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Secretário da Cultura Andrea Matarazzo

Diretor PresidenteDiretor do Centro Brasileiro de

Estudos da América LatinaDiretor de Atividades Culturais

Diretor Administrativo e FinanceiroChefe de Gabinete da Presidência

DEPARTAMENTO DE PUBLICAÇÕESGerente/Editora Executiva

CONSELHO CURADOR

PresidenteSecretário da Cultura

Secretário de DesenvolvimentoReitor da USP

Reitor da UnicampReitor da Unesp

Presidente da Fapesp

FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA

Fernando Leça

Adolpho José MelfiFernando CalvozoSérgio JacominiIrineu Ferraz Carvalho

Leonor Amarante

Almino Monteiro Álvares AffonsoAndrea MatarazzoLuciano Santos Tavares de AlmeidaJoão Grandino RodasFernando Ferreira CostaHerman Jacobus Cornelis VoorwaldCelso LaferJosé VicenteJorge Caldeira

Governador Geraldo Alckmin

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Copyright© 2011 dos autoresTodos os direitos reservados

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)(Câmara Brasileira do Livro, SP, São Paulo)

O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana / organizadora Cremilda Medina.

– São Paulo : Fundação Memorial da América Latina, 2011. 146 p. ISBN 978-85-85373-97-9

1. Política Econômica – América Latina. 2. Microcrédito - América Latina. I. Medina, Cremilda, org. CDD – 330.98

Ficha catalográfica elaborada por Rejane do Desterro de Moura Alves CRB8ª – 6169

Fundação Memorial da América LatinaAv. Auro Soares de Moura Andrade, 664Barra Funda01156-001Tel.: (011) 3823 4600Fax: (011) 3823 4611www.memorial.sp.gov.br

Foi feito depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 10.994, de 14/12/2004)

M44

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Sumário

O Impacto do Microcrédito para mulher latino-americana

ApresentaçãoAdolpho José Melfi..........................................................................9

1. Um foro permanente para a reflexão sobre a América LatinaCremilda Medina...........................................................................11

2. A força empreendedora da mulher brasileira e da mu-lher colombianaClaudia Forte..................................................................................17

3. Entre a especulação estéril e o microcrédito produtivoLadislau Dowbor............................................................................59

4. Assimetria de crédito, de informação e de alocação de recursos na economiaMárcio Bobik Braga.......................................................................73 5. Comunicação e cultura no diálogo entre agentes econômicosCremilda Medina.........................................................................103

6. A força das identidades nos pequenos e grandes negóciosRenato Seixas...............................................................................119

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Apresentação

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A presente edição registra o debate inaugural do Foro Per-manente de Reflexão, um programa idealizado para apresentar e discutir teses de mestrado e doutorado, cujos temas abordem questões latino-americanas em diferentes áreas do saber. A ini-ciativa é resultado de uma oportuna, e já muito bem-sucedida, parceria firmada entre a Fundação Memorial da América Latina e o Programa de Pós-Graduação em Integração da América La-tina (Prolam) da Universidade de São Paulo.

O ponto de partida desse primeiro encontro, que o Memorial divulga agora em livro, foi a tese pioneira da pesquisadora brasileira Claudia Forte, que investigou as políticas de microcrédito no mundo e, em especial, na América Latina. Seu intuito era saber até que pon-to tais políticas beneficiavam mulheres empreendedoras de pequenos negócios, suas famílias, suas comunidades e os reflexos na sociedade como um todo. Nesta edição o leitor pode verificar as conclusões da pesquisadora, bem como as análises dos demais participantes do fórum, a importância do programa e a pertinência dos registros para a disseminação do conhecimento.

Adolpho José MelfiDiretor do Centro Brasileiro de Estudos da América Latina

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Um foro permanente para a reflexão sobre a América Latina

Cremilda Medina

No início de 2010, ao organizar um seminário sobre liberdade de expressão e direito à informação, junto à cátedra da Unesco

da Fundação Memorial da América Latina, em São Paulo, Adolpho José Melfi, presidente da cátedra e ex-reitor da Universidade de São Paulo, me solicitou coordenar um programa de teses de doutorado e dissertações de mestrado, cujas pesquisas abordem as sociedades latino-americanas. Trata-se de uma iniciativa muito oportuna de tor-nar pública a reflexão e o conhecimento científico gerado nas univer-sidades brasileiras.

Propus então que iniciaríamos o foro pela produção do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da Universidade de São Paulo e, em conjunto com o pesquisador Renato Seixas, ambos atuamos neste espaço, elabo-ramos o projeto que foi submetido ao prof. Melfi e que a seguir registramos. Esta edição se reporta ao primeiro seminário do

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

Foro Permanente que pôs em prática esta fundamentação em junho de 2010.

Aos 22 anos de implantação, o Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam) da Universidade de São Paulo, pioneiro na pesquisa da região, apresenta diagnósticos e prog-nósticos que merecem ser debatidos em um espaço público de grande repercussão – o Memorial da América Latina.

• As principais linhas de pesquisa do Prolam – comunicação e cul-tura, economia, relações internacionais, sociologia e direito, saúde e ci-ências biológicas – constituem um corpus de conhecimento que mapeia identidades e desafios contemporâneos dos países latino-americanos.

• O método comparativo, eixo metodológico dos estudos no programa, tem proporcionado a aproximação interativa e o reco-nhecimento das diferenças no âmbito da proposta histórica da in-tegração na América Latina. O deslocamento dos pesquisadores – brasileiros e hispano-americanos –, enfatizado no trabalho em-pírico, tem proporcionado uma experiência cumulativa que merece ser revisitada.

• Os estudantes de pós-graduação das universidades locais e de visitantes interessados pela Região definem o público-alvo deste foro, já que a pesquisa em andamento no Brasil tem raízes histórico-culturais na América Latina, tão valiosas quanto as referências que provêm da América do Norte, da Europa e de outras latitudes.

• Se uma das linhas de pesquisa foca as Ciências da Comunica-ção, este Foro Permanente representa a ação pragmática desse campo, ao levar a público a reflexão e o debate de dissertações de mestrado e teses de doutorado, bem como os projetos de pesquisa dos docentes que formam a massa crítica do Prolam.

Estas justificativas se impõem no domínio da socialização do co-nhecimento, muitas vezes fechado nos acervos universitários. Aten-dem também a objetivos gerais e específicos:

Desta forma, o Projeto tem como objetivo geral estrutu-rar parceria entre o Memorial da América Latina (Memorial), de um lado, e o Prolam/USP (Prolam), de outro lado, para que constituam um foro permanente para a reflexão multidimensio-nal e transdisciplinar sobre a América Latina, a partir da apre-sentação de trabalhos científicos de reconhecida excelência aca-

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dêmica. Embora o ponto de partida seja o Prolam/USP, o foro se abrirá, de imediato, às pesquisas originárias de outras universidades.

Os objetivos específicos podem assim ser sistematizados:a) Oferecer aos professores, mestres, doutores ou estudantes de

pós-graduação vinculados ao Prolam e a outros programas de pós-graduação externos à USP oportunidades de discussões diretas sobre seus trabalhos com a comunidade frequentadora do Memorial, de modo a ampliar e aprofundar a reflexão sobre a América Latina.

b) Estimular outros pesquisadores a desenvolverem novos traba-lhos científicos transdisciplinares sobre a América Latina a partir das vertentes de reflexão abertas pelos trabalhos apresentados por profes-sores, mestres, doutores ou estudantes de pós-graduação egressos do Prolam, na USP, e em outras universidades.

c) Estimular e apoiar a formação de novos grupos de pesquisa científica multidimensional e transdisciplinar sobre a América Latina.

A partir de junho de 2010, a coordenação do projeto se propôs a uma dinâmica mensal, em que os trabalhos científi-cos (mestrado e doutorado) passaram a configurar uma mesa de exposição em debate. O pesquisador em questão expõe uma síntese de sua tese ou dissertação, o orientador faz a mediação entre outro pesquisador/debatedor e o público presente. Estabe-lecidos os tempos de cada exposição, o foro releva com ênfase a oportunidade de comunicação do auditório com a mesa. Como a coordenação do projeto provém da área de comunicação e cul-tura, seria de estranhar se a dialogia não fosse a coluna vertebral da interação ciência-sociedade, sociedade-ciência.

Mas o projeto transcende a área de comunicação e cultura, contemplando outros campos de conhecimento que apresentam e discutem trabalhos científicos de reconhecida excelência sobre a América Latina, que sejam transdiciplinares e explorem as múlti-plas dimensões dos fenômenos estudados, de modo a possibilitar a implementação de estratégias de integração da região. Nesse con-texto, sem exclusão de outros eixos temáticos, o projeto considera relevantes os seguintes sobre a América Latina: multiculturalismo e políticas de afirmação cultural; práticas de comunicação social e mediações simbólicas; práticas políticas nacionais e internacio-nais; economia nacional e internacional e processos de integração

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

regional; Relações Internacionais e o papel da América Latina na reorganização da Nova Ordem Mundial.

Além da produção e execução dos seminários temáticos, faz par-te do projeto a publicação de livros contendo os principais trabalhos apresentados e a síntese dos debates ocorridos nas sessões. A cátedra da Unesco no Memorial da América Latina já havia lançado uma série que contempla pesquisas acadêmicas, e a presente edição, re-gistro do primeiro seminário do Foro Permanente de Reflexão, está integrada à coleção.

Os textos que se seguem, escritos pelos participantes da primeira mesa, abordam o tema do microcrédito e um recorte de gênero: como a mulher latino-americana empreende seus pequenos negócios, com a ajuda de empréstimos bancários. A pesquisadora brasileira Clau-dia Forte, graduada na área de administração de empresas, defendeu o doutorado em 2006 no Prolam/USP com uma tese pioneira que levanta as políticas de microcrédito internacionais e, em particular, na América Latina. O estudo comparativo que mediu o impacto so-cioconômico nas mulheres das cidades de Bogotá e do Recife, ilustra esta bem-sucedida proposta de inclusão social e empreendedorismo. Atualmente, professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie de São Paulo, Claudia Forte coordena, em Brasília, o projeto da Caixa Econômica Federal (CEF) com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para desenvolvimento dos programas de microcrédito em âmbito nacional.

O orientador da tese, Márcio Bobik Braga, professor livre do-cente na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (campus de Ribeirão Preto) e integrante do corpo docente de pós-graduação em integração da América La-tina (Prolam), contribui com uma reflexão abrangente que retoma a história do pensamento econômico na região. Autor de livros e arti-gos que abordam a integração econômica latino-americana, Bobik se detém neste ensaio sobre a assimetria de informação e alocação de recursos nos mercados de crédito.

Ladislau Dowbor, debatedor do tema, possui graduação em eco-nomia política pela Universidade de Lausanne (1968), mestrado e doutorado em Ciências Econômicas na Escola Central de Planeja-mento e de Estatística de Varsóvia, Polônia, e atualmente é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Sua experi-

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ência acadêmica se concentra nos seguintes temas: mudança tecno-lógica, economia de recursos humanos, economia regional e urbana, planejamento educacional e economia internacional. Autor de diver-sos livros e artigos, parte deles disponíveis no site http://dowbor.org, ele traz a este seminário uma crítica sócio-econômica às políticas de crédito no capitalismo contemporâneo.

Em complementação ao debate, esta coordenação, proveniente da área de comunicação e cultura, remete à questão do crédito para as negociações em que a dialogia entre microempreendedores e agentes bancários pressupõe variáveis culturais e comunicacionais. A pesqui-sa que desenvolvo na Universidade de São Paulo e em outras insti-tuições acadêmicas da América Latina e da Península Ibérica está marcada, a partir dos anos 1960, pelo diálogo social, vocação precípua das práticas de comunicação.

As dinâmicas dialógicas, por sua vez, acontecem nos contextos culturais e nos marcos identitários de determinada sociedade, campo de reflexão que encerra a edição, desenvolvido por Renato Seixas, pesquisador da Universidade de São Paulo. A complementaridade interdisciplinar de economia, sociologia, comunicação e cultura se vocaliza, assim, na busca de técnicas inovadoras, responsabilidade ética e linguagem dialógica perante as demandas coletivas.

Cremilda Medina

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A força empreendedora da mulher brasileira e da mulher colombiana

Claudia Forte*

Este estudo sugere que os diversos fenômenos econômicos, so-ciais, políticos, ambientais e culturais, entrelaçados na diversi-

dade da geografia, determinam a densidade e a profundidade dos lu-gares, as cidades, os municípios e as regiões. Parte-se da constatação de que é no nível dos municípios e das pequenas regiões que é pos-sível construir um projeto de sociedade, que preserve a pluralidade e que torne realidade a participação cidadã no alcance de propósitos comuns. Num contínuo movimento, contraditório e complementar, o universal e o local se reafirmam e retroalimentam, e desse processo surge um “localismo cosmopolita”.

Resta tentar responder à pergunta-chave desta pesquisa: qual é o papel ocupado pelas microfinanças no cenário “glocal” (onde o pen-samento e desenvolvimento de estratégias são globais e a atuação é local) e por que elas são consideradas importantes para o processo de desenvolvimento e inclusão social? O senso comum associa alguns

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

pressupostos à questão do microcrédito. Alguns já bastante conheci-dos ressaltam a viabilidade de chegar ao atendimento das classes me-nos favorecidas, bem como que as atividades microfinanceiras podem contribuir para o aumento de rendimentos de empresas operadas por famílias com baixo nível de renda.

Outro argumento que tem sido considerado, quando analisada a eficiência dos programas de microcrédito, é no tocante à sustentabili-dade financeira da instituição, pois as atividades microfinanceiras po-dem ajudar a desenvolver instituições financeiramente autossuficien-tes, livres de subsídios e organizadas em nível local, além do potencial de desenvolver sistemas não tradicionais, cuja forma excludente de an-gariar novos clientes é bastante conhecida dos microempresários.

Trata-se da possibilidade de desenvolver sistemas de serviços fi-nanceiros que superam os tradicionais e que permitem maior flexi-bilidade em termos de condições de prazo, sistemas de amortização, convênios de poupança, sistema de pagamentos e outras condições, ou seja, que se adaptem de uma melhor maneira aos usuários dos grupos-foco dos programas de microcrédito.

A problematização desta pesquisa está sustentada na relação pobreza x gênero. Partindo da análise de dois programas de micro-crédito que, no bojo de seus ideais, almejam tornar a parcela mais pobre de sua respectiva população incluída no processo do desen-volvimento econômico, faz-se necessário entender o papel que a mulher ocupa nesse processo, na condição de agente de transfor-mação da realidade e não apenas como agente passiva ou contem-plativa das mudanças.

Outro objetivo de investigação que suscita esta pesquisa é ob-servar e analisar o impacto que os programas de microcrédito tem causado na vida das mulheres das comunidades a serem estudadas. De que forma é percebida a melhora e o desenvolvimento em suas famílias? E em seus negócios? Comparativamente, foi feita uma análise das razões e dos agentes motivadores de comunidades do Brasil e da Colômbia.

Dada a atual e contínua discussão do Brasil e seu papel na in-tegração da América Latina, a pesquisa coloca-se em posição de re-levante importância, pois não existe possibilidade de integrar sem diminuir a desigualdade, mormente a de gênero.

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Desenvolvimento como liberdade

A literatura tocante ao microcrédito quase sempre ressalta uma dessas vertentes em última análise. Dado o referencial teórico mais utilizado neste artigo, que é o de Amartya Sen, e a respectiva visão das liberdades, a intenção dessa pesquisa é analisar a perspectiva eco-nômica, enxergada através do acréscimo de renda e de acesso a bens de serviço e de consumo, como, por exemplo, o acesso ao sistema de saúde particular e a escola privada, com a questão de formação cul-tural e envolvimento com a comunidade; a partir daí fez-se relação entre a formação de grupo e a questão do crédito e aval solidário.

Este artigo foi estabelecido sobre dois pilares básicos de susten-tação. O primeiro deles está na proposta do Desenvolvimento como Li-berdade, o objetivo esteve na exploração da bibliografia de sustentação deste artigo, que servirá de norte em todo o trabalho de campo bem como para as conclusões a que se chega ao fim da pesquisa. As di-mensões econômicas e sociais do trabalho estão fundamentadas nos trabalhos de Amartya Sen e John Keneeth Galbraith. A junção desses autores dá-se pela existência de uma linha de pensamento comum en-tre os dois: a que fala da percepção da pobreza como uma das piores facetas da desigualdade, inclusive no tocante à ausência de liberdade.

Em se tratando da arqueologia do conceito de “agente de mudan-ça” que há tempos vem aparecendo, ora de forma discreta ora de forma central, nos artigos e livros de Amartya Sen, pode-se perceber que tal conceito culmina em seu momento completo na obra Desenvolvimento como Liberdade.1 Com esse título, Amartya Sen invoca a discussão am-pliada de problemas e questões já debatidas no cenário mundial e con-temporaneamente global: a questão de que fomentar ou desenvolver programas e propostas de inclusão passa longe de atingir seu ápice de performance quando tratados e observados apenas do ponto de vista financeiro. A concepção de desenvolvimento de Amartya Sen discute a inclusão com base na expansão das liberdades.

Nessa concepção de expansão das liberdades, o desenvolvimento econômico demanda que sejam removidos os principais problemas que levam à privação de liberdade, como, por exemplo, a negação ou ausên-cia completa de acesso ao crédito. A perspectiva de crédito tratada aqui é aquela em que o crédito servirá como agente propulsor ou susten-

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

tador de um pequeno negócio, que gere renda e possibilidade real de consumo e interação com a vida social na comunidade estudada.

A ligação entre liberdade e desenvolvimento econômico-social torna-se alvo de análise porque ampara e fundamenta a necessidade de observação e validação das relações empíricas relevantes, em par-ticular as relações mutuamente reforçadoras entre liberdades de tipos diferentes. Essas inter-relações justificam a condição de agente livre e sustentável de mudança que emerge como um motor fundamental do desenvolvimento.

Outro economista corrobora o conceito de Liberdade do ponto de vista liberal, já amplamente analisado, por exemplo, nas obras de Locke e Rousseau2; trata-se de John Kenneth Galbraith, em sua extensa obra, mas, sobretudo no texto "A Sociedade Justa".

"Na sociedade justa, todos os cidadãos devem desfrutar de liberdade pessoal, de bem-estar básico, de igualdade racial e étnica, da oportunidade de uma vida gratificante. Temos de reconhecer que nada nega tão amplamente as liberdades do indivíduo quanto a ausência total do dinheiro. Ou as reduz tanto quanto há muito pouco." (GALBRAITH 1996:5)

Faz-se necessário questionar, num contexto histórico mais am-plo, qual é a natureza da sociedade justa, e como tornar o futuro melhor para todos.

O que se pode perceber é que na sociedade justa uma regra do-mina questões de desigualdade de melhor distribuição, que parte da renda passando pelo acesso ao poder, é que as decisões devem ser tomadas com base nos méritos sociais econômicos do caso específico. Esta não é a era da doutrina, é a era do julgamento prático.

Na perspectiva do desenvolvimento como liberdade, o conceito de sociedade justa é usado para fundamentar e solidificar o pressu-posto aqui tratado: o microcrédito se propõe a entregar como resul-tado às duas comunidades estudadas mais do que a capacidade de auferir renda, também a possibilidade da liberdade, compreendida e complexificada em toda sua magnitude, pois oportuniza mudanças e possíveis melhoras.

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Os tipos de liberdade enxergados sob a perspectiva de instru-mentalização da liberdade são alvos de investigação e fundamentação do conceito de Amartya Sen. Tais liberdades são por ele elencadas como: liberdade política; liberdade econômica; oportunidades so-ciais; garantia de transparência e segurança protetora.

Faz-se necessário ressaltar que somente se atinge o estado ótimo de desenvolvimento, quando estão conjugadas todas essas liberdades simultaneamente de forma a propiciar um encadeamento que una os diferentes tipos de liberdades uns aos outros, fortalecendo sua impor-tância conjunta. Essas relações são fundamentais para uma compreensão mais plena do papel instrumental da liberdade, todavia, por questões de ordem metodológica, de exequibilidade, e sobretudo em função dos ob-jetivos deste artigo, tratar-se-á de modo mais aprofundado a perspectiva do desenvolvimento sob o ponto de vista da liberdade econômica e das oportunidades sociais, por entender a ligação importante que há entre as oportunidades e formações sociais como agentes facilitadores no proces-so de desenvolvimento e participação econômica.

Ter mais liberdade melhora o potencial das pessoas para cuidar de si mesmas e para influenciar aqueles que estão ao seu redor, e essas são questões importantes para o desenvolvimento. Aqui está expli-citada a conceituação de Sen do “aspecto da condição de agente” – agency aspect – do indivíduo.

Este artigo se ocupa particularmente do peso da reciprocidade na formação dos grupos e na manutenção dos benefícios coletivos, bem como do entendimento do papel da condição de agente do indivíduo como membro de um grupo ou sociedade e como par-ticipante de ações econômicas e sociais, que interagem no merca-do e na comunidade – no recorte de gênero e nas realidades do Brasil e da Colômbia – promovendo impacto de crescimento em seu entorno, pois o papel da renda e da riqueza – ainda que seja importantíssimo, juntamente com outras influências – tem de ser integrado a um quadro mais amplo e completo de êxito e privação. O enfoque passa a ser na qualidade e no tipo da liberdade, e não apenas na renda e na riqueza3.

A argumentação para a hipótese da pesquisa está calcada no pres-suposto de que os valores que permitem às pessoas decidir livremente são as tradições e os valores do grupo que elas desejam ou não “seguir”.

Claudia Forte

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

Certamente há nítidas diferenças na formação de cultura de grupo en-tre Brasil e Colômbia. Nesse pressuposto, reside a importância básica da liberdade humana e, uma vez aceito, há fortes implicações sobre o que se pode ou não fazer em nome da tradição. A abordagem do De-senvolvimento como Liberdade privilegia esse pressuposto.

Sen elabora, para além de uma noção de pobreza absoluta — que corresponderia ao alcance de uma condição de vida abaixo do mínimo fisicamente adequado, conceito mais biológico do que social —, uma noção de pobreza relativa. Essa seria afetada pelo nível de desigual-dade socioeconômica prevalecente em uma sociedade, e as noções de funcionamentos e capacidades estariam aptas a aferi-lo.

"Os fracassados e os oprimidos acabam por perder a coragem de desejar coisas que outros, mais favoravelmente tratados pela sociedade, desejam confiantemente. A ausência de desejo por coisas além dos meios de que uma pessoa dispõe pode refletir não uma valoração deficiente por parte dela, mas apenas uma ausência de esperança, e o medo da inevitável frustração. O fracassado enfrenta as desigualdades sociais ajustando seus desejos às suas possibilidades." (SEN, 1990:10-11)

Nesta pesquisa não se tem a pretensão de sugerir que exista um critério de desenvolvimento único e preciso que sirva para as duas realidades aqui tratadas. Ao contrário, a motivação da aplicação des-se conceito em realidades tão diversas busca chamar a atenção para aspectos importantes do desenvolvimento, cada qual merecedor de relativa atenção, como, por exemplo, o modo pelo qual essas socie-dades foram agrupadas e quiçá descobertas, influencia diretamente na maneira como se organizam e efetivam as relações de acesso e, a posteriori, a manutenção de um certo patamar de desenvolvimento e de inserção econômico-social.

De acordo com o relatório do Banco de Desenvolvimento Mun-dial do ano de 2000, o mundo tem muita pobreza em meio à abun-dância. Dos 6,8 bilhões de habitantes, 2,8 bilhões vivem com menos de 2 dólares por dia e 1,2 bilhão com menos de 1 dólar por dia. A visão central deste trabalho migra, através do conceito de condição

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de “agente de mudança”, de uma concentração exclusiva sobre a po-breza de renda para a ideia mais inclusiva da privação de capacidade, pois passa a ser trabalhado o conceito da pobreza como privação de capacidades básicas e não apenas como baixa renda.

No tecer do conceito de desenvolvimento como liberdade, Amartya Sen dedica boa parte da obra a justificar sua abordagem da pobreza como privação de capacidades.

“As questões básicas de fundamentação nos obrigam a entender a pobreza e a privação da vida que as pessoas realmente podem levar e das liberdades que elas realmente têm. A expansão das capacidades humanas enquadra-se diretamente nessas condições básicas. Acontece que o aumento das capacidades humanas também tende a andar junto com a expansão das produtividades e do poder de auferir renda. Essa conexão estabelece um importante encadeamento indireto mediante o qual um aumento de capacidades ajuda direta e indiretamente a enriquecer a vida humana e a tornar as privações humanas mais raras e menos pungentes. As relações instrumentais, por mais importantes que sejam, não podem substituir a necessidade de uma compreensão básica da natureza e das características da pobreza." (SEN 2000)

Seus principais argumentos são: a pobreza exerce influência sobre outras privações, inviabilizando o bem-estar, e a relação instrumental entre baixa renda e baixa capacidade é variável entre comunidades e até mesmo entre famílias e indivíduos (o impacto da renda sobre as capacidades é contingente e condicional).4

É possível identificar diversos enfoques para definir o fenôme-no da pobreza. Entre os mais importantes, Ruggeri, Saith e Stewart (2003) assinalam o enfoque monetário, o das capacidades, o da exclu-são social e o participativo.

O enfoque monetário, que define a pobreza como um desajuste entre o consumo e o ingresso e que toma por base a linha da pobreza expressa em US$ 1,00, é o mais conhecido.

O enfoque das capacidades, cujo pioneiro foi Amartya Sen, re-chaça o ingresso monetário como a única medida de bem-estar, ao que define como a liberdade dos indivíduos para viver uma vida que

Claudia Forte

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

lhes permita realização plena de suas capacidades. Pobreza entende-se como a carência de recursos que impede as pessoas de cumprir algumas atividades básicas, como, por exemplo, permanecer vivo e gozar de uma vida saudável, integrar-se socialmente e gozar de liber-dade de expressão. Sob esse enfoque, a luta contra a pobreza consiste em identificar e potencializar as capacidades das pessoas com vistas a melhorar seu estado.

O enfoque da exclusão social estuda as características estrutu-rais da sociedade que geram processos e dinâmicas que excluem os indivíduos e os grupos de participação social plena. Faz especial re-ferência à distribuição de oportunidades e recursos para a superação da exclusão, e o fomento da inclusão tanto nos mercados de trabalho como nos processos sociais.

Outras críticas à conceituação e medição da pobreza segundo o ingresso e o consumo provém de novos aportes teóricos que am-pliam e aprofundam o conceito de pobreza. Um deles é o enfoque do capital social que aporta uma visão integral para a compreensão dos processos de desenvolvimento e pobreza, em que se incluem aspectos políticos, sociais e econômicos.

O conceito de exclusão entende-se em duplo sentido. O primei-ro refere-se ao ato de expulsar uma pessoa para fora do espaço que ocupava anteriormente, como ocorre em caso de demissão de uma trabalhadora, a limitação de acesso aos grupos de recursos escassos a certos serviços; o segundo refere-se a privar a pessoa de alguns de seus direitos. Trata-se, então, de um fenômeno originado em uma ação e que pode supor a responsabilidade externa e a obrigação dos agentes públicos e da sociedade civil de tomar medidas.

Recentemente, (Cepal, 2000) além de entender a pobreza como uma expressão da carência de recursos econômicos e de condições de vida que a sociedade considera básicos, tem reafirmado a importância dos enfo-ques como a exclusão social e das capacidades, e tem entendido como um fenômeno com múltiplas dimensões e diferentes causas. Sob esse ponto de vista, pode-se definir a pobreza como “o resultado de um processo social e econômico – com componentes culturais e políticos – no qual as pessoas se encontram privados de ativos e de oportunidades essenciais por diferentes causas e processos, tanto de caráter individual como coleti-vo, o que outorga o caráter multidimensional”. (Cepal 2003 b).

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No contexto dos mercados de crédito, entendem-se como meca-nismos de incentivo aqueles utilizados pelos credores no sentido de minimizar os problemas de informação assimétrica. Podem-se esta-belecer outros mecanismos como a exigência de fiadores ou a possibi-lidade de sanções previstas na legislação. Um problema social ocorre quando se considera o crédito para pequenos empreendimentos. Nos países menos desenvolvidos, esses empreendimentos encontram-se, muitas vezes, na informalidade e possuem baixa rentabilidade, por serem realizados com populações de baixa renda.

Uma das alternativas encontradas na literatura refere-se ao aval ou fiança solidária, conceito esse presente em empréstimos em grupos. A ideia básica é que dificuldades ou fragilidades individu-ais possam ser superadas pela responsabilidade e segurança coletiva propiciada pela formação de um grupo de indivíduos. A formação de grupos serve para várias finalidades: gerar melhores incentivos, pressionar o pagamento, ampliar a eficácia dos programas acoplados ao microcrédito e diminuir custos de transação e monitoramento, além de potencializar a área de trabalho e o número de clientes por agente de crédito. O caso do Grameen Bank é ilustrativo da operação do crédito em grupo:

"[...] grupos de cinco tomadores potenciais são formados. Na primeira etapa, apenas dois deles são elegíveis e recebem o empréstimo. O grupo é observado por um mês para ver se os membros se conformam às regras do Banco. Apenas se os dois primeiros tomadores pagarem o principal e os juros em um período de 15 semanas os outros membros do grupo se tornam elegíveis para o empréstimo. Por causa dessas restrições, há uma substancial pressão do grupo para que os indivíduos ajam da melhor maneira. Neste sentido, a responsabilidade coletiva do grupo serve como colateral para o empréstimo" (YUNUS p.136).

As vantagens do empréstimo em grupo começam pela redução dos problemas de seleção adversa, ao prover incentivos para que indi-víduos similares, isto é, com o mesmo perfil de risco, se agrupem, di-minuindo os custos de busca de informações e seleção pela instituição.

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Os empréstimos em grupo também podem reduzir o risco moral e a necessidade de monitoramento, pois parte desse é feito pelo próprio grupo para diminuir o risco de sanção ou de ter de cobrir as obriga-ções dos membros que falham. A forma de empréstimos em grupo se fundamenta no conceito de automonitoramento e no enforcement gerado pela proximidade dos membros de um mesmo grupo.

Van Tassel (1999) e Ghatak (1999) sugerem que o processo de formação de grupos acarreta a formação de indivíduos com agentes do mesmo risco, hipótese conhecida como homogeneização dos gru-pos. Tal homogeneização nada mais é do que uma tendência natural a essa metodologia de aglutinação de pessoas de mesmo risco no mesmo grupo. Todos os componentes de um mesmo grupo apresen-tariam riscos semelhantes.

Segundos esses autores, isso se dá porque os agentes têm uma grande noção a respeito de seus companheiros de grupo e dos respec-tivos negócios. Sendo assim, conhecendo os riscos dos demais agen-tes, não se aceitaria dividir a responsabilidade com agentes de alto risco ou de agentes com riscos superiores ao seu.

Na conclusão de seu texto, Ghatak cita os efeitos da formação dos grupos sobre a informação assimétrica no mercado de microcrédito.

“Uma implicação interessante da propriedade de combinação associada comprovada no trabalho é que os beneficiários de crédito de risco, que se unirão com parceiros de risco, estarão menos dispostos a aceitar um aumento na abrangência da responsabilidade conjunta do que (aceitar) uma segurança para a mesma redução na taxa de juros.”(GHATAK, 1999:45)5

Pessoas envolvidas na comunidade local têm total capacidade de diferenciar os agentes com maior propensão ao calote. Portanto, eles têm a capacidade de separar os mais arriscados dos menos arriscados e com custos extremamente reduzidos, por conhecerem os integran-tes da comunidade. Nesse caso a assimetria é reduzida, o que torna o mercado mais seguro, aumenta a expectativa do retorno do capital emprestado e permite a diminuição da taxa de juros demandada para a concretização dos negócios.

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A experiência internacional revela um outro mecanismo de in-centivo utilizado pelas instituições de microfinanças que é o “de-senvolvimento de colaterais substitutos”, dentre eles, destacam-se: a constituição de seguros, a poupança compulsória e a vinculação do montante de empréstimo ao montante de poupança. Outros bancos vinculam o montante do empréstimo ao montante de depósitos que o tomador tem com o banco. Segundo Reinke (2000),

“A poupança pode desempenhar várias funções: pessoas que poupam são mais prudentes, logo são tomadores mais confiáveis; o comportamento da poupança ajuda a determinar a capacidade de endividamento; e a poupança pode ser usada como colateral. Logo, a seleção e o enforcement podem se dar pela acumulação de poupanças. Todavia, os requerimentos de poupança possuem algumas desvantagens: excluem tomadores potenciais, limitam a expansão do crédito e parecem contradizer a lógica do microempréstimo”. (REINKE, 2000)

Esse conjunto de instrumentos visa diminuir os problemas de seleção e monitoramento das instituições de microcrédito, cujo ele-vado custo nas operações de pequena escala poderia inviabilizar os empréstimos. Assim, esses instrumentos, ao criarem uma estrutura de incentivos e pressão sobre os tomadores, possibilitam uma baixa taxa de inadimplência. Essas instituições acabam repassando para a comunidade parte das obrigações de seleção e monitoramento.

No caso dos programas de microcrédito, cuja metodologia seja o aval solidário, a inadimplência gera uma pressão interna do grupo. Essa pressão resulta na ampliação dos vínculos entre os seus membros e am-plia o capital social dos participantes. Consequentemente, são criadas formas de coerção diretas ao pagamento, e ao mesmo tempo maiores sanções via capital social, assunto que será relatado a seguir.

Capital social como principal ativo

No tocante ao microcrédito e seu impacto, o capital social não só aparece como forte agente motivador das capacidades inclusive da capacidade de pagamento, bem como exerce impacto direto na

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qualidade de vida das mulheres atendidas pelos programas, além de ser um colateral importante na relação da instituição com seu cliente.

A importância do capital social vai desde o momento da for-mação do grupo até a quitação da última parcela, pois, como foi demonstrado, os problemas gerados pelo risco moral e pela seleção adversa no âmbito do microcrédito são grandes; em função das ga-rantias formais, o capital social tem sido o melhor aval garantidor da capacidade e vontade de pagamento dos usuários.

Existe uma grande variedade de enfoques e posturas com res-peito ao capital social e a suas aplicações que enfatizam a capacidade de mobilizar recursos, pertencer a redes, as fontes que o originam, as ações – individuais ou coletivas – que a infraestrutura do capital so-cial possibilita e, finalmente, as consequências e resultados positivos e negativos que pode gerar. Dispõe-se, nas Ciências Sociais, de um amplo leque de definições e matizes, tanto do conceito de capital social como de suas aplicações.

Por sua vez Coleman define o capital social como “o com-ponente do capital humano que permite aos membros de uma sociedade confiar nos demais e cooperar na formação de novos grupos e associações” por sua função como “uma diversidade de entidades com dois elementos em comum, todas consistem em al-gum aspecto de estruturas sociais e facilitam certa ação dos atores – já que se trata de pessoas ou atores corporativos”. “The function identif ied by a concept of social capital is the value of these aspects of social structure to actors as resources that they can use to achieve their interests”. (COLEMAN 1988:101)

A explicação dá-se quando se analisa o capital social à luz das teorias que falam sobre as políticas assistencialistas. O capital social é um eficiente gerador de oportunidades, além de ser capaz de in-cluir, social e economicamente, pessoas que estavam fora do ciclo de desenvolvimento. Todavia, quando mal-desenvolvido ou quando a ausência de vontade política o torna mero instrumento de manipula-ção, esse mesmo capital social pode gerar uma sociedade acomodada, oprimindo o espírito empreendedor.

Putman (1995) considera o capital social de uma perspectiva so-ciocultural6. Aponta ainda para o capital social enquanto constituído

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por aqueles elementos das organizações sociais, como as redes, as nor-mas, a confiança, que facilitam a ação e a cooperação para benefício mútuo, já que o trabalho em conjunto é mais fácil numa comunidade que tem “estoque” abundante de capital social. Do ponto de vista ins-titucional, os organismos internacionais consideraram o capital social com um enfoque econômico que permite melhorar as condições de vida da população pobre. O Banco Mundial (2000) sustenta que seria crucial investir na capacidade organizativa dos pobres, o que implica efetuar investimentos a nível micro para promover a criação de orga-nizações, e a nível macro, mediante à mudança de regras e leis para apoiar e sustentar a atividade associativa. Outra área importante de investimento é a promoção de laços entre grupos (WOOLCOOK M, 1998 e UPHPHOFF 1999).

O Banco Mundial distingue quatro tipos de capital: o capital social é constituído pelo capital natural, constituído pela dotação de recursos naturais com que conta um país; o capital construído, gerado pelo ser humano, que inclui diversas formas de capital (infraestru-tura, bens de capital, financeiro, comercial etc.); o capital humano, determinado pelos graus de nutrição, saúde e educação de sua popu-lação e o capital social que se refere às instituições, relações e normas que conformam a qualidade e quantidade das interações sociais de uma sociedade (BANCO MUNDIAL, 2000).

Por sua vez, o Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID, 2001) pôs um maior acento nas dimensões éticas e culturais do capi-tal social. A proposta do BID compreende vários fatores, tais como: o clima de confiança social, o grau de associativismo, a consciência cívica, os valores éticos e a cultura entendida como “a maneira de viver juntos”. Na mesma linha, localiza-se Fukuyama (2003) que define o capital social como recursos morais, confiança e mecanismos culturais que reforçam os grupos sociais.

Então o capital social seria a união de dois princípios. O primeiro apregoa que os indivíduos tomam decisões, única e exclusivamente, pelo seu interesse. São guiados pelas suas vontades em benefício próprio. Esse princípio repousa na otimização de utilidades por parte do agente.

O outro princípio repousa na capacidade de descrever as ações de um indivíduo guiadas por um contexto social, ou seja, o compor-

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tamento do agente seria tangido por certas influências formadas nas relações sociais em que está submerso.

O capital social pode ser usado como um potencial (munido de prerrogativas ao desenvolvimento), inerente a aglomerações huma-nas, capaz de criar processos que tenham como resultante a melhoria das condições de vida enfrentada por determinada comunidade. Essa melhoria é alcançada pelo estabelecimento de relações humanas que enriqueçam a existência do indivíduo, ampliando seu leque de esco-lha, sua liberdade (ABRAMOVAY, 2002).

No microcrédito, o capital social funciona como coordenador de redes sociais, criando ambiente mais propício para a constituição de um mercado de crédito. “A constituição de grupos solidários cria um sistema eficaz de confiança e controle por meio de redes sociais, susten-tadas pela articulação e pelos laços de confiança entre os agricultores e as organizações, que dinamizam as oportunidades sociais e financeiras de seus cooperados” (ABRAMOVAY E JUNQUEIRA 2005; 24). Sem o conceito de automonitoramento, a pressão exercida pelo grupo para honrar os compromissos não iria existir. É dessa forma que poderão ser reduzidos os problemas de risco moral e seleção adversa.

Na concepção de Castells (2000) as profundas mudanças sociais são tão grandes quanto os processos de desenvolvimento econômico. Há uma redefinição fundamental das relações entre gênero e, conse-quentemente, da formação da família,

“Nesse mundo de mudanças confusas e incontroladas, as pessoas tendem a reagrupar-se em torno de identidades primárias: religiosas, étnicas, territoriais, nacionais... em um mundo de fluxos globais de riqueza, poder e imagens, a busca pela identidade, coletiva ou individual, atribuída ou construída, torna-se a fonte básica de significado social; no entanto, a identidade está se tornando a principal e, às vezes, a única fonte de significado em período histórico caracterizado pela ampla desestruturação das organizações e legitimação das instituições, enfraquecimento de importantes movimentos sociais e expressões culturais efêmeras. Cada vez mais, as pessoas organizam seu significado não em torno do que fazem, mas com base no que elas são ou acreditam que

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são. Nossas sociedades estão cada vez mais estruturadas em sua oposição bipolar entre a Rede e o Ser”.(CASTELLS 2000:23)

O fato é que, a começar pelo campo empresarial, as redes real-mente constituem um meio poderoso de organização social. Na en-trada do novo milênio, elas oferecem uma das formas mais lucrativas de produção: de pequenos negócios às grandes corporações. Segundo esses autores, a articulação de redes também favorece enormemente a transformação social. As redes de movimentos sociais são, talvez, mais complexas do que as empresariais, pois implicam as já citadas afetividades e, além disso, utopias. Mas, na prática, quanto mais bem definido o objetivo de uma rede, melhor tende a ser seu resultado.

No campo social, isso é representado pelas lideranças: os empre-endedores. Há, também, subgrupos nas redes, frequentemente cha-mados de “grupos de afinidade” (clusters, em inglês). Qualquer projeto que focalize esses nós tende a ter mais sucesso, pois atinge “por reedi-ção”, na visão de Toro, ou seja, atinge a muito mais indivíduos.

“Redes são estruturas abertas capazes de expandir de forma ilimitada, integrando novos nós desde que consigam comunicar-se dentro da rede, ou seja, desde que compartilhem os mesmos códigos de comunicação (por exemplo, valores objetivos de desempenho). Uma estrutura social com base em redes é um sistema aberto altamente dinâmico suscetível de inovação sem ameaças ao seu equilíbrio. Redes são instrumentos apropriados para a economia capitalista baseada na inovação, globalização e concentração descentralizada; para o trabalho, trabalhadores empresas voltadas para a flexibilização e adaptabilidade; para uma cultura de desconstrução e reconstrução contínuas; para uma política destinada ao processamento instantâneo de novos valores e humores públicos; e para uma organização social que vise à suplantação do espaço e invalidação do tempo. Mas a morfologia das redes é também uma fonte de drástica reorganização das relações de poder. As conexões que ligam as redes (por exemplo, fluxos financeiros assumindo o controle de impérios da mídia que

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influenciam os processos políticos) representam os instrumentos privilegiados do poder. Assim, os conectores são os detentores do poder. Uma vez que as redes são múltiplas, os códigos interoperacionais e as conexões entre redes tornam-se as fontes fundamentais da formação, orientação e desorientação das sociedades. A convergência da evolução social e das tecnologias da informação criou uma nova base material para o desempenho de atividades em toda estrutura social. Essa base material construída em redes define os processos sociais predominantes, consequentemente dando forma à própria estrutura social” (CASTELLS 2000,498).

A hipótese levantada neste ensaio é de que existe uma relação de complementação direta entre capital econômico (infraestrutura, financiamento), capital humano (educação) e capital social (relações de confiança). A junção entre o capital econômico e o capital huma-no será potencializada à medida que as relações de confiança e coo-peração aumentem na comunidade. Desta forma, em comunidades em que o nível educacional e os recursos financeiros disponíveis são constantes, o possível diferencial de desempenho ou desenvolvimen-to de seus integrantes pode ser explicado pelos laços de confiança es-tabelecidos entre os membros da comunidade, o que permite mobili-zação social coletiva e otimização dos recursos individuais existentes.

O microcrédito, também, ancora-se nesse princípio das relações pessoais entre o agente financeiro e a comunidade. Segundo Braga & Toneto (2002), os programas de microfinanças utilizam novas estru-turas de gerência, novos tipos de contratos e novas atitudes que visam à redução dos custos de transação com a seleção, ao monitoramento e ao alcance, além da geração de incentivos corretos aos tomadores que viabilizem a diminuição da inadimplência. Muitas vezes, o mi-crocrédito faz uso do empréstimo em grupo ou aval solidário, que permite construir um programa de financiamento em torno do “ca-pital social”, sem o recurso às garantias tradicionais, viabilizando-se empréstimos em que os ativos físicos são limitados.

Peça-chave nessa organização é o chamado “agente de crédito”, que vive em contato direto com a comunidade, aprendendo seus há-

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bitos, identificando oportunidades de investimento, identificando tomadores potenciais, prestando serviços de treinamento e assesso-ria, fazendo a cobrança dos empréstimos e recolhendo os depósitos de poupança, entre outras funções. Assim, apesar de o microcrédito estabelecer relações formais de financiamento, o que mais se utiliza é a proximidade (relações pessoais) como forma de diminuir custos de seleção e monitoramento, procedimentos típicos dos mecanismos informais de financiamento, ou seja, as instituições que têm êxito no microcrédito valem-se dos conhecimentos existentes na comunidade (capital social) e de mecanismos informais de relacionamento com os clientes: formalizam-se as relações sem perder as vantagens apresen-tadas por mecanismos informais.

Nas amostras analisadas nesta pesquisa, houve um levantamento do impacto do capital social e da confiança no desenvolvimento e alavancagem dos programas tanto em Bogotá como em Recife.

Procedimentos metodológicos

Ao apresentar um instrumento de pesquisa de campo bem como de análise de conteúdo de caráter comparativo, este estudo fez uso da contextualização estrutural de cada país, pois, conforme Bordieu:

"Se é verdade que duas classes (ou duas sociedades), definidas por condições de existência e práticas profissionais idênticas ou semelhantes, podem apresentar propriedades diferentes quando, inseridas em estruturas sociais diferentes, ocupam posições estruturalmente diferentes e, inversamente, se duas classes (ou dois grupos), caracterizadas por condições de existência e práticas profissionais diferentes, podem apresentar propriedades comuns porque ocupam posições homólogas em duas estruturas diferentes, o estabelecimento de proposições gerais, transculturais e transitórias não pode resultar da simples aproximação de casos isolados do contexto histórico e social em que estão inseridos." (1985:74).

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Tendo em vista o objetivo de entender mais profundamente o impacto dos programas de microcrédito na vida socioeconômica dos sujeitos de pesquisa, adotou-se uma abordagem qualitativa. Esta pode proporcionar respostas de como este fenômeno é tratado, sem a preocupação de enumeração e/ou medição dos eventos estudados e nem a generalização dos resultados. Neste sentido a pesquisa pode ser classificada como exploratória. Procura obter dados descritivos e os resultados são narrados.

Ao pesquisador que adota o enfoque interpretativo, de acordo com Bogdan e Taylor (2000), cabe captar o significado que as pessoas dão às coisas e ao seu entorno, buscando compreender os fenômenos que estão sendo estudados a partir da perspectiva dos participantes, neste caso, os empreendedores do ramo de logística.

Neste estudo as hipóteses emergiram dos dados e foram comen-tadas ao longo do processo de análise. Dentre as técnicas qualitativas, utilizou-se a entrevista semiestruturada, por meio de roteiro flexível permitindo aos entrevistados relatar livremente suas ideias e experi-ências, e como metodologia quantitativa utilizou-se o questionário fechado, tornando portanto o instrumento híbrido e de análise quanti-qualitativa. Foram realizadas 100 entrevistas com mulheres na cidade de Bogotá, Colômbia, e 100 entrevistas com mulheres na cidade de Recife, Brasil, entre 2005 e 2006, ora no local do pequeno negócio dos participantes, ora na residência deles, com duração de 40 minutos, ten-do sido integralmente gravadas. O uso de equipamentos para gravação “faz com que a documentação de dados torne-se independente das perspectivas do pesquisador e dos sujeitos dos estudos” (FLICK, 2004).

O plano amostral em uma pesquisa qualitativa não obedece a critérios rígidos. A escolha da unidade de análise recai basicamente onde está localizada a informação e o fenômeno a ser pesquisa-do. Por isso, caracteriza-se por parâmetros de acessibilidade e de conveniência. Nesta pesquisa a unidade de análise e o elemento respondente foram a própria empreendedora do micro/pequeno negócio localizados nas periferias das cidades de Recife e Bogotá, Brasil e Colômbia, respectivamente.

Para a análise de dados recorreu-se principalmente à técnica denominada “análise de conteúdo” proposta por Bardin (2003). Consiste de uma técnica aplicável a discursos diversos e a todos

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os tipos de comunicação. Ela parte do pressuposto que, por trás do discurso aparente, simbólico e polissêmico, esconde-se um sentido a ser desvendado.

A opção nesse estudo foi seguir a vertente qualitativa dada à na-tureza, objetivo e especificidade dos dados coletados. Optou-se por uma análise temática cujo foco está na descoberta de “núcleos de sentido” que compõe a comunicação (BARDIN, op.cit.). Assim, não houve preocupação somente em enumerar os registros, mas sobretu-do em compreender esses núcleos de sentido e as ligações entre eles.

Na cidade de Recife, as comunidades visitadas foram: Feira da Praia de Boa Viagem7, Favela dos Coelhos, Favela Brasília Teimosa e a região central da cidade, onde também ocorre uma feira, todavia sem conotação turística, vendendo produtos populares de todos os segmentos, próxima à estação central de ônibus.

Na cidade de Bogotá, foram visitadas as seguintes localidades: Chapinero – região central da cidade, Ciudad Simón Bolívar (a maior periferia de Bogotá, onde vivem aproximadamente 600 mil fa-mílias), periferia de San Cristobal, periferia de Kennedy, comunidade de Pátio Bonito e San Francisco.

O resultado da pesquisa de campo está dividido com base nas quatro categorias criadas para avaliação do impacto dos programas de microcré-dito na vida das comunidades atingidas, ao longo de cada categoria é fei-ta uma análise qualitativa e chegou-se às considerações finais da pesquisa e ao estudo dos dados comparativos entre as duas comunidades.

Heterogeneidades dos sujeitos de pesquisa

A primeira categoria que compôs a formulação e aplicação das entrevistas tem como objetivo estabelecer uma relação direta com os dados do campo versus os índices apontados para o desenvolvimen-to e inserção das pessoas menos favorecidas no ciclo. Perspectivas como idade, moradia própria e escolaridade foram importantes para a análise do funcionamento do processo de tomada de decisão das microempreendedoras, já que as necessidades são diferentes entre si. E tal fato possibilitou um escalonamento de necessidades, podendo ser agrupado e comparado, tendo como pano de fundo dados socioe-conômicos das cidades de Recife e Bogotá.

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"As pessoas apresentam características físicas díspares relacionadas ao estado físico, doença, sexo, raça ou idade, o que faz com que suas necessidades difiram. A “compensação” necessária para as desvantagens variará e, ademais, algumas desvantagens podem não ser totalmente “corrigíveis”, mesmo com transferência de renda." (Sen 2000)

A idade da amostra revelou-se de forma peculiar no tocante às duas cidades. Tanto em Recife como em Bogotá percebe-se um per-centual significativo para as mulheres com mais de 35 anos, revelando em última análise uma tendência de ser o primeiro negócio a “última” das tentativas, e esse fato pode ser constatado quando das entrevistas: várias entrevistadas citaram a via crucis da busca pelo emprego, e dian-te de tais tentativas frustradas acabaram migrando para o primeiro negócio. Esse é um dado curioso. Os estudos sobre empreendedoris-mo apontam como característica sine qua non dos empreendedores a ousadia, a predileção por correr riscos calculados, dentre outros8. No caso brasileiro, a faixa etária em que a maioria das mulheres inicia o negócio, ou quando se torna o esteio econômico da família, é mais tardia que em Bogotá: 78% das mulheres apresentaram idade acima de 35 anos. Em Bogotá, na faixa etária mediana, as mulheres já fa-zem sua opção pelo negócio próprio e esse fato deve-se a dois eixos motivadores: o primeiro é que algumas delas se graduam em nível superior e, então, iniciam seu negócio próprio e, em segundo, porque percebem a dificuldade do mercado de trabalho, concomitante a um relativo fracasso nas relações do casamento, então, empreendem uma nova oportunidade e se lançam ao negócio próprio.

Na amostra brasileira, 10% das mulheres têm idade entre 18 e 24 anos; trata-se das que são arrimos de família e, na maioria dos casos, têm seus filhos pequenos, de relações furtivas, o que as impede de seguir com os estudos, forçando-as em direção ao mercado informal de trabalho: são, via de regra, ambulantes.

Parte do pressuposto desta pesquisa referenda-se na discussão indireta com as questões culturais dos dois países. Os números refle-tem, de forma clara, como os países foram se organizando com vis-

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tas ao horizonte do crescimento e do desenvolvimento. A despeito de problemas sociais, como o narcotráfico, a Colômbia possui uma preocupação importante com a questão da educação. As entrevistas trouxeram um número de 26% de mulheres que possuíam nível su-perior, e, dessas, 4 são formadas em letras, 2 em educação física, 9 são administradoras, 2 enfermeiras, e 9 tecnólogas em áreas diversas. Via de regra, houve uma tentativa de acesso a empregos públicos por uma boa parte delas, em seguida a busca por emprego na iniciativa privada e, por conseguinte, a decisão de abrir um negócio próprio.

Já a amostra brasileira revelou que 42% das mulheres concluíram apenas o ensino fundamental. Ao longo das entrevistas foram ques-tionadas acerca da possibilidade de participarem de cursos profissio-nalizantes, cursos de formação técnicos ou até mesmo de assistirem a palestras, com vistas ao desenvolvimento do negócio; o maior inte-resse foi das brasileiras.

Os dados da amostra brasileira conferem a visão mais tradicio-nal de mercado de trabalho, pois culturalmente somos convidados à busca de algo que seja perene e duradouro no trabalho; os pais, via de regra, querem que seus filhos busquem estabilidade, logo, a amostra revela que antes de fazer a tentativa do primeiro negócio, houve ten-tativas de inserção no mercado formal de trabalho. As entrevistadas revelaram tentativas como recepcionista, balconista, professora, aten-dente de telemarketing, dentre outros. No entanto, em muitos casos a ausência de qualificação escolar ou experiência culminava no des-ligamento da organização. Diante da necessidade do dia a dia, então, se lançaram nos negócios, numa postura empreendedora que não é de oportunidade, mas sim de necessidade9.

Distribuição na família e composição na renda

As rendas auferidas por um ou mais membros da família são compartilhadas por todos os membros. A família, portanto, é a uni-dade básica em relação à renda do ponto de vista utilitarista. O bem-estar ou liberdade dos indivíduos de uma família dependerá do modo como a renda familiar é usada na promoção dos interesses e objetivos de diferentes membros da família. Portanto, a distribuição intrafa-miliar das rendas é uma variável crucial na associação das realizações

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e oportunidades individuais nesse nível de renda. As regras distri-butivas seguidas na família podem fazer diferença para o que cada membro obtém e para as dificuldades que ele enfrenta.

A intenção, nessa categoria, foi observar como se compõe a famí-lia das duas amostras, dentre outros questionamentos: como é com-posta, quanta pessoa auferem renda, quantas geram apenas despesas. Também houve a preocupação de observar a prioridade com relação aos filhos e o sistema de educação. Nesse caso, a ideia foi casar a questão empreendedora com a visão de longo prazo, haja visto que apostar na educação reflete uma preocupação de longo prazo.

A renda média da família apresenta situações diversas para as duas realidades. Enquanto na Colômbia a posição mediana de 5 a 10 salários mínimos é a menor, há uma polaridade entre as que ganham de 1 a 5 salários, com 48%, e as que ganham de 10 a 20 salários, 24%.

No Brasil, as mulheres entrevistadas afirmaram que a renda média entre 5 a 10 salários responde por 44% da amostra, enquanto 16% têm renda familiar acima de 20 salários.

Quanto ao peso da renda na composição da renda da família, a pesquisa apontou resultados antagônicos. De um lado, tem-se 68% das mulheres entrevistadas em Bogotá que afirmaram ser a sua ren-da própria a principal de sua família, enquanto no Brasil apenas 32% afirmaram ter sua renda como principal fonte na família.

A conjuntura de cada cidade é importante como pano de fun-do de análise dessa questão. Há mais mulheres casadas em Recife do que em Bogotá. Logo, a renda tende a ser mais independente em Bogotá. O fato de chefiarem seus lares faz com que sua renda se torne o pilar de sustentação, muitas vezes de toda a família.

Esses dados refletem, mais uma vez, o modo de organização de cada cidade. Em Bogotá, as mulheres empreendem seu primei-ro negócio mais cedo, em boa parte estudam por mais tempo e ainda são chefes de família no aspecto da gestão financeira do lar. Já no Brasil, onde a característica empreendedora é apontada em vários estudos como sendo um dos países mais empreendedores do mundo, revela-se com certa letargia, ao menos no tocante ao universo feminino.

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Ciclo e peculiaridades dos empréstimos

As necessidades de mercadorias associadas a padrões de compor-tamento estabelecidos podem variar entre comunidades, dependendo de convenções e costumes. Por exemplo, ser relativamente pobre em uma comunidade rica pode impedir um indivíduo de realizar ativida-des elementares (como participar de uma atividade na comunidade). Muito embora a renda, em termos absolutos, possa ser muito maior que o nível de renda no qual estão os membros de comunidades mais pobres, ainda assim esses últimos podem realizar atividades com mais facilidade e êxito.

A intenção dessa categoria é conhecer um pouco da vida finan-ceira dos sujeitos, bem como de seu negócio. A análise busca enten-der a relação delas com os Bancos, sua vida creditícia, em que aplica o valor emprestado pelo Banco e se houve geração de empregos.

Os números obtidos pelo questionamento com relação ao pri-meiro empréstimo estão diretamente relacionados à idade da carteira das instituições. Ainda que as instituições militem no âmbito das finanças há mais de 50 anos, elas possuem programas relativamente recentes no universo das microfinanças. Isso justifica o alto índice de renovação dos empréstimos. Todavia, no caso brasileiro, o primeiro empréstimo está quitado para 66% das entrevistadas, enquanto para a Colômbia 65% da amostra está em andamento com o primeiro empréstimo. As clientes do Banco Caja são clientes que chegaram à instituição recentemente, enquanto no BNB as mulheres já renova-ram, em média, 4 vezes os empréstimos.

A metodologia dos bancos, também, pode ser um fator que de-termina esses resultados. No BNB, o programa de score está mais bem-definido, ou seja, a medição das clientes por sua capacidade de pagamento acaba oferecendo alguns privilégios perseguidos pela clientela. Tais privilégios variam da obtenção de um cartão de crédito até a possibilidade de obterem um crédito individualizado, aliás, pre-ferência absoluta das entrevistadas de Recife.

O ramo de negócio financiado apresenta uma distorção entre as duas cidades. Em Bogotá 48% dos negócios são no ramo de confecção. A observação mostrou que há um fenômeno importante que ocorre nas periferias de Bogotá. Existe uma junção de competências e den-

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tro das casas formam-se microindústrias de roupas, sobretudo infantis e com o tecido jeans. Elas se juntam numa “cooperativa informal” e vendem o produto final para lojas do bairro e algumas até para centros comerciais no centro da cidade. Quando se trata de artesanato, a expo-sição é feita em feiras livres e em feiras de bairro.

Em Recife quase metade da amostra mostrou-se envolvida com atividades artesanais. Tais atividades variam desde a tapeçaria até a con-fecção de peças em material típico da região como, por exemplo, côco e folhas de coqueiro. Por estarem inseridas em uma cidade cujo polo turís-tico tem um peso bastante significativo na economia, encontraram nas feiras e exposições a possibilidade de alavancarem seus negócios.

A geração de empregos em Bogotá através dos negócios atendi-dos pelo Banco é significativamente maior, 83% contra apenas 48% de Recife. As colombianas apontam como uma de suas preocupações a questão do trabalho. Como o mercado formal não absorve, elas procuram desenvolver atividades em que possam incluir parentes no negócio. Das 83% que geraram emprego, 75% desses empregos gera-dos destinaram-se a parentes. O núcleo da família é bastante próxi-mo ao núcleo do negócio, tanto fisicamente como quanto ao processo de gestão das contas e fazeres. Em geral, as casas funcionam como oficinas de produção e por lá todos acabam se acomodando.

Na amostra brasileira 100% das entrevistadas afirmaram nunca te-rem recorrido a financeiras como um crédito emergencial. Enquanto na Colômbia, 41% da amostra confirmou a aquisição de um emprésti-mo via financeira. Na Colômbia há uma enorme variedade de empre-sas financeiras que oferecem crédito caro e fácil. Muitas delas recorrem a instituições como o Banco de la Mujer10 retiram um empréstimo de no máximo US$200,00 e desse migram para o programa de microfi-nanças para adquirir um empréstimo de maior monta.

Quando questionadas acerca dos empréstimos junto aos agiotas, 65,31% confirmaram ter recorrido a agiotas, enquanto no Brasil ape-nas 16%. A ausência do processo de agiotagem para a amostra bra-sileira estava sendo camuflada pela categoria de “familiares”. Para as entrevistadas, os empréstimos com parentes não entram em sua conta-bilidade, ou seja, não têm prioridade para pagamento. Entre parentes “paga-se caro, mas é só quando puder”. Portanto, não são colocados por elas como agiotas. Quando somados o pedido de socorro aos agiotas

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e aos parentes, 85% da amostra brasileira declarou necessitar de um empréstimo para sanar despesas imediatas e para alimentar o estoque.

As entrevistadas colombianas, também, destinaram parte de seu empréstimo para aquisição de máquinas e equipamentos; justifica-se, pois na amostra colombiana havia mais mulheres ligadas à produção do que na amostra brasileira, cujo ramo mais efetivo é o comércio, envolvendo pouca ou nenhuma produção.

O item “outros” das opções chama a atenção, embora de percen-tual baixo, no Brasil 6% e em Bogotá 10,2%: nessa categoria estão incluídos gastos com habitação. Esse número revela outra faceta em que iniciativas de microcrédito podem gerar bons resultados. Há um déficit habitacional muito grande tanto no Brasil como na Colôm-bia, e o crédito é um agente facilitador, quando atrelado a políticas públicas como, por exemplo, a regularização de lotes empossados e/ou irregulares, dentre outros.

Tanto no caso de Recife como no caso de Bogotá, as amostras revelaram que a venda dos produtos aumentou, respectivamente, em 76% e 93,88%. Já a renda familiar das entrevistadas permaneceu igual para 25% das amostras e no caso colombiano diminuiu em 10,2%. O aumento da renda após o empréstimo para a amostra brasileira foi de 76% contra 65,31% da Colômbia.

No tocante à produção e à geração de empregos, as entrevista-das de Bogotá revelaram um aumento no número de empregados de 67,35% enquanto no Brasil apenas 6%. A amostra brasileira revelou que, em 84% dos casos, houve diminuição dos empregos gerados após o empréstimo. A produção colombiana aumentou de 66% contra um aumento de 59% das entrevistadas de Recife.

Variações no clima social

A conversão de moedas e recursos pessoais em qualidade de vida é influenciada pelas condições sociais, incluindo os serviços públicos em educação, pela existência de previdência ou ausência/presença de crime e violência na localidade específica. Em adição às facilidades públicas, a natureza das relações comunitárias pode ser muito importante, como procurou salientar a literatura mais recen-te sobre “capital social”.

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As mais diversas expressões faladas e encenadas puderam ser percebidas quando desse questionamento. Todas, sem exce-ção, validaram o empréstimo como algo positivo em suas vidas e em seus negócios. Como a amostra foi escolhida aleatoriamente, foram encontradas desde pessoas que nunca haviam pisado em outro Banco antes e também mulheres que são clientes de até 3 Bancos diferentes.

A maioria dessas expressões tem a ver com autoestima, o que re-força o argumento de que o impacto dos programas de microcrédito vai além das capacidades econômicas que ficam melhoradas, ele toca no bem-estar social, o que inclui a autoestima como fato importante para a geração do espírito empreendedor.

Textualmente, a dona Maria Rita, 52 anos, de Recife disse o seguinte: “eu pude me sentir gente, sentir que alguém confiava em mim. Foi como se eu remoçasse uns 20 anos, tive forças para começar minha vida de novo”.

Já em Bogotá, Mercedes Martinez comentou: “com o emprésti-mo pude comprar uma nova máquina e chamei minha cunhada para trabalhar comigo. Agora nossos filhos convivem juntos enquanto nós trabalhamos nas máquinas aqui em casa” .

Muitas disseram que não saberiam o que fazer caso não tivessem tido acesso ao empréstimo. Em situações instáveis, tanto numa cidade como na outra, a preocupação com a renda é muito grande e, quando se percebe um acesso para melhorá-la, os resultados são visíveis.

Tanto para as entrevistadas de Bogotá como para as de Recife, o fato de conseguir o empréstimo foi considerado muito importante. Cabe salientar que boa parte delas deixou claro que foi importan-te tanto para o negócio como para suas famílias. Independente do destino do empréstimo, direta ou indiretamente, foram promovidas melhoras nas condições de vida, o que faz com que haja uma valo-ração maior do empréstimo por parte das atendidas pelo programa.

Dada a situação do narcotráfico na Colômbia, 48% das entrevis-tadas colombianas disseram julgar sua comunidade violenta, enquan-to no Brasil apenas 36% fizeram tal afirmação. Em algumas entrevis-tas, os próprios sujeitos da pesquisa afirmaram que o fato de viverem num lugar violento obriga-os a serem mais solidários.

O resultado dessa questão parece refletir o resultado da anterior, pois, mesmo a Colômbia sendo considerada mais violenta por suas

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moradoras, é também na mesma Bogotá que 53% disseram partici-par de atividades na comunidade, enquanto no Brasil apenas 32% da amostra informou participar ativamente da comunidade em que vive ou em que trabalha, como, por exemplo: participação em atividades na casa paroquial, trabalhos para a associação da comunidade, orga-nizações de festas religiosas e festas locais, dentre outros. Mais uma vez fica evidente que o capital social e, consequentemente, as forma-ções de redes sociais de maior eficiência são formadas de forma mais contundente em Bogotá.

Uma das perguntas de ordem mais pessoal e subjetiva foi a que questionava sobre a primeira sensação que a entrevistada sentia ao quitar o empréstimo. Essa pergunta reforça o caráter qualita-tivo da pesquisa ao remeter sua análise para o âmbito individual de cada entrevistada. As mais diferentes expressões foram usadas para expressar essa sensação que Sen chama de “autonomia”. Pa-lavras como alívio, segurança, confiança, satisfação, foram bastante utilizadas. Todavia, houve um predomínio de uma palavra que foi a “felicidade”. Boa parte das entrevistadas afirmou ser essa a sensação da qual elas partilham quando conseguem honrar seu compromis-so. Nas palavras de dona Lourdes Silva, brasileira: “é como se nós honrássemos com quem confia na gente, é uma questão de honra e por isso me deixa feliz”.

No quesito família, a palavra que mais apareceu para as brasileiras foi “satisfação” e para as colombianas foi “segurança”. As brasileiras sentem satisfação, pois muitas, no fundo, não acreditavam na sua capacidade de pagamento, e quando se veem capazes estranham a si próprias; no caso das colombianas a segurança é talvez uma das situações mais buscadas e, ao conseguirem sanar um compromisso, sentem que podem proporcio-nar segurança à família, ao menos no tocante à geração de renda.

Com relação à comunidade as palavras, ainda que difiram, pos-suem significados próximos. No caso de Recife, as mulheres entrevis-tadas disseram sentir orgulho ao mostrar para o grupo e para todos os colegas que não são caloteiras, e que têm como pagar e honrar seus compromissos. Já no caso de Bogotá as colombianas apontaram o res-peito como palavra mais citada para expressar a sensação de estar quite com a comunidade e a sociedade em geral. Nas palavras delas: “o res-peito nos faz adentrar a qualquer situação e podemos ser escutadas”.

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Resposta unânime nas duas amostras: todas disseram que pre-tendem desenvolver o negócio financiado pelo Banco. No caso das entrevistadas de Bogotá, quanto aos resultados que esperavam alcan-çar, além do desenvolvimento do negócio, houve também a perspec-tiva de gerar emprego.

Os percentuais dessas respostas reforçam a ideia do capital social. Do mesmo modo que ele fortalece os laços na comunida-de, é um agente motivador para a formação e solidificação dos grupos, pois, para se inserir na comunidade, precisa ser aceito por um grupo e, então, passa a ser aceito por toda uma comunidade. No caso das duas cidades, apresentam em quase sua totalida-de a formação de um grupo cujos membros já eram conhecidos entre si. Esse conhecimento vai funcionar, quando da obtenção do crédito em grupo, como “instrumento de aval”, visto que o conhecimento e a relação com as pessoas do grupo será um forte impeditivo para a ocorrência de um possível inadimplento de algum dos seus membros.

Quase 100% da amostra colombiana diz ter afinado laços com os membros do grupo, e tal observação pode ser feita in loco. Raras foram as entrevistas realizadas individualmente, pois sempre havia alguém do grupo ou do negócio participando ativamente do processo da entrevista. Já no Brasil 22% afirmaram ter uma relação meramente profissional e de negócios com os outros membros do grupo e não ter intenção de se tornarem amigas.

Tal diferença de percepção de grupo pode se dar pela presença mais efetiva do agente de crédito. Quando sua presença é bastante forte, como no caso do BNB, o grupo depende mais de sua orienta-ção que da própria relação em si. Já no caso colombiano, a força do grupo tende a ser mais necessária, porque o gerente de crédito ocupa uma posição um pouco mais distante do seu cliente.

Em ambos os casos, a inadimplência foi quase nula. O reforço do laço do grupo e a obrigatoriedade do pagamento único da par-cela do empréstimo são uma forma bastante produtiva de cobrança, tornando-se mecanismo importante quando se trata de metodologia de crédito baseada no aval solidário.

Ao afirmarem controlar os membros do grupo de alguma manei-ra, apontaram o convívio próximo e a necessidade de se encontrarem

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para efetuar o recolhimento do pagamento como uma das formas de monitorar o negócio do encontro.

No caso de Recife, muitas das entrevistadas trabalham na feira da praia da Boa Viagem e isso facilita o contato entre elas, possibi-litando, de certa forma, monitorar a capacidade de pagamento dos membros do grupo.

Na Colômbia as entrevistadas afirmaram possuir mecanismos efetivos de penalização junto aos membros do grupo em caso de inadimplência. Como a relação é mais forte e mais próxima da comu-nidade, elas afirmaram desprezar e até mesmo ignorar aquele que não cumprir seu compromisso, como forma de punição. No caso brasilei-ro, elas informaram ser esse (punir aquele que não pagar sua dívida) o papel do Banco, e não de cada uma delas.

A mulher como agente econômico

O papel ocupado pela mulher no tocante ao desenvolvimento e à in-clusão social são visíveis tanto em Bogotá como em Recife. A pesquisa de campo e o período de estada nas comunidades serviram de experiência úni-ca na intenção de tentar mensurar o impacto dos programas de microcré-dito e da condição de agente de transformação da realidade da mulher.

O mercado informal na América Latina é responsável por boa parte dos empregos gerados. No caso dos negócios financiados pelos programas de microcrédito, as conclusões dessa pesquisa apontam para a constatação de que, via de regra, eles nascem na informalidade, e a posteriori tornam-se negócios formalizados. O índice de negócios formalizados é maior na Colômbia do que no Brasil, e isso ocor-re porque na Colômbia há uma lei de incentivo à formalização que de fato outorga benefícios aos participantes, enquanto que no Brasil o processo de legalização de uma microempresa pode levar até 190 dias11. Faz-se necessária a reflexão sobre políticas públicas integradas que visem a reduzir os índices de burocratização do processo, com vistas a fornecer espaço para o fomento do espírito empreendedor e a criação de novos negócios, tão determinantes para o desenvolvimen-to de ambas as nações.

As marcas deixadas pelos processos de colonização em cada uma das sociedades trazem à luz questões importantes para as conside-

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rações desse trabalho. A maneira pela qual cada um dos países foi colonizado e a própria diferenciação feita entre a cultura católica e a ética protestante, no processo de acumulação de riqueza, é uma das vertentes que nos auxiliam na explicação de alguns dos fenômenos observados no campo. Ainda que a ideia do trabalho como punição, trazida pela concepção católica, seja forte na Colômbia o trabalho lá está mais associado ao prazer, ao sentir-se produtivo, do que no Bra-sil. A ética protestante e toda sua vocação para acumulação de capital deveriam ser mais presentes nos negócios das microempreendedoras brasileiras, mas ainda que o Brasil tenha uma população mais pro-testante do que a Colômbia, nesse quesito as considerações apontam certa contradição. Os dados foram reveladores quando evidenciaram a diferença entre colombianas e brasileiras quanto a percepção da geração de empregos. A sensação de déjà vu ao analisar os dados da pesquisa foi inevitável, quando in loco foi percebido o quão a cultura de subsistência e de sobrevivência é mais forte do que a cultura do crescimento e do desenvolvimento.

Um dos problemas levantados nesta pesquisa foi perceber o de-senvolvimento das famílias a partir da inserção no mercado de tra-balho através de seus micronegócios. Os dados apontaram para a importância da renda na formação das famílias. As colombianas são, em sua maioria, as responsáveis pelo gerenciamento de seus lares, en-quanto para as brasileiras essa tarefa ainda pertence ao marido. Além do fator da geração de emprego, de serem chefes de família, os dados mostraram que as colombianas destinam maior parte de seus ren-dimentos à escola particular de seus filhos do que as brasileiras. Ao observar esses dados, pode-se indicar que, ao menos nesses quesitos, o impacto é mais evidente para a amostra colombiana.

No tocante ao desenvolvimento do negócio e ao impacto obtido pelo empréstimo do microcrédito, as conclusões apontam para uma significativa melhora de vida e um crescimento também significativo dos negócios financiados pelos Bancos.

No desenvolvimento do negócio, a principal contribuição para os sujeitos da pesquisa de Bogotá foi a libertação da rede de agio-tagem que permeia a relação dos negócios informais. Envolvida na rede de agiotagem, quase a totalidade dos lucros obtidos com os ne-gócios era utilizada para quitação dos juros exorbitantes cobrados

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pelos agiotas. Ao concentrarem suas atividades em um único Banco, no caso o Banco Caja Social, houve significativa redução na procura pelas financeiras, que, por sua vez, também cobram juros muito caros. A possibilidade do pagamento em grupo, bem como o pagamento em intervalos menores, favorece o giro do negócio e a consequente capacidade de pagamento.

Outro importante impacto alcançado com o empréstimo foi a aquisição de matéria-prima e o aumento do estoque. Além de a pes-quisa ter apontado como primeiro destino do empréstimo a compra de materiais, ao longo das entrevistas foi revelada a preocupação por parte das entrevistadas de manterem-se atualizadas com as necessida-des de sua clientela, tendo o aumento de estoque favorecido o cresci-mento do negócio, e, em alguns casos, o aumento da margem de lucro.

O aumento da renda, também, foi outro impacto oriundo do em-préstimo. A renda familiar mensal, tanto em Bogotá como em Recife, sofreu significativo acréscimo, o que proporcionou acesso à escola particular e ao sistema de saúde público-privado. Ainda que tenha sido percebido por elas o esforço dos governos em melhorar o acesso à escola pública, a garantia de um bom emprego e da mudança de classe social passa pelo “sacrifício” de pagar a escola particular.

Na perspectiva de Sen, o desenvolvimento das liberdades passa pelo desenvolvimento da capacidade de ascensão e melhora da classe social. Esse aporte teórico permite entender, através dos resultados da pesquisa, que os resultados dos empréstimos ainda não os leva à chamada mobilidade social, pois os sujeitos de pesquisa estão em processo de saída do estado letárgico da miséria, nos níveis mínimos de “civilidade” e de inclusão social. Dada a conjuntura da América Latina e seu processo histórico desigual de distribuição de renda, faz-se necessário ressaltar a importância de programas que não visem ao assistencialismo, mas que de fato proporcionem trabalho e renda.

Outro dado indicado pelas conclusões do campo é que na Co-lômbia parte do empréstimo foi utilizada na construção ou me-lhora das casas. Como o núcleo do negócio está, em geral, inserido na residência das entrevistadas, o entendimento delas ao destinar parte do empréstimo a benfeitorias no imóvel é que estariam me-lhorando diretamente também as instalações e o crescimento do negócio. Na amostra brasileira, nenhuma das entrevistadas apon-

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tou como destino do empréstimo a melhoria física do ambiente do negócio ou de sua residência.

Uma das preocupações centrais deste trabalho foi compreender a relação entre capital social e capital econômico. O estreito que marca a junção das duas formas de capital foi percebido nos fortes laços alcançados com a consolidação dos grupos. Desde o ingresso como cliente no Banco até o monitoramento dos negócios, essa pesquisa auferiu in loco a contribuição do capital social.

Dados da pesquisa revelaram que a partir do momento em que tiveram suas forças unidas tendo como objetivo comum a obtenção do crédito, houve maior preocupação com a vontade e a capacidade do pagamento. Nesse momento deixa de existir a preocupação in-dividual e passa a importar de maneira significativa a relação com o grupo. Em muitos momentos de descasamento com a produtividade do negócio e a data do pagamento do empréstimo, o esforço do gru-po é imenso no sentido de não deixarem seus nomes maculados nem tampouco serem impedidos de renovar os empréstimos.

A autonomia conferida pelo acesso ao empréstimo também foi percebida de forma latente ao longo das entrevistas. A autoestima, a sensação de estar inserida em um ciclo produtivo, de poder contribuir com a família (no caso do Brasil) e de chefiar a família (no caso da Colômbia), bem como ter afastado, a partir do início do negócio, a ideia de que sua vida jamais deixaria o patamar da extrema pobreza. O fato de estarem envolvidos com o empréstimo levou os grupos de mulheres a desenvolver um espírito mais solidário, preocupando-se desde o pagamento em si até o andamento dos negócios e a troca de ideias com vistas ao crescimento das atividades.

O cenário do mercado de crédito da Colômbia e do Brasil e o consequente acesso dos microempresários ao sistema financeiro for-mal continuam sendo muito limitados. A importância do segmento, em termos econômicos e sociais, é latente e cresce em momentos de desaceleração da atividade produtiva.

As necessidades financeiras dos microempresários transcendem o crédito, daí a importância de complementá-lo com produtos de poupança e de seguros. Isso incrementa o potencial do instru-mento “financeiro” para contribuir no desenvolvimento dos mi-croempreendimentos. O crescimento econômico dos dois países

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depende, em grande parte, do desenvolvimento dos microempresá-rios, tornando-se fundamental o avanço do processo de bancarização nesse segmento.

Torna-se urgente desenvolver um sistema de qualificação para os projetos que estão na fase inicial, que vá além da discussão sobre o modo garantidor do empréstimo. O sujeito o é per si por seu projeto e não em função da garantia.

É importante desenvolver mecanismos criativos de associação de colaterais, para um acesso mais amplo ao crédito, através de me-canismos fiduciários. Fortalecer os mecanismos de associativismo e, portanto, melhorar as condições de negociação quanto aos forneci-mentos, provedores e comercialização.

A continuidade dos investimentos na bancarização do setor será determinante para o avanço no combate à pobreza e desigualdade, sob a perspectiva da renda e seu poder aquisitivo. Reconhecer que, no interior desse segmento, a alta flexibilização trabalhista ou a infor-malidade podem ser agentes dificultadores da capilarização e solidi-ficação dos programas.

Facilitar os requisitos de formalização - Constituição de Sociedades

Ainda que nesse segmento não exista a cultura do não pagamen-to, é preciso reforçar a importância do atendimento oportuno das obrigações, através de programas de pontuação e de fidelização de outros produtos.

Concomitante com as oportunidades no cenário econômico-financeiro surgem, também, alguns riscos no cenário das micro-finanças no Brasil e na Colômbia. Algumas instituições estão dirigidas a segmentos da população que, pela natureza de seus rendimentos, se colocam nas camadas mais pobres da população e não têm acesso a oportunidades de negócios, com dificuldade no acesso de insumos e na comercialização, de forma tal que o crédito produtivo, se não vai acompanhado de outros aportes, resulta em nenhuma utilidade. Muitas instituições dedicadas às microfinan-ças não atingem o tamanho ou a escala de eficiência necessária para cobrir custos ou que a descrevam como entidades sustentá-veis no tempo e rentáveis.

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Em muitos casos as iniciativas dessas instituições não se encon-tram contempladas dentro de um marco de políticas de governo de apoio, que tendam a favorecer o desenvolvimento desses grupos ob-jetivos, observando-se que as políticas de subsídios se contravêm e se convertem em apoios transitórios de curto prazo, e não em progra-mas de melhoramento dos grupos.

Algumas instituições não conseguem manejar os fundos sufi-cientes e adequados para atender as necessidades futuras de efetivo, enfrentando, portanto, problemas de liquidez.

As microfinanças têm constituído mecanismo alternativo de re-dução da pobreza e promoção do desenvolvimento, sobretudo por meio da expansão de micro e pequenas empresas. O objetivo das mi-crofinanças, portanto, é duplo e simultâneo: promover o segmento microempresarial e combater a pobreza (BRASIL-b, 2004).

De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU), o mi-crofinanciamento não tem impacto apenas na esfera local. Ao gerar renda, contribui para a criação de novos empregos; com isso, as crian-ças não precisam deixar a escola para trabalhar e o acesso à saúde fica mais fácil. Além disso, a economia do país como um todo fica mais forte, pois a ajuda financeira é usada para aumentar a capacidade de produção local das comunidades. No entanto, pelo menos meta-de das pessoas do mundo não consegue usar os serviços financeiros, simplesmente porque não estão acessíveis (Pnud, 2006).

No Brasil a discriminação no mercado de trabalho é apenas um dos vários fatores que “contribuem” para a eficácia dos pro-gramas de microcrédito. Cuidar do desequilíbrio entre gêneros na divisão do trabalho doméstico, de modo que homens e mulheres compartilhem o cuidado dos filhos e as tarefas domésticas, dei-xando, assim, as mulheres mais livres para participar da força de trabalho e progredir no emprego, é outra condição para reduzir as desigualdades no trabalho relativas a gênero. Maior igualdade de gêneros no local de trabalho exigirá, também, mudanças na forma que o trabalho atualmente está organizado, permitindo, por exemplo, arranjos mais flexíveis.

Duas outras recomendações implicam a atuação de grupos da so-ciedade civil e organizações comunitárias como agências centrais de empregos, que poderiam fornecer treinamento contemplando desde

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como preparar um currículo até como se apresentar e se comportar em uma entrevista para emprego. Pobreza, flutuações econômicas e segurança social. Por último, as conclusões enfatizam a importância central de que as estratégias para a redução da pobreza diminuam as barreiras e atendam às necessidades das mulheres pobres. Essas estra-tégias incluem o provimento do acesso a creches e ao planejamento familiar, melhorias continuadas na educação e a redução de barreiras para a participação no mercado de trabalho.

A dificuldade de acesso ao crédito no sistema financeiro tradicio-nal para a constituição de capital de giro é um dos principais motivos pelo qual boa parte dos empreendimentos de pequeno porte encerra, prematuramente, suas atividades, conforme detectou a Pesquisa Fa-tores Condicionantes e Taxa de Mortalidade de Empresas, realizada pelo Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena Empresa (Se-brae), entre agosto de 1998 e junho de 1999.

A pesquisa do Sebrae foi realizada em 13 estados brasileiros com micro, pequenas e médias empresas e procurou identificar as causas do fechamento das empresas nacionais, admitindo mais de uma resposta para detectar os motivos do encerramento das atividades das empresas. Com 42% das indicações, a falta de capital de giro foi o elemento que mais contribuiu para o encerramento de atividades empresariais.

Essa necessidade de capital de giro, muitas vezes, não pode ser satisfeita no sistema financeiro tradicional, que alega elevados custos operacionais e financeiros para controlar os financiamentos aos pe-quenos empreendedores – multiplica-se para a grande maioria dos empreendedores, como observado na pesquisa do Sebrae.

Nesse cenário socioeconômico, o programa de microcrédito pode ser considerado uma alternativa viável de política de financiamento para atender a necessidade de crédito produtivo dos pequenos em-preendedores formais e informais.

Sob a égide da tecnologia, o grande desafio para as microfi-nanças hoje está alocado em impactar no tamanho e eficiência dos programas. O primeiro passo está na otimização dos processos de tecnologia creditícia específica. O segundo é o melhoramen-to contínuo do sistema de monitoramento e da retroalimentação permanente de todo o ciclo e, finalmente, o desenvolvimento de modelos estatísticos.

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

Os programas de microcrédito estão longe de ser a panaceia para todos os males; todavia, os efeitos do processo de inclusão social e da melhora na qualidade de vida são latentes. A perspectiva do desenvolvimento das liberdades trabalhada ao longo deste artigo tem seu pressuposto ratificado na percepção do acréscimo efetivo na melhoria dos negócios e, sobretudo, da constituição de uma forte rede de capital social.

* Claudia Forte - doutora pelo Prolam da Universidade de São Paulo, é assessora para assuntos internacionais e interinstitucionais da Universidade Presbiteriana Mackenzie, onde atua também como professora na área de Negócios na graduação e lato senso. Coordena a equipe do projeto da Caixa Econômica Federal com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para desenvolvimento dos programas de microcrédito no âmbito nacional.

Notas (1) Amartya SEN, Desenvolvimento como liberdade, publicado no Brasil pela Companhia das Letras em São Paulo no ano de 2000.(2) ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Europa América, Lisboa, ed. 1999; LO-CKE, John. Discurso sobre a origem e o fundamento da desigualdade entre os homens. Editora Didática, Lisboa, 1999(3) Para ampliar essa discussão ver Martha Nussbaum, “Nature , function and capability: Aristotele on political distribution” Oxford Studies in Ancient Philosophy, 1998 e também Nussbaum e SEN , The Quality of Life, 1993(4) Essa visão da pobreza é desenvolvida plenamente nos livros Poverty and famines e Re-sources, values and development de Amartya SEN, e também em Jean Drèze e Amartya SEN, Hunger and public, e em Sudhir Anande Amartya SEN, “concepts of human development and poverty: a multidimensional perpsective”, in Human Development papers, 1997, UNDP.(5) “An interesting implication of the assortative matching property proved in the paper is that risk borrowers who will end up with risk partners will be less willing to accept an increase in the extent of joint liability than safe for the same reduction in the interest rate.” (GHATAK, 1999:45) tradução livre.(6) O trabalho de Putman baseia-se no estudo do norte da Itália e no longo processo his-tórico que permitiu constituir uma base de ação e cooperação para benefício mútuo e de-senvolvimento democrático. Centrou-se nas instituições públicas e o grau de participação cívica, medido por indicadores como a votação, a leitura de jornais, e pertença a instituições e clubes, dentre outros.(7) Onde houve um investimento grande do BNB padronizando as barracas e fornecendo infraestrutura para que as mulheres artesãs pudessem exercer o ofício, pois, embora seja um dos cartões postais da cidade do Recife, a estrutura era muito precária, conferindo ao traba-lho das artesãs insegurança e desconforto para executá-lo.

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(8) O GEM – Global Entrepreneurship Monitor - é uma pesquisa internacional liderada pela London Business School e o Babson College (USA) cuja proposta é avaliar o empre-endedorismo no mundo através da comparação de indicadores.(9) O GEM, além de categorizar os empreendedores de acordo com suas características pessoais e o estágio de seus negócios, classifica-os segundo a motivação para empreender: empreendedores por oportunidade são motivados pela percepção de um nicho de mercado em potencial, já os empreendedores por necessidade são motivados pela falta de alternativa satisfatória de ocupação e renda. No Brasil, a motivação dos empreendedores iniciais tem-se mantido praticamente inalterada ao longo dos anos. Embora a maioria dos empreendedores seja orientada por oportunidade, a presença daqueles que empreenderam por necessidade é bastante alta se comparada à maioria dos países participantes do GEM. O Brasil ocupa a 15ª posição no ranking do empreendedorismo por oportunidade (taxa de 6,0%) e a 4ª posição no ranking de empreendedorismo por necessidade (taxa de 5,3%). A razão entre as duas taxas (1,1) é a 34ª entre os países pesquisados, portanto, evidencia-se cada vez mais a influência do empreendedorismo por necessidade na posição do Brasil em relação aos demais países.(10) Um autêntico microfinancista urbano, a Corporación Mundial da Mulher (CMM) se especializou em empréstimos muito pequenos (valor médio de US $ 300), com base nas características pessoais e no fluxo de caixa do negócio. Tais empréstimos são firmados em termos comerciais, a favor de pessoas economicamente ativas na cidade de Bogotá, Capital da Colômbia. Afiliada à rede do Banco Mundial de la Mujer (Women’s World Banking), CMM foi incorporada em 1989 como organização sem fins de lucro, apresentando no ano de 2002 15.635 clientes.(11) Dados retirados da pesquisa realizada pelo Banco Mundial chamada Doing Business 2006, cujo objetivo é comparar os índices de burocratização no processo de geração de ovos negócios em mais de 150 países. O Brasil ocupa posição bastante desfavorável em todas as categorias abordadas no guia, quais sejam: abertura de empresas, obtenção de alvarás, contratação e demissão de funcionários, registro de propriedades, obtenção de crédito, paga-mento de investidores, pagamento de impostos, comércio internacional, adesão a contratos e fechamento de empresas.

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Entre a especulação estéril e o microcrédito produtivo12

Ladislau Dowbor*

A crise financeira de 2008, pelos seus mecanismos e amplitu-de, gerou um salto na compreensão dos processos de interme-

diação financeira. No geral, tanto nos países desenvolvidos como no Brasil, cada vez mais os lucros corporativos estão alimentando atravessadores financeiros, gerando uma ampla classe de rentistas. Trata-se de poupanças da população. Este ponto é essencial pois, tratando-se de um cassino gerado com dinheiro da população, pro-teger os especuladores pode legitimamente ser apresentado como uma proteção à própria população, pois é o dinheiro dela que está em risco. Isto gera, evidentemente, uma posição de chantagem, e uma correspondente posição de poder. E permite deixar de lado o que deve ser a questão central da canalização das poupanças: não se os intermediários estão ganhando ou perdendo dinheiro, mas a que agentes econômicos, a que atividades, a que tipo de desenvolvimen-

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to e com que custos ambientais devem servir estas poupanças. Bas-tará assegurar que não quebre um sistema de intermediação cujo produto final não está servindo?

Para o Brasil, paradoxalmente, a crise financeira pode representar uma oportunidade. Somos o país da desigualdade. A metade da po-pulação ainda precisa ter acesso ao consumo básico diversificado, in-cluindo nisto não só o alimento e outros bens de primeira necessida-de, mas também o consumo de bens sociais como saúde e educação, de infraestruturas sociais como redes de saneamento e redes de banda larga de comunicação e assim por diante. Em outros termos, uma expansão dos programas, em grande parte já desenvolvidos pelo go-verno, tem a virtude de ao mesmo tempo começar a resgatar a nossa imensa dívida social, e de dinamizar, através da maior demanda agre-gada (consumo popular e investimento público), as próprias ativida-des empresariais. Reorientar as nossas capacidades de financiamento cada vez mais nesta direção – ainda que reduzindo a dimensão do rentismo financeiro e das atividades especulativas – faz todo sentido.

As pesquisas teóricas dominantes, curiosamente, não se preocu-pam em tornar as nossas poupanças mais produtivas, mas em gerar instrumentos mais avançados para se fazer dinheiro com aplicações financeiras. Assim a área das finanças passou a ser analisada de forma isolada das suas consequências e utilidade econômica, e a especulação financeira adquiriu nas ciências econômicas um papel central.

Como o dinheiro passou a ser uma notação eletrônica, que viaja na velocidade da luz nas ondas da virtualidade, o mundo se tornou um cassino global. Mais importante para nós, o lucro e o poder gerados pela especulação financeira fizeram com que a ciência eco-nômica se concentrasse de maneira obsessiva nesta área. A lista dos prêmios Nobel de economia constitui essencialmente, com rarís-simas exceções como Amartya Sen, uma lista de especialistas em comportamento do mercado financeiro. A situação é agravada pelo fato do Nobel de economia não ser realmente um prêmio Nobel, mas um prêmio do Banco da Suécia. Peter Nobel, neto de Alfred Nobel, que instituiu o prêmio, explicita a confusão voluntariamen-te criada por um segmento particular de economistas: “Nunca na correspondência de Alfred Nobel houve qualquer menção referente a um Prêmio Nobel de economia. O Banco Real da Suécia depo-

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sitou o seu ovo no ninho de um outro pássaro, muito respeitável, e infringe assim a ‘marca registrada’ Nobel. Dois terços dos prêmios do Banco da Suécia foram entregues a economistas americanos da escola de Chicago, cujos modelos matemáticos servem para especu-lar nos mercados de ações – no sentido oposto às intenções de Al-fred Nobel, que entendia melhorar a condição humana”. Portanto, o dinheiro não vem do fundo Nobel, e os critérios de atribuição do prêmio partem da própria área financeira, que se apropriou assim de uma respeitabilidade que não tem, através de um processo frau-dulento. O fato da área financeira ter conseguido que o prêmio seja entregue na mesma cerimônia, na Suécia, contribui para a confusão, mas não para a ética do processo.13

Outra demonstração de força deste segmento da economia, é o poder das agências de avaliação de risco. Todos os nossos jornais trazem com alarde a última cotação do “risco Brasil”. O muito con-servador The Economist chega a se indignar com o peso que adquiriu este oligopólio de três empresas – Moody’s, Standard & Poor (S&P) e Fitch – que “fazem face a críticas pesadas nos últimos anos, por te-rem errado relativamente a crises como as da Enron, da WorldCom e da Parmalat. Estes erros, a importância crescente das agências, a falta de competição entre elas e a ausência de escrutínio externo es-tão começando a deixar algumas pessoas nervosas”. O The Economist argumenta também que as agências de avaliação são pagas pelos que emitem títulos, e não por investidores que utilizarão as avaliações de risco, com evidentes conflitos de interesse. O resultado é que “a mais poderosa força nos mercados de capital está desprovida de qualquer regulação significativa”.14

O essencial da especulação financeira é que ela consiste em acumu-lar riqueza sem precisar produzir a riqueza correspondente. Em termos práticos, são pessoas que vivem do esforço dos outros, e o ganho de um corresponde à perda de outro. Joseph Stiglitz entendeu isto, e escreveu um livro forte e de leitura simples, Globalization and its discontents,15

mostrando como os países em dificuldade precisam de mais capital para se reequilibrar, e é justamente o momento em que os capitais especulati-vos fogem, quebrando o país. Stiglitz ilustra a sua visão do papel da libe-ralização dos capitais com o caso do Sudeste Asiático, mas o mesmo ra-ciocínio se aplica por exemplo à Argentina no momento do “corralito”.16

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A teoria oficial do Fundo Monetário Internacional, amplamente dominante ainda que enfrente um ceticismo crescente, aparece como cínica frente a estas novas dinâmicas: “Os benefícios fundamentais da globalização financeira são bem conhecidos: ao canalizar fundos para os seus usos mais produtivos, ela pode ajudar tanto os países desenvolvidos como os em via de desenvolvimento a atingir níveis mais elevados de vida.”17 A partir da crise financeira de 2008, evi-dentemente, o FMI já não se arrisca a escrever este tipo de bobagens.

O processo real é inverso. Descapitaliza-se o setor produtivo, o Estado, as comunidades e o consumidor. A liberalização dos fluxos de capital que deveria teoricamente “canalizar fundos para os seus usos mais produtivos” leva, pelo contrário, à drenagem dos recursos para fins especulativos, e força as empresas a buscarem o autofinan-ciamento, gerando um feudalismo financeiro em que cada um busca a autossuficiência, perdendo-se justamente a capacidade das poupan-ças de uns irrigarem os investimentos de outros. O efeito é rigorosa-mente inverso ao previsto, ou imaginado pelo Fundo, mas rigorosa-mente coerente com a economia realmente existente.

É impressionante a dimensão da desinformação sobre um fato tão simples de que as aplicações financeiras, que os banqueiros tanto gostam de chamar de “investimentos”, levam ao enriquecimento de intermediários, sem gerar ativos novos, e que este enriquecimento sem produção correspondente – portanto correspondendo à apro-priação da produção de terceiros – se faz com o nosso dinheiro, e não com o dinheiro dos próprios intermediários.18

A ciência econômica que ensinamos não nos ensina o essen-cial, que é de como construir os objetivos do desenvolvimento no novo contexto de mudança tecnológica, desregulação e mudança institucional. Estas três categorias de mudança fazem parte das análises do FMI, que está começando, depois de receber críti-cas contundentes, a ficar um pouco mais prudente nas suas cer-tezas: “Ainda que seja difícil ser categórico sobre qualquer coisa tão complexa como o sistema financeiro moderno, é possível que estes desenvolvimentos estejam criando mais movimentos procí-clicos que no passado. Podem igualmente estar criando uma pro-babilidade maior (mesmo que ainda pequena) de uma catástrofe (catastrophic meltdown)”.19

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O cassino financeiro internacional (com a sua dimensão nacional) gera assim um processo de descapitalização da economia, levando a uma subutilização impressionante de um dos principais fatores de di-namização econômica, que são as nossas poupanças. E dizemos bem aqui “nossas” poupanças, pois o cassino joga com o dinheiro dos fundos de pensão, das pequenas economias familiares, dos nossos depósitos.

Na realidade, gerou-se uma cultura setorial. A área dos cartões de crédito constitui uma ilustração curiosa de como ao mesmo tempo nos depenam e nos mostram como podemos parecer importantes ao pagar com um “cartão ouro” o jantar com a namorada. Os olhares nas mensagens publicitárias deixam claro quem será jantado, mas quem é depenado – com orgulho – é evidentemente o dono do cartão. O cartão permite simplesmente taxar todas as nossas transações, co-brando tanto dos comerciantes como do consumidor através da taxa de uso, do crédito implícito e dos juros sobre atrasos, além do aluguel dos equipamentos. A General Electric, por exemplo, já emitiu 68 milhões de cartões, 40% em países em desenvolvimento. É mais uma empresa que descobriu que se ganha mais brincando com o dinheiro dos outros do que enfrentando a dureza dos processos produtivos. O americano médio ostenta orgulhosamente uma média de 8 cartões de crédito, e vive endividado.

O The Economist, curiosamente, avalia que os brasileiros estão en-tre os poucos espertos: “O número de cartões de crédito no Brasil, por exemplo, cresceu em média 17,3% ao ano entre 1999 e 2004, segundo Bain & Company, uma outra empresa de consultoria. Os brasileiros, no entanto, tendem a pagar as suas contas mensais, em parte porque as taxas de juros são altas (8-11% ao mês) mas também porque prefe-rem usar os seus cartões como um meio conveniente de pagamento e não como uma forma de empréstimo. Há outros créditos mais baratos disponíveis, diz Rodolfo Spielman, do Bain. Isto pode explicar porque os gastos anuais dos brasileiros com cartões de crédito caíram 4,1% ao ano, descontada a inflação, entre 1999 e 2004”.20

Trata-se, como dizem na terra de Celso Furtado, de “festa com chapéu dos outros”. Celso Furtado, aliás, gostava de ser claro: “Já nin-guém ignora a fantástica concentração de poder que hoje se mani-festa nos chamados “mercados financeiros”, que são dominados por atividades especulativas cambiais”. 21

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Mas se ninguém ignora isto, o fato é que todos conhecemos como está estruturada a indústria automobilística mundial, mas ignoramos como estão estruturados e como organizam seu poder político e eco-nômico os grupos que se apropriaram das poupanças. Temos páginas em todos os jornais com cotações diversas, mas nada sobre como o processo é manejado. Jogar na mesa do cassino é permitido (cada um traz a sua poupança, ou “aplica” o dinheiro com “investidores institu-cionais” que vão jogar por nós), mas saber como as mesas são geridas, quais são as chances e quem ganha quanto com isto está fora do nosso alcance. É uma área impressionante da economia que precisa de luz. Inúmeros nóbeis (alguns preferem ignóbeis) de economia elaboram fórmulas para melhorar o nosso desempenho na roleta, mas raros são os que como Stiglitz, por exemplo, que levantou um cantinho do véu, se debruçam sobre o processo de poder político-financeiro assim gerado. Um pouco de democracia, senão no controle, pelo menos na informação, não seria bem-vindo?

A realidade patológica da área financeira vai curiosamente criando os seus antídotos. Enquanto a corrente teórica dominan-te – e o grosso dos recursos – reforçam as atividades especulativas e o financiamento das corporações, vai se construindo uma outra corrente, que vem responder às prosaicas necessidades de finan-ciamento da pequena e média empresa, da agricultura familiar, das organizações da sociedade civil. Todos conhecem os trabalhos de Yunus em Bangladesh, mas vale a pena realçar que muito dinheiro na mão de poucos gera o caos, enquanto pouco dinheiro na mão de muitos gera resultados impressionantes em termos de progres-so econômico e social.22 Numa visão estritamente econômica, para quem não tem quase nada, um pouco de dinheiro faz uma imensa diferença, em termos de saúde, de educação, de melhores condições de produção.

A reorientação que se busca, é de que os recursos financeiros possam prosaicamente servir ao nosso desenvolvimento. Trata-se de colocar os recursos da comunidade a serviço da própria comunidade. Stiglitz apresenta a importância do sistema da China: “As cidades e vilas canalizaram os seus preciosos recursos para a geração de riqueza, e havia forte competição pelo sucesso. Os habitantes das cidades e vilas podiam ver o que acontecia com os seus fundos. Sabiam se havia

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empregos sendo criados e se a renda aumentava. Apesar de talvez não existir democracia, havia responsabilização. Novas indústrias na Chi-na foram localizadas em áreas rurais. Isto ajudou a reduzir a tensão social que inevitavelmente acompanha a industrialização. Esta é a China que lançou as fundações de uma Nova Economia em cima das instituições existentes, mantendo e fortalecendo o seu capital social, enquanto na Rússia este era erodido”.23

A Alemanha oferece outro exemplo interessante. A gigantesca massa de poupanças familiares do país é confiada apenas em parte aos chamados “investidores institucionais” para especularem. É do-minantemente gerida por pequenas caixas de poupança que existem em cada cidade ou vila. O The Economist informa que mais da metade da poupança alemã é gerida desta forma. A revista considera, natural-mente, que isto é um fator de atraso, pois o dinheiro seria aplicado de maneira mais dinâmica se a poupança fosse administrada por alguns grupos financeiros internacionais. Isto, naturalmente, antes da crise.24

Não ver a imensa gama de pequenas iniciativas que localidades bem capitalizadas podem tomar, gerando pequenas empresas, restau-rantes típicos, transformação dos produtos agrícolas locais – nem tudo deve ir para o McDonald’s ou a rede de hipermercados – num processo que não é apenas econômico, é cultural e associativo. Faz uma região ser “dona” do seu território, com iniciativas próprias e criatividade. Nunca é demais lembrar que 54% das empresas nos Estados Unidos empre-gam até 5 pessoas, e que o país tem 26 milhões de micro e pequenas empresas. Trata-se aqui de um grande hiato na teoria econômica, que considera produtiva a pequena empresa apenas quando é reduzida ao papel de subcontratada de um gigante corporativo.

Se a teoria deixa em branco o esmagamento da iniciativa econô-mica individual e associativa no capitalismo globalizado, no plano da economia aplicada surgem coisas muito interessantes. O microcré-dito é um termo genérico, que encobre inúmeras iniciativas. São co-operativas de crédito, ONGs de intermediação financeira, ações em grande escala como as do Banco do Nordeste, bancos comunitários de desenvolvimento, e até sistemas de contatos online entre quem tem poupança para aplicar e quem precisa de crédito, dispensando os intermediários bancários. Como o sistema comercial não responde às necessidades, geram-se sistemas paralelos.

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O livro Les placements éthiques, constitui um tipo de pequeno ma-nual para quem quer fazer coisas úteis com o seu dinheiro, em vez de colocá-lo no banco.25 Sem teorizar muito, o livro parte do princípio de que as pessoas realmente existentes querem equilibrar vários in-teresses, como ter uma razoável remuneração pelo seu dinheiro, mas também segurança, liquidez para o caso de precisarem dele inespera-damente, e o sentimento do seu dinheiro estar sendo útil. As aplica-ções financeiras úteis apresentadas no livro se referem concretamente à França, mas abrem perspectivas gerais.

Em termos práticos, trata-se de um pequeno manual onde em cada página aparece um fundo ético, com indicações da taxa média de remuneração da aplicação, a liquidez (alguns fundos exigem um determinado tempo de aplicação), a segurança (há desde aplicações garantidas pelo Estado até aplicações de risco como no mercado de ações) e a “mais-valia ética” que descreve em detalhe que tipo de ativi-dade socialmente ou ambientalmente útil está envolvida. O processo também se firmou na França porque, além do interesse da população, os bancos locais – comunitários ou do Estado – passaram a garantir as aplicações feitas em iniciativas de economia solidária, gerando um processo perfeitamente seguro em termos financeiros e de elevada produtividade sistêmica.

As aplicações envolvem tipicamente empresas de economia so-lidária – por exemplo o seu dinheiro será aplicado numa pequena empresa que organizou o transporte para pessoas deficientes na cida-de, iniciativa demasiado pontual para interessar grupos empresariais tradicionais – ou empresas tradicionais que passam pelo crivo de uma série de critérios como o respeito às normas trabalhistas, respeito ao consumidor e assim por diante. Há fundos que além disso excluem um conjunto de empresas notoriamente antissociais como as que produzem armas, fumo ou bebidas alcoólicas.

Isto implica por sua vez num conjunto de critérios de avaliação de atividades empresariais que vão muito além do lucro, e com isto surgiram diversas instituições que fazem um seguimento sistemático de diversos setores de atividades e de empresas, de maneira que a pes-soa que aplica num fundo possa conhecer efetivamente o uso final do seu dinheiro. Estamos todos acostumados ao indicador de “risco Bra-sil”, que apresenta o risco que um determinado país ou empresa re-

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presenta para os aplicadores financeiros, mas quase não aparecem os indicadores de utilidade social das empresas, e nunca do risco “para” o Brasil, por exemplo, das atividades especulativas.26

O sistema montado na França é maduro e bastante sofisticado. Envolve legislação que permite que certas aplicações financeiras se-jam tratadas de maneira diferenciada pelo fisco, um sistema de no-tação das empresas pelas instituições de avaliação, uma forte partici-pação de organizações da sociedade civil, de sindicatos e de poderes locais, e envolve um sistema regular de informação ao acionista ou aplicador financeiro. O sistema está se expandindo num ritmo de 20% ao ano. Há organizações da sociedade civil que já administram mais de 800 milhões de euros, cerca de 2 bilhões de reais.

Em termos teóricos, o sucesso das experiências deste tipo é su-mamente importante, pois implica que afinal as pessoas não querem apenas maximização de retorno e segurança do seu dinheiro. As pes-soas querem sim fazer coisas socialmente úteis se tiverem a oportu-nidade, e esta oportunidade se organiza. Uma nota introdutória de Henri Rouillé d’Orfeuil, dá o tom: “Os objetivos são claros. Trata-se de introduzir solidariedade, ou seja uma preocupação com o bem comum, no coração mesmo da economia, para que o crescimento leve ao progresso social e ao desenvolvimento sustentável, para que as empresas se tornem socialmente e ecologicamente responsáveis”.27

Este eixo alternativo da intermediação financeira está sendo alvo de ataques dos grandes grupos especulativos, e se vê ridicularizado pelo mainstream da ciência econômica. No entanto, quando Hazel Henderson e outros criaram o ethical market place, literalmente “mer-cado de aplicações éticas”, descobriram imenso interesse social, que está se materializando num fluxo impressionante de recursos. Hoje os próprios grupos financeiros especulativos e grandes bancos estão abrindo nichos de atividades socialmente responsáveis, nem que seja para melhorar a imagem.28

É interessante, para todos nós, ver que enquanto os mecanismos de mercado estão sendo engessados pelos gigantes transnacionais ou nacionais que monopolizam amplos setores econômicos, manipulam os fluxos e restringem o acesso às informações, e geram desequilí-brios catastróficos, estão surgindo formas alternativas de regulação econômica baseadas em valores e participação direta do cidadão.

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

Fazer política sempre foi visto por nós como atividade muito centrada no voto, no partido, no governo. Mais recentemente, surgi-ram atividades em que a sociedade civil organizada arregaça as man-gas e assume ela mesma uma série de atividades. Está tomando for-ma cada vez mais clara e significativa a atividade econômica guiada por valores, por visões políticas no sentido mais amplo. As pessoas estão descobrindo que podem “votar com o seu dinheiro”. Outras ati-vidades surgiram no Brasil, com a ajuda entre outros de Paul Singer, na linha da Economia Solidária. Já não se contam as iniciativas de microcrédito, de crédito solidário, de ONGs de garantia de crédito.29

Tata-se de uma área onde surgiram excelentes estudos descri-tivos na linha do “como funciona”, sem que haja muita teorização econômica. Surge igualmente nesta área uma prática generalizada de seminários e conferências, onde as pessoas que administram estas novas formas de gestão das nossas poupanças cruzam com cientistas sociais, e constroem novas visões.30

Uma pequena digressão é importante aqui. A nossa visão da economia ainda está centrada na visão fabril do século XX. Mas os setores emergentes da economia não são fábricas, são redes de saú-de, sistemas articulados de educação, pesquisa e organização do co-nhecimento, atividades culturais e assim por diante. As pessoas se espantam com o fato das atividades industriais representarem nos Estados Unidos 14% do PIB, e 10% do emprego, declinando rapi-damente, enquanto a saúde já representa 17% do PIB. Se somarmos a educação, a cultura, a segurança, vamos para mais de 40% do PIB. A economia está cada vez menos baseada em capital fixo (máquinas, equipamentos, construções) e cada vez mais em organização e conhe-cimento. Ou seja, a economia que surge não necessita do gigantismo para ser eficiente, pelo contrário. Na realidade, o gigantismo nestas áreas gera deseconomias de escala, pela burocratização e monopoli-zação do controle de acesso a serviços essenciais.31

Ou seja, há uma convergência a se construir entre o surgimento de novos setores de atividades, e as formas de financiamento que eles exigem. Quando as atividades econômicas de área social, como saúde, educação, cultura e outros, tornam-se dominantes no nosso modo de produção, o conceito de financiamento também muda. O sistema concentrador de financiamento pode trabalhar bem com gigantescas

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empresas de planos de saúde: neste caso temos uma absurda aliança de interesses especulativos com a indústria da doença. Mas se é para fazer uma política social que tenha resultados em termos de quali-dade de vida, as inovações da gestão financeira, na linha das diversas formas de crédito que surgem, mostram-se perfeitamente coerentes e economicamente, muito mais produtivas. São atividades capilares que se ajustam bem a sistemas de financiamento em rede.

O que estamos sugerindo aqui, é que há uma nova teoria econô-mica em construção, sem que talvez nos apercebamos disto, de tanto estarmos ocupados em refutar os marginalistas ou a lei das vantagens comparadas de Ricardo. Não se trata de uma dinâmica socialmente caridosa e economicamente marginal. É um espaço importante a ser ocupado. Não precisamos esperar um governo que nos agrade para tirar o nosso dinheiro do banco e aplicar as nossas poupanças em coi-sas úteis. O resgate do controle das nossas poupanças emerge como eixo estruturador das dinâmicas sociais, e o direito de controlarmos o nosso próprio dinheiro, e de exigir prestação de contas na área, é perfeitamente democrático.

*Ladislau Dowbor - é doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e consultor de diversas agências das Nações Unidas. É autor de Democracia econômica, A reprodução social: propostas para uma gestão descentralizada, O mosaico partido: a economia além das equações, Tecnologias do conhecimento: os desafios da educação, todos pela editora Vozes, além de O que acontece com o trabalho? (Ed. Senac) e coorganizador da coletânea Economia Social no Brasil (ed. Senac). Seus numerosos trabalhos sobre planejamento econômico e social estão disponíveis no site http://dowbor.org – Contato [email protected]

Notas

(12) Para uma análise mais ampla do processo, ver o nosso ensaio Democracia econômica, Petrópolis, Ed. Vozes 2008, bem como A crise financeira sem mistérios, http://dowbor.org/crisesemmisterios8.pdf(13) A este respeito ver o artigo de Hazel Henderson no Le Monde Diplomatique de fevereiro de 2005, p. 28. O nome formal do “nobel” de economia é “Prêmio do Banco da Suécia em ciências econômicas em memória de Alfred Nobel”, nome que facilitou a fraude:

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os economistas só usam a primeira e a última palavra. O prêmio não é pago pela Fundação Nobel. Wikipédia apresenta os fatos: “The Bank of Sweden Prize in Economic Sciences in Memory of Alfred Nobel, sometimes referred to as the Nobel prize in economics, was not a part of Nobel's will. It was instituted in 1969 by Sveriges Riksbank, the Bank of Sweden. Since this prize has no foundation in Nobel's will, and is not paid for by his money, it is technically not a Nobel Prize. However, it is awarded with the official Nobel prizes”. É significativo que Yunus, um dos economistas mais inovadores da atualidade, tenha sido reconhecido por um prêmio Nobel da Paz.(14) The Economist, Credit-rating agencies: Special Report – 26 de março de 2005, p. 67 e ss. A última citação é de Glenn Reynolds, de uma firma independente de pesquisa de crédito, no mesmo artigo. (15) Joseph Stiglitz, Globalization and its discontents, W.W. Norton & Cy., New York , 2002 – publicado no Brasil com o título A globalização e seus malefícios, Ed. Futura. (16) Stiglitz analisa, no caso asiático, o que ele chama de “the naked self-interest of financial markets”, e constata que “capital flows out of a country in a recession, precisely when the country needs it most, and flows in during a boom, exacerbating inflationary pressures. Sure enough, just at the time the countries needed outside funds, the bankers asked for their money back”. (Stiglitz, po. Cit., p. 100). Para o caso argentino, ver o nosso "Altos juros e descapitalização da economia", http://dowbor.org sob “Artigos Online”. (17) Finance & Development, IMF, March 2002, p. 13.(18) Uma discussão deste tema pode ser encontrada no nosso O que é capital?, editora Brasiliense, São Paulo, 2004, 10ª ed. revista e ampliada. (19) Raghuram Rajan, diretor do departamento de pesquisa do FMI, Finance and Development, IMF, September 2005, p. 54, sob o título “Risky Business”. – No original: “While it is hard to be categorical about anything as complex as the modern financial system, it’s possible that these developments are creating more financial-sector induced procyclicality than in the past. They may also create a greater (albeit still small) probablility of a catastrophic meltdown”. Procyclicality no jargão do FMI se refere ao fenômeno apontado por Stiglitz, dos capitais fugirem justamente quando uma economia está em dificuldades, portanto justamente no momento em que precisa de aportes, aprofundando os desequilíbrios. (20) The Economist, January 14th 2006, p. 74 (21) Celso Furtado, O capitalismo global, Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro 1998, p. 7; o sistema de movimentações eletrônicas como o algorithmic trading exige investimentos impressionantes em tecnologia da informação, avaliada em 26,4 bilhões de dólares só em 2005 nos grupos americanos de especulação. Os países menores ou mais fracos têm toda a liberdade de tentar acompanhar. Na realidade, trata-se de um sistema global de expropriação de poupanças por quem tem meios para dominar os mecanismos. Ver The Economist, 4 de fevereiro de 2006, p. 68 sobre “Technology and Exchanges”; ver também a explicitação do impacto econômico do sistema no plano mundial no Trade and Development Report 1998, da UNCTAD, uma das raras instituições internacionais a abordar o problema com realismo, na época sob orientação de Rubens Ricupero. (22) Mohammad Yunus, Banqueiro dos pobres, Ática, São Paulo, 2000; Yunus foi agraciado com o Nobel da Paz de 2006(23) J. Stiglitz – Globalization… - A opção Chinesa nas páginas 184 e 185. Stiglitz menciona também o caso da República Tcheca: “It had created a capital market which did not raise money for new investment, but allowed a few smart money managers (more accurately,white-collar criminals – if they did what they did in the Czech Republic in the United States, they would be

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behind bars) to walk off with millions of dollars of others’ money”. A visão de Stiglitz sobre os poucos casos de sucesso de políticas financeiras é interessante: “One attribute of the success cases is that they are “homegrown”, designed by people within each country, sensitive to the needs and concerns of their country”.(p. 186) (24) The Economist, October 15th, 2004 – « The public sector banks – 11 regional wholesale Landesbanken, a few development banks and nearly 500 savings banks – account for 36% of German banking assets and more than half of savings deposits. For years they have been protected by laws and state guarantees from the full force of the market.” (p. 73) . The Economist é fortemente partidário e faz campanha. No seu número de 13 de dezembro de 2003, já vinha esta nota indignada: “Consider the 500-odd municipal savings banks that hold half of the money in Germans’ savings accounts. None of these banks has ever been privatised, even though private-sector banks, which have only 15% of the savings deposits, would like the chance to buy some.” O artigo lamenta a existência na Alemanha “of the three-pillar structure of private, public and co-operative banks that stultifies the banking system” (p. 69). (25) Alternatives economiques – Les placements éthiques : comment placer son argent – www.alternatives-economiques.fr , Paris, 2003, 176 p. ; além disto, na França os diversos sistemas locais de gestão pública das poupanças (La Poste, Caisse d’Épargne, Crédit Mutuel) administram 40% das poupanças francesas, conforme The Economist, December 24th 2005-January 6th 2006 double-issue, p. 99. (26) No plano das empresas, vale a pena acompanhar o progresso das iniciativas do Instituto Ethos e dos seus indicadores de responsabilidade empresarial. www.ethos.org.br (27) Rouillé D’Orfeuil, Henri – Finances solidaires: changer d’échelle – in Les Placements éthiques, Alternatives Economiques, Paris, 2003, p. 18 – www.alternatives-economiques.fr(28) veja em www.hazelhenderson.com . A revista Scientific American de dezembro de 2002 traz um artigo interessante sobre Joan Bavaria, chefe da Trillium Asset Management, e avalia que “a comunidade mundial de investidores sociais controla mais de $2 trilhões em aplicações” – p. 40 – No Brasil, o portal www.mercadoetico.com.br foi lançado em fevereiro de 2007, com objetivos semelhantes. (29) Em termos de escala e de inovação metodológica, ver em particular as experiências do Banco do Nordeste, e as novas Agências de Garantia de Crédito que apoiam pequenos produtores.. (30) Para uma sistematização de algumas tendências no Brasil, ver o trabalho de Sérgio Roschel, Microcrédito no Brasil, no site http://dowbor.org sob “Pesquisas Conexas”. Ver também informações da associação brasileira de empresas de microcrédito, [email protected] bem como trabalhos de Flávio Foguel, do Senac, e Claudia Forte, da USP.(31) Tratamos este assunto com mais detalhe no artigo "Gestão Social e Transformação da Sociedade", veja em http://dowbor.org sob “Artigos Online”, 2000, 18 p.

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Assimetria de crédito, de informação e de alocação de recursos na economia

Márcio Bobik Braga*

A Economia da Informação teve influência significativa sobre a análise econômica nas últimas décadas. Sua hipótese central ba-

seia-se na ideia de que o conjunto de informações necessárias numa determinada transação não é disponível de forma homogênea entre os agentes, a não ser mediante algum custo. Essa hipótese, conhecida como assimetria de informação, tem como implicação a existência de problemas que não necessariamente irão resultar na “situação ótima” característica dos modelos neoclássicos que predominam na análise econômica ortodoxa. Tais possibilidades, além de contribuir para o en-tendimento da lógica da intermediação econômica, incluem arranjos contratuais, os custos decorrentes desses arranjos e as respostas institu-cionais e de mercado às consequências dos problemas de informação.

A partir do final dos anos 1970, com a publicação dos tra-balhos de Jaffe e Russel (1979) e Stiglitz e Weiss (1981), a assi-

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

metria de informação passou a ser considerada nos mercados de empréstimos. Esses mercados reúnem indivíduos superavitários e deficitários que buscam firmar contratos de dívida esperando que, ao término do período estabelecido pelo contrato, ambos me-lhorem de situação. Entretanto, conforme procuraram demonstrar os autores acima citados, a existência de informação assimétri-ca antes ou após a formalização do contrato, ao afetar de forma particular o resultado esperado da transação, não necessariamente resulta em um equilíbrio de mercado que seria considerado ótimo “no sentido ótimo de Pareto”.

A possibilidade de se estudar os mercados de crédito a partir de modelos com assimetria de informação estimulou e ainda tem estimulado uma série de estudos que, apesar de não se constituírem num corpo homogêneo de ideias, definem pelo menos uma linha de pesquisa cujos resultados têm sido extremamente importantes para o entendimento do processo de alocação de recursos ao longo da economia ou mesmo sobre aspectos ligados à regulação dos merca-dos de crédito.32 O objetivo deste artigo consiste em sintetizar al-gumas implicações teóricas decorrentes da existência de assimetria de informação no processo de intermediação financeira sob uma perspectiva microeconômica e institucional, com base na literatura sobre a economia da informação aplicada aos mercados de crédito. Em termos mais específicos, estaremos preocupados com as seguin-tes questões: o equilíbrio no mercado de crédito, a relação contra-tual ótima entre credor e devedor, o papel dos bancos no processo de alocação de crédito e os problemas alocativos decorrentes da existência de assimetria de informação.

O artigo está dividido em quatro seções, além desta introdução e das considerações finais. Na primeira, abordaremos alguns importan-tes aspectos do equilíbrio no mercado de crédito supondo a existên-cia de informação assimétrica entre credor e devedor. Na seção dois, discutiremos as características do contrato de empréstimos que sur-gem como resposta aos problemas de informação. Na terceira seção, apresentaremos alguns microfundamentos que justificam a atividade bancária no processo de intermediação financeira, principalmente pelas condições que esse tipo de organização apresenta para minimi-zar os custos de transação e, em particular, os custos de informação

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presentes nas operações de crédito. Ainda nessa seção, discutiremos algumas questões que podem ser úteis no entendimento da lógica da regulação da atividade bancária. Na última seção, analisaremos uma dentre as inúmeras implicações práticas das ideias desenvolvidas ao longo do artigo: as dificuldades e possibilidades nos financiamentos a micro e pequenos empreendimentos.

Informação e equilíbrio no mercado

Num mundo de informação perfeita, o mercado de crédito pode ser considerado como um exemplo teórico de equilíbrio em mercados competitivos. Nesse mercado, a taxa de juros representa o preço que equilibra a oferta e demanda por empréstimos. O resul-tado de inúmeros modelos com assimetria de informações aplicado nos mercados de crédito, em grande parte inspirados nos trabalho clássico de Stiglitz e Weiss (1981), no entanto, analisam o problema sob um ponto de vista distinto, ao assumirem existência de assi-metria de informação nas operações de empréstimo.33 No modelo desenvolvido pelos autores, a assimetria de informação resultaria no problema de seleção adversa através da taxa de juros cobradas nos empréstimos: quanto maior a taxa de juros, maior o número de tomadores com projetos de alto risco que, se bem-sucedidos, pos-sibilitam maiores retornos quando comparado aos de menor risco. Como resultado, o mercado de crédito pode ser caracterizado pelo racionamento, com uma taxa de juros menor do que aquela que equilibraria oferta e demanda.

O racionamento de crédito no contexto aqui discutido deve ser entendido como uma situação em que parte da demanda por empréstimos não é atendida, mesmo quando nesse conjunto exis-tem tomadores capazes e dispostos a arcar com os juros e demais exigências contratuais requeridas para a obtenção do empréstimo. Decorre do fato do retorno esperado não ser uma função cres-cente da taxa de juros, conforme pode ser visualizado a partir do gráfico a seguir:

Gráfico I – retorno esperado pelo banco como função da taxa de juros nominal

Márcio Bobik Braga

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retornoesperadopelo banco π (r*)

r* taxa de juros nominal

A partir do gráfico, quanto maior a taxa de juros, maior será o retorno esperado pelo banco, até que a taxa de juros r* seja alcançada. Para taxas de juros maiores, o retorno esperado cai (pelos motivos que veremos mais adiante). Considerando que a oferta depende do comportamento dos ofertantes de depósitos nos bancos; e se estes sabem da relação entre retorno esperado e taxa de juros dada pelo gráfico, teremos uma forma particular para a oferta de crédito, con-forme pode ser visualizada no gráfico II. No caso da demanda, não há motivos para nenhuma forma diferente da tradicional.34

Gráfico II – oferta e demanda por crédito

volume de crédito

r1 r* taxa nominal de juros

A BS (π (r) )

C

D

D

2

1

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Considerando a demanda dada pela curva D1, o ponto A no grá-fico corresponde ao equilíbrio competitivo, não ocorrendo qualquer situação caracterizada pelo racionamento de crédito. Entretanto, no caso da demanda ser representada por D2, teremos uma situação de equilíbrio com racionamento, representado pelo segmento CB.

Os motivos que levam o lucro esperado pelo banco a se com-portar como no gráfico I podem ser melhor compreendidos a partir do modelo a seguir.35 Consideremos duas firmas com diferentes pro-babilidades de sucesso que desejam um montante de recursos igual a X para o financiamento de um determinado projeto de investi-mento, sendo que nenhuma delas possui colateral.36 Quando bem-sucedido em seu empreendimento, a firma 1 gera uma receita igual a Y1 enquanto que a firma 2 gera uma receita igual a Y2 na mesma situação. Quando mal-sucedidas, ambas recebem uma receita nula. Considerando qi a probabilidade do empreendimento i não ser bem-sucedido, vamos supor que q1 < q2, significando que a firma 2 é de maior risco em relação a firma 1.

Podemos então considerar o lucro esperado dos projetos das duas firmas como:

πf1(r) = q1.0 + (1 - q1).[Y1 - (1 + r).X]

πf2(r) = q2.0 + (1 - q2).[Y2 - (1 + r).X]

Vamos considerar que (1 - q1).Y1 < (1 - q2).Y2, ou seja, o retorno esperado em caso de sucesso é maior para a firma 2.37 Podemos então demonstrar que πf1(r) < πf2(r) para cada r .38

Consideremos r* e r** tal que:

πf1(r*) = 0; e

πf2(r**) = 0

Podemos provar que r* < r**. 39 Assim, se o banco escolhe r < r*, os dois projetos concorrerão pelo empréstimo. Entretanto, se r* < r < r**, somente a firma 2 aceitará o empréstimo, exatamente a de maior risco.

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Suponha que o banco conheça, por experiência, que do total de firmas existentes no mercado, a proporção α são de firmas do tipo 1 e a proporção 1-α são de firmas do tipo 2. Considerando que o banco financie um total de n projetos (supondo que os n projetos sejam uma amostra aleatória da população), seu lucro esperado será de:

πb(r) = α .n. πb1(r) + (1 - α).n. πb2(r) -n.X, onde

πb1(r) = (1 – q1) . (1 + r) . X; e

πb2(r) = (1 – q2) . (1 + r) . X

representam a receita esperada pelo banco no caso da firma do tipo 1 ou 2 forem escolhidas, respectivamente, sendo que πb1(r) > πb2(r). Podemos verificar que se a taxa de juros se eleva, então o banco estará disposto a financiar mais projetos, já que πb(r) também aumen-ta. Entretanto, se r aumenta além de determinado nível, digamos r*, somente firmas do tipo 2 estarão dispostas a permanecer no mercado, caracterizando-se uma situação na qual verifica-se um processo de seleção adversa no mercado de crédito. Nesta situação, é possível para o banco elevar seu lucro esperado reduzindo a taxa de juros e, con-sequentemente, atraindo firmas de baixo risco. Em outras palavras, existe uma taxa de juros máxima que maximiza o lucro esperado do banco e que pode estar abaixo da taxa de equilíbrio de mercado. A esta taxa, poderá estar havendo um excesso de demanda por emprés-timos já que ambos os tipos de firmas preferem taxas mais baixas. As-sim, o resultado poderá ser caracterizado por um excesso de demanda por empréstimos, constituindo-se numa situação de equilíbrio com racionamento de crédito.

Cabe destacar que, no modelo apresentado, o tomador não sofre qualquer tipo de penalidade no caso de tornar-se inadim-plente. Podemos, entretanto, considerar tal possibilidade, não presente no modelo anteriormente analisado. Suponhamos que, ao tornar-se inadimplente, as firmas sofram uma perda de W, que pode representar, por exemplo, a impossibilidade de acesso a novos empréstimos para o financiamento de empreendimentos no futuro. Nesse caso, W pode ser considerado como o valor

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descontado do retorno desses empreendimentos, caso fossem le-vados adiante no futuro.

Podemos então considerar o lucro esperado dos projetos das duas firmas como:

πf1(r) = - q1.W + (1 - q1).[Y1 - (1 + r).X]

πf2(r) = - q2W + (1 - q2).[Y2 - (1 + r).X]

Assim, considerando a possibilidade de penalidades em caso de inadimplência, podemos provar que o problema de seleção adversa só ocorrerá se tais penalidades (valor de W) não forem muito altas.40 Ou seja, existe um determinado valor para W a partir do qual a desi-gualdade πf1(r) < πf2(r) para cada r não mais se verifica.41

Em suma, a principal mensagem do modelo é a de que, sob deter-minadas circunstâncias, a taxa de juros pode ter um papel de seleção adversa nos empréstimos: altas taxas podem estar atraindo tomadores de alto risco. Como opção para a solução desse problema, os bancos podem estipular ex-ante penalidades em caso de inadimplência.

Cabe destacar que o modelo aqui discutido considera a existên-cia de informação assimétrica ex-ante, isto é, que ocorre antes da for-malização do contrato, no qual o possível tomador do empréstimo tem melhor informação acerca do risco de empreendimento a ser financiado, comparado com as informações disponíveis ao ofertante do crédito. No entanto, é bastante plausível a ocorrência de situações nas quais a assimetria de informação se manifesta ex-post, ou seja, quando ela ocorre depois da formalização do contrato, seja em de-corrência de determinadas ações tomadas pelo devedor e que não são observadas pelo credor, ou resultado de ações da natureza, que tam-bém são somente observadas pelo devedor, e que afetam o retorno es-perado de empreendimento. Quando a informação assimétrica dá-se ex-post, temos a possibilidade de ocorrência do problema conhecido na literatura como de risco moral (moral hazard).

Vários são os incentivos às ações que resultam em problemas de risco moral. Podemos citar pelo menos três: i) quando o custo de inadimplência é menor do que o custo de quitar a dívida; ii) quando, numa situação de inadimplência, o devedor percebe que a possibili-

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dade de renegociação que o beneficie em relação à situação anterior é mais vantajosa sobre o ponto de vista do credor ou iii) quando o esforço do devedor na condução do empreendimento financiado não é observado pelo credor. Se para o problema de seleção adversa, o racionamento é uma solução possível, a ocorrência de risco moral impõe custos adicionais decorrentes da necessidade de monitoração das ações do devedor pelo banco. Retomaremos o problema de risco moral a seguir. Antes, porém, temos que responder a seguinte ques-tão: se os mercados de crédito são caracterizados pela existência de assimetria de informação que podem resultar em problemas de sele-ção adversa e/ou risco moral, o que faz com que esses mercados exis-tam no mundo real? Pode-se responder a essa questão focando-se em dois pontos: i) a importância da estrutura dos contratos entre credor e devedor; ii) a importância dos bancos no processo de intermediação de recursos entre os indivíduos superavitários e deficitários.

O contrato ótimo

Nos mercados de crédito, a relação entre credor e devedor é esta-belecida através de contratos de dívida. Além de prever o montante de empréstimos, o período e a taxa de juros, esses contratos procuram estabelecer cláusulas que, além de selecionar os devedores, induza-os a tomar as ações necessárias ao bom andamento do empreendimento financiado, possibilitando o pagamento do empréstimo mais os juros pactuados no prazo previsto.

Muitos autores procuraram estudar algum tipo de “relação con-tratual ótima” numa operação de empréstimo em situações nas quais existe assimetria de informação entre as partes envolvidas. O trabalho de Townsend (1979) pode ser considerado como uma importante re-ferência para esses estudos. Townsend desenvolve um modelo de tro-cas (denominado na literatura como The costly state verification model ou simplesmente CSV model), em que os indivíduos são informados assimetricamente e ex-post acerca do estado da natureza, sendo que tal informação só pode ser transmitida entre eles mediante algum cus-to.42 O modelo considera um acordo bilateral entre credor e devedor. O primeiro incorre num custo fixo de observar os retornos do pro-jeto a ser financiado. Por outro lado, o tomador não possui colateral

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suficiente para oferecer ao banco. O grande problema que o credor enfrenta refere-se ao fato do tomador não ter incentivos em informar adequadamente sobre o andamento do projeto. Para o autor, o contra-to ótimo seria aquele que prevê que o tomador deve se submeter, sob determinadas circunstâncias, à verificação e exigência no cumprimento dos termos do contrato. Tais termos devem prever o pagamento de um montante fixo em todos os estados da natureza em que não ocorre o monitoramento. Nos estados em que é necessário o monitoramento (estados de inadimplência) o devedor entrega todo o seu produto ou receita para o credor. Trata-se de uma forma de se estabelecer uma relação perfeita entre ações tomadas pelo agente e resultados.

Pelo menos três características desse tipo de contrato contribuem para sua otimalidade (Dowd, 1992):

i) dispensa o monitoramento quando o estado da natureza é favorável aos termos do contrato, evitando-se assim custos con-tratuais desnecessários;

ii) induz o devedor a minimizar a probabilidade de monitora-mento (e, deste modo, minimizar o custo esperado de monitoramen-to), já que ele não ganha nada na situação de inadimplência e

iii) considerando que o monitoramento depende do que o deve-dor alega em relação ao resultado do seu projeto, ele não terá incen-tivo em mentir já que pode perder toda a sua receita relacionada com o investimento realizado.43

Enquanto que no modelo de Stiglitz e Weiss (1981) o contrato financeiro é suposto exógeno, muitos outros trabalhos, a exemplo de Williamson (1986 e 1987), Bernanke e Gertler (1989) e Dia-mond (1984), consideram os contratos financeiros como um re-sultado endógeno ao problema de incentivo, a partir do suposto acerca da estrutura de informação, preferências e tecnologia, in-cluindo custos de monitoramento. Outros trabalhos, a exemplo de Bester (1985 e 1987), propuseram o estabelecimento do colateral como mecanismo de sinalização, já que somente tomadores com empreendimentos de baixo risco estariam dispostos a aceitar con-tratos com altas quantidades de colateral. O grande problema dessa última abordagem é que nem sempre o agente deficitário possui colateral suficiente. Além disso, tomar o colateral, cuja liquidez é significativamente mais baixa do que os recursos monetários em-

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prestados, nem sempre é vantajoso para o credor. Voltaremos a este ponto mais adiante.

Para entendermos o arranjo contratual ótimo no caso da exis-tência de assimetria de informação, vamos considerar inicialmen-te uma situação na qual a firma, já selecionada e que não possui colateral suficiente para oferecer como garantia do empréstimo já adquirido de X, se compromete, após determinado período, a quitar sua dívida no montante de (1 + r).X, sendo r a taxa de juros já pac-tuada. Na condução do projeto, a firma tem a opção de empenhar-se adequadamente, incorrendo assim num custo C (custo de em-penho no projeto ou desutilidade do empenho) e recebendo uma receita igual a B1, suficiente para quitar a dívida. Caso escolha não se empenhar, o custo do empenho é igual a zero e a receita igual a B2, menor do que o custo da dívida. Em caso de inadimplência, o banco pode cobrar uma “taxa de garantia” igual a ф (0 < ф < 1) sobre a receita auferida.

Podemos representar os possíveis resultados desta situação a par-tir do quadro I a seguir:

Quadro I - resultados de um modelo simples de empréstimo (i)

Jogador O empréstimo é pago O empréstimo não é pagoFirma B1 - (1 + r) . X - C B2 - ф . B2

Banco44 (1 + r) . X - X ф . B2 - X Podemos notar que se B2 - ф. B2 > B1 - (1 + r) . X - C para

algum ф, a firma poderá ter interesse em não se empenhar adequada-mente e tornar-se inadimplente. Evidentemente, o banco escolherá ф = 1 de forma induzir a firma a empenhar-se e pagar a dívida (esta-mos supondo que B1 - (1 + r) . X - C > 0).

Mais interessante seria o caso em que existe a possibilidade da firma mentir sobre sua receita (B2* ao invés de B2) em caso de inadimplência, tendo como objetivo tirar proveito disso. Tal situação pode ser representada pelo quadro II a seguir:

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Quadro II - resultados de um modelo simples de empréstimo (ii)

Jogador O empréstimo é pago O empréstimo não é pago

Firma B1 - (1 + r) . X - C B2 - ф. B2*

Banco (1 + r) . X - X ф. B2* - X

Supondo que B2 > B2* e B2 - ф. B2* > B1 - (1 + r) . X - C, para qualquer ф entre zero e um, haverá incentivos à firma em não se empenhar e mentir sobre sua receita. Nesse caso, será necessário estipular cláusulas contratuais que preveem a atividade de verificação ou monitoramento por parte do banco de forma a tornar B2* = B2, induzindo a firma a empenhar-se adequadamente e pagar o emprés-timo, caracterizando-se assim o contrato ótimo. Entretanto, a ativi-dade de verificação resulta em custos para o banco de tal forma que seu payoff, em situação de inadimplência por parte da firma, será de ф.B2 – X – CV, onde CV representa o custo de verificação. Eviden-temente, esse payoff deverá ser necessariamente maior do que ф.B2* - X para que seja do interesse do banco monitorar. Caso contrário, a firma poderá ter incentivo em não se empenhar e mentir sobre sua receita.

Se levarmos em conta que o custo de verificação (CV) dimi-nui à medida em que o banco se especializa no financiamento de determinadas atividades ou grupo de atividades, através de ganhos com aprendizagem, ele poderá optar por concentrar suas operações de crédito em determinados empreendimentos homogêneos.45 Além do mais, é bastante razoável considerar que CV seja uma função do tempo: quanto maior o período do financiamento, maior o custo de verificação. Ou seja, é possível que empreendimentos de longo prazo estejam sendo discriminados no processo de seleção dos em-preendimentos a serem financiados. Por fim, pode-se imaginar um valor mínimo fixo para CV, justificado por uma estrutura mínima de monitoramento das carteiras de empréstimo do banco. Se isso é verdade, para cada taxa de juros, existe um valor mínimo de em-préstimo, abaixo do qual o banco não terá interesse em oferecer o contrato. Neste caso, pequenos empreendimentos podem não estar

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sendo atendidos pelo mercado de crédito. Diante desses problemas, podemos concluir que a existência de custos ligados aos problemas de incentivo nos contratos de empréstimos, decorrentes da existência de informação assimétrica, podem ter importantes implicações na alocação de recursos, além de resultar em custos reais para os emprés-timos na economia.

Cabe destacar que até então analisamos situações nas quais, dian-te da possibilidade de ocorrência de problemas de risco moral, o banco oferece um contrato de empréstimo que prevê, no caso de inadim-plência, uma taxa de garantia que incide sobre a receita auferida pelo empresário no empreendimento financiado e o monitoramento que garanta que a receita declarada seja verdadeira. Existem, no entanto, outras situações nas quais a garantia de pagamento de empréstimo assume a forma de bens (colateral) que fazem parte da riqueza do to-mador (imóveis, terra, equipamentos etc.). Aparentemente, esse tipo de garantia apresenta duas vantagens sob o ponto de vista do banco:

i) evita o custo de monitoramento em caso de inadimplência; e ii) pode significar a garantia para o banco que ele receberá, em

forma de bens, o valor total do empréstimo (colaterização total).46 No entanto, a exigência do colateral, sob determinadas circunstân-cias, pode levar a renegociação no caso de inadimplência, com resul-tados piores para o banco. Senão vejamos.

Mais uma vez consideremos um simples contrato de empréstimo entre banco e firma para o financiamento de um determinado projeto de investimento nos moldes dos exemplos anteriores. Entretanto, ao invés do banco estipular no contrato uma taxa de garantia ф sobre a receita auferida em caso de inadimplência, ele exige um colateral igual a W, de valor igual a (1 + r) . X. Tal situação pode ser represen-tada a partir do quadro III a seguir:47

Quadro III - resultados de um modelo simples de empréstimo (iii)

Jogador O empréstimo é pago O empréstimo não é pago

Firma B1 - (1 + r) . X - C B2 – W

Banco (1 + r) . X - X W – X

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Para que o empresário pague o empréstimo, é necessário que B1- (1 + r).X - C > B2 - W. Como W = (1 + r).X, basta que B1 - C > B2. Vamos considerar que essa condição seja válida. Neste caso, o empresário empenhar-se-á adequadamente e pagará o empréstimo.

Vamos supor uma situação em que exista a possibilidade de re-negociação do contrato na situação de inadimplência. Tal renego-ciação diz respeito à estratégia do banco em oferecer a possibilidade de liquidação do empréstimo pela quantia S < (1 + r).X. Isso ocorre porque, apesar do colateral ser de valor igual ao montante de em-préstimo acrescido de juros, possui menor liquidez. Pensando em termos de utilidade, podemos supor que, para o banco, a utilidade do bem que assume a forma do colateral é menor do que a utilidade de receber (1 + r).X, ou seja:

U (W) < U [(1 + r).X]onde U ( . ) representa o nível de utilidade do banco.

Diante desta nova situação, podemos representar os resultados dos “jogadores” da seguinte forma:

Quadro IV - resultados de um modelo simples de empréstimo (iv)

Jogador O empréstimo é pago O empréstimo não é pago

Firma B1 - (1 + r) . X - C B2 – S

Banco (1 + r) . X - X S – X Assim, para que o empresário pague o empréstimo, é necessário

que B1 - (1 + r).X - C > B2 - S. Por outro lado, S < B2 para que o em-presário pague em dinheiro, no caso dele declarar-se inadimplente. Assim, diante da possibilidade de renegociação, o banco irá escolher S = B2. Em tal situação, o empresário terá incentivo em se empenhar e mentir sobre seu empenho e consequentemente sobre sua receita (B2 ao invés de B1), declarando-se inadimplente e aguardando a re-

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negociação na expectativa de receber B1 - S - C, que é maior do que B1 - (1 + r). X - C. Se o banco mantiver uma carteira de emprésti-mos para um grupo de empreendimentos homogêneos, a estipulação de cláusulas contratuais que permitem a renegociação pode criar o problema do tipo “o carona” (free rider). Diante dessa possibilidade, o mercado de crédito pode estar atraindo tomadores de “má fé” (ca-racterizando-se assim um problema de seleção adversa) que veem na renegociação dos contratos a possibilidade de ganhos. Assim, diante da possibilidade de renegociação, a exigência contratual do colateral não dispensa o monitoramento.

Em suma, a “colaterização” não necessariamente evita os proble-mas de risco moral ou mesmo de seleção adversa, já que pode forçar situações de renegociação de contratos. Diante dessa possibilidade, o banco deve tomar ações críveis no sentido de não aceitar qualquer renegociação no caso de inadimplência, retomando o colateral, ainda que este não possua liquidez imediata (já que assume a forma de bens). De qualquer forma, a exigência do colateral constitui-se num possível arranjo contratual ótimo com o objetivo de evitar problemas de risco moral, desde que o banco não ofereça a possibilidade de renegociação.

Microfundamentos: regulação e alocação de recursos

Nos modelos tratados anteriormente, estávamos preocupados com a relação entre indivíduos superavitários e deficitários ou credor e de-vedor. A existência de uma figura intermediária – o banco – não tinha nada de especial no modelo, podendo, aparentemente, ter sido suprida. Entretanto, os problemas de assimetria de informação presentes nos mercados financeiros e a existência de custos associados ao contrato direto entre os agentes superavitários e deficitários constituem-se em importantes justificativas ao papel dos bancos como principais atores na atividade de intermediação financeira. Senão vejamos.

Se um contrato ótimo tem como um dos objetivos minimizar os efeitos de possíveis comportamentos oportunísticos, eles resultam em custos de seleção e monitoramento que podem, sob determinadas circunstâncias, inviabilizar a relação contratual ou resultar em pro-blemas do tipo “o carona”. Imagine, por exemplo, a existência de n indivíduos (principais) que desejam destinar recursos para o finan-

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ciamento de projetos a serem conduzidos por m agentes 48. Considere ainda que o custo de verificação acerca da qualidade de cada projeto seja igual a c. Se cada uma das n pessoas tiverem a necessidade de verificar a qualidade dos m projetos, teríamos um custo agregado de verificação igual a C = c.n.m. Entretanto, as n pessoas podem delegar a atividade de verificação a um agente intermediário: o banco. Neste caso, o custo agregado a ser incorrido pelo banco seria C’ = c.m que, evidentemente é menor do que C. Além do mais, com a especializa-ção do banco no processo de intermediação financeira, é possível que, a partir de um determinado período de tempo, o custo individual para ele seja reduzido para c’ menor do que c. Assim, a possibilidade de existência de um intermediário financeiro, além de reduzir o custo agregado de verificação, pode vir a diminuir o custo individual nes-se tipo de atividade. Podem ocorrer também ganhos com relação à seleção, muitas vezes importante na determinação dos resultados da transação. Tais ganhos decorrem do aprendizado que o intermediário consegue com a continuidade de sua atividade.

De uma maneira geral, os intermediários econômicos podem ser considerados como agentes que compram bens ou serviços para a re-venda ou simplesmente ajudam compradores e vendedores (ou indiví-duos superavitários e deficitários no caso da intermediação financeira) a encontrarem-se e realizarem transações. Se, entretanto, considerarmos a hipótese acerca da existência de assimetria de informação nas transações, podemos encontrar o que os economistas denominam de microfunda-mento para a existência do processo de intermediação nos mercados. 49

Em boa parte das transações econômicas, os indivíduos envolvidos possuem informação assimétrica. Numa transação de compra e venda de um determinado bem, por exemplo, os vendedores não conhecem as características dos clientes potenciais; e estes, em muitas situações, não conhecem com certeza as características do produto a ser adquirido. Um intermediário pode ajudar a resolver esses problemas coletando, processando e ofertando informações, reduzindo o custo agregado nes-se tipo de atividade. Trata-se enfim de uma atividade que pode ser vista como uma forma de capturar ganhos com as transações considerando a existência de informação assimétrica entre os indivíduos.50

Por outro lado, os intermediários possuem maiores incentivos em investir na coleta e oferta de informação em relação a um

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indivíduo isoladamente, já que esta coleta e oferta constituem-se na base de sua atividade. Tem-se ainda a possibilidade de se observar a reputação de determinados tipos de indivíduos. Isso significa que um intermediário tem melhores condições de sele-cionar, gerar e transmitir informações com menores custos do que um indivíduo isoladamente. Dependendo do tipo de transação, como por exemplo, aquelas cujos resultados dependam das ações de determinados indivíduos, essas vantagens se estendem à ativi-dade de monitoração.

Podemos então considerar que, dentro de um modelo do tipo “agente-principal”, podem surgir oportunidades de ganhos para a atividade de intermediação. Esse é o caso, por exemplo, de atividades de compra e venda de automóveis realizadas por lojas especializadas, transações com imóveis realizadas por corretoras, empresas especia-lizadas na terceirização de serviços, serviços de seleção de mão de obra qualificada para empresas ou, considerando o objeto de nosso estudo, a intermediação financeira pelos bancos. Entretanto, a possi-bilidade de existência desses ganhos não significa que o problema es-teja resolvido. Isso porque, se por um lado podemos considerar, com a presença de um intermediário, uma relação do tipo principal-in-termediário-agente, tal relação pode resultar num problema do tipo principal-agente/principal-agente. Em outras palavras, o intermedi-ário assume, sob o ponto de vista do principal, o papel de agente; e sob o ponto de vista do agente, o papel de principal. Considerando que o intermediário carrega para si inúmeras relações indiretas entre os indivíduos, suas ações oportunísticas podem ter um efeito agrega-do significativamente maior do que se as relações fossem individuais. Essa aparente contradição decorre do fato de que as ações oportunís-ticas de um determinado intermediário podem prejudicar não ape-nas um indivíduo ou grupo de indivíduos, mas vários indivíduos ou grupos de indivíduos.

Surge então uma importante questão. Se, dentre outros fatores, o processo de intermediação surge como forma de se obter ganhos na verificação e monitoramento de ações oportunísticas decorrentes da existência de informação assimétrica nas transações, qual a garantia de que tais informações e ações do intermediário serão conduzidas de acordo com o interesse do principal? Percebe-se com essa questão

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que, se o intermediário pode obter ganhos em minimizar custos con-tratuais na relação agente-principal, não estão garantidas as soluções aos problemas decorrentes de ações oportunísticas. Se não existe essa garantia e se os agentes são racionais, ainda que de forma limitada, por que na prática boa parte das transações econômicas são realizadas através de intermediários? Como resposta, pode-se argumentar que a reputação é muito mais importante para uma firma intermediária do que para um agente individual. Isso porque as empresas possuem uma perspectiva de vida maior do que um indivíduo. Se a sobrevi-vência da firma depende da confiança que nela seus clientes deposi-tam, a construção de reputação no negócio pode ser uma estratégia empresarial de grande importância. Podemos também supor que a reputação possui, para um intermediário, um determinado valor que depende do número de transações. Assim, quanto maior o número de transações, maior o custo de perda da reputação. Entretanto, mesmo para uma firma não podemos superestimar tal importância. Primeiro porque nas firmas modernas existe a separação entre gerência e pro-priedade, que pode criar conflito de interesses: os interesses dos que conduzem a firma podem ser diferente dos interesses dos proprietá-rios. Estes últimos, por exemplo, podem preferir a maximização dos lucros no curto prazo, enquanto que os gerentes, por receberem um pagamento fixo independente dos resultados, podem adotar estraté-gias de maximização de longo prazo ou mesmo estratégia nenhuma. Em segundo lugar, existe a possibilidade de ocorrência de “risco sis-têmico”: numa determinada atividade econômica as dificuldades de um determinado intermediário pode se propagar para outras firmas intermediárias que carregam transações similares, se os indivíduos percebem ou mesmo desconfiam que os problemas sejam os mesmos entre os intermediários.

Considerando os efeitos potencializadores de ações oportunís-ticas por parte de um determinado intermediário, torna-se necessá-ria a existência de algum tipo de controle dessas ações. Dewatripont e Tirole (1994) propuseram, para a solução dessa questão, consi-derando especificamente o processo de intermediação financeira, centrando-se particularmente nos bancos, uma hipótese de repre-sentação, que significa a necessidade de se ter uma representação pública ou privada daqueles que depositam suas poupanças ou apli-

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cações em geral nos bancos, confiando na estratégia de administra-ção de recursos destas organizações. Entretanto, considerando as razões apresentadas anteriormente, tal hipótese estende-se a outros tipos de transações econômicas nas quais o intermediário consegue captar ganhos com a coleta e oferta de informações, elaboração de contratos e monitoramento de suas cláusulas. Em outras palavras, entendemos por hipótese de representação (ou regulação de repre-sentação) uma das formas de regulação dos mercados, seja por ins-tituições públicas ou privadas, tendo como objetivo a proteção dos interesses dos indivíduos que confiam nas ações dos intermediários, mas que, isoladamente, não tem como monitorar tais ações. Esse tipo de regulação pode ser enquadrada na categoria denominada de regulação social, que refere-se “ao controle das situações em que estão presentes externalidades e informação imperfeita ou assimé-trica” (Farina e outros, 1997, p. 115), e difere da regulação econô-mica, que é colocada em prática em situações nas quais se verifica o exercício de poder de monopólio.

Uma importante questão decorrente da regulação de represen-tação refere-se ao seu modelo: regulação pública versus regulação privada. Pode-se considerar que a regulação pública vai depender do grau com que o governo avalia as ações oportunísticas do interme-diário. E tal avaliação está intimamente ligada à ocorrência de risco sistêmico e suas consequências sobre a economia. 51 Se a preocupação do governo é maior do que a do setor privado, este último não terá interesse em regular já que, dada a possibilidade de ocorrência de ris-co sistêmico, o governo não esperará para tomar atitudes regulatórias. As firmas sabem disto e, por indução retroativa, não terão interesse em criar nenhum tipo de mecanismo regulatório, a não ser se for imposta pelo poder público. Por outro lado, se não houver a possi-bilidade de risco sistêmico, não haverá interesse de regulação priva-da, restando ao governo o papel de regulador, justificado unicamente pela hipótese de representação. Considerando o caso específico dos bancos, fica evidente a necessidade de uma regulação de representa-ção pública, tendo em vista as consequências de uma crise sistêmica no setor sobre a economia.

Cabe destacar que a regulação tem um custo para a sociedade que supõem-se menores do que o custo das ações não desejáveis. Tais

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custos decorrem do processo de monitoramento no cumprimento das regras por parte do agente regulador. No caso dos bancos, existe um custo adicional decorrente da adoção de estratégias conservadoras no tocante à seleção dos empreendimentos a serem financiados. Trata-se de um custo contratual que pode excluir do mercado uma série de empreendimentos viáveis. Nesse sentido, voltamos ao problema que pode estar caracterizando o mercado de crédito: o racionamento, em que muitos demandantes, setores ou grupos homogêneos não con-seguem o crédito, mesmo estando dispostos a pagar a taxa de juros oferecida pelo contrato de empréstimo.52 Abre-se, então, espaço para a atuação pública junto a determinados tipos de empreendimentos, cuja necessidade de financiamento pode não estar sendo atendida pelo sistema financeiro privado. Esse pode ser o caso de financia-mentos de longo prazo, cujos empreendimentos dependem de inú-meros fatores como tecnologia disponível, flutuações econômicas, políticas macroeconômicas etc. O poder de previsão desses fatores decresce quando se amplia o prazo do retorno do investimento. A situação é mais característica nos financiamentos no qual é grande a influência de fatores aleatórios, como no caso da agricultura ou para pequenas ou novas empresas, por estas possuírem limitada experiên-cia ou reputação. Essa característica dos financiamentos produtivos justifica porque os bancos comerciais têm tido limitada responsa-bilidade sobre créditos de longo prazo, bem como a existência de instituições governamentais de financiamento e desenvolvimento em diversos países.53 O grande problema dessa discussão é que não existe qualquer justificativa que demonstre a capacidade do poder público em tratar os problemas de risco moral e seleção adversa de modo superior a dos bancos privados. Em outras palavras, os problemas de assimetria de informação também estão presentes no setor público, e talvez com maior intensidade, conforme destaca Stiglitz (1990, p. 282-283):

"Alterar a esfera de decisão não altera as dificuldades associadas à seleção e à monitoração. Mas para piorar a questão, o governo, com frequência, não tem incentivos para assegurar que ele (ou seus agentes) faça um bom trabalho na seleção e na monitoração de

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empréstimos. O bolso profundo do governo significa que quaisquer perdas podem ser facilmente compensadas. Além disso, como os critérios econômicos são, frequentemente, suplementados por outros critérios (poupar empregos, desenvolvimento regional), as perdas podem não ser responsabilidade da incapacidade de fazer julgamentos sobre solvência, mas dos critérios não econômicos que tem sido impostos. A ausência do teste de controle do mercado significa que o crédito pode ser alocado com base no favoritismo político: o subsídio associado à cobrança de taxas de juros mais baixas do que aquelas que o risco do empréstimo exigiria."

Infelizmente, o sistema bancário privado não necessariamente atende aos interesses da sociedade no que diz respeito à alocação de recursos. Talvez a ineficiência do governo, apontada acima por Sti-glitz, se é que ocorre, pode ser considerada como mais um custo re-lacionado com a intermediação financeira. A grande questão é saber se a sociedade está disposta a arcar com esse custo. Trata-se de uma questão também política que escapa das propostas deste trabalho. De qualquer forma, a possibilidade de atuação de agências oficiais de desenvolvimento não se constitui num contrassenso econômico. Por outro lado, é possível criar novos arranjos contratuais que viabilizem o fluxo de crédito para setores excluídos, sem a necessidade de parti-cipação do Estado. Este é o caso da tecnologia do microcrédito que exploraremos a seguir.

A “tecnologia” do microcrédito

Existem várias razões para que determinados tipos de peque-nos empreendimentos sejam discriminados do sistema tradicional de crédito. Conforme já analisado, várias situações de financiamen-to tornam imperativa a existência de atividades de verificação ou monitoração, tendo como objetivo induzir a firma a empenhar-se adequadamente na condução do empreendimento financiado. Tais atividades, entretanto, resultam em custos para o intermediário fi-nanceiro, custos estes representados, no modelo anteriormente de-senvolvido, pelo custo de verificação (CV). É bastante razoável su-

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por que exista um valor mínimo fixo para esse custo justificado pela necessidade de manutenção de uma estrutura mínima de adminis-tração das carteiras de empréstimos do banco. Se isso é verdade, existe também um valor mínimo de empréstimo, abaixo do qual o banco não terá interesse em oferecer o contrato de dívida, prejudi-cando assim pequenos empreendimentos, dado o pequeno volume de recursos demandado. Além desse ponto, os custos de informação ligados à elaboração de contratos e ao processo de seleção e moni-toração nas operações de empréstimos que visam a minimizar os problemas de informação (seleção adversa e risco moral) podem levar o sistema financeiro a apresentar um caráter conservador, ex-cluindo segmentos em que tais custos são elevados ou aqueles em que os empresários não dispõem de garantias reais. Esse, mais uma vez, pode ser o caso dos pequenos empreendimentos.54

O problema é particularmente delicado em países menos desen-volvidos, onde se verifica grande parcela da população próxima ou até mesmo abaixo da linha de pobreza. Em tais países, o setor informal e as micro e pequenas empresas assumem importante papel na geração de emprego e renda. Entretanto, se tais setores ou firmas não conse-guem recursos necessários aos seus investimentos, ficam restritos aos lucros correntes, que muitas vezes são suficientes apenas para a ma-nutenção das necessidades básicas das famílias. Assim, nesses países, o mercado de crédito pode não estar cumprindo eficientemente o seu papel de indutor do desenvolvimento.

Inúmeras experiências internacionais têm demonstrado que, apesar dos problemas de informação e custos operacionais pre-sentes nos empréstimos, é possível criar arranjos contratuais que viabilizem o crédito a pequenos empreendimentos. Uma das ex-periências mais antigas e conhecidas deve-se à instituição bancária denominada Gramenn Bank ou Banco do Povo, de Bangladesh, que vem atuando desde a década de 70 em praticamente todos os povoados do país. Desde o início de suas operações, o banco vem descartando a exigência de garantias reais para a concessão dos em-préstimos, por considerá-las discriminatórias contra os pequenos empreendimentos. A tabela a seguir traduz um pouco do sucesso dessa instituição:

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Tabela 1. Dados históricos do Grameen Bank 1980/2010

Fonte: site oficial do Gramenn Bank (http://www.grameen-info.org/index.php?option=com_content&task=view&id=177&Itemid=503) acesso em 15 de setembro de 2010.

O grande sucesso dessa e de várias outras experiências de micro-crédito está exatamente no tipo de arranjo contratual presente em suas operações de crédito e que busca reduzir o custo de seleção e monitoração do empréstimo, além de criar incentivos ao pagamento do mesmo, contribuindo assim para reduzir o risco de inadimplên-cia das operações. Tal arranjo é desenhado a partir de um sistema de fiança solidária, em que o empréstimo é concedido coletivamente a grupos solidários, de quatro ou cinco pessoas por exemplo. Ini-cialmente, apenas dois membros do grupo recebem o empréstimo. Condicionado ao cumprimento contratual por parte desses dois membros, é concedido, num segundo momento, o empréstimo aos demais. Em cada grupo, todos respondem pela dívida contraída e pelo cumprimento das cláusulas contratuais, particularmente com relação aos prazos de reembolso dos empréstimos. Cria-se assim um sistema de autosseleção e automonitoração dentro do grupo, que tende a reduzir os problemas de seleção adversa e risco moral, além de diminuir os custos de gestão das carteiras de empréstimo pelo banco (representado pelo CV definido na seção 2). Por outro lado, os empréstimos em geral são de curto prazo (12 meses em média) e a sua renovação, inclusive com a possibilidade de uma quantia superior a anteriormente concedida, depende da quitação

Descrição 1980 1985 1990 1995 2000 2005 2009Empréstimos (US$ milhões) - desembolso ano

1,10 16,5 68,73 333,17 268,44 430,36 1.150,54

N° de pessoas contempladas

14.830 171.622 869.538 2.065.661 2.378.356 5.579.399 7.970.616

Valor médio dos empréstimos (US$)

74,1 96,1 79,0 161,3 112,9 77,1 144,35

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das dívidas anteriores dentro dos prazos estabelecidos. Nesse sen-tido, a possibilidade de dispor de novos empréstimos constitui-se num grande incentivo ao reembolso da dívida.

Além das características gerais dos contratos baseados na fiança solidária, existem ainda algumas características particulares inerentes às micro e pequenas empresas que atuam no sentido de reduzir o risco das operações de microcrédito. Em primeiro lugar, pode-se argumen-tar que prevalece um grande incentivo ao pequeno empreendedor em conduzir seu negócio de forma adequada. Tal incentivo é baseado em duas características dos pequenos empreendimentos: i) constitui-se em fonte quase que exclusiva de sobrevivência do empreendedor e de sua família55 e ii) verifica-se a característica da não separação entre gerência e propriedade, o que é um incentivo à condução ótima do negócio.56 Em segundo lugar, a estrutura simplificada e de pequeno porte de tais empreendimentos permite grande poder de manobra em respostas a mudanças demandadas pelo mercado ou decorrentes de alterações não antecipadas na conjuntura macroeconômica.

O que se pode concluir desta breve aplicação é que é possível “desenhar” arranjos contratuais e incentivos outros que viabilizem empreendimentos que normalmente são excluídos do sistema finan-ceiro tradicional em decorrência de problemas de informação, sem a necessária participação do Estado. Outras aplicações neste sentido podem ser encontradas em empreendimentos de longo prazo, com a tecnologia do Project finance, ou nos empreendimentos agrícolas, com a participação de cooperativas de crédito.

Desafio: capacidade inovadora

Os recentes desenvolvimentos na Economia da Informação têm trazido importantes contribuições para a compreensão do processo de intermediação financeira, principalmente no que diz respeito aos efeitos alocativos decorrentes dos problemas de informação. Ainda que as possibilidades teóricas decorrentes dessa abordagem sejam maiores do que as respostas oferecidas pela teoria, podemos tirar al-gumas importantes conclusões.

Uma primeira conclusão refere-se à possibilidade dos mercados de crédito não atingirem a situação ótima característica dos mercados

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competitivos tendo em vista a existência de problemas de informação assimétrica nas operações de empréstimo. Vimos que tais mercados podem ser caracterizados pelo racionamento, excluindo empreendi-mentos viáveis sob o ponto de vista do retorno de empréstimo. Uma conclusão aparentemente óbvia, mas nem sempre levada em conta pela teoria econômica.

Em segundo lugar, a possibilidade de ocorrência de problemas de risco moral e seleção adversa tende a produzir contratos de dívida, cuja eficiência e eficácia dependem principalmente das atividades de verificação e monitoração das ações daqueles que conduzem os em-preendimentos financiados, o que representa um custo adicional à alocação de recursos dentro da economia.

Terceiro, em termos agregados, a eficiência dos contratos de dí-vida está condicionada à existência de um intermediário financeiro cuja vantagem está na sua capacidade em reduzir custos de verifica-ção e monitoração, garantindo assim a alocação intertemporal dos recursos com um risco menor do que em transações diretas.

Quarto, ainda que a existência de contratos de dívida e de in-termediários financeiros possa reduzir os problemas decorrentes da existência de informação assimétrica nos mercados de crédito, nada garante que tais problemas sejam totalmente eliminados, havendo a necessidade de mecanismos que garantam que as ações do banco sejam cumpridas de acordo com o interesse de seus clientes. Trata-se de mais uma contribuição teórica ao estudo da regulação prudencial ou de representação no sistema financeiro.

Quinto, não se pode desconsiderar o fato de que os bancos po-dem penalizar, em suas operações de empréstimo, determinados se-tores, regiões geográficas ou grupos homogêneos com o objetivo de reduzir riscos nas operações de crédito. Tais penalidades decorrem, por exemplo, da importância das penalidades institucionais em si-tuações de inadimplência, a tendência de especialização dos bancos em determinados setores, grupos homogêneos ou áreas geográficas como forma de minimizar custos de seleção e monitoramento e a necessidade da formalização de contratos ótimos que surgem como respostas institucionais aos problemas decorrentes da presença de assimetria de informação nos mercados de crédito, impondo custos adicionais aos empréstimos na economia. Isso abre a possibilidade ou

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mesmo cria a necessidade para a atuação de agências específicas de financiamento, se a sociedade entende que é fundamental a solução de problemas alocativos nos mercados de crédito.

Por último, pode-se pensar em arranjos contratuais alternativos e incentivos outros que viabilizem o crédito para empreendimentos exclu-ídos do sistema financeiro tradicional. Conforme breve análise do caso da tecnologia do microcrédito, vimos que tais arranjos e incentivos não necessariamente dependem da atuação de agências oficiais de crédito.

Cabe destacar que os modelos analisados ao longo do capítulo, quando formalizados num contexto de Teoria dos Jogos, constituem-se em jogos realizados apenas uma única vez. A possibilidade de re-petição dos jogos, algo bastante razoável no mundo real, faz com que a construção de reputação nos mercados de crédito possa ser uma importante estratégia para as firmas, já que elas têm uma perspec-tiva de vida significativamente maior do que o período de validade do contrato de empréstimo. Nesse sentido, a necessidade de novos financiamentos pode tornar necessária a construção de reputação de bom pagador, que estaria intimamente ligado à escolha dos empreen-dimentos adequados à capacidade de pagamento do empréstimo ou à capacidade empresarial de conduzir suas atividades num mundo de risco. No entanto, não podemos superestimar essa importância. Isso porque a reputação só é relevante para aquelas firmas que desejam fi-nanciar novos investimentos ou adotar novas estratégias de expansão. Nesse sentido, a reputação só é uma variável importante num modelo de horizonte infinito. Se em algum ponto do tempo a empresa espera cessar sua estratégia de crescimento, o problema pode ser tratado a partir dos jogos analisados neste capítulo. Por outro lado, mesmo nos modelos de horizonte infinito, a reputação pode ter um papel limi-tado, se a partir de um determinado período a firma passar a adotar uma estratégia de crescimento com recursos próprios.57 58 Além do mais, as consequências de uma situação de falência pode forçar, em alguns casos, novos financiamentos, independente do fato da referida situação ter sido consequência de um processo de seleção adversa ou de um empenho inadequado do tomador. Por fim, a variável repu-tação não tem sentido para o caso de firmas que pretendem entrar no mercado. Assim, se é verdade que a reputação constitui-se numa variável de sinalização do risco do empreendimento ou do “caráter” do

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tomador, e se os bancos utilizam-se desta variável para a concessão de empréstimos, o mercado de crédito pode estar penalizando novas firmas e/ou novos empreendimentos, o que pode prejudicar a capaci-dade inovadora na economia.

* Márcio Bobik Braga - Professor livre docente da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo – FEA/USP – campus de Ribeirão Preto e do Prolam/USP – Programa de Pós graduação em Integração da América Latina da USP

Notas(32) Na verdade, a preocupação com o processo de criação de crédito antecede os desenvolvimen-tos no âmbito da economia da informação. Ver, por exemplo, os trabalhos clássicos de Gurley e Shaw (1955 e 1960). Uma excelente revisão bibliográfica sobre como a teoria econômica tratou historicamente o processo de intermediação financeira pode ser encontrado em Gertler (1988).(33) Além do trabalho de Stiglitz e Weiss (1981), modelos de empréstimo que pressupõe a exis-tência de seleção adversa podem ser encontrados Jafee e Russell (1976), Bester (1985 e 1987), Besanko e Thakor (1987), Williamson (1986 e 1987), e Dewatripont e Maskin (1995), dentre outros. Um trabalho mais denso e recente sobre o impacto da hipótese da informação assimétrica sobre os resultados da teoria econômica tradicional pode ser encontrado em Stiglitz (2002).(34) Sobre os detalhes analíticos deste e de outros argumentos que justificam a forma da curva de oferta visualizada no gráfico II, ver Freixas e Rochet (1997).(35) Esta formalização baseia-se em Takayama (1995), com algumas adaptações feitas pelo autor. (36) O colateral constitui-se em garantias reais oferecidas pelo tomador do crédito.(37) Isto significa que E(Y2) > E(Y1) mas var (Y2) > var (Y1). Esta é uma hipótese implí-cita no modelo Stiglitz e Weiss (1981).(38) Precisamos provar que πf1(r) < πf2(r) para cada r. Ou seja, temos que provar que:

(1 - q1).[Y1 - (1 + r).X] < (1 – q2).[Y2 - (1 + r).X]; ou

(1 - q1). Y1 - (1 - q1) . (1 + r) . X < (1 – q2). Y2 - (1 – q2) . (1 + r) . X.

Como (1 - q1). Y1 < (1 – q2), Y2, q1 < q2 e desde que Yi > (1 + r) . X, i = 1,2, temos como válida a desigualdade proposta.(39) Considerando r* e r** tal que πf1(r*) = 0 e πf2(r**) = 0, supondo que πf1(r) < πf2(r) e desde que dπfi(r)/dr <0, i = 1,2, segue que r* < r**.(40) Considerando W = 0, podemos verificar que πf1(r) < πf2(r) para cada r. Tal desigualdade pode ser escrita da seguinte maneira:

(1 – q2) . Y2 – (1 – q1). Y1 > (1 – q2). (1 + r). X – (1 – q1). (1 + r). X.

Se agora considerarmos W > 0, a desigualdade pode ser escrita da seguinte forma:

(1 – q2) . Y2 – (1 – q1). Y1 > (1 – q2). (1 + r). X – (1 – q1). (1 + r). X + W. (q2 – q1).

Assim, torna-se fácil demonstrar que existe um determinado valor para W a partir do qual a desigualdade acima não mais se verifica.

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(41) Na verdade, W poderia ser entendido como Colateral. Entretanto, é mais adequado consi-derar W como sendo penalidades de caráter mais amplo do que o colateral. Isso porque há um limite para as garantias reais, limite este que pode invalidar a prova realizada na nota de nº 17.(42) O estado da natureza representa eventos aleatórios que influem no resultado do em-preendimento, como por exemplo, o comportamento climático no caso da agricultura ou a demanda futura por um determinado bem.(43) Dadas essas três justificativas, deve-se destacar que as ameaças do principal em fazer valer as cláusulas contratuais devem ser críveis. Muitas vezes, no entanto, é mais vantajoso para o principal a renegociação do contrato. Nesse caso, pode não ter sentido a ideia de contrato ótimo. Discutiremos esse ponto mais adiante.(44) Neste e nos outros exemplos a seguir estaremos desconsiderando, por simplicidade, a taxa de captação do banco.(45) Tal resultado, numa primeira análise, é contrário à ideia de que a diversificação das operações financeiras tendem a reduzir o risco de uma determinada carteira de investimen-to. Entretanto, a diversificação pode ser entendida sob o ponto de vista da totalidade das operações ativas, que incluem não apenas os empréstimos, mas aplicações em outros ativos financeiros. Por outro lado, a concentração nas operações de crédito criam um novo proble-ma: o risco sistêmico, que pode comprometer toda a carteira de empréstimo do banco. Não estamos considerando tal possibilidade.(46) Não tem muito sentido se falar em colaterização total em dinheiro. Se esta existe, por que então o empresário busca recursos de terceiro para financiar seus projetos?(47) Mais uma vez, por simplicidade, estamos desconsiderando o custo de captação do banco.(48) Nesta seção, estamos trabalhando com a terminologia utilizada nos modelos agente/principal. Na verdade, tais modelos são utilizados na análise de modelos com risco moral, envolvendo, por exemplo, uma relação contratual trabalhista em que o empregado escolhe ações que não são desejáveis pelo empregador. Entretanto, seguindo Rasmusen (1994), uti-lizaremos o termo agente/principal num contexto mais geral, em que existe uma relação entre dois indivíduos, sendo que um detém informação privilegiada, não compartilhada pela outra parte. Para um maior aprofundamento acerca das características de um modelo do tipo agente/principal, ver Stiglitz (1989).(49) A busca de microfundamentos para processo de intermediação e para a existência de instituições de troca é conhecido na literatura de finanças como microestrutura de mercado (market microstructure). Sobre a importância e principais pontos para a busca desses micro-fundamentos, ver Spulber (1996), que inspirou as ideias desta seção.(50) Não estamos querendo dizer com isto que a existência de assimetria de informação constitui-se na única justificativa para a existência de intermediários econômicos. Apenas destacando a importância desta hipótese, que constitui a base teórica deste artigo.(51) Existe também um fator político. Se os indivíduos levam em conta os problemas de um risco sistêmico sobre a economia na avaliação de um determinado governo, este não hesitará em intervir se a relação for suficiente para reverter uma boa avaliação.(52) Sobre este ponto, ver Mankiw (1986).(53) Sobre a importância das instituições de financiamento e desenvolvimento, ver Gordon (1983).(54) Sobre a existência de problemas alocativos decorrentes de custos contratuais nas opera-ções de crédito, ver, por exemplo, Hoff e Stiglitz (1990) e Stiglitz (1990).(55) Este pode ser o caso de um W muito alto no modelo desenvolvido na seção "O contrato ótimo". (56) Sob as implicações da separação dos conceitos de gerência e propriedade, ver Jensen, M. e Meckling (1976).(57) O fato da firma não pagar o empréstimo em situações nas quais ela tem condições pode viabilizar novos investimentos com recursos próprios.(58) Sobre o papel limitado da reputação, ver Eaton e outros (1986).

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Comunicação e cultura no diálogo entre agentes econômicos

Cremilda Medina*

Não basta optar intelectualmente pelo pensar complexo. As práticas do Diálogo Social – seja através dos mediadores-autores da Co-

municação, seja em outras mediações com a Ciência e a Sociedade, edu-cador e educando – resvalam, no cotidiano, para as reduções esquemáti-cas ou políticas. A oficina da complexidade não dá trégua. Que o digam os produtores das narrativas do Projeto Plural e a Crise de Paradigmas.

Quando, em 1990, se tomava a iniciativa de organizar o 1° Semi-nário Transdisciplinar, na Escola de Comunicações e Artes da Uni-versidade de São Paulo, e se propunha a discussão da crise de para-digmas e o discurso fragmentalista da ciência, já estavam em pauta os desafios do deslocamento dos reducionismos da visão de mundo para formas complexas que integrem o sentir, o pensar e o agir perante as circunstâncias emergentes.

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O registro que saiu no ano seguinte, sob o título Novo Pacto da Ciência, título que gerou a coletânea que reúne onze edições, reunia depoimentos de especialistas de várias áreas do conhecimento cujo diagnóstico apontava para a difícil caminhada inter e transdisciplinar. No âmbito estrito das disciplinas científicas havia e há constante-mente uma discussão epistemológica que procura flagrar a incom-pletude dos saberes especializados e os riscos que a fragmentação e a dogmatização de certas verdades, princípios e leis representam, ao se considerar pragmaticamente o esforço da ciência no sentido de dar respostas às necessidades humanas.

Os dilemas éticos, a estratificação das ferramentas mentais e a inaptidão para criar novos paradigmas se fizeram presentes tanto no debate interdisciplinar quanto nos ensaios que foram editados na se-gunda parte dos anais do 1° Seminário Transdisciplinar. Da Física à Psicologia, da Sociologia à Biologia, da Química à Comunicação, da Matemática à Medicina, os debatedores sublinharam a crise con-temporânea dos paradigmas mecanicistas, das reduções simplistas na busca das verdades e da atrofia da compreensão complexa gerada na entrega fácil à explicação superficial. Da sofisticação das lógicas pa-raconsistentes na matemática à discussão da verdade incomum com-preendida pela psiquiatria/psicologia nas doenças mentais, torna-se visível uma trilha muito árdua para quem constitui corpus de conhe-cimentos rigorosos e pretende contribuir para uma melhor condição de vida no Brasil e no planeta.

As formações discursivas que se encontram documentadas no primeiro livro da série Novo Pacto da Ciência, transcendem os im-passes próprios da Psicanálise ou da Química para se articularem em cadeias de nexos em que o elo indiscutível constitui o sonho hu-mano de qualidade de vida. À pergunta para que serve o conheci-mento científico, correspondem respostas hipotéticas que se balizam nas aplicações socioindividuais. A questão ética dá um laço inter e transdisciplinar. E no primeiro seminário debatiam-se as diferentes áreas de pesquisa, sob o esforço de regência da comunicação social, e os encontros posteriores foram pautados por temas emergentes nas sociedades contemporâneas.

Um dos traços unitários do Saber Plural provém da pesquisa ori-ginária na Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade

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de São Paulo, em que a “dialogia” constitui a base disciplinar da área. Em uma das edições da série Novo Pacto da Ciência, sob o título Ci-ência e sociedade, mediações jornalísticas (2005), deteve-se sobre o tema, e o seminário foi abrigado em oportuno espaço, o da Estação Ciência da Universidade de São Paulo. A reflexão desenvolvida por pesqui-sadores e comunicadores em torno da informação científica e as me-diações sociais se lançou para outra visão, a da comunicação ciência-sociedade, ou como gosto de cunhar, o “signo da relação”.

À época dirigindo a Coordenadoria de Comunicação Social, que reúne o complexo de mídias da Universidade de São Paulo, vinha implementando, pragmaticamente, a mutação entre o conceito de di-vulgação científica – um vetor da produção de conhecimento dirigido à sociedade – para a noção relacional em que tanto a ciência divulga seus resultados quanto a sociedade dialoga com a ciência a respeito de suas demandas humanas e culturais. Dois seminários na Estação Ciência da USP, em 2003 e em 2004, reforçaram o diagnóstico da necessária mutação de visão de mundo e atitudes tanto por parte dos cientistas quanto por parte dos comunicadores (jornalistas, relações públicas, publicitários, documentalistas).

A proposta do “signo da relação”, de se transformar numa prática cotidiana na Estação Ciência, originou outro que seria instalado e gerido pela Coordenadoria de Comunicação Social da USP. A Bo-lha de Comunicação constituiria um laboratório aberto aos visitantes para conhecerem e participarem da operação em que se processa a informação científica nas mídias da USP. Esta e outras iniciativas vinham no bojo das ações comunicativas desencadeadas no âmbito da concepção que regia o Signo da Relação no período de 1999 a 2006. Esta política de comunicação social decorria, por sua vez, da pesquisa desenvolvida na Escola de Comunicações e Artes no ensino de graduação e de pós-graduação, em projetos como o Novo Pacto da Ciência. O dado de coerência que articula estes universos – ciência, sociedade e comunicação – é a busca incessante de uma linguagem inovadora que promova a dialogia, que rompa o vetor autoritário do difusionismo e que construa a relação ou a efetiva comunicação social.

Mas entre o discurso e as práticas comunicativas há obstáculos em todas as esferas envolvidas. Esses, os desafios do Saber Plural que frequentam os inúmeros encontros nos últimos vinte anos e

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afloram em novas tonalidades a cada novo seminário. Não é pois de estranhar, para os grupos que se agregam a esta linha de pesquisa, que se chegue, em 2010, ao tema do microcrédito. Já se passou pelas identidades do pensamento latino-americano, ou como intitulou-se o segundo registro do Novo Pacto da Ciência, Do Hemisfério Sol; se sucederam as abordagens das mutações no mundo do trabalho, as estratégias do saber plural, a crise do Estado Nacional, as questões ambientais, o balanço de dez anos de prática inter e transdiscipli-nar, a relação ciência-sociedade, energia, meio-ambiente e comuni-cação; e, na mais recente edição, a retrospectiva latino-americana do direito à informação.

As noções de excelência, hierarquia dos saberes e sabedorias, concepções de desenvolvimento, tecnologias e modernização, meto-dologias e experimentações de ponta – todo esse arsenal acadêmi-co que rege as fronteiras departamentais, os cânones das ciências da Terra, das biológicas e das humanas, ficam ligeiramente esfumaçados quando, em primeiro plano, emergem os desafios transdisciplinares. Tomando como exemplo o conceito bastante desgastado de desen-volvimento, apanágio não só da Economia como de tantas outras disciplinas científicas, é bom lembrar a síntese da reflexão de Edgar Morin e Anne Brigitte Kern59: “O desenvolvimento é uma finalida-de, mas deve deixar de ser uma finalidade míope ou uma finalidade-término. A finalidade do desenvolvimento submete-se ela própria a outras finalidades. Quais? Viver verdadeiramente. Viver melhor.” Parece tão simples este enunciado. Mas Morin sabe muito bem quão difícil é relacionar uma finalidade explícita e controlável, material, a outras finalidades implícitas, não controláveis e imateriais. Viver no conflito das verdades60 e um maior grau de felicidade são experiências que acrescem finalidades incalculáveis, imponderáveis, imprevisíveis.

Não é por acaso que se expressa esta síntese na obra de Edgar Morin. O fato de a frase remeter para a relação das finalidades do projeto desenvolvimentista com a qualidade de vida, aflora, em um incansável ensaísta, no bojo do pensamento complexo. Nas várias confluências com Morin, o Projeto Plural tentou pôr em curso uma discussão e uma prática complexas. O momento inaugural, em 1990, expressa, à partida, a complexidade inter e transdisciplinar no âmbito do debate de ideias, correntes teóricas, paradigmas. A partir do se-

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gundo exemplar – Do Hemisfério Sol –, desdobram-se três estratégias comunicativas: a dos seminários, a dos ensaios e a das reportagens-ensaio. No caso dos primeiros, cada vez mais se privilegia, nos últimos vinte anos do projeto, a ampliação da noção de ciência e disciplinas científicas para a noção de saber plural (título do terceiro exemplar), em que tomam assento à mesa de debates especialistas, artistas, vo-calizadores do saber local e do cotidiano e pensadores que assumem os riscos do saber filosófico e transcendente. Tanto nos seminários quanto nas autorias individualizadas, percebe-se uma inquietude que gradualmente desloca o acento da crise de paradigmas no campo das correntes científicas para as visões de mundo, com seu inerente en-raizamento cultural.

No caso da terceira estratégia, e é ela que pretendo trazer ao plano do desnudamento neste instante, a narrativa da comunicação social, os impulsos criadores vão ao encontro do mundo latente, da contemporaneidade mais fugídia. O primeiro exemplar propõe a ação do repórter-autor em campo em um texto que assino – “Jornalismo e a Epistemologia da Complexidade”. Nesse último tópico do livro, quase um pingente perante o seminário transdisciplinar e artigos de especialistas das três grandes áreas da Ciência, há a tímida aposta na contribuição do comunicador social, especialista em articular os dis-cursos da atualidade. A esse produtor cultural se atribui a responsa-bilidade de uma nova narrativa – solidária, complexa e poética. Pois a partir do Hemisfério Sol, paralelamente a outra experiência na ECA, a do Projeto São Paulo de Perfil, desenvolve-se uma oficina de um híbrido interdisciplinar: a reportagem e o ensaio. Da reportagem, a proximidade e o contato com comportamentos, identidades, diag-nósticos e prognósticos que afloram das situações mais imediatas; do ensaio, a narrativa polifônica e polissêmica regida por um afeto de cumplicidade, por um pensar complexo e uma intuição criadora que se manifesta na palavra poética.

No caso da coleção de livros-reportagem sobre São Paulo (co-leção reúne em 26 livros, aproximadamente 500 autores, alunos de graduação), há à disposição uma dissertação de mestrado de autoria do jornalista colombiano Raul Hernando Osório Vargas, “A repor-tagem literária no limiar do século 21" (o ato de reportar, os jovens narradores e o Projeto São Paulo de Perfil), defendida na ECA em

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março de 1999. O que efetivamente ocupa a reflexão de Raul Vargas, doutor pela USP e hoje professor universitário na Colômbia, é a prá-tica complexa da reportagem-ensaio no Plural.

Ao levantar tendências, resgatar comportamentos e histórias dos protagonistas sociais ou interpretar as situações contemporâne-as, a reportagem-ensaio conta com os conhecimentos acumulados pelo Jornalismo na Modernidade Ocidental. Firmou-se, sobretudo ao longo dos dois últimos séculos, o rigor da investigação que deu ao Jornalismo um estatuto de veracidade e credibilidade capaz de investí-lo da força de Quarto Poder nas democracias representati-vas. No imaginário coletivo e, em particular, nos meios profissionais, acredita-se que a informação de atualidade se qualifica na busca da verdade com os rigores da objetividade jornalística.

"De certa forma, a metodologia não está muito distante do trabalho empírico da sociologia explicativa, seguindo seus passos em técnicas que apenas incorporam como uma importante especificidade, o desempenho ágil, veloz, na observação de campo, quanto no levantamento de dados e questionários ou entrevistas aplicadas às fontes de informação. A pavimentação metodológica das ciências sociais sempre esteve presente no projeto de aperfeiçoamento da investigação dos contextos imediatos, objeto da cobertura jornalística. Os resultados históricos destes procedimentos não podem ser negados tanto no que se nomeou Jornalismo Noticioso, quanto no que se aprofundou no Jornalismo Investigativo ou Jornalismo Interpretativo. Os casos em que a grande reportagem interveio nas sociedades democráticas enquanto poder de denúncia ou poder regulador perante os três poderes constituídos já constituem uma antologia que está guardada na memória coletiva."

Mas assim como a sociologia explicativa, o Jornalismo Investi-gativo, enfrenta os desafios de uma profunda crise de paradigmas. O pressuposto da objetividade, exigência metodológica para uma co-bertura isenta dos fatos, na realidade “encobre” os complexos contex-tos. Estes são filtrados por valores e opções ideológicas, quase sempre não conscientes da parte do autor. Para atuar numa situação humana

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altamente cifrada pela cultura, pelas múltiplas forças políticas, eco-nômicas, sociais e individualizadas nos sujeitos-protagonistas, o pro-fissional da informação de atualidade precisaria de uma capacidade sobre-humana para decifrá-la. A interpretação, no sentido em que Freud a aplicou aos sonhos, pretende esse caminho. Mas a fronteira estrita entre sujeito-repórter e objeto-fonte de informação é atraves-sada pela ideologia do autor e não pelos desafios de compreensão do Outro ou da situação assim encarada como objeto de investigação. Ao cobrir determinado contexto e seus protagonistas, é mais usual uma narrativa que “encobre” do que um ensaio que “descobre”.

A crise do paradigma da objetividade foi um dos temas funda-mentais do primeiro registro do Projeto Plural, explícita nos debates interdisciplinares e nos ensaios da segunda parte do Novo Pacto da Ciência. O físico Newton Bernardes, o psicanalista Walter Trinca e o psicólogo João Freyzer-Pereira discutem a cisão sujeito-objeto e propõem a relação sujeito-sujeito. Mas esta já constitui relativa una-nimidade no âmbito da epistemologia, a gramática jornalística ainda cultiva nos discursos públicos e empresariais o dogma da busca da verdade enquanto objeto controlável por técnicas investigativas. Na ilusão da ótica objetivista, não se percebem os fatores que impedem a relação sujeito-sujeito, essencial para que se descubram algumas das forças do processo e se arme uma narrativa dos fatos contemporâneos que ensaie, ao mesmo tempo, a polifonia e a polissemia do presente, o enraizamento na história, na cultura e nas identidades míticas, bem como a enunciação de tendências projetivas.

A equipe de comunicadores do Projeto Plural vem discutindo pro-fundamente tais vertentes epistemológicas seja na graduação, seja na pós-graduação e aperfeiçoamento profissionais. A proximidade com as demais áreas de conhecimento tem reforçado o sofrido aprendizado do pensar complexo, o sentir solidário e o agir criativo61. No entanto, nem sempre esta disposição afetiva, esta adesão racional se expressa em descobertas complexas da realidade social e dos diversificados e contra-ditórios campos de significados que aí se digladiam. Quando se trata de Brasil, então, fica mais difícil pôr em prática a reportagem-ensaio que vá a campo para compreender e não “explicar” as situações sociais com a munição mental de pressupostos ideológicos. Estes sempre re-ferendados pela aparência de atitudes e ideias de esquerda.

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Há situações-limite, no entanto, como a fome, a tortura, a guerra e a violência contra a humanidade, em que o signo da solidarieda-de é indiscutível na relação sujeito-sujeito. A teia de adesão corre aceleradamente pelos afetos e o autor de determinada narrativa da contemporaneidade não se dá ao luxo de argumentar exaustivamente sobre a complexidade dos contextos, explode na narrativa indigna-da. O relato transpira emoção, a história de vida e o depoimento do protagonista social, em geral, anti-herói anônimo, se expressam através da poética dos sentidos. São momentos em que a reportagem e o texto literário borram a fronteira dos gêneros. A humanização daquele perfil, daquele caso, transcende a cobertura da atualidade e redescobre a condição mítica. Em dez anos de buscas, essas verdades humanas aparecem nos seis exemplares do Novo Pacto da Ciência, pontilhando de esperança a aventura dos anônimos da rua, sejam ca-tadores de aparas, dentistas da utopia anticárie, sem-teto e sem-terra na luta da sobrevivência, camelôs, meninos de rua, donas de casa das feiras, donas também da liderança nas periferias urbanas, emprega-das domésticas, artesãos da alegria nas unidades de terapia intensiva, operários agentes de novos papéis nas mutações da industrialização, idosos e aposentados na afirmação da vida, índios, negros, mestiços dando o contorno das brasilidades.

Se o sociólogo Milton Greco escreveu o livro A aventura hu-mana entre o Real e o Imaginário62, seus discípulos da Comunica-ção Social têm espalhado pequenas e raras sagas ao longo do Pro-jeto Plural e concentradamente no miolo do Projeto São Paulo de Perfil. Há uma prática constante, a de colher, no dia a dia dos pro-tagonistas anônimos, a afirmação das marcas humanas no caos da História. Sente-se, porém, certa simplificação quando a proposta ultrapassa as histórias de vida e se pretende remetê-las para os contextos social, político eeconômico. Ao trabalhar com as ques-tões candentes da contemporaneidade – Estado Nacional, demo-cracia representativa e democracia participativa, industrialização e sociedade de mercado, nacionalismo e privatizações, globalização e emprego, socialismo e liberalismo, neoliberalismo e social de-mocracia, orçamentos e mecanismos de corrupção, modernidade e modernização, ética e moral na administração pública, dilemas da genética, eutanásia, catástrofes ambientais etc. – quase sempre a

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interpretação peca pelos resvalos ideológicos e não põe em prática a decifração complexa.

Afinal, aparece aí a necessidade de mobilizar na prática a teoria das lógicas consistentes e das lógicas paraconsistentes, da intercausa-lidade, das forças contraditórias, da não aplicação dos maniqueísmos, da noção de que não existe um universo sólido mas sim um universo poroso tal qual em enxame de abelhas, da compreensão do que é e do que não é controlável, o caos e o caos dinâmico. Mas vá o bem-intencionado aplicar estas ferramentas mentais contemporâneas a uma situação política ou partidária... A tentação é a da inércia dos clichês judicativos, uma tomada de posição apriorística, uma verdade fechada. Fica então difícil interpretar o presente que sempre está ci-frado numa complexidade não aparente. Da leitura de um documen-to ou de uma corrente bibliográfica à captação de depoimentos que representem as forças de significação, a inércia reforça a monologia autoritária. Esquece-se então o complexo conflitivo e se elegem os sentidos “simpáticos” do marketing.

Se o processo investigativo clássico está contaminado pela falá-cia da objetividade, a boa intenção autoral, aquela que se posiciona do lado dos sujeitos oprimidos, não tem garantia de qualidade para propor um determinado diagnóstico e prognóstico revolucionário só porque se alinha às bandeiras político-partidárias. Aí estamos no eterno mito de Sísifo: é preciso recomeçar e mover esse impulso ide-ológico para a decifração complexa. Exemplos de incompletude no exercício do pensar complexo encontram-se, só para citar a produção do Projeto Plural, nas reportagens sobre o Estado brasileiro hoje. Ou na leitura das mutações do ABC paulista, ou ainda nas alternativas de trabalho que não cabem na sociedade de mercado capitalista. Para se objetivar um discurso, aqui cognominado de reportagem-ensaio, é preciso desobstruir o terreno encoberto pelos sentidos fechados e construir uma nova compreensão que passa por outros sentidos, quase sempre em conflito com os do sujeito-autor. Uma dificuldade muito penosa, pois esses caminhos da compreensão e interpretação que, além do mais, não são transportáveis de uma situação a outra.

A rigor cada novo mapeamento está diretamente relacionado a cada novo território que se pretende “descobrir”. Se nossa pauta é a qualidade de vida do planeta no século XXI, e vamos a campo para

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surpreender inquietudes porosas, como podemos condenar à partida certas experiências de lazer, como aquela que um shopping center ofe-rece? Mas, ao mesmo tempo, se desmata o último grande espaço verde na zona Leste de São Paulo para construir o maior equipamento de prazeres virtuais. Desaparecem os antigos parques onde se fazia pique-nique e brincava de bola; surgem prédios de apartamentos, vai abaixo o casarão; as ruas são calçadas, não se preserva a maior parte das árvores, mas multiplicam-se os empregos nos novos estabelecimentos comer-ciais. Se, para tanto, o engenho e arte nos ajudar, iremos ao infinito das contradições e para lá dos dados complexos e conflituosos, ainda have-rá o imponderável, soluções indetermináveis de um caos dinâmico que nos fogem à explicação, e escapam das simpatias político-ideológicas.

Talvez o cuidado que possamos desenvolver a partir da consci-ência das limitações da narrativa da comunicação social seja o de não demonstrar hipóteses delineadas sem o desarmamento dogmático ou conformadas antes do embate com o mundo vivo e seus paradoxos. Enfim, um cuidado metodológico que não representa nenhuma no-vidade no conhecimento científico. Mas tanto na construção do co-nhecimento científico quanto na construção dos sentidos da contem-poraneidade, nunca se está isento dos paradigmas fechados ou das visões reducionistas quando se interpretam os dados. Melhor seria abandonar a ambição das suntuosas hipóteses ou das fáceis bandeiras e recolher do contato complexo com a situação contemporânea in-terrogações para um projeto de compreensão cuja construção é plural e sem garantias conclusivas. Reportar o presente, valendo-se de uma inquieta e criativa metodologia de investigação, e ensaiar uma das várias redes de significados – eis um laboratório permanente para os autores-pesquisadores que aspiram uma ação comunicativa.

Não se trata de um desnudamento pessimista. Ao longo de vin-te anos de escrita grupal e de pesquisa do signo dialógico, o Projeto Plural reúne na tribo mais fiel e na misteriosa diáspora de seus oito mil exemplares relatos da cena viva contemporânea que sinalizam uma fina sintonia com os tempos. Se ocorrem desacertos por falta de engenho racional complexo, muitos acertos costuram o traço profun-do de identidade, o afeto e o respeito pelo Outro, por mais distinto que ele seja. E só com essa energia afetiva pode-se pôr em questão os perigos de uma racionalidade falaciosa, simplificadora, com o tô-

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nus judicativo de quem se sente desafeto. A sedução pelo enquadra-mento do desconhecido ou mal compreendido em conceitos e pré-conceitos aumenta no ambiente racionalizador e arrogante e tende a se esfumaçar no corpo a corpo com o espantosamente diferente, mas respeitável. As oficinas catárticas do grupo de estudos mais assíduo espelham este processo. Fala mais alto o encantamento e a aposta no aperfeiçoamento, no batismo de fogo – razão complexa, sensibilidade afetuosa e ação transformadora.

O que não quer dizer que se jogue para debaixo do tapete nossas constantes imperfeições. Mas também não se cai no abismo niilista. Os repórteres e ensaístas do Projeto Plural vão à luta, não adiam o texto imperfeito com o álibi do perfeccionismo. Mesmo porque esta é uma oficina coletiva, histórica e cultural. O sentimento espesso que sustenta caminhos e descaminhos é a louca tentativa de nos tornar-mos um pouco mais dignos63 da narrativa da contemporaneidade. Os cientistas parceiros dos diálogos interdisciplinares se identificam na mesma tarefa: encontrar o cogito e o código solidários.

Quando a Cátedra da Unesco da Fundação Memorial da Amé-rica Latina me convidou para coordenar um foro permanente de reflexão sobre a América Latina, imediatamente se impôs uma pri-meira articulação interdisciplinar da Universidade de São Paulo: a pesquisa acumulada no Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina (Prolam). Teses de doutorado e dissertações de mestrado que analisam com pioneirismo situações sociais econô-micas e culturais, no âmbito histórico e contemporâneo da Região, merecem ser debatidas e registradas com outros estudiosos além do espaço acadêmico estrito.

Não foi, pois, por acaso que a primeira tese de doutorado a in-tegrar este programa fixou um primeiro diagnóstico sobre o impacto das políticas de microcrédito nas mulheres brasileiras e colombianas. Como tive o privilégio de acompanhar os passos da construção da tese de Claudia Forte e participar de sua banca de defesa (2006), bem como saber de sua atuação inovadora no plano econômico nacional, se propôs o tema como o inaugural. A economia, como disciplina de origem da teoria e prática do microcrédito, oferece, porém, uma oportunidade ímpar de inclusão das áreas de comunicação social e cultura, presentes na dialogia dos agentes econômicos.

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Se os economistas aceitarem o jogo dialógico na interface ciência-sociedade, conhecimento especializado e saberes cotidia-nos, informações técnicas e domínios coletivos da cidadania, então é necessária a presença dos comunicadores. Estes, por sua vez, se agentes culturais, produzem sentidos partilháveis na ampla comu-nicação social ou no contato direto com os agentes econômicos. Nas mídias tradicionais ou no universo online, se faz necessária uma mediação autoral pesquisada, no caso do Prolam, na linha de comunicação e cultura. Há, pois, várias frentes de atuação, conside-rado o caso de políticas de microcrédito: o signo da relação pode se desenvolver entre a academia geradora do saber científico e a sociedade, por meio da imprensa, e de meios eletrônicos e digitais. Numa atitude inovadora, abandona-se o dirigismo da divulgação (e difusão) científica para construir elos dialógicos entre sociedade e ciência, ciência e sociedade. A pesquisa de campo especializada, como a reportagem jornalística, desafia o pesquisador econômico ou o repórter a compreender o mundo cotidiano, e não a explicar as circunstâncias de acordo com pressupostos da abstração teórica ou da pauta pré-concebida.

Cientistas, agentes econômicos, políticos e jornalistas, se não se unirem para aprender a dialogar entre si e com a experiência dos que enfrentam o dia a dia sem outro amparo que não a vitalidade da sobrevivência (costumo nomear de sevirol), estarão pregando no deserto, ainda que tenham as melhores intenções científicas ou ideo-lógicas. A pesquisa do Diálogo Social não envolve apenas os comuni-cadores, mas também os que desenvolvem conhecimentos especiali-zados como os do mundo das finanças ou, em particular, das políticas de crédito. Nos encontros interdisciplinares do Projeto Plural, os mé-dicos têm apresentado o mea culpa mais contundente quando apon-tam verdadeiros fracassos na pseudorrelação especialista-paciente. Ora, esse microdiagnóstico se transpõe para qualquer instância da desejada relação ciência-sociedade, mediada pela comunicação social.

Dessa experiência se depreende que uma frente desafiadora se impõe: o laboratório da linguagem dialógica. Nas ações financeiras de microcrédito, se constata à partida a demanda comunicacional e a contextualização cultural das negociações entre agentes econô-micos e agentes sociais. Os prestadores de serviços bancários ou os

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jornalistas que atualizam a informação disponível, mais do que pro-cessar dados técnicos para os virtuais empreendedores, precisam se abrir para a escuta coletiva, descobrir os conteúdos do sevirol para, juntos, tecerem a interação criadora. A pesquisadora Claudia Forte se confrontou com essa limitação do monólogo dos economistas e construiu passo a passo âncoras dialógicas com as mulheres de Bo-gotá e do Recife. Na observação-experiência do trabalho empírico ou da reportagem, a linguagem do cotidiano dá outros sentidos à aridez da linguagem técnica.

Na construção da linguagem dialógica, é importante salientar, entram em jogo os códigos não verbais que a linguagem técnica ou científica desconsidera. Quando as universidades admitem entre os saberes especializados as diferentes expressões artísticas que mobi-lizam a percepção gestual, os sentidos de contato com o mundo, é possível naturalizar no âmbito da ciência dura a produção simbólica para-verbal ou a narrativa pluricodificada na experiência do contato humano64. Esta recria os movimentos, os sons do ambiente ou dos fa-lares coloquiais, os cheiros e paladares da cena viva. O autor se apro-xima, por estar afeito a cena a ele contemporânea, no “gesto” solidário da linguagem do cotidiano e da arte. Abandona então a obsessão da palavra persuasiva, explicativa, impositiva dos manuais técnicos Nos encontros escuta-oferta, demanda-entrega, os interlocutores, se-jam eles agentes financeiros, sejam jornalistas, sejam agentes sociais, aprendem o discurso das trocas simbólicas sem a hierarquia pesada do sistema econômico.

Não se descartam as informações técnicas nem a complexidade racional de um programa macroeconômico e suas aplicações micros-sociais. No entanto, a conceituação racional emerge do aprendizado das incertezas e dos desafios de cada situação empírica tanto para o estudioso, como para o especialista ou para o jornalista. O sujeito social não está mais do outro lado, perdido na cifração dos dados que lhe apresentam, mas compreende e atua em parceria na aplicação prática, daquele universo codificado para poucos entenderem. Os es-pecialistas, técnicos e jornalistas se curvam perante essa cifração in-compreensível para os leigos e buscam no próprio cotidiano familiar as chaves para entrar em sintonia com o homem ou a mulher, a crian-ça ou o adolescente, protagonistas anônimos da vida contemporânea.

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O Impacto do microcrédito para a mulher latino-americana

Utopia, esta união entre cientistas, técnicos, jornalistas e agentes da sobrevivência cotidiana? Há exemplos desse laço dialógico no dia a dia do signo da relação como um ato comunicativo e não como desejo teórico. Um dos momentos ímpares da história recente, se re-velou na épica do salvamento dos 33 mineiros chilenos no dia 13 de outubro de 2010. Muito se escreveu e muito se escreverá sobre a circunstância dos soterrados e do seu ressurgimento à superfície da terra na cápsula, poeticamente denominada Fênix 2. O factual acom-panhado exaustivamente pelos meios de comunicação, no Brasil, em coberturas exemplares de tempo contínuo como a da Globo News (das 18 horas do dia 12 às 24 horas do dia 13 de outubro), mostrou o vínculo possível e desejável entre ética da solidariedade, técnica especializada e estética da superação humana.

Neste caso, não só os mineiros vieram à tona na vida, como inúmeros símbolos da inventividade emergiram como mistérios da comunhão, signo pleno da relação. Impressionou entre diversas fa-las especializadas, a de um médico brasileiro do corpo de bombeiros que no calor da operação confessou, emocionado, que os técnicos ou especialistas teriam muito a aprender com tudo que aconteceu no Chile nesses 70 dias de agonia e esperança. Impressionou a conjugação sutil de sentimentos que o deserto de Atacama narrou: não os da espetacularização como gostam de salientar os críticos da indústria cultural; e sim, a solda da liderança debaixo da terra, a emergência da emoção transcendental na religiosidade, as lágri-mas sinceras, os abraços, os beijos, os gestos explosivos e os gestos contidos na hora da libertação. Impressionou como a tecnologia avançada do século XXI deixou passar, com respeito, a física mecâ-nica do século XVIII. A informática não superou o ato mecânico de uma antiga roldana, mas dialogou harmoniosamente com todos os saberes ancestrais.

Também se destacou a poética da integração das fronteiras lati-no-americanas: povos e autoridades assumiram um destino comum humanitário. “Os heróis do Chile” tornaram concreta a saga vitoriosa dos anti-heróis latino-americanos. A interação social criadora, hori-zonte do signo da relação, reafirmou o tônus cultural da região que se viu mergulhada, no fim do século passado, na frustração da “década perdida”. As narrativas sensíveis perceberam o ato emancipatório dos

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mineiros e, por identificação, do sentimento coletivo. Até mesmo a órbita internacional dialogou intrinsicamente com esse instante lu-minoso. Que o digam os chineses submetidos a cerceamentos de co-municação social. De qualquer forma deram um jeito twitter de se integrar à informação online.

Pois bem, comunicação e cultura comparecem ao convívio social como necessidade básica, e só na experiência da linguagem dialógica se encontra a seiva da transformação, da superação e do empreen-dimento inovador. O que aqui se sublinha é a parceria fecunda dos agentes culturais, dos comunicadores junto a especialistas e técnicos no diálogo com os protagonistas sociais em ações como as que aqui são debatidas. O impacto de políticas de microcrédito em mulheres latino-americanas abrange estratégias de comunicação e respeito às identidades. Para criar sentidos renovadores no ambiente da econo-mia de pequena, média e grande escala, a comunicação, como artífice da dialogia, não pode ser alijada.

Por esse motivo convivemos, neste registro sobre microcrédito, economistas, comunicadores e depoimentos das mulheres latino-americanas cuja voz a pesquisa de Claudia Forte traz ao foro de refle-xão. Mais que um diálogo, o triálogo ciência-comunicação-sociedade. No signo da relação não nos segmentamos numa pirâmide de conhe-cimento, mas há uma constante realimentação que põe os vetores em roda: sociedade-comunicação-ciência. O mergulho na realidade, por meio da reportagem e das aproximações empíricas da ciência, regula a circularidades dos saberes humanos. Saberes esses que se expressam em identidades culturais. Mas este é o capítulo assinado por Renato Seixas, que encerra a presente edição.

*Cremilda Medina - organizadora desta edição e coordenadora do Foro Permanente de Reflexão sobre América Latina, vinculado à Cátedra da Unesco da Fundação Memorial da América Latina de São Paulo, é professora titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Jornalista e pesquisadora, autora de 13 livros, organizou 45 coletâneas interdisciplinares, entre eles Ciência e Jornalismo, da herança positivista ao diálogo dos afetos, publicada pela Summus Editorial, data de 2008.

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Notas

(59) O texto foi extraído do livro Terra-Pátria, escrito por Edgar Morin com a colaboração de Anne Brigitte Kern. Foi publicado em Porto Alegre pela Editora Sulina, em 1995.(60) Boaventura de Souza Santos, na obra Introdução a uma ciência pós-moderna (Rio de Janeiro: Graal, 1989), formula esta feliz concepção que substitui a mentalidade da busca da verdade. Fazendo uma leitura livre desta visão do epistemólogo, um competente narrador da contemporaneidade articula o conflito das verdades.(61) No livro A arte de tecer o presente, narrativa e cotidiano, de autoria de Cremilda Medina, editado pela Summus Editorial em 2003, estes temas estão propostos teórica e praticamente nas “narrativas da contemporarneidade”.(62) A aventura humana entre o real e o imaginário, de autoria de Milton Greco, foi editado pela Klaxon e pela Perspectiva.(63) O poeta José Craveirinha, de Moçambique, certa vez enunciou esta angústia – “eu não sou digno de ser poeta do meu povo, me esforço muito...” (fala registrada no meu livro sobre os escritores africanos de língua portuguesa, Sonha Mamana África, São Paulo, Edições Epopéia, 1987).(64) Ao revisar a herança positivista e propor o diálogo dos afetos no livro Ciência e Jornalismo, publicado em 2008 pela Summus Editorial, retomo a concepção dialógica desenvolvida em outro título, O signo da relação – comunicação e pedagogia dos afetos (editora Paulus, 2006).

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A força das identidades nos pequenos e grandes negócios

Renato Seixas*

Na literatura de várias áreas de conhecimento tem sido comum encontrar afirmações de que estaria em desenvolvimento um

processo de homogeneização cultural mundial. Os poderes dominan-tes ou hegemônicos que controlam a dinâmica das relações globais, especialmente por meio da grande mídia, estariam cada vez mais de-sintegrando culturas locais e substituindo-as por quadros culturais ge-rais, homogêneos, baseados em critérios definidos por aqueles poderes e conforme seus interesses. Todavia, muitas e muitas vezes tais afirma-ções contidas na literatura não correspondem aos fatos do mundo real.

No final da década de 1980 e começo da década de 1990 diver-sos fatos contribuíram para alterar a ordem internacional estabeleci-da desde o término da Segunda Guerra Mundial. Houve a queda do muro de Berlim e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas

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Soviéticas. Terminava a Guerra Fria e o mundo perdia sua confi-guração bipolar de equilíbrio de poder, que vigorara desde o fim da década de 1940. Como única superpotência mundial remanescia os Estados Unidos da América, que, embora sem poder suficiente para impor seus interesses ao resto do mundo, não deixa de ser ouvido em qualquer assunto de relevância internacional (Kennedy, 1989). A partir de então, proliferam lutas regionais com caráter de autoafir-mação cultural local, nacionalista ou religiosa (Huntington, 1997). De fato, em diversos casos a identidade nacional se mistura e se con-funde com a identidade religiosa e, para se autoafirmar, desencadeia lutas caracterizadas pela polarização de uma religião contra outra. É interessante esse fenômeno porque é muito semelhante ao que ocor-reu por ocasião do surgimento e consolidação dos Estados nacionais europeus entre os séculos XV e XVII. Na época em que começaram a se formar os Estados nacionais europeus ainda não havia um po-der ideológico organizado, minimamente dominante ou hegemôni-co para mobilizar para a guerra as diversas facções conflitantes. Por isto, as guerras assumiam características de conflitos religiosos, os quais, naquele contexto, simbolizavam as disputas de um poder ide-ológico contra outro (Chaunu, 1993). Apenas entre o último quarto do século XVII e as duas primeiras décadas do século XIX é que a ideologia liberalista logrou se impor no ocidente e, então, parte das tradicionais guerras religiosas foi substituída por guerras ideológicas e nacionalistas (Morgenthau, 2003). Marcos importantes dessa fase histórica ocidental foram a independência dos Estados Unidos da América, a Revolução Industrial inglesa, a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas.

Ora, o mundo está se reorganizando em busca de um novo equi-líbrio de poder multipolar; proliferam atualmente conflitos e guerras de autoafirmação cultural local, nacional ou religiosa; países estão sendo formados ou dilacerados em decorrência desses conflitos; blo-cos e coalizões regionais, continentais e mesmo globais estão sendo formados ou consolidados na sociedade internacional com base nas afinidades culturais de seus membros (Huntington, 1997). É eviden-te, portanto, a importância da identidade cultural (ou da falta dela) implicada nesses fenômenos. Entretanto, mesmo considerada a re-levância da identidade cultural, não há na história da humanidade

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nenhum exemplo de homogeneização identitária. Mesmo com o advento de grandes impérios, como foram o Império Romano e o Império Han, nunca foi possível forjar uma única identidade para todos os povos por eles abrangidos. A identidade cultural impos-ta por poderes dominantes sempre teve que coexistir com múltiplas identidades locais dos povos submetidos.

Nessas circunstâncias, não podem ser aceitas sem reservas, por exemplo, afirmações correntes no sentido de que a cultura latino-americana estaria sendo substituída pela cultura de Hollywood ou de que, através da grande mídia, haveria imposição irresistível de ele-mentos culturais de países dominantes em face dos povos da América Latina. Efetivamente ocorrem tais fenômenos de manipulação e de imposição cultural, porém todos eles são em grande parte submetidos a complexos processos de mediação simbólica, por meio dos quais cada indivíduo e cada grupo filtram e metabolizam elementos cultu-rais alienígenas, incorporando-os ou não ao quadro geral de referên-cias culturais daquela específica comunidade (Martín-Barbero, 2006).

Diante dessas considerações iniciais e com base em estudos pre-cedentes (Seixas, 2006), este trabalho parte das seguintes hipóteses: 1ª) é impossível efetivar homogeneização cultural plena em qualquer lugar do mundo e, portanto, também na América Latina. Poderosas forças de autoafirmação cultural e identitária são mobilizadas para resistir à tendência de homogeneização cultural desejada por potên-cias dominantes da sociedade internacional. Nos limites deste traba-lho não há possibilidade de explorar como essas forças de resistência operam. Essa tarefa foi realizada noutro estudo ao qual se remete o leitor (Seixas, 2008); 2ª) qualquer projeto de integração dos paí-ses da América Latina só terá possibilidade de êxito duradouro se contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade existentes na região. Processos latino-americanos de integração econômica, social ou mesmo política precisam estabelecer de modo claro, democrático e flexível políticas abrangentes do multiculturalismo e da plurinacio-nalidade acima referidos. Tendo em vista os limites editoriais a que este trabalho tem que se adequar, para testar as hipóteses de pesquisa é imperativo fazer recortes, adiante especificados.

O objeto central deste estudo é investigar se há e como está con-figurada “uma” identidade latino-americana, uniforme e comparti-

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lhada por todos os povos habitantes da região, ou se, ao contrário, há múltiplas identidades latino-americanas, as quais se transformam continuamente e formam um mosaico cultural na região. As ques-tões fundamentais que este estudo quer examinar são as seguintes: existe uma identidade cultural genuinamente latino-americana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os elementos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (europeia e norte-americana) coexistiriam com os ele-mentos de identidade cultural da América Latina?

Como primeiro recorte desta pesquisa optou-se por isolar os po-vos da América Latina de seus contatos com outros povos, especial-mente os europeus e os norte-americanos. Por isto, escolheu-se um período da história dos povos pré-colombianos anterior aos desco-brimentos europeus. Nesse contexto, os habitantes da hoje chamada América Latina não estavam sob as imposições ou influências cultu-rais de povos alienígenas conquistadores, colonizadores ou imperia-listas. O segundo recorte da pesquisa põe foco nas chamadas “altas civilizações pré-colombianas”. Em decorrência da amplitude terri-torial, do poder, do desenvolvimento cultural, tecnológico e político dessas civilizações, puderam exercer imensa influência sobre os povos que vieram a dominar antes da chegada dos descobridores europeus. Todavia, como se verá no decorrer deste trabalho, nenhuma das al-tas civilizações pré-colombianas conseguiu forjar uma única cultura, dominante, homogênea. Ao contrário, todas elas precisaram formar alianças com os povos dominados e, em maior ou menor grau, aceitar as especificidades culturais locais de cada um deles. O terceiro recorte da pesquisa limita o estudo às três civilizações pré-colombianas mais desenvolvidas: maia, asteca e inca. Mais uma vez, os limites editoriais definidos para este trabalho não permitem exposição das caracterís-ticas de cada uma das três civilizações selecionadas. Tal análise foi realizada noutro trabalho (Seixas, 2006). Aqui serão examinados as-pectos gerais comuns às três civilizações estudadas. Por fim, o quarto recorte do estudo diz respeito ao grau de generalização ou de especi-ficidade a ser adotado para examinar o fenômeno da identidade cul-tural. Para examinar as questões fundamentais apresentadas acima, foi necessário estabelecer certo grau de generalização a respeito da

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identidade cultural. Optou-se por partir de critérios mais amplos, generalizantes, universalizantes, suficientes para abranger o maior número possível de grupos sociais latino-americanos. Somente assim se poderá falar de identidade cultural “da” ou “na” América Latina. Portanto, não é objetivo deste trabalho estudar: (i) as especificidades de culturas locais latino-americanas comparadas umas com as outras; e (ii) as especificidades culturais de certas classes sociais em contraste com outras classes dentro do mesmo grupamento social. Noutras pa-lavras, não é objetivo desta pesquisa estudar a identidade cultural da América Latina considerando, por exemplo, se os elementos culturais preponderantes no sertão nordestino brasileiro teriam penetrado na cultura dos povos andinos, ou vice-versa.

Desde logo é bom esclarecer aqui que as expressões “culturas he-gemônicas” ou “culturas não hegemônicas” não terão, neste trabalho, a significação específica que Gramsci atribuiu à hegemonia (Bobbio, Mateucci et Pasquino, 2004). Para Gramsci, a hegemonia pressupõe que um certo poder é imposto por um grupo social a outro e, por meio de mecanismos ideológicos, tal imposição aparece como na-tural e legitimada perante o grupo sujeito àquele poder, que o aceita de modo mais pacífico. Neste trabalho usa-se a palavra “hegemonia” num sentido mais amplo que, em certa medida, contém a significa-ção que lhe foi dada por Gramsci, porém abrange também a situação em que, em certo lugar, momento histórico e contexto, um poder ou elemento cultural prepondera sobre outros poderes ou elementos culturais concorrentes, quer sejam ou não aceitos pelos grupos sociais sujeitos ao poder ou elemento cultural preponderante.

Desenvolvimento cultural autônomo

Não considerada a fase contemporânea da globalização, a iden-tidade cultural na América Latina apresenta três fases importantes. A primeira diz respeito ao povoamento das Américas, em que gru-pos diferentes se instalaram na região e desenvolveram suas próprias culturas. Depois, como consequência do processo evolutivo da fase anterior, vem a fase das altas civilizações americanas pré-coloniais. Essas duas primeiras fases são importantes porque refletem o desen-volvimento cultural autônomo das Américas, em particular do que

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viria a ser a América Latina. A literatura adiante referida costuma dizer que as Américas tiveram desenvolvimento cultural autóctone depois que a passagem pelo estreito de Bering foi interrompida, im-pedindo assim que influências culturais exteriores continuassem a ser transmitidas para o Novo Continente. Isto significa que durante muito tempo os povos americanos desenvolveram sua cultura parti-cular, refletida nas estruturas econômicas, sociais e políticas que cada povo adotava. A terceira fase importante foi a da colonização dos povos americanos pelos europeus. A partir dessa última fase, diver-sos elementos culturais das civilizações dominantes ou hegemônicas da Europa foram transplantados para a América Latina e Caribe. Ocorreram choques culturais amplos e profundos. A predominância da cultura dos colonizadores é marcante desde então, mas não foi suficiente para eliminar muitos dos elementos culturais indígenas. Por essas razões, sem nenhuma pretensão de narrar a história dos po-vos americanos em algumas páginas, o desenvolvimento deste estudo procurou acompanhar as três principais fases evolutivas da cultura latino-americana, acima indicadas.

A intenção é destacar alguns elementos culturais de cada uma das fases, na medida em que pareceram pertinentes para os fins deste tra-balho. Durante a pesquisa foram examinadas as estruturas culturais, sociais, econômicas e políticas dos povos estudados. Constatou-se que muitos dos elementos culturais da América Latina pré-colonial têm paralelo com outras culturas, especialmente a cultura europeia: princí-pios de organização política do Estado; estrutura social classista; sepa-ração entre trabalho intelectual e braçal; sistema produtivo; cobrança de tributos; instrumentos de dominação ideológica, especialmente o uso da religião para esse fim. Na verdade, com base em conhecimentos gerais de História, foi possível constatar que alguns desses elementos culturais são arquetípicos e estão presentes em muitas outras civiliza-ções. Todavia, no caso específico dos povos americanos pré-coloniais, a combinação desses elementos culturais teve a “marca local”. Mesmo invocando arquétipos, cada um desses povos fez suas próprias narrati-vas míticas que possibilitaram a coesão interna de sua cultura. Assim, sobre o modelo arquetípico geral, os pré-colombianos imprimiram seus elementos culturais particulares. É óbvio que os limites definidos para a realização deste trabalho não permitem que se faça um rastrea-

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mento de todas as culturas e um exame particular e profundo de cada uma delas. Na verdade, o que se quer é apresentar algo como uma foto-grafia, ou no máximo um “curta-metragem” das culturas selecionadas. O fundamental é encontrar elementos culturais com base nos quais se possa reconhecer uma ou mais identidades da América Latina, sempre a partir de graus de generalização.

Primeiras culturas na fase de povoamento

Muitas culturas ancestrais latino-americanas desapareceram ou, no máximo, deixaram alguns traços incorporados em culturas pos-teriores. Com base em documentação arqueológica, estudiosos es-timam que a presença humana nas Américas começou por volta de 50.000 anos atrás. Contingentes humanos teriam migrado da Ásia atravessando o estreito de Bering, que naquela época estaria conge-lado e formava uma ponte entre a Ásia e a América do Norte. Essas correntes migratórias chegaram à América do Norte, de onde foram se reproduzindo e se deslocando para a América Central e depois para a América do Sul. Se essa suposição estiver correta, sua conse-quência mais importante seria que, terminada a glaciação e interrom-pida a passagem pelo estreito de Bering, os povos americanos teriam ficado ilhados e, por isto, teriam desenvolvido culturas autóctones. Por outro lado, há indícios arqueológicos de que contingentes migra-tórios da Polinésia também teriam chegado por mar em embarcações primitivas. Seja como for, o fato é que esses primeiros povoadores das Américas desenvolveram culturas próprias, vez ou outra reve-lando alguma semelhança com culturas asiáticas e polinésias. Eram inicialmente povos nômades, dedicados à caça e à coleta, eventual-mente à pesca. Teriam uma organização de bandos, com lideranças circunstanciais. Muito lentamente iniciaram um processo de fixação de povoamentos e de sedentarização, que passou a ser mais evidente há aproximadamente 10.000 anos atrás, conforme dados arqueológi-cos disponíveis (Cardoso, 1981).

Em função da característica nômade ou seminômade desses pri-meiros povoadores americanos, seus constantes deslocamentos em busca de melhores condições de sobrevivência provocaram constan-tes choques entre os diferentes grupos. Em consequência, desde mui-

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to cedo os povos americanos convivem com a profunda questão de identidade cultural. Grupos dominantes ou hegemônicos certamente desejavam impor não só o seu poder, mas também a sua cultura aos grupos subjugados. Portanto, o conflito entre culturas dominantes ou hegemônicas e não hegemônicas não é um fenômeno atual na América Latina. Começou há milhares de anos atrás e apresenta a mesma questão central: a luta “simbólica” de vida ou morte entre cul-turas que querem se autoafirmar e ter reconhecido o seu valor diante de outra diferente. É claro que os conflitos culturais contemporâne-os são muitíssimo mais complexos, profundos e abrangentes do que os conflitos culturais entre alguns povos nômades ancestrais. Porém isto não altera a questão essencial acima indicada. Nesse contexto, é fácil admitir que centenas de culturas surgiram nas Américas. Algu-mas desapareceram completamente; outras se miscigenaram; e ou-tras mais tiveram seus períodos de dominância ou hegemonia. Quais dessas culturas resgatar para construir uma identidade cultural ame-ricana? No caso específico da América Latina, haveria um conjunto de elementos culturais que, reunidos, seriam suficientes para que se possa afirmar: esse é o rosto da América Latina?!

Identidades nas altas civilizações pré-coloniais

A identidade cultural de qualquer grupo social é construída com elementos culturais arquetípicos, híbridos ou dominantes.66 To-dos esses elementos se combinam e se complementam para juntos comporem uma identidade cultural. Por isto, a identidade cultural latino-americana será construída com elementos culturais daque-las três espécies. Terá elementos ancestrais de identificação cultural; terá outros elementos de diversas culturas que precisam coexistir sob certas circunstâncias; terá elementos culturais subjugados por outras culturas em certos momentos; e terá elementos culturais que sim-bolizarão a autoafirmação da identidade latino-americana perante culturas rivais.

Atualmente está em pauta a necessidade de afirmação da cultura da América Latina em face de culturas dominantes ou hegemônicas. Então, quais são os elementos de identificação cultural da América Latina que lhe permitirão se autoafirmar em face das culturas con-

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correntes? É muito simplista tratar essa questão reduzindo-a exclu-sivamente, ou preponderantemente, a uma oposição ideológica entre capitalismo versus comunismo/socialismo. Tem sido comum na lite-ratura (por exemplo, Peregalli, 1994) afirmar que o passado das civili-zações latino-americanas está associado à posse comum dos meios de produção, a um sistema de reciprocidade tributária entre os Estados e as comunidades, etc. A partir do modelo marxista, muitos autores têm pretendido “reconhecer” na América Latina uma vocação inata, intrínseca, para o comunismo e socialismo (Ferreira, 1991). Tal opo-sição ideológica, tomada isoladamente, não pode ser suficiente para definir a identidade cultural de nenhum povo. Em primeiro lugar, porque os modelos marxistas (como qualquer construção teórica) são ideais e nem sempre encontram exata correspondência na realidade. Apresentam anomalias, portanto. Em segundo lugar, porque as duas ideologias postas em confronto pressupõem elementos de identifi-cação que não são específicos nem para a América Latina nem para qualquer outro povo. Uma sociedade dizer-se capitalista, comunista, socialista não define sua identidade. Chineses, russos, norte-corea-nos e alemães orientais eram todos povos que adotaram ideologia e regime produtivo comunista e, no entanto, ninguém se atreveria a dizer que esses povos têm a mesma identidade cultural. Inglaterra e Índia adotam o capitalismo e têm identidades culturais profun-damente distintas. Em terceiro lugar, porque no caso específico da América Latina, as civilizações mais adiantadas (maia, asteca e inca) apresentavam traços extremamente contraditórios no que concerne à sua suposta vocação para o comunismo ou para o socialismo. Havia indicações muito fortes da criação de formas diferenciadas de uso dos meios de produção, tendentes à configuração de propriedade pri-vada, ou algo parecido com esta; havia inequívoca organização social em classes, algumas vezes sendo impossível a ascensão social; havia evidências irrefutáveis de exploração de uma classe por outras. Em quarto lugar, porque as estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas ancestrais estavam intimamente relacionadas com o fenômeno religioso, que na verdade moldava e justificava aquelas estruturas. Querer interpretar tais estruturas a partir e exclusivamen-te do materialismo histórico marxista não é suficiente para compre-ender a complexidade cultural daqueles povos. Assim como não se

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pode entender e compreender a civilização egípcia67 ou a muçulma-na68 sem recorrer ao elemento religioso e mítico, também no caso das civilizações latino-americanas pré-coloniais não se pode estudar seu sistema produtivo e sua estrutura social sem relacioná-los com o profundo sentimento religioso daqueles povos. Era a religião que dava coesão às estruturas sociais e produtivas das civilizações latino-americanas pré-coloniais. Tanto isto é verdade que, após a conquista da região pelos colonizadores europeus, bastou desarticular o siste-ma religioso para esfacelar os sistemas social e produtivo dos povos dominados (Romano, 1989). Em quinto lugar, se fosse verdade que a América Latina inteira teria uma vocação inata para adotar o mo-delo produtivo comunista ou socialista e ter estruturas sociais cor-respondentes àquele modelo, teria sido possível para Bolívar realizar a unificação latino-americana no início do século XIX, na medida em que se dispusesse a adotar aquelas estruturas. Bem ao contrário, estão em curso na América Latina diversos processos de integração. Todos esses processos integracionistas avançam com extrema lenti-dão e muita dificuldade. Isto revela que os elementos de identificação econômica e ideológica não são suficientes para configurar uma iden-tidade cultural universal entre dois ou mais povos e, obviamente, não dão nenhuma identidade própria para a América Latina. Finalmente, em sexto lugar, não se pode desconsiderar que a história da América Latina pré-colonial é a história de lutas incessantes entre seus povos, em disputa por terras e por mão de obra obrigada a trabalhar em troca de subsistência e de vida muito humilde. Não se pode dizer que as es-truturas socioeconômicas adotadas, por exemplo, pelos Estados maia, asteca e inca eram boas e justas apenas porque tais estados, muitas vezes apenas em retórica, garantiam aos seus súditos alimentação, vestuário, aposentadoria, educação. O sistema tributário adotado nes-sas civilizações só poderia ser justificado ideologicamente mediante essas retribuições. Os camponeses, artesãos e soldados comuns viviam apenas com os recursos imprescindíveis para sua subsistência. Dentro do sistema não havia possibilidade alguma de acumularem exceden-tes para si mesmos. Não podiam enriquecer. Todo o excedente da produção era destinado ao Estado, cujas despesas eram crescentes e obrigavam-no a exigir cada vez mais tributos das classes inferiores. Além disso, a superexpansão dos impérios (imperial overstretching)

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criava a necessidade contínua de obter mais terras a serem cultivadas, para que houvesse maior arrecadação tributária. Esse círculo vicioso provocava infindáveis lutas entre os povos latino-americanos pré-coloniais. Cada um desses povos queria, por um lado, expandir sua dominação ou hegemonia ou, por outro lado, livrar-se da dominação imposta por povo rival. Em qualquer dessas duas situações, não se al-teravam as condições de vida dos camponeses e outras classes sociais baixas: continuavam a trabalhar em troca de subsistência; não tinham direito de reter qualquer riqueza material para si mesmos; pagavam tributos cada vez maiores, ora a um senhor ora a outro; eram manti-dos afastados da alfabetização e de qualquer forma de educação que pudesse levá-los a questionar o sistema vigente.

Como se vê, não é razoável querer definir a identidade da Amé-rica Latina recorrendo apenas à oposição ideológica entre capitalis-mo, comunismo ou socialismo. É claro que em alguma medida esses elementos também são importantes para, em conjunto com outros, compor a identidade cultural de um povo. É preciso, então, procurar identificar quais seriam os outros elementos culturais com base nos quais, adotado certo grau de generalização, seria possível configurar de modo mais estável uma identidade cultural da América Latina.

Geografia e identidade cultural

A geografia pode não ser absolutamente determinante para a construção de identidades culturais, mas é certo que as influencia significativamente. No caso específico da América Latina, o meio geográfico influenciou de modo evidente a formação e a afirmação de culturas locais, que não foram totalmente eliminadas nem mesmo pelo poderio das altas civilizações maia, asteca e inca.

Na América Latina há quatro grandes regiões, ou subsistemas geográficos (Mello, 1996) que tiveram grande importância no desen-volvimento cultural: a) a América Central e Caribe; b) o subsiste-ma amazônico; c) o subsistema andino; e d) o subsistema platino. Cada um desses subsistemas apresenta subdivisões, como é o caso do subsistema andino, que tem faixas paralelas à Cordilheira dos Andes formando costa litorânea, faixas desérticas ou semiáridas, escarpas montanhosas e platôs andinos. Nesse subsistema desenvolveram-se as

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culturas dos povos andinos. Embora esses diferentes povos apresen-tem traços identitários comuns, cada um deles tem ainda hoje forte sentimento de sua cultura local e específica. Por exemplo, o trançado dos tecidos, suas cores e ocasiões de uso indicam a posição do indiví-duo na hierarquia social, seu estado civil etc. O subsistema amazônico domina grande parte da América Latina. Não se pode atribuir ao meio geográfico caráter determinante de uma cultura específica, po-rém é impossível negar que a floresta amazônica influencia em grande parte as formas de ocupação humana do território, os sistemas de produção e mesmo a organização social dos povos que nela habitam. No subsistema platino há desertos e geleiras e ali também se desen-volveram culturas específicas que resistem até os dias atuais.

O fato de o ser humano ter notável aptidão para se adaptar a am-bientes geográficos variados evidencia que estes interferem na formação da identidade cultural de um povo. Esta diversidade de meios geográfi-cos explica em parte a grande dificuldade com que avançam os processos de integração econômica, política e cultural na América Latina.

Eliminação da memória coletiva

A reconstrução da memória coletiva e cultural na América Lati-na é especialmente difícil por causa da escassez de documentos his-tóricos que revelem elementos culturais dos povos americanos antes da conquista da região pelos colonizadores europeus. Os espanhóis, em especial, ao conquistarem os povos maia, asteca e inca, destruíram templos, palácios, cidades, objetos de rituais e de arte, documentos, registros administrativos e contábeis, desenhos, pinturas, painéis nar-rativos. A destruição desse acervo de documentos e cidades prejudica demais a tentativa de reconstruir de maneira fiel a cultura daquelas civilizações. No caso das culturas dos povos indígenas brasileiros, a situação foi um pouco diferente (Castro, 1992). O colonizador por-tuguês encontrou indígenas que ainda estavam em fase cultural do período neolítico bem anterior às fases em que estavam os maias, astecas ou incas. Por isto, o índio brasileiro não chegou a construir cidades, palácios, templos e não tinha escrita nem administração de um Estado. Desse modo, a reconstituição do universo cultural do in-dígena brasileiro é mais fácil, porque muitas comunidades ainda hoje

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vivem como viviam seus antepassados antes da colonização lusitana. Isto tem permitido aos antropólogos e sociólogos estudar e com-preender o indígena brasileiro com relativa precisão (Lévi-Strauss, 1993). Em qualquer desses casos, a reconstituição do universo cultu-ral dos povos latino-americanos depende, em primeiro lugar, da do-cumentação arqueológica disponível, dos relatos orais colhidos junto aos seus descendentes, em comunidades mais ou menos preservadas, e em documentos históricos posteriores à colonização europeia. En-tre estes últimos, têm especial importância os documentos denomi-nados “visitações” 69 que, com todas as ressalvas necessárias, dão uma ideia a respeito de vários aspectos culturais dos povos submetidos ao domínio europeu, tais como estrutura social, estrutura econômica, vestuário, hábitos alimentares, festividades, divindades adoradas, ri-tuais religiosos, sistema administrativo, organização política, estado geral de saúde dos povos, tipo de habitação, organização familiar, re-lação entre população rural e urbana etc.

Cosmologia pré-colombiana

Toda e qualquer cultura dotada de um mínimo de organização interna constrói sistemas explicativos do mundo, criando modelos de conduta que devem ser seguidos e obedecidos pelos indivíduos e pelo grupo social. São esses sistemas e estruturas que dão sentido e coesão à sociedade. Em síntese, a produção e sistematização de uma cosmologia social são imprescindíveis para o funcionamento e para a reprodução mental e material de qualquer sociedade. No caso específico das chamadas “altas culturas” pré-coloniais centro e sul-americanas, e mesmo naquelas culturas americanas que não chega-ram a alcançar esse estágio de organização cultural, as narrativas do imaginário social assumiram enorme importância. A sistematização cultural não era apenas uma forma de conhecimento abstrato. Ao contrário, as narrativas míticas e simbólicas faziam parte do cotidia-no desses povos porque estavam intimamente associadas a todo o sistema produtivo e às estruturas e instituições sociais. Todos esses povos americanos viviam fundamentalmente da produção agrícola. Conhecer e prever os fenômenos da natureza era, portanto, absoluta-mente essencial para sua sobrevivência e reprodução. Tal necessidade

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os levou – pela prática e pela observação cuidadosa dos fatos da na-tureza – a constatar a correlação muito estreita entre os movimentos dos corpos celestes e a ordem e o ritmo dos fatos da natureza, em especial a sucessão das estações do ano, os períodos de chuva, o mo-vimento das marés etc. Com base nesses conhecimentos, foi possível ao homem americano adaptar suas forças produtivas às exigências da natureza. Nesse contexto, o trabalho de identificação, compreensão e organização dos movimentos dos corpos celestes e de sua relação com a produção agrícola tornou-se cada vez mais complexo e espe-cializado. Essa atividade deu origem a uma classe sacerdotal, cada vez mais especializada em identificar e interpretar a vontade divina co-municada aos humanos por meio das estrelas, do Sol e da Lua. Para que essa missão dos sacerdotes fosse adequadamente realizada, cen-tros cerimoniais foram construídos tanto para o culto às divindades como para permitir melhor observação do céu. Consequentemente, também se tornou necessário criar uma burocracia a serviço desses centros cerimoniais e, logo depois, com o crescimento dos centros ur-banos, teve que surgir uma burocracia administrativa. Os movimen-tos migratórios dos povos americanos geraram conflitos: primeiro, entre grupos nômades e sedentários; depois, entre grupos sedentários que disputavam entre si terras férteis. Daí a necessidade da criação e manutenção de uma classe de guerreiros em cada sociedade. Os favo-res e a proteção das divindades eram, pois, preocupação constante na vida cotidiana dos povos americanos. Por isto, a força das narrativas simbólicas entre eles era muito significativa (Soustelle, 1997). A con-cepção cosmogênica de cada um desses povos era expressa e traduzi-da por meio não só das narrativas, mas da prática “ritual” observada em diversos momentos do dia. Em todas as civilizações americanas pré-coloniais havia estruturas sociais de classes bem nítidas. A base social era composta por grande número de camponeses que, com seu trabalho e por meio do pagamento dos tributos, sustentavam todas as demais classes improdutivas. Essas estruturas sociais eram profun-damente justificadas e legitimadas por meio da religião e, sobretudo, por mecanismos que impediam os camponeses e as classes inferio-res de acumularem qualquer tipo de poder: não recebiam educação que lhes permitisse criticar os fundamentos do sistema; não podiam acumular qualquer riqueza material; não tinham outras formas de se

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fazerem representar perante os poderes dominantes ou hegemônicos a não ser através das pessoas que as classes dominantes indicavam, as quais, por sua vez, tinham inequívoco interesse na manutenção do sistema. Cabe aqui observar que todas as civilizações americanas pré-coloniais baseavam-se preponderantemente na cultura do milho, que foi iniciada provavelmente pelos maias e depois se espalhou por toda a América Central e a América do Sul. Por isto, para tais civilizações, o milho tinha o mesmo significado simbólico e sagrado que têm o trigo e o pão para as civilizações cristãs, por exemplo.

Enfim, de modo geral, as altas civilizações pré-colombianas com-partilhavam as mesmas concepções cosmogênicas; cultuavam mais ou menos as mesmas divindades (apesar das designações diferentes com que se referiam a estas); seguiam os mesmos princípios religio-sos, adotavam o mesmo sistema produtivo e econômico; tinham es-truturas sociais praticamente idênticas; com algumas especificidades, administravam seus territórios com base nos mesmos princípios e técnicas; apresentavam graus de desenvolvimento tecnológico mui-tíssimo semelhantes; cada uma delas acreditava-se escolhida pelos deuses para cumprir uma missão civilizatória dos povos que subju-gavam. Mesmo com tantos traços identitários em comum, nenhuma dessas civilizações pré-colombianas conseguiu impor às demais uma única cultura homogênea e aceita por todos como sua própria identi-dade cultural. O Império Inca, única civilização pré-colombiana que de modo apropriado merece a designação de império, jamais logrou impor totalmente sua cultura aos povos que dominou.

De fato, os incas conseguiram formar um Estado fortemente centralizado e bem administrado, dotado de aparelhamento político, militar, religioso e cultural organizado de modo a manter sob sua autoridade os povos submetidos. Além disto, foi também a única ci-vilização americana que expandiu seu território a ponto de abranger, pelo menos em parte, os três subsistemas geopolíticos que caracte-rizam a América do Sul: o subsistema amazônico, o subsistema an-dino e o subsistema platino. O Império Inca abrangeu grande parte da zona costeira do Oceano Pacífico, da Cordilheira dos Andes e da floresta amazônica (na porção não brasileira), absorvendo signi-ficativas porções dos territórios hoje ocupados pela Colômbia, Peru, Bolívia, Equador, Argentina e Chile. Em cada um desses subsiste-

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mas geopolíticos há subdivisões internas, decorrentes de alterações no meio geográfico, às vezes drásticas. Por exemplo, na parte peru-ana do Império Inca, a civilização se espalhou pelo litoral costeiro do Oceano Pacífico, escalou a Cordilheira dos Andes e penetrou em parte da floresta amazônica. Mas a tendência do Império Inca foi a de acompanhar o trajeto da Cordilheira dos Andes, ao longo da qual a geografia dispõe o ambiente em faixas litorânea (às vezes entreme-ada de desertos ou zonas áridas), montanhosa e de floresta tropical. Essas faixas são frequentemente cortadas por vales transversais. As características geográficas encontradas influenciaram a formação de povoados relativamente isolados uns dos outros e, mais tarde, comu-nidades com traços nítidos de cidades-estado, dotadas de forte senti-mento de identidade local. Por isso, é realmente admirável o projeto de unificação imperial levado a cabo pelos incas, que conseguiram ser criativos para, por um lado, impor sua dominação a essas comu-nidades locais e, por outro lado, assegurar que tais comunidades não perdessem seu próprio senso de identidade e, assim, aceitassem de modo relativamente pacífico e duradouro o domínio inca. A herança cultural e administrativa que os incas receberam dos huaris, tihua-nacos e mochicas certamente lhes facilitou o projeto imperial. Esse fenômeno não foi possível nas civilizações maia e asteca.

A célula fundamental do Império Inca era formada pelas comu-nidades camponesas, denominadas ayllus (Favre, 1985). Nessas comu-nidades a coesão social era determinada por vínculos sanguíneos, dos quais resultavam diferentes graus de parentesco, e também pela crença dos camponeses de que todos eles descendiam dos mesmos ancestrais míticos. Assim, a justificativa ideológica para a dominação inca se ba-seava exatamente no parentesco de antepassados míticos divinos, cuja vontade ancestral se materializou na formação de um grande império. Nessas condições, os incas criaram e mantiveram um império centra-lizado que absorvia milhões de pessoas, impuseram uma língua e uma religião comuns a esses povos (mas tolerando as línguas maternas e os cultos locais). Os métodos dos incas para realizar esse grandioso projeto foram variados, mas envolveram formas generalizadas de vio-lência. Uma das formas mais frequentes de imposição da dominação, chamada mitamáes, consistia em dividir os povos indóceis e deslocá-los de suas regiões de origem para fixá-los em locais distantes. Com esse

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procedimento, os incas rompiam os laços de parentesco, de religião e de identidade local que uniam os rebeldes, tornando muito mais eficaz o sistema de dominação. Outra técnica frequente de dominação usada pelos incas era a manutenção de reféns, inclusive múmias dos nobres e sacerdotes dos povos dominados. Capturavam as múmias, os líderes e seus familiares de uma comunidade e os mantinham como reféns na capital do Império. Isto assegurava a colaboração da comunidade do-minada, temerosa de que seus antepassados mumificados, líderes e sa-cerdotes não mais retornassem, o que significava, na prática, interrom-per o diálogo entre os homens comuns e os deuses, pois esse diálogo era intermediado pelos entes mumificados, pelos líderes e sacerdotes de cada comunidade. Uma variação dessa técnica era manter como reféns dos incas apenas os filhos dos nobres da comunidade dominada. Esses reféns seriam educados em escolas incas, a fim de assimilarem a cultura inca e reproduzi-la posteriormente nas suas comunidades de origem, para as quais retornavam como novos líderes ou sacerdotes (Peragalli, 1994). Acrescente-se a tudo isto o fato de que os incas cria-ram inúmeras vias de comunicação e estradas que ligavam todas as regiões do Império. Essas vias e estradas eram percorridas rapidamente por mensageiros (chasquis), que tornavam muito eficiente o sistema de comunicação e de troca de informações entre o governo central e as demais regiões dominadas pelos incas.

Para obter a máxima eficiência da estrutura produtiva de seu Im-pério, os incas adotaram duas medidas muito importantes: em pri-meiro lugar, permitiram que as comunidades locais mantivessem seus cultos religiosos e suas próprias divindades, mas incorporaram na-quelas comunidades o culto às divindades incas; em segundo lugar, os incas mantiveram a autoridade e o prestígio do chefe de cada ayllu, o qual, por sua vez, em troca da preservação de seu status, devia fideli-dade ao Estado Inca. Formou-se, portanto, uma complexa e delicada rede de alianças entre os líderes de cada ayllu e o Estado Inca: este, em geral, não abolia os privilégios desses líderes locais, mas exigia deles que trabalhassem em favor da difusão e realização dos interesses incas perante a comunidade local. Por conseguinte, no plano ideológico, o pagamento de tributos pela comunidade ao Estado Inca aparecia como legítimo, porque intermediado pelo chefe do ayllu e porque associado a um sistema de reciprocidade garantido pelos incas.

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Assim como no Império Inca, também nas civilizações maia e asteca a expansão baseou-se, num primeiro momento, no poderio militar. Mas a manutenção e expansão dessas civilizações realmente dependeu dos mecanismos ideológicos e culturais de controle dos povos submetidos. O sistema de dominação envolvia mecanismos de cooptação dos líderes locais, bem como mecanismos de persuasão da comunidade para aceitar consensualmente a hegemonia dos domina-dores e pagar os tributos devidos sem grande resistência. Portanto, o hard power era substituído ou apoiado pelo soft power, no sentido que Joseph Nye usa esses termos atualmente (Nye, 2002).

Um último aspecto cultural comum entre os incas, astecas e maias e que merece registro é o caráter autárquico de suas economias. Todas essas civilizações apoiavam-se num sistema econômico fechado ao co-mércio exterior. Eram civilizações com economia predominantemen-te agrícola. Havia pouca atividade comercial entre os diferentes povos. Cada comunidade tendia a produzir tudo o que precisava, de tal modo que não havia condições favoráveis ao comércio em larga escala. Além disso, como foi comentado, os camponeses não acumulavam exceden-tes econômicos para si, razão pela qual os lucros comerciais tendiam a ser pequenos. Apenas os maias superaram em parte essas deficiências e constituíram uma verdadeira classe de comerciantes.

Não se apaga a ancestralidade

Não têm fundamento razoável os discursos acadêmicos e políti-cos atualmente correntes, no sentido de que a América Latina estaria sendo vítima da supressão de sua identidade cultural em razão da imposição da cultura de outros povos dominantes da sociedade in-ternacional. Esse tipo de homogeneização cultural jamais aconteceu na história da humanidade e nem tem possibilidade de acontecer es-pecificamente na América Latina. É oportuno retomar as indagações fundamentais que motivaram este estudo.

Existe uma identidade cultural genuinamente latino-ame-ricana? Se essa identidade cultural existir, quais seriam os ele-mentos gerais ou particulares de identificação cultural que a caracterizariam? Como os elementos gerais de identificação da cultura ocidental dominante ou hegemônica (europeia e norte-

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americana) coexistiriam com os elementos de identidade cultu-ral da América Latina?

Neste trabalho foi dito que o desenvolvimento cultural da Amé-rica Latina ocorreu em três principais fases: a do povoamento das Américas; a de formação e apogeu das altas culturas pré-colombianas; e a fase de formação da cultura colonial na região e de seus principais desdobramentos. As duas primeiras fases apresentaram elementos culturais desenvolvidos pelos povos americanos de modo autóctone, pois estavam em estado de isolamento em relação a outras civilizações. No entanto, as estruturas econômicas, sociais, políticas desses povos revelam elementos culturais comuns a outras civilizações e povos não americanos, indicando importante influência de arquétipos culturais também na América Latina. Apesar disto, os povos e civilizações pré-coloniais imprimiram suas marcas nessas estruturas, conciliando ao longo de muitos séculos os elementos culturais arquetípicos com os elementos das culturas locais. Na terceira fase, isto é, quando elemen-tos da cultura europeia foram introduzidos rapidamente no universo cultural dos povos indígenas latino-americanos, ocorreram drásticos choques culturais, em que a dominação ou hegemonia cultural da Europa prevaleceu. Todavia, subsistiram alguns fortes elementos cul-turais indígenas das fases anteriores à colonização.

A análise desenvolvida evidenciou que o problema de choques culturais na América Latina é verdadeiramente “ancestral”. Desde que as Américas começaram a ser povoadas, grupos humanos per-sistentemente entram em confrontos uns com os outros. Quais-quer que sejam os motivos desses infindáveis confrontos, em to-dos eles há uma constante: uma cultura pretende ter hegemonia sobre a cultura rival e ambas lutam buscando o reconhecimen-to de seu valor e querem se autoafirmar perante culturas rivais. Portanto, falar em identidade cultural latino-americana obriga o pesquisador, em maior ou menor grau, a revolver esse gigantesco mosaico cultural. Minha percepção é de que a cultura na América Latina (claro que noutras partes do mundo também) se asseme-lha a uma rocha sedimentar. Há camadas culturais muito antigas, às quais se sobrepõem camadas culturais mais recentes, de modo que as vejo “empilhadas” conforme sua ordem de antiguidade e da dominação ou hegemonia que cada qual conseguiu ter em certo

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momento histórico. Mas em alguns pontos essa rocha sedimentar está partida e, então, é possível enxergar perfeitamente os restos ou “cacos” de culturas antigas que afloram e põem-se em contato com as camadas culturais mais atuais. Ao revolver esse “entulho”, ficamos procurando onde encaixar o “caco” perdido, conforme o colorido dos seus traços sedimentares. Ao realizar essa tentativa de encaixar a peça cultural perdida, é possível observar que há muitos pedaços da rocha sedimentar cultural em que o caco pode-ria encontrar seu lugar. A rocha cultural, enfim, tem uma compo-sição mais ou menos uniforme, ainda que suas diferentes camadas tenham sido formadas com materiais distintos. Mas é exatamente a combinação de todos esses materiais que dá coesão, consistência, solidez a essa rocha cultural. Mesmo com uma fratura aqui ou ali, o caco cultural pode ser reintegrado à rocha sedimentar cultural, porque é parte dela.

Por esses motivos, não se pode falar de “uma” identidade “da” ou “na” América Latina. A região é um mosaico multidimensional e multicolorido de culturas que se articulam, que têm muitos traços identitários comuns, mas que não abdicam de seus fortes sentimen-tos de pertencimento a culturas locais bem caracterizadas. Como outras partes do mundo, também a América Latina é multicultural e plurinacional. É de fato impossível pretender a homogeneização cultural latino-americana. Os processos de integração que estão em curso na América Latina precisarão contemplar o multiculturalismo e a plurinacionalidade da região. Os processos de mediação simbó-lica, cultural, na América Latina se desenvolvem desde tempos an-cestrais. Continuarão a ocorrer na contemporaneidade, obviamente com maior complexidade e velocidade. No entanto, as culturas locais dispõem de mecanismos internos mais ou menos eficientes para que não se desintegrem totalmente. Isto faz parte do processo dialético de autoafirmação cultural quando ocorrem os choques entre cultu-ras locais e cultura global. O processo global de integração cultural, que tende a homogeneizar culturas, é o mesmo que, paradoxalmente, acentua as diferenças culturais. Trata-se de processo dialético que en-volve a alteridade global-local para construir, reconstruir, transformar, diluir ou miscigenar a identidade cultural do indivíduo e da própria sociedade, hoje de escala planetária (Seixas, 2008).

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Mesmo que esteja em curso um amplo e profundo processo de choques culturais provocados pela globalização (Huntington, 1997), esses sedimentos culturais irão se acomodar numa nova camada da grande rocha cultural. Alguns elementos da cultura dominante ou hegemônica vão prevalecer e ficar em sedimentos mais aparentes; alguns elementos das culturas não hegemônicas também vão prevalecer e ocupar o seu lugar na nova camada sedi-mentar da rocha cultural; finalmente, noutros casos, os materiais orgânicos de que são formadas as culturas dominantes ou hege-mônicas e as não hegemônicas vão se misturar e, assim, formarão uma nova substância que se acomodará no seu espaço para formar a atual camada da rocha sedimentar cultural. E, tendo eu apren-dido com os maias, com os astecas, com os incas e com os índios brasileiros, estou consciente de que o nosso ciclo também vai ter-minar. Depois dele, uma nova camada cultural será depositada na rocha que sustenta todas as civilizações.

Renato Seixas - professor do Programa de Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (Prolam), nas áreas de Relações Internacionais, Direito Internacional de Integração; e Comunicação e Cultura.

Notas (66) É conveniente registrar aqui a conceituação desses elementos. Os elementos arquetípicos são compostos por fatores biogenéticos, pelos mitos e pelas narrativas que fixam a origem de uma certa sociedade. Esses fatores, por serem universais, estão presentes no inconsciente co-letivo e frequentemente emergem nas diversas manifestações da vida cotidiana. Os elementos culturais híbridos se originam das relações culturais intertextuais, dos contatos entre culturas diferentes, dos processos sincréticos de elementos culturais de povos distintos, de valores, ritos, símbolos que provêm de universos culturais diferentes e que são reorganizados num cosmos no âmbito de uma cultura específica. Finalmente, os elementos dominantes, que são os elementos selecionados pelos poderes hegemônicos no contexto de certa cultura, a partir de critérios que correspondam aos interesses daqueles poderes, e, a seguir, são disseminados para serem reabsorvidos pela sociedade com significados simbólicos também hegemônicos. É nesses sen-tidos, portanto, que neste trabalho serão feitas referências aos elementos culturais arquetípicos, híbridos e dominantes.(67) MELLA, Federico A. Arborio. O Egito dos faraós: história, civilização, cultura. São Pau-lo: Hemus, 1994.(68) DEMANT, Peter. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004.(69) As “visitações” consistiam em relatórios que os colonizadores faziam a respeito das informações que colhiam nas comunidades dos povos dominados.

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O Impacto do Microcrédito para a mulher latino-americana

Cremilda Medina

Leonor Amarante

Ana Candida Vespucci

Márcia Ferraz

Felipe de Paula Lopes

Adriano Takeshi Miyasato

16 x 23 cm

Caslon Pro

90g/m2 Offset

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600

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