minha esperança, eu não vou ficar. Está na mão de Deus.

ITTC: Como foi na audiência? Perguntaram da gravidez?

H: Ela [a juíza] não perguntou. Ela só perguntou se eu tinha filhos, eu falei que eu tinha. Eu falei que sempre trabalhei, falei o último lugar que eu trabalhei, sete meses atrás, como auxiliar de limpeza. Perguntou quanto eu ganhava, eu falei: “ah, eu ganhava 900 e pouco, quase mil por causa dos meus filhos”. Só. E falou: “pode tirar ela”. Depois chamou as outras me-ninas, o policial, foram todas bem rápidas.

ITTC: Tem alguma coisa que eu não perguntei que você queria falar?

H: Olha, está muito ruim a comida. Independente-mente que tem muita presa aqui, cada uma tem os seus BOs, mas nós somos gente, nós somos seres humanos. Cada uma de nós tem nossos direitos, en-tão a gente tem que comer. Independentemente de qualquer coisa que a gente tenha feito, nós somos gente, nós temos que comer um pouco melhor. E a comida não está boa. Não está mesmo, está horrí-vel. Mas eu como mesmo por causa do meu bebê.

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Encarceramento Feminino e Seletividade Penal

Por Luciana Boiteux2

O tema do encarceramento de mulheres vem ga-nhando amplo destaque nos últimos tempos. Ape-sar de elas representarem apenas 5,8% do total de presos brasileiros, a taxa de aprisionamento femi-nino teve um aumento de 503% em 15 anos, muito superior ao masculino3, sendo o tráfico de drogas o delito que mais as encarcera (64%, dados de dez/14). Enquanto boa parte dos homens presos responde pelos delitos de roubo (26%) e furto (14%)4, podendo ser beneficiados pelo indulto natalino anual, por ser o tráfico considerado crime hediondo, as mulheres praticamente não recebem indulto.

O perfil das mulheres presas no Brasil é de pessoa muito vulnerável, e ainda sobrecarregada pelo sus-tento de seus filhos Elas são, em sua maioria, jo-vens (50% tem até 29 anos), solteiras (57%), negras (68%), com baixa escolaridade (50% têm o ensino fundamental incompleto, sendo que apenas 10% delas completaram essa primeira fase de estudo). Acima de tudo, elas são pobres, condenadas a pe-nas entre 4 e 8 anos (35%), em regime fechado (45%).5 Dados da América Latina6 apontam que as detentas, em geral, são chefes de família e respon-sáveis pelo sustento dos filhos. Sabemos inclusive que 80% delas são mães, ou seja, quando são priva-das de liberdade, além de serem abandonadas por seus companheiros, são ainda privadas forçosamen-te do contato diário e do cuidado de seus filhos, os quais passam a ser criados por avós ou tias. Apesar de condenadas por crimes sem violência, elas são mais facilmente selecionadas pelo sistema penal justamente por estarem em situação de extrema vulnerabilidade.

Quando estão grávidas, ou seja, ainda mais vulneráveis,

2 Professora Associada de Direito Penal e Criminologia da UFRJ, Coordenadora do Grupo de Pesquisas Política de Drogas e Direi-tos Humanos da mesma instituição.3 Infopen - Dezembro de 2014.4 Dados do Infopen Mulher, referentes a junho de 2014.5 Infopen Mulher, junho de 2014.6 BOITEUX, Luciana (2015). Mujeres y Encarcelamiento por de-litos de drogas. CEDD – Colectivo de Estudios Drogas y Derecho. Disponível em: <bit.ly/boiteuxCEDD>

são submetidas a condições perigosas de vida (e de saú-de) na prisão, podendo ser algemadas no parto e dar à luz no camburão ou no próprio presídio.7 Dados de grá-vidas e mães encarceradas no Rio de Janeiro, apontam para um perfil ainda mais dramático: 78% são jovens en-tre 18 e 22 anos, de cor negra (77%), com baixa escola-ridade (75,6% não possuem o ensino fundamental com-pleto), sendo que 9,8% declararam não saber ler nem escrever. Metade delas mantinha empregos precariza-dos (85% sem carteira assinada), a maioria era respon-sável pelo sustento do lar, além de ré primária (70%).8 E grande parte delas é de presas provisórias.

Se o sistema penal é estruturalmente seletivo no geral, verifica-se a especial (e perversa) seletivida-de com que se encarceram mulheres mães, negras e pobres, justo aquelas que buscam no comércio ilícito de drogas, por necessidades de subsistência de sua família, uma melhor remuneração, quando não são coagidas ou ameaçadas para levar drogas a presídios. Para essas mulheres, que rompem duplamente com seu papel social (por praticarem um crime e, além disso, por serem “mulheres criminosas”) o nível de estigmatização e isolamento a que estão sujeitas é ainda pior, afastadas de seus filhos e abandonadas por seus companheiros.

O seletivo encarceramento feminino (ainda mais forte do que o masculino), portanto, reforça a ex-clusão social dessas mulheres e dos filhos que de-las dependem. Além disso, o machismo estrutural,

7 Como ocorreu com uma presa no Rio de Janeiro, portado-ra de transtornos mentais e usuária de crack, presa provisória acusada de tráfico de drogas, que deu à luz no Presídio Talavera Bruce no Rio de Janeiro, sozinha, numa solitária. Vide: <http://bit.ly/partosolitaria> 8 Boiteux e Fernandes (Coord.) 2015. Mulheres e crianças en-carceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro. Disponível em: <http://bit.ly/boiteuxfernandes>.

Apesar de condenadas por crimes sem vio-lência, elas são mais facilmente selecionadas pelo sistema penal justamente por estarem em situação de extrema vulnerabilidade.

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Lendo gênero e raça no sistema de justiça criminal a partir da interseccionalidade

Isadora Brandão Araujo da Silva9

Falar em interseccionalidade implica lançar luz sobre sujeitos tradicionalmente invisibilizados e suas expe-riências. O termo foi empregado primeiramente por Kimberle Crenshaw em 1989 para identificar as con-sequências estruturais e institucionais da interação entre eixos produtores de subordinação, a exemplo de gênero, raça e classe.

Um aspecto central da abordagem interseccional re-side na crítica à invisibilização dos aspectos raciais da discriminação de gênero e dos aspectos de gênero da discriminação racial, o que é resultado da mani-pulação das categorias gênero/mulheres e raça/ne-gros de forma mutuamente excludente. Ademais, a leitura interseccional revela que as mulheres brancas e os homens negros são tomados, respectivamente, como parâmetro central para identificação do que é “discriminação de gênero” e do que configura “dis-criminação racial”, o que dificulta a percepção dos fatores de exclusão que afetam grupos situados na intersecção, como é o caso das mulheres negras.

Nesse sentido, partindo da abordagem interseccio-nal, iremos conferir visibilidade às experiências das mulheres negras no campo da justiça criminal e evi-denciar a sua marginalização na agenda de movimen-tos sociais e ativistas de direitos humanos, tomando como parâmetro os debates sobre encarceramento feminino, genocídio da população negra, violência doméstica contra a mulher e estupro.

Frente ao incremento das taxas de encarceramento feminino, tem-se buscado ressaltar as razões de gê-nero que produzem uma vivência distinta do encar-ceramento para as mulheres. Admite-se, em diversas abordagens feministas, que esse dado está associa-

9 Defensora Pública do Estado de São Paulo e mestre em Di-reitos Humanos.

do intimamente a questões de gênero, haja vista que muitas mulheres estão presas acusadas de tráfico de drogas em razão de relacionamentos amorosos/de parentesco mantidos com homens já envolvidos no tráfico. No entanto, em que pese as mulheres negras predominarem na população carcerária feminina, pouco se discute em que medida a dimensão racial produz a criminalização dessas mulheres e afeta as condições de seu aprisionamento. Talvez, justamente porque a questão do encarceramento feminino atin-ge preferencialmente as mulheres negras, ela não tem se apresentado como pauta prioritária na agen-da feminista.

É possível observar que os movimentos negros têm demonstrado que o Estado brasileiro executa um projeto genocida - operacionalizado principalmente através da guerra às drogas - que vitimiza sobretudo a população negra e jovem das periferias. Nessa linha, demonstram que o racismo possuiu caráter substantivo na configuração das práticas das agências penais no contexto brasileiro e refutam o emprego da cor/raça enquanto categoria meramente ilustrativa das injustiças do sistema criminal.

A leitura interseccional revela a necessidade de agregar a essa análise o processo de vitimização que a violência policial produz na vida das mulheres ne-gras, as quais perdem seus filhos, companheiros, ir-mãos pela ação dos agentes do Estado e, na luta por justiça e reparação, são silenciadas pela conivência sistêmica do sistema de justiça criminal com as ile-galidades praticadas pelas agências policiais. Ainda, o cenário de redução das políticas sociais e a preca-rização da educação, da saúde e da assistência so-

A questão do encarceramento feminino atin-ge preferencialmente as mulheres negras.

que atravessa toda a sociedade, é marcante em relação às mulheres, que se tornam um fácil alvo da guerra às drogas. É preciso mudar isso urgen-temente e focar em políticas sociais de proteção

social e de inclusão, já que a repressão aos crimes de drogas e a seletividade penal comprovadamen-te só reforçam a exclusão.

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cial - que constituem a contraface do Estado Penal Máximo - afeta, sobretudo, as mulheres negras e pobres, que não dispõem de recursos para delegar o trabalho doméstico e de cuidados ou para arcar com o custo da sua prestação pela iniciativa priva-da. É importante considerar que na medida em que o Estado - via ação ou omissão - reforça a solidão socioafetiva, a sobrecarga de trabalho e o silencia-mento das mulheres negras, gera as condições para a sua morte física e simbólica.

Nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, certa criminologia feminista tem reivindi-cado intervenção penal específica. É verdade que tal construção não ignora a seletividade imanente ao sistema punitivo, nem seu caráter estrutural-mente racista e androcêntrico, tampouco o resul-tado excludente da pena criminal, mas pressupõe a compreensão de que é através da sua omissão deliberada que o Estado penal reforça o sistema patriarcal, pois legitima o poder ilimitado dos ho-mens sobre as mulheres na esfera privada. Ocorre, no entanto, que esse avanço crítico representado pela criminologia feminista precisa considerar o di-lema que surge para as mulheres negras em situa-ção de violência doméstica no momento em que se veem compelidas a acionar aquele mesmo Estado Genocida para protegê-las de seus agressores. A abordagem interseccional coloca a necessidade de visibilizar esse problema e o desafio de desenvolver alternativas para o combate e repressão da violên-cia doméstica contra a mulher negra que não resul-tem no reforço do sistema punitivo.

Crenshaw também critica a abordagem tradicio-nal da questão do estupro pelo discurso femi-nista branco estadunidense10. Menciona que as feministas brancas desenvolveram a compreen-são de que a legislação referente ao estupro ti-nha como escopo originário definir os limites

10 CRENSHAW, K. A interseccionalidade na discriminação de raça e gênero. Painel: Cruzamentos raça e gênero. Ação Educa-tiva, 2012._________________. Beyond entrechment: race, gender and the New Frontiers of (Um) equal Protection. In: International perspectives on gender equality & social diversity. Tokohu Uni-versity Press, 2008._________________. Demarginalizing the intersection of race and sex: a black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory, and antiracist politics. University of Chicago Legal Forum.1989, p.39-52. Disponível em: <http://chi-cagounbound.uchicago.edu/uclf/vol1989/iss1/8>.

da sexualidade permitida e regular o comporta-mento sexual da mulher e não proteger a sua li-berdade sexual. No entanto, para as mulheres negras, essa análise é uma simplificação por-que, historicamente, nunca houve interesse ins titucional em regular a castidade da mulher negra.

Muito pelo contrário, houve casos em que o júri instalado para julgamento de casos de estupro tinha sido instruído a não presumir a castidade da mulher negra, ao contrário do entendimento padrão ado-tado em relação às mulheres brancas. Em contra-partida, ao mesmo tempo que a lei excluía do seu âmbito de proteção mulheres brancas não virgens, elas voltavam a ser objeto de proteção caso o su-posto agressor – de uma mulher branca - fosse um homem negro. Essa é uma realidade facilmente ob-servada, com as devidas proporções, no contexto brasileiro.

Portanto, a noção de interseccionalidade permite identificar as situações de invisibilização em que se encontram as mulheres negras, as quais estão sujei-tas a mais de um eixo estruturante de desigualdades, contudo, paradoxalmente, acabam sendo marginali-zados pela retórica dos movimentos sociais e pelos discursos identitários produzidos por uma concepção mutuamente excludente das diversas contradições sociais produtoras de iniquidades.

Assim, a inserção do ponto de vista das mulheres ne-gras é essencial para que abandonemos uma leitura unidimensional e estanque das categorias, amplian-do o potencial emancipatório das leituras e práticas de direitos humanos.

A noção de interseccionalidade permite iden-tificar as situações de invisibilização em que se encontram as mulheres negras.

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Ana Gabriela Braga11 e Bruna Angotti12

Entre 2000 e 2014, houve um crescimento de 503% da população prisional feminina brasileira, atualmente com-posta por cerca de 34.000 mulheres. No mesmo período o encarceramento masculino cresceu 220,2%13. Esses dados mostram um cenário preocupante: o grande en-carceramento atingiu, também, e, em especial, as mulhe-res, especificamente as negras e pobres, em sua grande maioria (aproximadamente 68%) acusadas de envolvi-mento com o comércio ilegal de drogas.

A prisão de mulheres é formada por jovens em ida-de reprodutiva, (68% das mulheres presas têm entre 18 e 34 anos), para as quais o encarceramento trará impactos profundos em sua vida íntima e familiar. Principalmente, se considerarmos que a maioria das mulheres presas é mãe, geralmente responsável pe- los cuidados da casa e das crianças, e, muitas vezes, ela mesma é provedora financeira do lar.

As decisões judiciais que investem na prisão como primeira resposta obrigam aquelas que já são mães a deixarem seus filhos do lado de fora para o cumpri-mento da pena. As consequências disto são gravosas, dentre as principais ressaltamos: a quebra dos laços de afeto e convivência entre mães e filhos, além do risco de perda do poder familiar sobre as crianças, o encaminhamento destas para abrigos na ausência de família expandida e, por vezes, o consequente risco de sua perda definitiva para adoção. A distância das

11 Doutora em Criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), com período sanduiche na Universitat de Barcelona. Pro-fessora da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da UNESP. Coordenou a pesquisa “Dar à luz na sombra”, da coleção Pen-sando o Direito, 2015.12 Doutoranda e mestre em Antropologia Social pela USP e es-pecialista em Criminologia pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Professora da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Co-coordenou a pesquisa “Dar à luz na sombra”, da coleção Pensando o Direito, 2015.13 Levantamento nacional de informações penitenciárias – Infopen - Dezembro 2014

prisões, o horário limitado das visitas e a humilhação da revista vexatória são fatores que contribuem para o isolamento da mulher presa.

Para aquelas que são aprisionadas grávidas14 ou as poucas que engravidam em visitas íntimas, sur-ge a complexa questão da maternidade dentro da prisão15. Inúmeras violações aparecem nesse ce-nário, vale destacar, primeiramente, que o exercí-cio de maternidade na prisão não é autônomo, há ingerência e discricionariedade da gestão prisional na relação mãe e filho, sendo regra na criação das crianças. A maternidade dentro do cárcere é media-da por uma série de normas e controles, impedin-do a convivência livre e particularizada entre mãe e bebê. Dentre estas, está, por exemplo, a adoção do mínimo fixado pela Lei de Execução Penal – seis meses – como tempo máximo de convivência entre mãe e bebê.

Outro problema é a excepcionalidade de espaços específicos para exercício da maternidade na prisão. De acordo com o Infopen Mulheres 32% das unida-des femininas dispunham de berçário ou centro de referência materno infantil, enquanto apenas 3% das unidades mistas, e nenhuma masculina. Quando exis-tem estão localizadas nas capitais e, quando há vaga, colocam as mulheres do interior no difícil dilema de manter seus outros laços de convivência familiar ou passar o tempo permitido pela lei com o recém-nas-cido na unidade materno-infantil da capital.

14 Não conseguimos precisar quantas, uma vez que não há da-dos precisos produzidos sobre essa população.15 A pesquisa “Dar à luz na sombra”, coordenada por nós e lançada em 2015, mapeou o exercício da maternidade em esta-belecimentos prisionais de seis estados brasileiros que tinham em prática. Disponível em: http://pensando.mj.gov.br/wp-con-tent/uploads/2015/03/51-Dar-a-luz-na-sombra.pdf, acesso em 31/05/2016.

O exercício de maternidade na prisão não é autônomo.

A experiência da maternidade na prisão

Que Estado é esse no qual a privação de li-berdade é usada como maneira de garantir direitos que deveriam ser regra extramuros?

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Dos compêndios criminológicos à ponta do fuzil: sexualidade e gênero como fundamentos para a garantia da vida ou a feitura da morte pelos aparelhos de Estado

Natália Corazza Padovani16 17

Este é apenas um pequeno trecho de um dos pare-ceres técnicos escritos em prontuários por agentes e funcionários/as da Penitenciária Feminina da Capital com os quais tive contato durante minha pesquisa de mestrado (realizada entre os anos de 2008 e 2009). No processo de meu trabalho de campo, que a prin-cípio não tinha um recorte “específico”, ficava claro que a sexualidade era ponto nevrálgico para a regu-lação da vida das pessoas presas.

O que quero argumentar é que além de marcadores como raça e classe, a sexualidade dos sujeitos aprisio-nados e criminalizados também é um elemento so-bre o qual está calcado o discurso criminológico. Isso pode ficar mais claro se nós lembrarmos as formas

16 Agradeço imensamente aos editores desse boletim, não só pelo honroso convite em publicar pela Rede Justiça Criminal, mas também pelo primoroso trabalho de revisão e edição do artigo feito por Raquel da Cruz Lima e Mariana Lins de Carli Silva.17 Doutora em Antropologia Social pela Unicamp – Pesquisado-ra pós-doutoranda Núcleo de Estudos de Gênero/Pagu e Pesqui-sadora Colaboradora da Global Prisons Research Network. Pes-quisas de doutorado e de pós-doutorado financiada pela FAPESP (processos n° 2010/08618-5 e n°2016/08142-7).

Parecer físico e biográfico: Nasceu de parto normal a domicílio. Nega relações sexuais. É tabagista modera-da. Nos exames foram constatados: algumas cicatrizes lineares nos braços, hímen íntegro, pequeno plicma anal na posição de vinte e quatro horas (Trecho de parecer de inclusão e abertura de prontuário de uma presa na Penitenciária Feminina da Capital - 1985, grifos meus).

pelas quais Suzane Richthofen tem sido sistematica-mente descrita em laudos produzidos por psiquiatras, psicólogos e assistentes sociais que a atendem18: Su-zane é reiteradamente considerada “dissimulada” e “sedutora”. Sem pretensão de emitir qualquer juízo de valor sobre Suzane Richthofen, o que se eviden-cia é o quanto a estrutura carcerária contemporânea crê na existência de um “ser delinquente” segundo atributos de desvio da sexualidade, os quais, no caso feminino, sempre foram relacionados a qualidades como a “sensualidade” e o “mascaramento”.

Chamo atenção também para o assassinato de Lua-na Barbosa dos Reis por policiais militares na cida-de de Ribeirão Preto após ser “confundida” com um “menino preto” e ter pedido para ser revistada por uma policial mulher portando em suas mãos o “documento” que a identificava como Luana.19

18 Leoni, Fabíola. De Suzane a uma análise do sistema carce-rário brasileiro, Opinião e Notícia 13 de julho de 2009. http://opiniaoenoticia.com.br19 Caramante, André. A história de Luana: mãe, negra, pobre e lésbica, ela morreu após ser espancada por três PMs, Revis-ta Ponte: Direitos Humanos, Justiça e Segurança Pública. 25 de abril de 2016. http://ponte.org/a-historia-de-luana-mae-ne-

Chama ainda atenção o uso da prisão usada como política social. Muitas vezes o fato de haver algu-ma estrutura para a convivência de mulheres e seus bebês, em especial no que tange às distribuições de itens de higiene e alimentação, bem como de acompanhamento pediátrico e nutricional, é usado como justificativa pelos juízes para a manutenção da prisão da mãe, mesmo que haja possibilidade de aplicação de cautelar ou progressão de regime. Que Estado é esse no qual a privação de liberdade é usa-

da como maneira de garantir direitos que deveriam ser regra extramuros?

A experiência da maternidade na prisão é sempre trau-mática, para mulheres, crianças e para a sociedade como um todo. Uma melhor possibilidade de exercício da maternidade ocorrerá sempre fora da prisão. O cum-primento das medidas desencarceradoras já existentes seria um grande passo na garantia de direitos daquelas mães e crianças que vivem cotidianamente a prisão.

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A mesma Luana a quem eu conheci na Penitenciá-ria Feminina da Capital como Luan e que, depois de sua liberdade em 2009, demandava visitar sua companheira que permanecera na prisão. Luana/Luan vivenciava seu corpo, seus desejos, seu nome de modo transitório. Na prisão, ela/ele era respeita-da/o pelas demais presas por ser um “sapatão” que fazia questão de não esconder seu filho. Mas res-peitado/a por suas parceiras de cela e pavilhão, não tinha os mesmos direitos que algumas delas tinham, de recebimento ou de realização da visita íntima para sua companheira/o. Mais do que isso, respei-tada como uma mãe responsável em seu bairro na periferia de Ribeirão Preto, Luana não teve o direi-to de permanecer viva. Foi por ser uma mulher que parecia um “homem negro” que Luana Barbosa dos Reis foi brutalmente assassinada pelos policiais. Foi por não se submeter às normativas do corpo sub-misso feminino que Luan foi violentado, torturado e assassinado. Assim como foi por não se submeter às normativas de gênero atribuídas a seu corpo bioló-gico que a travesti Verônica foi estuprada, espanca-da e torturada no ano passado, 2015.20

Os dispositivos de gênero, bem como as expectati-vas e práticas das sexualidades, são capilarizados na organização dos “direitos e deveres” listados na Lei de Execução Penal. Era o que eu iria compreender ao longo dos anos em que fiz trabalho de campo em Penitenciárias Femininas, ao me deparar com o fato de que, se as visitas íntimas só passaram a aconte-cer nas prisões femininas como direito reconhecido e assegurado pelo Estado (desde que heterossexuais) em 2001, nos pátios daquelas instituições femininas, eu recebia a recorrente reclamação de que os com-panheiros de muitas das minhas interlocutoras que estavam, como elas, presos, não conseguiam receber a visita de seus filhos. Segundo elas, os funcionários das prisões alegavam que as pessoas responsáveis em levar os filhos na visita não eram “parentes de

gra-pobre-e-lesbica-ela-morreu-apos-ser-espancada-por-tres-pms/ 20 Quinalha, Renan. Presa, negra e travesti: devemos ser todas Verônica. Revista Ponte: Direitos Humanos, Justiça e Segurança Pública. 15 de abril de 2015. http://ponte.org/presa-negra-e-travesti-devemos-ser-todas-veronica/

primeiro grau” daqueles que cumpriam pena, mas, sim, suas sogras, mães das esposas detidas nas pri-sões femininas que eu visitava.

Direitos sexuais nas prisões não é tema em separado do que enredam movimentos e lu-tas por direitos sexuais.

Luana não teve o direito de permanecer viva.

Falar em “direitos sexuais na prisão”, portanto, é antes falar de como a sexualidade pormenoriza a prática de governo dos sujeitos presos em prisões masculinas ou prisões femininas. Sobre como dispositivos de sexua-lidade governam os direitos a serem acessados segun-do as tecnologias que alinhavam sexo-gênero-desejo às prisões femininas ou masculinas: para as mulheres, a maternidade; para os homens, o sexo. Não quero di-zer com essa observação que os “direitos à maternida-de” e os “direitos sexuais” das mulheres e dos homens sejam respeitados pelos aparelhos de Estado que aprisionam; antes, chamo atenção para o fato de que estes são balizados pela noção de que “mulheres são ressocializadas pela maternidade” e que os homens têm maiores necessidades sexuais.

Termino dizendo que, mais do que nunca, em tem-pos como estes – nos quais enquanto falar sobre gênero nas escolas tem sido considerado uma prá-tica clandestina, mas estuprar, violentar e cortar os cabelos de Verônicas, Luans ou de meninas de de-zesseis anos, podem ser publicizadas e enaltecidas pelas ondas das redes sociais – devemos lembrar que “direitos sexuais nas prisões” não é tema em separado do que enredam movimentos e lutas por direitos sexuais, de gênero e de manter-se vivo nas periferias das regiões metropolitanas das capitais brasileiras. Afinal, são os mesmos dispositivos de Es-tado estupram Verônicas, matam os filhos das mães de maio e encarceram Luans.

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Michael Mary Nolan, Viviane Balbuglio e Amanda Signori21

Tendo como pressuposto a constatação de que a pri-são de mulheres acentua violências específicas de gênero, pode-se afirmar que as mulheres indígenas fazem parte de uma minoria ainda mais invisibilizada dentre as mulheres em situação de prisão.

De acordo com os dados oficiais produzidos pelo Mi-nistério da Justiça no Infopen de dezembro de 2014, existem 41 mulheres indígenas encarceradas, as quais em maior parte se concentram em Roraima e Mato Grosso do Sul. Por sua vez, mesmo ampliando o recorte para homens, os dados do Infopen parecem deficien-tes, pois dizem que no Brasil há 120 estabelecimentos prisionais - dos 1420 de todo o país – encarcerando indígenas e que apenas 46 teriam informações sobre o povo ou a língua materna dessas pessoas.

Esses dados demonstram, quando confrontados com a realidade que envolve os povos indígenas no Brasil, a relevância social do debate sobre a criminalização e invisibilização das identidades culturais das mino-rias, mas que não será possível abordar nesse texto. O foco deste artigo estará em discutir a problemática da invisibilização dos indígenas perante o sistema pe-nal, que marca as mulheres indígenas com as violên-cias de gênero corriqueiras, especiais e estruturais. Invisibilidade esta que não é uma mera questão so-bre o número de mulheres atingidas por essa realida-de, mas sim sobre o fato de que essas pessoas sequer têm a oportunidade de serem propriamente identifi-cadas desde a prisão até qualquer fase do processo criminal, ao mesmo passo que suas histórias, cultu-ras, línguas e modos de vida, são desconsiderados pelos agentes da justiça criminal.

21 Michael Mary Nolan é Presidente do Instituto Terra, Traba-lho e Cidadania. Viviane Balbuglio e Amanda Signori são colabo-radoras da mesma instituição.

Voltando ao Infopen, é preciso pontuar que seus da-dos são produzidos a partir das informações presta-das pelas unidades prisionais e seus diretores. Até mesmo nas questões que envolvem características sociodemográficas, a unidade recorre a dados já co-letados, o que significa dizer não há respeito ao crité-rio legal da autodeclaração22

Diante dessa crítica aos dados do Infopen, é possível pensar que se a elas fosse dada a oportunidade de se autoidentificarem quiçá a quantidade de mulheres au-mentaria e seus direitos poderiam ser respeitados. Um dos exemplos indicativos para esta conclusão decorre da vivência prática do Instituto Terra, Trabalho e Cidada-nia no atendimento às mulheres estrangeiras em confli-to com a lei em São Paulo. Ao aplicar um questionário social próprio, foram encontradas mulheres, oriundas, sobretudo da América Latina (em especial da Bolívia) e do continente africano, que se autodeclararam indíge-nas ou pertencentes a povos tradicionais. Esses dados não são registrados pela unidade prisional.

Além disso, em diversas situações, é possível notar que algumas mulheres hesitam em se identificar como indígenas pelo receio de futuras retaliações discriminatórias e opressoras, tendo em vista o pas-sado de cinco séculos de violência.

A falta de identificação cultural dos indígenas desde a prisão até a persecução penal, infelizmente, justi-fica a não aplicação de direitos especiais dos povos tradicionais, afinal, como sabe “se não há índios, tampouco há direitos”23. O que, por sua vez, se trata

22 Com base tanto no paradigma da pluralidade étnica trazido pelo artigo 231 da Constituição quanto do texto da Convenção 169 da OIT, a autoidentificação de uma pessoa indígena baseia-se no sentimento de pertencimento de uma pessoa a um deter-minado grupo, que também a reconhece.23 Cunha, Manuela Carneira da. O futuro da questão indígena, 1993.

Mulheres indígenas e sistema penal: invisibilidade étnica e sobrecargas de gênero

Mulheres indígenas fazem parte de uma minoria ainda mais invisibilizada dentre as mulheres em situação de prisão.

Algumas mulheres hesitam em se identificar como indígenas pelo receio de futuras reta-liações discriminatórias.

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de uma violência institucional e de violação na pro-teção dos direitos dos povos indígenas descritos pela Convenção 169 da Organização Internacional do Tra-balho (OIT), ratificada em 2004 pelo Brasil.

A invisibilidade da identidade indígena como forma de violência institucional inviabiliza e cerceia o gozo de uma série de direitos dos povos, consagrados na Constituição Federal e no Estatuto do Índio, tais como: a competência da justiça federal, a livre ex-pressão em língua materna, o respeito à organização social e aos mecanismos próprios de punição e reso-lução de conflitos e o regime de semiliberdade em órgão indigenista próximo à comunidade. Em relação às mulheres especificamente, as Regras de Bangkok24 afirmam que o Estado deve reconhecer que as mu-lheres indígenas podem sofrer discriminações e difi-culdades em razão de sua origem e que devem existir políticas e ações do Estado para identificar e suprir suas necessidades específicas.

Das Regras de Bangkok, combinada com a interpre-tação do artigo 231 da Constituição Federal, deriva a

24 As chamadas “Regras de Bangkok” são as Regras das Na-ções Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, aprovadas pela ONU em 2010 e traduzidas para o português em 2016. Dis-ponível em: <http://bit.ly/regrasdebangkok>.

mais importante conclusão no tema das mulheres in-dígenas em conflito com a lei: se de forma geral de-terminado que os Estados devem priorizar as alter-nativas ao encarceramento feminino em razão das formas históricas de violência contra as mulheres, no caso das mulheres indígenas deve-se reconhecer que estas podem sofrer discriminações em razão de sua origem, devendo as autoridades identificar e su-prir suas necessidades especiais, sempre consultan-do-as, bem como as suas respectivas comunidades, devendo respeitar a organização social de cada povo.

Ainda vale destacar, que a mulher indígena também tem direito ao regime de semiliberdade garantido pelo Estatuto do Índio. De toda forma, melhor seria que as formas de punições e resoluções de conflitos próprias de cada povo fossem respeitadas e, quem sabe, se fosse questionada a situação de vulnerabi-lidade em que muitas dessas mulheres estão inse-ridas, sobretudo no que tange às violações de seu direito à terra, não haveria necessidade de levantar e desvendar esses dados, nem mesmo do presente artigo.

Mulas: vítimas do tráfico e da lei

Isabel Penido de Campos Machado25

Na cultura popular brasileira, “mula” é o nome atri-buído ao animal híbrido, resultante do cruzamento de um jumento com uma égua, que se caracteriza por ser do sexo feminino26 e por servir como animal geralmente usado para o transporte de cargas.27Ao associarmos a imagem da pessoa que realiza o trans porte de droga transfronteiriço à imagem da es-

25 Defensora Pública Federal em São Paulo. Membro do Grupo de Trabalho Nacional para atendimento a pessoas em situação de prisão da DPU. Mestre em Direito Internacional dos Direitos Humanos. Pós-Graduanda em Direitos Humanos e Acesso à Jus-tiça (FGV/EDEPE-SP). 26 A espécime masculina é denominada de “Bardoto”. 27 FERREIRA, A. B. H. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Segunda edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.1 169.

pécime animal “mula”, opera-se a metáfora em muitos sentidos.

Em primeiro lugar, o processo de recrutamento ao trá-fico se afirma como uma forma de reificação do sujei-to, transformando-o em objeto. A pessoa perde o seu fim em si mesma e passa a ser útil para o transporte de drogas, tornando-se esse o marco para a definição de seu valor. Em segundo lugar, é possível verificar que a mula é um ser no feminino, assim como o(a) correspon-dente sujeito-metáfora: geralmente são as mulheres os principais alvos do recrutamento para o transporte de drogas. A ironia é que função de transporte não resul-ta em uma posição de vantagem em face da Organiza-ção Criminosa. Muito ao contrário, trata-se de posição subalterna, arriscada, desvalorizada e precariamente remunerada, da mesma forma que as posições de tra-balho discriminatoriamente relegadas às mulheres no mercado de trabalho lícito.28

28 LUZ, Luísa. Consequências do discurso punitivo contra as

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funções essenciais que, salvo lapsos de resistência, legitimam o sistema em vigor e alimentam o dantes-co sistema penitenciário.

Encarceradas e esquecidas, essas mulheres recebem o rigor do sistema de justiça criminal em relação aos processos de tráfico: dosimetria desproporcional, execução em desacordo com os direitos reconheci-dos à pessoa em situação de prisão. Distanciamento da família, separação dos filhos e isolamento. Se es-trangeiras, após a extinção de punibilidade em razão do cumprimento da pena, ainda abre-se a perspec-tiva do bis in idem: a prisão para a expulsão, que é a etapa derradeira do descarte da “mula-reificada” pelo sistema de justiça criminal.

Por muito tempo, a jurisprudência dominante ecoa-va no sentido de que a mula seria parte integrante da organização criminosa, sendo que, como tal, não faria jus à redução de pena de um sexto a dois terços pela aplicação do §4º do art. 33 da Lei 11.343/2006. A desconstrução desta ideia, já guerreada há alguns anos pela Defensoria Pública da União, representa um importante marco interpretativo no tratamento da situação das mulheres acusadas por transporte de drogas ao exterior. A proposta é se busque romper com o tratamento de encarceramento industrial que vem sendo promovido em razão da política criminal de guerra às drogas. A aplicação da causa de redução permite a minoração das penas mais brandas, o que impacta no regime inicial aplicado e na abertura por uma política criminal de alternativas penais ao encar-ceramento, tal como preconizada na paradigmática Portaria n. 495, de 28 de abril de 2016, do Departa-mento Penitenciário Nacional.

No mesmo compasso, o afastamento do caráter he-diondo do tráfico privilegiado (STF, HC 118533), é um primeiro passo para permitir que essas pessoas almejem o benefício do indulto, abreviando-lhes a experiência prisional. Outro ponto crucial, fruto de enorme militância de representantes da sociedade civil, das Defensorias e da Associação dos Juízes para a Democracia seria o formal reconhecimento, nos próximos Decretos Presidenciais, da possibilidade de indulto para o tráfico privilegiado (art. 33, §4º da Lei 11.343/2006). Acima de tudo, esses são caminhos possíveis para a emancipação da mula em sujeito, permitindo que esta volte a se ver como um fim em si mesma (e nunca um meio de carga).

Quando se pensa que as mulas são vítimas do tráfico e da lei, não se busca retirar-lhes o poder de decisão sobre a prática de eventual conduta delitiva. Muito ao contrário. O argumento central é tentar entender que a realidade que enseja a prática de uma conduta (tráfico de drogas) é muito mais complexa que os dis-cursos punitivistas rasteiros observados na “guerra às drogas”. Sustenta-se, outrossim, que o sistema de justiça criminal ao proferir a resposta ao delito aca-ba por repetir a objetificação do sujeito (agora em situação de prisão), perpetuando a sua condição de vulnerabilidade, discriminação e violência.

A narrativa mais comum que chega à Defensoria é a de que o recrutamento foi efetuado no país de ori-gem, com foco em pessoas que enfrentavam enorme situação de pobreza e falta de acesso à saúde. Após o aliciamento, passam a exercer a função de trans-porte das drogas, em geral sem conhecer ou ter o poder de definir a natureza da droga (maconha, co-caína, substâncias sintéticas etc) e muito menos da quantidade a ser transportada. Há situações em que elas sequer sabem do real teor do conteúdo que car-regam consigo (por exemplo, em situações nas quais elas acreditavam estar transportando mercadoria ilí-cita oriunda de contrabando, sem entender que se tratava de drogas). A rota percorrida muitas vezes é monitorada pelos recrutadores, que criam um siste-ma de coação que impede o arrependimento. Por se tratar de crime de mera conduta, o tráfico se consu-ma pelo mero porte, o que não abre espaço para a desistência voluntária do transporte. Quando apre-sentam grande insegurança no exercício da missão, a linguagem corporal (de medo) denuncia a atividade. Ademais, quando a própria organização as “descar-ta” (por denúncia anônima), são encaminhadas ao sistema de justiça criminal. E assim se fazem as es-tatísticas do incrível combate ao tráfico no território nacional. As estatísticas justificam a produtividade das Polícias, do Poder Judiciário, do Ministério Públi-co, das Defensorias e da advocacia. Exercem todos

mulheres “mulas” do tráfico internacional de drogas. Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, 2014. Disponível em: <bit.ly/pare-cerMulas>.

O sistema de justiça criminal ao proferir a res-posta ao delito acaba por repetir a objetifica-ção do sujeito.

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Raquel da Cruz Lima29 Jessica Carvalho Morris30

Há pouco mais de 2 anos, a Rede de Justiça Criminal lançava a campanha pelo Fim da Revista Vexatória31, dando mais um passo na mobilização que começara pelo menos dez anos antes, com as primeiras ini-ciativas do Grupo de Estudos e Trabalho Mulheres Encarceradas no sentido de provocar o Ministério Público de São Paulo para que instaurasse um in-quérito civil para investigar o procedimento que obrigava crianças e adolescentes a se desnudarem e terem os corpos inspecionados por ocasião das visitas a seus pais presos. Desde então, a mobiliza-ção conjunta da sociedade teve um papel impor-tante para promover avanços institucionais, como a sanção de leis estaduais que proíbem a prática em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mas em que medi-da avançamos para garantir que na prática milhares de mulheres não tenham que passar semanalmente por essa violência?

Em São Paulo, estado com a maior população prisio-nal do país, a proibição à revista foi determinada em 2014 pela Lei Nº 15.552, mas ainda assim ela é prá-tica corriqueira nas unidades prisionais do estado. É o que relata uma mulher em situação de prisão entrevistada pelo ITTC em março deste ano:

29 Coordenadora do Programa Justiça Sem Muros do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania.30 Diretora Executiva da Conectas Direitos Humanos.31 Sobre o histórico dessa mobilização, ver CERNEKA, H; DA CRUZ LIMA, R DRIGO, S. Luta por direitos: a longa mobilização pelo fim da revista vexatória no Brasil. Boletim IBCCRIM, v. 261, p. 10-11, 2014. Disponível em: <http://bit.ly/historicocontraRV>

Pelo fim completo e imediato da revista vexatória no Brasil

ITTC: Você sabe como funciona a revista das vi-sitas?

Entrevistada: A minha mãe fala que é horrível. A minha mãe fala que elas fazem de tudo, tem que abaixar.

ITTC: Como você se sente?

Entrevistada: Eu me sinto humilhada, um lixo. Porque minha mãe não precisava disso, nem ela nem meu pai. No entanto, meu irmão mais velho faz 20 dias que não vem me ver porque [ele] não aguenta, é um impacto para ele muito forte. Ele não consegue, minha mãe fala que ele não con-segue.

Um dos argumentos de gestores do sistema prisional e o posicionamento oficial da maioria dos estados da federação em que a revista continua acontecendo é de que a revista é necessária para evitar a entrada de drogas, celulares e objetos perigosos. Há muito tempo, porém, a Rede Justiça Criminal constatou que esse argumento é falacioso, pois conseguimos demonstrar a partir de pesquisa empírica que, entre as milhares de visitas que acontecem a cada final de semana, é absolutamente ínfima a quantidade de pessoas flagradas portando itens proibidos ao entrar nas unidades. Em São Paulo, das aproximadamente 3,5 milhões de revistas vexatórias realizadas em 2012, em apenas 0,02% dos casos se apreendeu drogas ou celulares com visitantes.

É preciso atentar, contudo, que a revista vexatória não pode ser reduzida a uma discussão sobre eficácia e que a sociedade civil não pode aceitar se limitar a argumentos utilitaristas. Tanto a ONU32 quanto a

32 Como manifestou o Relator Especial sobre a Tortura, Sr. Juan Mendes, durante a 25ª sessão ordinária do Conselho de Direitos Humanos em 2014.

“Eu me sinto humilhada, um lixo”.

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OEA33 já apontaram que a imposição do desnudamen-to e as revistas invasivas podem configurar tortura em função de seus efeitos. E é aí que está o ponto-chave: sendo absoluta a proibição internacional à tortura, a proibição da revista vexatória não pode estar sujeita a juízos de conveniência e casuísmos. A maneira como viola os direitos mais básicos de um ser humano, como a dignidade e a integridade física, é tão profunda que faz com que seja inadmissível tentar justificá-la.

Já passou da hora de proibir em todo território bra-sileiro essa prática tão odiosa. O consenso em tor-no dessa pauta tem unido organizações de direitos humanos, familiares de pessoas presas, defensores públicos, promotores e agentes penitenciários, como ficou demonstrado na audiência publicada realizada na Comissão de Segurança Pública da Câmara dos Deputados em novembro de 2015. Mesmo assim, o

33 Sobre isso, ver a decisão da Comissão Interamericana no Caso Nº 10.506 de 1996, e da Corte Interamericana, no Caso Penal Miguel Castro Castro x Peru, de 2006.

O indulto para mulheres: breve história

trâmite do Projeto de Lei 7.764/2014 continua emperra-do, nas mãos do Deputado João Campos, que há mais de um ano negligencia a apresentação do seu relatório.

Mais do que nunca o Congresso Nacional se revela hostil às agendas de direitos humanos, sobretudo no que se refere aos direitos das mulheres e ao reconhe-cimento da violência de gênero. É por isso que a socie-dade civil deve seguir intensamente mobilizada e não arrefecer enquanto houver uma única pessoa privada de liberdade que tenha seu direito à convivência fami-liar condicionado ao estupro institucional, que é o que a revista vexatória verdadeiramente significa.

Em apenas 0,02% dos casos se apreendeu dro-gas ou celulares com visitantes.

A vedação de concessão do indulto para o trá-fico, redundou em sua ineficácia para as mu-lheres

política criminal através deste instrumento constitu-cional. Pois bem, o recorte de gênero foi implemen-tado, porém no decreto de 2004 e nos subsequentes, excepcionava-se a sua aplicação a quem tivesse sido condenada por tráfico.

Ocorre que a maioria das mulheres está presa por esta espécie de delito, com quantidade não significativa de drogas, sendo que cerca de 70% é mãe e tem a chefia da família, redundando a sua prisão em consequências muito mais danosas ao núcleo familiar e social.

A vedação de concessão do indulto para o tráfico, re-dundou em sua ineficácia para as mulheres. Vejam os dados: em 2014, em São Paulo, foram indultados 2335 homens e 65 mulheres; em Minas Gerais foram 1211 homens e 54 mulheres; no Rio Grande do Sul, foram 622 homens e 19 mulheres35.

35 As informações sobre os anos anteriores podem ser encon-

Kenarik Boujikian34

O indulto é instituto de patamar constitucional, atri-buído ao Presidente da República, nos termos do ar-tigo 84, da Constituição Federal. É uma forma de in-dulgência do Estado e sempre esteve presente em nossa legislação. Rotineiramente é usado no período do natal, embora possa ser dado em qualquer momento.

Trata-se de um importante instrumento de realiza-ção direta de política criminal realizado pelo Execu-tivo Federal.

Tendo em vista a realidade do encarceramento fe-minino e o perfil das mulheres encarceradas, o Gru-po de Estudos e Trabalho “Mulheres Encarceradas” (GET), rede que tem como objetivo primordial dis-cutir a realidade da mulher presa, suas condições de encarceramento, seu acentuado perfil de exclu-são social, apresentou no Ano da Mulher, em 2004, requerimento de entrada da mulher na agenda da

34 Cofundadora da Associação Juízes para a Democracia e membro do GET Mulheres Encarceradas, magistrada no TJSP.

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PB16

www.redejusticacriminal.org

Por estas razões, em fevereiro de 2016, o GET e mais 250 entidades, requereu concessão de indulto e co-mutação de penas para as mulheres, que tivessem co-metido crime previsto no artigo 33 da Lei de Drogas36.

Para tanto, o pedido passou pelo órgão próprio, o CNPCP (Conselho Nacional de Política Criminal), que acolheu a demanda e apresentou importante pro-posta de indulto, com esmero, rigor técnico e trans-parência, o que aconteceu pela primeira vez, pois até então não se sabia do posicionamento deste impor-tante órgão de execução criminal.

O CNPCP acolheu a tese que não há proibição para sua concessão e recomendou a implementação apontando o aumento significativo, na última déca-da, de mulheres encarceradas, de ordem de 570% por delito previsto da lei referida.

No tocante à vedação de indulto para tráfico, previs-ta na Lei de Crimes Hediondos, registre-se a sua in-constitucionalidade, pois impõe limite que a Consti-

tradas em: <http://bit.ly/indultoSP>, <http://bit.ly/indultoMG> e <http://bit.ly/indultoRS>.36 Disponível em: <http://bit.ly/indultomulheres>.

tuição não estabeleceu e é elementar que não é dado ao legislador infraconstitucional restringir quaisquer dos poderes da República.37

Enfim, o pedido ainda não foi acolhido pela Presidên-cia da República e diante de qualquer vedação válida, da caótica situação do encarceramento das mulheres e da ineficácia dos indultos anteriores, pergunta-se: por quê?

Evidente que a cultura de terror ao tráfico contamina políticas necessárias para a questão de drogas. Outros países caminham para outra direção. Passou do mo-mento de rever a política de encarceramento massivo de mulheres, especialmente em razão de drogas.

Precisamos ao menos de um passo. Que ve-nha o indulto para as mulheres.

37 Confira-se parecer de lavra do festejado Alberto Silva Franco em http://bit.ly/parecerindulto.

Passou do momento de rever a política de en-carceramento massivo de mulheres