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MINISTRIO DA SADE

DIREITO SANITRIO E SADE PBLICAVolume 1

Coletnea de Textos

Braslia DF 2003

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MINISTRIO DA SADE Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade Departamento de Gesto da Educao na Sade

DIREITO SANITRIO E SADE PBLICAVolume 1

Coletnea de Textos

Srie E. Legislao de Sade

Braslia DF 2003

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2003. Ministrio da Sade. permitida a reproduo parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte. Srie E. Legislao de Sade Tiragem: 5.000 exemplares Coletnea de textos de Direito Sanitrio decorrente do Projeto de Formao de Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal em Direito Sanitrio e dos Cursos de Especializao e de Extenso a distncia em Direito Sanitrio para Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal oferecidos pela Faculdade de Direito da Universidade de Braslia, em parceria com a Escola Nacional de Sade Pblica da Fundao Oswaldo Cruz no mbito do Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no SUS do Ministrio da Sade. Quando nominados, os textos so de autoria dos seus autores. Elaborao, distribuio e informaes: MINISTRIO DA SADE Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade Departamento de Gesto da Educao na Sade Coordenao de Aes Populares de Educao na sade Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no SUS Esplanada dos Ministrios, bloco G, edifcio sede, sala 725, 7. andar CEP: 70058-900, Braslia DF Tel.: (61) 225 1167 Fax: (61) 315 2862 Organizador: Prof. Mrcio Iorio Aranha (Faculdade de Direito UnB) Autores: Adalgiza Balsemo Andrea Lazzarini Salazar Augusto Cesar de Farias Costa Dalmo de Abreu Dallari Deisy de Freitas Lima Ventura Edn Alves Costa Ela Wiecko Volkmer de Castilho Eleonor Minho Conill Gilson Carvalho Hugo Nigro Mazzilli Jos Marcelo Menezes Vigliar Karina Rodrigues Mrcia Flvia Santini Picarelli Marcus Faro de Castro Nelson Rodrigues dos Santos Sebastio Botto de Barros Tojal Sueli Gandolfi Dallari Vidal Serrano Nunes Jnior Impresso no Brasil / Printed in Brazil Ficha Catalogrfica ___________________________________________________________________________________________ Brasil. Ministrio da Sade. Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade. Departamento de Gesto da Educao na Sade. Direito sanitrio e sade pblica / Ministrio da Sade, Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade, Departamento de Gesto da Educao na Sade; Mrcio Iorio Aranha (Org.) Braslia: Ministrio da Sade, 2003. 2 v. :il. (Srie E. Legislao de Sade) Contedo: v .1: Coletnea de textos; v. 2: Manual de atuao jurdica em sade pblica e coletnea de leis e julgados em sade ISBN 85-334-0733-5 1. SUS (BR). 2. Direito Sanitrio. 3. Sade Pblica. I. Brasil. Ministrio da Sade. II. Brasil. Secretaria de Gesto do Trabalho e da Educao na Sade. Departamento de Gesto da Educao na Sade. III. Aranha, Mrcio Iorio (Org.). IV. Ttulo: Coletnea de textos . V. Ttulo: Manual de atuao jurdica em sade pblica e coletnea de leis e julgados em sade. VI. Srie. NLM WA 540 __________________________________________________________________________________________Catalogao na fonte Editora MS

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CONTRACAPA Direito Sanitrio e Sade Pblica uma publicao do Ministrio da Sade voltada a introduzir na literatura nacional um corpo sistematizado de doutrina, legislao e jurisprudncia sobre a temtica de sade. Vem estruturada em 2 volumes. O PRIMEIRO VOLUME composto por uma coletnea de textos pertinentes aos seguintes temas: direito sanitrio; direito constitucional sanitrio; tica sanitria; defesa judicial e extrajudicial de interesses transindividuais em sade; crimes contra a sade pblica; direito e sade mental; vigilncia sanitria e proteo da sade; epidemiologia; direito sanitrio do trabalho; direito internacional sanitrio; documentos internacionais em sade; competncias e rotinas de funcionamento dos conselhos de sade; relao entre conselhos de sade e rgos do Poder Executivo; financiamento do SUS no bloco de constitucionalidade; assistncia privada sade e seus reflexos no sistema pblico. Autores renomados contriburam para a publicao, dentre eles: Adalgiza Balsemo; Andrea Lazzarini Salazar; Augusto Cesar de Farias Costa; Dalmo de Abreu Dallari; Deisy de Freitas Lima Ventura; Edin Alves Costa; Ela Wiecko Volkmer de Castilho; Eleonor Minho Conill; Gilson Carvalho; Hugo Nigro Mazzilli; Jos Marcelo Menezes Vigliar; Karina Rodrigues; Mrcia Flvia Santini Picarelli; Marcus Faro de Castro; Nelson Rodrigues dos Santos; Sebastio Botto de Barros Tojal; Sueli Gandolfi Dallari; Vidal Serrano Nunes Jnior. O SEGUNDO VOLUME contm instrumental de cunho prtico expresso em dois produtos centrais: Manual de Atuao Jurdica em Sade Pblica, elaborado por Conceio Aparecida Pereira Rezende e Jorge Trindade; e Coletnea de Leis e Julgados em Sade, elaborada por Lenir Santos. Esse volume vem acompanhado de CD com base de dados de referncia automtica de legislao e jurisprudncia pertinentes sade no Brasil, bem como verses eletrnicas de monografias finais do Curso de Especializao a distncia em Direito Sanitrio para Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal oferecido pela Universidade de Braslia em parceria com a Escola Nacional de Sade Pblica no ano de 2002/2003, mediante patrocnio Banco Interamericano de Desenvolvimento e acompanhamento pari passu de Comit Nacional composto por integrantes do Ministrio da Sade, do Conselho Nacional de Sade, dos Conselhos Estaduais de Sade, da Magistratura Federal, do Ministrio Pblico Federal e dos Ministrios Pblicos Estaduais do Brasil.

Faculdade de Direito

Escola Nacional de Sade Pblica

Universidade de Braslia UnB

Fundao Oswaldo Cruz FIOCRUZ

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LOMBADA

DIREITO SANITRIO E SADE PBLICA Volume 1: Coletnea de Textos

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Presidente da RepblicaLuiz Incio Lula da Silva

Ministro de Estado da SadeHumberto Srgio Costa Lima

Secretria de Gesto do Trabalho em SadeMaria Luiza Jaeger

Departamento de Gesto da Educao na SadeRicardo Burg Ceccim

Contrato 031/2001 do Ministrio da Sade. Consrcio Executor do Projeto de Capacitao de Conselheiros Estaduais e Municipais de Sade e Formao de Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal no mbito do Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no SUS a partir de financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento e do REFORSUS:Fundao Universitria de Braslia FUBRA Fundao para o Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico em Sade - FIOTEC Fundao de Desenvolvimento da Pesquisa FUNDEP Fundao de Desenvolvimento da UNICAMP FUNCAMP Coordenador Geral do Projeto: Antnio Ivo de Carvalho Coordenador do Subprojeto de Formao de Membros do Ministrio Pblico e Magistratura Federal: Mrcio Iorio Aranha

Instituies responsveis pela formatao dos produtos finais do Projeto de Formao de Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal em Direito Sanitrio:Universidade de Braslia (UnB) Faculdade de Direito Fundao Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) Escola Nacional de Sade Pblica Coordenao Regional de Braslia

Colaboradores do Projeto de Formao de Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal em Direito Sanitrio:Membros do Comit do Ministrio da Sade para acompanhamento do Projeto: Jos Ivo dos Santos Pedrosa (Ministrio da Sade), Simione de Ftima Cesar da Silva (Ministrio da Sade), Maria Eugnia Carvalhes Cury (Conselho Nacional de Sade), Jesus Francisco Garcia (Conselho Nacional de Sade), , Humberto Jacques de Medeiros (Ministrio Pblico Federal), Marilda Helena Santos (Ministrio Pblico Estadual), Suzana Cristina Silva Ribeiro (CONASEMS), Simone Carvalho Charbel (CONASS), Marcus Vinicius de Reis Bastos (Magistratura Federal). Conselho Nacional de Procuradores-Gerais de Justia do Brasil Conselho da Justia Federal Colgio de Diretores das Escolas dos Ministrios Pblicos do Brasil Membros dos 27 Ministrios Pblicos Estaduais brasileiros Membros do Ministrio Pblico da Unio e do Ministrio Pblico do Distrito Federal e Territrios Membros dos Ministrios Pblicos da Unio e dos Estados partcipes dos Cursos de Especializao e Extenso em Direito Sanitrio da UnB Juzes Federais partcipes do Curso de Especializao a distncia em Direito Sanitrio da UnB Consultores do Projeto: Conceio Aparecida Pereira Rezende, Jorge Trindade, Lenir Santos, Loussia Musse Felix, Maria de Ftima Guerra de Sousa e Sebastio Botto de Barros Tojal. Tutores dos Cursos de Direito Sanitrio: Adilson Jos Paulo Barbosa, Adriana Cavalcanti de Albuquerque, Conceio Aparecida Pereira Rezende, Eliza Leal Chagas do Nascimento, Ella Karla Nunes Costa, Erenice Alves Guerra, Flvio da Cunha Barboza, Jackson Semerene Costa, Janine Coelho Eugnio de Souza, Karla Leal Macedo, Luis Antnio de Moura, Margiane Cristina Freitas Sales, Maria Augusta de Mesquita Sousa, Maria Clia Delduque Pires de S, Mariana Siqueira de Carvalho, Raphael de Moura Cintra. Secretaria dos Cursos de Especializao e de Extenso a distncia em Direito Sanitrio para Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal: Euzilene Rodrigues Morais Fundo de Fortalecimento da Escola, na pessoa do Dr. Antnio Carlos da Ressurreio Xavier Ncleo de Estudos em Sade Pblica da Universidade de Braslia, em especial a participao de Ana Maria Costa Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitrio de So Paulo, em especial a participao da Prof. Sueli Gandolfi Dallari Os comentrios e contribuies dos alunos dos Cursos de Especializao e de Extenso em Direito Sanitrio de 2002-2003. As contribuies fundamentais de pessoas, cujo compromisso cvico e independente dos correspondentes vnculos institucionais, aportaram ao projeto apoio incondicional: Fabola de Aguiar Nunes, Jos Geraldo de Sousa Junior, Andr Gomma de Azevedo, Sueli Gandolfi Dallari, Maria Paula Dallari Bucci, Gilson Carvalho, Nelson Rodrigues dos Santos, Flvio Dino de Castro e Costa, Afonso Armando Konzen, Cludio Barros Silva, Marco Antonio Teixeira, Edson Ribeiro Baeta, dentre outros.

Universidade de Braslia - Reitor: Prof. Lauro MorhyFaculdade de Direito da UnB - Diretor: Dourimar Nunes de Moura Coordenador do Projeto: Mrcio Nunes Iorio Aranha Oliveira

Fundao Oswaldo Cruz - Presidente: Paulo Marchiori BussEscola Nacional de Sade Pblica da FIOCRUZ - Diretor: Jorge BermudezVice-Diretor: Antnio Ivo

Coordenao Regional da FIOCRUZ em Braslia - Coordenadora: Denise Oliveira da Silva

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NDICE APRESENTAO INTRODUO 13 14

A CONSTITUIO DIRIGENTE E O DIREITO REGULATRIO DO ESTADO 22 SOCIAL: O DIREITO SANITRIO (Sebastio Botto de Barros Tojal) 1. Direito constitucional e teoria constitucional: ponto de partida de uma reflexo cientfica 2. A Constituio de 1988: uma Constituio dirigente 3. A Constituio econmica diretiva imprimindo o carter dirigente Constituio 4. Conceito de Constituio econmica 5. A ordem econmica da Constituio de 1988 6. Concluses preliminares 7. A ordem social como item da Constituio econmica 8. O contedo das imposies de uma Constituio dirigente 9. A inteligncia de uma Constituio dirigente 22 23 24 24 25 25 26 27 27

10. A garantia do direito sade, a seguridade social e a nova ordem social da Constituio dirigente de 1988 28 11. O moderno direito sanitrio como expresso legtima de um direito regulatrio, cujo fundamento a prpria Constituio dirigente 29

12. Questes subjacentes ao reconhecimento do carter regulatrio do moderno 30 direito regulatrio. 13. Advertncia final DIREITO SANITRIO (Sueli Gandolfi Dallari) 1. Conceito de sade pblica 2. Sade como direito e direito sade 3. Do direito sade ao conceito de direito sanitrio 37 39 39 43 47

4. Autonomia cientfica do direito sanitrio e sua interao com outras reas do 51 conhecimento 5. Direito sanitrio e o direito regulatrio 6. Advocacia em sade TICA SANITRIA (Dalmo de Abreu Dallari) I . tica e Sade: uma reflexo necessria II. tica e eticismo: variaes e simulaes em torno da tica III. tica e Sociedade IV. tica e Sade 55 58 62 62 64 70 76

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OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS: SUA DEFESA JUDICIAL E EXTRAJUDICIAL (Hugo Nigro Mazzilli)

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1. A defesa dos interesses difusos, coletivos e individuais homogneos na esfera 82 administrativa e judicial 2. O inqurito civil 3. A natureza jurdica do inqurito civil 83 96

4. O alcance das atribuies do Ministrio Pblico na rea da notificao e da 97 requisio 5. O compromisso de ajustamento: contedo e eficcia 6. A ao civil pblica 8. O litisconsrcio entre rgos estaduais e federais do ministrio pblico 9. A possibilidade de transao na ao civil pblica 10. Os nus e o custeio da prova 11. O controle externo dos atos administrativos: limites entre a discricionariedade e a legalidade 12. Bibliografia CRIMES CONTRA A SADE PBLICA (Ela Wiecko Volkmer de Castilho) 1. Introduo 2. Bem jurdico e os crimes contra a sade pblica 3. Crimes contra a sade pblica no Cdigo Penal e em legislao especial 4. Responsabilidade criminal, civil, administrativa e ato de improbidade 5. Caractersticas gerais dos crimes contra a sade pblica 6. O objeto material 7. O dolo 8. Impropriedades e inadequaes da lei 9. Concurso de normas 10. Concluso 11. Bibliografia 98 100 102 103 104 105 106 107 107 107 109 110 111 114 114 115 115 116 116

7. A legitimao e o interesse de agir em defesa de interesses transindividuais 101

SADE PBLICA E IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA (Jos Marcelo Menezes 118 Vigliar) I Introduo II Sade pblica: aspectos relevantes para o presente estudo III Sade pblica e sua proteo jurdica contra a prtica de atos de improbidade administrativa 118 120 123

IV Hipteses que podem caracterizar a realizao de atos de improbidade administrativa pelos agentes pblicos da rea de sade. As sanes previstas e a 125 natureza dessas sanes.

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V Defesa da probidade administrativa em juzo: em especial, o papel reservado ao Ministrio Pblico 128 DIREITO, SADE MENTAL E REFORMA PSIQUITRICA (Augusto Cesar de 135 Farias Costa) I Introduo II Evoluo do conceito de doena mental 135 136

III Polticas de sade mental no Brasil: a psiquiatria brasileira da assistncia 140 leiga psiquiatria mdica IV Reforma Sanitria, SUS e Reforma Psiquitrica V Reforma Psiquitrica e Reforma da Assistncia Psiquitrica VI A Reforma Psiquitrica e a Sade Mental VII As Conferncias Nacionais de Sade Mental VIII Os servios substitutivos ao hospital psiquitrico IX Reforma Psiquitrica: percurso poltico-institucional X A relao entre a Psiquiatria, o Estado e a Sociedade XI Imputabilidade, inimputabilidade e periculosidade XII Capacidade civil dos doentes mentais 144 149 150 151 154 155 157 160 162

XIII A Reforma Psiquitrica e a Lei 10.216, de 06 de abril de 2001 o papel do 164 Ministrio Pblico XIV Bibliografia XV Anexos VIGILNCIA SANITRIA E PROTEO DA SADE (Edin Alves Costa) I - Conformao da Vigilncia Sanitria II - Importncia da Vigilncia Sanitria para a sade da populao, do consumidor e do ambiente III Instrumentos para a efetividade das aes de vigilncia sanitria na proteo da sade IV Objetivos e funes da Vigilncia Sanitria V O Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria VI Vigilncia Sanitria de produtos VII Vigilncia Sanitria nos portos, aeroportos e fronteiras 167 169 179 179 184 188 192 194 197 200

VIII Vigilncia Sanitria de servios direta ou indiretamente relacionados 201 com a sade IX Vigilncia Sanitria do meio ambiente e ambiente de trabalho 202 X Perspectivas para a construo da Vigilncia Sanitria como ao de sade e expresso de cidadania 203 XI Referncias bibliogrficas EPIDEMIOLOGIA E SISTEMAS DE SADE (Eleonor Minho Conill) 203 207

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1. Introduo 2. Trajetria histrico-social dos saberes e das prticas em sade

207 209

3. Expanso, crise, mudanas no modelo explicativo do processo sade/doena e na organizao dos servios de sade: a epidemiologia a servio de quem? 212 4. A epidemiologia no acompanhamento e avaliao de sistemas de sade Concluso Bibliografia 216 219 220

DIREITO SANITRIO DO TRABALHO E DA PREVIDNCIA SOCIAL (Mrcia 225 Flvia Santini Picarelli) 1. Conceitos Bsicos 225 2. Medicina do trabalho. Segurana do trabalho. Sade ocupacional. Sade do 227 trabalhador 3. Meio ambiente do trabalho. Transdisciplinaridade. Interinstitucionalidade. Interprofissionalidade 228 4. Poltica de sade do trabalhador no Brasil 5. Indicadores epidemiolgicos para a sade do trabalhador 6. O universo do no-trabalho: responsabilidade pelos desempregados, autnomos e pelas pequenas e micro-empresas 7. Sade do trabalhador na rea do trabalho (Lei n 6.514/77 e Portaria n 3.214/78, do Ministrio do Trabalho) 229 230 231 232

8. Sade do trabalhador na rea da previdncia social (Lei n 8.213/91 e Decreto n 3.048/99) 233 9. Vigilncia em sade do trabalhador no SUS 10. Princpio da preveno e CIPA 12. Acidentes do trabalho, prejuzos sociais e fatores multiplicativos 13. Aposentadoria especial 234 235 235 239

14. O papel dos Sindicatos e do Ministrio Pblico do Trabalho na defesa do 242 Direito Sanitrio do Trabalho 15. Direitos reprodutivos e capacitao trabalhista da mulher 16. Doenas e agravos do trabalho de notificao compulsria 17. Agrotxicos e resduos txicos 18. Bibliografia DIREITO INTERNACIONAL SANITRIO (Deisy de Freitas Lima Ventura) 1. A questo da sade num sistema internacional doente 2. Os atores internacionais na rea da sade 3. Os atores do comrcio internacional e a sade 4. A linha tnue entre o interno e o externo: o princpio da precauo 244 246 246 247 249 249 251 255 259

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5. Sade e integrao: o mercosul convalescente DOCUMENTOS INTERNACIONAIS Declarao de Alma Ata Carta de Ottawa para a promoo da Sade Declarao de Jacarta sobre Promoo da Sade pelo Sculo XXI adentro Carta do Caribe para a Promoo da Sade Carta de Bogot

263 267 267 270 275 280 284

COMPETNCIAS E ROTINAS DE FUNCIONAMENTO DOS CONSELHOS DE SADE NO SISTEMA NICO DE SADE DO BRASIL (Adalgiza Balsemo) 287 1. Apresentao 2. Consideraes Gerais 3. Registro cronolgico das Conferncias Nacionais de Sade do Brasil 287 288 288

4. Participao da Sociedade Civil Organizada na Sade do Brasil antes do SUS (CIMS / SUDS) 289 5. O SUS aprovado pela Sociedade Civil Organizada na 8 Conferncia Nacional de Sade 6. O Controle Social no SUS atravs dos Conselhos de Sade 7. Organizao e Funcionamento dos Conselhos de Sade 8. Regimento Interno 9. Estrutura dos conselhos 10. Periodicidade das reunies 11. Registros das Reunies dos Conselhos de Sade 12. Quem so os conselheiros e como so escolhidos 13. Presidncias dos Conselhos de Sade 14. Comisses 15. Resoluo 33/92 do CNS 16. Plenria de Conselhos de Sade 17. Capacitao de Conselheiros de Sade 18. Projeto Nacional de Capacitao de Conselheiros de Sade 290 290 291 291 291 292 292 292 293 293 293 295 295 296

19. Principais questionamentos dos Conselheiros de Sade aos membros do Ministrio Pblico nas Plenrias de Conselhos, Conferncias de Sade e cursos 296 de capacitao de conselheiros 20. O que as Conferncias Nacionais de Sade tratam sobre o papel do Ministrio Pblico 21. Consideraes Finais Bibliografia 297 298 298

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A RELAO ENTRE OS RGOS EXECUTIVOS E O CONSELHO NACIONAL DE SADE NA GESTO DO SUS: UM RELATO COMENTADO (Nelson Rodrigues dos Santos) 300 O FINANCIAMENTO PBLICO DA SADE NO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE (Gilson Carvalho) I - INTRODUO II - O DIREITO SADE DE TODOS OS CIDADOS E SEU FINANCIAMENTO 306 306 309

III - OS PRECEITOS LEGAIS DO FINANCIAMENTO PBLICO DA SADE 310 IV - OPERACIONALIZANDO O CONTROLE FINANCEIRO DO SUS V - CONCLUINDO 329 331

A ASSISTNCIA PRIVADA SADE: REGULAMENTAO, POSIO IDEC E REFLEXOS NO SISTEMA PBLICO (Andrea Lazzarini Salazar, Karina Rodrigues, 333 Vidal Serrano Nunes Jnior) I. A proteo jurdica da sade do consumidor II. A lei 9.656/98 - a nova lei de planos de sade - e sua regulamentao III. Reflexos no SUS IV. Consideraes finais Bibliografia 333 342 359 360 361

DIMENSES POLTICAS E SOCIAIS DO DIREITO SANITRIO BRASILEIRO 363 (Marcus Faro de Castro) 1. INTRODUO 2. A SADE COMO POLTICA SOCIAL PERANTE O DIREITO 4. COMENTRIOS FINAIS Referncias bibliogrficas 363 364 373 373

3. O SUBSTRATO POLTICO DO DIREITO SANITRIO BRASILEIRO 367

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APRESENTAOO Projeto de Formao de Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal em Direito Sanitrio est inserido no Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no SUS PAFCS. Este Programa se tornou realidade a partir de uma parceria entre o Conselho Nacional de Sade, o Ministrio Pblico e o Ministrio da Sade. Seu objetivo contribuir para o aprimoramento do Sistema nico de Sade, visto ao mesmo tempo como resultado e como provocador do processo de construo de uma sociedade participativa que busca a efetivao dos direitos sociais contemplados na Constituio Federal. O Sistema nico de Sade, inscrito na Constituio, tem sua organizao pautada pelos princpios da universalidade de acesso, da eqidade e integralidade do atendimento e da descentralizao e democratizao da gesto. De acordo com o texto constitucional, as aes e servios de sade so de relevncia pblica. Uma vez que ao Ministrio Pblico cabe zelar e promover as medidas necessrias garantia dos servios de relevncia pblica, faz-se necessria a capacitao de seus membros no campo do Direito Sanitrio, contribuindo para o aprimoramento de suas aes de forma a incorporar a lgica do cidado e da construo do sistema na busca da garantia do direito sade. O Programa de Apoio ao Fortalecimento do Controle Social no SUS est sob responsabilidade da Secretaria de Gesto de Investimentos em Sade SIS, do Ministrio da Sade. Os recursos financeiros para sua implementao provm do REFORSUS, por meio de emprstimo do Banco Interamericano de Desenvolvimento - BIRD. A execuo, que foi contratada aps seleo por licitao internacional, feita por um Consrcio composto por quatro instituies de ensino FIOCRUZ/FIOTEC, UnB/FUBRA, UFMG/FUNDEP e UNICAMP/FUNCAMP -, sendo a Faculdade de Direito da UnB a responsvel pela coordenao dos Cursos de Especializao e Extenso em Direito Sanitrio. O PAFCS desenvolve, concomitantemente, o Projeto de Capacitao de Conselheiros Estaduais e Municipais de Sade, acreditando que o fortalecimento dos conselhos contribuir para a construo de polticas de sade mais permeveis s demandas e necessidades da populao e para o incremento de formas de democratizao da gesto da sade nos diferentes nveis de governo, com impacto direto no quadro de sade. Fortalecer o Controle Social possibilitar a participao da sociedade na busca de alternativas de ateno sade, no acompanhamento e controle do uso de recursos pblicos e na responsabilizao do Estado e da prpria sociedade em relao sade. Assim, pretende-se que a articulao entre o setor sade, o Ministrio Pblico e a Magistratura Federal contribua para a formao de Procuradores, Promotores e Juzes Federais aptos a acompanhar Gestores e Conselhos de Sade, monitorando a formulao e a implementao das polticas de sade, e a desenvolver aes dirigidas ao cumprimento dos princpios constitucionais do direito sade, da garantia do acesso e da universalizao, alm de exigir uma atuao rigorosa dos rgos do governo nas aes de controle, fiscalizao e avaliao dos produtos e servios de interesse da sade. Os dois projetos pretendem, assim, contribuir para o aperfeioamento da gesto do SUS, desenvolvendo iniciativas que possibilitem a democratizao, a qualificao, a racionalizao e a modernizao da administrao do Sistema nico de Sade. MINISTRIO DA SADE

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INTRODUOA importncia hoje reconhecida do tema que se convencionou chamar, no Brasil, de Direito Sanitrio diz muito sobre o processo de elaborao desta publicao reunidora de espectro variado de estudos sobre a sade pblica. Tendo-se por base a compreenso de que a sade vem protegida como bem de relevncia pblica no texto constitucional de 1988, bem como de que se insere na seleta categoria de atividades cuja gesto vem submetida a duplo regime jurdico (privado e pblico), fica evidente a complexidade de que esse setor v-se revestido. As dificuldades da resultantes agravam-se com a diferena de tratamento jurdico dada rea de operacionalizao de atividades de sade frente ao tratamento conferido rea de ordenao de tais atividades. Para seu equacionamento, so necessrias contribuies de ordem constitucional, administrativa, civil, financeira dentre muitas outras. Foi nesse espao de agregao de ramos de estudo jurdico a partir da unidade temtica da sade que se inseriu a experincia dos Cursos de Especializao e de Extenso a distncia em Direito Sanitrio para Membros do Ministrio Pblico e da Magistratura Federal da UnB e destinados aos operadores do direito mais demandados no novo ambiente de exerccio de democracia participativa por intermdio dos conselhos de sade em todos os nveis federados. O olhar jurdico focado na sade tem o condo de suscitar no sujeito cognoscente um horizonte ampliado. A norma isolada do seu contexto conceitual cede espao a um horizonte compreensivo do contexto histrico da sade como sade pblica e como espao pblico de exerccio da cidadania. Quando o jurista se aproxima da temtica da sade, ele est simultaneamente rendendo-se humanizao de seu discurso, que dificilmente tem correspondente em outras reas do saber. Nesse meandro de necessria perspectiva compreensiva da realidade da sade pblica, por intermdio dos sistemas estatais de gesto da atividade, bem como de sua ordenao, ao jurista se impem novas exigncias de diagnstico e prognstico conjuntural capazes de orient-lo na escolha dos instrumentos mais adequados satisfao dos princpios e diretrizes das aes e servios de sade. Assim, o texto de abertura desta publicao, de autoria de Sebastio Botto de Barros Tojal, intitulado A Constituio Dirigente e o Direito Regulatrio do Estado Social: o Direito Sanitrio, introduz o leitor no mbito do direito sanitrio a partir da compreenso da Constituio de 1988 como constituio dirigente em ntida contraposio concepo de Constituio como mero estatuto organizatrio ou como instrumento de governo. O texto constitucional compreendido a partir de seu carter prospectivo, que aspira transformar-se num plano normativo-material global que determina tarefas, estabelece programas e define fins, principalmente visualizado na Constituio Econmica diretiva voltada implementao de uma nova ordem econmica e social tanto no mbito da prestao de servios pblicos quanto no de explorao de atividade econmica, inviabilizando, assim, uma mera interpretao autrquica do seu texto e abraando a atualizao das categorias normativas na perspectiva de sua imanncia poltica. Expe-se, enfim, o direito sanitrio, neste contexto de concepo constitucional, como direito regulatrio acompanhado, portanto, de caractersticas prprias a esse enfoque: perda pelo Poder Legislativo do monoplio da funo normativa; consequente dficit democrtico; e a referncia aos atos normativos do Executivo. Todos eles revelam como condio de compreenso do

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direito sanitrio a postura de se partir de sua dimenso material, pois esta impe a renovao das categorias de interpretao constitucional para sua plena implementao. O artigo intitulado Direito Sanitrio, de Sueli Gandolfi Dallari, apresenta noes propeduticas de sade pblica, mediante enunciado detalhado de sua institucionalizao histrica por intermdio dos diversos significados incorporados pelos termos que denotam sade, principalmente em face de sua aproximao dos conceitos de ginstica e dieta, desde a antigidade grega at os dias de hoje. Salientando a mudana de perspectiva social sobre a sade, ao verificar que o risco de contrair doenas se sobrepe ao da prpria molstia, transformando-a, de episdio individual, a objetivo coletivo em razo da disseminao dos meios estatsticos, enfim, visualizando a proteo sanitria como poltica de governo representada nas trs formas clssicas de preveno primria, secundria e terciria , chega-se concepo predominante atualmente de estabelecimento de prioridades pelas estruturas estatais de preveno sanitria no mais em decorrncia de dados epidemiolgicos, mas em virtude de anlise econmica de custo-benefcio. O direito sade inserido no contexto de sua construo social consubstanciada no prembulo da Constituio da Organizao Mundial da Sade (sade o estado de completo bem-estar fsico, mental e social e no apenas a ausncia de doena) e, a partir da, so identificados os elementos essenciais ao conceito de sade no equilbrio interno do homem e deste com o meio ambiente. As vrias facetas jurdicas da sade so esmiuadas a partir de sua identificao como direito humano direito sade e como parte do direito administrativo direito sade pblica. Da juno de ambos surge o conceito abrangente de direito sanitrio com enfoque no estudo amplamente referenciado e sistematizado da legislao sanitria nos continentes europeu e americano. A par disso, o direito sanitrio analisado como ramo do conhecimento jurdico-acadmico, subcampo do conhecimento cientfico, com leis prprias derivadas dos agentes e das instituies que o caracterizam, evidenciando a superao da diviso entre cincia pura e aplicada. Ao identificar o direito sanitrio e o direito regulatrio do Estado Contemporneo, a autora salienta o carter democrtico de sua normatizao a partir da colaborao do Conselho Nacional de Secretrios Estaduais de Sade (CONASS), do Conselho Nacional de Secretrios Municipais de Sade (CONASEMS), da Comisso Intergestores Tripartite (CIT), do Conselho Nacional de Sade e das Conferncias de Sade, como tambm do Ministrio Pblico como interlocutor privilegiado para o exerccio da advocacia em sade. A viso de conjunto dos fundamentos de direito sanitrio fechada com as consideraes de Dalmo de Abreu Dallari, no seu texto intitulado tica em Sade. Conjecturando sobre o transitrio e o real e permanente na convivncia humana, o autor questiona o atributo de progresso dado s novas possibilidades de influir na natureza, em especial quando se apontam os programas de governo de equacionamento de gastos com o desenvolvimento cientfico e tecnolgico frente ao atendimento de demandas sociais. Visualiza um quadro de mudanas e contradies encabeado pelo processo de globalizao e evidenciado pelo crescimento das discriminaes, identificando, enfim, o estudo da tica como a tentativa de reao ao quadro de aes anti-humanas presente na viso de mundo do economicista, que transparece a submisso de valores do ser humano, dentre eles, a sade, a postulados distorcidos de progresso. A tica aqui encarada como a medida nas discusses sobre os critrios para o uso, pblico ou privado, dos recursos materiais e intelectuais, sobre a presena do Estado e o estabelecimento de polticas pblicas, bem como sobre os poderes, deveres e responsabilidades dos que mantm algum poder de deciso sobre os assuntos e problemas de interesse comum, questes que tm influncia imediata ou tm

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reflexo, s vezes muito grave, na considerao da problemtica da sade individual ou coletiva. Hugo Nigro Mazzilli aprofunda, em seguida, a preciso conceitual dos interesses transindividuais ou coletivos em sentido amplo, esmiuando os conceitos de direitos coletivos em sentido estrito, de direitos difusos e de direitos individuais homogneos. Seu artigo, intitulado Os interesses transindividuais: sua defesa judicial e extrajudicial, contempla, mediante ampla referncia doutrinria e jurisprudencial, as formas e limites de atuao do Ministrio Pblico na ao civil pblica, no inqurito civil e no cabimento de compromisso de ajustamento, enfim, fornece base slida de anlise dos mecanismos de defesa de quaisquer interesses transindividuais e das peculiaridades de atuao e competncia do Ministrio Pblico nesta seara. Voltados implementao dos ditames do Direito Sanitrio, dois textos abordam o Direito Penal Sanitrio e a Improbidade Administrativa. Ela Wiecko Volkmer de Castilho, em seu artigo intitulado Crimes contra a Sade Pblica expe a sistemtica do ordenamento jurdico brasileiro quanto proteo do bem jurdico sade em suas tipicidades, tanto no Cdigo Penal, quanto em legislao especial, anotando a raridade de condenaes por dano ou perigo sade mental e demonstrando a evoluo na criao da categoria de crimes contra a sade pblica como subclasse dos crimes contra a incolumidade pblica. Os tipos penais contra a sade pblica so minudenciados em algumas de suas caractersticas mais marcantes, s vezes, constantes em relao ao sujeito passivo (crimes vagos) e tcnica de definio (normas penais em branco; criminalizao de condutas de perigo; qualificao pelo resultado). A anlise dos crimes contra a sade pblica apresenta, enfim, consideraes sobre as peculiaridades das tipificaes penais referentes sade, com estudo pontuado nas classificaes dos crimes previstos a influenciar o tipo de prova a ser realizada no competente processo penal, bem como estuda seus elementos e idiossincrasias, tais como: objeto material; dolo; impropriedade e inadequao da lei; concurso de normas. Dita viso do modelo legislado penal para a sade pblica complementado pela anlise de Marcelo Vigliar, no seu artigo intitulado Sade Pblica e Improbidade Administrativa, eminentemente qualificada pelo enfoque prtico de como o Membro do Ministrio Pblico, vendo os problemas da rea de sade, pode encar-los, formatado em linguagem de maior intimidade com o leitor confidente do itinerrio a seguir para a devida formatao de novas reas de conhecimento jurdico como a rea da sade. Prope o itinerrio de deteco do significado da sade pblica, resultando na compreenso ntima da relao existente entre sade pblica e o princpio da improbidade administrativa, para, em seguida, estudar o bem jurdico sade pblica e sua implicaes com a prtica de atos que venham a ferir o princpio tico da probidade administrativa, mediante anlise detalhada da Lei 8.429/92 e do papel do Ministrio Pblico, finalmente concluindo que temas como a gesto de recursos pblicos para a sade, a necessidade de oferta do competente e eficaz servio pblico de sade, a no omisso das polticas pblicas em relao a epidemias, todos so temas afetos ao campo da Lei 8.429/92. A anlise da proteo da pessoa humana na rea da sade no pode ser melhor evidenciada do que no tema de Direito, Sade Mental e Reforma Psiquitrica tratado com profundidade por Augusto Csar de Farias Costa a partir da viso de que a histria da relao do ser humano com a loucura apresenta-se como a histria da tolerncia para com a diferena entre as pessoas. Nele, o autor perfaz anlise crtica do modelo assistencial psiquitrico brasileiro, enunciando a necessria juno dos esforos para a preservao do direito singularidade, subjetividade ou diferena, situando a sade mental como disciplina integradora dos saberes relativos condio humana em

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uma abordagem necessariamente mais ampla, que revela as diversas faces dos problemas do modelo assistencial psiquitrico vivenciado no Brasil. Suas constataes atribuem importncia viso de conjunto que as aes do Ministrio Pblico devem ter. A anlise rica em conceitos, fornecendo tratamento aprofundado de temas, tais como: doena mental versus sade mental; polticas de sade mental no Brasil (assistncia leiga versus psiquiatria mdica); processo de publicizao da assistncia psiquitrica no Brasil; assistncia manicomial versus psiquiatria preventiva norteamericana (viso crtica de ambos os modelos); doena mental versus distrbio emocional; interdisciplinaridade e transdisciplinaridade no tratamento psiquitrico; tratamento biomdico de polarizao entre loucura e sanidade; histria da publicizao do tratamento psiquitrico no Brasil; atribuio histrica de qualificativos sociais aos loucos expressos nos termos irresponsabilidade, incapacidade, periculosidade e, nas dcadas de 1960 e 1970, lucratividade; estudo da relao Reforma Sanitria (Municipalizao da Sade) Reforma Psiquitrica SUS Redemocratizao; modelos assistenciais da histrica brasileira no lidar com a loucura e novos servios substitutivos; articulao das novas formas de ateno Sade Mental com os demais programas e servios de sade do SUS (Programa de Sade da Famlia PSF, Programa de Agentes Comunitrios de Sade PACS); Reforma Psiquitrica e Reforma da Assistncia Psiquitrica; assistncia hospitalar mdico-psiquitrica versus modelo assistencial de base territorial, comunitrio e aberto, com aes de importncia e amplitude significativas (Centro de Ateno Psicossocial CAPS, Ncleo de Ateno Psicossocial NAPS, CAIS-Mental, CERSAM, Oficinas Teraputicas, Hospitais-dia, Servios Residenciais Teraputicos, Centros de Convivncia, incluso da sade mental na Ateno Bsica, Projetos de Interveno Cultural, criao de Comisses nacional e estaduais de Reforma Psiquitrica e de Sade Mental vinculadas s instncias de Controle Social do SUS, Lei 9.867 e suas Cooperativas Sociais); III Conferncia Nacional de Sade Mental (III CNSM), de dezembro de 2001; tramitao e conquistas da Lei 10.216/2001; anlise verdadeiramente multidisciplinar Psiquiatria Forense da imputabilidade, periculosidade e capacidade civil do doente mental. Finalmente, o autor analisa o papel do Ministrio Pblico frente Reforma Psiquitrica e a Lei 10.216/2001, atentando para iniciativas como as de Minas Gerais, que previu a criao de juntas revisoras para suprir a deficincia oriunda da redao aprovada na Lei 10.216/01 no que dizia respeito atuao do Ministrio Pblico na constituio de equipe revisora multiprofissional de sade mental em razo da posio fundamental que ocupa o MP na superao da cultura manicomial. Esmiuada a contextualizao da sade por seus enfoques temticos, constitucional, poltico, tico, enfim, humano, promove-se compreenso dos mecanismos de implementao da sade inaugurado pela abordagem esclarecedora e de sntese herclea sobre o tema da Vigilncia Sanitria e Proteo da Sade, de Edin Alves Costa. Autora de renome na rea da vigilncia sanitria, expe com propriedade as caractersticas deste ramo de atuao das polticas pblicas em sade e elucida a importncia de seu estudo para que a atuao de controle sobre e com o SUS possa levar em conta todos os aspectos do problema da sade, que no se resumem questo da gesto, mas sofrem influncia tambm do ambiente de ordenao administrativa, enfim, do poder de polcia, aes de controle sanitrio do ambiente, dos alimentos, do exerccio da medicina e farmcia, bem como da produo, comercializao e consumo de produtos, tecnologias e servios pertinentes ao complexo sade-doena-cuidadoqualidade de vida. As fontes de visualizao da questo da vigilncia so identificadas: a) na medicina de Estado, que se desenvolveu inicialmente na Alemanha, de onde se originou o conceito de polcia mdica, e, com ele, a sistematizao das questes de

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sade sob a administrao do Estado; b) na medicina urbana, que se desenvolveu particularmente na Frana do sculo XVIII e deu origem noo de salubridade; c) na medicina da fora de trabalho, que, sem excluir as demais, e tendo incorporado o assistencialismo, desenvolveu-se na Inglaterra. A partir destes conhecimentos, a autora mune o leitor do arsenal terico necessrio viso crtica do modelo institucional brasileiro de vigilncia sanitria em face de seu histrico isolamento das demais aes de sade e de aes de outros mbitos setoriais com os quais tem interface, reduzindo-a indevidamente mera fiscalizao e funo normatizadora, fato que deve ser mudado, pois a deficincia do modelo brasileiro de ciso entre vigilncia epidemiolgica e vigilncia sanitria faz com que a primeira atue somente nas doenas transmissveis, esquecendo-se de subsidiar a atuao estatal de dados de doenas pertinentes qualidade de alimentos e de produtos, que muito influenciam as polticas de sade dinamizadoras do SUS por intermdio de movimentos iatrognicos indevidamente monitorados. A efetividade das aes de vigilncia sanitria na proteo da sade so estudadas em captulo especfico, situando-se o Sistema Nacional de Vigilncia Sanitria SNVS no Sistema nico de Sade SUS, principalmente em face da ausncia efetiva de uma Poltica Nacional de Vigilncia Sanitria que a articulasse de forma mais orgnica com as demais polticas de sade. A compreenso do desenvolvimento histrico dos modos de tomar coletivamente a questo da sade dada por Eleonor Minho Conill no seu texto sobre Epidemiologia e Sistema de Sade: fundamentos histricos e conceituais para uma discusso sobre o acompanhamento de direitos na prestao de servios. A histria de explicao do processo sade/doena elencada neste texto demonstra a tenso permanente entre as abordagens da medicina individual e da medicina coletiva, revelando-se, na atualidade, uma herana indesejada de abordagem do direito sade sob o enfoque do modelo organicista unicausal ou biomdico, tudo isto influenciando e sendo influenciado pelas polticas de sade adotadas no pas. Para melhor enfrentamento das questes de sade, necessrio o estudo do significado do planejamento em sade, em que o acesso aos servios e assistncia deixam de ser vistos como questo individual ou de filantropia e passam a ser encarados de modo coletivo, por meio de formas de financiamento mais ou menos solidrias. Entretanto, o fato de a sade passar, em determinado momento histrico, a ser encarada como um problema de macro-planejamento tambm no resolve a questo do direito sade, pois, se num primeiro momento, o conhecimento sobre a doena torna-se mais importante do que a cura, num segundo momento, o nascimento da clnica proclama a supremacia do diagnstico, e, num terceiro momento, a viso de planejamento econmico-financeiro transforma a questo da sade em mera medio de ndices estatsticos em prol de um agir mecnico do Estado. Portanto, o conhecimento de tais fatores auxilia a determinao dos novos dilemas da ateno sade, que teve de voltar seus olhos para a importncia dos fatores comportamentais e ambientais, enfim, para uma perspectiva multicausal, em virtude da chamada transio epidemiolgica do ocidente de substituio da predominncia das doenas infecto-contagiosas por doenas crnico-degenerativas. Agora, h um conjunto de mltiplos fatores que devem ser levados em conta para a promoo de qualquer poltica de sade, que, a partir daqui, chamada busca da integralidade e intersetorialidade, aliando-se promoo, preveno e cura. Qualquer que seja a mecanismo de controle que o operador do direito pretenda utilizar em face de uma deficincia do sistema de sade verificada por intermdio de casos concretos, deve ter presente a influncia das mudanas de viso pblica da sade e a adequao dos modelos de assistncia preconizados por cartilhas internacionais frente s peculiaridades brasileiras. O texto de Conill elenca propostas para garantia da

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continuidade do SUS centradas na municipalizao e na consolidao de Sistemas Locais de Sade por intermdio da estratgia da sade da famlia. Assim, o estudo da epidemiologia fornece o instrumental para a avaliao do Sistema nico de Sade e o texto explica os perfis de anlise, o significado dos principais indicadores de sade, os parmetros, a situao das normas operacionais no contexto das tentativas para melhor acompanhamento e controle do sistema pblico de sade, lanando mo de sistemas de informaes (SIM, SINASC, SINAN, SISVAN, SIAB), cuja atualizao de dados tem por responsveis os integrantes do setor de planejamento de sade do municpio, que os consolida e integra em programaes com metas pactuadas com que se compromete aquela esfera de Governo. Noes bsicas de direito ambiental do trabalho so abordadas por Mrcia Flvia Santini Picarelli no Direito Sanitrio do Trabalho e da Previdncia Social. A autora evidencia a posio de preeminncia das questes relativas s molstias profissionais e aos acidentes no campo do direito do trabalho, apontando os problemas decorrentes do sistema de tutela da sade do trabalhador estar assentado na tarifao por adicionais de insalubridade e de periculosidade e por aposentadorias especiais. Sua contribuio de fundo est na compreenso da necessidade de abordagem no s das condies do trabalhador isoladamente considerado, mas do ambiente do trabalho, elevando categoria de disciplina jurdica a antiga preocupao pontual sobre a sade do trabalhador. Com esta viso de conjunto, tpicos especficos so esclarecidos, tratando-se do direito tutelar do trabalho, da sade ocupacional, do meio ambiente do trabalho e sua transdisciplinaridade, da relao epidemiolgica sade ocupacional, da vigilncia da sade do trabalhador no SUS, das NOBs frente sade do trabalhador, do princpio da preveno das CIPAS, dos acidentes de trabalho, da aposentadoria especial, da capacitao trabalhista da mulher e de seus direitos reprodutivos, das doenas e agravos de notificao compulsria, dos agrotxicos e resduos txicos, tudo a ressaltar o carter nitidamente sanitrio das normas trabalhistas referentes aos riscos inerentes ao trabalho. Aborda-se tambm a compreenso de que o alcance do direito ambiental do trabalho mais amplo que os casos de relao de emprego, atingindo todos que trabalham ou simplesmente circulam nesse ambiente, independentemente da relao jurdica entre trabalhador e empreendedor. Deisy de Freitas Lima Ventura, em artigo intitulado Direito Internacional Sanitrio, assevera a evidncia do direito sanitrio como ramo especialmente atingido pela internacionalizao, por isso demandando destaque ao direito internacional sanitrio, que apresenta, em face da complexidade e difuso do seu objeto, dificuldades de regulao por parte do modelo tradicional e limitado do EstadoNao. De forma percuciente, o estudo identifica os atores internacionais na rea da sade OMS, OIT, UNICEF, UNESCO, FAO , bem como em rea correlata OMC , mediante anlise dos principais tratados que interessam sade e a anlise, com profundidade, da constituio, funes, alcance e formas de atuao daqueles organismos internacionais. Captulo especfico destinado ao esclarecimento do princpio da precauo e de sua adequao aos temas de sade, aplicando-se seu enunciado de que, frente incerteza cientfica, poder-se-ia restringir o comrcio, tendose em vista a reao internacional sua aplicao em face de narrativa de incidentes envolvendo os Estados Unidos da Amrica. O artigo finaliza com captulo dedicado a fornecer uma viso compreensiva e prospectiva do MERCOSUL e da atuao da Unio Europia, revelando ao leitor os interesses dos blocos e as normas pertinentes sade pblica. Seguem-se ao texto de Deisy Ventura os principais documentos internacionais relativos proteo da sade.

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O artigo de Adalgiza Balsemo, intitulado Competncias e rotinas de funcionamento dos Conselhos de Sade no Sistema nico de Sade do Brasil, apresenta ao leitor como o sistema de sade interage no seu ideal de descentralizao, mediante histrico preciso da progressiva participao da Sociedade Civil Organizada na promoo do sistema de sade brasileiro a partir das conquistas das Conferncias Nacionais de Sade, evidenciando a peculiaridade do subsistema jurdico da sade em face de sua produo envolvida no controle social implementado pelos Conselhos de Sade, bem como dos problemas verificados na viabilizao da experincia dos Conselhos em todo o pas. O itinerrio do funcionamento dos Conselhos esmiuado por quem vivencia diariamente este desafio e, a par de fornecer ao jurista a compreenso do funcionamento efetivo dos Conselhos, a autora faz transparecer aos operadores jurdicos os principais questionamentos dos Conselheiros de Sade aos Membros do Ministrio Pblico nas Plenrias de Conselhos e nas Conferncias de Sade. Ao debruar-se sobre este artigo, o jurista v em que medida sua atuao esperada e desejada por quem operacionaliza um vasto e complexo sistema de sade, cujos bices podem ser, ao menos em parte, superados por intermdio da atuao diligente do Ministrio Pblico e da receptividade destas questes pelo Judicirio. Segue-se uma abordagem esclarecedora sobre as atuaes do Conselho Nacional de Sade e sua capacidade de gerar o fato poltico e a reorientao do modelo de sade brasileiro. Nelson Rodrigues dos Santos registra a relao entre os rgos do Poder Executivo e o Conselho Nacional de Sade durante principalmente a segunda metade da 1990 e os primeiros anos da dcada de 2000. As dificuldades com que se debruam os interessados em traduzir o sistema de financiamento pblico da sade fatalmente eliminada a partir da leitura do estudo de Gilson Carvalho intitulado O financiamento pblico da sade no bloco de constitucionalidade. As imbricadas referncias normativas constitucionais e infraconstitucionais so dispostas de forma a se chegar a um desfecho claro dos princpios orientadores do financiamento pblico da sade no Brasil. O trabalho coletivo de Andrea Lazzarini Salazer, Karina Rodrigues e Vidal Serrano Nunes Jnior intitulado A assistncia privada sade: regulamentao, posio IDEC e reflexos no sistema pblico fornece mais uma perspectiva de enfrentamento da questo da sade pblica no Brasil agora a partir do funcionamento e dos deveres assumidos pelos planos de sade privados frente aos seus segurados e aos correspondentes atendimentos efetuados sob o manto do Sistema nico de Sade. Finalmente, revelando a conscincia das dimenses de poltica pblica e poltica social do Direito Sanitrio, Marcus Faro de Castro expe em seu artigo intitulado Dimenses polticas e sociais do direito sanitrio brasileiro, de forma precisa, e a partir do histrico de ampliao da presena poltica privada na despesa social da rea de sade no Brasil, o conjunto de embates polticos entre as vises de mundo dos grupos privados e do movimento sanitarista. A ambiguidade detectada nas propostas privatistas e sanitaristas de descentralizao esclarecedora, bem como o enquadramento amplo das agendas privatista e sanitarista no contexto da expanso dos programas de ajuste estrutural. Alis, dentre as inmeras qualidades do artigo, est a de suscitar inquietaes capazes de gerar sementes de pesquisa como a da relao entre as tenses privatista-sanitarista de seus conceitos de descentralizao e a tenso mais em voga entre universalizao e focalizao na sade. A partir do momento em que o Direito Sanitrio visto como um campo de poltica pblica impregnado de poltica social, evidencia-se o carter de integrao social que lhe inerente e permite-

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se enxergar com maior acuidade o sentido de fundo da universalizao da sade frente a propostas de focalizao. O seqenciamento dos textos abrangente e multifacetado para possibilitar a viso de conjunto demandada pelo setor da sade sem se descuidar do fato de que a leitura de tais textos somente o primeiro passo mudana de perspectiva sobre a sade. Eis a razo primeira desta publicao do Ministrio da Sade no poder estar completa sem o seu segundo volume correspondente atuao prtica do operador do Direito, em especial o Membro do Ministrio Pblico, bem como coletnea de leis e julgados em sade. Mrcio Iorio Aranha Organizador

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A CONSTITUIO DIRIGENTE E O DIREITO REGULATRIO DO ESTADO SOCIAL: O DIREITO SANITRIO1(Sebastio Botto de Barros Tojal) Sebastio Botto de Barros TojalProfessor Doutor da Faculdade de Direito da USP

NDICE 1. Direito Constitucional e Teoria Constitucional: ponto de partida de uma reflexo cientfica. 2. A Constituio de 1988: uma Constituio dirigente. 3. A Constituio Econmica diretiva imprimindo o carter dirigente Constituio. 4. O conceito de Constituio Econmica. 5. A ordem econmica da Constituio de 1988. 6. Concluses preliminares. 7. A ordem social como item da Constituio Econmica. 8. O contedo das imposies de uma Constituio dirigente: o carter vinculante das constituies dirigentes transcende a realizao infraconstitucional das normas programticas constitucionais para acolher tambm a prpria atuao econmico-social do Estado. 9. A inteligncia de uma Constituio dirigente. 10. A garantia do direito sade, a seguridade social e a nova ordem social da Constituio dirigente de 1988. 11. O moderno direito sanitrio como expresso legtima de um direito regulatrio, cujo fundamento a prpria Constituio dirigente. 12. Questes subjacentes ao reconhecimento do carter regulatrio do moderno direito regulatrio. 13. Advertncia final.

1. Direito constitucional e teoria constitucional: ponto de partida de uma reflexo cientficaEnsina o constitucionalista portugus Jos Joaquim Gomes Canotilho que a inteligncia da Constituio deve buscar um conceito constitucionalmente adequado. Nas suas prprias palavras, a compreenso de uma lei constitucional s ganha sentido til, teortico e prtico, quando referida a uma situao constitucional concreta, historicamente existente num determinado pas.2 Note-se que semelhante abordagem no quer significar sob nenhuma hiptese, como poderia passar aos menos avisados, uma leitura positivista, dogmtica, da Constituio, pois, em realidade, o que se busca a Constituio real, expresso do poltico, como, alis, esclarece outro no menos emrito constitucionalista portugus, Jorge Miranda.3 o texto constitucional, por conseguinte, que deve guiar a construo do conhecimento constitucional, cabendo teoria da Constituio a funo hermenutica.4Este texto foi escrito a partir de dois trabalhos de minha autoria, o primeiro intitulado Constituio Dirigente de 1988 e o Direito Sade, in Os 10 anos da Constituio Federal, organizado por Alexandre de Moraes, Editora Atlas, So Paulo, 1999 e Controle Judicial da Atividade Normativa das Agncias Normativas, a ser publicado proximamente. 2 Direito Constitucional, Coimbra, Almedina, 1991, p. 80. 3 Manual de Direito Constitucional, Coimbra, Coimbra Editora, volume I, tomo II, 1981, p. 382. 4 Jos Joaquim Gomes Canotilho, op. cit., p. 80.1

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Mas, repita-se, a compreenso constitucional operada a partir de um texto positivo no retira a imperiosa e inafastvel necessidade de visualizao do contexto social. Dessa forma, para fins desta anlise e parafraseando o mesmo Jos Joaquim Gomes Canotilho, a referncia constitucional h de ser a Constituio de 1988.

2. A Constituio de 1988: uma Constituio dirigenteSobre a Constituio de 1988, o que se pode afirmar desde logo a propsito de sua natureza tratar-se ela, indubitavelmente, de uma Constituio dirigente. Quem o diz, por exemplo, Eros Roberto Grau em sua tese Contribuio para a Interpretao e a Crtica da Ordem Econmica na Constituio de 1988. A noo de Constituio dirigente foi ela desenvolvida pelo j citado Jos Joaquim Gomes Canotilho em sua tese de doutorado exata e precisamente intitulada Constituio Dirigente e Vinculao do Legislador contributo para a compreenso das normas constitucionais programticas. Nesse trabalho, hoje visto como paradigmtico para a Teoria Constitucional, o constitucionalista portugus assim situa a temtica objeto de sua anlise:O tema a abordar na presente investigao , fundamentalmente, o problema das relaes entre a constituio e a lei. O ttulo Constituio Dirigente e Vinculao do Legislador aponta j para o ncleo essencial do debate a empreender: o que deve (e pode) uma constituio ordenar aos rgos legiferantes e o que deve (como e quando deve) fazer o legislador para cumprir, de forma regular, adequada e oportuna, as imposies constitucionais.(...) Com efeito, perguntar pela fora dirigente e pelo caracter determinante de uma lei fundamental implica, de modo necessrio, uma indagao alargada, tanto no plano teortico-constitucional como no plano teortico-poltico, sobre a funo e estrutura de uma constituio.(...) Deve uma constituio conceber-se como estatuto organizatrio, como simples instrumento de governo, definidor de competncias e regulador de processos, ou, pelo contrrio, deve aspirar a transformarse num plano normativo-material global que determina tarefas, estabelece programas e define fins?.5

O que se conota, pois, a partir do conceito de Constituio dirigente o sentido de um texto que objetiva a mudana social, indo alm, por conseguinte, de representar um simples elenco de instrumentos de governo haja vista a enunciao de fins, metas, programas a serem perseguidos pelo Estado e pela sociedade. No se trata, como se evidencia, de um estatuto jurdico do poltico mas, como refere Jos Joaquim Gomes Canotilho, um plano global normativo endereado ao Estado e prpria sociedade. Nesses termos e reafirmando o j assinalado, a Constituio de 1988 tem por caracterstica primordial, do que o seu artigo 170 seguramente a mais forte evidncia, a condio de um plano global normativo. Em suma, cuida-se de uma Constituio dirigente, cujo abrigo de normas programticas torna justa a adoo de remdios como a ao de inconstitucionalidade por omisso.

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Op. cit., Coimbra, Coimbra Editora, 1982, p. 11 e seguintes.

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Desse entendimento no discrepa, importante assinalar, o Professor de Direito Constitucional Manoel Gonalves Ferreira Filho.6

3. A Constituio econmica diretiva imprimindo o carter dirigente ConstituioDo carter dirigente da Constituio de 1988 se infere que a Constituio Econmica que ela abriga igualmente tributria dessa mesma caracterstica. Alis, no seria propriamente errneo afirmar que a Constituio dirigente e no estatutria, exatamente por tambm acolher ela uma Constituio Econmica diretiva, vocacionada, portanto, para a implementao de uma nova ordem econmica e social. A esse propsito, o citado Eros Roberto Grau informa: embora o primeiro uso da expresso constituio econmica remonte ao sculo XVIII usada por Badeau, para significar conjunto dos princpios jurdicos reguladores da sociedade econmica o seu emprego, para designar o conjunto de normas constitucionais que instrumentalizam, conformando-a, uma determinada ordem econmica (mundo do ser), coevo do surgimento das Constituies diretivas: caracteriza-se como diretiva, a Constituio, por abranger uma Constituio Econmica diretiva.7

4. Conceito de Constituio econmicaDesde a sempre referida Constituio de Weimar, de 11 de agosto de 1919, que apresentava uma seo cujo ttulo era Da vida econmica, que o econmico passou a encontrar sede nos textos constitucionais. Sobre a noo de Constituio Econmica, a doutrina portuguesa, ainda que no isoladamente, tem contribudo a larga para o seu desenvolvimento. Hoje, conceitua-se a Constituio Econmica como o conjunto de preceitos e instituies jurdicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econmico, instituem uma determinada forma de organizao e funcionamento da economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econmica; ou, de outro modo, aquelas normas ou instituies jurdicas que, dentro de um determinado sistema e forma econmicos, que garantem e (ou) instauram, realizam uma determinada ordem econmica concreta.8 V-se, pois, que o trao definidor de uma Constituio Econmica, material ou formalmente tomada, a sua vocao para a institucionalizao de uma ordem econmica, mundo do dever ser na dico de Eros Roberto Grau. Da, alis, falar-se de uma nova ordem econmica. E, por isso mesmo, de se supor que a Constituio Econmica, precisamente por cuidar da realizao de uma nova ordem econmica e social, deve trazer a contemplao de um sistema econmico que a anime e, em corolrio, o regime econmico que o instrumentaliza.

6 7

Direito Constitucional Econmico, So Paulo, editora Saraiva, 1990, p. 76 e 77. Op. cit., p. 80. 8 Vital Moreira, Economia e Constituio, Coimbra, Coimbra Editora, 2 edio, p. 41.

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5. A ordem econmica da Constituio de 1988A definio do regime econmico da Constituio Econmica de 1988 surpreendentemente tem gerado inmeras controvrsias no seio da doutrina mais abalizada. Com efeito, de Geraldo Vidigal a Raul Machado Horta, passando por Miguel Reale, Jos Afonso da Silva, Manoel Gonalves Ferreira Filho e outros, no possvel descortinar em todos um ponto definitivamente de consenso a respeito do regime econmico, ocorrendo manifestaes que privilegiam uma postura liberal do Estado at crticas fundadas no que se supe tratar-se de um regime de estatolatria. Sem embargo, a Constituio Econmica de 1988 no comporta tanta celeuma. Em realidade, de meridiana clareza que as normas constitucionais constantes do ttulo VII, especialmente no seu captulo I, imprimem a realizao de uma nova ordem econmica e social cujo sistema econmico consagra a propriedade privada dos meios de produo, afetada por um regime, que, se aberto de modo a acolher uma interpretao dinmica e, principalmente, adequada histria do momento de sua realizao, de outra banda assegura o papel de integrao do sistema econmico de que titular o Estado. Por tal integrao deve-se entender, e a outra inteleco no conduz o texto constitucional, a conformao das foras que interagem no mercado econmico visando a realizao da justa distribuio da riqueza social, como condio maior do desenvolvimento estrutural do sistema e no apenas a sua modernizao. esse compromisso, enunciado na Constituio mediante a consagrao da frmula expressa no caput do artigo 170, segundo a qual a ordem econmica, fundada na valorizao do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existncia digna, conforme os ditames da justia social, que faz do Estado, como da prpria sociedade, ambos destinatrios das normas constitucionais, agentes de integrao do sistema econmico. No se cuida, destarte, de um regime em que o mercado operacionaliza o jogo econmico por suas prprias e nem sempre racionais atitudes, nem tampouco um regime que opere a substituio do mercado pelo Estado. Da mesma forma, no se realiza na espcie a hiptese ecltica, francamente carente de imaginao, que propugna por um modelo comumente apelidado de neo-liberal, o que, a rigor, no diz absolutamente nada. A ordem econmica da Constituio de 1988, mundo do dever-ser, exige, para sua realizao, um processo dialtico de implicao-conformao entre mercado e Estado no sentido da preservao daquele, proporcionada pela sua permanente transformao. Esta transformao no corresponde, sob hiptese alguma, a um processo autrquico do prprio mercado, at porque a sua histria depe em contrrio. Ao revs, a contnua transformao do mercado, vetorialmente guiada para a realizao da nova ordem econmica e social, exige a atuao do Estado como agente integrador desse processo, conferidor da necessria medida de racionalidade, que no apenas instrumental mas essencialmente substantiva, porque comprometida com a justa distribuio da riqueza social, repita-se.

6. Concluses preliminares

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, pois, a Constituio de 1988 uma Constituio dirigente, isto , uma Constituio que no se contenta em definir um estatuto de poder, atuando como instrumento de governo, mas, indo alm, cuida de estipular programas e metas que devero ser realizados pelo Estado e pela sociedade. A Constituio Econmica, por sua vez, que se acha contemplada na Constituio de 1988, a expresso mxima desse seu carter dirigente. Cuida ela de apontar uma nova ordem econmica e social que deseja ver implementada pelo Estado e pela sociedade brasileira. Enquanto Constituio Econmica, traz ela de maneira subjacente o sistema econmico capitalista, afetado, todavia, por um regime econmico que faz do Estado o agente por excelncia de integrao do modelo econmico no sentido de realizao dos imperativos constitucionais da existncia digna de todos os que nos limites do territrio nacional vivam, conforme os ditames da justia social. Em outras palavras, o que se est a argir, em sntese, uma nova ordem econmica e social que se assente na justa distribuio da riqueza social como fator fundamental de seu desenvolvimento e, conseqentemente, de seus atores.

7. A ordem social como item da Constituio econmicaA Constituio Econmica, como assinalado, enquanto expresso mxima do carter dirigente da Lei Fundamental, cuida de apontar uma nova ordem econmica e social que deseja ver implementada pelo Estado e pela sociedade brasileira. Enquanto Constituio Econmica voltada para a realizao de uma nova ordem econmica, traz ela de maneira subjacente o sistema econmico capitalista, afetado, todavia, por um regime econmico que faz do Estado o agente por excelncia de integrao do modelo econmico no sentido de realizao dos imperativos constitucionais da existncia digna de todos os que nos limites do territrio nacional vivam, conforme os ditames da justia social. Em outras palavras, o que se est a argir, em sntese, uma nova ordem econmica que se assente na justa distribuio da riqueza social como fator fundamental de seu desenvolvimento e, conseqentemente, de seus atores. Mas, cuida tambm a Constituio Econmica de uma nova ordem social, que na dico do texto constitucional brasileiro, tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justia sociais. Para logo se v que a nova ordem desejada pelo texto constitucional se afirma pela juno de suas duas dimenses fundamentais, econmica e social. Essa nova ordem social tem na seguridade social, definida pelo prprio texto constitucional como um conjunto integrado de aes de iniciativa dos Poderes Pblicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos sade, previdncia e assistncia social (artigo 194 da Constituio), o seu grande fator de instrumentalizao. O regime econmico contemplado pela Constituio Econmica de 1988, que faz do Estado o agente por excelncia de integrao do modelo econmico no sentido de realizao dos imperativos constitucionais da existncia digna de todos os que nos limites do territrio nacional vivam, conforme os ditames da justia social, encontra na seguridade social, destarte, o seu mais fundamental complemento, tudo na busca da realizao da nova ordem econmica e social.

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8. O contedo das imposies de uma Constituio dirigenteO carter vinculante das constituies dirigentes transcende a realizao infraconstitucional das normas programticas constitucionais para acolher tambm a prpria atuao econmico-social do Estado As concluses que se vem de alinhavar, ainda que preliminares so definitivas, exigindo, como condio de seu desenvolvimento, a caracterizao do contedo das imposies estabelecidas pelas Constituies dirigentes. Jos Joaquim Gomes Canotilho assim situa o problema: A Teoria da Constituio se pergunta em que medida pode uma lei fundamental transformar-se em programa normativo do Estado e da sociedade. A resposta, indubitavelmente, afirmativa, observando mesmo o constitucionalista que a definio, a nvel constitucional, de tarefas econmicas e sociais do Estado, corresponde ao novo paradigma da constituio dirigente.9 Tratam-se, destarte, de imposies constitucionais, consubstanciadas em fins e tarefas que so cometidas ao Estado e sociedade. nesse sentido, alis, que deve ser orientada a atividade legislativa do Estado, inequvoco dever jurdico. Todavia, a vinculao que a Constituio dirigente estabelece em relao ao Estado no diz apenas com a sua atividade legislativa. Com efeito, o problema da fora vinculante das Constituies dirigentes transcende a realizao infraconstitucional das normas programticas constitucionais para acolher tambm a prpria atuao econmica social do Estado. Em outras palavras, a atividade econmica do Estado, esteja ela consubstanciada na prestao de servios pblicos ou na explorao de iniciativa econmica, por imposio constitucional h de ser guiada no sentido de realizao da nova ordem econmica e social prevista no texto constitucional. Nesses termos, o contedo da Constituio dirigente pode ser definido pelo conjunto de Imposies constitucionais que endereado ao Estado e sociedade, materializado pela atividade normativa, econmica e social a que especialmente o Estado est vinculado pelo seu dever jurdico de implementao de uma nova ordem econmica e social.

9. A inteligncia de uma Constituio dirigenteV-se, por conseguinte, que a atuao do Estado ser instrumentalizada pelo regime econmico e pela seguridade social consagrados na Constituio, cabendo, no entanto, seu contedo ser precisado luz do sistema econmico subjacente ao modelo econmico e social que se deseja realizado. No cabe no espao destas observaes enveredar-se pela teoria de interpretao das normas, especialmente constitucionais. Sem embargo, o que se pode e deve ser afirmado que a prpria natureza da Constituio dirigente no permite uma interpretao autrquica do seu texto, isto , vinculada exclusivamente aos limites impostos pelo prprio sistema de normas cuja inteligncia procurada.

9

Idem, p. 169.

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Ao revs, a par da multiplicidade de mtodos que devem ser invocados pelo intrprete, fundamental que a ideologia que informe o trabalho hermenutico esteja voltada para a atualizao constante das categorias normativas na perspectiva de sua imanncia poltica. Cuida-se, como refere Jerzy Wrblewski, de tipo de ideologia de interpretao que, nas suas prprias palavras, considera a la interpretacin como actividad que adapta el derecho a las necessidades presentes y futuras de la vida social en el sentido ms amplio de este trmino.10 A ilustrar o ora consignado de se destacar a seguinte passagem da monografia j citada de Eros Roberto Grau, onde o seu autor esclarece a correta noo do princpio constitucional da livre iniciativa:No que tange ao primeiro dos princpios que ora temos sob considerao, cumpre prontamente verificarmos como e em que termos se d a sua enunciao no texto. E isso porque, ao que tudo indica, as leituras que tm sido feitas do inciso IV do art. 1 so desenvolvidas como se possvel destacarmos de um lado os valores sociais do trabalho, de outro a livre iniciativa, simplesmente. No isso, no entanto, o que exprime o preceito. Este em verdade enuncia, como fundamentos da Repblica Federativa do Brasil, o valor social do trabalho e o valor social da livre iniciativa.

E prossegue: Isso significa que a livre iniciativa no tomada, enquanto fundamento da Repblica Federativa do Brasil, como expresso individualista, mas sim no quanto expressa de socialmente valioso.11 Ser, com efeito, apenas procedendo nestes termos que a adequao da Constituio dirigente ser reafirmada, at porque o seu dinamismo operacional exige tal postura. Alis, parenteticamente, de todo oportuno salientar que muitas das crticas lanadas sobre a atual Constituio, especialmente a sua propalada carncia de lgica interna, s se justificam pelo vcio de uma ideologia esttica de interpretao, batizada por Jerzy Wrblewski de ideologia esttica de interpretao legal, que toma como valores bsicos la certeza, la estabilidad y la predictibilidad.12

10. A garantia do direito sade, a seguridade social e a nova ordem social da Constituio dirigente de 1988As ponderaes at aqui produzidas permitem adentrar no exame da Constituio de 1988 naquilo que ela tem de especificamente relacionado com a ordem social que, enquanto mundo do dever-ser, encontra na seguridade social um dos seus fatores de realizao. Com efeito, a garantia do direito sade, expressamente referida no artigo 196 da Constituio, inscreve-se exata e precisamente no rol daquele conjunto integrado de aes de iniciativa dos Poderes Pblicos voltadas para a realizao da nova ordem social, cujos objetivos so o bem-estar e a justia sociais. L-se, efetivamente, no artigo 196 da Constituio Federal que a sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas sociais e econmicas

10 11

Constitucin y teoria general de la interpretacin jurdica, Madri, Editorial Cvitas, p. 75. Op. cit., p. 220 e 221. 12 Op. cit., p. 72.

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que visem reduo do risco de doena e de outros agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua promoo, proteo e recuperao. Est, pois, o Estado juridicamente obrigado a exercer as aes e servios de sade visando a construo da nova ordem social, cujos objetivos, repita-se, so o bem-estar e a justia sociais, pois a Constituio lhe dirige impositivamente essas tarefas. Note-se, a esse propsito, como, alis, j assinalado, que a fora vinculante do Estado e da sociedade Constituio dirigente transcende a realizao infra-constitucional das normas programticas constitucionais, para acolher tambm a prpria atuao econmico-social do Estado, at porque o Estado tambm o destinatrio por excelncia das normas infra-constitucionais. bem de se ver neste passo, em conseqncia do acima estatudo, que todos os Poderes Pblicos e a sociedade, enfim o Estado, por todos os seus poderes e rgos e a sociedade esto vinculados aos objetivos constitucionais. Dito de outro modo, no pode qualquer dos Poderes Constitudos colocar no oblvio as suas funes constitucionais de realizao da nova ordem econmica e social.

11. O moderno direito sanitrio como expresso legtima de um direito regulatrio, cujo fundamento a prpria Constituio dirigenteConsiderando, pois, que a Constituio de 1988 uma Constituio dirigente, isto , uma Constituio que no se contenta em definir um estatuto de poder, atuando como instrumento de governo, mas, indo alm, cuida de estipular programas e metas que devero ser realizadas pelo Estado e pela sociedade, cabe agora, por derradeiro, compreender o impacto que provoca no processo de transformao do Direito moderno. A partir do momento em que se consolida o modelo do Estado Social, e a sua evidncia resta absolutamente clara entre ns, especialmente luz das consideraes a propsito da ordem econmica da Constituio de 1988, o direito assume o papel de fator implementador das transformaes sociais, veiculando inclusive prestaes pblicas. Por conseqncia, opera-se uma rematerializao da racionalidade legal. Dito de outro modo, o carter dirigente das modernas Constituies tem igualmente influenciado todo o direito. Assim que Gunther Teubner observa quecomparado com o clssico Direito formal, o direito material prprio da moderna era industrial assume desde logo uma nova funo social. Tal direito no se limita a satisfazer os imperativos de resoluo dos conflitos impostos pelo funcionamento de uma sociedade de mercado, mas serve tambm os imperativos polticos de interveno e de direo prprios do moderno Estado-Social: quer dizer, o direito instrumentalizado em funo dos objetivos e finalidades do sistema poltico, que agora assume a responsabilidade pela conduo de certos processos sociais, e nomeadamente, na definio dos objetivos a alcanar, na escolha dos instrumentos normativos, no processo de formulao e de implementao de normas.13

13

Juridificao - Noes, Caractersticas, Limites, Solues, in Revista de Direito e Economia, Coimbra, 1988, p. 39.

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Em suma, as mudanas de ordem estrutural e funcional decorrentes da rematerializao da racionalidade do Direito contemporneo, do que o carter dirigente das modernas Constituies a sua mais expressiva evidncia, exigem uma nova postura no apenas por parte daqueles que elaboram o direito mas e em especial daqueles que precisam operacionalizar suas misses transformadoras. Especialmente no campo da sade pblica, absolutamente imperativo reconhecer que a sua proteo se faz exata e precisamente pela compreenso de que as normas tpicas do que j se definiu como o Direito Sanitrio no se conformam aos modelos clssicos de um Direito concebido luz de paradigmas estatutrios, informados por princpios como certeza e segurana jurdicas, j que inerente a esse processo de rematerializao da racionalidade legal o particularismo, a legitimidade determinada pela observncia de critrios fundados numa tica de convico, a partir da qual os fins acabam definindo os meios necessrios para a sua consecuo, tudo perfeitamente em consonncia com os novos desgnios constitucionais j referidos. Como refere Gunther Teubner, j citado,juridificao no significa apenas crescimento do Direito, mas designa antes um processo no qual o Estado Social intervencionista cria um novo tipo de Direito, o direito regulatrio. Apenas quando ambos estes elementos materializao e finalismo poltico-intervencionista so tomados em ateno conjuntamente, poderemos entender a verdadeira e especfica natureza do contemporneo fenmeno da juridificao. Em suma, o direito regulatrio que especifica coercitivamente a conduta social em ordem consecuo de determinados fins materiais caracteriza-se pelo primado da racionalidade material relativamente racionalidade formal e pode ser definido de acordo com os seguintes aspectos: no plano de sua funo, um direito associado s exigncias de direo e conformao social, prprias do Estado Social; no de sua legitimao, um direito onde assumem fundamental relevo os efeitos sociais despoletados pelas suas prprias regulaes conformadoras e compensadoras; finalmente, no plano de sua estrutura, o direito regulatrio afigura-se como um direito particularstico, finalisticamente orientado e tributrios das cincias sociais.14

Assim so as normas que cuidam da sade pblica e assim devem ser entendidas. Afirmar o contrrio desqualificar os objetivos ltimos que justificaram a sistematizao do moderno Direito Sanitrio.

12. Questes subjacentes ao reconhecimento do carter regulatrio do moderno direito regulatrio. A perda pelo poder legislativo do monoplio da funo normativaAs consideraes at aqui elaboradas trazem diversas implicaes da mais alta relevncia, algumas das quais exigindo exame de imediato. Com efeito, o s fato de se reconhecer a inevitabilidade do direito regulatrio implica, por si s, em novas atitudes frente ao Estado e, especialmente, em relao ao seu poder normativo.14

Op. cit., p. 49.

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Com efeito, trabalhos recentes apontam para um reconhecimento do colapso do princpio da separao de poderes, admitindo a inevitabilidade do exerccio pelo Poder Executivo de funo legislativa. que, como assinala Clmerson Merlin Clve, est agonizando um conceito de lei, um tipo de parlamento e uma determinada concepo do direito. O parlamento monopolizador da atividade legiferante do Estado sofreu abalos. Deve continuar legislando, certo. Porm, a funo legislativa ser, no Estado contemporneo, dividida com o Executivo O parlamento no deve deixar de reforar o seu poder de controle sobre os atos, inclusive normativos, do Executivo. A crise do parlamento burgus conduz ao nascimento do parlamento ajustado s profundas alteraes pelas quais passaram a sociedade e o Estado. Portanto, o declnio alcana um determinado parlamento; no a instituio propriamente dita.15 Aqui, para que reste absolutamente claro, no se acredita que os novos contornos da descentralizao administrativa estejam restritos conotao de um poder normativo representado apenas e to somente pela fixao de normas regulamentares tradicionais, expresso do poder regulamentar clssico do Executivo, o que remeteria a questo do controle dessa mesma atividade para os domnios clssicos do controle judicial dos atos administrativos. A transferncia operada para as agncias reguladoras tem por objeto atividades decisrias e regulatrias que extrapolam os limites regulamentares tradicionais at porque conformam a independncia desses novos rgos reguladores. Esta a questo fundamental. Enquanto no se reconhecer a real abrangncia dessa realocao de poderes normativos no mbito do aparelho estatal, necessria, inclusive, para a identificao do direito regulatrio de que fala Teubner, abandonando-se frmulas como a da delegao legislativa, no se cuidar de efetivamente estabelecer limites a essa mesma atuao, ficando a discusso no plano meramente retrico. Nesse sentido, pois, no aproveitam s formulaes aqui tecidas as seguintes observaes de Alexandre de Moraes, para quem, a moderna Separao dos Poderes mantm a centralizao governamental nos Poderes Polticos Executivo e Legislativo-, que devero fixar os preceitos bsicos, as metas e finalidades da Administrao Pblica, porm exige maior descentralizao administrativa, para a consecuo desses objetivos. (...) Nesse contexto, o Direito brasileiro incorporou, principalmente, do Direito norte-americano a idia de descentralizao administrativa na prestao dos servios pblicos e, conseqentemente, gerenciamento e fiscalizao pelas agncias reguladoras. Assim, entendemos que as agncias reguladoras podero receber do Poder Legislativo, por meio de lei de iniciativa do Poder Executivo, uma delegao para exercer seu poder normativo de regulao, competindo ao Congresso Nacional a fixao das finalidades, dos objetivos bsicos e da estrutura das Agncias, bem como a fiscalizao de suas atividades.16 E conclui o autor, para dizer que o Congresso Nacional permanecer com a centralizao governamental, pois decidir politicamente sobre a delegao e seus limites s agncias reguladoras, porm efetivar a descentralizao administrativa, permitindo o exerccio do poder normativo para a consecuo das metas traadas em lei. O Poder Legislativo dever, nos moldes norte-americanos, estabelecer os parmetros bsicos, na forma de conceitos genricos standards-, cabendo s agncias reguladoras a atribuio de regulamentao especfica, pois passaro a exercer, de maneira exclusiva, uma atividade gerencial e fiscalizatria que, tradicionalmente no Brasil,15 16

Atividade Legislativa do Poder Executivo, Editora Revista dos Tribunais, 2 edio, pgina 57. Op. cit., pginas 743 e 744.

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sempre correspondeu administrao direta, enquanto cedente dos servios pblicos por meio de permisses ou concesses.17

O dficit democrtico inerente perda pelo Poder Legislativo do monoplio da funo normativaSucede, no entanto, que, se de um lado, desde que se passou a emprestar norma jurdica novas funes, claramente de natureza promocional, objetivando a transformao do sistema social no sentido da construo de uma nova ordem econmica e social, fato este, alis, responsvel pelo desenvolvimento do modelo dirigente da vrias constituies, o fato que, por outro lado, as exigncias polticas que determinaram o advento do Estado Moderno Democrtico remanescem absolutamente ntegras. Como conclui Marcus Andr Melo em trabalho sobre o tema, Delegao e responsabilizao so dois plos de uma tenso irresolvida no funcionamento das sociedades democrticas. Instituies que adquirem um papel cada vez mais importante nessas sociedades, como as agncias regulatrias e os bancos centrais, exigem autonomia decisria para seu funcionamento efetivo. Como outras agncias do aparato burocrtico do Estado, essa autonomia foi perseguida como um ideal normativo na construo do Estado democrtico. No entanto, a delegao implica crescente dficit democrtico e insuficiente responsabilizao de seus dirigentes.18 Este , dessarte, o cerne do problema. Por detrs da ps-modernidade representada pelo colapso dos paradigmas polticos e jurdicos (separao de poderes e princpio da reserva legal, para referir alguns), resta a perenidade de exigncias modernas, fundamentalmente o controle do poder poltico pois se, com efeito, as respostas institucionais do final do sculo XVIII esto em crise, as razes de suas formulaes restam na mais absoluta ordem do dia. O Poder Legislativo, o poder dos poderes na formulao clssica, possua esse status privilegiado por fora de sua condio representativa. Da derivavam suas funes normativa e de controle do Executivo. O advento do Estado regulador faz do Poder Executivo o novo poder dos poderes e, mais recentemente, o surgimento das agncias reguladoras, com a sua situao de autarquias especiais, dotadas de independncia hierrquica e autonomia financeira, titulares de poderes normativos, fiscalizatrios, sancionatrios e de promoo do contencioso, traz para esses novos anis burocrticos a condio de locus privilegiado no apenas da ao especializada tecnocrtica, mas tambm da prpria mediao poltica, em detrimento do Poder Legislativo. Note-se, portanto, que no mais o carter representativo que define as atribuies e, por conseguinte, o prprio destaque do rgo em relao aos demais mas, num sentido inverso, so os poderes ou funes assumidos pelo Executivo que lhe conferem uma posio assimtrica frente aos demais poderes institucionais. Negar essa realidade, especialmente a partir de leituras desatualizadas dos textos clssicos, travar uma luta quixotesca contra a realidade, para o que, alis, a prpria doutrina j no mais se sensibiliza. Todavia, o reconhecimento dessa nova alocao de funes e papis entre os diferentes rgos do aparelho estatal no elide a necessidade absolutamente17 18

Idem, pgina 744. A POLTICA DA AO REGULATRIA: responsabilizao, credibilidade e delegao, in Revista Brasileira de Cincias Sociais, volume 16, n 46, pginas 55 e seguintes.

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imperiosa de se cuidar do controle desse novo estado de coisas, como adverte Marcus Andr Melo. O controle das atividades das agncias reguladoras, o estabelecimento preciso e objetivo de limites sua atuao questo prioritria no atual estgio do debate sobre a matria. Eis a, pois, o tema a ser tratado. Para logo se v que variadas sero as respostas na medida em que diversas sejam as compreenses desse processo em virtude do qual o Poder Executivo assume funes legislativas. Com efeito, os imperativos de prontido de respostas, eficincia, descentralizao administrativa autorizariam essa realocao de funes, que estaria legitimada, para muitos, por uma nova leitura da Separao de Poderes.

A natureza dos atos normativos que materializam o direito regulatrio e a noo clssica de regulamentos administrativosA noo clssica de regulamentos administrativos acolhida pela doutrina ptria, longe de perder utilidade para o direito administrativo moderno, merece uma leitura cuidadosa quando aplicada ao plano do direito regulatrio. Pode-se vislumbrar na atividade regulatria a existncia da chamada regulao e fiscalizao das atividades desenvolvidas pelo particular.19 A atividade fiscalizadora tem servido para a meditao doutrinria (Direito Administrativo), especialmente no que se refere ao tema do Poder de Polcia. Contudo, o mesmo no pode ser dito respeito da atividade regulatria. que a regulao como funo estatal no se coaduna com a noo clssica de competncia regulamentar. Jos Crettela Jr. atribui o seguinte significado ao poder regulamentar: (...) a faculdade que tem o Executivo, para tornar mais intangvel a regra jurdica geral, de editar outras regras jurdicas que facilitem a aplicao da lei. A vantagem dos regulamentos facilitar a aplicao das leis, fazendo com que sejam fielmente executadas.20 Nenhum reparo merece a definio de poder regulamentar apresentada pelo administrativista. O problema, insista-se, repousa na infrutfera tentativa de se aplicar ao novo paradigma do direito regulatrio categorias jurdicas clssicas que no mais guardam relao com o novo modelo que se avizinha. Como entender, por exemplo, as atribuies das agncias regulatrias, rgos que, em apertada sntese, assumem o papel de mediao poltica e regulao em setores sensveis atividade privada emanando parcela substancial do direito regulatrio brasileiro atual, diante do carter predominantemente executrio do poder regulamentar? Estariam as agncias regulatrias to-somente explicitando, ou seja, dando mera execuo lei? Algumas de suas relevantes atribuies podem auxiliar nas respostas s indagaes formuladas. Tome-se, exemplificativamente, a Agncia Nacional de Telecomunicaes, rgo regulador das telecomunicaes (art. 8, da Lei Federal 9.472/97), entre outras misses de destaque, detm competncia (art. 19) para implementar, dentro de sua esfera de atuao, a poltica nacional de19

Leila Cullar, As Agncias Reguladoras e seu Poder Normativo, editora Dialtica, So Paulo, 2001, pgina 78. 20 Manual de Direito Administrativo, Forense, Rio de Janeiro, 1979, p. 151.

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telecomunicaes (inciso I), administrar o espectro de radiofreqncias e o uso de rbitas, expedindo as respectivas normas (inciso X), expedir normas sobre prestao de servios de telecomunicaes no regime privado (inciso X), expedir normas e padres a serem cumpridos pelas prestadoras de servios de telecomunicaes quanto aos equipamentos que utilizem (inciso XII). Note-se que as indigitadas competncias projetam as iniciativas do Poder Pblico para o futuro, na medida em que dizem respeito a objetivos, diretrizes, metas a serem traadas com vistas a consolidar o processo de interveno estatal, ao contrrio do papel exercido pelos regulamentos administrativos cuja utilidade consiste, fundamentalmente, em complementar a lei, facilitar a aplicao da lei, em suma, tornla til facilitando a sua implementao. A atividade regulatria, por sua vez, vai alm da mera regulamentao. Isto no implica em amesquinhar direitos e garantias individuais consagrados na Constituio e nas Leis. Obviamente, existem limites, especialmente de ordem material, de contedo mesmo e, portanto, o controle da atividade regulatria dever zelar para a observncia dessa racionalidade material e no apenas formal, como tradicionalmente se estabeleceu. O que se convencionou denominar de materializao da norma jurdica revela a existncia de um conjunto de atividades estatais com feio jurdica voltada para a implementao de objetivos e finalidades do sistema poltico21, o que autoriza o reconhecimento do carter normativo de que vm revestidas, dissociado, portanto, da simples repetio de proposies formais contidas na norma legal. E, em assim sendo, impe-se com toda clareza que se discuta a tenso entre a inevitabilidade do poder normativo, pelo que ele significa em termos de inovao do ordenamento jurdico, e a necessidade do controle dessa atividade, que no se opera em funo dos mecanismos clssicos de conteno do poder poltico (o dficit democrtico das agncias regulatrias de que fala Marcus Andr Melo). No se trata, por conseguinte, de negar o reconhecimento do que se denominou aqui de perda da centralidade poltica da produo normativa, enfim, da perda pelo Poder Legislativo do monoplio da produo normativa. Nessa toada, de se reconhecer que a norma do artigo 5, inciso II da Constituio Federal, em virtude da qual ningum ser obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude de lei h de ser tomada como uma garantia constitucional de ningum estar obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa seno em virtude da ao normativa do Estado. Nessa medida, salta a toda evidncia que o que garante a legitimidade do comando normativo no a retrica da legalidade formal mas sim a materialidade desse mesmo comando normativo. Pretender o contrrio, isto , que a lei, como tal formalmente considerada, seja tomada como a nica fonte primria legtima de direitos e obrigaes importa em desprestigiar o prprio texto constitucional, pelo que ele tem de mais caro, vale dizer, a conduo do Estado no sentido da edificao de uma nova ordem econmica e social, legtima por seus prprios fundamentos e finalidades. O controle dessa atividade regulatria estatal passa a exigir, ento, uma reformulao dos limites do controle jurisdicional da atividade estatal. Diante da magnitude destes atos regu