direitos À floresta e ambientalismo: seringueiros e … · cional, com uma geografia política...

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Introdução Os seringueiros amazônicos eram invisíveis no cenário nacional nos anos de 1970. Começa- ram a se articular como um movimento agrário no início dos anos de 1980, e na década seguinte con- seguiram reconhecimento nacional, obtendo a im- plantação das primeiras reservas extrativas após o assassinato de Chico Mendes. Assim, em vinte anos, os camponeses da floresta passaram da invisibili- dade à posição de paradigma de desenvolvimento sustentável com participação popular. Este texto narra essa surpreendente transição com base nas trajetórias de alguns líderes e nas estratégias por eles utilizadas para dar ao movimento social visibi- lidade em escala nacional e internacional, conec- tando suas reivindicações agrárias a temas am- bientais de interesse mais geral. Como se deu a transição? Tratou-se de um jogo de aparências por meio do qual líderes sin- dicais manipularam o discurso hegemônico para mascarar a defesa dos seus interesses corporati- vos; em outras palavras, de uma manobra tática ambientalista para realizar uma estratégia de luta agrária? Ou será que, ao contrário, observamos aqui um jogo de linguagem no qual se afirma, pela cooptação dos agentes locais, a hegemonia discursiva do “desenvolvimento sustentável”, do “empoderamento” e de outros topoi da agenda dos bancos multilaterais, nas linhas sugeridas por Escobar (1995)? De fato, a história do movimento dos serin- gueiros forneceu material para conclusões várias. Foi narrada por intelectuais aliados como exem- plo de como os interesses de um grupo subalter- no e economicamente marginal podem coincidir DIREITOS À FLORESTA E AMBIENTALISMO: SERINGUEIROS E SUAS LUTAS Mauro W. Barbosa de Almeida Artigo recebido em outubro/2003 Aprovado em abril/2004 RBCS Vol. 19 nº. 55 junho/2004

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Introdução

Os seringueiros amazônicos eram invisíveis

no cenário nacional nos anos de 1970. Começa-

ram a se articular como um movimento agrário no

início dos anos de 1980, e na década seguinte con-

seguiram reconhecimento nacional, obtendo a im-

plantação das primeiras reservas extrativas após o

assassinato de Chico Mendes. Assim, em vinte anos,

os camponeses da floresta passaram da invisibili-

dade à posição de paradigma de desenvolvimento

sustentável com participação popular. Este texto

narra essa surpreendente transição com base nas

trajetórias de alguns líderes e nas estratégias por

eles utilizadas para dar ao movimento social visibi-

lidade em escala nacional e internacional, conec-

tando suas reivindicações agrárias a temas am-bientais de interesse mais geral.

Como se deu a transição? Tratou-se de umjogo de aparências por meio do qual líderes sin-dicais manipularam o discurso hegemônico paramascarar a defesa dos seus interesses corporati-vos; em outras palavras, de uma manobra táticaambientalista para realizar uma estratégia de lutaagrária? Ou será que, ao contrário, observamosaqui um jogo de linguagem no qual se afirma,pela cooptação dos agentes locais, a hegemoniadiscursiva do “desenvolvimento sustentável”, do“empoderamento” e de outros topoi da agendados bancos multilaterais, nas linhas sugeridas porEscobar (1995)?

De fato, a história do movimento dos serin-gueiros forneceu material para conclusões várias.Foi narrada por intelectuais aliados como exem-plo de como os interesses de um grupo subalter-no e economicamente marginal podem coincidir

DIREITOS À FLORESTA EAMBIENTALISMO:SERINGUEIROS E SUAS LUTAS

Mauro W. Barbosa de Almeida

Artigo recebido em outubro/2003Aprovado em abril/2004

RBCS Vol. 19 nº. 55 junho/2004

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com os interesses gerais da sociedade (cf. Alle-gretti, 1990; Schwartzman, 1989; Almeida, 1990).Nessa mesma linha de raciocínio, as estratégiassociais e ambientais de “povos da floresta” torna-ram-se paradigmáticas na literatura dos anos de1990 sobre movimentos de resistência ecológica.1

Outros observadores, mais críticos, partiram dopressuposto de que os chamados “povos da flo-resta” seriam simplesmente pessoas pobres priva-das da oportunidade de viver em outros lugarescomo agricultores ou como assalariados urbanos,sendo condenados a uma marginalidade involun-tária.2 Há os alegam que as exigências de terraformuladas pelo movimento de seringueiros sãoexageradas, ou que a atividade extrativa dos se-ringueiros é “economicamente inviável”, ressusci-tando uma antiga identificação entre extrativismoe predação. Finalmente, há quem veja em toda aexigência de “reservas extrativistas” uma conspi-ração de países ricos para bloquear o desenvolvi-mento da fronteira amazônica (Carneiro da Cunhae Almeida, 2000; Almeida e Carneiro da Cunha,2001). Na posição defendida por Escobar, comomencionamos, o ”discurso do desenvolvimento”funcionaria como uma estratégia de poder sobreas populações periféricas; para outros, os efeitosdessa estratégia incluiriam o deslocamento daação política para um plano secundário (Fergu-son, 1990). Se essas visões estiverem corretas, en-tão a alternativa para grupos subalternos e margi-nalizados seria ou manter sua marginalidadecomo estratégia de resistência, ou aceitar uma in-tegração passiva e manipulada nas estruturas depoder globais.

A discussão resulta em parte, talvez, dofato de que a reivindicação dos seringueiros –transformação de grandes áreas de floresta emáreas públicas para uso coletivo segundo práti-cas tradicionais – teve um relativo sucesso.Como reconhecer a validade dos argumentosambientalistas dos seringueiros, e como conci-liá-los com a sua condição de pobreza e margi-nalidade? Como justificar a pretensão dos serin-gueiros sobre territórios? No fundo, umaquestão que está em jogo aqui é a do papel edo potencial de grupos minoritários no contex-to global. Anna Tsing (1993), em um livro sobre

os Dayak de Kalimantan (Indonésia), sugeriuque a marginalidade (no sentido espacial e so-cial) seria uma estratégia contra o “desenvolvi-mento” imposto de fora, na qual o discurso de-senvolvimentista seria de fato apenas parodiado.

Seria esse o caso dos seringueiros? Acreditoque não. Primeiro, porque os seringueiros tentaramsair da marginalidade para a visibilidade. Segundo,porque, ao fazer isso, vários líderes seringueirasapropriaram-se de parte do discurso ambientalis-ta/desenvolvimentista, não para parodiá-lo, maspara, de fato, incorporá-lo em suas próprias con-cepções e práticas locais, atribuindo a esse discur-so novos significados. Ao fazê-lo, redefiniram suamaneira anterior de agir, mas o fizeram conformecritérios estabelecidos em tradições e costumespróprios; ao mesmo tempo redefiniram sua rela-ção para com a sociedade, construindo para si umnicho onde pudessem ser reconhecidos, como“povos da floresta”, com direitos agrários e sociaisreconhecidos como legítimos.

Schmink e Wood (1992), comentando nosanos de 1990 o relativo êxito do movimento dos se-ringueiros, apontaram para o fato de que a comple-xidade da conjuntura mundial criou novas oportu-nidades para que os grupos locais conquistassemvitórias, imprevistas por uma visão determinista dahistória. Com efeito, em um contexto de expansãoagressiva do capitalismo não é possível prever oque ocorrerá em um local particular, em uma lutaparticular que envolva um sujeito histórico especí-fico. Surgem, assim, espaços de relativa liberdadepara conduzir conflitos em direções historicamentecriativas, construídas como resultado de discussõese choques entre vozes, representadas por gruposde explorados e poderes externos. Em conseqüên-cia, ocorreram eventos inesperados que apenas emretrospecto, parecem ser evidentes e previsíveis (Al-meida, 1993).

Neste texto tratarei do período entre 1982 e1992.3 Em vez do problema de quem age sobrequem, de quem é sujeito manipulador e quem éobjeto de manipulação, indago, à maneira deJean-Paul Sartre, o que os agentes da história lo-cal fizeram daquilo que a história fez com eles.Para isso, narrarei uma série de episódios queocorreram em três escalas amazônicas: no nível

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local do município remoto de Cruzeiro do Sul,no cenário nacional-internacional que vai de Bra-sília a Washington e na arena regional do estadodo Acre, que interliga esses dois níveis. Três pes-soas conduzirão essas narrativas: Chico Ginu, se-ringueiro, delegado sindical, organizador de as-sociações e dirigente regional; Chico Mendes,seringueiro, sindicalista, militante partidário eambientalista; e Antonio Macedo, seringueiro, pi-loto fluvial, mecânico de máquinas pesadas, ser-tanista e indigenista, dirigente político, líder mís-tico e agitador revolucionário.

Com essas narrativas, todas baseadas na mi-nha experiência pessoal, pretendo dar um exem-plo de como atos e crenças da periferia articulam-se com políticas e agendas mundiais, em um“desenvolvimento combinado e desigual”. O sig-nificado dessa frase foi dado por Trotsky no bri-lhante primeiro capítulo da sua História da Revo-lução Russa:

Um país atrasado assimila as conquistas materiais

e intelectuais dos países avançados. [...] Embora

forçado a seguir os países avançados, um país

atrasado não faz as coisas na mesma ordem. O

privilégio do atraso histórico – e tal privilégio exis-

te – permite, ou melhor, impõe, a adoção do que

estiver disponível, antes de qualquer data previa-

mente especificada.

E prossegue:

[…] O desenvolvimento de nações historicamen-

te atrasadas leva necessariamente a uma combi-

nação peculiar de diferentes etapas no processo

histórico. O seu desenvolvimento como um todo

adquire um caráter não-planejado, complexo,

combinado (Trotsky, 1967 [1930]).

O caráter “não-planejado, complexo, combi-nado” é de fato característico das histórias que seseguem. Seria fácil suprimi-lo com uma narrativaúnica que retrospectivamente fizesse com que oseventos ilustrassem uma tendência que só depoisse concretizou. Mas o caso do movimento dos se-ringueiros, que se auto-organizou a partir de pla-nos desconectados, realizados em diferentes esca-

las, que só depois se combinaram para adquirirum lugar de destaque no cenário político-ambien-tal, se torna mais compreensível como ilustraçãodo potencial criativo de processos que nascem desituações de desordem, e em que, como resulta-do, uma periferia aparentemente passiva se afir-ma como fronteira ativa.

Por que “não planejado”, ou, melhor ainda,não previsto? A Amazônia, na década de 1970, pa-recia seguir um curso histórico terrivelmente pre-visível: o caminho da modernização capitalistaorientado para ocupar espaços vazios sob a dire-ção de um bloco formado pela ditadura militar epor classes dominantes ansiosas por lucros rápi-dos na fronteira. Numa economia em rápida ex-pansão, financiada pelo capital financeiro interna-cional, com uma geografia política dividida entreterras monopolizadas pelo grande capital e terraslivres ocupadas por índios e caboclos, o cenárioda acumulação primitiva parecia irreversível, nosentido dado a esse termo por Marx, qual seja, oda separação entre comunidades e a natureza, se-guida do surgimento simultâneo de uma classe deproletários sem terra e da terra como meio deprodução. Desse cenário resultaria a inevitávelaniquilação dos índios, primeiras vítimas do mila-gre (Davis, 1977). Quanto aos camponeses da flo-resta amazônica – categoria que inclui caboclosdestribalizados desde as guerras indígenas do sé-culo XIX e sobreviventes dos migrantes trazidospelos ciclos de coleta –, que se denominam serin-gueiros, caçadores e pescadores, barranqueiros-agricultores, pequenos artesões e mestres-ferrei-ros, remeiros e pilotos fluviais, eles, até o inícioda década de 1980, eram praticamente desconhe-cidos tanto na esfera governamental como na lite-ratura acadêmica que discutia intensivamentea “fronteira amazônica”. As questões relativas àfronteira identificavam-se com o problema dosposseiros. Seringais eram tema de história ou defarsa (Nugent, 1993).

Durante a década de 1980 a história na re-gião não se desenvolveu conforme esse cenário,pelo menos em seus detalhes. É evidente que oEstado brasileiro não abandonou sua agenda de-senvolvimentista para a Amazônia. Mas as vítimas

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passivas se revelaram ativas. Os índios deixaramde ser vistos apenas como vítimas e passaram aagentes que, em uma série de contra-manobras,ganharam territórios e direitos civis. Os seringuei-ros e outros camponeses da floresta perderam ainvisibilidade e, em outra série de manobras, ga-nharam o direito de posse coletiva de florestas.Muitos são escorraçados de suas terras, não maispor fazendeiros, mas pelo próprio Estado conser-vacionista, o que é paradoxal porque outros per-manecem em suas terras exatamente porque alegamser conservacionistas. Como Trotsky se expressou, ofato é que a história dessa década se caracterizouna região por reviravoltas “complexas” e “não pla-nejadas”, e o resultado aparece como conjunturasvividas na forma de conflitos locais que não po-deriam ser previstos.

1870-1980: antecedentes daRevolução no Rio Tejo

Encontrei os seringueiros pela primeira vezno trecho do rio Juruá que corre no interior do es-tado do Acre, conhecido ali por “Alto Juruá”. Anode 1982, rio Tejo, último grande afluente do Juruáem território brasileiro, a meio dia de barco a mo-tor da fronteira peruana. Nas cabeceiras do Tejo,então representado nos mapas do DNPM e doIBGE como despovoado, descobri, após uma pri-meira viagem exploratória, que havia uma popu-lação de seringueiros ativos, e que o próprio Tejoera chamado de “rio de borracha” no município deCruzeiro do Sul. Da mesma forma, o Riozinhoda Restauração era o último importante igarapé deseringueiros no coração do rio Tejo.4

Os primeiros seringueiros e posseiros de se-ringais haviam chegado ao rio Tejo na década de1890, em florestas contestadas entre Peru e Bolí-via, habitadas até então pelas populações nativasde língua Pano, sobre cuja organização social emodo de vida na época pouco se sabe hoje emdia. O território acima do rio Tejo, a partir do rioAmônia, era, no final do século XIX, uma zona deninguém, onde seringueiros brasileiros e especu-ladores em busca de novos seringais, dirigindo-se

ao sul rio acima, chocavam-se com os caucherosperuanos que se dirigiam ao norte, rio abaixo, embusca de novos cauchales. À frente dos seringuei-ros e dos caucheros, conforme Euclides da Cunhaobservou com detalhes em Contrastes e confron-tos, podia-se observar diferentes característicasecológicas e sociais. Do lado dos seringueiros, naregião que vai mais ou menos até onde passahoje a fronteira entre Peru e Brasil, a floresta erarica em seringueiras, árvores de diferentes espé-cies pertencentes ao gênero Hevea (Emperaire eAlmeida, 2002). Do lado dos caucheiros não ha-via seringueiras, mas árvores de caucho, perten-centes ao gênero Castilloa. O fato de que a fron-teira entre Peru e Brasil coincide hoje, em termosgerais, com uma fronteira botânica, não se deve auma coincidência, pelo menos em relação aoAcre ocidental. Tratou-se de um artefato do pro-cesso histórico pelo qual as florestas que são hojeacreanas, em terreno inexplorado mas disputadoentre Peru e Bolívia, foram acrescentadas ao ter-ritório brasileiro em 1903 (tratado Brasil-Bolívia) eem 1909 (tratado Brasil-Peru), com base na ocu-pação por seringueiros que se orientavam pelabusca de Hevea e não de Castilloa. A geopolíticada fronteira amazônica, desde então, entremeava-se com a biogeografia econômica.

Os brasileiros migrantes, procurando a valio-sa Hevea brasiliensis, que gerava o produto Acrefina – melhor borracha no mercado mundial –, ig-noravam tanto as fronteiras mal conhecidas, comoa borracha inferior da Castilloa elastica. Em con-traste com os cauchais, onde caucheiros itineran-tes acampavam para derrubar árvores de cauchoe extrair de cada uma delas, de uma só vez, cer-ca de 30kg de látex, até esgotar as árvores e se-guir adiante, os seringais constituíam-se em pos-ses florestais que tinham valor permanente paraseu dono virtual,5 já que nelas a Hevea de váriasespécies podia ser explorada por tempo indefini-do. Portanto, nos seringais podia se instalar umapopulação sedentária de trabalhadores, em con-traste com a população nômade dos cauchais.

A diferença ecológica e econômica entre se-ringais e cauchais era acompanhada de contrastesétnicos. Nos cauchais empregava-se mão-de-obraindígena, que era explorada de modo tão brutal e

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temporário quanto as próprias árvores de caucho,sendo exemplo disso as atrocidades do Putumayoe outras menos célebres de Madre de Dios/Ma-moré. Já nos seringais do Acre, a mão-de-obra eraconstituída de imigrantes nordestinos; a popula-ção indígena local foi vítima das atrozes “corre-rias”, em que os índios eram aniquilados não emfunção da submissão à disciplina do trabalho for-çado, mas para dar lugar aos imigrantes brasilei-ros. Os territórios de floresta tinham valor eleva-do, porque geravam renda e lucros especulativos,mas também a própria mão-de-obra, trazida comalto custo, não poderia ser pura e simplesmentetrucidada como o foram os indígenas.6

A economia extrativa dos seringais amazôni-cos é semelhante à de outros sistemas de trabalhoem que extratores detêm autonomia para explo-rar recursos naturais e se vinculam a postos de co-mércio com os quais se mantêm em dívida crôni-ca.7 Cada seringueiro explorava pelo menos umaparelha de estradas de seringa, que ligavam a cla-reira residencial aos seringais. Dois ou três serin-gueiros podiam ocupar o conjunto estradas que,partindo da clareira, cobriam o território de umacolocação, limitado pelas estradas de outras colo-cações. O posto de comércio – barracão – adian-tava mercadorias a esses trabalhadores isoladosna mata, as quais deveria ser pagas ao final da es-tação de trabalho – fábrico, o que significa queeles estavam em débito quase permanente comos barracões.

Os barracões localizam-se em barrancos dorio, cercados de floresta, a distâncias variáveis decada colocação dos seringueiros, que no rio Tejopodiam visitá-los a pé, nos finais de semana. Ha-via tanto uma lógica “hídrica” no acerto das con-tas uma única vez durante o ano, como uma lógi-ca política. A borracha era feita em pélas quepesavam cerca de 60kg e eram difíceis de trans-portar nas costas pelos caminhos da floresta. Porconta disso, elas eram levadas uma vez por ano aobarracão durante as alagações, que transformavamos rasos espelhos d’água que margeavam as colo-cações em caudalosos igarapés. Dos barracões, aspélas flutuavam rio abaixo, amarradas umas às ou-tras formando balsas enormes, até Cruzeiro do Sul,e dali continuavam em vapores e depois em ferry-

boats até Belém, de onde eram embarcadas paraportos britânicos e norte-americanos. Era tambémdurante o auge do período das “alagações” quenavios, lanchas e grandes batelões podiam aportaraos barracões distantes, levando mercadorias pe-sadas e de grande volume, como sal, açúcar, sa-bão, gasolina, chumbo e ferramentas. Do encon-tro desses dois movimentos, um formado peloproduto-borracha, outro pela mercadoria, resulta-va um balanço que, na maioria dos casos, signifi-cava débito, mas que, em alguns casos, poderiaconstituir um crédito. Não obstante o tipo de re-sultado, era dessa forma que se estabelecia, aolongo dos anos, a relação credor-devedor, fornece-dor-produtor, patrão-seringueiro. Tratava-se, pois,de uma economia de débito e crédito generaliza-dos, a qual formava uma rede que ligava não ape-nas seringueiros a patrões, mas também patrõesmenores a patrões maiores, até chegar às casas im-portadoras-exportadoras; estas, por sua vez, eramdevedoras de empresas internacionais que com-pravam a borracha.

Esse sistema foi capaz de expandir a ofertade borracha silvestre sem aumento de produtivi-dade, chegando a um teto, por volta de 1912, decerca de 40 mil toneladas na Amazônia. Isso foiobtido por meio da expansão da área abrangidapelo sistema de adiantamentos, e que requeriaum aumento contínuo de trabalhadores, o que pro-vocava, por sua vez, um custo de transporte cadavez maior. Essa expansão espacial e numérica foisustentada por preços que cresciam regularmen-te, com ligeiras flutuações, de 1850 até 1910.

Contudo, esse crescimento sustentado depreços estimulou também a busca de alternativasà borracha silvestre, centrada na domesticação daseringueira e no estabelecimento de plantaçõesde seringueiras – uma empresa realizada pela In-glaterra, principal país comprador da borracha ex-traída das selvas amazônicas. Tratava-se de umaluta para a domesticação da floresta e para o con-trole do trabalho, a qual resultou afinal, para usaro vocabulário de Marx, na subordinação real danatureza e do trabalho ao capital. Entretanto, issoocorreu nas colônias inglesas da Ásia, e não naAmazônia, onde nem o trabalho nem o capital semostraram dóceis a esse tipo de subordinação.

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Em 1912, a Amazônia brasileira atingiu amarca de produção de 42 mil toneladas de borra-cha. Contudo, neste mesmo ano, as plantações daMalásia começaram a inundar o mercado com asprimeiras safras da borracha de seringueiras do-mesticadas, descendentes clonadas do germoplas-ma retirado de centenas de milhares de sementesde seringueira, que seguiam do porto de Belémdiretamente para Kew Gardens, os Jardins Botâni-cos Imperiais da Inglaterra, ainda no século XIX.O que eram 42 mil toneladas extraídas da flores-ta amazônica em 1914 diante das 400 mil tonela-das produzidas pelas plantações asiáticas por vol-ta de 1920, a preços muito menores? O capitalhavia domesticado a natureza, infelizmente nãona Amazônia, mas na Ásia.

Ou deveríamos dizer – felizmente? Isso de-pende do ponto de vista. Os seringueiros da basedo sistema do aviamento eram devedores, masnão credores, porque não havia ninguém abaixodeles na cadeia do aviamento. Os credores defato foram à falência porque não era possível,numa conjuntura de queda abrupta de preços,continuar fornecendo aos elos inferiores da ca-deia de endividamento para continuar a pagar aoselos superiores. Os seringueiros não poderiam fa-lir, mas seus patrões, sim (cf. Weinstein, 1983).Muitos deles livraram-se assim de seus antigos pa-trões, que abandonaram a exploração dos serin-gais ou suspenderam o monopólio rígido sobre ocomércio simplesmente porque não podiam maisabastecer os trabalhadores.8

Voltemos ao cenário do rio Tejo. A empresaMello & Cia., que havia comprado o conjunto dosseringais do Tejo e arredores numa especulaçãoinfeliz em 1910, faliu em 1916, passando a pro-priedade a outra empresa de Belém, Nicolau &Cia, que, por sua vez, faliu em 1936 (cf. PantojaFranco, 2001). Nesse meio tempo, porém, os se-ringueiros já haviam sido liberados para usar afloresta em lavouras alimentares, ou obter da caçae da pesca sua alimentação. Nesse novo quadroeconômico, os seringais tornaram-se unidades eco-nômicas quase auto-suficientes sob o ponto devista alimentar, reduzindo assim ao mínimo aquantidade de mercadorias que precisavam com-prar do exterior (sal, munição, tecido e instrumen-

tos de trabalho). Pode-se dizer que os seringaissobreviveram ao se converter em “economias du-ais”, para usar a expressão formulada por Boeke,Celso Furtado e Keith Hart, respectivamente paraos casos na Indonésia, no Brasil e na África. Essetipo de economia continha um setor exportador eum setor de subsistência. Durante as crises demercado, ocorria a contração do primeiro e, con-seqüentemente, a expansão do segundo; em pe-ríodos de preços favoráveis, dava-se justamente ocontrário, retração do setor de subsistência e am-pliação do setor exportador. Um traço caracterís-tico de tais sistemas é que podem sobreviver in-definidamente, mantendo a estrutura invariante, masregulando suas proporções existentes entre suaspartes (Boeke, 1953; Furtado, 1959; Hart, 1982).

A partir de 1936, após a falência da Nicolau& Cia., o proprietário Mauricio Quirino perma-neceu, isoladamente, como o dono virtual de i-mensas áreas de seringais. Esses seringais, quena época nada valiam como terra, tornaram-se,por assim dizer, “senhorios feudais” onde os pa-trões eram sustentados pelo pagamento de ren-das em espécie e em trabalho prestadas porcamponeses da floresta que, por sua vez, se sus-tentavam como agricultores e caçadores. Muitosbens de consumo passaram a ser fabricados porartesãos locais, ou seja, houve uma redução degastos com importação concomitante a uma pro-dução exportadora que ocupava agora apenasparte da semana de trabalho. Assim, as famíliascresciam, a agricultura florescia, e os novos cam-poneses podiam ampliar seus conhecimentospráticos e místicos sobre a floresta, em alguns ca-sos unindo-se a mulheres indígenas, dando inícioa verdadeiras dinastias de seringueiros cabocloscomo se encontram no Tejo hoje em dia. Cadanicho da floresta tinha uso, desde as várzeasinundadas até as florestas de terra firme, nessaeconomia regional emergente.

A história da conversão de proletários emcamponeses, numa Amazônia isolada do mercadomundial, não termina aí. O processo que descre-vemos ocorreu durante a crise aguda de reduçãode preços dos anos de 1920 e 1930, quando mes-mo a economia das plantações asiáticas se viuatingida pela superprodução. Na década de 1940,

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porém, a Segunda Guerra Mundial fechou aos Es-tados Unidos, então o principal importador, asportas das plantações asiáticas. Localizadas emcolônias inglesas, francesas e holandesas, estavamagora, em sua maioria, ocupadas pelo Japão im-perial. Nessa conjuntura de guerra, qualquer fon-te de borracha de curto prazo era essencial. Masas plantações levam uma década para se desen-volver, e a borracha dos seringais nativos podiaentrar em produção imediatamente, bastando quehouvesse braços e capital para injetar nova vidaao velho sistema do aviamento. Assim, iniciou-sea “Batalha da Borracha” na Amazônia. Os EstadosUnidos fizeram um acordo com o governo de Var-gas para obter borracha da floresta. O governobrasileiro, em uma operação de envergadura, pas-sou a atuar como aviador principal em escala na-cional, financiado pelos Estados Unidos, recrutan-do nesse momento uma segunda leva de migrantesentre camponeses pobres da Amazônia. Os pa-trões locais viram-se fortalecidos subitamente comcapital e poder. Aos seringueiros prometiam-seganhos rápidos e benefícios comparáveis aos dossoldados. Mas de fato seus contratos sujeitavam-nos a uma condição de trabalhadores coagidos auma jornada semanal de seis dias nas estradas deseringa, impedidos de abandonar o trabalho en-quanto estivessem endividados – condições essasexpressas por escrito, nas cadernetas dos serin-gueiros. O trabalho escravo foi, assim, recriado naAmazônia brasileira pelo próprio Estado, comapoio norte-americano.

A batalha da borracha constituiu um fiasco.Os seringueiros não produziram o que se espera-va. O trabalho coagido reintroduzido na Amazô-nia, apoiado no acordo entre Brasil e Estados Uni-dos, não conseguiu fazer com que os seringueirosproduzissem acima no nível que fora atingido noinício do século. Apesar das intenções do acordoe das condições expressas nas cadernetas, os tra-balhadores recaíam nos baixos níveis de produ-ção dos seringueiros do Entre-guerras. No períododa Primeira Guerra Mundial, os seringueiros ha-viam se convertido em camponeses; os recém-chegados da Segunda Guerra Mundial encontraramem plena operação essa economia florestal-campo-nesa, e se incorporaram a ela. Nesse cenário, como

já mencionado, um seringueiro com família traba-lhava no “setor exportador”, isto é, nas estradasde seringa, em jornadas médias de quatro diaspor semana. Formalmente, ele trabalhava comoum trabalhador autônomo em estradas de serin-ga pelas quais pagava renda em produto-borra-cha; no restante da semana, trabalhava como ca-çador ou em seus roçados. Esse regime duravacerca de nove meses; nos demais meses do ano,a família dedicava-se a cultivar os roçados, ou aoutras atividades.

As famílias de seringueiros viviam em colo-cações distantes dos barracões, com os quais ti-nham contatos esporádicos. Como, então, contro-lar diretamente esses trabalhadores que utilizavamrecursos da floresta com base no trabalho familiar,longe da presença dos empregados? Um chefe defamília seringueiro utilizava cerca de 400 hectaresda floresta, para extrair látex de cerca de duas es-tradas contendo aproximadamente trezentas se-ringueiras dispersas em uma floresta de colinas epequenos vales, de várzeas e platôs, de matasdensas ou abertas com palmeiras, cipós e bam-bus. Essas colocações ficavam a cerca de umahora ou duas umas da outras. Um seringal comsetenta chefes de famílias, dispersos por 25 ou 30colocações, ocupava uma extensão de cerca de30 mil hectares de floresta, entrecortada por inú-meros caminhos e atalhos. Estava, pois, forade questão fiscalizar diretamente a rotina diária detrabalho. Não era possível impedir as famíliasde implementar roçados e fazer farinha, e menosainda de caçar para seu sustento: isso era uma es-pécie de direito adquirido. O que se podia fazerera o controle do volume de borracha, mas mes-mo neste aspecto a rede de comércio clandestinonas fronteiras de seringal tornava inevitável o“contrabando de borracha”. Disso resultavamconflitos crônicos entre patrões e regatões, pa-trões e seringueiros. Mas a escassez de braços,numa economia que precisava absolutamente demão-de-obra para funcionar, sem ter nenhumainovação técnica que a substituísse, favorecia, emcerto sentido, os próprios seringueiros. Os “pa-trões do rio Tejo”, que nos anos 1980 se localiza-va no município de Cruzeiro do Sul, não tinhamcontato com os “patrões do rio Tarauacá”, cujos

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seringais eram lindeiros com os dos fundos doTejo. Tratava-se de uma zona de “contrabando”regular. Os seringueiros acreanos sobreviveramao colapso do primeiro ciclo da borracha anteriorà Primeira Guerra Mundial, atravessaram o perío-do entre as guerras tornando-se camponeses e re-sistiram às tentativas de reproletarizá-los sob o co-mando norte-americano no período posterior àSegunda Guerra Mundial. Todas essas fases pude-ram ser observadas na região do rio Tejo.

Na década de 1970, porém, a Amazôniacomo um todo foi objeto de um vasto movimen-to de ocupação conduzido pela ditadura militar,visando tanto a incorporar seus recursos naturaisna economia capitalista nacional e internacional,como a resolver o problema agrário do sudeste edo nordeste do país. As estradas e os incentivosfiscais que acompanharam essa investida capita-lista não chegaram até o rio Juruá. Mas a especu-lação fundiária, sim. Dessa forma, o remoto cursodo alto rio Juruá, onde desemboca o rio Tejo, eque em 1936 passara das mãos de uma compa-nhia do Belém do Pará para um proprietário lo-cal, Maurício Quirino, foi comprado por volta de1980 pela empresa paulista Santana AgropastorilLtda. Apesar de não incidirem sobre títulos váli-dos, essas negociações significavam direitos defato sobre o território e a expectativa de futura re-gularização fundiária, anunciada na época peloIncra e iniciada em 1982. A empresa paulista pas-sou a arrendar os seringais do rio Tejo por perío-dos trienais para seringalistas locais interessadosem lucros rápidos. Vale lembrar que na primeirametade da década de 1980 estava em vigor o Pro-bor II, generoso esquema de financiamento públi-co de seringais.

Um dos comerciantes do município de Cru-zeiro do Sul que se aproveitou da oportunidadefoi Orleir Cameli, que arrendou o rio Tejo em1985. Contudo, em 1986 começou a mudar a po-lítica econômica de subsídios e de preços adminis-trativos, instaurada após o término da SegundaGuerra Mundial. Por volta de 1987, com o contra-to de arrendamento prestes a expirar, e com o iní-cio do desmantelamento das políticas federais quehaviam no passado sustentado os preços da bor-racha extrativa, Orleir Cameli perdera o interesse

no antigo negócio. Dono de serrarias e de meiosde transporte fluvial, entre outros negócios, Came-li planejava por essa época explorar o mogno dorio Tejo. Já havia sobrevoado o rio de helicóptero,enquanto outra equipe percorria a floresta a pécom o propósito de avaliar os melhores locais paraestabelecer postos de operação da nova empresa.Nos anos anteriores, o mesmo Cameli havia devas-tado as matas do vizinho rio Amônia, ocupado pe-los índios Ashaninka, com tratores pesados, pararetirar madeira. Era o cenário clássico da fronteiracapitalista em aproximação, com os seus típicosingredientes de manipulação de títulos de terra,depredação da floresta e expulsão de moradorestradicionais. A estrutura amazônica de capitalismoselvagem tomava o lugar dos velhos seringais de-cadentes. Esse processo foi visto pelos moradorescomo a chegada dos maus patrões e a depredaçãodas estradas de seringa.

Conflitos no Rio Tejo: Chico Ginu

O rio Tejo pertencia ao município de Cruzei-ro do Sul no oeste acreano e contava com um Sin-dicato de Trabalhadores Rurais desde 1979, resul-tado de um processo de sindicalização conduzidopor João Maia. Em 1981, havia delegados sindicaisem regiões banhadas por dois afluentes do rioTejo – rio Bagé e Riozinho da Restauração –, al-guns deles com experiência na Revolta do Ala-goas, uma greve de seringueiros do município vi-zinho de Tarauacá, num seringal cujos fundoseram os divisores de água do alto Tejo. Os mora-dores pobres, e mesmo os patrões menores, viamesses delegados com respeito, como representan-tes de uma instituição desconhecida, mas que eraapoiada pelo governo federal e pelas leis. O prin-cipal delegado sindical no alto Tejo, no Riozinhoda Restauração, chamava-se João Claudino, umseringueiro que viera com alguns companheirosdo seringal Alagoas.

Em 1982, quando cheguei no Riozinho daRestauração, a reputação de Claudino era imensa.No ano anterior, contavam, ele havia liderado umgrupo de seringueiros numa demonstração de for-ça junto ao barracão, e, em conseqüência, haviam

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conseguido a redução ou o cancelamento de al-gumas delas, como forma de compensar as “injus-tiças”. Lembremos que desde 1980, com o faleci-mento de Armando Geraldo, o alto Tejo, cujosproprietários moravam em São Paulo, encontrava-se sem “patrões fortes”. O patrão local, Valdemar,teve, então, de ceder às exigências dos seringuei-ros, segundo alguns relatos, rangendo os dentes.O próprio Valdemar contou-me as humilhaçõespor que passou, tendo que aceder a reivindica-ções dos fregueses.

João Claudino foi mais longe. Instruiu os se-ringueiros para que parassem de pagar a rendadas estradas de seringa, já que os patrões nuncahaviam exibido documentos de propriedade.Claudino começou também a construir uma enor-me casa de madeira, cercada por um grande ro-çado de mandioca. A casa serviria como hospeda-ria e local de reuniões do sindicato, e o roçadoproporcionaria alimento. Além disso, sugeriu umacoleta para comprar um batelão, com o qual osseringueiros poderiam levar sua borracha de sal-do para vender diretamente na cidade.

As ações de João Claudino feriam dois dog-mas centrais no sistema de seringal: o monopóliocomercial e a renda das estradas de seringa. Em1982, Sebastião Correa, comerciante urbano, visi-tou o Tejo para operações comerciais de regatão,sabendo de antemão que o rio estava “semdono”. No mesmo ano, voltou ao Tejo, agora paraocupar o barracão da Restauração como um novo“patrão forte”. A princípio Sebastião Correa pare-ceu tolerar João Claudino. Os seringueiros depara-ram-se, no primeiro ano, com um barracão abar-rotado de mercadorias, e o próprio João Claudinofoi estimulado a comprar fiado. Ao mesmo tem-po, em Cruzeiro do Sul, o presidente do sindica-to de trabalhadores rurais avisou Claudino de que“a renda da estrada de seringa era sagrada”. Se-bastião ofereceu a Claudino a função de cobrar arenda de 1983, e Claudino, já muito endividadocom o novo patrão, aceitou. Mas Sebastião ins-truía os seringueiros a não pagarem a Claudino.Como conseqüência, no final de 1983, Claudino,bastante endividado, aceitou a oferta de Sebastiãopara deixar o seringal e assumir o posto de admi-nistrador de outro seringal. Com isso, o sindicato

sofreu uma desmoralização aguda: todos os serin-gueiros sabiam que o presidente do sindicato ha-via sido comprado pelo novo patrão.

Entretanto, Claudino tinha seguidores no in-terior do sindicato. Um deles era Chico do Ginu,um seringueiro humilde originário de uma famíliade migrantes cearenses e mulheres indígenas, ha-bitantes do rio Manteiga, vizinho ao Riozinho daRestauração. Chico do Ginu, ou simplesmente Chi-co Ginu, nunca se deixou subornar, dando conti-nuidade à atividade sindical que aprendera comClaudino. Em 1985, Sebastião Correa deixou o se-ringal e foi sucedido por Orleir Cameli como ar-rendatário da Santana Empreendimentos. No anoseguinte, temendo não receber as dívidas dos se-ringueiros ao fim do período de arrendamentotrienal – a forma de obter aumento de produçãoera encher o barracão de mercadorias e criar dívi-das elevadas nos primeiros anos –, Cameli contra-tou uma equipe de soldados de Cruzeiro do Sul,que, durante os momentos de folga, passou a agircapitaneada pelo capataz Manuel “Banha”. Essatropa pseudo-policial começou a cobrar as dívidascom violência nas próprias casas dos seringueiros,levando, quando achavam necessário, bens comoforma de pagamento forçado, como máquinas decostura e até vacas leiteiras, espancando morado-res e interrogando crianças para relevar esconde-rijos de borracha. Quando visitei o rio Tejo entrejulho e agosto de 1997, o sindicato tinha readqui-rido respeito, porque Chico Ginu, mobilizando umgrupo de seringueiros, conseguira a retirada dessatropa. Utilizando uma tática empregada em 1981por João Claudino, o grupo reunia-se na sede dobarracão. Diante de aproximadamente cinqüentaseringueiros (vale lembrar que todo seringueiroandava armado pelos caminhos da floresta, comfaca e talvez espingarda), a tropa de meia dúzia depoliciais em função ilegal recuou e retirou-se doseringal. Era uma nova demonstração de força dosindicato junto ao barracão.9

Acompanhei algumas das reuniões sindicaisde Ginu nas matas do rio Manteiga e do Riozinhoda Restauração, durante o período que lá permane-ci. Um dos motivos de preocupação de Ginu era afalta de zelo dos novos patrões para com o serin-gal. Cameli estava mais interessado em madeira do

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que em borracha. Os seringueiros eram estimula-dos a procurar o máximo de leite das seringueiras,mesmo que para isso tivessem de destruir as árvo-res. Mas Ginu dizia nas reuniões que quem matavaassim as seringueiras estava matando a própriamãe, que os havia criado com seu leite. Ele re-preendia os ambiciosos, lembrando a eles as obri-gações de zelar pelas estradas, como se, na ausênciade outra autoridade, o sindicato fosse responsávelpor proteger a floresta. Em suas palavras: “De que osfilhos e netos viveriam no futuro?”.

Dizia-se que a mãe da seringueira mostravana bela face as cicatrizes do tratamento por mausseringueiros, e castigava os abusos, assim como amãe da caça se ressentia de caçadores que insul-tavam a caça e não respeitavam dias protegidos.Chico Ginu e os seringueiros veteranos não esta-vam apenas protestando contra a exploração depessoas, mas também contra a exploração da na-tureza pelos homens. Seus argumentos fundamen-tavam-se em convicções profundamente arraiga-das no dia-a-dia dos habitantes do alto Tejo, asquais permanecem em vigor até os dias de hoje.Os seringueiros da região trabalham em uma flo-resta que pensam ser administrada por mães/paisda caça, que castigam de diversas maneiras caça-dores que transgridem princípios imanentes a umaordem em que humanos e não-humanos se rela-cionam, sem solução de continuidade. Nessa or-dem social-natural, um animal abatido na florestanão deve ser insultado, sob pena de trazer para ocaçador a condição de panema – isto é, torná-loincapaz de obter caça e, portanto, alimento no fu-turo. É possível, na mesma ordem de coisas, fazerpactos (ou pautas) com esses pais-mães da flores-ta, seja para ser feliz na caça, seja para se tornarum seringueiro produtivo. Isso acontecia no casodas mães-da-seringueira. Os rios são habitados porcaboclinhos e por seres encantados. Há animaiscom encante, e que não podem ser abatidos. Acirculação dos animais da mata entre vizinhosobedece, por fim, regras estritas de reciprocidade,e como o consumo impróprio da carne assim doa-da pode também representar insulto e tornar odoador panema, as relações de reciprocidade re-querem a cooperação de todos no respeito aosanimais trazidos da mata.

Isso poderia sugerir crenças no sobrenatu-ral. Mas não é o caso. As idéias de panema nãoeram consideradas superstição por meu pai,quando já havia subido na escala social e se tor-nara bancário em Brasília; nem para OsmarinoAmâncio, líder sindical, futuro fundador doPSTU, quando me explicava que não se tratavade superstição, mas de fatos empíricos.10 Os se-ringueiros não encontram dificuldades em en-tender que nós, da cidade, acreditamos em todasorte de entidades invisíveis que afetam nossoscorpos e que estão presentes no que comemos– germes, bactérias, vírus e assim por diante.Eles convivem, analogamente, com entidadesinvisíveis, cujos efeitos são observados por elesem seu cotidiano. Em suma, quando Chico Ginutrouxe para a reunião o tema das “reservas ex-trativistas”, não precisou de nenhuma explica-ção detalhada dada por gente de fora, nem decursos de ecologia. Ele sabia imediatamente doque se tratava – em sua própria ordem do mun-do.11 Era ele quem me explicava agora, sob seuponto de vista, o significado de proteger a natu-reza. A idéia de que havia agora um “apoio fe-deral” para proteger as seringueiras foi introdu-zida por ele no discurso local contra o patrão,discurso que tinha seus próprios fundamentosontológicos e não era uma mera imitação de mi-nha fala de pesquisador que trazia na ocasião anotícia de novas “leis”.

Chico Mendes

Em Xapuri e Brasiléia, o sindicato rural im-pediu, por meio do movimento conhecido como“empates”,12 a derrubada de florestas habitadaspor seringueiros, feita por peões armados demoto-serras. Em Xapuri, o movimento sindical ti-nha apoio da igreja católica progressista, de parti-dos de esquerda, como o PCdoB, e de organiza-ções não-governamentais, como o Centro deTrabalhadores da Amazônia. O problema era queos “empates”, por volta de 1985, tinham passadoà defensiva, ou seja, não conseguiam responder àescalada das queimadas e da violência. Por estarazão Chico Mendes começou a buscar apoio e

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aliados externos, recorrendo cada vez mais a táti-cas gandhianas de ação direta com alta visibilida-de. Em 1986, no “empate” da Bordon, ele lideroucerca cem seringueiros, que caminharam durantetrês dias pelas coivaras enegrecidas e fumegantesde florestas recém-queimadas, desviando-se dapolícia militar e espantando peões de moto-serra,até que o cerco em torno deles se fechou, com oretorno, em marcha forçada, a Xapuri.

Antes da marcha, porém, Chico Mendes haviaconvocado, em reunião pública em Rio Branco, oapoio de moradores da cidade para um “empatede alto nível”, para o qual ele queria repercussãonacional. Conseguiu a presença de um fotógrafo,dois agrônomos, um antropólogo e de uma jovemprofessora sindicalizada, Marina Silva. Quando asdiferentes colunas formadas a partir da divisão do“empate” retornaram à cidade, aparentementederrotadas, os participantes ocuparam a sede doInstituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal,e logo foram cercados pela polícia militar. En-quanto isso, Chico Mendes convocava por telefo-ne a imprensa nacional presente em Rio Brancoe, ao mesmo tempo, enviava companheiros aosseringais para chamar mais seringueiros para a ci-dade. Chico disse aos jornalistas que havia maisde cem seringueiros na sede do IBDF, mas preci-sava tomar providências para que eles realmenteestivessem lá quando chegasse a imprensa. En-quanto a tensão crescia, em meio a ameaças daiminente invasão armada, Chico Mendes esperavanovos negociadores, da igreja e do parlamento,assim como da imprensa. No último minuto, porassim dizer, foi firmado um acordo entre os serin-gueiros e o governo.

No início de 1985, para aumentar a visibilida-de das lutas dos seringueiros, Chico Mendes bus-cou o apoio de sua amiga, a antropóloga Mary Al-legretti, que depois de alguns anos de colaboraçãocom o CTA vivia em Brasília. Allegretti havia estu-dado em sua dissertação de mestrado o seringalde Alagoas, em Tarauacá, e tinha um forte com-prometimento com a causa dos seringueiros. As-sim, não poupou esforços para promover umevento de impacto que respondesse às expectati-vas de Chico Mendes. De um lado, embora não setratasse de um evento sindical, podia-se observar

na platéia e na constituição das mesas de discus-são a presença de líderes sindicais vindos de luga-res remotos da Amazônia, como Novo Aripuanã,no rio Madeira, Carauari, no médio Juruá, Brasiléiae Xapuri, no Acre, Ariquemes, em Rondônia, eCruzeiro do Sul, no oeste acreano, para mencionarapenas alguns dos delegados. De outro lado, tam-bém foi marcante a presença de deputados e se-nadores, burocratas e técnicos, professores e estu-dantes, tanto no público como nas mesas, apesarde o seminário não ter um perfil acadêmico. Osseringueiros falavam sobre a violência de patrõese liam numa espécie de ladainha longas listas depreços cobrados nos seringais para ilustrar pelocontraste com os preços da cidade, a exploraçãode que eram vítimas. As autoridades escutavam-nos com uma mistura de fascínio, pelo exotismodas canções e dos poemas, e desconcerto, pelasreivindicações que pareciam anacrônicas e impos-síveis de serem atendidas: o sonho dos seringuei-ros era transformar a Amazônia no que já fora nopassado, uma abastecedora mundial de borracha.

O formato peculiar desse acontecimento criounão só constrangimento e vergonha, mas, sobre-tudo, revelação. Forçou as autoridades e os polí-ticos a revelarem sua absoluta falta de planos emrelação aos seringueiros, e mesmo sua ignorânciasobre a própria existência dos seringueiros. Os es-pecialistas não puderam mais escamotear sua vi-são pessimista acerca do futuro daquele movi-mento peculiar. O efeito de visibilidade visadopor Chico Mendes fora atingido, mas no sentidoinverso ao pretendido: em vez de tornar os serin-gueiros visíveis publicamente, a indiferença dogoverno é que subitamente veio à tona, sobretu-do para os seringueiros. Eles haviam chegado aBrasília acreditando que a borracha era “a rique-za do mundo”, e que eles eram necessários à ri-queza nacional como os únicos produtores damelhor borracha do mundo. De onde mais viria odinheiro, senão da borracha? Como era possívelque ministros e senadores não soubessem sequero que era um seringueiro? Várias delegações exi-giram uma reforma agrária adequada para os se-ringueiros, o que significava manter a integridadedas estradas de seringa, o que implicava em mó-dulos familiares de 400 a 600 hectares de floresta.

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O documento final do encontro mencionoupela primeira vez a expressão “reservas extrativis-tas”, cunhada por um grupo de trabalho formadopor representantes do estado de Rondônia. Osentido era, por analogia às “reservas (de) indíge-nas”, o de terras reservadas para trabalhadores ex-trativistas. Ademais, ocorreram outros fatos impre-vistos, como a criação do Conselho Nacional dosSeringueiros (CNS). Na última noite do encontro,antes de começarem a viagem de retorno, os se-ringueiros criaram esse conselho como forma deprotesto, já que na véspera não tinham consegui-do assistir às reuniões do Conselho Nacional daBorracha. Uma evidência de que esse “conselho”não fora planejado, nem recebeu muita atençãona época é o fato de Chico Mendes, o principal lí-der da reunião, não pertencer a seus quadros“virtuais” nos primeiros anos, de 1985 a 1987. Opresidente era Jaime Araújo, um obscuro mas elo-qüente sindicalista do município de Novo Aripua-nã, no rio Madeira, que hipnotizava o públicocom sua linguagem poética e rica em referênciasà floresta. Além disso, o fato de o presidente serrepresentante de uma delegação que continha a-penas duas pessoas, em contraposição à delega-ção acreana com setenta membros, é outro indí-cio do caráter improvisado desse conselho. Emsuma, naquele momento o Conselho tinha um pa-pel simbólico, mas sem real importância política.

O CNS reuniu-se algumas vezes após o en-contro de Brasília, com recursos da OXFAM, umaorganização não-governamental sediada na Ingla-terra. Uma reunião de especial significado ocorreuem dezembro de 1996, no município de Brasiléia,numa paisagem rural marcada por castanheirassobreviventes em meio à floresta devastada. Porsugestão de Mary Allegretti, fiz nessa ocasião umrelato sobre o estado da economia da borracha naAmazônia, para expor aos seringueiros a conjun-tura histórica e nacional que envolvia a questão ecuja síntese reproduzo aqui. Durante o auge dociclo da borracha, pouco antes da Primeira Guer-ra Mundial, a Amazônia brasileira produzia cercade 40 toneladas de borracha por ano. Com a re-cuperação da produção, no decorrer da SegundaGuerra Mundial, a floresta atingiu e manteve umamarca entre 20 mil e 30 mil toneladas anuais.

Contudo, na década de 1950, só a indústria depneumáticos no Brasil consumia mais de 300 miltoneladas de borracha por ano, sendo que 120 mileram importadas da Malásia e de outros paísesasiáticos. A borracha importada que chegava aoporto de Santos era muito mais barata e de me-lhor qualidade do que o produto da Amazôniaque aportava em São Paulo. A perspectiva de cres-cimento da produção nacional de borracha nãomais estava associada à Amazônia, mas ao planal-to paulista, ao sul da Bahia e ao estado de MatoGrosso. Desde 1945, preços administrados e quotasimpostas haviam protegido a borracha amazônica,tornando-a lucrativa para aqueles que detinham ocomércio na Amazônia. Entretanto, a partir de1985 as novas políticas governamentais visavamabrir mercados e suprimir subsídios. Além disso,os antigos patrões começaram a vender seus títu-los e novos interesses ligados à criação de gado eà exploração de madeira ocupavam progressiva-mente a região. Era um quadro cruel mas neces-sário para elucidar aquilo que os políticos e as au-toridades tinham em mente quando olhavamsurpresos e embaraçados para os seringueiros,mas que não ousavam dizer com clareza. Após aexposição, o silêncio que se seguiu foi quebradocom uma pergunta de Osmarino Rodrigues, umdos mais radicais sindicalistas-seringueiros. Diri-gindo-se aos “assessores” – como eram chamadosantropólogos, advogados e historiadores presen-tes na reunião – ele disse: “Eu gosto de perguntaro significado de palavras que não conheço. Ouvifalar em ecologia. O que é ecologia?”. Ele sabiaonde queria chegar. E continuou depois da res-posta: “Se não querem nossa borracha, podemosoferecer essa ecologia. Isso nós sempre fizemos”.

Na realidade, o encontro de Brasiléia foimuito além do que deslocar a atenção dos sindi-calistas do problema da produção de borrachapara o tema da conservação da floresta. Os par-ticipantes definiram ali o que seriam as “reservasextrativistas”, anunciadas em 1985: terras daUnião (formulação inspirada no modelo das re-servas indígenas) sobre as quais os trabalhadoresteriam direito perpétuo de usufruto. Essa soluçãoresultou de uma discussão detalhada de alterna-tivas, que incluíram desde a propriedade indivi-

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dual de colocações até a propriedade condomi-nial. Nenhuma das alternativas, porém, bloquea-va o risco de venda de terras para fazendeiros, eisso foi o que pesou no momento de circunscre-ver as características que deveriam ter as reservasextrativistas. Qualquer seringueiro que vendessesua terra colocaria em risco a dos vizinhos. Só aocupação coletiva e sem possibilidade de comer-cializar a terra evitaria a tragédia da privatizaçãoda natureza que assolava os seringueiros de Xa-puri e Brasiléia.

As reuniões do Conselho eram dispendiosas,envolvendo líderes de muitos municípios acrea-nos (todos da bacia do rio Purus-Acre) e tambémdo estado do Amazonas e de Rondônia. Além dis-so, os sindicatos rurais do Acre tinham problemasfinanceiros crônicos, o que não representava umaexceção no quadro nacional. Nesse contexto, os“assessores” do Conselho encaminharam um am-bicioso projeto que previa cerca de 100 mil dólarespara financiar a mobilização de seringueiros e suaorganização em escala amazônica. Em fevereirode 1988, o CNS foi informado de que a Cebemohavia aceitado financiar integralmente a proposta.Nesse ano, Chico Mendes tornou-se o líder doConselho, que passou a ser uma identidade orga-nizacional adequada ao crescimento do círculo dealianças promovido por Chico Mendes. Além daUnião das Nações Indígenas, liderada por AíltonKrenak, com quem Chico havia lançado a “Alian-ça dos Povos da Floresta”, os aliados incluíam aindao Partido Verde, organizações não-governamen-tais brasileiras (Instituto de Estudos Amazônicos,dirigido por Mary Allegretti) e do exterior (Envi-ronmental Defense Fund, em que atuava StephanSchwartzman). Allegretti, que desde 1985 vinha sededicando intensivamente na divulgação da pro-posta de reservas extrativistas, conseguiu dar pas-sos importantes para sua implementação no inte-rior do Incra, em 1987.

Com recursos próprios, o Conselho passou ater autonomia para realizar encontros em váriosestados da Amazônia. Nesses encontros novossindicatos rurais foram fundados (como em AssisBrasil) ou fortaleciam-se os já existentes, e eramdiscutidos os problemas locais da categoria, assimcomo a proposta de reforma agrária dos serin-

gueiros, a reserva extrativista. O CNS tornou-seuma entidade jurídica em meados de 1988, emmeio à intensa atividade de suas lideranças, comoChico Mendes, Osmarino Amâncio Rodrigues, Rai-mundo Mendes, entre outros. Chico Mendes saiade encontros em Washington para fazer “empates”em Xapuri, e nos entremeios estabelecia umarede de conexões com sindicalistas e ativistas am-bientais. A estratégia geral consistia, por um lado,fortalecer a organização (sindical e cooperativa) eas lutas locais (“empates”); por outro, alcançar ameta da criação das reservas extrativistas com adesapropriação das florestas “griladas”, das quaisfazendeiros procuravam expulsar os moradores.Quando Chico Mendes foi assassinado por fazen-deiros em dezembro de 1988, o movimento dosseringueiros tinha adquirido um novo perfil de or-ganização – uma combinação de sindicatos (for-malmente confederados na Contag) com uma or-ganização (Conselho) que contava com aliadosambientalistas e que tinha recursos próprios. Aslideranças eram as mesmas, mas a atuação doCNS tornava possível aos seringueiros atuar emum campo mais amplo de discussão.

Após o assassinato de Chico Mendes, o Con-selho, reunido em 1989, estabeleceu pela primei-ra vez um estatuto, no qual foram claramente de-finidas suas relações com o movimento sindical.Tratava-se de uma associação civil, sem subordi-nação partidária ou sindical, em que os membrospoderiam ser “trabalhadores extrativistas” em sen-tido amplo, de modo a incluir pequenos agricul-tores amazônicos, pescadores e quilombolas. Umtraço essencial definido pelo estatuto foi de que oConselho não seria uma organização de massa,não recrutaria “membros”, não emitiria carteiri-nha, não daria benefícios individuais nem cobra-ria anuidades. Isso claramente o distinguia deuma organização sindical, o que não o impediade ser uma organização de apoio aos sindicatos;ademais, afirmava-se como um agente capaz depropor políticas públicas e de executá-las na for-ma de projetos. Não havendo eleições gerais, oórgão era composto por cerca de quarenta conse-lheiros eleitos por comissões municipais (oito ti-tulares e oito suplentes por município). A criaçãode reservas extrativistas foi incluída no estatuto

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como um objetivo da organização.Portanto, o que estava em questão era a pos-

sibilidade de negociar com maior poder de pres-são. Não se tratava de abandonar a estratégia de-fensiva e local dos “empates”, mas de ampliar suaação para uma estratégia ofensiva e global nosentido de preservar as florestas da especulação eda destruição. Em suma, tratava-se de bloqueara acumulação primitiva. Mas isso transformou aidentidade do movimento. Os líderes seringueirosrecusaram-se a permanecer isolados, e criaramuma ponte entre as lutas que continuavam a sertravadas em escala local, como as “greves” no rioTejo, e um movimento em âmbito nacional.

Antônio Macedo

Ao reunir-se em fevereiro 1988 em Rio Bran-co para planejar as atividades do ano, uma das de-cisões importantes tomadas pelo Conselho, comapoio direto de Chico Mendes, foi convidar Antô-nio Macedo para integrar seus quadros. Macedohavia sido seringueiro no vale do Juruá em sua in-fância, e desde então passara por uma série deprofissões, entre as quais as de piloto fluvial, me-cânico de máquinas pesadas e agricultor de pro-jetos de assentamento. Seu emprego mais recentehavia sido de sertanista na Funai, onde criou coo-perativas, trabalhou na demarcação de terras e foiresponsável pela condenação de Orleir Camelipela exploração criminosa de madeira das terrasAshaninka – razão para manobras que levaram àsua demissão do cargo, ao qual ele voltaria, anis-tiado, no final da década de 1990.

A primeira tarefa de Macedo, em março de1988, foi visitar o rio Tejo, onde contatou ChicoGinu (que atuava no alto Tejo) e Damásio (queatuava no médio Tejo), ambos delegados sindi-cais. Em julho, Macedo publicou na imprensa dacapital acreana uma proposta para a criação deuma reserva extrativista no rio Tejo. Nesse ano,vale lembrar que se falava muito do assunto noAcre. Em janeiro desse mesmo ano, por exemplo,o governador do Acre, Flaviano de Melo, haviaanunciado a criação da reserva extrativista do SãoLuís do Remanso na presença de representantes

de bancos multilaterais com o objetivo de apazi-guar a oposição ao financiamento da BR-364.Nesse contexto, membros da secretaria de plane-jamento do Estado apoiaram a idéia, e a econo-mista Adir Gianinni, do BNDES, entrou em conta-to com Macedo para estimulá-lo a encaminhá-laao Congresso na forma de projeto.

Chico Mendes, em reunião realizada emagosto de 1988, argumentou em favor da idéia deapresentar ao BNDES uma proposta de Plano deDesenvolvimento Comunitário para Reserva Ex-trativista da Bacia do Rio Tejo, que havia sido pre-parado a partir das idéias de Macedo e com a co-laboração de um antropólogo. A posição de ChicoMendes foi decisiva, já que se tratava de um pas-so que para alguns parecia um desvio em relaçãoàs práticas normais de uma organização de traba-lhadores. Eis o problema: o Conselho deveria li-mitar-se a canalizar recursos para as lutas sindi-cais de resistência, ou poderia atuar como umaagência de captação de recursos e implementaçãode projetos. A decisão de apoiar o projeto do rioTejo foi crucial para que a organização começas-se a atuar na segunda direção. Cabe aqui acentuarque o eixo do Plano de Desenvolvimento Comu-nitário era a criação de uma cooperativa de serin-gueiros em uma região onde imperava o regimede barracão, isto é, o regime de monopólio co-mercial imposto pela violência. Dessa forma, o“plano de desenvolvimento” era de fato o finan-ciamento de uma luta de enfrentamento diretocom o regime dos seringais em seu traço essen-cial: a exploração de seringueiros por meio domonopólio e da violência.

Na esteira do assassinato de Chico Mendes emdezembro de 1988, o BNDES aprovou o Projeto. Adotação a fundo perdido previa cerca de US$70,000para a infra-estrutura da cooperativa, como, porexemplo, a compra de barcos, e o capital de gironecessário para fazê-la funcionar, não incluindo aíoutros componentes do projeto como educação esaúde. Em conseqüência, em março de 1989 as lu-tas locais dos seringueiros do rio Tejo adquiriramum caráter completamente diferente. O Conselho ti-nha um grande estoque de mercadorias destinadasa inundar o próprio coração dos barracões.

Orleir Cameli de imediato se deu conta da

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ameaça. Iniciou uma campanha na imprensa con-tra Macedo, que sofreu diversos atentados contrasua vida, e agressões físicas do próprio Cameli, eorganizou um boicote comercial em Cruzeiro doSul contra a cooperativa. O passo mais importan-te, tomado com apoio da UDR, foi um interditoproibitório visando a impedir o acesso físico deMacedo e de Chico Ginu ao rio Tejo (houve tam-bém interpelação judicial do antropólogo-asses-sor). Os advogados da UDR argumentaram que aimplantação da cooperativa quebraria uma tradi-ção centenária de abastecimento dos seringais pe-los patrões, que ficariam inadimplentes junto aoBanco do Brasil, com resultados desastrosos paraa economia regional. De fato, achavam naturalque os empréstimos generosos do Banco do Bra-sil, a taxas de juros reais negativas, fossem adqui-ridos usando como caução a borracha a ser pro-duzida pelos seringueiros, já que inexistiam títulosde propriedade para apresentar como garantia.

Nos seringais, espalhavam-se boatos segun-do os quais Macedo estaria vendendo a terra para“gringos”, que a transformariam numa “reserva”.Ou ainda de que Macedo era o diabo, o cão – ha-via quem o testasse, oferecendo a água benta doirmão José. Macedo, por sua vez, atuava nos serin-gais usando armas semelhantes. Dizia-se que eleera capaz de fazer com que patrões se ajoelhas-sem para pedir perdão por seus crimes contra se-ringueiros. Era também procurado por seringuei-ros dos rios vizinhos, que voltavam para suaslocalidades com papéis assinados por ele orde-nando que os patrões parassem de cobrar a “ren-da por estradas de seringa”. Macedo, além de or-ganizador e burocrata era líder carismático. Narealidade, era o que se poderia chamar de um“mestre de cipó”, oficiando cerimônias de aya-huasca, um dos meios de integrar aliados que che-gavam à região e de tornar coeso o grupo de serin-gueiros mais próximo a ele, formado por famíliasdo alto rio Tejo. Afinal, vários seringueiros dessa re-gião, muitos deles com famílias formadas deuniões entre nordestinos migrantes e mulheresraptadas de aldeias indígenas, mantinham cerimô-nias de uso do “cipó”, realizadas em segredo e sobo temor da repressão patronal (e a que assisti jáem 1983, bem antes da chegada de Macedo). Ma-

cedo fazia viagens aos Estados Unidos e à Europa,recrutando aliados e seguidores pessoais no exte-rior e canalizando doações para o escritório deCruzeiro do Sul. Num de seus atos típicos de im-provisação e ousadia, condecorou pessoalmentePaul MacCartney, que apresentava um show noMaracanã. Ademais, mobilizava na cidade de Cru-zeiro do Sul uma rede de amigos e aliados, como,por exemplo, comerciantes dissidentes que perce-beram que nada teriam a perder fornecendo benspara a cooperativa, membros da igreja e jovens daclasse média recrutados nas sessões ayahuasquei-ras. No seringais, criou um núcleo de seguidoresdispostos a enfrentar riscos de vida para lutar pelacooperativa. Ao articular planos de ação tão diver-sos e de grande amplitude, rio abaixo e rio acima,Macedo agia como um xamã no sentido definidopor Manuela Carneiro da Cunha. Contudo, seriaum erro pensar que Macedo atuava apenas comolíder carismático. A começar pela Associação dosSeringueiros e Agricultores do Rio Tejo, ele ajudoua fundar uma extensa rede de associações de se-ringueiros e agricultores por todo o vale do AltoJuruá, fazendo com que o Conselho se tornasseum órgão de apoio não só dessas associações, mastambém de movimentos indígenas.

Todo o ano de 1989 foi de crise e agitaçãosocial no rio Tejo, em meio ao processo de im-plantação de uma cooperativa, financiada peloBNDES, em uma área em que havia a pretensãode privatização das terras por parte de poderosospatrões locais, entre eles, Cameli, que viria a sereleito governador do estado nos anos seguintes.Não seria possível, no âmbito restrito deste artigo,narrar os detalhes que levaram a Procuradoria Ge-ral da República a intervir na questão, bloquean-do de fato o “interdito proibitório”. Tampoucocabe detalhar as estratégias que, por meio deações em Rio Branco, Brasília e São Paulo, procu-raram encaminhar uma solução legal para a crise.Esta veio em janeiro de 1990, não por meio do In-cra, mas do Ibama, como resultado da atuaçãotanto da Procuradoria Geral da República comode ações de um Grupo de Trabalho constituídono interior do Ibama com representantes e asses-sores dos seringueiros. O que cabe destacar é quedessas articulações participaram cientistas naturais

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e antropólogos, advogados e políticos, sindicalis-tas e ativistas de diversas Ongs. Como figura demediação entre esses vários segmentos, Macedofoi a peça principal na luta pela criação da Reser-va Extrativista do Alto Juruá, saindo de cena tãologo a reserva foi criada e institucionalizada.

Comentários finais

Pensa-se muitas vezes que poderes hegemô-nicos possuem uma capacidade incontestávelpara controlar populações e territórios nas mar-gens do sistema mundial. Nessa visão há poucoou nenhum lugar para mudança política real epara agentes locais da história. As alternativas àescravização da própria linguagem pelas gramáti-cas hegemônicas de “desenvolvimento sustentá-vel” seriam ou a paródia a essa mesma lingua-gem, ou a marginalização voluntária. Mas talvez,como indicamos, haja caminhos imprevistos pormeio dos quais se constroem fatos novos em ní-vel local, e que não eram previstos nos esquemasantecipados.

Ao longo da década de 1980, de maneiramuito rápida, ocorreu um processo de mudança.Sindicalistas agrários converteram-se em “serin-gueiros”, a reivindicação por lotes de terra deu lu-gar à demanda de grandes florestas para uso co-letivo, a pauta de melhores preços para aborracha deu lugar à defesa da natureza. Novosaliados começaram a aparecer entre os ambienta-listas. Ocorreu uma reavaliação do significado daterra, dos limites do sindicalismo e da complexi-dade dos regimes de propriedade. O resultado foique, em vez de serem expropriados pela frentecapitalista e madeireira, os seringueiros consegui-ram no Alto Tejo a expropriação anticapitalista ea posse coletiva da terra.

Para isso, articularam-se personalidades re-presentantes de coletividades em escalas distintas:Chico Ginu, entre o Riozinho da Restauração eCruzeiro do Sul; Chico Mendes, entre Acre, Rio deJaneiro e Washington; e Antônio Macedo, transi-tando ao longo desses extremos, do Riozinho aNova York. Nessa articulação, as idéias do am-bientalismo que circulavam em esfera internacio-

nal e nacional chegaram aos cantos mais remotosda floresta, juntamente com pessoas de fora, ecom recursos materiais. Mas essa chegada não foifeita desordenadamente. O dinheiro era controla-do pela associação dirigida por Chico Ginu, pormeio de circuitos administrados por Macedo doCNS; as relações com os aliados externos eram,em última análise, condicionadas pelo papel mo-delar de Chico Mendes. As idéias novas de defe-sa da natureza e da “ecologia” eram reinterpreta-das no âmbito regional e local. De um lado, essasidéias ganhavam um significado social para ossindicalistas que atuavam junto a Chico Mendes;de outro, integravam-se às noções costumeirasque associavam a floresta a uma extensão da so-ciedade humana, com responsáveis que exigiamrespeito, segundo Chico Ginu.

Em suma, o desenvolvimento ocorreu, defato, de forma desigual e combinada. Desigual,porque se mantinham as diferenças profundas en-tre as práticas e as ontologias dos altos cursos derio no Alto Juruá, e entre o modo de vida e os in-teresses de aliados do Rio de Janeiro e de SãoPaulo. Combinado, porque os seringueiros foramcapazes de integrar em sua própria esfera de vidaos elementos externos, convertendo-os em meiosde autodefesa social e moral. Dessa forma, “semplano, complexa e combinada”, seringueiros mar-ginalizados em uma estrutura global-nacional fo-ram capazes de tomar partido de uma conjunturaúnica e utilizar-se dos meios materiais e simbóli-cos disponibilizados por ela para construir alter-nativas históricas que não haviam sido previstasde antemão por ninguém.

Voltando ao vocabulário de Jean-Paul Sartre:Ginu, Macedo e Chico Mendes agiram em um ho-rizonte do possível, que se alargou na conjunturade transformação da sociedade dos seringais,constituindo a um só tempo a destruição acelera-da das condições de vida anteriores e os meiospara resistir à proletarização forçada. Ao fazer esseuso historicamente criativo de uma conjuntura detransição, eles afirmaram para si um futuro quenão havia sido planejado. Definiram-se “para si”de forma a explodir os limites do que estavamcondenados a ser “em si”. Estavam destinados pe-las estruturas históricas a ser seringueiros-fósseis

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de antigos ciclos extrativos, reservas de mão-de-obra ocupando vicariamente terras à espera de va-lorização, até a chegada de um novo ciclo econô-mico que os expulsaria definitivamente da terrapara os subúrbios das novas cidades no estado doAcre. Em vez disso, conquistaram não apenas di-reitos coletivos à terra, mas também a possibilida-de de, sem deixar de ser seringueiros, se tornarantes de tudo cidadãos, políticos, gerentes de as-sociação, professores e pesquisadores.

Acredito que acontecimentos como esse in-dicam que a história local não tem uma essênciapredeterminada e inevitável. Ela se configura ematos que podem mudar o rumo das tendências es-truturais. A “ecologização” de movimentos sociaisno mundo inteiro na década de 1980 foi, em cer-to sentido, resultado de processos estruturais am-plos. Mas por que esse processo eclodiu justa-mente no Acre? Ou melhor, por que a conjunturafoi utilizada nesse pequeno estado, e ali deu ori-gem às primeiras terras coletivamente apropriadaspor populações da floresta? É nesse espaço desubdeterminação que tem lugar a margem de li-berdade que amplia o horizonte do possível eque se materializou nas trajetórias de Chico Ginu,Antônio Macedo e Chico Mendes.

NOTAS

1 Sobre o “povo da floresta”, ver, por exemplo, Ghaie Vivian (1992, pp. 13-14) e Taylor (1995, p. 19); so-bre “povo das águas”, ver Diegues (em Ghai e Vi-vian, 1992, pp. 141-158), Furtado, Leitão e Mello(1993); sobre garimpeiros, ver Cleary (1990, pp.xxii, 223 e 228). A expressão “movimentos socioam-bientais” foi utilizada por Ricardo (2002).

2 Ver, entre outros, Parfit (1989); Torres e Martine(1991); Romanoff (1992); Browder (1992).

3 A minha experiência na região não parou aí, masescolhi o período entre 1982 e 1992 em parte por-que é bastante ilustrativo para o desenvolvimentodeste artigo; em parte, porque permite um certodistanciamento em relação aos eventos tratados.

4 O Riozinho da Restauração foi o local principal noprimeiro período de minha pesquisa de campo, desetembro de 1982 a novembro de 1983. Depois dis-

so retornei a Cruzeiro do Sul em 1986, e ao Riozi-nho em 1987, na primeira de muitas viagens ao Tejoao longo da década de 1990.

5 Virtual, mas não legal. Até 1903, alguns ocupantesde seringais registravam suas pretensões a territó-rios da floresta em cartórios de Manaus, num perío-do em que toda a região era contestada pelo Perue pela Bolívia. Depois de passar ao domínio brasi-leiro (tratado com a Bolívia, em 1903, e com o Peru,em 1909), a região tornou-se território federal, maso governo brasileiro nunca legalizou os títulos deposse. Apenas em 1982 iniciaram-se os processosde regularização fundiária. O Acre foi durante qua-se toda sua história um vasto território federal deterras públicas, mas foi também um imenso latifún-dio assentado no “costume” e na complacência dosistema político e jurídico.

6 As “correrias” devastaram parte considerável dosgrupos Pano do alto Juruá, embora os números nãosejam conhecidos e não haja estimativas mesmoque grosseiras. Alguns desses indígenas refugiaram-se em território peruano; outros permaneceram nointerior de seringais sob a tutela de um patrão,como ocorreu nas vizinhanças do Tejo com os Ca-xinawa do Rio Jordão. Para mais detalhes, ver Wolff(1999); Pantoja Franco (2001); Vale de Aquino eIglesias (2002); Mendes (2002); Almeida, Wolff, Cos-ta e Pantoja Franco (2002).

7 Um exemplo clássico é o da exploração de pelespara exportação. A similitude com o sistema de se-ringais foi destacada por Steward e Murphy (1977).

8 A documentação sobre esse processo encontra-seem Almeida (1993, caps. 1-2). Ver também Wolff(1999); Pantoja Franco (2001); Almeida, Wolff, Cos-ta e Pantoja Franco (2002).

9 “Greves” de seringueiros desse tipo tinham prece-dentes antigos. Há registros orais e documentais deseringueiros que fizeram um movimento similar eexpulsaram o patrão-aviado, em 1916. Nesse caso,o líder foi finalmente preso, mas isso demorou umano para ocorrer. Ver Almeida, Wolff, Costa e Pan-toja Franco (2002, p. 119). Na década de 1980, hou-ve as “greves” de 1981 (João Claudino) e de 1987(Chico Ginu). Outros movimentos desse tipo ocor-reram em diversos períodos, de acordo com o rela-to de seringueiros. Cartas ao governador-interventordo Acre na década de 1940 contêm queixas contrao “estado de rebelião” dos seringueiros do Tejo.

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10 Nasci em Rio Branco, Acre. Meu pai trabalhoudurante sua infância em seringais; meu avô paternofoi seringueiro no rio Purus; minha avó materna,por sua vez, foi esposa de patrão de seringal empo-brecido.

11 Trata-se do que Eduardo Viveiros de Castro chamoude “autodeterminação ontológica” (Viveiros de Castro,2003).

12 “Empates” são ações coletivas para impedir a der-rubada de florestas, a qual era precedida pela expul-são de seringueiros e apropriação de terras. Asprimeiras iniciativas desse tipo de ação ocorreramno município da Brasiléia com Wilson Pinheiro, etiveram continuidade com Chico Mendes. Ambosforam assassinados a mando de fazendeiros.

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RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

DIREITOS À FLORESTAE AMBIENTALISMO:SERINGUEIROS E SUAS LUTAS

Mauro W. Barbosa de Almeida

Palavras-chaveAmazônia; Seringueiros; Política;Natureza; Antropologia.

Os seringueiros amazônicos eraminvisíveis no cenário nacional nosanos de 1970. Começaram a se arti-cular como um movimento agráriono início dos anos de 1980, e na dé-cada seguinte conseguiram reconhe-cimento nacional, obtendo a im-plantação das primeiras reservasextrativas após o assassinato de Chi-co Mendes. Assim, em vinte anos oscamponeses da floresta passaram dainvisibilidade à posição de paradig-ma de desenvolvimento sustentávelcom participação popular. Este textonarra essa surpreendente história,tomando por base a trajetória de al-gumas lideranças e suas estratégiaspara dar ao movimento social umavisibilidade em escala nacional e in-ternacional, conectando suas reivin-dicações agrárias a temas ambientaisde interesse mais geral.

RIGHTS TO THE FOREST ANDENVIRONMENTALISM: RUBBER-TAPPERS AND THEIR FIGHTS

Mauro W. Barbosa de Almeida

Key wordsThe Amazonian; Rubber-Tappers;Policies; Nature; Anthropology.

The Amazonian rubber-tapperswere invisible in the national scenein the 1970’s. They started to organi-ze themselves as an agrarian move-ment early in the 1980’s and in the1990’s they obtained national recog-nizance, having the first ExtractiveReserves being implemented rightafter Chico Mendes’s assassination.Thus, these peasants of the tropicalforest went from invisibility to para-digms of sustainable, participatorydevelopment in just two decades.This article narrates this historicalepisode by studying the trajectoriesof leaders, as well as the strategiesemployed by them in order to ob-tain visibility for the social move-ment both in national and interna-tional scale, connecting theiragrarian claims to environmental is-sues of more general interest.

DROITS À LA FORÊT ETENVIRONNEMENT: LESSERINGUEROS ET LEUR LUTTE

Mauro W. Barbosa de Almeida

Mots-clésAmazonie; Seringueros; Politique;Nature; Anthropologie.

Les seringueros d’Amazonie sontpassés inaperçus dans le scénarionational des années 1970. Ils ontcommencé à s’articuler en tant quemouvement agraire au début des an-nées 1980 et, dans la décennie sui-vante, ils ont réussi à être reconnusau niveau national, en obtenant lamise en place, après l’assassinat deChico Mendes, des premières réser-ves naturelles d’extraction de caout-chouc. Ainsi, en vingt ans, les pay-sans de la forêt sont passés del’invisibilité à une position de para-digme de développement durablequi compte avec la participation po-pulaire. Ce texte, qui raconte cettehistoire surprenante, s’est inspiré dela trajectoire de certains leaders et deleurs stratégies pour donner à cemouvement social une visibilité àl’échelle mondiale et internationale,tout en liant leurs revendicationsagraires à des thèmes environne-mentaux d’intérêt plus général.