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COLEÇÃO CULTURA E PENSAMENTO Direitos culturais Francisco Humberto Cunha Filho Isaura Botelho José Roberto Severino (organizadores)

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COLEÇÃO CULTURA E PENSAMENTO

Direitos culturais

Francisco Humberto Cunha FilhoIsaura BotelhoJosé Roberto Severino(organizadores)

1

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Direitos Culturais

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ReitorJoão Carlos Salles Pires da Silva

Vice-Reitor

Paulo Cesar Miguez de Oliveira

Assessor do Reitor

Paulo Costa Lima

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora

Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial

Alberto Brum NovaesAngelo Szaniecki Perret SerpaCaiuby Alves da CostaCharbel Ninõ El-HaniCleise Furtado MendesEvelina de Carvalho Sá HoiselJosé Teixeira Cavalcante FilhoMaria do Carmo Soares de FreitasMaria Vidal de Negreiros Camargo

CULT- CENTRO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES EM CULTURA

CoordenaçãoLeonardo Costa

VicecoordenaçãoRenata Rocha

MINISTÉRIO DA CULTURA

Presidente da RepúblicaMichel Miguel Temer

Ministro de Estado da CulturaSergio Henrique Sá Leitão

Chefe de GabineteClaudia Maria Mendes de Almeida Pedrozo

Secretária-ExecutivaMariana Ribas

Secretaria de Articulação e Desenvolvimento Institucional, substitutaMagali G. de M. Moura

Diretora do Departamento de Desenvolvimento InstitucionalClaudia de Oliveira Cabral Santos

Coordenadora do Programa Nacional de Formação de GestoresLuisa Coelho Netto Galiza

FUNDAÇÃO CASA DE RUI BARBOSA

PresidenteMarta de Senna

Diretor ExecutivoMarcelo Viana Estevão de Moraes

Diretor do Centro de PesquisaAntonio Herculano Lopes

Chefe do Setor de Pesquisa em Políticas Culturais Lia Calabre

Chefe substitutoAlexandre Domingues

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coleção cultura e pensamento

Francisco Humberto Cunha FilhoIsaura BotelhoJosé Roberto Severino(organizadores)

Direitos Culturais

VOLUME 1

SalvadorEDUFBA 2018

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2018, autores.

Direitos para esta edição cedidos à Edufba.

Feito o Depósito Legal.

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Capa Gabriel Cayres

Projeto GráficoLúcia Valeska Sokolowicz

EditoraçãoMarcella Napoli

Revisão e NormalizaçãoFlávia RosaSusane Barros

Sistema de Bibliotecas – SIBI/UFBA

Direitos culturais /Francisco Humberto Cunha Filho, Isaura Botelho, José Roberto Severino (organizadores). – Salvador: EDUFBA, 2018.245 p. (Cultura e pensamento; 1).

ISBN: 978 - 85 - 232 - 1679 - 5Inclui bibliografia

1. Patrimônio cultural - Brasil. 2. Cultura e direito. 3. Brasil - Política cultural. 4. Programa Cultura e Pensamento (Brasil). I. Cunha Filho, Francisco Humberto. II. Botelho, Isaura. III. Severino, José Roberto.

CDD - 353.740981

Editora filiada à:

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIARua Barão de Jeremoabo s/n Campus de Ondina – 40.170-115 Salvador – Bahia – BrasilTelefax: 0055 (71) 3283-6160/[email protected] – www.edufba.ufba.br

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SUMÁRIO

7 apresentação

Cultura e pensamento para o Brasil atualLuana Vilutis / Antonio Albino Canelas Rubim

23 prefácio

Incentivos à produção de conhecimento na área das políticas públicas de Cultura e da gestão: uma visada histórica das ações MinCLia Calabre

27 introdução

Direitos Culturais: centenários mas ainda desconhecidosFrancisco Humberto Cunha Filho / Isaura Botelho / José Roberto Severino

35 Cultura, constituição e direitos culturaisMarcella Souza Carvalho

57 As faces da Cultura no âmbito da Constituição Federal de 1988 Aimée Schneider Duarte

79 De religiões a povos: a luta pelo reconhecimento dos direitos dos povos de terreiroNailah Neves Veleci

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99 Múltiplos saberes da diversidade em rede: conexões interculturais no debate da inclusão digital na perspectiva dos povos da florestaRicardo Damasceno Moura

119 A vaquejada e o efeito backlash: os dissabores do debate jurídico-legislativo sobre os direitos culturais no BrasilLuana de Carvalho Silva Gusso / Nestor Castilho Gomes / Amanda Karolini Burg

141 Direitos e modelos institucionais na lógica do acesso à CulturaLuiz Fernando Zugliani

163 Experiências conselhistas no Brasil: cultura, política e participação socialGiane Maria Souza

189 (O)culto pelo patrimônio: (pre)tensões da memória do cangaço na cultura nordestinaVagner Silva Ramos Filho

209 Integração sistêmica dos instrumentos acautelatórios para a proteção do patrimônio cultural no BrasilVitor Melo Studart

227 O direito econômico como instrumento de efetivação dos direitos CulturaisNichollas de Miranda Alem

241 Sobre os organizadores

243 Sobre os autores

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apresentação

Cultura e pensamento para o Brasil atual

Luana Vilutis1 Antonio Albino Canelas Rubim2

Uma política cultural sintonizada com a contemporaneidade deve se ba-sear em um conceito amplo de cultura, conforme orientação assumida pelo Ministério da Cultura (MinC) desde a gestão do Ministro Gilberto Gil. Tal amplitude implica em políticas não apenas voltadas para artes e patrimônio, mas para uma larga diversidade de áreas culturais. O pen-samento emerge como uma destas esferas. A compreensão que o pensa-mento passa a ser temática vital a ser incorporada por políticas culturais contemporâneas baliza a reativação pelo MinC do Programa Cultura e Pensamento em 2015.

1 Doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisado-ra do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT-UFBA) e produtora executi-va da Coleção Cultura e Pensamento.

2 Pesquisador do CNPq e do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT), pro-fessor do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Institu-to de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC-UFBA) e coordena-dor da Coleção Cultura e Pensamento.

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8 coleção cultura e pensamento

O Programa abarca um conjunto múltiplo de atividades e envolve vá-rios parceiros institucionais em cada uma de suas iniciativas. A Univer-sidade Federal da Bahia (UFBA) é responsável pelo desenvolvimento de uma coleção de livros para promover a cultura e o pensamento crítico. Realizada pelo Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT) do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC) da UFBA, a Coleção Cultura e Pensamento busca estimular e dar vazão aos inúmeros estudos e pesquisas hoje realizados em todo o Brasil acerca do tema das políticas culturais, considerado essencial para o de-senvolvimento da cultura, o aprimoramento das políticas culturais e o aprofundamento da democracia.

Quando foi criado pelo MinC em 2005, o Programa Cultura e Pensa-mento propunha refletir inventivamente sobre a própria cultura política do país. (GIL, 2006) Com a intenção de ampliar a discussão pública em torno de temas contemporâneos, o Programa iniciou com o ciclo de de-bates Cultura e Pensamento em tempos de incerteza. As temáticas que compuseram a trilogia de conferências foram “O silêncio dos intelec-tuais”, “O esquecimento da política” e “Mutações: novas configurações do mundo”. Os debates foram realizados em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador e Curitiba.

Em 2006, novos eixos temáticos foram incluídos nos editais que con-vocaram a sociedade a realizar seminários com temas diversos como bio-política e tecnologias; populações e territórios; os usos e abusos do público e do privado na cultura política dos tempos atuais; e lógicas e alternativas para as dinâmicas culturais no centro da economia e da sociedade.

A terceira edição de editais do Programa Cultura e Pensamento ocor-reu em 2009-2010 e foi voltada ao financiamento de debates e revistas de alcance nacional. Com ênfase na produção e circulação de revistas cul-turais independentes, foram selecionadas quatro revistas de pesquisa estética e reflexão crítica sobre a produção cultural brasileira contempo-rânea: Babel (Poesia); Índio (Cultura indígena); Piseagrama (Arte, Po-lítica e Cidades) e Recibo (Artes Visuais). Foram lançados seis números

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de cada revista, com tiragem de dez mil exemplares cada. Ao todo, essa terceira edição do Programa Cultura e Pensamento contou com 240 mil revistas distribuídas gratuitamente em universidades, centros cultu-rais, pontos de cultura e instituições diversas das cinco regiões do país.

Todas essas três edições do Programa foram realizadas pela Secreta-ria de Políticas Culturais do Ministério da Cultura (SPC/MinC) e a Fun-dação Casa de Rui Barbosa, e contaram com o patrocínio da Petrobras por meio de incentivo fiscal da Lei Rouanet. A interrupção do Programa em 2010 impediu o desenvolvimento dessas ações e o aprofundamento do debate crítico proposto anteriormente.

Em 2015, o MinC retoma o Programa Cultura e Pensamento com a intenção de articular uma rede de instituições e parceiros em um pro-cesso de reflexão e diálogo constantes em torno de grandes temas con-temporâneos da cultura e das políticas culturais. O lançamento da reto-mada do Programa teve como pauta o debate sobre a crise de valores da sociedade brasileira e envolveu o conjunto dos parceiros do Programa. A perspectiva de articular diversos atores nessa iniciativa estava calca-da na proposta original do Cultura e Pensamento de conectar a execu-ção de ações públicas de cultura com a realização da disputa simbólica em torno da cultura. Aliar fomento a projetos com problematização do debate a respeito das políticas culturais foi visto nesse Programa como um caminho de aprimoramento da gestão pública da cultura de maneira participativa e democrática.

O papel da universidade pública nesse desafio é de extrema relevân-cia. O Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura e o Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da UFBA são uma referência nacional de ensino, pesquisa e extensão na área de polí-ticas culturais. Além de realizar regularmente há mais de 13 anos o En-contro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Enecult), organizam a Coleção CULT que conta hoje com 29 títulos de temas emergentes do campo Cultural, lançados pela Editora da UFBA (EDUFBA). Como um projeto de extensão do CULT, o Cultura e Pensamento é considerado ex-

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tremamente relevante por ser uma oportunidade de reforçar o sentido público da universidade ao estimular a discussão política e social sobre o Brasil em uma perspectiva de promoção da cidadania cultural. Reconec-tar as políticas culturais com as universidades e com outras instituições de ensino é desafio fundamental para o aprofundamento da democracia, para a ampliação da liberdade de expressão. Fomentar o pensamento crítico também é uma forma de promover o caráter disruptivo e criativo da Cultura e contribuir com a transformação de valores.

COLEÇÃO CULTURA E PENSAMENTO 2015

O Programa Cultura e Pensamento foi retomado em 2015 com a proposta de construir conexões entre diferentes saberes para fortalecer a cidada-nia, o respeito às diferenças e a democracia. Com a finalidade de pro-mover a reflexão sobre as políticas culturais e a consciência dos direitos culturais, esta retomada do Programa buscou incentivar iniciativas da sociedade por meio de pesquisas, publicações, desenvolvimento de me-todologias, congressos e eventos acadêmicos. Embora o Programa Cul-tura e Pensamento reúna sucessivas publicações ao longo de sua histó-ria, até o momento não existia uma coleção de livros e um compromisso continuado de produção e difusão do conhecimento na área das políticas culturais. Por iniciativa do CULT foi proposto à Secretaria de Políticas Culturais (SPC/MinC), responsável pelo Programa, a inclusão dentre suas atividades de uma coleção destinada a estimular e dar visibilidade à produção de estudos existentes sobre políticas culturais no país, que tem se desenvolvido de maneira vigorosa no século XXI no Brasil. A SPC/MinC aceitou a proposta, incluiu no programa e sugeriu que a coleção tivesse o nome de Cultura e Pensamento.

A Coleção Cultura e Pensamento nasceu com essa intenção, estimu-lar a reflexão contemporânea sobre temas da cultura nacional e interna-cional, potencializando a discussão sobre cultura e políticas culturais. Ela busca apoiar iniciativas da sociedade e da comunidade cultural, por meio da publicação de estudos existentes e do incentivo ao aparecimen-to de novos trabalhos. Estes três volumes iniciais da Coleção abordam

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a complexidade das políticas culturais em sua relação com os territórios, as artes e os direitos culturais.

Em 2017, o Comitê Gestor da Coleção Cultura e Pensamento foi com-posto e iniciou seu trabalho com representantes da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB)/Ministério da Cultura (Lia Calabre e Alexandre Domingues) e do CULT (coordenação do Projeto, Professor Albino Ru-bim).3 A principal atribuição do Comitê Gestor é definir as orientações gerais da coleção, como a escolha das temáticas específicas dos livros e as composições das comissões editoriais, dentre outras.

A escolha dos três primeiros temas para os livros iniciais da cole-ção considerou a relevância assumida por tais temáticas na agenda po-lítico-cultural dos anos recentes no Brasil: a proximidade das eleições municipais de 2016, colocaram as cidades no centro da cena pública; a emergência e conformação no mundo e no Brasil dos direitos culturais, por meio de lutas e conquistas; e a questão da política específica para as artes, que, dentre outros condicionantes, sofre interpelações e redefini-ções com a adoção do conceito ampliado de Cultura no cenário nacional recente, depois de ter sido incorporado por inúmeros países e pelos mais relevantes organismos culturais internacionais, inclusive em legisla-ções de forte impacto cultural.

Cada um dos livros – Direitos Culturais, Políticas Culturais para as Cidades e Políticas para as Artes – reúne dez textos selecionados por três comissões editoriais específicas, compostas por três estudiosos de Cul-tura. Nas escolhas dos membros das comissões editoriais foram conside-radas suas trajetórias acadêmicas, bem como sua diversidade regional. Dessa maneira, foi possível reunir um grupo interdisciplinar de avalia-dores, com abordagens plurais acerca das temáticas de cada volume e comprometidos com a produção de conhecimento relacionados à prática social contemporânea. As comissões editoriais reúnem pesquisadores e professores de todas as regiões do país, vinculados ao ensino, pesquisa e extensão nas mais diversas áreas: humanidades, direito, história social,

3 Entre 2015 e 2017, a coordenação do Projeto no CULT foi da Professora Linda Rubim.

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ciências da comunicação, sociologia, cultura e sociedade. As comissões editoriais, além de realizarem a seleção dos textos oriundos de edital pú-blico, assumem a função de organizadores do livro para o qual seleciona-ram os dez textos.

COMISSÃO EDITORIAL DE DIREITOS CULTURAIS

Francisco Humberto Cunha Filho

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Fortaleza (UNIFOR), onde ministra a disciplina de Direitos Culturais e lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. Advogado da União.

Isaura Botelho Doutora em Ação Cultural pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), gestora cultural com larga experiência na área federal de cultura, tem contribuído como coordenadora e pesquisadora de temas estruturantes para o setor da cultura e é autora de textos e livros sobre o assunto. Atualmente, dedica-se à pesquisa e especialmente à qualificação de gestores culturais.

José Roberto Severino

Professor da Faculdade de Comunicação e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É pesquisador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura/CULT e pesquisador associado do Diversitas da Universidade de São Paulo (USP).

COMISSÃO EDITORIAL DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA AS CIDADES

Fábio Fonseca deCastro

Doutor em sociologia pela Universidade de Paris 5, com pós-doutorado em etnometodologia pela Universidade de Montreal. Professor e pesquisador dos Programas de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido e Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará. Professor visitante nas universidades de Toronto e Cambridge.

Luiz Augusto F. Rodrigues

Professor Titular do Departamento de Arte da Universidade Federal Fluminense (UFF). Coordena o Laboratório de Ações Culturais –(LABAC/UFF) e é um dos editores de PragMATIZES - Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura (www.pragmatizes.uff.br).

Renata Rocha Doutora em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Professora da Faculdade de Comunicação da UFBA e vice-coordenadora do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT) da UFBA, é membro do corpo editorial da Políticas Culturais em Revista (www.politicasculturaisemrevista.ufba.br).

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COMISSÃO EDITORIAL DE POLÍTICAS PARA AS ARTES

Anita Simis Professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pesquisadora do CNPq.

Gisele Nussbaumer Professora da Faculdade de Comunicação e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Membro do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT).

Kennedy Piau Professor do Departamento de Arte Visual da Universidade Estadual de Londrina (UEL/PR) e doutor em Humanidades pela Universidade Autônoma de Barcelona. Publicou os livros Políticas Públicas e Sistema das Artes (2005) e No caminho dos encantantes (2012).

O Edital de Seleção nº 001/2017 da Coleção Cultura e Pensamento foi lançado em 14 de julho de 2017, com o objetivo de incentivar estudos de cultura e políticas culturais em todo país, pela via da publicação dos trabalhos, assegurando procedimentos republicanos e transparentes de seleção. A divulgação do edital ocorreu por meio digital e em eventos do campo cultural, como o Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cul-tura (Enecult), onde foi possível apresentar a Coleção e divulgar as ins-crições na abertura de mesas, simpósios e minicursos, além de difusão do material de divulgação para todo os inscritos no evento.

Para a divulgação das inscrições, foram confeccionadas peças gráfi-cas em formato de cards com as temáticas dos três primeiros volumes da Coleção Cultura e Pensamento, constando o prazo de inscrição e o en-dereço da Plataforma de cadastro e inscrição de textos (Portal SEER).4 Foi criado um amplo mailing com aproximadamente três mil contatos de pesquisadores, professores, estudantes, grupos de pesquisa e institui-ções da área cultural e também foram mapeados grupos e comunidades em redes sociais ligados às artes, cidades, direitos culturais e políticas culturais. Essa divulgação foi realizada pelo e-mail da Coleção Cultura e Pensamento, pela página do CULT e por meio de seu perfil em redes sociais, além da divulgação realizada pelos membros das comissões

4 http://www.culturaepensamento.ufba.br/

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editoriais e professores do IHAC. Para esclarecimento de dúvidas sobre as inscrições, foi criado um FAQ (perguntas e respostas) disponibilizado na página da Coleção.

O período de inscrição de propostas teve duração de dois meses e ocorreu entre 1º de agosto e 30 de setembro de 2017. Foram recebidas 104 inscrições vindas de todo o Brasil e mesmo de fora do país. Delas 97 fo-ram habilitadas após a conferência de documentação. O volume um Di-reitos culturais foi o que obteve maior número de inscrições, conforme demonstra o gráfico um de distribuição das inscrições habilitadas por linha editorial:

Gráfico 1 - Distribuição das inscrições por linha editorial

Fonte: Elaboração dos autores.

Foram recebidas inscrições de 18 estados de todas as regiões do país e do Distrito Federal. O Sudeste foi a região que apresentou o maior número de inscrições (46) e em seguida o Nordeste, com 26 inscrições. Houve uma inscrição internacional proveniente da Colômbia. Para estas aná-lises foi considerada a origem do autor cadastrado na plataforma res-ponsável pela inscrição do texto, não foram contemplados os coautores. Interessante apontar que as três linhas editoriais receberam inscrições das cinco regiões do país, o que reforça a relevância e ressonância das temáticas escolhidas para compor os números inaugurais da Coleção Cultura e Pensamento.

23

44

30

Direitos Culturais = 44

Políticas Culturais para as Cidades = 30

Políticas para as Artes = 23

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Gráfico 2 - Distribuição regional das inscrições

Fonte: Elaboração dos autores.

A maioria dos autores integra o corpo docente ou discente de institui-ções públicas de ensino, fundamentalmente universidades federais, es-taduais e institutos federais. Mas a Coleção também reuniu inscrições de pessoas que trabalham em órgãos públicos de cultura, especialmente do Governo Federal e de governos municipais. Em seguida, por ordem de maior incidência, temos inscrições de estudantes e professores de universidades privadas e por fim, de pessoas ligadas a organizações da sociedade civil, fundações privadas e movimentos sociais.

A avaliação das propostas pelas três comissões editoriais foi realiza-da no mês de outubro de 2017, com uma reunião presencial de avaliação e seleção em Salvador/BA para definição do resultado e elaboração dos pareceres. Cinco foram os critérios principais de avaliação de textos da Coleção: adequação à linha editorial (critério eliminatório); adequação e correção da linguagem; comunicabilidade, clareza e objetividade do texto; criatividade por meio de análises e procedimentos metodológi-cos inovadores e originalidade da bibliografia utilizada, do enfoque e do tema escolhidos.

A distribuição regional foi outro aspecto considerado relevante na avaliação dos artigos. Abarcar a diversidade territorial e contemplar olhares de diferentes regiões do Brasil foi uma preocupação constante ao

1 8

26

7

9

46Região Norte = 8

Região Nordeste = 26

Região Centro-Oeste = 7

Região Sul = 9

Região Sudeste = 46

Colômbia = 1

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longo da execução da Coleção Cultura e Pensamento, desde a formulação das ementas de cada volume, até a avaliação dos artigos, passando pela composição do mailing de divulgação das inscrições e pela composição das comissões editoriais. Podemos perceber que isso foi alcançado ao observarmos a distribuição regional dos textos selecionados, conforme demonstra o Gráfico 3:

Gráfico 3 – Distribuição regional dos autores por linha editorial

Fonte: Elaboração dos autores.

O volume um, Direitos Culturais, reúne artigos de todas as regiões do país e os demais volumes apenas não apresentam textos do Centro-Oes-te, região que obteve o menor número de inscrições e apenas um texto selecionado. Vemos que o embora a região Sudeste predomine com 14 textos selecionados, este dado não representa nem 30% da quantidade de textos inscritos dessa região. Proporcionalmente à quantidade de ins-crições, as regiões Norte e a Sul lideram ao contemplar 50% dos textos inscritos dentre as publicações.

Foi permitida a inscrição de textos coletivos com até três autores e estes números iniciais da Coleção Cultura e Pensamento reúnem um conjunto de 45 autores. O volume dois, Políticas Culturais para as Ci-dades, foi o que apresentou o maior número de coautores, pois teve me-

0

1

2

3

4

5

6

Direitos Culturais

Políticas Culturais para as Cidades

Políticas para as Artes

RegiãoNorte

RegiãoNordeste

RegiãoCentro-Oeste

RegiãoSul

RegiãoSudeste

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tade de seus artigos de escrita coletiva. No que tange à área de formação dos autores e considerando a última formação informada na inscrição, podemos identificar um rol muito diverso e multidisciplinar, com ên-fase para a presença de pessoas da área de Direito, com 12 autores, dis-tribuídos nos três volumes. Ciências Sociais e História foram as outras áreas mais recorrentes de formação dos autores, seguida de Educação e Comunicação.

Embora seja expressiva a presença de estudantes de pós-graduação e professores dentre o conjunto de autores da coleção, podemos afirmar que o perfil de atuação dos autores não é estritamente acadêmico. São pessoas que de modo geral têm relação com a universidade, mas fun-damentalmente possuem forte atuação profissional no campo cultural como artistas, produtores, gestores culturais, pesquisadores, gestores públicos de cultura e representantes da sociedade civil no Conselho Nacional de Política Cultural.

Pelo perfil dos autores contemplados nestes três primeiros livros, podemos afirmar que a intenção da Coleção Cultura e Pensamento de envolver diferentes saberes e estimular a conexão entre eles foi alcan-çada, assim como também o objetivo de contribuir com a democratiza-ção do conhecimento sobre o campo cultural e incentivar pesquisas que integrem análises, reflexões e produção de conhecimento crítico de ex-periências práticas da atuação social e cidadã do campo cultural. Nessa perspectiva, a tiragem de mil exemplares para cada um dos livros deve garantir uma boa circulação das ideias contidas nos textos selecionados. Especial atenção está sendo dada à ampla e sistemática divulgação e à satisfatória distribuição dos livros, visando torná-los disponíveis, em instituições culturais e bibliotecas, aos agentes culturais e estudiosos em todas as regiões brasileiras. Apresentamos a seguir os conteúdos de cada volume e poderemos identificar a recorrência do debate de temas políti-cos da cultura contemporânea promovido nesta Coleção.

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CULTURA: POLÍTICAS, DIREITOS, ARTES E TERRITÓRIOS

O volume um, Direitos Culturais, reúne um conjunto diverso e interdis-ciplinar de análises relacionadas tanto ao aspecto institucional dos es-tudos jurídicos da Cultura quanto ao enfrentamento de problemas reais vivenciados a partir do exercício dos direitos culturais. As temáticas da participação social e da democracia cultural ganham forte expressivida-de nos artigos sobre direitos culturais. No que diz respeito à dimensão constitucional da cultura, o livro abarca análises da cultura na Constitui-ção Federal, as ausências de normas reguladoras e a institucionalização das políticas públicas de cultura no Brasil.

No âmbito dos desafios de implementação dos direitos culturais, a luta por direitos de coletividades é tratada com foco na inclusão digital de populações ribeirinhas, quilombolas e indígenas no reconhecimen-to de suas culturas e da conquista da cidadania. O volume aborda ain-da o descompasso entre os direitos reconhecidos e os efetivados no que concerne às religiões de matriz africana e à autodeclaração de povos e comunidades tradicionais de terreiro. A contribuição das organizações sociais, para a efetivação do acesso aos direitos culturais, também com-põe o objeto de análise de um dos artigos desta publicação.

Conforme previsto na ementa deste volume apresentada no Edital de Seleção da Coleção Cultura e Pensamento, a relação entre direitos cul-turais e patrimônio cultural foi contemplada por meio de investigações acerca dos direitos relativos à proteção aos bens Culturais. A relação de direitos Culturais e direito à memória também prevista na ementa foi abordada por meio de uma reflexão acerca da construção das memórias do cangaço e das identidades nordestinas.

O volume dois, Políticas Culturais para as Cidades, parte da com-preensão da cidade como fenômeno cultural na contemporaneidade e abriga textos que abordam as relações diretas entre as políticas culturais e as cidades, seus efeitos no espaço urbano, a construção de territoriali-dades e as relações entre diferentes atores sociais com a gestão pública.

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19direitos culturais - volume 1

Os impactos culturais da produção de espaços contemporâneos são analisados a partir de diversas abordagens. Estas apontam de maneira interdisciplinar os alcances e limites das intervenções do poder público nas cidades, seja no que diz respeito à acessibilidade e aos direitos das pessoas com deficiência, quanto no que tange aos serviços e produtos do turismo que impactam em festividades e na construção de identidades culturais, dentre outros enfoques.

A importância da participação social e da cidadania cultural nas di-versas manifestações da disputa pelo direito à cidade permeiam, de modo transversal, as análises deste volume. Os riscos da espetacularização do espaço público por meio de grandes projetos urbanos e os limites da au-sência de envolvimento das comunidades tradicionais nos processos de patrimonialização e promoção de seus saberes e fazeres são alguns dos objetos de análise que compõem o segundo livro da coleção. O processo de construção de uma nova cultura urbana é um aspecto analisado a partir dos impactos de políticas de promoção da ocupação dos espaços públicos e da descentralização do acesso à produção e à fruição cultural.

As reflexões críticas sobre o papel das políticas públicas culturais para as cidades contemplam ainda estudos sobre políticas culturais mu-nicipais, ações públicas e territorialidades, políticas locais setoriais e os desdobramentos territoriais de interações federativas. Outro destaque dos conteúdos deste volume é a valorização da centralidade da cultura no desenvolvimento das cidades. A transversalidade da cultura e a sua in-tersetorialidade com o turismo, a economia e a comunicação expressa a importância da integração de diversas políticas públicas para obtenção de resultados efetivos voltados à cidadania cultural.

O volume três intitulado Políticas para as Artes, abriga textos que discutem as relações entre políticas culturais e artes, com análises de ações públicas voltadas ao potencial criativo dos cidadãos e propostas de ampliação e diversificação dos tradicionais mecanismos de fomento às artes. A constituição de espaços de participação social e sua contribui-ção para a organização e articulação política de segmentos artísticos é temática recorrente dentre os artigos deste volume.

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A situação do fomento às artes no Brasil foi abordada de maneira ge-ral e constante dentre os vários artigos, com foco nas políticas públicas contemporâneas do Brasil. Recortes pontuais de abordagem e análises específicos também foram feitos a partir de um olhar focado na situa-ção de algum segmento artístico (dança, teatro, grafite, literatura, au-diovisual, música, dentre outros), ou de uma dimensão territorial, como as políticas municipais (Curitiba, São Paulo), estaduais (Bahia, Ceará), regionais (Amazônia) e até mesmo da cooperação internacional entre Brasil e França.

Abordagens regionais sobre o fomento às artes oferecem importantes contribuições para se pensar os desafios das políticas culturais no Brasil. Esse é o caso do estudo sobre a formação técnica em artes na Bahia, com foco nos cursos técnicos de dança e música, que oferece aportes inovado-res para pensar a formação técnica como objeto das políticas para as ar-tes. A análise dos alcances e limites da democratização do acesso à produ-ção e difusão cultural na Amazônia reforça a importância de contemplar o custo amazônico no âmbito das políticas de cultura no Brasil.

Uma análise das características do trabalho artístico e seu mercado de trabalho hiper-reflexivo e precário também compõe este volume e permite identificar muitas ambiguidades presentes no mundo do traba-lho contemporâneo a partir das recorrências no contexto e característi-cas do trabalho artístico. O reconhecimento da diversidade presente no campo artístico e o desafio que isso representa para as políticas culturais são inquietações constantes nas reflexões e práticas aqui analisadas. A importância da constituição de espaços de participação social e o pro-cesso de articulação e mobilização do segmento artístico são questões presentes em diversas abordagens.

PERSPECTIVAS

A existência da Coleção Cultura e Pensamento ganha sentido como re-conhecimento da crescente produção de estudos e pesquisas sobre cul-tura e políticas culturais no Brasil, em especial, a partir dos anos 2000.

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Para além do reconhecimento, ela visa estimular ainda mais o desenvol-vimento desta produção por meio de sua divulgação para as comunida-des culturais interessadas. Ela pretende igualmente incentivar, por meio da ampliação da sua visibilidade, a constituição de redes de estudiosos e pesquisadores, que ajudem a consolidar e sedimentar tais áreas de inves-tigação e reflexão e de práticas político-culturais, fundamentais para o pensamento, a cultura e as políticas culturais no Brasil.

A cultura tem um papel crítico vital no mundo e no Brasil contempo-râneos. Ela, por excelência, emerge sempre como um local privilegiado de reflexão sobre o tempo em que vivemos, seus retrocessos e avanços, suas incertezas e esperanças, suas agruras e utopias. A cultura e o pensa-mento são cruciais para a construção da democracia, para seu continua-do aprofundamento, e para a luta por um outro mundo possível e melhor.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Ministério da Cultura. Cultura e pensamento: a retomada! Vídeo de transmissão ao vivo do lançamento do Programa Cultura e Pensamento 2015. Brasília/DF, 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=fuacyNX0mIA>. Acesso em: 15 dez. 2017.

GIL, Gilberto. Uma gestão para a Cultura e o pensamento. Folha de São Paulo, 18 jan. 2006. Disponível em: <http://gilbertogil.com.br/sec_texto.php?id=103&page=1&id_type=3>. Acesso em: 15 dez. 2017.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Edital de seleção de autores para o Programa Cultura e Pensamento do Ministério da Cultura. Edital de Seleção nº 001/2017. Salvador: IHAC/UFBA., 2017. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/culturaepensamento/issue/viewIssue/1542/232>. Acesso em: 15 dez. 2017.

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA. Resultado final do edital de seleção de autores para o programa Cultura e pensamento do Ministério da Cultura. da União, Brasília/DF, 21 nov. 2017, Seção 3, n. 222, p. 5621. Disponível em: <http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=530&pagina=56&data=21/11/2017>. Acesso em: dez. 2017.

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prefácio

Incentivos à produção de conhecimento na área das políticas públicas de Cultura e da gestão: uma visada histórica das ações MinC

Lia Calabre1

Desde o primeiro ano da gestão do Ministro Gilberto Gil, pudemos as-sistir a um esforço, por parte do Ministério da Cultura (MinC), na dire-ção da produção de informações e de estímulo ao aumento da produção de conhecimento na área da cultura. Dentre as inúmeras ações imple-mentadas, há um foco especial na produção de informações/análises que deveriam permitir um conhecimento mais efetivo sobre a realidade e potência do campo da cultura, base fundamental para um processo de elaboração de novas políticas.

É interessante ressaltar que a preocupação com a produção e siste-matização de informações sobre as próprias ações do Minc, até então, era praticamente inexistente. A base de informações dos projetos da Lei Rouanet, por exemplo, era pouco mais que um programa de cadas-tro de processos, cujos relatórios gerados formavam uma série histórica

1 Doutora em história, pesquisadora titular em Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa e Coordenadora da Cátedra Unesco de Políticas Culturais e Gestão – FCRB.

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parcial, pois as formas de registro de informações tiveram sua lógica alterada algumas vezes, não havia uma preocupação mais efetiva com a questão. A discussão sobre a necessidade da produção de informações, sobre o campo da cultura em geral e da gestão pública, em especial para a criação de programas e políticas culturais na esfera pública não é nova. Várias tentativas de levar a questão à frente, promovendo ações efetivas, sofreram processos de descontinuidade e de baixo grau de investimento.

A partir de 2003, vários estudos e análises sobre as diferentes áreas de atuação do Ministério foram produzidas por alguns parceiros, em es-pecial pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) por solici-tação da Secretaria de Políticas Culturais (SPC). Alguns desses estudos geraram a série Cadernos de Políticas Culturais (CPC), uma publica-ção em três volumes – publicados entre 2006 e 2007 – em parceria com o Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE). O primeiro volume dos Cadernos, cujo tema foi Direito Autoral, apresentou as monografias premiadas do Concurso Nacional de Monografias sobre Direitos Auto-rais realizado pelo MinC. Nos anos seguintes, o Ipea produziu análises e pesquisas para as diversas secretarias do Ministério. Parte desse tra-balho pode ser encontrados nos volumes 2 e 3, dos cadernos de políticas culturais, publicado pelo MinC e organizados por Frederico A. Barbosa da Silva (pesquisador do IPEA responsável pelas análises).

Concomitante a uma diversidade de ações foi sendo gestado o Progra-ma Cultura e Pensamento. Em 2006, teve uma primeira edição e foi sen-do aperfeiçoado. Em 2008, o Programa foi estruturado através da Porta-ria Ministerial no 74, com o principal objetivo de “fortalecer a reflexão e o diálogo em torno de temas relevantes da agenda cultural contempo-rânea”. Nos anos que se seguiram, até 2010, vários estudos produzidos ora pelo Ipea, ora pelo IBGE, ora pelo próprio Minc, ora por consultorias diversas, foram contribuindo para minorar as lacunas de informações e de análises sobre o campo da cultura, e mais especificamente sobre os campos da gestão e das políticas culturais.

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Em 2015, na gestão do Ministro Juca Ferreira, o Programa Cultura e Pensamento começou a ser retomado. O resultado dessa ação, que teve continuidade nas gestões dos Ministros que se seguiram é o presente lançamento da Coleção Cultura e Pensamento com a publicação desses três primeiros volumes: Direitos Culturais; Políticas Culturais para as Cidades; e Políticas para as Artes. Desejamos a todos uma ótima leitura.

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introdução

Direitos Culturais: centenários mas ainda desconhecidos

Francisco Humberto Cunha Filho Isaura Botelho José Roberto Severino

A reunião dos artigos que compõem este livro decorreu de processo de-senvolvido em 2017, um ano muito simbólico para o tema abordado, pois nele celebrou-se um século desde a promulgação da Constituição Políti-ca dos Estados Unidos Mexicanos, publicada no Diário Oficial da men-cionada Federação em 5 de fevereiro de 1917, considerada a primeira constituição social da história contemporânea, por trazer em seu corpo a previsão de direitos sociais, econômicos e culturais.

Vê-se assim que de alguma forma a menção aos direitos culturais já supera 100 anos e, não obstante, eles ainda permanecem desconhecidos e incompreendidos, o que se pode afirmar pelo significativo número de excelentes trabalhos candidatos a essa obra que deixaram de ser apre-ciados em seus méritos, porque tratavam de tema correlato – sobretudo políticas culturais – e não propriamente dos direitos respectivos.

Diante dessa constatação, é necessário precisar minimamente o que se entende por direitos culturais, o que se buscará fazer observan-do o paulatino crescimento de sua compreensão, em quatro momentos

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cruciais: o do seu surgimento jurídico com a referida Constituição Me-xicana de 1917; o da sua compreensão internacionalizada com a Decla-ração Universal dos Direitos Humanos de 1948; o de sua expansão nas Constituições políticas da contemporaneidade, enfocando, por razões óbvias, a brasileira de 1988; e o de sua valorização planetária com a De-claração Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001.

Quanto ao centenário documento mexicano, Aurelio de los Reyes (2017, p. 42), faz entender que a compreensão de direitos culturais in-serida na Constituição de 1917 “se referiu fundamentalmente ao aspec-to educativo”,1 ou seja, praticamente consagrava um único direito, o de instrução, isto porque “a ideia que as publicações culturais transmitiam manifestava que a cultura era uma esfera ideal na qual não cabia a polí-tica nacional”.2

Essa fase tímida, porém importantíssima da presença dos direitos culturais em destacados documentos jurídicos, foi definitivamente con-sagrada e superada com a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948 que, em pelo menos três dos seus 30 artigos (22, 26 e 27) lhes faz referência, ao apontar que todo ser humano tem os direi-tos: “à instrução”, “de participar livremente da vida cultural da comuni-dade, de fruir das artes e de participar do progresso científico e de seus benefícios”, “ à proteção dos interesses morais e materiais decorrentes de qualquer produção científica literária ou artística da qual seja autor”, bem como reconheceu, que em seu conjunto, os direitos culturais são “indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua per-sonalidade”. (ONU, 1948)

A Declaração da ONU repercutiu intensamente, tornando-se inspi-ração de um movimento que passou a ser conhecido como o do constitu-cionalismo cultural, em face do qual inseriram-se nas constituições na-cionais tão fartas prescrições sobre cultura e direitos culturais, ao ponto de desnortear os que almejam entendê-los.

1 “se refirió fundamentalmente al aspecto educativo”.

2 la idea que las publicaciones culturales transmitían manifestaba que la cultura era una esfe-ra ideal en la que no tenía cabida la política nacional”.

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A Constituição brasileira, por exemplo, dimensionou o patrimônio cultural com grandiloquência, ao determinar que ele é constituído por quaisquer “bens de natureza material e imaterial, tomados individual-mente ou em conjunto”, desde que “portadores de referência à identida-de, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”, o que não é propriamente um elemento redutor, uma vez que todos os bens se associam a pelo menos um dos mencionados grupos; ademais, a Constituição incluiu nessa definição aspectos que outrora de-limitavam nitidamente os campos não culturais, ao expressamente nela inserir até mesmo os sítios dos tipos “paleontológico, ecológico e cientí-fico”. (BRASIL, 1988)

O sentimento de ampliação dos direitos culturais ganhou o reforço da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural de 2001, também patrocinada pela Unesco. No referido documento, a diversidade Cultural não é definida, mas associada a certos bens e valores, dentre eles os direi-tos culturais, considerados “marco propício da diversidade cultural”, no contexto do qual “toda pessoa deve poder participar na vida cultural que escolha e exercer suas próprias práticas culturais, dentro dos limites que impõe o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais”. Mas na própria Declaração há a assunção do desconhecimento dos di-reitos ora estudados, tanto que no anexo designado “linhas gerais de um plano de ação para a aplicação da declaração universal da Unesco sobre a diversidade cultural”, os Estados Membros se comprometem, dentre outras medidas, “a avançar na compreensão e no esclarecimento do con-teúdo dos direitos culturais”. (UNESCO, 2002)

Esse cenário, algo turvo e de transbordamento, é um convite para que se caia na tentação de concluir que tudo está relacionado com os direitos culturais, principalmente se entendidos como os decorrentes da cultura em sentido antropológico, presente em todas as ações humanas, o que não deixa de ser verdade, mas apenas no sentido teórico de que todas as relações intersubjetivas são também jurídicas, dado que correspondem

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ao exercício de liberdades, a proibições ou a obrigações, os três movi-mentos justificadores da criação de normas jurídicas.

Em termos pragmáticos e delimitadores, porém, por dedução do que consta nos documentos jurídicos acima mencionados (declarações e constituições) e da observação do que compete aos órgãos estatais de cul-tura implantar, observa-se que os direitos culturais operacionalizáveis, ou seja, que podem ser materializados ou violados e, neste caso, juridica-mente recompostos, são os atinentes a três campos muito claros: o das artes, o da memória coletiva e o do fluxo dos saberes, fazeres e viveres. (CUNHA FILHO, 2004)

Assim, um trabalho acadêmico que verse sobre qualquer dessas te-máticas pode ser considerado do campo dos direitos Culturais, desde que a ênfase seja jurídica, não necessariamente a partir da ótica dos chamados operadores do direito, mesmo porque tão legítimos quanto os juristas para manusear o direito de regência de suas vidas são todas as pessoas por ele afetadas. O modo de olhar uma problemática de direi-tos culturais pode, portanto, ser muito variado, indo da teoria sobre eles, passando pelo conflito de normas, a disciplina das institucionalidades, a transversalidade com outros campos jurídicos, chegando até o sistema de garantias, sem prejuízo de outros aspectos.

Essa diversidade temática pode ser vista nos trabalhos que foram se-lecionados para compor o presente livro, os quais, em termos territoriais são representativos de todas as regiões do Brasil, o que evidencia a difun-dida preocupação com os direitos culturais, como se passa a evidenciar.

Em termos teóricos, Marcella Souza Carvalho, vinculada à Univer-sidade de São Paulo, ao escrever o artigo “Cultura, Constituição e Direi-tos Culturais”, corrobora as dificuldades cognitivas acima mencionadas quando destacou “o desafio de consolidar uma teoria jurídica desses di-reitos, que reivindique autonomia como uma subárea do direito sem dei-xar de lado a interdisciplinaridade que seu objeto reclama”.

Por seu turno, o texto de Aimée Schneider Duarte, do corpo docen-te da Universidade Federal Fluminense, investiga as faces da cultura no

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âmbito da Constituição Federal de 1988, mas sua abordagem é preponde-rantemente ideológica, na qual evidencia os embates geradores de uma compreensão de direitos culturais dissociada de aspectos pragmáticos de justiça social, ao ponto de denunciar que “a cultura e a terra passaram a ser vistas de forma dissociada das práticas culturais de negros e índios – ao custo de parte do social a elas inerente”.

Adentrando em direitos culturais mais específicos, relacionados aos fluxos de saberes, em “De religiões a povos: a luta pelo reconhecimento dos direitos dos Povos de Terreiro”, Nailah Neves Veleci, da Universida-de de Brasília (UnB), trabalha o descompasso entre os direitos reconhe-cidos e os efetivados, no que concerne às religiões de matriz africana, situação em face da qual reconhece que “quando estas finalmente con-quistaram um relativo reconhecimento jurídico, este não foi aplicado corretamente devido ao racismo institucional e estrutural já impregna-do na sociedade depois de anos de apagamento destas crenças, forçan-do-as a mudar sua estratégia de lutas por direitos, passando para uma dupla cobrança de direitos: os direitos religiosos e os direitos culturais como povos e comunidades de matriz africana”.

Na mesma seara, mas abordando distinta questão e diferenciando aspectos relacionados a outras coletividades, Ricardo Damasceno Mou-ra, da Universidade Federal do Pará, discorre sobre “Múltiplos saberes da diversidade em rede: conexões interculturais no debate da inclusão digital na perspectiva dos povos da floresta”, estudo no qual constata que “o processo de redução da exclusão digital traz novas possibilidades para povos e comunidades tradicionais que foram historicamente objetos passivos de políticas indigenistas assimilacionistas e tutelares, silencia-dos em suas culturas e identidades, mas que agora buscam o reconheci-mento pelas práticas pedagógicas que desenvolvem como sujeitos com cultura e conhecimento”.

Os memoráveis embates entre cultura, política e direito ganharam materialização no trabalho oriundo da Universidade da Região de Join-ville (Univille), escrito por Luana de Carvalho Silva Gusso, Nestor Cas-

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tilho Gomes e Amanda Karolini Burg, “A vaquejada e o efeito backlash: os dissabores do debate jurídico-legislativo sobre os direitos culturais no Brasil”, no qual os autores admoestam para a cidadania cultural, ao lembrarem que “a própria constitucionalização dos direitos culturais no Brasil permite e incentiva o debate sobre a interpretação e o tensiona-mento dos conteúdos que preenchem estes direitos”.

Acrescenta à temática da participação popular na definição e concre-tização dos direitos culturais, o capítulo “Direitos e modelos institucio-nais na lógica do acesso à cultura”, de Luiz Fernando Zugliani, vinculado à Fundação Biblioteca Nacional, ao “analisar a contribuição das Organi-zações sociais para o acesso a direitos culturais”, em locais que especifi-ca, deduzindo daí que, para além do ordenamento jurídico, “as formas de contribuição para a efetivação de direitos culturais são múltiplas e pre-cisam ser ponderadas a partir da interdependência de vários fatores”.

Também enfoca a questão participativa, mas em viés mais institu-cionalizado, o capítulo “Experiências conselhistas no Brasil: cultura política e participação social”, emana da Universidade Federal de San-ta Catarina e escrito por Giane Maria Souza, no qual a autora externa a percepção de que “as interfaces institucionais e a história do Conselho Nacional de Política Cultural à luz dos desenhos institucionais [...] per-mearam a atuação e atribuição dos mais variados setores da sociedade civil junto ao Ministério da Cultura”.

No campo dos debates memoriais, Vagner Silva Ramos Filho, da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, em “(O)culto pelo pa-trimônio: (pre)tensões da memória do cangaço na cultura nordestina”, investiga “em que circunstâncias a memória do cangaço como elemento constituinte de identidade nordestina é forjada, contestada, negociada e neutralizada entre batalhas da memória que variam conforme os usos do passado, as demandas do presente e os vislumbres de futuro daqueles que acionam tais engrenagens”.

Adentrando em questão instrumental do assunto, Vitor Melo Stu-dart, da Universidade de Fortaleza, faz lembrar a necessidade de “In-

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tegração sistêmica dos instrumentos acautelatórios para a proteção do patrimônio cultural no Brasil”, a partir da convicção de que isso “impli-ca tentar produzir normas relativas a um sistema que auxilie a superar questões da realidade brasileira de difícil solução, como exemplo as defi-ciências de recursos e falta de integração entre os vários órgãos do setor, mas sem desprezar suas autonomias”.

Por fim, Nichollas de Miranda Alem, da Faculdade de Direito da Uni-versidade de São Paulo, aborda no artigo o “direito econômico como ins-trumento de efetivação dos direitos culturais” a grave e histórica proble-mática da falta de recursos financeiros, muitas vezes indispensáveis ao exercício de vários dos direitos culturais, em que, arguindo a existência de um “Direito Econômico da Cultura”, entende que “mesmo sob uma ótica liberal, por assim dizer, continua sendo necessária a atuação do Estado para a correção de falhas de mercado. Isso é especialmente ver-dade se considerarmos as diversas peculiaridades do mercado e das in-dústrias culturais, que muitas vezes escapam dos pressupostos e normas da teoria econômica”.

A diversidade de temas, enfoques, perspectivas, formações e terri-tórios, portanto, é um dos elementos caracterizadores dessa obra cole-tiva que, todavia, tem sua unidade nos direitos culturais, os quais saem beneficiados, fortalecidos e mais inteligíveis, ao menos no ponto de que são construídos com e no Estado, e não exclusivamente por ele, pois são direitos de todas as pessoas, independentemente das fronteiras em que estejam, dada a sua indiscutível faceta de direitos humanos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 14 nov. 2017.

CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Cultura e democracia na Constituição Federal de 1988: a representação de interesses e sua aplicação ao Programa Nacional de Apoio à Cultura. Rio de Janeiro: Letra Legal, 2004.

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DE LOS REYES, Aurelio. La Cultura em el año de 1917. In: MÉXICO en 1917: entorno económico, político, jurídico y Cultural. México, Ciudad de México: Secretaría de Cultura: Instituto Nacional de Estudios Históricos de las Revoluciones de México, 2017.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 14 nov. 2017.

UNESCO. Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. 2002. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/images/0012/001271/127160por.pdf>. Acesso em: 14 nov. 2017.

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Cultura, Constituição e Direitos Culturais1

Marcella Souza Carvalho

INTRODUÇÃO

Para uma melhor compreensão acerca dos chamados Direitos Culturais, faz-se necessário em um primeiro momento, uma análise acerca da his-tória, do uso e das interfaces do termo que permeia toda esta pesquisa: a cultura.

A preocupação em estudar as culturas humanas, e com isso com-preender o que de fato é cultura, sempre esteve presente nas ciências sociais, em especial na antropologia, ainda que sob esse aspecto até hoje não se tenha um conceito definido. Nos últimos 100 anos, a definição de cultura é foco central de discussões antropológicas, mostrando -se um assunto inesgotável. (LARAIA, 2006) Isso porque, a tentativa de com-preender seu significado, implica na igual tentativa de compreensão dos modos de vida de uma sociedade, nas particularidades exercidas por cada indivíduo e de como a cultura influencia o comportamento social.

1 Artigo parcialmente publicado no II Encontro Internacional de Direitos Culturais, em 2013, Fortaleza – CE.

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Ou seja, tarefa difícil vista sob o parâmetro de qualquer ciência que não seja exata.

Sendo assim, cultura pode estar ligada a todos os aspectos da realida-de social de um povo, ou então, mais especificamente ao conhecimento, crenças, valores e ideais de um povo. (SANTOS, 1987) Isso permite dizer que cultura abrange as formas de cultivo da terra e do mar e as formas de transformação dos produtos daí extraídos, o meio ambiente enquan-to alvo de ação humanizada, as formas de apreensão e de transmissão de conhecimentos, a língua e as diferentes formas de linguagem e de co-municação, os usos e costumes cotidianos, os símbolos comunitários, a religião e as formas de organização política da sociedade.

Nesse âmbito, é possível estabelecer a fundamental importância res-guardada à cultura, seja numa abrangência sociopolítica, econômica, antropológica, filosófica ou histórica, a níveis nacional e internacional, pois a cultura é elemento modificador e transformador de um povo, es-tando atrelada aos seus diferentes modos de vida, valores e crenças, e ao desenvolvimento e evolução da natureza humana. (REGO, 2008, p. 42)

A cultura, enquanto possibilidade transformadora de um ambiente, representa a sua valoração como eixo de sustentação de qualquer na-ção, à medida que resguarda a condição de modificadora dos modos de pensar e agir. No Brasil, exemplo claro de constantes transformações de cunho social, político e econômico, os aspectos constitutivos da cultura necessitam ser cada vez mais valorizados, entendendo-se que por meio da cultura se pode construir um país mais justo e democrático.

Parafraseando Michel Prieur, o autor luso Vasco Pereira da Silva (2007) estabelece que entre o Direito e a cultura existe uma espécie de “relação amorosa”, em que cada um dos pares “completa” o outro, com vantagens e benefícios recíprocos, na medida em que a “[...] cultura obriga o Direito a evoluir e o direito recompensa-a, tornando-a mais uni-versal e democrática”. (PRIEUR, 2004 apud SILVA, V., 2007, p. 7)

Importante asseverar desde já que, no que condiz ao presente artigo, não se pode adotar a ideia de aceitação de todos os significados apontados.

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É preciso voltar-se, na esfera do Direito, à significação mais pertinente da conceituação de cultura, permitindo assim um desenvolvimento cla-ro acerca desta temática.

CULTURA NO TEXTO CONSTITUCIONAL

Importante se faz a compreensão de um conceito jurídico constitucio-nalmente adequado para o termo cultura, partindo de uma dogmática presente na Carta Magna de 1988. Contudo, sem abandonar de plano as bases conceituais socioantropológicas já existentes. Cabe neste momen-to, portanto, refletir sobre qual seria uma aproximação adequada dos conceitos de Cultura existentes com as dimensões de cultura propostas na Constituição Federal (CF) de 1988.

Este fato não implica em dizer que a cultura à qual se refere a Consti-tuição Federal de 1988, mais especificamente em seus artigos 215 e 216, seja uma categoria estática, estanque; apenas se enfatiza que a amplia-ção da noção de cultura da Constituição vigente não pode ser assemelha-da ao conceito antropológico em toda sua plenitude. (SILVA, J., 2001) Ou seja, o conceito mais difundido de Cultura, qual seja o antropológico pregando que toda produção humana é cultural, é demasiado amplo e acaba de certa forma não sendo compatível, essencialmente, com a ideia de ação estatal no âmbito cultural.

Do mesmo modo, um conceito jurídico para a cultura se faz necessá-rio na medida em que nem toda forma de sua expressão pode ser juridi-camente protegida. Assim, Cunha Filho (2004, p. 34, 49, grifo do autor) estabelece que:

[...] cultura para o mundo jurídico é a produção humana ju-ridicamente protegida, relacionada às artes, à memória co-letiva e ao repasse de saberes, e vinculada ao ideal de apri-moramento, visando à dignidade da espécie como um todo, e de cada um dos indivíduos [...] a cultura é identificada pre-cisamente por suas manifestações; se a norma menciona que todas as manifestações humanas relacionadas à identidade dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira

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compõem o patrimônio cultural do país, e se, para além dis-so, nada mais pode ser vislumbrado como cultura, de fato o que o legislador fez foi simultaneamente definir patrimônio cultural e cultura para a seara jurídica do Brasil.

Portanto, entender a cultura na Constituição Federal de 1988 em sua dimensão aberta é estabelecer um diálogo multi, inter ou transdis-ciplinar permanente com outras ciências (CUNHA FILHO; COSTA; TE-LLES, 2008), evitando qualquer totalitarismo por parte do Direito, bem como visões fragmentadas da cultura, pois o significado e “o conteúdo do bem cultural deve ser preenchido por teóricos de outras disciplinas”. (MARCHESAN, 2007, p. 39)

Considerar a cultura como embasadora de todos os direitos e conse-quente produto de sua operacionalização é de suma importância para o reconhecimento do quanto é relevante o estudo desse setor para qual-quer atividade que se desenvolva, mormente aquelas vinculadas às ciên-cias sociais, como é o caso do Direito. (CUNHA FILHO, 2000)

Para o constitucionalista Jorge Miranda (2003, p. 83), a Constituição reflete a formação, as crenças, as atitudes mentais, a geografia e as con-dições econômicas de uma sociedade e, simultaneamente, imprime-lhe caráter, funciona como princípio de organização, dispõe sobre os direi-tos e os deveres de indivíduos e de grupos, rege os seus comportamentos, racionaliza as suas posições recíprocas e garante a vida coletiva como um todo, pode ser agente, ora de conservação, ora de transformação.

A Constituição de um Estado é um fenômeno cultural – por não po-der ser compreendida desentranhada da cultura da comunidade don-de provém e por ser, em si mesma, uma obra e um bem de cultura. Daí Peter Häberle (1998) propõe uma teoria da Constituição como ciência da Cultura. Constitucionalista alemão, Peter Häberle (2000) dedicou seus estudos à relação existente entre o Direito e a cultura, tornando-se importante referência nos debates então propostos em decorrência da amplitude de seus aportes para a ciência do direito e das problemáticas que suas teorias permitem antecipar e solucionar, em especial o entendi-

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mento do conceito central de seus estudos – a relação indissociável entre Constituição e cultura. Além de, é claro, sua eclética formação (filosófi-ca, artística, literária e jurídica).

A propositura de Häberle é de abrangência ampla, e para sua con-cretude englobam-se informações sociológicas e antropológicas, com reportes desde o triângulo ciência, educação e arte até os demais parâ-metros de conhecimentos e valores, tais quais crenças e valores morais, artes, costumes e leis existentes dentro de uma vida em sociedade. Sendo assim, aquilo que se entende necessário para uma materialização cons-titucional deve ser encarado amplamente, para que então a Cultura seja inserida dentre os seus elementos científicos os quais completarão o rol dos conceitos jurídicos presentes nesse entendimento.

Uma análise das constituições contemporâneas possibilita, a partir da vasta gama temática e inovações quanto a liberdades e cláusulas gerais e específicas relacionadas à cultura, a aferição da relação evidente entre Constituição e cultura, acrescentando nesse ponto uma criatividade plural no aspecto histórico constitucional do presente. Segundo Häberle (2000), todos os estudos resultantes de uma compreensão da Constituição como ciência da cultura em nível comparado estão atualmente intensificando os esforços interdisciplinares, para permitir uma nova leitura das relações existentes entre dignidade humana e povo, razão e liberdade, direito e rea-lidade, assim como entre ideologia e interesses econômicos.

A consolidação da teoria de Häberle, cujo foco é a interpretação cons-titucional efetuada à luz da perspectiva científico-cultural, efetiva-se de melhor maneira no meio jurídico se considerada a ideia de que toda mo-tivação constitucional é sempre movida de acordo com as influências e fundamentações culturais próprias. Conclui, portanto, o professor alemão por uma teoria da Constituição de cunho científico cultural que pode cooperar para a redução do direcionamento dos objetivos do Estado Constitucional exclusivamente para o bem estar materialista, a partir do paradigma do Estado Social de Direito, uma vez que oferece crítica a toda interpretação desse tipo de Estado que seja fundada unipontualmente no crescimento quantitativo e sobredimensionado. (HÄBERLE, 1998)

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Dessa forma, a teoria da Constituição como ciência da cultura apre-senta-se como uma alternativa a favor da sedimentação das bases teóri-cas do Estado Constitucional, a qual poderá sobreviver razoavelmente forte mesmo em tempos de profunda crise. (HÄBERLE, 1998)

Vasco Pereira da Silva (2007), autor da obra A cultura a que tenho direi-to, aprofunda-se na interpretação e valorização da teoria de Häberle, e apre-senta uma dupla dimensão da relevância cultural dos fenômenos constitu-cionais e da importância da cultura na lei fundamental, sendo elas a cultura do direito e o Direito da Cultura: com relação à primeira dimensão, trata-se do entendimento do Direito Constitucional como fenômeno cultural, ne-cessitando ser compreendido e analisado de acordo com as metodologias próprias da ciência da cultura. Na segunda dimensão encontra-se o estudo dos fenômenos culturais segundo a metodologia própria da ciência jurídica – neste caso o Direito Constitucional da Cultura. (SILVA, 2007)

No que concerne à inegável linha tênue entre Direito e cultura, Silva (2007) é taxativo ao delimitar a importância da aplicação de uma teoria da constituição como ciência da cultura:

Pode-se afirmar que a cultura do Direito Constitucional é um fator determinante de interpretação e de aplicação das res-pectivas normas, pelo que não basta ao intérprete a adoção de uma perspectiva estritamente jurídica, antes necessita de complementa- la com uma abordagem mais amplamente cultural da Constituição. A metodologia específica da ciência jurídica converge assim com os métodos próprios das ciên-cias da cultura para a compreensão integral do direito. [...] ‘É necessário considerar que o Direito é um fenômeno cultu-ral, que plasma os valores da comunidade e os torna vigentes num determinado momento e local, mas que é também uma realidade autônoma, consubstanciada em normas e em prin-cípios jurídicos, dotados de uma lógica e de uma dinâmica próprias. Pelo que é de exigir ao Direito Constitucional que seja capaz de considerar simultaneamente valores, fatos e normas, na interatividade e reciprocidade do seu relaciona-mento complexo, conjugando dimensões éticas, artísticas, técnicas e científicas, no âmbito de uma compreensão simul-

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taneamente cultural e jurídica dos fenômenos constitucio-nais’. [...] Isso porque sem intérpretes constitucionais, e sem as respectivas destrezas e habilidades no domínio jurídico, não é possível construir qualquer tipo de Estado constitucio-nal como fator disciplinador da sociedade aberta.

Feitas essas considerações acerca da relação indissociável existente entre Constituição e cultura, tem-se que o Estado possui essencial com-prometimento com a prerrogativa de instituir os chamados direitos cul-turais, estes que darão acesso e fruição à educação e à cultura. E, assim como há a denominação de Constituição econômica, também se cuida agora do termo Constituição Cultural, como conjunto de princípios e preceitos com relativa autonomia, respeitantes a matérias culturais, conforme visto na teoria de Häberle. Aproximando-se desse entendi-mento, há ainda aqueles que defendem a ideia de Estado de cultura.2 Em suma, sendo a cultura uma das dimensões da vida comunitária e sendo a Constituição o estatuto jurídico do Estado na sua dupla face de comuni-dade e de poder, a cultura não poderia de maneira nenhuma ficar de fora da Constituição.

O ordenamento jurídico nacional tem o compromisso de preservar e propagar toda a historicidade do povo brasileiro. Visto isso, a Consti-tuição Brasileira reservou abundante tratamento para a cultura. Nota-se isso pelo fato de que em todos os seus títulos, ainda que indiretamente, há alguma ou até mesmo farta disciplina jurídica sobre o assunto. Tam-bém por isso pode ser chamada de Constituição cultural, como também pelo fato de possuir seção específica para o tema, em cujo artigo inau-gural – 215 – se lê que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e in-centivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”.

2 Conforme, por exemplo, Enrico (1961): o Estado de Cultura seria aquele que assentaria no desenvolvimento da cultura e na liberdade cultural. E a Constituição bávara de 1946 fala em “Estado de Direito, de cultura e social”.

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O conjunto que compreende os artigos 215 e 216 está diretamente re-lacionado ao tema cultura na Constituição Brasileira de 1988. Os disposi-tivos indicam também que a proteção das culturas populares, indígenas, afro -brasileiras e de outros grupos do processo civilizatório nacional é um objetivo a ser traçado, além de traduzirem um sentido de necessi-dade de uma política de preservação proposta a garantir aos cidadãos o pleno direito à cultura, sendo esta entendida como valores pelos quais se reconhece uma nação.

Nota-se que o artigo 215 remete-se à princípios mais gerais, enquanto que o artigo 216 abrange aparentemente ações específicas de políticas de patrimônio, inclusive quando indica o princípio da participação social na implementação das políticas patrimoniais. Portanto, tem-se que o ar-tigo 215 em suma é bastante geral e não apresenta um rol de quais seriam os direitos culturais, não obstante confira ao Estado a responsabilidade sobre ações positivas para garanti-los, enquanto que o artigo 216 revela uma ideia de ação direta, com objetos definidos. Tanto que em 2012, por meio da Emenda Constitucional nº 71, de 29 de novembro, foi acrescen-tado o Art. 2016-A que institui o Sistema Nacional de Cultura.3

Assim, a compreensão do texto constitucional enquanto correlato a uma ordem cultural exige atenção para uma leitura da integralidade do texto, e não apenas à seção que diz respeito diretamente à cultura. Pri-mordialmente, a cultura deve estar inserida na parte dos princípios fun-damentais, e depois, como parte dos direitos econômicos e sociais.

DIREITOS CULTURAIS COMO FUNDAMENTAIS

Em que pese os direitos culturais não se encontrem expressamente pre-vistos no Título II Dos Direitos e Garantias Fundamentais da CF de 88, é

3 Art. 216-A O Sistema Nacional de cultura, organizado em regime de colaboração, de for-ma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento – humano, social e econômico – com pleno exercício dos direitos culturais.”

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possível afirmar que se tratam indubitavelmente de direitos fundamen-tais, à luz do parágrafo segundo do artigo 5º da CF: “os direitos e garan-tias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil faça parte.”

Salienta-se que no próprio artigo 5º da CF há uma série de direitos culturais encartados, gozando, portanto, de prerrogativa de cláusula pé-trea. A título exemplificativo, citam-se a liberdade de expressão artística (inciso IX), os direitos autorais e conexos (inciso XXVII e XXVIII), e o direito à proteção do patrimônio cultural (LXXIII). Ou seja, ao instituir o dispositivo acima citado, o constituinte de 88 dispôs que as fontes dos direitos e garantias fundamentais poderiam compreender outras partes do texto constitucional, além de outros textos legais internacionais ou nacionais, desde que versem sobre a matéria relativa a esses direitos. A listagem que se fará na sequencia deste item sobre declarações, reco-mendações e convenções de âmbito da Organização das Nações Unidas referentes à tutela dos direitos culturais são exemplos dessas variantes.

Como visto anteriormente, o artigo 215 da CF de 88 faz menção ex-plícita à expressão direitos culturais. Entretanto, a letra da lei não chega a listar quais seriam esses direitos. Isso não é surpresa, já que até mesmo a Unesco, órgão das Nações Unidas responsável pelo trato das questões relativas à educação, à ciência e à cultura, reconhece a necessidade de se elaborar um inventário dos ditos direitos culturais, eis que configura-dos como categoria fragmentada e dispersa na documentação normativa acerca dos direitos humanos. (MACHADO, 2011) Não há um consenso do que seja exatamente os direitos culturais, o que dá lugar a diferentes maneiras de tipificá-los, nomeá-los e descrevê-los com o intuito de dar possíveis definições aos mesmos.

A primeira e única vez em que essa expressão apareceu na história das constituições brasileiras foi em 1988. Todavia, os direitos culturais já eram enquadrados na categoria de direitos humanos desde a década

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de 1960, quando expostos e disciplinados em importantes documentos jurídicos de âmbito mundial.

Tratam-se de diversas outras fontes, a saber a Declaração Universal dos Direitos Humanos e os dois pactos que a ela se seguiram e que preten-deram estabelecer o compromisso dos Estados membros da Organização das Nações Unidas (ONU) com a efetiva aplicação dos direitos humanos: o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ambos de 1966. Além dessas fontes, destacaram-se também as declarações, convenções e reco-mendações da Unesco.

No ano de 1948, a Assembleia Geral das Nações Unidas aprovou a Re-solução 217 A, onde consta a Declaração Universal dos Direitos Huma-nos. Nela, foi elencado um novo e delicado núcleo de direitos, os direitos culturais. Em pelo menos dois artigos há expressa menção a eles, sendo que em um deles a abordagem é mais ampla, e no outro é mais restrita. A primeira, mais generalista está no artigo 22:

toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segu-rança social e à realização, pelo esforço nacional, pela coope-ração internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Com relação ao entendimento mais restrito, trata-se do direito à li-vre participação na vida cultural, proclamado no Artigo 27 da Declara-ção: “Toda pessoa tem o direito de participar livremente da vida cultu-ral da comunidade, de gozar das artes e de aproveitar-se dos progressos científicos e dos benefícios que deles resultam”.

Em 1954, foi proclamado pela Unesco a Convenção sobre a Proteção dos Bens Culturais em Caso de Conflito Armado, documento em que os Estados membros se comprometeram a respeitar os bens culturais si-tuados nos territórios dos países adversários, assim como a proteger seu próprio patrimônio em caso de guerra. Já no ano de 1966, tiveram desta-

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que dois documentos no âmbito dos direitos culturais: o Pacto dos Direi-tos Civis e Políticos, o qual assegurou aos membros de minorias étnicas, religiosas e linguísticas o direito de ter sua vida cultural, professar e pra-ticar sua religião e utilizar seu idioma; e a Declaração de Princípios da Cooperação Cultural Internacional, onde foi proclamado o direito/dever de cooperação cultural internacional.

Diz o artigo 5º desta Declaração que a cooperação cultural é um direi-to e um dever de todos os povos e de todas as nações, que devem compar-tilhar seus saberes e conhecimentos. Referida Declaração considera o intercâmbio cultural essencial à atividade criadora, à busca da verdade e ao cabal desenvolvimento da pessoa humana. Afirma que todas as cultu-ras têm uma dignidade e um valor que devem ser respeitados e que é por meio da influência que exercem umas sobre as outras que se constitui o patrimônio comum da humanidade.

Em 1972, a Unesco aprovou a Convenção sobre a Proteção do Patri-mônio Mundial, Cultural e Natural, a qual considerou que a deterioração e o desaparecimento de um bem natural ou cultural constituem um em-pobrecimento do patrimônio de todos os povos do mundo.

Outro documento de destaque na história dos direitos culturais foi a Recomendação sobre a Participação dos Povos na Vida Cultural (1976), a qual considera a participação na vida cultural e o acesso à cultura como duas dimensões da mesma realidade. Nesse documento, a participação na vida cultural é definida como a “possibilidade efetiva, garantida a qualquer grupo ou pessoa, de expressar-se, comunicar, atuar e criar li-vremente”; e o acesso é entendido como “a oportunidade para que todos – particularmente por meio da criação de condições socioeconômicas adequadas – possam se informar, se formar, conhecer, compreender e desfrutar livremente dos valores e bens culturais”.

A Recomendação sobre o Status do Artista, do ano de 1980, traduz a essencialidade da livre criação e convoca os Estados a ajudar a criar e sustentar “não apenas um clima de encorajamento à liberdade de ex-pressão artística, mas também as condições materiais que facilitem o aparecimento de talentos criativos”. De acordo com referida Recomen-

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dação, fica claro que o fomento às artes e a melhoria das condições de tra-balho dos artistas são premissas necessárias e imprescindíveis à plena efetividade do direito à participação na vida cultural.

Também a preocupação com a sobrevivência de culturas específicas foi resguardada na Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tra-dicional e Popular (1989). Esse documento preconiza que aos Estados cabe, prioritariamente, apoiar a pesquisa e a documentação dessas ma-nifestações de cultura popular.

No ano de 1992, os Estados são chamados a assumir a responsabili-dade pela proteção da identidade cultural das minorias que habitam seus territórios, com a proclamada Declaração sobre os Direitos das Pessoas Pertencentes às Minorias Nacionais. Outro documento intitulado de De-claração que obteve destaque nesse âmbito foi aquele que estabeleceu o vínculo entre patrimônio cultural e natural – Declaração Universal so-bre a Diversidade cultural – datado do ano de 2001, o qual defende a ideia de que a diversidade cultural é tão necessária para a humanidade quanto a diversidade biológica o é para a natureza, sendo, portanto, necessaria-mente reconhecida e protegida em prol das gerações presentes e futuras.

Cabe citar, finalmente, a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005). Esse documento defende a inclusão das variáveis culturais nos planos nacional e internacional de desenvolvimento e reafirma o direito soberano dos Estados de implantar políticas de proteção das identidades culturais de suas populações.

Ainda, em âmbito internacional, importante destacar a obra Cultural Rights, do húngaro Imre Szabó (1974). Trata-se de um estudo acerca das normas internacionais declaratórias, protetoras e garantidoras dos direi-tos culturais e sua existência simultânea em diferentes sistemas sociais, com condições sócio-históricas e econômicas distintas e modelos consti-tucionais e institucionais díspares. Seu objetivo foi analisar a adequação da legislação internacional às identidades e diferenças dos contextos lo-cais. Já o México postulou a ampla participação dos indivíduos e da socie-dade no processo de tomada de decisões que concernem à vida cultural na Declaração do México sobre as Políticas Culturais do ano de 1982.

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De todo o exposto nota-se a destacada relevância que nasce com a preo-cupação em proteger e instituir, a nível internacional os direitos culturais. Os documentos acima citados são os exemplos flagrantes de que esses di-reitos devem ser preservados e valorizados como quaisquer outros direitos.

Novamente rememorando os entendimentos do jurista alemão Peter Häberle, que se dedicou intensamente ao tema Cultura, salientam-se as seguintes palavras:

O âmbito material e funcional ‘Cultura’ é o terreno do qual emanam os direitos fundamentais culturais. Antes de tudo, isso [o que é cultura] pode ser determinado pelo mote da dis-tinção entre os âmbitos político, econômico e social. Quanto mais árdua é uma definição positiva de cultura, tanto mais a pressupõem como óbvia nos textos constitucionais que se referem à cultura sem ulterior definição. (HÄBERLE, 1993, p. 213)

Para Häberle, os estudos relativos aos direitos culturais remetem a duas compreensões simultâneas: uma encarando-os stricto sensu e ou-tra lato sensu. A primeira trata-se de uma compreensão restritiva, em-parelhando os direitos culturais com outros tipos de direitos, como os econômicos e sociais. Na segunda compreensão, Häberle afirma que a cultura é a base de todos os direitos fundamentais, determinando sua existência e sendo determinada por eles.

O constitucionalista José Afonso da Silva (2000, p. 280), questionan-do-se sobre a conceituação dos direitos culturais, indica que:

São: a) o direito à criação cultural, compreendidas as cria-ções científicas, artísticas e tecnológicas; b) direito de acesso às fontes da Cultura nacional; c) direito de difusão da cultu-ra; d) liberdade de formas de expressão cultural; e) liberdade de manifestações culturais; f) direito-dever estatal de forma-ção do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura [...].

Já Cunha Filho (2000, p. 34), considera que os direitos culturais são aqueles atinentes às artes, à memória coletiva e à transmissão de conhe-cimentos, e que impera nesse meio essências de passado, presente e fu-

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turo. Assim, também deu a sua conceituação de direitos culturais o autor em comento:

Direitos culturais são aqueles afetos às artes, à memória co-letiva e ao repasse de saberes, que asseguram a seus titula-res o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções refe-rentes ao futuro, visando sempre à dignidade da pessoa hu-mana [...] Não se pode negar que os direitos culturais passam a compor uma imensidão que somente pode ser resolvida no caso concreto a ser apreciado, levando-se em conta a expres-são utilizada pelo constituinte de 1988, cujo único limite para patrimônio cultural, enquanto patrimônio singular, é ‘a referência à identidade dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

[...] pressupõem a especificação, se não de um rol, ao menos de categorias de direitos relacionados com a cultura, com-preendida com base em núcleos concretos formadores de sua substância, como as artes, a memória coletiva e o fluxo dos saberes. (CUNHA FILHO, p. 34-35, 2004)

Com relação à categorização dos direitos culturais como fundamentais, para Norberto Bobbio (1992) bem como o restante da doutrina tradicio-nal, os direitos fundamentais são classificados em três gerações de acor-do com a época histórica de seu surgimento. Assim, a primeira geração compreende os direitos individuais e políticos, tendo surgido juntamen-te com a afirmação do individualismo e abstencionismo no Estado libe-ral de direito, final do século XVIII. (LOPES, 2008)

A segunda geração abrange os direitos sociais, econômicos e cultu-rais, e foi resultado das lutas e reivindicações sociais que deflagraram o intervencionista Estado Social de Direito, consolidado constitucio-nalmente em alguns países na segunda década do século XX. Por fim, a terceira geração, a qual abarca todos os direitos de solidariedade, en-contra-se ainda em fase de desenvolvimento e ampliação do atual Estado Democrático de Direito. Na atualidade, a doutrina é unanime na com-

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preensão de que as três gerações coexistem sem uma extinguir a outra, descartando qualquer interpretação errônea do termo geração.

Há que ser considerado também o entendimento do citado autor Cunha Filho, de que os direitos culturais se fazem presentes em todas as gerações de direitos, “tanto mais fortemente quanto mais cronologicamente próxi-ma esteja dita geração”. (CUNHA FILHO, 2000, p. 67) Outro aspecto valo-rado para citação acerca do assunto ora trabalhado é a compreensão, pelo autor constitucionalista Paulo Bonavides, de uma quarta geração de direi-tos, anunciada como a geração dos direitos dos povos à democracia. Esta seria uma geração de direitos eminentemente culturais, eis que o aspecto basilar a ser considerado é o elemento ao mesmo tempo comum e diferen-ciador das nações: a própria cultura. Para Cunha Filho (2000, p. 39), é um direito fundamental aquele que concorre para a efetivação do núcleo que justifica a existência de qualquer direito, desta espécie, de um ordenamen-to jurídico democrático, da dignidade da pessoa humana.

Outra considerável e importante forma de proteção aos direitos cul-turais é a norma a qual estabelece que todo direito fundamental tem apli-cação imediata (artigo 5º parágrafo primeiro), evitando dessa maneira que a carência de uma norma regulamentadora torne inviável o seu exer-cício. O reconhecimento dos direitos culturais como direitos fundamen-tais é de extrema importância, essencial para garantir uma proteção mais rigorosa a respeito do seu cumprimento. Quaisquer imposições que padronizem os modelos culturais são claros enfrentamentos à própria natureza do ser humano, e consequentemente, uma contrariedade à sua dignidade, princípio fundamental do Estado brasileiro.

Tendo visto o que é necessário para caracterização de um direito fundamental, tem-se que para enquadrar os direitos culturais nessa ca-tegoria é preciso que estes, se não estiverem inseridos no capítulo dos direitos e garantias fundamentais do texto constitucional, tenham a sua existência tão significativa ao ponto de ser albergada pelos princípios que informam o conjunto de direitos fundamentais, em seu aspecto ma-

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terial, dos quais sobressai-se o que sintetiza e justifica os demais, a mul-timencionada dignidade da pessoa humana. (CUNHA FILHO, 2000)

Uma vez caracterizados como fundamentais, os direitos culturais receberão proteção especial quanto à supressão do ordenamento bem como aplicabilidade imediata do ponto de vista da eficácia jurídica.

Não obstante, consoante já demonstrado anteriormente, no corpo de toda a Constituição Federal de 88 encontram-se direitos culturais que, pelo seu próprio conteúdo, conservam o status de direito fundamental de conhecimento taxativo por intérpretes e estudiosos da área. Isso por-que referem-se a aspectos subjetivos de importância capital, por vezes de individualidades, por vezes de grupo e também de toda a Nação, no que concerne à questão da chamada identidade cultural. Assim, as ga-rantias institucionais são os instrumentos disponíveis para a plena efe-tivação dos direitos culturais. (CUNHA FILHO, 2000)

Desse modo, tão importante quanto conhecer os direitos culturais é perceber o potencial assegurador de sua efetivação: as garantias cultu-rais. Elas têm o poder de resguardar prestígio constitucional através de efetivo incremento dos direitos culturais, reverenciados por dar a pos-sibilidade de desenvolvimento do ser humano em suas distintas dimen-sões. Isto pois, tem-se que conhecer os direitos fundamentais não é um fim, mas sim um instrumento que viabiliza sua concretização. Impor-tante asseverar que mais fácil é no Brasil reconhecer normativamente novos direitos, do que se dar efetividade a eles, assim como aos antigos direitos já plasmados. Criar e instituir normas não se compara ao árduo trabalho para que elas se efetivem – em que pese o legislador e os gesto-res devam ter a consciência do seu dever de cumprimento. A teoria tem se mostrado distante das práticas de consolidação e cumprimento nor-mativo no país, como por exemplo, quando há a instituição de normas e regramentos que não se aplicam ao cotidiano da sociedade ou que care-cem de artifícios para se efetivarem, seja por ausência de ações da gestão estatal ou por ineficiência de sua aplicabilidade.

Essas práticas remetem à necessidade de, tão intensamente quanto os direitos, conhecerem-se e categorizarem-se as garantias culturais.

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Elas são os elementos dos quais os titulares dos direitos podem e devem se valer para verem os mesmos migrando da simples previsão em tex-tos legais para o mundo dos fatos. Obviamente, as garantias de direitos circundam o mundo jurídico, mas o extrapolam por serem também de natureza política e social. (BARROSO, 2000)

A institucionalização dos direitos culturais foi produto da primeira metade do século XX, juntamente com as constituições de alguns Esta-dos sociais, bem como com o advento da Declaração Universal dos Direi-tos Humanos. Entretanto, o campo jurídico que vai dar sistematicidade a esse ramo surgirá somente a partir do início dos anos 1990, período no qual houve o desenvolvimento de uma série de políticas culturais em vários países do mundo.

Os direitos culturais associaram-se a um fator de desenvolvimento do homem, imprescindível para o combate da pobreza e da opressão po-lítica, em especial de regimes totalitários. Desse modo, o direito à cul-tura passou a ser sinônimo de difusão de obras intelectuais, acesso aos meios de comunicação, à educação e ao conhecimento.

Aqui há que se ressaltar a diferença que alguns autores fazem entre direito à Cultura e direito da cultura. No entendimento de Cunha Filho, destaca-se (2011, p. 6):

O primeiro, mais uma vez, remete aos aspectos genéricos e abstratos da convivência humana. Em princípio, refere-se a ‘um’ direito, embora de dimensão grandiloqüente e amorfa. Corresponde, na linguagem da ONU, à prerrogativa de parti-cipar na vida cultural da comunidade. Com efeito, o direito à cultura constitui proteção contra mudanças abruptas e ilegí-timas, mesmo porque até as próprias restrições a seu acesso, decorrentes, por exemplo, de segregações punitivas (prisões e outros castigos), integram o amálgama cultural que lhe dá substância. Pedro (2001, p. 212, tradução livre), ao mesmo tempo que sintetiza, localiza-o no mundo jurídico: ‘O direito à cultura contextualiza-se nos direitos culturais, como uma de suas principais manifestações, e os direitos culturais, por seu turno, nos direitos humanos’. A outra expressão – direito

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da cultura – permite vislumbrar “o” direito que rege relações específicas e tangíveis, com base em elementos palpáveis do universo cultural observado. Segundo os culturalistas fran-ceses, a existência de um direito da cultura justifica-se na me-dida em que surgem os serviços públicos culturais demanda-dos pela população e prestados pelo Estado; o poder de polícia cultural, conseqüência da atuação estatal; e o contencioso ad-ministrativo e judicial responsável pela solução de conflitos

A categorização feita por José Afonso da Silva (2000) em relação aos direitos culturais, denota a seguinte compreensão: (a) liberdade de ex-pressão da atividade intelectual, artística, científica; (b) direito de cria-ção cultural, compreendidas as criações artísticas, científicas e tecnoló-gicas; (c) direito de acesso às fontes da cultura nacional; (d) direito de difusão das manifestações culturais; (e) direito de proteção às manifes-tações das culturas populares indígenas e afro-brasileiras e de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional; (f) direito-de-ver estatal de formação do patrimônio cultural brasileiro e de proteção dos bens de cultura – que , assim, ficam sujeitos a um regime jurídico especial, como forma de propriedade de interesse público.

Por conseguinte, demais linhas de raciocínio como a de José Afonso da Silva, defendem a ideia de que a melhor forma de conhecer direitos e deveres culturais não seria a construção de um rol, mas o entendimento de suas categorias, pois a fórmula de criação das leis e o caráter progra-mático das normas culturalistas lhes dão feição dinâmica. Muito embo-ra não os defina, o autor citado se esforça no sentido de identificar quais são as categorias dos direitos culturais, alicerçado na ideia de uma orde-nação constitucional da cultura como organização de normas jurídicas pertinentes à temática. Daí porque, ao especificá-los, vai detalhar, em outras partes de sua obra, cada um desses ramos, em particular a liber-dade de expressão cultural, o direito ao patrimônio cultural protegido, a regulamentação das atividades e profissões culturais, os direitos auto-rais e algumas normas programáticas que versam sobre política cultural e o sistema de financiamento e apoio à cultura no país.

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Para Alain Riou (1993), o ramo jurídico dos direitos culturais é mul-tiforme, heterogêneo, permeado por diversas instituições em toda sorte de legislação de ordem cultural, mas que possui numerosos argumen-tos em favor de seu tratamento unitário, entre os quais: a) liames entre as atividades culturais e o direito; b) intervenção do Estado na garan-tia desses direitos; c) reconhecimento constitucional e legal do direito de acesso à cultura – o que até certo tempo equivaleu à participação do cidadão na cadeia produção-distribuição-consumo de bens culturais –, além das proclamações internacionais e europeias reconhecendo-o; e d) a existência de uma jurisprudência constitucional e administrativa, formada com base em um contencioso que se vê às voltas com litígios re-lativos à matéria.

CONCLUSÃO

Em suma, no que concerne ao reconhecimento dos direitos culturais como fundamentais, no Brasil, compreende-se o desafio de consolidar uma teoria jurídica desses direitos, que reivindique autonomia como uma subárea do Direito sem deixar de lado a interdisciplinaridade que seu objeto reclama. Para os juristas brasileiros contemporâneos, isso vem surgindo com a tutela dessa gama de bens jurídicos qualificados como fundamentais pelo Estado democrático (social) e constitucional brasileiro, oriundo de um poder constituinte originário, cuja titulari-dade é do povo, quando dedica uma seção do título da ordem social da Constituição Federal de 1988 à cultura. Nesse sentido, a própria expres-são direitos culturais remonta à Constituição vigente.

Portanto, é permitido concluir que a cultura é um componente estru-tural e estruturante da Constituição. No entanto, ainda falta à maioria dos cidadãos e dos gestores estatais reconhecer o papel estratégico das políticas Culturais na promoção e proteção dos direitos culturais. Im-prescindível rememorar que os direitos culturais vêm inexoravelmente acompanhados dos respectivos deveres culturais, de responsabilidade não apenas do Estado, mas de múltiplos atores sociais.

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As faces da Cultura no âmbito da Constituição Federal de 19881

Aimée Schneider Duarte

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

Na década de 1980, o estudo da Cultura e do patrimônio cultural assumiu uma posição nuclear nas ciências humanas, conduzindo a uma revisão do estatuto social. (KNAUSS, 2006) A noção de Cultura é historicamen-te constituída e tem se transformado ao longo do tempo: o tratamento constitucional da Cultura, e mais precisamente do direito cultural, sofreu grande influência dos eventos ocorridos no processo de redemocratização da vida política brasileira, quando houve ampla mobilização e participa-ção de agentes organizados interessados no setor. A época foi marcada por um sentimento palpável de mudança, visível através dos debates da Assembleia Nacional Constituinte (ANC) de 1987-1988. Com a promulga-ção da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88), a Cultura passou a ser considerada como direito cultural, exigindo uma atuação positiva do Estado.

1 Partes do conteúdo presentes neste texto encontram-se na dissertação Agenda Oculta: a Constituinte de 1987-88 e seus fundamentos culturais, de Schneider Duarte (2017) e nos Anais da XXXIII Semana de História da Universidade Federal de Juiz de Fora.

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Apesar de o tema da Cultura ter sido bastante discutido, não há, no texto final da Constituição, uma definição sobre o termo, o que aca-ba, por consequência, refletindo também em uma definição acerca do direito cultural. É na busca por um conceito que mora o coração da inquietude deste estudo: afinal, o que é a Cultura segundo a Cons-tituição de 1988? Com base nesta conceituação, quais são os direitos culturais? Não é tarefa fácil responder a esses questionamentos, pois o termo possui conteúdo mais facilmente intuído que definível, em vir-tude da riqueza e complexidade que encerra.2 Ademais, o artigo 215 da CRFB/88 dispõe ser dever do Estado garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais. Contudo, tais direitos não estão claramente de-finidos e delimitados.

Compreender os sentidos dados à Cultura, no processo constituinte em pauta, faz-se de suma importância para a composição das políticas culturais, para a delimitação dos direitos sociais e para a orientação dos agentes públicos que aplicam as suas normas, bem como para o enten-dimento dos movimentos sociais e culturais no Brasil contemporâneo. Isso porque muitas das atuais medidas ligadas ao tema possuem funda-mento nas reivindicações daquele período.

TRAJETÓRIA CONSTITUCIONAL SOB O VIÉS DA CULTURA

A Cultura não se restringe aos grandes monumentos e aos testemunhos da história oficial, mas inclui as manifestações culturais representativas de grupos que compõem a sociedade brasileira. Não se pretende discutir o conceito de minorias, mas tratar de dois grupos específicos – o índio e o

2 Para se ter uma ideia, segundo o jurista Rodrigo Vieira Costa (2008, p. 25), “[...] os antro-pólogos norte-americanos, na metade do século passado, Alfred Kroeber da Universidade de Berkeley e Clyde Kluckhohn de Harvard, imbuídos de oferecer uma resposta à teoria sistêmica de Talcott Parsons que reduziu a atuação da antropologia nas ciências sociais a um âmbito funcional de um conceito estrito de cultura, organizaram um catálogo com cento e sessenta e quatro definições de cultura, bem como suas sinonímias, divididas em grupos de classificação”.

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negro – com vistas à compreensão da Cultura. A ruptura com a perspec-tiva integracionista se fez fundamental para a construção de uma nova mentalidade, na medida em que as Constituições, até então, não eram representativas dos anseios dos diversos segmentos sociais.

Com relação aos índios, o paradigma assimilacionista se expressava sob três vertentes: a manutenção da ideia do índio como incapaz; a sus-cetibilidade das suas terras e recursos naturais a pressões econômicas; e a doutrina da segurança nacional, que veiculava, por exemplo, a iden-tificação de seus territórios como frentes de defesa perante possíveis in-vasões de fronteiras. Predominava a imagem de uma incapacidade jurí-dica e política que só seria superada pela integração dos silvícolas, como eram denominados nos textos constitucionais, à nação, meta assimilada pelo tratamento constitucional e pelo próprio Estatuto do Índio.

As questões ideológicas acima expostas evocam uma linha de pen-samento que perseverava, inclusive, no final dos anos de 1980. Ilus-trando a real dimensão deste problema, o Decreto Presidencial nº 94.946, de 23 de setembro de 1987, indo de encontro ao que estava sen-do discutido nos trabalhos da ANC de 1987-88, estabelecia tipos dife-rentes de terras indígenas de acordo com um suposto grau de acultura-ção: os povos considerados aculturados teriam suas terras reduzidas, demarcadas na forma de Colônias Indígenas. (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1987) A coexistência para-doxal de tais diretrizes com o próprio estímulo à integração progressi-va dos silvícolas vem ratificar a importância de se romper com a ideia de que o índio deve ser aculturado, sem poder fazer uso de recursos vindos de fora de suas aldeias, tais como, a título de exemplos contem-porâneos, o celular e a internet.

Já no concernente à mobilização negra, convém apontar que, não obstante a atuação social como um todo ter se intensificado com o pro-cesso de abertura política, a movimentação desses grupos era vista pela polícia como particularmente subversiva. A década de 1970 marcou o surgimento de diversas organizações negras e, de acordo com antropólo-

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ga Lélia Gonzalez (1982, p. 42), em 1976, entidades do Rio de Janeiro e de São Paulo realizaram encontros com o objetivo de se criar um movimen-to negro de caráter nacional. Neste cenário, em 1978, foram lançadas, em São Paulo, as bases do Movimento Negro Unificado Contra a Discri-minação Racial (MNUCDR), que posteriormente veio a se transformar no Movimento Negro Unificado (MNU).3

O MNU se voltou às articulações em torno da convocação da ANC de 1987-88. Durante muito tempo, os negros foram vistos apenas sob o prisma do processo assimilatório – ou até mesmo inseridos em uma política de embranquecimento da população. O novo diploma consti-tucional trouxe um avanço na valorização das manifestações negras – afro-brasileiras, conforme disciplinado na CRFB/88 –, respeitando-as em sua completude.

Assim é que, por meio dos textos constitucionais, é possível com-preender não apenas os diferentes contextos históricos em que foram concebidos como, também, verificar que a presença ou a ausência de cer-tos temas demonstram maior ou menor grau de importância para o po-der público. Sob tal enfoque, foram analisadas as Constituições promul-gadas após a independência do Brasil, identificando-se quantas vezes foram mencionadas as questões negras, indígenas e a cultura em sentido amplo, e quais interpretações lhes foram aplicadas.

1) A Constituição Política do Império do Brasil de 1824 não fazia menção a qualquer dimensão cultural – a única passagem expressa sobre “Cultura” é no sentido de cultivo na agricultura (art. 179, XXIV). Tam-pouco são citados negros e indígenas.

2) Na Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891, a palavra “Cultura” se vê despida até mesmo de suas possíveis am-biguidades, posto que não há nenhuma passagem sobre o tema, nem mesmo referente ao cultivo agrícola negros e indígenas são, novamente, ignorados.

3 Recomenda-se consulta ao acervo online do CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas, disponí-vel em <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-tematico/movimento-negro>.

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Quadro 1 – Constituições4 sob o foco da cultura, dos negros e dos indígenas5

CONSTITUIÇÃO CULTURA PATRIMÔNIO NEGROS INDÍGENAS

Constituição Política do Império do Brasil de 1824 01 x x X

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1891

x x x x

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934

02 03 x 02

Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937 01 01 x 01

Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 02 01 x 02

Constituição da República Federativa do Brasil de 1967

03 06 x 03

Constituição da República Federativa do Brasil de 1969 (redação dada pela EC nº 1/69)

02 06 x 05

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (sem emendas)

27 27 03 15

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (até a EC nº 91/2016)

59 31 03 16

Fonte: elaborado pelo autor.

3) A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1934, por sua vez, apresenta duas colocações, muito embora de inegável teor genérico: uma diz que a lei assegurará a representação das atividades culturais do país (art. 23 - § 7º); e a outra assevera caber aos entes da federação favorecer o desenvolvimento da Cultura em geral (art. 148). O vocábulo patrimônio aparece três vezes: 1) no próprio artigo 148, dis-pondo no sentido de que cabe à União, aos Estados e aos Municípios pro-

4 A análise a seguir foi feita com base nas respectivas versões originais das Constituições, sem abranger posteriores Emendas.

5 As pesquisas realizadas não se valeram somente das palavras destacadas como termos de busca, mas também outras que pudessem ter ligações com o tema, tais como patrimônio cultural, silvícola, índio, escravo, tigre (escravos encarregados pelo transporte de dejetos e de lixos, geralmente despejados nas praias), afro, quilombo etc.

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teger os objetos de interesse histórico e o patrimônio artístico do país; 2) no artigo 157, que assevera a reserva, pelos entes federativos, de uma parte dos seus patrimônios territoriais para fundos de educação; e 3) ao dispor que qualquer cidadão será parte legitima para pleitear a declara-ção de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados ou dos Municípios (art. 113, item 38).

Novamente, não há menção aos negros. Entretanto, duas passagens tratam sobre os indígenas – aqui, denominados silvícolas – por meio da ideia de incorporação à comunhão nacional (art. 5º), sendo reconhecida a posse das terras por eles ocupadas, vedada a sua alienação (art. 129).

4) A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1937, também conhecida como Carta “Polaca”, só se referia à Cultura por duas vezes: 1) para a nomeação de membros ao Conselho Federal, em conotação no-tadamente genérica, distinguindo brasileiros natos com conhecimento em algum dos ramos da produção ou da cultura nacional (art. 52, poste-riormente suprimido pela Lei Constitucional nº 9 de 1945); e 2) no art. 128, que dispunha ser a arte livre à iniciativa individual e à associações de pessoas públicas e particulares. O termo patrimônio é mencionado uma única vez, no artigo 134, que assim dispõe: “Os monumentos his-tóricos, artísticos e naturais [...] gozam da proteção e dos cuidados es-peciais [...]. Os atentados contra eles cometidos serão equiparados aos cometidos contra o patrimônio nacional”.

Os negros são novamente excluídos do panorama constitucional, com o Diploma vindo despido de referências. Os índios, apontados como silvícolas, são destinatários de uma única passagem, em que consta, re-petindo a Carta de 1934, a obrigatoriedade de se respeitar a posse de suas terras, vedada a alienação (art. 154).

5) A Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 traz as expressões Cultura e Culturais em duas passagens, atreladas à educação e insertas no Capítulo II (“Da Educação e da Cultura”). Destaca-se que, pela primeira vez, fora atribuída a responsabilidade pela Cultura ao Es-tado, conforme previsto no artigo 174: “O amparo à cultura é dever do

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Estado”. Tal surge como evidência do paternalismo pós-Estado Novo, que pretendia ocupar-se da Cultura enquanto objeto de intervenção estatal. No artigo 49, por sua vez, permite-se aos deputados e senadores partici-parem, no estrangeiro, de congressos, conferências e missões culturais. Com relação ao patrimônio, não houve, se comparado o regramento com o previsto na Constituição anterior, mudança significativa. O parágrafo 38 do artigo 141 estabelece que qualquer cidadão poderia pleitear a anu-lação ou a declaração de nulidade de atos lesivos ao patrimônio público; acrescentou-se, ainda, ao rol deste patrimônio o pertencente às entida-des autárquicas e às sociedades de economia mista.

Os negros não são citados e os indígenas aparecem em dois artigos, que versam sobre a competência legislativa da União sobre a incorpora-ção dos silvícolas à comunhão nacional (art. 5º, XV, “r”) e sobre a pos-se das terras onde se achassem, ecoando a proibição de a transferirem (art. 216).

6) A Constituição da República Federativa do Brasil de 1967, con-vém destacar de pronto, foi criada e promulgada com o intuito de dar respaldo ao golpe de 1964 e colocar em termos legais as ações da di-tadura. Há, portanto, uma formação ideológica inclinada a enxergar a Cultura como algo relacionado à família (Título IV - Da Família, da Educação e da Cultura).

O vocábulo Cultura surge três vezes, evidenciando as atividades cul-turais ora como dever do Estado (art. 172), ora no sentido de possibilitar ao deputado ou senador desempenhar missões de caráter cultural (art. 38, § 2º), e ainda associadas à noção de conhecimento/instrução e for-mal/moralidade (art. 118). Este último artigo afirma que os Juízes Fede-rais serão nomeados dentre brasileiros “de cultura e idoneidade moral”, emulando parcialmente referenciais baseados de maneira genérica na noção de Cultura, como já se observava, no histórico constitucional, na Constituição “Polaca” de 1937; aqui, de modo tão conveniente quanto, se não mais, para o status quo de então, tem-se que a Cultura seria atributo para bem poucos afortunados. O patrimônio, por sua vez, é especificado

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em seis partes, todas se referindo aos bens físicos e passíveis de valor.6 Continua não havendo disciplina constitucional sobre os negros. Os ín-dios são versados em três excertos: 1) as terras ocupadas pelos silvícolas constam do rol de bens da União (art. 4º, IV); 2) a esta compete, por sua vez, legislar acerca da incorporação dos silvícolas à comunhão nacional (art. 8º, XVII, “o”); e 3) fica assegurada aos silvícolas a posse das terras que habitam, bem como o usufruto exclusivo dos recursos naturais e de todas as utilidades nelas existentes (art. 186).

7) Muitos consideram que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1969, consolidada através da redação da Emenda Constitucio-nal (EC) nº 01/69, seria uma nova Constituição, pois alterou significati-vamente as estruturas de governo. No entanto, no que tange à Cultura, ao patrimônio e ao negro, não houve mudança significativa. Quanto ao índio, há cinco passagens; porém, sem novidade digna de nota.

8) A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (sem emendas) menciona a palavra “Cultura” 27 vezes, tendo, pela primeira vez, uma Seção inteira (II – Da Cultura), incluída no Capítulo III (Da Educação, da Cultura e do Desporto), voltada para o tema.7 O patrimônio

6 1) É vedado aos entes federativos a criação de imposto sobre os patrimônios uns dos outros (art. 20, III, “a”); 2) Tal proibição também se aplica ao patrimônio de partidos políticos e de instituições de educação ou de assistência social (art. 20, III, “c”); 3) Essas vedações são extensivas ao patrimônio das autarquias (art. 20, § 1º); 4) Veda-se a incidência de imposto sobre a transmissão de bens incorporados ao patrimônio de pessoa jurídica, salvo expres-sas exceções (art. 24 § 3º); 5) Qualquer cidadão poderia, assim como sob a égide da Cons-tituição anterior, pleitear anulação de atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas – a novidade, aqui, consiste na possibilidade específica de propositura de ação popular (art. 150. § 31); e 6) Regula-se a situação do patrimônio dos partidos políticos extintos pelo AI nº 02/65, que deveria ser transferido “a qualquer das organizações políticas devidamente registradas” (art. 184).

7 Art. 215. “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da Cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifesta-ções Culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. § 2º A lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os dife-rentes segmentos étnicos nacionais. Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, por-tadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da

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também é tratado em 27 excertos. Até a EC nº 91/2016, esses números subiram para 59 (Cultura) e 31 (Patrimônio).

Fruto da participação e da pressão sociais, a CRFB/88 conseguiu am-pliar a noção de direitos, garantindo a promoção e a proteção do patri-mônio cultural brasileiro. Trouxe interpretações inéditas e, ao alargar o conceito de cultura, houve outra inovação: o patrimônio cultural passou a ser registrado de acordo com sua natureza material e/ou imaterial, dei-xando de lado a concepção restrita, contida no Decreto-Lei nº 25/37, re-ferente apenas a aspectos ligados à materialidade. Esta ampliação defla-grou a necessidade de se criar um novo instrumento de preservação dos bens culturais de ordem imaterial. Após 12 anos, foi editado o Decreto nº 3.551/00, regulamentando as criações do Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e do Programa do Patrimônio Imaterial.

Outra mudança significativa foi a inclusão, inédita na trajetória constitucional brasileira, de referências aos negros. São apenas três as passagens que os mencionam diretamente; de forma indireta, outros artigos acabam por abrangê-los, prevendo, por exemplo. a igualdade de raças e a criminalização do racismo.8 Quanto aos povos indígenas, houve a inserção, no texto constitucional, de um capítulo elaborado especifi-

sociedade brasileira, nos quais se incluem: I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, pa-leontológico, ecológico e científico. § 1º O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preser-vação. § 2º Cabem à administração pública, na forma da lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. § 3º A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores cul-turais. § 4º Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. § 5º Ficam tombados todos os documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos.”

8 Arts. 215, § 1º e 216, § 5º e art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT): “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”.

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camente para a disciplina de seus direitos (Capítulo VIII - Dos Índios). Originalmente, na CRFB/88, 15 passagens citam diretamente os índios; tal número aumentou para 16 com a EC nº 06/95, que acrescentou o § 1º ao seu artigo 176.

ARTICULAÇÕES VALORATIVAS SOBRE A CULTURA

Conforme verificado por meio das Cartas Constitucionais, o termo Cul-tura “[...] passou do cultivo da terra para a cultivação do espírito huma-no [...]”. (BOTELHO, 2016, p. 7) Ademais, era concebida como sinônimo da produção de saber por meio da dialética entre ter versus não ter edu-cação formal, abrangendo a divisão social entre intelectuais e manuais e, em maior parte, a escolaridade. É dizer: dado indivíduo tem conhe-cimento; logo, possui cultura, enquanto todos os outros são incultos. Na medida em que um lugar de fala é afirmado pelo saber, os demais são desvalorizados, tidos por incompetentes, posto que fogem ao padrão pré-estabelecido de ideal do homem médio branco – ou seja, os trabalha-dores, as mulheres, os negros e os índios, entre outros grupos.

Percorrendo as Constituições até então, fica claro que o tratamen-to dado à Cultura envolvia a escolarização, dando margem à dicotomia de uma pessoa ter cultura e ser, portanto, competente, o que acabava promovendo a exclusão. Nada é mais sintomático de tal proceder do que a precitada disposição, no âmbito da Constituição de 1967 – concebi-da, reitere-se, em sintonia com o panorama autoritário à época vigente –, no sentido de que seriam nomeados, para os cargos de Juízes Fede-rais, brasileiros “de cultura e idoneidade moral”. O significado atribuído à palavra cultura se reporta ao conjunto de conhecimentos de uma única pessoa, ou seja, utilizado para se referir aos indivíduos providos de edu-cação formal e, por isso, considerados aptos à condição de detentores de poder – afinal, restringindo a tais indivíduos o acesso às instâncias pode-rosas, mantinha-se o próprio poder em um perímetro estreito.

Nota-se, neste diapasão, que os artigos 215 e 216 da CRFB/88 consti-tuem um avanço, na medida em que a cultura passou a ser concebida pelo

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Estado como um processo criativo que abre caminhos para a construção de uma política plural e democrática. Consequentemente, as discussões acerca da cultura e da atuação política do Estado foram intensificadas, conformando um molde aberto, aplicável a uma gama de realidades es-paço-temporais como caminho unificador das vozes dos excluídos.9

Tal transformação é devida em parte aos debates travados na ANC de 1987-88. No seio da trajetória rumo à Constituição, suscitaram-se diversas questões no ambiente cultural. Vide o discurso de Antônio Au-gusto Arantes, membro do Conselho Diretor da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), que defendia a prioridade da Cultura nas políticas públicas do Governo, pois “[...] não há ser humano que não tenha, que não expresse a sua identidade culturalmente”. (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1987, p. 280) Arantes alertou sobre a necessidade de o Estado defender e valorizar o patrimônio cul-tural em sua forma ampla, não linear e uniformizadora, abrangendo os seus aspectos documental, artístico e ambiental.

O então Ministro da Cultura, Celso Furtado, esclareceu a necessida-de de se observar a Cultura como um processo acumulativo, “[...] algo que tem coerência e algo em que o todo não se explica cabalmente pelos significados das partes”. (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA

9 A Cultura não é algo de que se pode despir para, em seguida, ser novamente vestido através da Constituição. Não é algo a se construir construída no mesmo passo em que é estatuí-da e disciplinada legalmente. Sua característica é a mutabilidade que se opera diante dos conflitos e cooperações entre os membros de uma mesma comunidade ao longo do tempo. Em outras palavras, não se trata de afirmar que apenas com a CRFB/88 passou a existir uma cultura plural – esta já era uma característica prévia do povo; apenas não estava plas-mada no corpo constitucional e nas políticas públicas, o que, muito embora inviabilizasse a promoção de sua totalidade, em momento algum fez com que os seus aspectos carentes de normatização deixassem de surtir efeito de fato. Tem-se, por exemplo, que a vida cultu-ral durante o período sob o manto autoritário não parou – pelo contrário: muitos trabalhos artísticos foram produzidos, apesar da censura. A despeito de haver uma cultura tida por marginal, a cultura institucional promovida pelo Estado consistia no conservadorismo e na manutenção da moral e dos bons costumes. Como resultado, não houve corte da relação entre Estado e sociedade civil, mas uma nova imbricação entre eles. Dizer, então, que não houve cultura é equivocado: houve culturas, sujeitas de formas diversas às influências do regime político outrora vigente.

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DOS DEPUTADOS, 1987, p. 420) A identidade cultural se comunicaria com o sistema de valores por meio de um processo dual, envolvendo o espaço e o tempo. Ademais, a visão tradicional da cultura, atrelada ao la-zer, seria antidemocrática, posto que a própria distribuição do tempo de lazer é desigual. Sustentou, ainda, que o patrimônio e a memória seriam concebidos não apenas como acervo da herança cultural, mas como um todo orgânico cuja significação cresce à medida que se integra no viver cotidiano da população. Furtado reiterou a preocupação com o reconhe-cimento da diversidade, na medida em que o avanço na conscientização das populações negras e indígenas era visto como a própria ampliação do horizonte cultural que se insere na pluralidade étnica.

Nesse cenário, Carlos Pereira de Miranda, representante do Institu-to Nacional de Artes Cênicas (INACEN), apresentou propostas baseadas na liberdade de expressão, defendendo uma Cultura pluralista e a des-centralização do eixo cultural Rio de Janeiro-São Paulo. Afirmou ser de-ver do Estado propiciar aos cidadãos, indistintamente, as condições de participação no processo social da cultura. Ele esclareceu que não se tra-taria de um amparo, como nas Constituições anteriores, mas sim de pos-sibilitar a criação de uma política que valorizasse o ser humano situado na realidade brasileira. (BRASIL, CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA DOS DEPUTADOS, 1987, p. 320)

A conceituação de Cultura ocupava, na mesma esfera, posição privi-legiada nas falas do Deputado Florestan Fernandes (1987, p. 273):

O Estado deve criar as condições que garantam esse processo. O que fica por definir é a amplitude do conceito de cultura, que já tem envolvido sociólogos e antropólogos em debates que vêm do século passado e que, às vezes, estendem o concei-to de cultura até o campo mais amplo da civilização e outras vezes restringem aquilo que entendemos como cultura erudi-ta. Tenho a impressão de que, num País como o Brasil, a cultu-ra precisa ser vista em seu sentido antropológico, sociológico, porque o Estado precisa criar condições de proteção da capa-cidade artística e criadora também das massas populares, daqueles artistas anônimos, desde as tribos indígenas, das

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populações rústicas até as favelas e inclusive os asilos, uma produção cultural que tem sido ignorada, e muito rica.

Ao levantar o questionamento do que viria a ser Cultura, Florestan abor-dou um ponto chave: qual a amplitude que o conceito deve assumir? Essa questão é importante, principalmente para a definição das políticas cul-turais – isso porque, dependendo da dimensão adotada, seja ela antropo-lógica ou sociológica, exigir-se-á uma estratégia diferente para a política pública. Neste prisma, a pesquisadora Isaura Botelho (2016, p. 41) afirma que a “[...] abrangência da definição de cultura é fundamental para que se estabeleçam parâmetros e estratégias de uma política cultural”. Na pers-pectiva antropológica, a cultura se produz por meio da interação entre os seres humanos em seu cotidiano, o que traz ênfase à sociabilidade. Neste caso, a Cultura é vista de forma ampla, sendo tudo aquilo que os indiví-duos produzem, simbólica e materialmente. Já na perspectiva sociológica, a Cultura não se constitui no plano do cotidiano, uma vez que envolve um âmbito especializado, com a intenção de alcançar um público específico.

Utilizando-se desses modelos, é possível chegar a uma definição de direitos culturais como sendo direitos que possibilitam a participação efetiva dos seres humanos na vida cultural, de usufruir a Cultura de forma plena. Para o pesquisador George Yúdice (2004), tais direitos in-cluem, entre outras ações, a liberdade de se engajar na atividade cultural, de adquirir conhecimento e de ter uma educação. Dentro de tal arranjo, os direitos culturais são vistos como um desdobramento dos direitos hu-manos (COELHO, 2014) Deve-se, portanto, desconstruir a ideia de que a população, no que concerne à cultura, é mero consumidor, e não partici-pante, da vida cultural.

Com base nessas definições, é possível o diálogo entre os níveis da administração pública para a gestão da Cultura nas conjunturas munici-pal, estadual e federal. Como o município é a instância de contato mais imediatamente local com a população, é nele que o prisma antropológico da cultura se concretiza: “[...] em termos de política pública, considerar a cultura em sua dimensão antropológica nos leva a privilegiar uma ação

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municipal”. (BOTELHO, 2016, p. 82) Segundo Botelho (2016, p. 271), “quando a Constituição de 1988 foi promulgada, a redefinição do pacto federativo levou os municípios a se tornar mais autônomos e a ganhar maior poder de decisão”. À administração estadual convém atuar por meio de uma política de entrelace com os municípios, dialogando com a população e servindo de intermediário entre as instâncias municipal e federal. Esta última, com sua ênfase em questões de abrangência nacio-nal, ocupa o lugar de porta-voz do debate sobre a cultura como direito e cidadania, atuando quase como que em “[...] uma missão pedagógica que tem como objetivo intervir nas demais áreas do aparato governamental”. (BOTELHO, 2016, p. 84)

Nesse cenário de iniciativas contemporâneas, pode-se afirmar que o Ministério da Cultura, criado em 1985, assume a função basilar de ór-gão condutor de uma política cultural, tornando-se um referencial para o diálogo entre Estado e sociedade.10 Apesar de suas primeiras gestões terem por tônica uma política de Estado mínimo, assentada no modelo neoliberal – ilustrada pela ênfase às leis de incentivo que tendiam a um gerenciamento de pouca intervenção estatal –, essa abordagem foi mo-dificada com a posse do Ministro Gilberto Gil (2003-2008). Passou-se a trabalhar com as noções de bens culturais e de patrimônio cultural, atra-vés de consultas e fóruns com a participação de diversos segmentos da sociedade, promovendo uma união com o meio social.

Cabe pontuar, nesta esfera, o problema enraizado da falta de conti-nuidade das políticas na área da cultura, principalmente por conta da sua marginalidade na agenda das políticas governamentais. (BOTELHO, 2016) O reconhecimento de direitos não coincide necessariamente com a realidade prática, uma vez que a política não é imune a desvios em um mundo real e as ações políticas públicas são limitadas burocraticamente

10 Enfatiza-se que o Ministério da Cultura teve como primeiro titular o Ministro José Aparecido de Oliveira, que, embora tenha sido um dos articuladores de sua criação, abandonou a pasta após três meses para assumir o governo do Distrito Federal. Após isso, houve uma dificuldade no preenchimento do cargo, com cinco Ministros em apenas quatro anos. De 1985 a 1993, fo-ram nomeados nove Ministros, o que corresponde, aproximadamente, a um Ministro por ano.

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pelo contingenciamento orçamentário. Quase 30 anos após a entrada em vigor da CRFB/88 e seguindo os critérios da conveniência e oportunida-de, o Estado brasileiro pretendeu eliminar os recursos destinados à Cul-tura. Melhor explicando, a perspectiva cultural é vista como gasto em vez de investimento – e o cenário recente confirma essa falta de prioridade destinada ao setor. O atual Presidente da República, Michel Temer, vi-sando reduzir os gastos ministeriais, chegou a se desfazer do Ministério da cultura, aglutinando-o à pasta da Educação.11 Após manifestações e polêmicas, Temer reverteu sua decisão por meio da Lei nº 13.345/16.

Os acontecimentos do passado constituinte atravessaram os anos, perpetuando-se nos dias atuais. Por que, afinal, apesar de registrarem aspectos específicos de cada momento, seus embates, questões e expec-tativas persistem? Não é a primeira vez que um governo fecha as portas para cultura: em 1964, o então Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzilli, no exercício interino da Presidência da República, sob o manto do governo civil-militar, extinguiu o Instituto Superior de Estu-dos Brasileiros (ISEB), órgão que agregava ideias desenvolvimentistas e concebia a Cultura como elemento impulsionador de transformações sociais e construção da identidade nacional; (BRASIL, 1964) em 1990, o então Presidente da República Fernando Collor de Mello também extin-guiu o Ministério da Cultura, juntamente com diversos de seus órgãos, havendo o seu retorno apenas em 1992, no governo de Itamar Franco.

Neste contexto atual de conservadorismo e retirada de direitos, é oportuno lembrar os versos de Geraldo Vandré, na música “Pra não dizer que não falei das flores”, que traduzem a inquietação e a necessidade de ação: “Quem sabe, faz a hora, não espera acontecer.” Os direitos cultu-rais são deveres de todos e, sendo regra inscrita na Lei Fundamental do

11 Medida Provisória nº 726/16: Art. 1º. Ficam extintos: IV – o Ministério da Cultura. Art. 2º. Ficam transformados: III – o Ministério da Educação em Ministério da Educação e Cultura. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/Mpv/mpv726.htm>. Vide, ainda, a extinção do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventu-de e dos Direitos Humanos.

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país, não pode ser convertida em meras promessas institucionais, pois, se assim o for, implicará no descumprimento do preceito constitucional.

BALANÇO: INCLUSÕES E EXCLUSÕES; AVANÇOS E ESTAGNAÇÕES12

O escritor João Ubaldo Ribeiro, discutindo os problemas da Constituin-te, esclareceu que os cidadãos estavam imersos em um processo político de influência sobre todos os aspectos da vida. Em exercício sintético, de-fendeu que não caberia à Constituição reger as nuanças, mas à lei infra-constitucional: “Cabe à lei ordinária reger as questões do dia-a-dia den-tro desse arcabouço, e cabe à sociedade promover os meios para cumprir os ideais corporificados no texto constitucional”. (RIBEIRO, 1998, p. 80)

Entretanto, muito do que foi deixado para se legislar no futuro foi postergado indefinidamente, prejudicando a efetiva aplicação da Carta Constitucional. Nesse quadro, após o encerramento dos trabalhos, Flo-restan Fernandes afirmou que o que existe é uma “Constituição Inacaba-da” (1989). A guisa de exemplo, o ensino da história da África e da Cul-tura afro-brasileira nos currículos escolares – antiga reivindicação dos movimentos negros – somente foi regulamentado em 2003, com a Lei nº 10.639. Assim é que a jurista e política Anna Maria Rattes (2009,

12 É importante refletir sobre o resultado dos trabalhos de quase 30 anos da Constituinte. Resumi-los, como ocorre na bibliografia sobre o tema, em dois grupos simetricamente opostos – avanços e retrocessos –, possui inegável impacto. Porém, a referência ora feita a estagnações no lugar de retrocesso se justifica pelo fato de o país ter, então, acabado de en-cerrar um governo ditatorial, em que os direitos individuais e coletivos foram suprimidos e prevaleciam as normas de exceção e as práticas de censura, tortura, perseguição e morte. Defende-se que seria muito difícil que a ANC de 1987-88 inaugurasse um cenário pior do que o do regime anterior; antes se coadunou, em parte, com ele, na medida em que discipli-nou normas idênticas, desprivilegiando reivindicações sociais. O que efetivamente ocorreu foi a estagnação normativa, perpetuando-se uma visão conservadora e elitista preexisten-te – vide, a título de exemplo, as normas regulamentadoras da propriedade privada, que garantiram que essa se mantivesse concentrada nas mãos dos latifundiários. A ideia da experiência constitucional permite falar em insucessos; retrocesso seria, não obstante a necessidade de uma ênfase crítica quando a Constituição ainda era recém promulgada, um termo hoje radical demais, que vem desbotando com o passar dos anos.

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p. 28) elucida que, até o ano de 2009, “[...] 66 dos 250 artigos aprovados não foram regulamentados e por isso ficam sem aplicação prática. Ou seja: 26,4% do texto existem apenas no papel”. Daí dizer que, em muitas passagens, o texto produzido é ambíguo e não autoaplicável.

Soma-se a esse quadro de ausência de normas regulamentadoras o fato de a Cultura acabar sendo minimizada na versão final da Constitui-ção. Apesar de estar formalmente inserida no Título VIII, “Da Ordem Social”, ela foi separada deste âmbito durante o processo de formula-ção dos textos-base, reduzindo a condição social do patrimônio cultural e o diálogo entre as duas temáticas. A separação formal dos temas em Subcomissões e Comissões acarretou um distanciamento, no caso em tela, entre as Subcomissões VIII-a (educação, cultura e esportes) e VII-c (negros, populações indígenas, pessoas deficientes e minorias). A con-sequência principal foi que a cultura e a terra passaram a ser vistas de forma dissociada das práticas culturais de negros e índios – ao custo de parte do social a elas inerente. Dessa maneira, a propriedade da terra foi dissociada do reconhecimento da Cultura para as práticas culturais de negros – sítios remanescentes de quilombos – Indígenas – assentamen-tos de tribos. A existência de duas normas separadas sobre o tema (§ 5º do art. 216 e art. 68 do ADCT) – com uma delas, concernente à emissão do título de propriedade do quilombo, constando do ADCT –, representa uma tentativa de diminuição da importância política de tal direito.

Deste modo, em que pese o avanço dos artigos 215 e 216 da CRFB/88, é preciso evidenciar que a ideia de uma identidade nacional ocorre a par-tir de uma homogeneização não problematizada da Cultura e da socie-dade. Ainda que a diversidade, em si, esteja plasmada no texto legal, o referido artigo esbarra em questões de referências culturais indígenas e negras: reunir as reivindicações distintas na expressão “diferentes gru-pos formadores da sociedade brasileira” não confronta as feridas ainda abertas nos grupos que foram, no passado histórico e recente, excluídos dos espaços centrais de reconhecimento político. Nesse pensamento, a sociedade brasileira seria formada por apenas três raças – branco, negro

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e índio – de matrizes de Culturas intactas, sem interações. Negar o anta-gonismo ou a sociabilidade inerentes à própria Cultura é transformá-la em mero costume, sem considerar o quanto contribui para a formação do tecido da vida social de um determinado grupo humano.

A Cultura é um fator indispensável ao estudo de uma sociedade. Insta salientar que o seu processo de releitura não se esgota no âmbito das leis, mas implica no fomento e na descoberta dos valores presentes no meio social, objetivando a sua preservação e promoção. É crível que sejam for-muladas e implementadas ações que tenham como objetivo enaltecer a diversidade e, mais especificamente, as particularidades dos grupos so-ciais. Um dos maiores desafios enfrentados é o de superar o velho arran-jo tradicional, que adota como protagonistas essenciais os grupos domi-nantes, deixando os grupos “subalternos” – relegados, em uma pretensa hierarquia, aos “andares de baixo” da estrutura social – à margem. Daí a importância de se investir na formulação de novas dinâmicas para as políticas públicas de Cultura, de forma a contemplar grupos que ainda não acessam tais ações.

Certamente, ainda existem diversos debates a desenvolver, o que proporcionará revisões constantes da abordagem dos temas culturais. O processo é bastante complexo para ser tratado, em todas as suas nuan-ces, no presente espaço; pretendeu-se expor um panorama que convide à reflexão sobre o assunto. O que se deve ter em mente é a possibilidade de se transitar entre os diversos mundos, de forma a englobar todas as Culturas e diluir as dicotomias engessadas, compreendidas em divisões maiores como presente versus passado e popular versus erudito. Seguin-do o ensinamento de Botelho (2016, p. 39), o que se defende é “uma polí-tica pública articulada que contemple as várias dimensões da vida cultu-ral sem preconceitos elitistas ou populistas”.

REFERÊNCIAS

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De religiões a povos: a luta pelo reconhecimento dos direitos dos povos de terreiro1

Nailah Neves Veleci

INTRODUÇÃO

Os povos de santo historicamente foram perseguidos por causa de seus valores e costumes diferentes dos praticados hegemonicamente do país. O conflito que emerge da regulação política das religiões afro-brasileira não traduz apenas uma questão de liberdade religiosa, mas também uma questão de igualdade e liberdade política, na medida em que estas reli-giões ficaram por muito tempo a margem da proteção do Estado por lhes serem negado, devido ao racismo social e institucional, o reconhecimen-to de seus direitos religiosos e culturais.

A metodologia adotada para elaboração deste artigo foi uma combi-nação de revisão bibliográfica, através das análises de livros, disserta-ções e artigos sobre a história das religiões afro-brasileiras, especialmen-te a dissertação do jurista Maurício Azevedo de Araújo por apresentar um vasto levantamento histórico das relações das religiões afro-brasi-leiras e as normas jurídicas do país; a dissertação da socióloga Daniela

1 Publicado parcialmente em Veleci (2017).

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Cordovil Corrêa dos Santos que apresenta as transformações internas das religiões afro-brasileiras nesse processo histórico; e o livro e artigo de Volney J. Berkenbrock e Vagner Gonçalves da Silva, que respectivamen-te, tratam da perspectiva católica e neopentecostal em relação às reli-giões afro-brasileiras. Também foi realizada uma pesquisa documental, consistente na análise de diplomas normativos e projetos de leis, tendo destaque a análise do I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015).

O objetivo dessa pesquisa é compreender através do processo his-tórico da relação dos povos de terreiro com o Estado brasileiro como o reconhecimento tardio dos direitos destes povos impacta na atualidade as novas estratégias de sobrevivência, que consiste na autodeclaração de que mais que do que uma religião estes grupos constituem povos e comu-nidades tradicionais de terreiro.

O RECONHECIMENTO JURÍDICO

Durante o Brasil Colônia apenas a religião católica era permitida, sendo as demais reprimidas nos termos das Ordenações Filipinas, que vigora-ram no Brasil de 1603 a 1830. Em seu Livro V, as Ordenações criminali-zavam: a heresia, punindo-a com penas corporais (Título I); a negação ou blasfêmia de Deus ou dos Santos (Título II); e a feitiçaria, punindo o feiticeiro com pena capital, morte (Título III).

No Brasil Império, o catolicismo permaneceu como religião oficial, mas foi inserida uma previsão formal de liberdade religiosa privada, sem forma externa de templo, na Constituição Imperial de 1824. Concreti-zando essas disposições, o Código Criminal do Império, promulgado em 1830, punia com multas e demolições a celebração de cultos religiosos em áreas externas ao domicílio que não fossem da religião oficial (art. 276); com prisão e multa a zombaria contra o culto estabelecido pelo Império por meio de papeis impressos ou discursos (art. 277) e com prisão e multas a manifestação de ideias contrárias à existência de Deus por meio de pa-peis impressos ou discursos (art. 278). Cabe ressaltar que essa regulação

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estimulou que religiões minoritárias estabelecessem seus locais de cultos não como templos, mas como residências ligadas tipicamente ao sacer-dote. Diversamente dos templos católicos que pertenciam a uma pessoa jurídica, os terreiros eram ligados a pessoas físicas,2 o que contribuiu para que a organização das religiões afro-brasileiras tenha permanecido des-centralizada e fragmentária, pois cada local de culto é autônomo.

Segundo Quijano (2005), o padrão de poder mundial que temos em curso hoje, a globalização, começou com a constituição da América e do capitalismo colonial/moderno e eurocentrado. Dois processos históricos foram fundamentais para esta constituição: a criação da ideia de raças que foi usada para justificar o tratamento de inferioridade das demais raças não brancas; e “[...] a articulação de todas as formas históricas de controle do trabalho, de seus recursos e de seus produtos, em torno do capital e do mercado mundial”. (QUIJANO, 2005, p. 107) Essa era a perspectiva que predominava na época durante o período dos processos políticos de abo-lição da escravatura e da proclamação da República, e devido a isso surgiu no Brasil, nos discursos científicos e nas práticas governamentais, a preo-cupação com a influência negra na formação da sociedade brasileira.

Sob respaldo dessa ideologia, as Faculdades de Direito e as Escolas de Medicina da época deram:

[...] início à construção da ideologia do branqueamento e suas políticas de eugenia da população, onde os discursos jurídi-cos e da medicina se entrelaçam como fundamento da neces-sidade de reprimir as manifestações religiosas e culturais do negro, entendidas como primitivas e fetichistas. (ARAÚJO, 2007, p. 22)

Com a separação do Estado e da Igreja na primeira Constituição da República (1891) a realidade das religiões afro-brasileiras não mu-dou. Segundo Araújo (2007, p. 39), os grupos que defenderam o Estado

2 Essa diferenciação de pessoa jurídica também influencia na não garantia de imunidade tri-butária para terreiros, porque quando esta política pública foi pensada foi ignorado esse histórico dos terreiros estarem ligados a pessoas físicas e não jurídicas.

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Laico (republicanos, protestantes e positivistas) pertenciam à elite polí-tica que havia construído os discursos etnocêntricos e estes, programa-ram uma “[...] discursiva-normativa de exclusão legal da religiosidade negra, através dos pressupostos do racismo científico”.

Esta discursiva-normativa está evidenciada no fato que um ano an-tes da separação, foi aprovado o Código Penal de 1890 que criminaliza-va mendicância (art. 391-395), vadiagem (art. 399), capoeiragem (art. 402), curandeirismo (art. 156) e espiritismo (art. 157). Para Araújo, esta criminalização legal das manifestações culturais e religiosas da popula-ção negra caracterizava “[...] a tentativa de normalização ou negação da cosmovisão africana no país.” (ARAÚJO, 2007, p. 40) Temos nessas nor-mas um princípio eurocêntrico não declarado explicitamente, mas que influenciou toda uma construção social-político-cultural que marginali-zou os negros e sua cultura.

Esse foi o período que para Araújo (2007), emergiu os dois principais obstáculos de reconhecimento jurídico das religiões afro-brasileiras que perpetuam até hoje: o racismo institucional e o fascismo sociorracial. Araújo (2007, p. 41) delimita o fascismo sociorracial de acordo com a de-finição de Boaventura de Souza Santos:

Boaventura de Souza Santos define o fascismo social não como um regime político e sim um regime civilizacional, se-gundo o autor ‘é um fascismo pluralista, produzido pela socie-dade e não pelo Estado.’ [...] Segundo o sociólogo português, este tipo de fascismo consiste na ‘[...] segregação social dos excluídos mediante a divisão das cidades em zonas selvagens e zonas civilizadas [...]’. No caso da religiosidade no Brasil, a zona civilizada era representada pela matriz cristã-ociden-tal, e a zona selvagem pela cosmovisão africana.

Nessa fase encontramos a primeira influência do não reconhecimen-to sociocultural das religiões afro-brasileiras como religião causada pelo racismo da época. Antes da separação do Estado e da Igreja, o culto ao Candomblé era escondido devido à lei vigente que proibia ter outras re-ligiões, agora “todas” as religiões eram permitidas, mas o Candomblé

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continuava sendo proibido porque não era reconhecido como religião. Devido à falta de reconhecimento como sujeito do direito, para Araújo (2007, p. 49-50), as religiões afro-brasileiras adotaram mecanismos pe-culiares de resistência, como a aceitação do sincretismo religioso com a igreja católica, a criação de redes de solidariedade entre o povo de santo,

[...] simbolizada na proteção mutua das comunidades-terreiros o que possibilitou a consolidação de um sentimento de identida-de e colaboração entre as diversas nações Jeje, Angola e Ketu.

Na década de 1930, os estudos sociais no Brasil, numa tentativa de apagar o passado racista da nação, substitui as teorias evolucionistas pela vertente culturalista. Gilberto Freyre é um dos teóricos que contri-buem com essa nova ideologia, onde era pregada a democracia racial no país que agora enaltecia a sociedade miscigenada, produto da fusão en-tre as três raças fundadoras (branca, indígena e africana).

Para Santos (2006), Gilberto Freyre, assim como outros sociólogos da época, substituíram a noção de raça por cultura. Agora era a cultura do negro que era primitiva e inferior, sendo a mestiçagem e o sincretismo a salvação. Araújo (2007) evidenciou que essa nova ideologia enquadrou as religiões afro-brasileiras como folclores, permanecendo assim, negan-do o seu caráter religioso, sendo este só admitido no suposto sincretismo com o catolicismo que agora era uma prática muito exaltada na sociedade.

Nesse período, nasce em 1931 a Frente Negra Brasileira. A organização foi à primeira experiência do movimento negro no Brasil que questionou a inclusão da população negra, chegando a se constituir como um partido, extinto com o advento da ditadura do Estado Novo. Devido à criminaliza-ção das religiões afro-brasileiras que suspostamente violavam a “moral pública” e os “bons costumes” e o discurso de inferioridade das tradições africanas, a organização renegou as manifestações culturais e religiosas. Segundo Araújo (2007, p. 76-77), “[...] a Frente Negra responsabilizou es-sas práticas [religiosas] pela estigmatização do negro, propondo, assim, que a política de integração passasse também pela sua incorporação aos modelos universalistas de cidadania e de identidade nacional.”

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Santos (2006) nos mostra que esse pensamento da Frente Negra foi observado também dentro do campo religioso das religiões afro-brasilei-ras. Segundo ela, a partir da década de 1930, em São Paulo e Rio de Janei-ro, crescia o “processo de embranquecimento” da Umbanda. A religião, ao abrir mão do conteúdo étnico, teria se tornado na época, mais adequa-da para “[...] as camadas da classe média e baixa de grandes cidades que buscavam uma mobilidade social ascendente na sociedade brasileira, permeada pelo preconceito racial.” (SANTOS, 2006, p. 33-34)

A autora classifica os dois caminhos seguidos pelas religiões afro--brasileiras nesse período: de um lado, a luta pela manutenção da tra-dição africana, empreendida pelos cultos afro-brasileiros ditos “puros” como Candomblé; e de outro, o apagamento gradativo dos elementos africanos da Umbanda para adaptar-se à sociedade nacional e à moder-nidade. Para Santos (2006, p. 107), esse processo que a Umbanda pas-sou de perda simbólica e de coesão social do negro se configurou em uma “[...] desagregação de memória coletiva negra.”

No âmbito social, essa negação da cosmovisão africana pode ser in-terpretada como negação social aos próprios adeptos destas religiões. Não só por eles serem negros, mas por serem e aceitarem os homosse-xuais, prostitutas, mães solteiras etc. Segato (2007) identificou a ausên-cia de essencialismos nessas religiões que segundo ela possuem um “[...] esforço sistemático por desvincular as categorias etnia, parentesco, per-sonalidade, gênero e sexualidade de determinações biológicas e biogené-ticas que se encontram vinculadas na ideologia dominante da sociedade brasileira.”3 (SEGATO, 2007, p. 169) Por tanto, a rejeição social desses dogmas se expandia a rejeição social de seus adeptos, e vice-versa. Isto porque os valores predominantes da época – e atuais – são os valores cristãos que regulam a vida em família e a vida sexual da sociedade, dis-criminando, muitas vezes em lei, os divergentes desses valores.

3 “[...] esfuerzo sistemático por liberar las categorías de etnia, de parentesco, de personali-dad, de género y de sexualidad de las determinaciones biológicas y biogenéticas a las que se encuentran vinculadas en la ideología dominante de la sociedad brasileira”.

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Nesse contexto, a Constituição de 1934 reproduziu o que já havia sido constituído na anterior sobre religiões. Mas é importante ressaltar o art. 17, inciso III que previa uma colaboração recíproca com qualquer culto em prol do interesse coletivo, o que permitia renovar os laços do Estado com a Igreja Católica, que continuava sendo a mais influente da época. Na vi-gência dessa Constituição, o Código Penal de 1940 excluiu o crime de es-piritismo, mas até hoje são vigentes o crime de curandeirismo (art. 284). Em contrapartida, este mesmo código em seu art. 208 pune quem impe-dir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso ou desvalorizar publicamente ato ou objeto de culto religioso.

Na década de 1940, surgiu o Teatro Experimental do Negro de Abdias Nascimento, que defendia “[...] a afirmação da herança africana, pro-pondo, assim, que a inclusão socioeconômica da população negra fosse inseparável do reconhecimento do valor civilizatório das manifestações culturais e religiosas da diáspora no Brasil.” No cenário político, o Teatro foi acusado “[...] tanto por conservadores como pela esquerda marxista, de estar alimentando um comportamento racializado inaceitável em uma sociedade caracterizada pela harmonia racial.” (ARAÚJO, 2007, p. 78-79)

Na década de 1950, mesmo com o apoio do movimento negro, o ra-cismo institucional contra as religiões afro-brasileiras, de acordo com Araújo (2007) passou da repressão policial para uma intervenção nor-malizadora onde as práticas religiosas, agora eram obrigadas a requerer licença junto às delegacias de jogos e costumes para realização dos cul-tos. Dentro do campo religioso, as religiões afro-brasileiras estabelece-ram suas estratégias de sobrevivência na busca pela africanidade de seu universo simbólico e na afirmação da alteridade da cosmovisão africana no Brasil, segundo Araújo (2007).

Os terreiros constituíram-se em comunidades litúrgicas que re-significaram e puderam reproduzir alguns elementos mí-ticos-políticos das sociedades africanas e suas formas parti-culares de socialização, de tempo, de poder e, principalmen-te, da ancestralidade fundamentais para uma política de reconhecimento pautado pela alteridade em contraposição

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ao projeto sincrético-assimilacionista hegemônico. É des-sa forma que percebemos a resistência e importância das comunidades-terreiros na luta por igualdade na diferença. (ARAÚJO, 2007, p. 63)

Com o Golpe de 1964, a ideologia da democracia racial tomou mais força no país, principalmente porque as lideranças negras tiveram que deixar o Brasil e a mobilização acabou sendo desarticulada. Apenas na década de 1970 influenciados pelo movimento dos direitos civis nos EUA e nos países africanos; pela Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965) e o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Cul-turais (1966) é retomado o protesto do movimento negro no país. Nesse momento o Movimento Negro Unificado contra o Racismo e Discrimina-ção Racial (MNU) volta-se para uma reflexão crítica das relações raciais, rearticulando sua luta política na afirmação da negritude e no combate ao racismo. Suas políticas seguem a lógica de que a superação da hierar-quia racial deve passar pelo reconhecimento das tradições africanas, sendo esta a nova etapa de resistência negra no Brasil. Tendo como pro-moção de uma identidade étnica negra surge a “[...] cobrança moral para que a nova geração de ativistas assumisse as religiões de matriz africana, particularmente o candomblé, tomado como principal guardião da fé ancestral.” (DOMINGUES, 2007, p. 117)

Para Araújo (2007), essa perspectiva do novo movimento negro inse-riu no cenário político o debate sobre o caráter multicultural da socieda-de brasileira. Araújo (2007, p. 140) explica que o multicultural:

[...] tem como objetivo designar sociedades, que devido à pre-sença de uma pluralidade de comunidades culturais, possui aspectos sociais e desafios de governabilidade que envolve o reconhecimento das diferenças e os desafios de uma vida co-mum. Em contraposição, a alcunha “multiculturalismo” de-signa as diversas estratégias e ações políticas voltadas para a administração dos conflitos oriundos da diversidade cultural existente em sociedades multiculturais.

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Essa nova posição política e ideológica do movimento negro possibilitou, segundo Araújo (2007), a inserção das demandas por direitos das religiões afro-brasileiras na esfera pública. Para ele, nesse momento a luta dos afro--religiosos passou de resistência para uma política de reconhecimento de direitos. Foi nesse cenário que o povo de santo conquistou o Decreto nº 25.095 de 15 de janeiro de 1976 do governador da Bahia, pondo um pon-to final na obrigação das comunidades religiosas de requerer permissão à delegacia de jogos e costumes para a realização dos cultos afro-brasilei-ros. Araújo (2007) afirma que esta conquista foi de suma importância, pois este decreto foi um dos primeiros instrumentos normativos de reco-nhecimento das religiões afro-brasileiras como religiões. A Constituição de 1988 ratificou a aceitação das religiões afro-brasileiras como religiões e ainda contemplou em parte as exigências do movimento negro sobre o respeito à alteridade das tradições negras em seus artigos 215 e 216.

O (NÃO) RECONHECIMENTO SOCIAL

As religiões afro-brasileiras levaram quase um século para serem re-conhecidas juridicamente como religiões. Mas após essa conquista, os problemas não mudaram, porque mesmo sendo sujeitos de direito elas ainda ficaram à margem da legislação devido as suas particularidades que não são reconhecidas socioculturalmente pelos aplicadores das leis.

A perspectiva da Colonialidade do Poder de Quijano (2000, p. 1) nos explica como foi construído o pensamento dos grupos dominantes sobre quais são os valores, costumes e saberes aceitos pela sociedade brasilei-ra. Nessa perspectiva que tem a invenção da raça junto com a invasão da América como instrumentos extremante eficaz de dominação social, tem o eurocentrismo como um dos carros chefes dessa dominação. Sega-to (2013, p. 47- 48) explica que o eurocentrismo consiste numa distorção favorável aos ideais do europeu branco sobre o modo de produzir sentido, explicações e conhecimentos. Trata-se de um conhecimento que reproduz o sistema de exploração capitalista e que determina os critérios de valores as pessoas e aos produtos. É a determinação de hierarquia que perpas-

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sa diversas áreas: “pré-capital/capital; tradicional/moderno; Ocidente/Oriente; primitivo/civilizado; mítico/científico; irracional/racional”.

Nossas instituições, principalmente as políticas, jurídicas, midiáticas e educacionais são impregnadas por esse ideal eurocêntrico que estipula como os melhores modelos de educação, de sistemas políticos e judiciários, e padrão de vida aqueles advindos da Europa. Determinam, também, que o conhecimento racional e científico é aquele que é escrito, em oposição ao conhecimento transmitido oralmente por outros povos como os africanos e indígenas. Essa perspectiva estipula que há uma evolução entre os povos sendo o europeu o mais desenvolvido e a meta desejável para os demais.

A Igreja foi uma das instituições que perpetuaram essa colonialida-de do poder no meio social, principalmente pelo monopólio de ditar os valores e costumes cristãos nas escolas públicas e privadas desde 1549 com a Companhia de Jesus até os dias atuais através da grande influên-cia nas aulas de ensino religioso, conquista esta adquirida pelo lobby4 da Igreja no Legislativo e Executivo em toda a história do Brasil República. Por isso, que o reconhecimento social nas religiões afro-brasileiras é in-fluenciado pelas percepções que a Igreja possui e passa sobre estas religiões.

No decorrer da história do Brasil, Berkenbrock (1999) identificou cinco posições diferentes da Igreja Católica perante as religiões afro-brasileiras, posições estas que às vezes foram cronologicamente coincidentes: 1º - Ilu-são da catequese; 2º - Combate aos costumes africanos; 3º - Demonização das religiões afro-brasileiras (Década de 1950); 4º - Cooperação e diálogo – reconhecimento dos erros cometidos pela Igreja com a evangelização for-çada dos negros; 5º - Diversificação de posições (atualidade): há católicos que combatem e rejeitam totalmente as religiões afro-brasileiras; há os que aceitam a existência destas, mas se acham no direito de purificá-las de “er-ros doutrinários”; e há os católicos que reconhecem totalmente as religiões afro-brasileiras como tais e as convidam para o diálogo inter-religiosos.

4 O processo histórico desse lobby foi trabalhado na dissertação Cadê Oxum no espelho cons-titucional? – Os obstáculos sócio-político-culturais para o combate as violações dos direitos dos povos e comunidades tradicionais de terreiro (VELECI, 2017).

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Em relação aos pentecostais, segundo Silva (2007) começou uma transformação na década de 1970 e que vem crescendo rapidamente até os dias de hoje: a ascensão do neopentecostalismo no país e a perseguição pregada por este dogma contra as religiões afro-brasileiras. O pentecos-talismo se distingue dos demais segmentos religiosos cristãos pela ênfa-se do dom da cura divina, pelas estratégias de proselitismo e conversão em massa, o sectarismo e o ascetismo. Esse segmento religioso disputa o mesmo mercado religioso que as religiões de matriz africana, popula-ções de baixo nível socioeconômico que buscam experiência vivida no próprio corpo. Ao contrário dos católicos, estes reconhecem a existência das divindades afro-brasileiras, mas os classificam como demônio e por tanto pregam que os povos de terreiro precisam ser salvos e convertidos ao neopentecostalismo. Possuem também um grande poder de mídia para essa pregação, além de poder institucional nos três poderes.

O (AUTO)RECONHECIMENTO

Em novembro de 1995, em Brasília, foi realizada a Marcha “Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida” que reuniu cerca de 30 mil pessoas. Essa mobilização propiciou a articulação de projetos institucionais, voltados para os direitos culturais, econômicos e sociais da população negra brasileira. Em 2001, ocorreu outro momento impor-tante, à participação dos movimentos sociais e do Governo Brasileiro na 3º Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na cidade de Durban, África do Sul. O Plano de Ação aprovado em Durban fortaleceu o processo político para a criação, em 2003, da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), que era um órgão que possuía status de Minis-tério da Presidência da República.

Mas o Estado não poderia construir uma política pública direciona-da, nos moldes construídos, pela Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, a uma religião, porque há uma “armadilha” do Estado laico, que permite a defesa das liberdades de culto e religião, mas que não

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pode haver nenhuma interferência estatal e que Estado não pode pro-fessar nenhuma fé, nem contribuir ou interferir em nenhuma religião ou manter com elas ou suas representantes relações de dependência ou aliança (art.19, inciso I).

Diante dessa problemática e das dificuldades de usufruir dos direitos como religiões, devido o reconhecimento tardio e o racismo institucio-nal dos aplicadores das leis, os povos de santo começam a lutar por direi-tos culturais, para além da luta dos direitos religiosos.

Em 1984 é conquistado o primeiro tombamento5 de um monumento negro no Brasil, o do terreiro Ile Iyá Nassô Oká, conhecido como Casa Branca do Engenho Velho, no estado da Bahia. O terreiro sofria na época ameaça de desmembramento da área pelo proprietário legal, o senhor Hermógenes Príncipe, devido à valorização das terras no entorno da Avenida Vasco da Gama. Isso incentivou a comunidade do terreiro a ini-ciar uma luta pela proteção legal da integridade do seu espaço sagrado. Com o apoio do Projeto MAMNBA,6 após várias tentativas de proteção, optaram pelo pedido inédito de proteção na Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional(SPHAN) que viria a culminar com o tom-bamento. (OLIVEIRA, 2016, p. 51-52)

Oliveira (2016) chama a atenção para a grande controvérsia ocorrida dentro do Conselho Consultivo da SPHAN devido o não reconhecimento da arquitetura do terreiro por parte dos conselheiros que consideravam que não havia riqueza arquitetônica e artística que justificasse tal prote-ção, pois até então, tal valoração de riqueza era atribuída exclusivamente à cultura luso-brasileira.

5 O tombamento consiste numa ação institucionalizada que reconhece o valor cultural des-sas religiões na história brasileira.

6 Projeto de Mapeamento de Sítios e Monumentos Religiosos Negros da Bahia (MAMNBA), proposta pelo antropólogo Ordep Serra e pelo arquiteto Orlando Ribeiro de Oliveira, que resultou em um convênio assinado entre a Fundação Nacional Pró-Memória, a Prefeitura Municipal do Salvador e a Fundação Cultural do Estado da Bahia, em 1981. (OLIVEIRA, 2016, p. 51)

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O tombamento é uma estratégia de proteção que valoriza a questão Cultural para além das religiosas, mas que é extremamente limitada de-vido aos processos burocráticos7 e a aplicação apenas aos terreiros mais antigos, não podendo beneficiar todos os povos de terreiro que precisam da mesma proteção. Marins (2016, p. 23-24) destaca que até 2015 ne-nhum terreiro fora do Nordeste foi tombado e os que foram tombados, são todos vinculados ao Candomblé da nação jejê-nagô, com a exceção do terreiro Bate-Folha Manso Banduquenqué, que é do Candomblé de An-gola. Os terreiros reconhecidos como patrimônios históricos no Brasil são: Casa Branca do Engenho Velho (Ilê Axé Iyá Nassô Oká, 1986), Axé Opô Afonjá (2000), Bate-Folha Manso Banduquenqué (2005), Gantois (Ilê Iyá Omim Axé Yiamasséo, 2005), Alaketo (Ilê Maroiá Láji, 2008), Ilê Axé Oxumaré (2014), Ile Agboulá (2015), Seja Hundê (2015), todos localizados em Salvador, e a Casa das Minas Jêje (2005), em São Luís. (MARINS, 2016)

Perante o conhecimento das vantagens dos direitos culturais, mas identificado o problema do tombamento, os movimentos afro-religiosos juntamente com/e dentro do movimento negro, articularam a estraté-gia de identificar as religiões afro-brasileiras como povos tradicionais e comunidades tradicionais de matriz africana, afinal, estes passaram durantes décadas por “[...] processos paulatinos de destruição dos ter-

7 Para se conseguir que um terreiro seja tombado existe uma demanda de recursos financei-ros e técnicos e que a maioria dos templos não tem a seu dispor. É necessário que a comu-nidade apresente: ao IPHAN um dossiê de documentos, encabeçado normalmente por um laudo antropológico escrito por um especialista reconhecido, que irá atestar o mérito do valor Cultural do bem em questão. Para tal é necessário realizar uma pesquisa aprofundada sobre o bem, sendo necessária uma equipe técnica qualificada e recursos financeiros que permitam recolher e analisar fontes orais e documentais, em arquivos públicos e privados. Esse dossiê será composto também por plantas arquitetônicas e altimétricas, levantamen-tos etnobotânicos, catálogos de documentos e fotografias, além de um estudo jurídico sobre a situação fundiária da propriedade, na qual o bem cultural está localizado. Quando uma comunidade não dispõe de recursos técnicos e financeiros para produzir estes documentos, ela poderá ter sérias dificuldades para instruir um processo de tombamento que cumpra com as exigências da Portaria nº11/1986, assim como dificuldades no acompanhamento da burocracia decorrente do processo, colocando em risco o tombamento, caso não responda adequadamente às solicitações feitas pelo IPHAN. (OLIVEIRA, 2016, p. 69)

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ritórios, de ‘intolerância religiosa’ e de racismo” (GUIMARÃES, 2014, p. 28), e principalmente porque compreenderam que:

[...] a discriminação em relação a esses povos ultrapassa a di-mensão estritamente religiosa, pois a herança sociocultural brasileira que discriminou e perseguiu (e, ainda, persegue) tais povos, tem como leitmotiv o fato de suas práticas estarem ligadas aos valores africanos, à ‘raça’ negra. (GUIMARÃES, 2014, p. 29)

A estratégia de adição conceitual consiste em transferir a luta por di-reitos para o eixo da cultura, ganhando proteção constitucional do art. 215 e consequentemente dando a abertura à possibilidade de implemen-tação de políticas públicas diferenciadas para os terreiros.

Em 27 de dezembro de 2004 é criada por Decreto, a Comissão Nacio-nal de Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais e em 7 de fevereiro de 2007, foi instituído o Decreto nº 6.040 que definia os princípios, objetivos e os instrumentos de implementação da Políti-ca Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais pelo Decreto nº 6.040. Em seu art. 3º, inciso I, é dada a defi-nição de povos e comunidades tradicionais como:

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como con-dição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (BRASIL, 2007)

Aproveitando-se dessa abertura conceitual de povos tradicionais, os movi-mentos afro-religiosos e a SEPPIR trabalharam conjuntamente e em janei-ro de 2013 lançaram o I Plano Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana (2013-2015).

A proposta do I Plano é enfrentar o racismo institucional de “[...] desvalorização da identidade, opondo-se ao direito de cada indivíduo a viver segundo um enraizamento comunitário” (FERREIRA, 2000 apud

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GUIMARÃES, 2014, p. 29) e propor então a valorização da identidade destes povos,

[...] com políticas públicas específicas tanto para a valoriza-ção das suas práticas tradicionais, como formas de fortale-cimento institucional destas comunidades, quanto para que possam ser respeitados na sociedade brasileira, e vistos como povos dignos de igual respeito. (GUIMARÃES, 2014, p 29)

Mais do que valorizar, o I Plano é uma política que reconhece o direi-to à identidade destes povos. Segundo Guimarães (2014, p. 34), durante o diálogo do Estado com as principais lideranças das matrizes africanas para construção do Plano, que essa mudança conceitual poderia melhor reconhecer as suas identidades, isto porque tratar as contribuições destes:

[...] para a complexa identidade nacional brasileira apenas como religião equivaleria a limitar não somente o seu legado, mas, efetivamente, a reduzir o que eles realmente são, tendo em vista que são muito mais do que uma relação com o sagra-do. E, ainda, a perseguição por eles sofrida não revela apenas ‘intolerância religiosa’, mas associa-se a uma visão precon-ceituosa intimamente vinculada à questão racial.

Nascimento (2016) nos explica que as religiões afro-brasileiras não organizam sua cosmologia em ideias de modo binário opositor (bem/mal) e isso se transfere para a noção de mundo. O mundo não é dividido entre Orun (onde vivem os orixás) e Aiyê (onde estamos), mas sim são “aspectos contíguos, partes do mesmo mundo” que são representados na crença como uma cabaça. (NASCIMENTO, 2016, p. 159) Como não há esta dualidade entre “céu” e “terra”, também não há entre corpo/espírito e nem entre profano/sagrado. Devido essa ausência de binarismo, Nasci-mento (2016) diz que alguns autores acham problemático considerar as religiões afro-brasileiras como religiões, pois não há nada para religare. Mas Nascimento (2016, p. 161) explica que este é apenas um sentido re-ducionista de religião, e que as religiões afro-brasileiras podem não ter a necessidade de religar as pessoas com as entidades, até porque as en-

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tidades afro-brasileiras são a própria natureza, mas estas religam “[...] pessoas a contextos indenitários que foram rompidos pelos processos es-cravagistas/coloniais, uma religação com a memória ancestral, com uma história partida”.

Essa noção de religar a África se aplica tanto para uma nova aborda-gem de religião como para enquadrar estas religiões como um povo que preserva uma cultura distinta da hegemônica, como defende Nascimen-to (2016, p. 162):

Nesse sentido, existiriam funções de resgate que os candom-blés assumem, construindo estratégias de resistência das Culturas africanas em solos diaspóricos, nos apresentando uma noção política de religião como religare e que torna os candomblés como práticas que reconstroem maneiras de vi-venciar valores, crenças e práticas advindas do continente africano, rearticuladas aqui, com elementos autóctones e que finda por constituir um modo de vida, mais que meramente uma prática espiritual – embora também o seja para os parâ-metros ocidentais que pensam o vivido, histórico, material como apartado daquilo que seria espiritual. Assim, os can-domblés, de modo generoso, oferecem às pessoas brasileiras um modo de viver que possibilite a salvaguarda de conheci-mentos, valores, crenças em um contexto histórico que se esforçou por exterminá-los quando da saída compulsória das pessoas negras do velho continente negro. Por isso, podería-mos pensar os candomblés como uma religião definida como um modo de vida que se mostra como um continuum criativo entre nosso país e alguns lugares do continente africano.

Como exposto, essa adição conceitual ao reconhecimento das iden-tidades das religiões afro-brasileiras trouxe mais garantias de direitos, mas estes podem ser revogados com uma mudança do governo, pois a conquista desses direitos veio de uma política de governo e não de uma política de Estado. O Deputado Federal, Luiz Alberto tentou transformar o Decreto nº 6040/07 em política de Estado apresentando o Projeto de Lei (PL) nº 7.447/10 que estabelece as diretrizes e objetivos para políticas públicas de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tra-

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dicionais, mas o projeto acabou sendo arquivado devido o fim da legisla-tura na qual foi apresentado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Resumidamente, a história das religiões afro-brasileiras é marcada, des-de o seu surgimento, pela constante resistência ao racismo e ao eurocen-trismo. Elas foram ignoradas pelos três poderes que não reconheciam seu status de religião, perseguidas pela igreja católica ao longo de quatro séculos; pelo Estado através de órgãos de repressão policial e de serviços de controle social; e pela sociedade em si, que foi educada dentro da cos-movisão ocidental cristã.

Quando essas, finalmente, conquistaram um relativo reconhecimento jurídico, esse não foi aplicado corretamente devido ao racismo institucio-nal e estrutural já impregnado na sociedade, depois de anos de apagamen-to dessas crenças, forçando-as a mudar sua estratégia de lutas por direitos, passando para uma dupla cobrança de direitos: os direitos religiosos e os direitos Culturais como povos e comunidades de matriz africana.

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Múltiplos saberes da diversidade em rede: conexões interculturais no debate da inclusão digital na perspectiva dos povos da floresta

Ricardo Damasceno Moura

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, questões como a democratização do acesso às Tecnolo-gias de Informação e Comunicação (TIC), tendo a internet como principal ferramenta, introduziram reflexões importantes a cerca de novos referen-ciais sobre o reconhecimento das populações tradicionais da Amazônia.

O propósito deste trabalho é trazer alguma contribuição não apenas para as discussões que estão sendo travadas sobre a exclusão digital, mas, sobretudo, para as discussões cadentes que buscam uma inclusão específica e diferenciada em se tratando de populações tradicionais da Amazônia. Nesse sentido, a democratização das tecnologias digitais deve contemplar as inter-relações que coexistem na Amazônia, incluin-do a análise dos determinantes do processo, o papel dos atores envolvi-dos e os deslocamentos atuais do conceito de inclusão digital.

Tomando-se como referência antropológica os aspectos regionais e culturais de cada comunidade, observam-se o aumento do poder das ações

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alternativas de inclusão intercultural/digital e o surgimento de um per-fil de desenvolvimento, com ênfase na sustentabilidade socioambiental. Pensamos que as reflexões sobre as práticas sociais em um contexto que resultou em “inclusão” marginal e perversa envolvem uma neces-sária articulação com entidades que têm hoje um papel importante para a implementação de projetos e ações voltados à geração de traba-lho e renda.

Vale ressaltar que criar um modelo democrático e participativo do que se passou a denominar de inclusão digital não é tarefa trivial, pois apresen-ta a possibilidade de analisar as transformações de culturas tradicionais sob o novo sistema eletrônico de comunicação, resultante de novas TIC.

Como em nenhum outro momento, as discussões sobre inclusão di-gital trouxeram para o âmbito acadêmico os mais diversos conceitos. Mas, ao se conceituar inclusão digital, não atentamos para se as defini-ções são aquelas desejadas pelas populações tradicionais. Considera-se que as populações tradicionais devem ter o que dizer a respeito de como deveria ser a inclusão digital, uma inclusão capaz de levar à experiência de inclusão social, abrindo caminho para que os amazônidas ditem os rumos que querem dar ao seu futuro e ao do seu território.

Em meio à simbologia do espaço de vivência dessas populações, constroem-se os espaços da educação bilíngue e diferenciada como di-reito e política.

Essa educação, que é multidisciplinar e busca dimensionar o conhe-cimento das relações étnico-raciais na educação escolar indígena, favo-rece, principalmente, a compreensão da diversidade cultural a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais para a Educação Básica (BRA-SIL, 1997, p. 6), com uma proposta que se aproxima de

conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocul-tural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros povos e nações, posicionando-se contra qualquer discrimi-nação baseada em diferenças culturais, de classe social, de crenças, de sexo, de etnia ou outras características indivi-duais e sociais.

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Nesse ínterim, a nova cibercultural1 vai se configurando, exige que se amplie uma cultura de mobilização para a criação de estratégias sociais/educacionais de qualidade nas diversas comunidades tradicionais. É um contexto em que a definição do que é inclusão tem seu ritmo estabelecido pelo avanço da consciência coletiva como prática da conquista da cida-dania brasileira.

Refletir sobre a complexidade do processo de inclusão digital abre a oportunidade para compreender as dificuldades que surgem especial-mente para antropólogos/as, etnólogos/as e pedagogos/as que discutem a valorização dos saberes tradicionais.

Interessa-nos aqui que a inclusão digital/intercultural esteja presente no crescimento das mídias indígenas, ampliando a possibilidade do empo-deramento das questões nos aspectos ambientais, sociais e educacionais.

Refletir sobre a inclusão digital de forma diferenciada é abrir novos campos para a construção de outras cidadanias, que se fazem presentes a partir da Tecnologia da Informação (TI), da defesa dos direitos indíge-nas e do intercâmbio de informações entrelaçadas nas redes.

O debate sobre a inclusão digital não tem a escola como único lócus de conhecimento, porém, está nas universidades, nas organizações não governamentais e nas discussões de cientistas da educação sobre os im-pactos da sociedade em rede e suas relações com os saberes tradicionais.

Nesse cenário, as críticas às políticas de inclusão social reaparecem, são vistas como políticas universalistas, sem levar em consideração que a inclusão digital de populações vulneráveis não é um problema comum, pois demanda políticas específicas e macrossociais, ocasionando, dessa forma, um processo de inclusão digital que dá pouca importância para a estrutura das comunidades da Amazônia.

1 Cibercultura é um termo utilizado na definição dos agenciamentos sociais das comunida-des no espaço eletrônico virtual. Essas comunidades estão ampliando e popularizando a utilização da internet e de outras tecnologias de comunicação, possibilitando assim maior aproximação entre as pessoas de todo o mundo.

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O ponto chave para a inclusão social é a diversidade, mas, infelizmen-te, os programas de inclusão digital são incapazes de partilhar e acolher alternâncias para a efetivação de políticas de diversidade.

Interessa-nos aqui buscar outra visão da inclusão digital com ritmos diversos, com uma efetiva mudança em seus modelos de estruturação di-tados pelas políticas públicas, não sendo para as populações ribeirinhas da Amazônia um caminho de adaptação às exigências de inserção na aldeia global, mas sim transformações no caráter de incluir os sujeitos, vinculando-os a um compromisso de inclusão social.

Este trabalho está dividido em três caminhos.O primeiro consiste em uma introdução. O segundo aprofunda a dis-

cussão a respeito de uma nova inclusão digital; abordaremos o espaço da cibercultura e a sua relação com a etnologia2 como ciência da pluralidade humana, com vistas à compreensão das possibilidades de inclusão de po-vos e comunidades da Amazônia – de se disseminarem em redes –, pro-piciando interação digital entre culturas/saberes. O terceiro traz a dis-cussão a respeito de uma inclusão digital/intercultural; uma concepção de inclusão digital respaldada na diversidade e nas relações concretas entre os povos da floresta, em oposição aos programas de inclusão digital que desconsideram os anseios e interesses das populações da Amazônia.

Se conseguirmos, ao menos, fornecer subsídios a mais para a refle-xão da inclusão digital na Amazônia, acreditaremos ter atingido os obje-tivos a que nos propusemos.

INCLUSÃO DIGITAL E A BUSCA POR UM ACESSO TECNOLÓGICO RESPALDADO NOS REAIS INTERESSES DOS POVOS DA AMAZÔNIA

Um problema sempre suscitado quando se inicia um trabalho sobre in-clusão digital é o da constante afirmação no campo acadêmico de que

2 Etnologia é o estudo (ou ciência que estuda) dos fatos e documentos levantados pela etno-grafia no âmbito da antropologia cultural e social, buscando uma apreciação analítica e comparativa das culturas.

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esse processo peca por não ter incorporado os direitos humanos, sociais e históricos de povos minoritários, omitindo os elementos de promoção de uma inclusão digital específica e diferenciada.

Tal problemática conduz à reflexão que, de fato, as conclusões sobre o que é inclusão digital não têm nenhum valor, pois se constituem em conceitos e práticas desvinculados dos reais interesses de populações ribeirinhas e tradicionais da Amazônia.

Nesse contexto, as populações tradicionais ainda têm pouca presença. Temos um ciberespaço de cerceamento da diversidade cultural e invisi-bilizador das culturas e cosmologias indígenas e de matriz africana; um espaço de formação e informação que não foi absorvido pelos conceitos de inclusão, a qual se encontra, meramente, no plano intelectual.

O que dificulta a inclusão do acesso de índios na cibercultura é a:

[...] divulgação do consenso de que os índios não são produto-res, porém assistidos, noção que sustentou o modelo de desen-volvimento após 64 implantado no Brasil, que até hoje ainda influencia programas sociais, através de um conteúdo ideoló-gico que desconsidera a diversidade Cultural das populações indígenas, caboclas e negras, entendendo-as como Culturas pobres, e portanto, sem prioridade. (ASSIS, 2006, p. 36)

A apropriação digital por meio de uma etnologia na ciberCultura, apoiada na Tecnologia Social (TS),3 traz um novo conceito de diversida-de, de etnodesenvolvimento e de Cultura como repertório de práticas e reconhecimento da condição básica dos povos tradicionais.

A necessidade de abordar o tema do acesso às Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) pelos povos e pelas comunida-des tradicionais da Amazônia decorre da percepção sobre o incipiente processo de reflexão acerca das práticas de democratização digital e das múltiplas possibilidades de, ao pensar a realidade plural da Amazônia,

3 Considera-se tecnologia social todo o produto, método, processo ou técnica criado para so-lucionar algum tipo de problema social e que atenda aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil aplicabilidade (e reaplicabilidade) e impacto social comprovado.

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defini- la como intercultural/digital em um espaço em que se articulam natureza, técnica e cultura.

Necessário se faz, portanto, efetivamente incluí-las, mas uma inclu-são que evidencie as possibilidades, potencialidades e vantagens que as TIC trazem para a diversidade cultural e para a emancipação das subje-tividades e dos saberes.

A diversidade cultural tem a capacidade de “reinventar” um mundo rico e variado, que aumenta a gama de possibilidades e nutre as capaci-dades e os valores humanos, constituindo, assim, um dos principais mo-tores do desenvolvimento sustentável das comunidades, dos povos e das nações.4 (UNESCO, 2007)

Fica evidente que, dependendo do lugar, da organização social e da pedagogia própria de determinada população, diferentes serão as res-postas para as políticas públicas de inclusão digital, demandando pro-postas de inclusão(ões) digital(is) diferenciada(s).

Há séculos se entende a Amazônia como um “circuito inferior”, como territórios improdutivos, o que confirma que, quando o assunto é Ama-zônia, o grande destaque nos noticiários nacionais e internacionais vai para os alarmes referentes à situação de pobreza. Mas, ao contrário do que se supõe nos municípios encobertos pela floresta, temos territórios com potencialidades, força, capacidade e competência. Isso impõe um duplo desafio para as ciências tecnológicas e sociais. Por um lado, viabi-lizar o entendimento de que a tecnologia transforma a realidade social (mesmo diante da imprecisão do conceito de inclusão digital); por outro, criar a capacidade de geração de riqueza adaptada aos fenômenos cultu-rais apresentados pelas comunidades tradicionais.

Diante das necessidades de um mundo cada vez mais globalizado, vemos que outra proposta de inclusão digital, quando apropriada pelos povos indígenas e direcionada para atender às suas necessidades atuais, pode ser um instrumento de fortalecimento das Culturas e identida-

4 Diversidade Cultural, citado na Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões culturais.

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des indígenas e um possível canal de conquista da desejada cidadania. A perspectiva de trabalho de combate à exclusão social, a priori, tem que prever níveis de proteção que garantam o exercício da cidadania, possi-bilitando a autonomia de vida dos povos da floresta.

Ainda existe no Brasil a ideia errônea de inclusão digital como “mo-dismo”, apoiada em ações isoladas e superficiais que trabalham na er-radicação da barreira digital, resultando, dessa forma, em um distan-ciamento de ações pedagógicas que envolvem toda a comunidade. Outra proposta de inclusão digital que se defende neste trabalho visa o fortale-cimento da sociedade civil, está menos em nível de política e relaciona-se com a prática do aprender, do ensinar e de promover mudanças juntos.

Essa inclusão social vista pelas populações da Amazônia é algo eman-cipador, não inviabilizando, dessa forma, a manutenção de sua(s) alteri-dade(s), suas tecnologias e inovações. Cada comunidade torna-se capaz de desenvolver estratégias próprias de comunicação sociocultural em rede e usufruir de bens culturais, sociais, tecnológicos e econômicos.

Para o trabalho com os povos e as comunidades tradicionais, trata-se menos de oferecer um pacote fechado de conhecimentos e mais de co-locar a educação a serviço de uma comunidade que moldará o universo de conhecimento, de acordo com suas necessidades, seus momentos e a dinâmica concreta de seu desenvolvimento sustentável e coletivo.

A proposta educativa de Educação Escolar Indígena deverá ir além da educação multicultural. Seu principal desafio é articular-se com a TI,5 propiciando o acesso a instrumentos tecnológicos, desde a aula conven-cional até os sistemas baratos e modernos de TV comunitária. As Novas Tecnologias de Informação e Comunicação (NTIC) podem ser utilizadas em uma concepção pedagógica em que o educador é mais um “parteiro” do potencial local do que propriamente fonte de saber.

5 É a área de conhecimento responsável por criar, administrar e manter a gestão da informa-ção por meio de dispositivos e equipamentos para acesso, operação e armazenamento dos dados, de forma a gerar informações para a tomada de decisão.

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Nas aldeias, novos movimentos surgem para defender as causas in-dígenas, os direitos humanos e a preservação ambiental: transformam a internet em uma ferramenta essencial para disseminar informações, organizar e mobilizar. As novas tecnologias alteram a natureza da comu-nidade em prol do coletivo.

No Brasil, o termo inclusão digital é muito recente e desconhecido para grande parte dos brasileiros que ocupam os espaços longínquos da Amazônia. Há um desconhecimento tanto em termos de concepção quanto em suas múltiplas formas de implementação.

Atualmente, o processo de inclusão digital pode ser definido como:

[...] um conjunto de políticas públicas que está relacionada à aprendizagem necessária ao indivíduo para circular e intera-gir no mundo das mídias digitais, como consumidor e como produtor de seus conteúdos e processos. Assim, estabelece- se uma relação intrínseca entre acesso/uso. É a partir do uso que as pessoas fazem das informações que se podem distinguir níveis ou tipos de inclusão digital. (BAVA, 2004, p. 40)

A discussão sobre a inclusão digital tem girado, basicamente, em torno de um de seus pilares, que é o acesso à utilização de equipamento, programas de computador e navegação. No entanto, as ações de demo-cratização das tecnologias digitais vão mais além. Sinalizam para dois objetivos fundamentais: um, de caráter de equiparação de oportunida-des e de acesso; outro, de caráter formativo – relacionado à aprendiza-gem necessária para que atores e sujeitos sociais possam interagir no mundo das mídias digitais.

A educação para a multiculturalidade desenvolve competências e ha-bilidades que permitam articular os diversos espaços de diversidades e conhecimentos por onde trafegam simbologias, saberes e culturas.

Contudo, não se vê uma sinalização do poder público no envolvi-mento das populações tradicionais no processo de apropriação das tecnologias; não se veem indígenas tecnólogos para a aplicação social de novas tecnologias em suas comunidades. Não se desenvolvem na

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Amazônia tecnologias associadas a saberes e conhecimentos sobre o meio ambiente.

Existe, portanto, pouco empenho das universidades no sentido da formação de pesquisadores indígenas, pois isso exige não somente a aplicação de novas tecnologias, mas a apropriação e ressignificação tec-nológica em termos de empoderamento de povos vulnerabilizados.

Atualmente, o que se vê é que a exclusão social se dá já pela forma como as tecnologias digitais são pensadas e exercidas na academia: fica sempre na contramão da democratização, sem a necessidade de ser con-solidada em diferentes espaços. Contudo, a universidade ainda se cons-titui em um espaço pouco democrático para o amplo acesso digital, pois, mesmo os conhecimentos nativos, quando transformados em uma lin-guagem científica, acabam se tornando incompreensíveis para as popu-lações tradicionais.

A exclusão se dá duplamente, pois a linguagem científica acaba por borrar o acesso ao conhecimento científico e local; além disso, os proble-mas e dilemas enfrentados pela população da Amazônia não são reco-nhecidos como temas legítimos para a academia. Desse modo, não chega a se constituir uma comunidade científica forte e organizada em torno da pesquisa de soluções para os problemas das populações tradicionais. E, quando soluções são encontradas, elas não logram ser distribuídas de modo a causar um impacto significativo para a melhoria da qualidade de vida da população.

A instrumentalização tecnológica a partir das TIC não é apenas um direito: é também uma necessidade de povos e comunidades tradicionais da Amazônia e também um desejo da sociedade brasileira, na medida em que os povos indígenas administram hoje mais de 13% do território na-cional, sendo que na Amazônia legal esse percentual sobe para 23%. Não se trata apenas de garantir o acesso, mas de dar condições de inclusão digital plena e diferenciada para que possam “trazer para a rede” seus anseios cadentes por políticas públicas de diversidade, possibilitando reconfigurações da inclusão na perspectiva dos excluídos.

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INCLUSÃO INTERCULTURAL/DIGITAL

O conceito de inclusão intercultural/digital aplicado à inserção tecnoló-gica na Amazônia demanda cada vez mais novos enfoques, que transcen-dem a mera aplicação dos conhecimentos científicos e tecnológicos dis-poníveis para as comunidades. Esse novo conceito se consubstancia na possibilidade de lidar com conexões entre diferentes etnias, propiciando entrelaçamentos em rede e compartilhamentos entre múltiplos saberes.

Considerando que o escopo da inclusão digital exige a atenção de to-dos os setores, a nova inclusão intercultural/digital visa um aprendizado de que ainda carecemos: encontrar meios criativos, de forma pública e democrática, para um processo diferenciado e sustentável de inclusão digital que alcance a todas as dimensões culturais de povos e comunida-des da Amazônia.

Existem debates contrários a essa inclusão, que impedem ou dificul-tam uma discussão profunda sobre o processo de inclusão digital especí-fico para grupos étnicos e com menos chances de serem incluídos digi-talmente; mais do que isso, há debates que inibem ou tentam impedir a implementação de políticas públicas com base na diversidade.

Na Amazônia, temos uma grande lacuna de TI, sobretudo, nos ter-ritórios indígenas, mas ainda porque em diferentes instâncias políti-cas e institucionais do Brasil contemporâneo se perpetua uma atitude colonialista em relação aos povos indígenas e permanecem compreen-sões de invisibilidade e redutoras do índio, imagens estereotipadas que necessitam de profunda crítica e ruptura. Para Gates (1995, p. 50) essa situação se agrava “se não temos um sólido campo de discussão de como essa inclusão digital pode ser realizada”. No entanto, a viabilidade de um trabalho efetivo requer um conhecimento preciso dos povos e das comu-nidades que habitam esse território imerso na floresta.

Negligenciar a inclusão de múltiplas etnias ao acesso às TIC é desti-tuí-las de sua condição de sujeitos, aprofundando a desigualdade e impe-dindo que atores sociais se estruturem e se organizem, originando novas formas de resistência coletiva contra a opressão.

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Os “excluídos da floresta” não são apenas rejeitados física, geográfica ou materialmente, mas também o são por todas as riquezas de seus valo-res que não são reconhecidos, ou seja, há também uma exclusão cultural.

Daí a necessidade de uma inclusão intercultural/digital, um saber ainda em construção, que demanda empenho para fortalecer a garantia do acesso às tecnologias por meio da consolidação de canais abertos à participação de uma pluralidade de atores em processos decisórios de interesse público.

A ETNOLOGIA NA CIBERCULTURA

A inserção de novas tecnologias nas comunidades tradicionais da Ama-zônia é um fenômeno recente e envolve relações entre coletividades dis-tintas, com formas específicas de apropriação das TIC. Isso nos remete a pensar em uma etnologia na cibercultura, que não trate tão somente da cultura material dos povos, mas, sobretudo, que estimule a interação entre grupos culturais nos ambientes digitais.

Erny (1982, p. 17) faz incursões por esse campo da etnologia ao afir-mar que “[...] quando se ensina etnologia, nota-se, entretanto, que por vezes é difícil responder o que é efetivamente etnologia. Uma ciência não se define somente pelo assunto a que se dedica, mas também o ângu-lo em que o aborda e pretende trabalhar”.

A etnologia da Amazônia presta-se particularmente bem a uma refle-xão sobre culturas e grupos sociais com sua forma própria/específica de apropriação das TIC e inclusão de comunidades amazônicas na aldeia/di-gital/global: ela se interessa prioritariamente pelo que é diferente, privi-legia o contato com a realidade humana, pretende levar a investigação até o nível inconsciente da vida social, sempre perseguiu um ideal de aproxi-mação total, procura apreender as culturas tais como as percebem aqueles que são delas portadores e atinge logicamente a comparação. (ERNY, 1982)

Para uma análise das populações tradicionais da Amazônia, a etno-logia pode fornecer matéria para uma antropologia social ou cultural, ou mesmo filosófica, mais geral, indo além das diversidades das culturas,

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mas apoiando-se nela, na procura de aprofundar uma análise crítica, to-mando-se por objeto culturas específicas em toda sua extensão.

Nessa perspectiva, segundo Bauman (2005), para que haja de fato uma apropriação tecnológica ressignificante de povos tradicionais, ela deve ser implementada dentro de critérios que não neguem as suas raí-zes e nem as suas histórias. Uma inclusão capaz de trazer esses povos para a problemática de suas populações, propondo diálogos intercultu-rais em rede sobre as preocupações convergentes da comunidade.

As etnias do Brasil nos programas sociais não foram consideradas uma prioridade, o que levou indígenas e ribeirinhos a se organizarem em asso-ciações para demandar a sua participação ou inclusão nas políticas de com-bate à exclusão digital. Por que justamente as populações tradicionais não seriam incluídas? Por que teriam que ficar à margem do processo tecnoló-gico? Segundo Lévy (1999, p. 20), a inclusão digital traz consigo o problema da questão da exclusão. Para ele, o crescimento do ciberespaço provoca uma exclusão social: “A cibercultura provoca exclusões? É evidentemente uma pergunta central em uma sociedade mundial na qual a exclusão (ou seja, a forma contemporânea, de injustiça social) é uma das principais doenças”.

Na sociedade em rede, tudo se interconecta: as pessoas, os espaços, as tecnologias. Surowiecki (2006) identifica esse processo como sabe-doria das multidões, pois grupos diferentes conectados compartilham informações e resultados. Já Lévy (1998) fala em inteligência coletiva: é uma inteligência que, distribuída por toda parte, incessantemente valo-rizada e coordenada em tempo real, resulta em uma mobilização efetiva de grupos e movimentos que buscam não somente uma satisfação, mas o reconhecimento de suas culturas, identidades e aspirações.

É nesse contexto que a etnologia como ciência da diversidade e do particularismo torna-se imprescindível para nos dar a ideia do processo de inserção tecnológica de populações tradicionais da Amazônia a par-tir de uma inclusão intercultural/digital que surja no âmbito dos espaços indígenas e quilombolas, dos temas que nascem da diversidade e das in-quietudes dos povos da floresta.

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Destarte, é preciso considerar que as populações da Amazônia cons-truíram uma organização baseada em princípios voltados para a conser-vação da natureza, ancestralidade, o uso coletivo da terra e as relações de parentescos, formando assim uma territorialidade diferenciada. Resis-tiram ao longo da história e constituíram organizações representativas de suas categorias, estabelecendo um processo de reivindicação política pautado na visibilidade e no reconhecimento dos direitos.

A democratização do acesso à tecnologia tem sido assumida em di-versos graus pelos governos nacionais de turno, isto é, têm sido até agora medidas públicas ligadas a partidos políticos. Porém, iniciativas da área privada, da sociedade civil, de empresas transnacionais e organismos internacionais já têm criado algumas medidas de inclusão digital.

O atual plano de governo para a inclusão digital precisa conferir im-portância à democratização do acesso às TIC como política pública pau-tada por dois pressupostos: reconhecer que a exclusão digital amplia a miséria e dificulta o desenvolvimento humano eque hoje o direito à co-municação é sinônimo de direito à comunicação mediada por computa-dor, tratando-se, portanto, de uma questão de cidadania.

Os programas de inclusão digital em nenhum instante de sua elabora-ção incluíram em sua pauta a diversidade como fenômeno ou conceito que se estende muito além do acesso. Para Silva e colaboradores (1996), a di-versidade amazônica diz respeito às variedades de grupos, etnias, indiví-duos, condições socioeconômicas, trajetórias sociais, origens geográficas, deslocamentos territoriais, visões de mundo, práticas Culturais, crenças, religiões, etc. Por isso, hoje é grande a dificuldade de se constituir políticas de inclusão digital nas comunidades da Amazônia.

Em meio a programas do governo brasileiro, a inclusão digital surge como medida ou programa pró-acesso/uso. É a marginalização de gran-des camadas da população que, por carecerem das condições mínimas de bem-estar, não têm, pelo geral, um acesso mínimo assegurado às tecnolo-gias de informação, que são elementos-chave para a formação integral do ser humano, no que diz respeito ao acesso e uso das informações. Porém,

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a erradicação da exclusão digital não aparece, nesse cenário, articulada com outras políticas de luta contra as diversas desigualdades sociais.

Para Sawaia e colaboradores (2001), temos uma proposta não de inclusão, mas de inserção social perversa, pois a sociedade exclui para incluir, e essa transmutação é condição da ordem social desigual, o que implica o caráter ilusório da inclusão. Portanto, em lugar da inclusão, o que se tem é a dialética da inclusão/exclusão, principalmente, quando se pensa nas populações tradicionais.

Em síntese, a exclusão é um processo complexo e multifacetado, uma configuração de dimensões materiais, políticas, relacionais e subjetivas. Não é uma coisa ou um estado; é um processo que envolve o homem por inteiro e suas relações com os outros.

De acordo com Foracchi (1982), o conceito de exclusão social é dinâmi-co, referindo-se tanto a processos quanto a situações consequentes. De for-ma mais clara que o conceito de pobreza, compreendido, muito frequente-mente, como se referindo exclusivamente à renda, ele também estabelece a natureza multidimensional dos mecanismos por meio dos quais os indi-víduos e grupos são excluídos das trocas sociais, das práticas componentes e dos direitos de integração social e identidade. Ele, ao mesmo tempo, en-globa os campos de habitação, educação, saúde e acesso a serviços.

Na Amazônia, com relação à situação atual dos povos tradicionais, observa-se que as políticas econômicas acabam por provocar políticas de inclusão precária e marginal.

As reflexões e análises, infelizmente, não se produziram a partir de horizontes necessariamente críticos em relação ao cenário atual dessas comunidades. Entende-se que a compreensão dos ambientes cultural, étnico e social em que serão inseridas é condição necessária para que elas sejam eficazes e se convertam em ferramentas de mediação entre culturas e de transformação das realidades.

O espaço de uma etnologia na cibercultura alerta para as condições entre as possibilidades do reconhecimento do saber tradicional em rede, favorecendo a troca de conhecimentos e a efetiva participação pública

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de populações da Amazônia nas tomadas de decisão em prol da sustenta-bilidade e do meio ambiente.

Assim, a tecnologia provoca mudanças “ecológicas”: ela modifica to-talmente as relações no ambiente em que é introduzida. O fundamental, portanto, é saber em que medida os novos meios/tecnologias alteram a concepção sobre o que é o conhecimento e, no limite, sobre o que é a educação – não uma educação puramente técnica, pensada apenas como treinamento para o uso de equipamentos, mas uma educação que faça da própria tecnologia objeto de interrogação, a fim de que os sujeitos não sejam usados nem abusados por ela. (POSTMAN, 2002)

Consideramos que um primeiro passo nessa direção é reconhecer que a inclusão que se vem realizando hoje termina por negar a diferen-ça ou silenciá-la. Então, propõe-se – por meio de processo específico e diferenciado de inclusão digital – colocar ênfase na diferença e garan-tir, pelo uso da tecnologia, que diferentes identidades e interfaces cultu-rais presentes em um determinado contexto indígena ou quilombola se expressem nos espaços em redes digitais.

Outro elemento importante para a inclusão digital é o processo de empoderamento de direitos, principalmente, orientando os atores so-ciais que, com o advento da globalização, têm menos poder na sociedade da informação e menores possibilidades de influir nas decisões políticas e nos processos coletivos. O empoderamento favorece sua organização e sua participação ativa na sociedade.

Por isso, o processo de inclusão digital é também uma ação afirma-tiva, concebida no sentido de desenvolver estratégias e metodologias de fortalecimento do poder de grupos vulnerabilizados para que eles possam lutar pela igualdade de condições de vida em sociedades mar-cadas por mecanismos estruturais de desigualdade e discriminação.

Outro aspecto fundamental da inclusão digital etnológica é a forma-ção para uma cidadania, capaz de subsidiar os “povos excluídos” a reco-nhecer as assimetrias de poder, trabalhar os conflitos e promover rea-ções solidárias.

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Nessa direção, que efeitos têm hoje as políticas públicas de inclusão digital para o empoderamento de direitos e quais os desafios das popula-ções tradicionais na medida em que elas cobram esforços para a promo-ção de um mundo social mais solidário e reconhecedor da diversidade?

No entanto, defendemos uma perspectiva de democratização das tecnologias, que, por um lado, propõe o acesso aberto, livre e interativo às TIC, de forma a acentuar a interculturalidade, por considerá-la a mais adequada para combater a exclusão digital; por outro lado, uma inclu-são que ofereça um contexto novo e impressionante, em que se reforcem identidades e saberes na internet.1

A inclusão digital em uma perspectiva intercultural objetiva promo-ver uma educação para o reconhecimento do outro, para o diálogo entre os diferentes grupos sociais e culturais. Certamente, tem-se que levar em consideração que cada cultura tem suas raízes e que elas são históri-cas e dinâmicas.

Segundo Walsh (2001, p. 10-11), a interCulturalidade é “[...] um in-tercâmbio que se constrói entre pessoas, conhecimentos, saberes, prá-ticas Culturalmente diferentes, buscando desenvolver um novo sentido entre elas na sua diferença”.

Já Candau (2010, p. 16) reforça que “[...] a interculturalidade orienta processos que têm por base o reconhecimento do direito e a luta contra todas as formas de discriminação e desigualdade social”. De acordo com as pesquisas de Fleuri (2000, p. 91):

[...] a interculturaralidade refere-se a um complexo campo de debate entre as variadas concepções e propostas que enfren-tam a questão da relação entre processos identitários socio-Culturais diferentes, focalizando especificamente a possi-bilidade de respeitar as diferenças e de integrá-las em uma unidade que não as anule.

Repensar a inclusão digital/intercultural põe à frente um grande de-safio de reconhecimento da cultura e fortalecimento dos conhecimen-tos tradicionais. Refere-se ainda à construção de conteúdos digitais e ao

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compartilhamento de saberes a partir de uma perspectiva política. Uma luta por reconhecimentos e direitos à cidadania que se dissemina tam-bém em redes. Os “povos da floresta” participam então dessas redes como populações dinâmicas, com capacidade de compreender e articular tec-nologias, pactuando-as com os interesses comuns de cada grupo étnico.

Para uma inclusão digital diferenciada e específica que restabeleça o respeito às diferenças, ampliando a significação do habitat de popula-ções indígenas, há de se pensar, também, de forma geral, quais são os be-nefícios e as implicações da tecnologia nas relações sociais na Amazônia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de redução da exclusão digital traz novas possibilidades para povos e comunidades tradicionais que foram historicamente objetos passivos de políticas indigenistas assimilacionistas e tutelares, silencia-dos em suas culturas e identidades, mas que agora buscam o reconheci-mento pelas práticas pedagógicas que desenvolvem como sujeitos com cultura e conhecimento.

A inclusão intercultural/digital destinada a segmentos que, por sécu-los, viveram em condição de invisibilidade é também uma forma de ação reparadora, tendo em vista que se desenvolve entre grupos específicos que apresentam menores chances de serem incluídos digitalmente.

Uma das características mais importantes da democratização do acesso às TIC é o desenvolvimento de práticas que ensejam uma trans-formação nos comportamentos e na mentalidade da sociedade, sobre-tudo, das novas gerações que habitam a floresta, dando condições de refletirem sobre as desigualdades inerentes ao processo de inclusão na sociedade do conhecimento.

Algumas etnias começaram a se organizar para serem partícipes da chamada sociedade da informação, porém, em geral, têm tido um papel passivo, sendo receptores de medidas governamentais ou privadas, o que poderia influir na demora para a expansão de programas de inclusão di-gital para eles.

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Para uma efetiva inclusão digital pautada no conceito de diversidade e cidadania, faz-se necessária uma ação formativa, com a participação estadual, municipal e federal, reunindo a sociedade civil, universidades e empresas para a formulação de políticas públicas voltadas à inclusão.

Dentro dessa perspectiva, espera-se que surjam novos debates para que possamos dividir experiências, trazer inéditas contribuições para o desenvolvimento social, além de assegurar uma nova tomada de pensa-mento. Nesse sentido, experiências concretas de apropriação social da TIC impulsionam metodologias em que se constroem os parâmetros, aliando os saberes das comunidades aos conhecimentos técnicos.

REFERÊNCIAS

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In: CANDAU, V. M.; MOREIRA, A. F. (Org.). Multiculturalismo: diferenças culturais e práticas pedagógicas. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. p. 13-37.

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GATES, B. A estrada do futuro. Tradução de Beth Vieira. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 1995.

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POSTMAN, N. O fim da Educação: redefinindo o valor da escola. Rio de Janeiro: Graphia, 2002.

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UNESCO. Convenção sobre a proteção e promoção da diversidade das expressões Culturais. Paris: UNESCO, 2007.

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A vaquejada e o efeito backlash: os dissabores do debate jurídico-legislativo sobre os direitos culturais no Brasil

Luana de Carvalho Silva Gusso Nestor Castilho Gomes Amanda Karolini Burg

OS DIREITOS CULTURAIS EM UMA CONSTITUIÇÃO CULTURAL

O presente texto propõe uma reflexão sobre como a mobilização dos di-reitos culturais pelo debate jurídico-legislativo brasileiro pode desvelar, segundo Michel Foucault, a materialidade dos discursos produzidos por relações de saber e de poder que atravessam, constituem e disputam sua força e sua verdade no atual cenário constitucional brasileiro. Para tan-to, partimos de um estudo de caso, a Ação Direita de Inconstitucionali-dade n.º 4.983/2016 e a Emenda Constitucional n.º 96/2017 que versam sobre o debate em torno da constitucionalidade da vaquejada.

O estudo em questão se mostra pertinente, pois a análise dos discur-sos demandados pela Corte Constitucional, pela sociedade civil – enti-dades de classe –, bem como pelas Assembleias Parlamentares, revela o poder de certas “sociedades de discurso” (FOUCAULT, 2003) em ditar,

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conservar e circunscrever as regras de produção, reprodução e interpre-tação dos direitos culturais, muitas vezes alheios ao compromisso com a diversidade e a democracia cultural. Nesse sentido, a partir de uma lei-tura da teoria constitucional em torno do debate sobre o constituciona-lismo democrático, mobilizamos o efeito backlash – a forte ou violenta reação a uma decisão judicial – como uma chave de leitura importante para analisar os efeitos nos discursos jurídicos, legislativos e sociais da decisão judicial que declarou inconstitucional a vaquejada no país.

Podemos afirmar, sem incorrer em uma generalização inconsequen-te, que o reconhecimento dos direitos culturais no Brasil é um produto histórico de lutas e de emancipações políticas que, no ambiente demo-crático proclamado pela Assembleia Constituinte, fez-se consagrar em diversos dispositivos legais da Constituição Federal de 1988. De fato, a Constituição Federal abriga em vários artigos, cerca de 15, definições e atribuições sobre direitos culturais, de modo que, como aduz José Afon-so da Silva, o legislador constitucional erigiu uma verdadeira “ordena-ção constitucional da cultura”, que pode e deve ser valorizada como vetor importante na realização das promessas constitucionais no país.

Contudo, a constitucionalização da cultura não significou de ime-diato sua efetividade no domínio da vida e da cidadania brasileira. Em virtude da ineficácia, os dispositivos constitucionais apenas “declaram” a intenção de elevar os direitos culturais ao patamar de vetores da digni-dade humana. O atual cenário se edifica na busca pela efetivação destes direitos e, assim como acontece com os direitos à saúde e à educação, um dos caminhos é o da judicialização dos direitos culturais. Entendemos a judicialização como a mobilização de ações judiciais individuais ou cole-tivas buscando a afirmação e a efetivação dos direitos culturais mediante decisões judiciais. O caminho para uma democracia cultural não deixa de ser uma estratégia de luta, mas agora uma luta também transformada em lide beligerante nos tribunais nacionais.

Se entendermos o reconhecimento dos direitos culturais como uma condição necessária para a consolidação de uma efetiva democracia cul-

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tural em nosso país, e que tal reconhecimento também passa pela sua judicialização, torna-se muito pertinente compreender como os direi-tos culturais são discursivamente mobilizados pelas Cortes jurídicas. A análise da decisão sobre a constitucionalidade da vaquejada acrescen-ta e destaca elementos muito significativos que apontam para as estra-tégias de poder implicadas no campo cultural. Dissabores possíveis e necessários em um caminho para a democracia. Vamos aos discursos.

A ANÁLISE DO DISCURSO DO PROCESSO LEGISLATIVO DA EMENDA CONSTITUCIONAL N.º 96/2017 E A VAQUEJADA

Em 6 de outubro de 2016, nos autos da Ação Direta de Inconstituciona-lidade n.º 4.983 (ADI), o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a in-constitucionalidade da Lei n.º 15.299/2013, do estado do Ceará, que regu-lamentava a vaquejada como prática desportiva e cultural, por maioria de votos. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2017) Sob a jus-tificativa de que a obrigação do Estado em garantir a todos o pleno exer-cício de direitos culturais não prescinde da observância do disposto no art. 225, inciso VII, da Constituição Federal – que veda a prática de atos de crueldade contra animais – a decisão, publicada apenas em 27 de abril de 2017, ainda não transitou em julgado (ou seja, ainda não é definitiva).

Como reação à decisão proferida pelo STF, em 19 de outubro de 2016, uma Proposta de Emenda à Constituição n.º 50, de 2016 (Pro-posta de Emenda Constitucional - PEC 50/2016) de autoria do Senador Otto Alencar e outros, foi lida em plenário e encaminhada à Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. A chamada PEC 50/2016 visava acrescer um novo parágrafo ao art. 225 da Constituição Federal, de modo a permitir a realização de manifestações culturais registradas como patrimônio cultural brasileiro que não atentem contra o bem--estar dos animais. Assim, a Emenda Constitucional propôs o seguinte acréscimo à Constituição Federal:

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Art. 1º. O art. 225 da Constituição passa a vigorar acrescido do seguinte § 7º.

‘Art. 225 ......................................................................................................................................................................................................................................

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as manifestações culturais previstas no § 1º do art. 215 e registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural bra-sileiro, desde que regulamentadas em lei específica que asse-gure o bem-estar dos animais envolvidos.’ (NR)

Art. 2º. Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. (BRASIL, 2016, grifo nosso)

A PEC 50/2016 foi proposta sob a justificativa de que a Constituição Federal, ao mesmo tempo em que protege os animais contra a cruelda-de,1 garante também o exercício das manifestações culturais populares.2 Igualmente, teria ainda o condão de encerrar a suposta controvérsia acerca da questão, de modo a deixar claro, no texto constitucional, a per-missão para a prática de uso de animais em manifestações culturais que compõe o patrimônio cultural brasileiro, desde que não submetam os animais à crueldade.

1 Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso co-mum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à cole-tividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: [...] VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. (BRASIL, 1988, grifo nosso)

2 Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fon-tes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais. § 1º O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional. (BRASIL, 1988, grifo nosso)

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Para os signatários da PEC 50/2016, a vaquejada, uma vez regula-mentada de modo a garantir a integridade física e mental dos animais, observaria os preceitos instituídos na Constituição e aplicados pelo STF, quando da declaração de inconstitucionalidade da lei cearense já citada. (BRASIL, 2016)

Em 23 de novembro de 2016, a matéria foi incluída em pauta, com o rece-bimento do Relatório do Senador José Maranhão, com voto favorável à pro-posta e apresentação de uma emenda. De acordo com o relatório legislativo em questão, a PEC 50/2016 deveria prosperar, sob os argumentos de que:

• A PEC visa garantir o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, bem como preservar as ma-nifestações culturais populares;

• a vaquejada e o rodeio constituem referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade bra-sileira, encontrando amparo no art. 216, caput e inciso II, da CF;

• de acordo com o art. 217, inciso IV, da CF, compete ao Estado fo-mentar práticas desportivas formais e não formais;

• a vaquejada e o rodeio possuem regras dispostas em leis e regu-lamentos editados por entidades do ramo, que objetivam preser-var a integridade física do peão, bem como resguardar o bem-es-tar animal e sancionar as irregularidades;

• houve uma evolução no que concerne ao bem-estar animal du-rante as competições, de modo que, quando bem organizada e fiscalizada, a vaquejada tende a promover a cultura local, sem expor os animais a tratamentos cruéis;

• o regulamento da Associação Brasileira de Vaquejada (ABVAQ) veda qualquer tipo de agressão ao animal;

• a vaquejada e o rodeio não podem ser confundidos com manifes-tações culturais cruéis e nocivas aos animais, como a rinha de galo e a farra do boi, que visam a morte ou a mutilação do animal;

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• o pluralismo cultural deve ser garantido, sob pena de retirar da população rural brasileira uma das poucas opções de acesso à cultura e ao lazer; e

• a proibição da vaquejada pode gerar um grande impacto econô-mico nos municípios interioranos das regiões Norte e Nordeste, na medida em que a vaquejada, de acordo com a ABVAQ, movi-menta cerca de R$ 600.000,00 (seiscentos milhões de reais) por ano, gerando mais de 120.000 (cento e vinte mil) empregos di-retos e 600.000 (seiscentos mil) empregos indiretos. (BRASIL. SENADO FEDERAL, 2016c)

No parecer foi sugerida a alteração da redação da proposta (Emenda n.º 1 - Comissão de Constituição e Justiça-CCJ), a fim de tornar claro que as práticas desportivas que utilizam animais (como a vaquejada), se caracterizam como manifestações culturais. Assim, o termo “as mani-festações culturais” foi substituído pela expressão “práticas desportivas que utilizem animais, desde que sejam manifestações culturais”. Nesse sentido, o novo texto sugerido:

Dê-se ao art. 1º da Proposta de Emenda à Constituição nº 50, de 2016, a seguinte redação:

‘Art. 225........................................................................................................................................................................................................................................

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não são cruéis as práticas desportivas que uti-lizem animais, desde que sejam manifestações culturais – conforme § 1º do art. 215 –, registradas como bem de natu-reza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.’ (NR) (BRASIL. SENADO FEDERAL, 2016c, grifo nosso)

A pedido da Senadora Gleisi Hoffmann, foi concedida vista coletiva para a realização de audiência pública, a qual ocorreu em 29 de setembro

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de 2016. A audiência pública contou com a presença de ativistas da causa animal, juízes, veterinários, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), re-presentantes de instituições vinculadas à defesa dos animais e da vaque-jada. O relatório foi aprovado pela CCJ, que passou a constituir parecer favorável à proposta, com observância da alteração decorrente da Emen-da n.º 1 – CCJ. (BRASIL. SENADO FEDERAL, 2016a)

É interessante salientar que, por meio do ofício n.º 852/2016/PRESI/IPHAN juntado à PEC 50/2016, em 5 de dezembro de 2016, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) informou que não reconheceria como constitucional o Projeto de Lei n.º 1.767/2015, que eleva, entre outros, a vaquejada à condição de manifestação cultu-ral nacional e de patrimônio cultural imaterial do Brasil. Para o IPHAN, “a declaração do título ‘Patrimônio Cultural’ é atribuição exclusiva desse Instituto”, não podendo ser declarada por lei. (INSTITUTO DO PATRI-MÔNIO HISTÓRICO E ARTÍSTICO NACIONAL, 2016)

A PEC 50/2016 foi aprovada pelo Plenário do Senado Federal, em 14 de fevereiro de 2017. A proposta foi aprovada em primeiro turno com 55 votos favoráveis, 8 votos contrários e 3 abstenções. Em segundo turno, foram 52 votos favoráveis, 9 votos contrários, 2 abstenções e o voto do presidente.3

Em 16 de fevereiro de 2017, o Deputado Paulo Azi apresentou os Reque-rimentos de Audiência Pública n.º 1/2017 e n.º 2/2017, a fim de ouvir as en-tidades promotoras de rodeios e vaquejadas e criadores de cavalos e demais interessados acerca dos efeitos das vaquejadas. Encaminhada à Comissão Especial, os requerimentos do Deputado Paulo Azi foram aprovados.4

3 A PEC foi remetida à Câmara de Deputados, em observância ao disposto no art. 65, da Constituição Federal. Recebida a PEC 50/2016 pela Câmara de Deputados, sob o regime de tramitação especial, esta foi apensada à PEC 270/2016, recebendo a denominação de PEC 304/2017.

4 Foram ainda apresentados e aprovados os seguintes requerimentos: (i) Apresentação de Requerimento n.º 3/2017, pelo Deputado João Fernando Coutinho, para realização de ins-peção in loco em um torneio de vaquejada no Parque Rufina Borba em Bezerros/PE; (ii) Re-querimento de Audiência Pública n.º 4/2017, pelo Deputado Vicentinho Júnior, a ser reali-zada em Porto Nacional/TO; (iii) Requerimento de Audiência Pública n.º 5, pelo Deputado Domingos Neto, com foco nos impactos sociais e econômicos das vaquejadas.

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A PEC 270/2016, a qual foi apensada à PEC 50/2016, visava acrescen-tar o parágrafo § 4º, ao art. 215, da Constituição Federal, com o fito de preservar rodeios e vaquejadas e expressões artístico-culturais decor-rentes, como patrimônio cultural imaterial brasileiro, assegurada a sua prática como modalidade esportiva, de acordo com a lei.

Art. 1º Esta Emenda Constitucional preserva os rodeios, va-quejadas e expressões artístico-culturais decorrentes, como patrimônio cultural imaterial brasileiro, assegurada a sua prática como modalidade esportiva, na forma da Lei.

Art. 2º A Constituição Federal passa a vigorar com as seguin-tes alterações:

‘Art. 215.........................................................................................................................................................................................................................................

§ 4º Os rodeios e vaquejadas, e expressões artístico-culturais decorrentes, serão preservados como patrimônio cultural imaterial brasileiro.

§ 5º A prática da modalidade esportiva das manifestações da cultura nacional previstas no §4º deste artigo serão assegu-radas, na forma em que dispuser a Lei.

Art. 3º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. (BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. CÂ-MARA DE DEPUTADOS, 2016)

Em 17 de março de 2017, após o apensamento, foi publicada emenda ao texto da PEC 270/2016, apresentada pela Comissão Especial, com vis-tas a incluir a vedação aos maus-tratos contra os animais. In verbis:

EMENDA MODIFICADITIVA Nº 1

Dê-se ao art. 2º da Proposta de Emenda à Constituição a se-guinte redação, no que se refere ao § 5º:

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‘Art. 215. .......................................................................................................................................................................................................................................

§ 5º A prática da modalidade esportiva referentes aos patrimô-nios culturais imateriais previstos no § 4º deste artigo serão asseguradas na forma em que dispuser a lei, resguardando-se os animais contra maus-tratos.’ (NR) (BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA DE DEPUTADOS, 2017a)

Em 6 de abril de 2017, o relator da PEC 304/2017, Deputado Paulo Azi, apresentou o parecer do relator (PRL 1 PEC 304/2017), se posicionan-do no sentido da aprovação do texto da PEC 50/2016 (atualmente PEC 304/2017) e reprovação do texto da PEC 270/2016 (apensada) e da res-pectiva Emenda 1/2017.

Conforme relatado no parecer, a fim de debater a matéria objeto da PEC 304/2017, foram realizadas duas audiências públicas.5 No relatório, o relator sustentou a necessidade de legalização da vaquejada sob as ale-gações de que:

• na vaquejada, a colisão entre o direito à cultura e a vedação aos maus-tratos dos animais é aparente, já que tais eventos, atual-mente, são realizados de modo a garantir o bem-estar dos ani-mais envolvidos;

• conforme disposto em decisões recentes proferidas pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal, a vaquejada não configura maus--tratos contra os animais, tendo natureza recreativa e cultural, nos termos da Lei Federal n.º 13.464/16, que elevou a vaquejada à

5 A primeira, realizada em 8 de março de 2017, contou com a presença dos convidados Vânia de Fátima Plaza Nunes, representante do Fórum Nacional de Defesa e Proteção Animal, Hélio Cordeiro Manso Filho, Professor da Universidade Federal Rural de Pernambuco e Henrique Carvalho de Araújo, Vice-Presidente da Comissão do Bem-Estar Animal da OAB de Alagoas. E a segunda, realizada em 15 de março de 2017, contou com a presença dos con-vidados Daniel L. Costardi, Superintendente Executivo da Associação Brasileira de Cria-dores de Cavalo Quarto de Milha (ABQM); Guilherme Landim, criador e organizador de vaquejadas no Estado do Ceará e de Leonardo Dias de Almeida, Diretor Jurídico da ABVAQ.

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condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cul-tural imaterial;

• a vaquejada constitui prática desportiva;

• a vaquejada e o rodeio são regulados por normas previstas em regulamentos específicos editados por entidades do ramo ou na legislação;

• o regulamento da ABVAQ exige que, em todas as etapas de prepa-ração e apresentação dos animais para competição, o bem-estar animal seja considerado acima de todos os critérios;

• a existência de um “protetor de causa”, que impede que o rabo do boi seja quebrado na prática da vaquejada;

• as competições atuais têm o condão de evocar as práticas cultu-rais e as relações entre homens e animais no pastoreio aberto em tempos passados;

• os estudos científicos demonstram que animais atletas e/ou de trabalho, que competem e/ou trabalham por alguns dias, de-monstram resposta fisiológica adequada ao esforço realizado, desde que submetidos a práticas que respeitem o bem-estar ani-mal durante os treinamentos e/ou competições; e

• a vaquejada possui um expressivo impacto na seara econômica. (BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA DE DEPUTADOS, 2017b)

Para o relator, a redação principal da PEC 304/2017 – texto da PEC 50/2016, do Senado – se mostrava coerente e adequada, ao garantir a harmonização dos princípios constitucionais que amparam o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado – sem a submissão de ani-mais à crueldade – com o direito às manifestações culturais plurais.

Já as redações da PEC 270/2016, apensada à PEC 304, e da Emenda 1/2017, teriam tido seu escopo mitigado em razão da aprovação da Lei

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n.º 13.364/20166 e pelo fato da PEC principal ter como objetivo assegurar o bem-estar dos animais envolvidos – vedação aos maus-tratos.

Contrariando o Parecer do Relator, o Deputado Ricardo Tripoli apre-sentou o Voto em Separado n.º 1 PEC 304/17, manifestando-se no sentido da inadmissibilidade e inconstitucionalidade da PEC 304/2017 e da PEC 270/2016, por violação à cláusula pétrea (art. 60, § 4º, inciso IV c/c art. 225, § 1º, VII, da Constituição). (BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA DE DEPUTADOS, 2017b) Segundo o Deputado Ricardo Tropo-li, as PECs em questão foram apresentadas em razão do inconformismo de alguns parlamentares no que tange à decisão proferida pelo Supre-mo Tribunal Federal, com vistas a dar às manifestações culturais como a vaquejada um status constitucional, de modo a impedir a declaração de inconstitucionalidade destas. O Deputado alegou que:

• a PEC 270/2016 tem como objetivo dar um status constitucional à vaquejada, impondo uma limitação constitucional exterior ao direito ao meio ambiente;

• a PEC 304/2017 visa circunscrever o âmbito de proteção do di-reito ao meio ambiente, impondo uma limitação constitucional interior ao direito ao meio ambiente;

• o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um di-reito fundamental, portanto, cláusula pétrea, não passível de al-terações capazes de atingir seu núcleo essencial;

• a proteção dos animais se consubstancia como núcleo essencial do direito ao meio ambiente;

• o STF possui jurisprudência consolidada no sentido de conside-rar a proteção aos animais como direito fundamental;

6 A Lei n.º 13.364/2016, elevou o rodeio, a vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial. (BRASIL, 2016) Acesso em: 22 set. 2017.

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• a vaquejada é intrinsecamente violenta e cruel com os animais, sendo a referida violência irremediável e não regulamentável; e

• o STF concluiu que o direito ao meio ambiente equilibrado pre-valece sobre o direito à manifestação cultural.

Em 26 de abril de 2017, a Comissão Especial aprovou o Parecer do Rela-tor, contra o voto do Deputado Ricardo Tripoli. Em seguida, o parecer foi encaminhado para publicação.

Em 10 de maio de 2017, em Sessão Deliberativa Extraordinária, após rejeição do pedido do Deputado Alessandro Molon de retirada da maté-ria de pauta, a PEC 304/2017 foi aprovada com 366 votos a favor, 50 vo-tos contrários e 6 abstenções, restando prejudicada a apreciação da PEC 270/2016 e da Emenda n.º 1.

Aprovada em primeiro turno, a matéria retornou à Comissão Especial, para elaboração da redação para o segundo turno de votação. Vejamos:

As Mesas da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, nos termos do §3º do art. 6º da Constituição Federal, promulgam a seguinte emenda ao texto constitucional:

Art. 1º O art. 225 da Constituição Federal passa a vigorar acrescido do seguinte §7º:

‘Art.225..........................................................................................................................................................................................................................................

§ 7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo, não se consideram cruéis as práticas des-portivas que utilizem animais, desde que sejam manifes-tações culturais – conforme o § 1º do art. 215 – registradas como bem de natureza imaterial integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamentadas por lei es-pecífica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos.’ (NR)

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Art. 2º Esta Emenda Constitucional entra em vigor na data de sua publicação. (BRASIL. CONGRESSO NACIONAL. CÂMARA DE DEPUTADOS, 2017c)

Aprovada a proposta de redação, o texto normativo foi submetido ao Plenário, na Sessão Deliberativa Extraordinária do dia 31 de maio de 2017. Após a rejeição dos pedidos de retirada da matéria de pauta, dos Deputados Alessandro Molon e Glauber Braga, a PEC 304/2017 foi aprovada, com 373 votos favoráveis, 50 votos contrários e seis absten-ções. Remetida ao Senado Federal por meio do Ofício n.º 572/17/SGM-P, a PEC finalmente inovou o ordenamento jurídico com a promulgação, pelo Congresso Nacional, da Emenda Constitucional n.º 96, de 2017, em 6 de junho de 2017.

Atualmente, tramita perante o STF a ADI n.º 5.728, ajuizada em 13 de junho de 2017, pelo Fórum Nacional de Proteção e Defesa Ani-mal, que questiona a constitucionalidade da Emenda Constitucional n.º 96/2017. Para os autores, o § 7º, do art. 225, da Constituição Federal, vio-la o núcleo essencial do direito ao meio ambiente equilibrado. (BRASIL. SUPERIOR TRIBUNAL FEDERAL, 2017b)

É nesse sentido, que a análise do discurso político do “vai e vem” de PECs e ADIs que tramitam nas esferas judicial e legislativa do país é determinante para uma reflexão sobre os usos e as apropriações dos direitos culturais, pensados aqui, como um conjunto de direitos difusos e coletivos assegurados constitucionalmente que abrangem a definição de bens culturais, de manifestações culturais e o patrimônio cultural. A mobilização dos direitos culturais, em especial no caso da Vaquejada, assume diferentes tons políticos, engajados em concebê-la ora como manifestação cultural, ora como desporto, ora como patrimônio cultu-ral. E para além dos usos conceituais, resta evidente que tal apropriação político-legislativa da vaquejada afeta de modo imediato sua consolida-ção como um discurso cultural. No afã patrimonializador, o legislativo irrompe a própria legalidade atropelando a competência dos órgãos cul-turais como o IPHAN.

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E, por fim, um dos aspectos relevantes sobre o tema é o discurso que o próprio STF mobilizou sobre os direitos culturais no caso da vaquejada. Ao declarar a inconstitucionalidade, o faz entendendo que a Constituição Federal abriga as manifestações culturais como direitos culturais, po-rém, caso elas incorram em crueldade contra animais, estariam vedadas. Não se trata exatamente de uma novidade, pois a Corte dirime exatamen-te conflitos sobre a interpretação de direitos constitucionais no país. No caso em tela, a balança tendeu para a defesa dos animais e do meio am-biente. A despeito disso, o que chama atenção é a inconformidade e a rea-ção política mobilizadas no intuito de reconhecer a vaquejada como mani-festação cultural e desportiva brasileira. Essa inconformidade incluiu, de maneira arrebatadora, emendar a própria Constituição, o que, de muitas formas, transcende o debate sobre democracia cultural. Neste particular, contamos com a contribuição teórica do fenômeno do backlash.

O FENÔMENO DO BACKLASH E A BUSCA POR UM CONSTITUCIONALISMO DEMOCRÁTICO

A ADI n.º 4.983 e os debates legislativos que originaram a Emenda Cons-titucional n.º 96/2017 evocam a ideia de backlash e de constitucionalismo democrático como um aporte interessante para uma reflexão constitucio-nal sobre a mobilização dos direitos culturais no Brasil. Emprestada do constitucionalismo americano, a ideia de backlash está consolidada desde meados do século passado. O tema do constitucionalismo democrático se insere no amplo debate entre constitucionalismo, democracia e a possi-bilidade de juízes não eleitos restringirem vontades majoritárias sob o argumento de violação às normas constitucionais (contramajoritarismo).

O termo em inglês backlash é normalmente traduzido por “reação violenta”, “reação negativa” ou “contragolpe”. (POST; SIEGEL, 2013, p. 43) O dicionário Michaelis traduz a expressão como “revolta” ou “rea-ção”. (BACKLASH, 2018) Robert Post e Reva Siegel (2013) afirmam que a palavra backlash começou a ser utilizada de forma habitual na arena política durante o movimento negro por igualdade de direitos civis, na

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década de 1960. Contra as legítimas pretensões por igualdade de direi-tos, muitos eleitores brancos reagiram com um contragolpe (backlash), votando em candidatos segregacionistas em sucessivas eleições.

O mesmo fenômeno ocorreu em relação ao movimento feminista. A luta das mulheres desencadeou uma reação (backlash) entre aqueles que se sentiam ameaçados pelo crescente papel das mulheres no ambiente de trabalho e por sua busca por uma emenda constitucional de igualdade de direitos.7 No plano judicial, o grande exemplo de backlash é aquele que decorre de “Roe vs. Wade”, julgado em 1973. O processo “Roe vs. Wade”, é o caso judicial pelo qual a Suprema Corte dos Estados Unidos reconhe-ceu o direito ao aborto ou interrupção voluntária da gravidez.8 Trata-se da decisão judicial mais conhecida pela população americana em geral. Isso porque, “Roe vs. Wade” é sinônimo de conflito político.9 A decisão proferida pela Suprema Corte gerou reações violentas não só em face da própria Corte, como também em face do ordenamento jurídico como um todo. A decisão serviu como meio capaz de mobilizar a oposição de mi-

7 A Constituição dos Estados Unidos não faz menção explícita à igualdade entre os sexos. Por força disso, em 1923 foi apresentada a denominada Equal Rights Amendment [Emenda para a Igualdade de Direitos]. À época, a Emenda não foi aprovada. Posteriormente, em que pese muitas vezes reapresentada, a Emenda jamais foi aprovada por três quartos dos Estados do país, razão pela qual, nunca entrou em vigor. (BEAUGÉ, 2016)

8 Thomas Pereira (2015) sintetiza o caso: “Em Roe v. Wade o caso em que se estabeleceu a existência de um direito constitucional ao aborto – fundado em um direito a privacidade – e que polariza o debate sobre o tema nos Estados Unidos, o tribunal reconheceu limites a esse direito fundados no interesse estatal em proteger a saúde da mulher e de proteger a potencial vida do feto. Diante desse confronto, o caso estabeleceu o “modelo de trimestres”, segundo o qual: durante o primeiro trimestre, considerando que abortar traz menos riscos para a vida da mulher do que o próprio parto, o Estado não poderia interferir no seu direito de decidir – com o seu médico – terminar a gravidez; durante o segundo trimestre, o Estado poderia regulamentar o procedimento, mas apenas naquilo que razoavelmente se conec-tasse com a preservação da saúde feminina; e, durante o terceiro trimestre, quando o feto passaria a ser viável fora do útero, o Estado poderia inclusive proibir o aborto”.

9 Em pesquisa realizada em 2009, entrevistados foram perguntados se já tinham ouvido fa-lar em qualquer caso decidido Suprema Corte. Os que responderam afirmativamente (qua-renta e nove por cento) foram convidados a nomear um caso. Oitenta e quatro por cento nomeou Roe v. Wade. O outro caso mais frequentemente nomeado foi Brown vs. Board of Education, com nove por cento. Cf Greenhouse e Siegel (2011).

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lhares de cidadãos, no intuito de reverter a decisão da Suprema Corte. A fúria contra a sentença gerou uma séria de efeitos indiretos, ao per-mitir a ascensão política de grupos conservadores, a união de distintas organizações religiosas em grupos “Pró-Vida”, bem como a guinada polí-tica de candidatos do Partido Republicano, que visualizaram na temática do aborto um excelente gancho eleitoral. Nesse sentido, argumentou-se o alto custo político que algumas decisões judiciais podem promover.

Em outra medida, apontamos as discussões provenientes do consti-tucionalismo democrático, em que a disputa sobre a melhor interpreta-ção constitucional fortalece a democracia e o próprio constitucionalis-mo. E, embora, tratando da realidade americana, o próprio movimento discursivo de diálogo entre os diferentes (ou diferentes interpretações) seria acalentador para uma democracia cultural.

Nesse sentido, para Post e Siegel, a Constituição é dotada de normas cujo sentido é mais ou menos claro. A existência de normas equívocas que expressam valores (e. g., o direito à igualdade), pode ocasionar in-tensas disputas políticas sobre o seu significado. Dada a heterogeneida-de na compreensão da identidade nacional, sustentam que o significa-do da Constituição não pode ser imposto pela Corte. A legitimidade da Constituição dependeria de uma relação de reconhecimento por parte dos cidadãos. Assim, a Constituição é capaz de inspirar lealdade e com-promisso, apesar dos constantes desacordos sobre seu conteúdo, porque os cidadãos creem na possibilidade de persuadir uns aos outros – e a pró-pria Suprema Corte – no sentido de adotarem suas perspectivas sobre o significado da Constituição.

Manter essa confiança dependeria, porém, dos cidadãos terem opor-tunidades de persuadir uns aos outros acerca da adoção de formas al-ternativas de compreender a Constituição. Os autores defendem a fal-sidade do argumento de que “reações violentas” [backlash] ameaçam a legitimidade da Constituição. Ao contrário, propugnam que o conflito é uma forma de sustentar a autoridade da Constituição:

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Paradoxalmente, a possibilidade de que existam desacordos sobre o significado da Constituição, preserva a sua autorida-de, já que permite a pessoas com convicções muito diferen-tes considerar que [ela] expressa seus compromissos mais fundamentais e que constitui a norma fundamental. (POST; SIEGEL, 2013, p. 34)

Post e Siegel interpretam que os americanos aceitam os pronunciamen-tos judiciais mesmo quando discordam de seu conteúdo, devido ao fato de considerarem como Direito a interpretação que a Corte realiza da Constituição, desde que tenham válvulas de escape para plantar obje-ções e a possibilidade de, algum dia, influenciar a maneira pela qual se configura o direito. (POST; SIEGEL, 2013)

Uma das mais importantes válvulas de escape para traduzir valores políticos em direito constitucional é o procedimento de emenda à Cons-tituição. Tal mecanismo – usado em demasia pelo Brasil – possibilitaria a Constituição funcionar como norma fundamental, como limite e fun-damento da política, bem como seguir sendo democraticamente sensí-vel às demandas democrático-populares.

Como se vê, o constitucionalismo democrático, na lição de Daniel Sarmento e Cláudio Pereira de Souza, “além de valorar positivamente o fato de a Constituição ser dotada de supremacia, procura atribuir a importância devida às deliberações populares e às decisões da maioria dos representantes do povo”, (SOUZA NETO; SARMENTO, 2016) consa-grando de modo inequívoco a noção de uma democracia cultural.

Nesse sentido, parece apontar para a necessidade de efetiva partici-pação social na tarefa de interpretação da Constituição. Uma democra-cia cultural de fato exige um compromisso dialógico e discursivo de seus agentes, sejam eles o STF, as Assembleias Legislativas ou a sociedade civil. Entre o backlash e a possibilidade de um constitucionalismo demo-crático, o caso da vaquejada demostrou a complexidade do jogo político implicado aos direitos culturais no país.

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CONCLUSÃO

Se o backlash pode ser descrito como uma reação violenta a uma deci-são judicial, a estratégia mobilizada pelos defensores da vaquejada como manifestação cultural e patrimônio cultural, diante de sua declaração de inconstitucionalidade pelo STF, pode, enfim, ganhar um nome. Isso não significa a negação da possibilidade de reação de indignidade dos defensores da vaquejada diante da decisão que tornou esta manifestação cultural inconstitucional. No âmbito de uma democracia cultural, sus-tentada por um constitucionalismo democrático, a disputa pelo poder do discurso ou pelo poder de ditar as verdades possíveis são constantemen-te postas em prática na arena jurídica.

A própria constitucionalização dos direitos culturais no Brasil per-mite e incentiva o debate sobre a interpretação e o tensionamento dos conteúdos que preenchem estes direitos. Assim, não caberia a Consti-tuição dizer de antemão quais são estes direitos em um rol taxativo ou exclusivo, mas ao ser provocada, por meio de ações jurídicas, pode e deve se manifestar – pelos controles de constitucionalidade e STF – sobre as dúvidas, incertezas e, em especial, tensões que compõe a vida humana. Assim, a manifestação da Corte não acolheu a vaquejada entre as ma-nifestações culturais abrigadas pelos direitos culturais brasileiros. Uma decisão em que os direitos culturais são claramente mitigados em face do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e a proibição de crueldade contra os animais.

Mas a marca deste caso se perfaz na intensa reação contrária a decisão constitucional e na montagem de uma estratégia de mobili-zação de discursos políticos, jurídicos e legislativos – que esbarram em incongruências legais – para incluir no texto constitucional a pró-pria inconstitucionalidade já declarada. Na disputa entre saberes e poderes imbricados aos direitos culturais, o próprio jogo democrático foi posto em questão. Aguardamos as cenas vindouras. Os próximos discursos. Os novos debates. Nos dissabores jurídicos e legislativos, os caminhos são muitos, mas não devem se afastar da compreensão de

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que a cultura é um elemento vital à humanidade e, por isso, essencial para a democracia.

REFERÊNCIAS

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Direitos e modelos institucionais na lógica do acesso à Cultura11

Luiz Fernando Zugliani

INTRODUÇÃO

A necessária convergência entre os direitos culturais dos cidadãos e os deveres do Estado consiste em um dos maiores desafios de qualquer so-ciedade. Em muitas situações, acessar um direito pode exigir um gran-de grau de envolvimento do Estado no papel de cumpridor dos deveres. Ou seja, aquele só será alcançado se os agentes públicos responsáveis por sua viabilização atuarem a contento, hipótese em que se consuma a tão almejada cidadania cultural.

No Brasil, a construção dos direitos culturais apresenta significativo avanço, sendo a expansão dos preceitos constitucionais sua maior evidên-cia. O ambiente de redemocratização, que teve como ponto alto a promul-gação da Constituição de 1988, deu início a uma revolução no tratamento da cultura como área estratégica, fato jamais verificado na história repu-blicana, especialmente quando comparados os respectivos textos consti-

1 Este capítulo foi elaborado com base na pesquisa consubstanciada na dissertação apresen-tada sob o título A Organização social e o acesso à Cultura: o caso das Bibliotecas Parque do Rio de Janeiro. (ZUGLIANI, 2016)

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tucionais. As Emendas Constitucionais já aprovadas e outras, que estão em tramitação, dão conta desse pujante e complexo cenário.

Mas alguns dos deveres do Estado frente ao leque de direitos con-sagrados na ordem jurídica ainda carecem de ações mais efetivas. As estruturas institucionais e os recursos orçamentários e financeiros destinados às políticas culturais teimam em ser inadequados ou insu-ficientes diante dos anseios sociais, inibindo os cidadãos de participar da vida cultural.

Ainda que se tenha ciência de que as formas de contribuição para a efetivação de direitos culturais são múltiplas e que precisam ser pensa-das a partir da inter-relação de vários atores e aspectos, todas invaria-velmente necessitam desaguar em molduras de gestão promotoras do acesso à cultura. A questão que ora se invoca está atrelada aos mecanis-mos de gestão de instituições e programas culturais e sua relação com os crescentes direitos.

Desde a última reforma do Estado, ocorrida na segunda metade da década de 1990, a gestão pública passou a contar com mais um formato institucional para o exercício dos deveres estatais, também voltado para a prestação dos serviços públicos de cultura. Ovacionadas por uns e exe-cradas por outros, as Organizações Sociais (OS) de Cultura são uma rea-lidade e se espalham pelo país.

Longe da ideia de pacificar as contradições e conflitos que existem entre adeptos e críticos dessa configuração institucional, a discussão é necessária. Isso porque há uma certa tendência a enxergar a cultura como área peculiar e, desse modo, merecedora de um tratamento mais específico no que diz respeito aos modos de gestão, principalmente quando confrontada com as práticas que caracterizam a administração pública delineada pelo pensamento weberiano.

Parece, pois, pertinente a investigação de casos em curso, até para que se forme melhor juízo sobre essa proposta, capaz de orientar traça-dos que conduzam a padrões gerenciais adequados às especificidades da atividade cultural. A intenção do presente trabalho percorre essa linha,

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e o caso do estado do Rio de Janeiro, a partir da experiênciadas Bibliote-cas Parque, pode ajudar a analisar a contribuição das OS para o acesso aos direitos culturais.

Este artigo está estruturado em três seções, além das considerações finais. A primeira trata da construção, afirmação e garantia dos direitos culturais no Brasil. Na seguinte, apresentam-se aspectos institucionais relacionados à gestão cultural no contexto das três principais reformas do Estado republicano, ocorridas nas décadas de 30, 60 e 90 do século passado, com ênfase na última, que gerou o modelo de Organização So-cial (OS). Por fim, expõe-se o resultado da pesquisa proveniente do caso estudado: as bibliotecas parque.

CONSTRUÇÃO, AFIRMAÇÃO E GARANTIA DOS DIREITOS

A constituição do ordenamento jurídico de uma determinada socieda-de, considerando-se o cenário de suas transformações e adaptações às novas ordens sociais, está intimamente conectada, em sentido bem am-plo, ao cenário cultural que a caracteriza e a inspira. Significa dizer que a dinâmica de construção do direito carrega elementos que são indisso-ciáveis desse processo, como os costumes e as tradições, mas também o ambiente político que a orienta.

O direito, em vez de ser um simples apêndice técnico acrescentado a uma sociedade moralmente (ou imoralmente) pronta, é, juntamente com um grupo imenso de outras realidades culturais – desde os símbo-los da fé, até os meios de produção – uma parte ativa dessa sociedade (GEERTZ, 1997, p. 328-329). A contextualização cultural “[...] é um as-pecto crítico da análise jurídica, e também da análise política, estética, histórica ou sociológica”. (GEERTZ, 1997, p. 271)

Serviços como educação, saúde, saneamento básico, seguridade so-cial e cultura passam a ser contemplados por políticas de Estado apenas quando se constituem em direitos, os ditos direitos sociais ou de terceira geração. Este grupo de direitos surge como “novas exigências de novos reconhecimentos e novas proteções na passagem da consideração do ho-

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mem abstrato para aquela do homem em suas diversas fases da vida e em seus diversos estágios”. (BOBBIO, 1992, p. 6)

O progresso das reflexões acerca dos direitos humanos acabou por consagrar um ramo específico, que vem merecendo especial atenção dos países e dos organismos internacionais, tanto nas áreas de estudo como na formulação e implementação de políticas: os direitos culturais.

No Brasil, a construção dos direitos culturais caminha a passos lar-gos. A Constituição brasileira, comparada com as anteriores, é abundan-te no tratamento da cultura, e as Emendas Constitucionais reforçam o tom desse avanço. Por isso, segundo Cunha Filho (2011), poderia até ser chamada de “Constituição Cultural”. Essa é a primeira vez que um texto constitucional afirma os Direitos culturais.

Mas a existência de um ordenamento jurídico recheado de direitos culturais reclama ações efetivas do Estado para garantir os meios de rea-lização da cidadania. Nesse contexto, Cunha Filho (2011) ressalta que o Estado tem diversos papéis na missão de assegurar o pleno exercício dos direitos culturais, na entrega de bens e serviços e na realização de estímulos positivos e negativos, conforme os limites constitucionais. Os direitos culturais vêm inexoravelmente acompanhados dos respecti-vos deveres culturais, de responsabilidade não apenas do Estado, mas de múltiplos atores sociais.

O acesso à cultura é questão primordial e o principal elo entre o que se espera da aplicação dos direitos culturais e o que está disposto, por exemplo, no Plano Nacional de Cultura, aprovado pela Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010.2 O acesso é, pois, imprescindível para a par-ticipação dos indivíduos na sociedade, tendo ciência de seus direitos e responsabilidades – ideia essa ligada ao conceito de cidadania e cada vez mais presente na política cultural brasileira. (KAUARK, 2013)

A consolidação de um Estado cultural, no entanto, encontra sérios obstáculos nas estruturas institucionais desarticuladas, sem recursos

2 Especialmente em seu artigo 1º, onde constam vários incisos relacionados a direitos de acesso.

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financeiros e humanos suficientes para a ampla efetivação dos direitos inscritos na Constituição. (BARBOSA; ELLERY; MIDLEJ, 2009)

Os direitos culturais são implementados, principalmente, através do Estado, da política pública, porém cabe também aos agentes não estatais sua promoção em nível local. É necessário que o Estado tome medidas auspicio-sas no sentido de afiançar que existam condições prévias para participar da vida cultural, promovê-la, facilitá-la, bem como dar efetivo acesso aos bens culturais, ao patrimônio cultural, e também preservá-los. (KAUARK, 2013)

Nesse cenário, é importante compreender que o interesse e a neces-sidade de garantir a realização de direitos culturais assumem diversas formas. A gestão de equipamentos culturais públicos é apenas uma das vertentes, porém de extrema relevância, pelas quais os direitos relacio-nados ao acesso à cultura só serão alcançados a partir do compromisso efetivo dos agentes responsáveis pelos deveres culturais.

Na perspectiva de viabilização do acesso à cultura, é imperativo, tanto por parte de autoridades do Estado quanto de representantes de movimentos afins, o esforço de convergência entre direitos e deveres na busca do exercício pleno da cidadania. É indispensável um processo de reflexões e debates que, necessariamente, tangenciem a avaliação e a im-plementação de modelos organizacionais capazes de assegurar o acesso às fontes da cultura nacional.

Deve ficar claro que a etapa de constitucionalização não é suficiente para garantir direitos culturais voltados à produção cultural, à formação cultural e artística, à fruição dos bens culturais e à informação sobre ser-viços culturais. Cabe repisar, de forma bem pragmática, que a existência de tais direitos por si só não oferece garantias à sua realização. Ou seja, definitivamente, não se pode confundir direito de acesso com o efetivo acesso ao direito.

Na perspectiva da realização do acesso, focaliza-se o modelo de ges-tão de OS, cujos preceitos encontram origem na última reforma do apa-relho do Estado, ocorrida na segunda metade da década de 1990. A ques-tão é: seria esse modelo capaz de contribuir para a conexão dos direitos

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de acesso à cultura com deveres atribuídos ao setor público, resultando dessa congruência a necessária efetivação dos direitos culturais?

O EXERCÍCIO DOS DEVERES VIABILIZADORES

A significativa expansão do ordenamento jurídico relacionado ao tema enseja o aprofundamento do debate sobre os mecanismos de gestão cul-tural, ou, para efeito dos objetivos deste trabalho, de gestão dos equi-pamentos culturais, sob pena de inviabilizar os avanços verificados na legislação. Como já observado, os direitos culturais não se tornarão efe-tivos se inexistirem responsáveis, claramente identificados e qualifica-dos, pela condução dos processos que caracterizam o dever e o fazer.

O art. 215 da nossa Carta Magna prevê que o “Estado garantirá a to-dos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da Cultura nacional...”. A simples leitura desse ditame constitucional elucida o pro-tagonista desse empreendimento e parece responder a questão da res-ponsabilidade. Mas, se isso está claro, o que se quer discutir?

Objetivamente, a par da complexidade do assunto, o propósito é obter uma visão crítica em torno de como o Estado atualmente articula-se para fazer valer oscorrespondentes direitos. Antes, contudo, torna-se válido fazer uma rápida contextualização histórica de alguns aspectos da gestão pública, e também das instituições culturais, até chegar ao ponto que se pretende analisar: o modelo de OS aplicado na gestão das Bibliotecas Par-que do Estado do Rio de Janeiro e sua relação com os direitos culturais.

Ao entrelaçar as três grandes reformas do Estado, ocorridas nas dé-cadas de 30, 60 e 90 do século passado, com os respectivos momentos da gestão pública de cultura no país, emergem interessantes proprieda-des que revelam o posicionamento estratégico dos governos quanto ao tratamento do tema. A questão é rica nos desdobramentos analíticos, englobando aspectos da ciência política e da economia, mas, sobretudo, aqueles relativos às configurações do aparelho estatal.

A criação do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp), em julho de 1938, representou não apenas a primeira reforma

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administrativa do país, com a implantação da administração pública burocrática, mas também, e principalmente, a afirmação dos princípios centralizadores e hierárquicos da burocracia clássica.

Nesse ambiente, o setor cultura esteve inscrito no Ministério da Edu-cação e Saúde, nos termos da Lei nº 378, de 13 de janeiro de 1937. Note--se que, à exceção do Instituto Nacional de Cinema Educativo, conside-rado uma instituição (item 2 do Capítulo III) de “educação escolar”, os demais órgãos culturais (item 3 do Capítulo III) enquadravam-se como de “educação extraescolar”. Talvez esse “extra” concorra para explicar a formatação, mais tarde, em 1953, do Ministério da Educação e cultura, mudança que, além de dar autonomia à área da saúde, passava a reconhe-cer expressamente o tema cultura.

O campo organizacional das instituições culturais estatais, nesse pe-ríodo, pouco ou nada tem a ver com a satisfação de direitos culturais, na medida em que funcionavam, principalmente, como uma ferramenta de manipulação da sociedade em benefício dos detentores do poder e da manutenção do regime político.

O contexto envolvendo a criação de órgãos culturais, a promulgação, em novembro de 1937, da Constituição (que não cita a expressão cultura) e a reforma administrativa, em julho de 1938, mesclam elementos pró-prios de um regime autoritário, de uma forte burocracia e de uma gestão altamente centralizada,3 seja na Presidência da República ou no Minis-tério da Educação e Saúde. Esse panorama sofrerá avanços e retrocessos no tocante à gestão pública de cultura quando da implementação das re-formas havidas nas décadas de 1960 e 1990.

De acordo com Barbalho (1999), a partir do Golpe Militar, em 1964, no plano da cultura, a preocupação do regime passa pela perspectiva de um mercado de bens simbólicos unificado e de uma nação integrada cultural e politicamente. O Estado brasileiro preocupa-se em criar uma rede de comunicação ligando todo o país, ao mesmo tempo em que a in-dústria cultural cresce num ritmo vertiginoso, principalmente nos anos

3 Não havia autonomia administrativa e financeira nos órgãos e entidades culturais.

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1970. Com isso, pretendia-se alcançar uma uniformidade nas informa-ções que circulam no território nacional, padronizando a cultura e seu consumo diante das diversidades regionais.

Em 1967, o Estado passa a vivenciar uma inédita mudança em seu aparato, isto é, na lógica de funcionamento das funções estatais. Após três décadas da reforma administrativa trazida pelo Estado Novo, introduz-se mais uma substantiva reorganização no cenário da adminis-tração pública brasileira. Trata-se da edição do Decreto-Lei 200, de 25 de fevereiro de 1967, cujo propósito fundamental foi estabelecer práticas e conceitos estruturantes no campo da gestão pública, com o discurso de contribuir para o desenvolvimento do Brasil.

A reforma iluminada por esse diploma buscava estabelecer uma me-cânica de descentralização ou desconcentração; de gestão diferenciada em relação à administração direta, tendo como foco a redução da malha burocrática que imperava nos órgãos centralizados,4 em especial nos sis-temas de planejamento, execução orçamentária e contratação de pessoal.

Na perspectiva dos dispositivos constitucionais, da explicitação do acesso à cultura e da noção de direitos culturais, a Carta de 67, em re-lação à de 37, não apresenta modificações que mereçam ser discutidas. Mas os correspondentes regimes autoritários, como se viu, proporcio-naram visões bem distintas em relação à operação da máquina estatal. E os argumentos contidos na literatura em favor da desburocratização na área cultural dão conta de que a segunda reforma, com os conceitos de descentralização e flexibilização gerencial, melhor se ajustou às ativida-des do setor, na viabilização das políticas públicas culturais.

A crise que atingiu o Brasil, de forma mais aguda, no período em que amadurecia a redemocratização (1985) até meados da década seguinte, foi também uma crise do Estado. Em face do modelo de desenvolvimento que governos anteriores adotaram, o Estado desviou-se de suas funções

4 As reformas trazidas pelo Decreto-Lei 200/67 não geraram mudanças no âmbito da admi-nistração burocrática central, permitindo a coexistência de um modelo de eficiência da ad-ministração indireta e de formas obsoletas da administração direta.

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básicas para ampliar sua presença no setor produtivo, acarretando a gra-dual deterioração dos serviços públicos, sobretudo aqueles procurados pela parcela menos favorecida da população (BRASIL, 1995, p. 6), como saúde e educação. Esse fator e o agravamento da crise fiscal e, por conse-quência, da inflação, embasaram os argumentos para justificar a reforma do aparelho do Estado empreendida na segunda metade da década de 90.

A essa altura, o país, pela primeira vez na história, já contava um Ministério5 dedicado exclusivamente à cultura, criado pelo Decreto nº 91.144, de 15 de março de 1985. Havia no horizonte reformista brasileiro a convicção de que as práticas gerenciais do setor privado seriam úteis a uma melhor prestação de serviços públicos. Esse movimento ficou co-nhecido como gerencialismo6 – gestão por resultados, ou, como prefe-rem enunciar alguns autores, a New Public Management (NPM) ou Nova Gestão Pública (NGP).

A par desse contexto, o Brasil conhece, em 1995, o Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado (PDRAE), que distingue quatro seto-res: i) Núcleo Estratégico; ii) Atividades Exclusivas; iii) Serviços Não Exclusivos; iv) Produção de Bens e Serviços para o Mercado. O terceiro diz respeito ao processo de cooperação entre o Estado e outras organi-zações públicas não estatais e privadas, voltada à prestação de serviços públicos diversos, incluindo os que envolvem os direitos culturais.

Como produto desse processo de modernização da gestão de serviços públicos, e sob o rótulo da “publicização” dos serviços não exclusivos do Estado, emerge, por meio da Lei Federal nº 9.637/98, o modelo de OS, ou seja, uma qualificação concedida pelo Poder Público a entidades do Terceiro Setor, mais especificamente às Associações Civis e Fundações Privadas, ambas regidas pelo Código Civil. O intento é a realização, com mais eficiência, de atividades de fomento nas áreas sociais. Trata-se, em síntese, da consagração de uma forma de parceria, realizada por inter-

5 O MinC foi criado, em 15 de março de 1985, pelo Decreto nº 91.144, no Governo José Sarney.

6 Foi nos Estados Unidos, de Ronald Reagan, e na Grã-Bretanha, de Margareth Thatcher, que o gerencialismo se desenvolveu.

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médio de um Contrato de Gestão,7 entre uma entidade (qualificada) do Terceiro Setor e o Estado.

Embora ainda não tenha conseguido lograr êxito no sistema federal de cultura, o modelo de OS se proliferou pelo país, figurando em leis es-taduais e municipais. Hoje, existem 22 unidades da Federação que pos-suem leis versando sobre essa configuração institucional, sendo 20 de-las com possibilidade de parceria na área cultural. E isso não é pouco. Consagrados para gerar um ambiente de flexibilidade administrativa na execução de serviços sociais, os insumos teóricos vão encontrar no setor cultural importante eco, o qual em sua grande maioria mostra-se refratário à burocracia clássica, por colidir com dinâmica cultural. Mas será que esse modelo tem mesmo o condão de favorecer a efetivação de direitos culturais?

O CASO DAS BIBLIOTECAS PARQUE

Na mesma trilha da esfera federal, a decisão do governo do estado do Rio de Janeiro de editar a Lei nº 5.498, de 07 de julho de 2009, engendrada pela Secretaria de Cultura (SEC/RJ),8 retrata o propósito de mudança do paradigma da gestão das instituições estaduais de cultura à luz do citado modelo, que se coaduna com a finalidade de realização dos direitos cultu-rais. Com a renovação do modelo jurídico-institucional, apostava-se na alternativa aos modelos de gestão tradicionais da administração pública.

As Bibliotecas Parque9 são instituições supervisionadas pela SEC/RJ, a exemplo de vários outros equipamentos, como museus, centros culturais,

7 Instrumento jurídico por meio do qual são estabelecidos objetivos, metas e indicadores de desempenho relacionados à execução de uma determinada política pública.

8 Foi pioneira no assunto no âmbito do estado, com a promulgação da Lei nº 5.498/097, e aca-bou por assumir o papel de principal promotora do modelo de gestão por OSs, deflagrando um ciclo de edição de leis que viria a contemplar várias áreas da estrutura estatal.

9 As Bibliotecas Parque têm como principais referências as bem-sucedidas experiências im-plementadas em Medellín e Bogotá, na Colômbia. Trata-se de um espaço cultural (multi-funcional) e de convivência, que oferece à população ampla acessibilidade, com qualidade física, humana e de serviços.

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teatros e casas de cultura. Conforme o Decreto Estadual/RJ nº 44.694, de 28 de março de 2014, as bibliotecas participam de uma “Rede de Bibliote-cas Parque do Estado” integrada pela Parque Estadual, Parque de Niterói, Parque de Manguinhos, Parque da Rocinha e Parque do Alemão.10

Em 30 de dezembro de 2013, a SEC/RJ e o Instituto de Desenvolvi-mento e Gestão (IDG) – uma associação de direito privado, sem fins lu-crativos ou econômicos – celebraram o Contrato de Gestão nº 002. (RIO DE JANEIRO, 2013) Esse instrumento estabelecia um valor global de quase R$ 100 milhões, por um período de cinco anos, para o IDG fazer a gestão da Rede de Bibliotecas no modelo de OS.

Para analisar, do ponto de vista quantitativo, a contribuição da OS (sob a gestão do IDG) para o acesso a direitos culturais, optou-se por uma metodologia que buscou, por meio da pesquisa de campo, verificar a per-cepção dos usuários acerca do trabalho desenvolvido pelo gestor contra-tado pelo estado.

Metodologia

Além das pesquisas bibliográfica e documental, foi realizada pesquisa de campo mediante aplicação de questionários aos usuários das Bibliotecas Parque de Manguinhos e da Rocinha, o que configura uma abordagem definida como “mista”, pois se vale de ambos os métodos: qualitativo e quantitativo. A pesquisa de campo ficou adstrita ao levantamento da percepção dos usuários sobre o exercício dos direitos culturais.

Baseado em referências nacionais e internacionais, como os ques-tionários utilizados por bibliotecas da mesma espécie, multifuncionais, em especial as colombianas, de Medellín e Bogotá, e a Biblioteca de São Paulo, o instrumento foi validado a partir de um pré-teste realizado por especialistas representativos, que avaliaram as questões e as opções de

10 A Biblioteca Parque do Alemão fechou suas portas para ceder suas dependências a uma clínica da família na região e era a única lá construída após a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Disponível em: http://biblioo.info/biblioteca-parque-do-ale-mao-fechada/. Acesso em: 21 set. 2017.

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respostas. Isso permitiu a formatação final do instrumento de pesquisa – (Apêndice I), que acabou por ter 23 questões fechadas (em 20 itens) e uma semiestruturada.

É válido registrar que o plano inicial de aplicação considerava os usuários das quatro bibliotecas integrantes da estrutura da SEC. En-tretanto, e justamente no espaço de tempo estipulado para o trabalho – 15 de novembro a 15 de dezembro de 2015 –, duas bibliotecas foram fe-chadas, a Biblioteca Parque Estadual (BPE) e a Biblioteca Parque de Ni-terói (BPN), e as outras duas, a Biblioteca Parque de Manguinhos (BPM) e a Biblioteca Parque da Rocinha (BPR), sofreram redução no horário de atendimento, dando causa ao redimensionamento das unidades de pesquisa e análise, agora restritas às duas últimas. Trabalhando com as bibliotecas mantidas abertas, estabeleceu-se, a partir de critérios esta-tísticos, o número de 100 usuários.

O instrumento foi aplicado, presencialmente, de forma individua-lizada, no interior das duas bibliotecas, nos dias 1º e 2 de dezembro de 2015, no período da tarde. Após, em Manguinhos, nos dias 4 e 10 de de-zembro de 2015, em dois turnos, manhã e tarde. Foram selecionados usuários aleatoriamente, e o preenchimento levava de 3 a 5 minutos.

Foi criada uma categorização para análise da pesquisa de campo. A construção das categorias teve por base o entendimento da então se-cretária municipal de cultura, Marilena Chauí, devidamente ajustado às necessidades desta pesquisa, acerca dos direitos culturais, exposto no discurso de posse, em janeiro de 1989. Chauí (1989) os definia como

[...] o direito de produzir cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes, seja pela invenção de novos signi-ficados culturais; o direito de participar das decisões quan-to ao fazer cultural; o direito de usufruir os bens da cultura, criando locais e condições de acesso aos bens culturais para a população; o direito de estar informado sobre os serviços culturais e sobre a possibilidade de deles participar ou deles usufruir; o direito à formação cultural e artística pública e gratuita nas Escolas e Oficinas de Cultura do Município; o di-

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reito à experimentação e à invenção do novo nas artes e nas humanidades; o direito a espaços para reflexão, debate e crí-tica; o direito à informação e à comunicação sobre tudo quan-to se faça nesta Secretaria.

Com essa fundamentação, que reflete os vigentes ditames constitucio-nais, verificou-se a percepção dos usuários relativa ao acesso a esse con-junto de direitos culturais. Para a atividade de análise das respostas, foi estruturado um quadro relacionando categorias de direitos culturais aos itens do questionário aplicado.

Quadro 1 - Categorias de Direitos Culturais x Questionário

ITENS DO qUESTIONáRIO

A Informação e comunicação institucional 4, 5 e 6

B Fruição dos bens culturais 7, 8 e 9

C Condições de acesso aos bens culturais 8, 14, 18 e 20

D Informação quanto aos serviços culturais 10

E Participação de atividades culturais 11

F Apropriação dos meios culturais existentes 12, 16 e 17

G Formação cultural e artística 13

H Participação do fazer cultural 19

Fonte: Elaborado pelo autor.

Para onde apontam os resultados?

As conclusões que podem ser extraídas têm duas principais referên-cias: a figura-chave da teoria da NGP, o Contrato de Gestão, e o resulta-do da pesquisa de campo. Viu-se neste estudo que a primeira prescreve responsabilidades do Estado e da OS contratada, muito bem delimita-das e, obviamente, negociadas entre as partes. Há, entretanto, e isso

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nem sempre está no contexto da pactuação formal, funções que são inerentes do modelo. De um lado, o Estado, com suas intransferíveis atribuições, consistentes no planejamento/formulação de políticas públicas, acompanhamento, controle, fiscalização e avaliação. De ou-tro, a OS, com a responsabilidade de proceder à gestão de equipamen-tos e/ou programas culturais, com base nas metas ajustadas no instru-mento contratual.

Importa, dessa forma, abordar o comportamento gerencial de ambos os lados, visto que a performance institucional está intimamente ligada ao ambiente dessa relação. Em primeiro lugar, lançar-se-á luz na forma pela qual a SEC/RJ vem desempenhando seu papel. De acordo com os referenciais teóricos relativos às OS,

a dinâmica do contrato de gestão, que deverá ser orientado pelos objetivos das políticas públicas num ambiente mutante e norteador da ação organizacional da entidade contratada, requer flexibilidade e acompanhamento constantes, de modo que eventuais desvios possam induzir alterações nos objeti-vos ou na sua forma de implementação. (BRASIL, 1998, p. 42)

Além dessa orientação, claramente sinalizada nos primórdios da NGP no Brasil, verificou-se que a própria Lei estadual nº 5.498/09, em seu Art. 47, estabelece que “a qualquer tempo, o órgão supervisor e a organização social poderão, de comum acordo, rever os termos do contrato de ges-tão, desde que devidamente justificado e preservado o interesse público”. Portanto, não bastasse a explicitação do modus operandi em guias go-vernamentais, há uma chamada legal para a questão, que contribui para as tomadas de decisão necessárias em “ambientes mutantes”.

Apesar disso, a SEC/RJ, mesmo sabedora da crise fiscal enfrentada pelo estado do Rio de Janeiro, que gerou grave impacto nos repasses dos recursos ao contratado, e ignorando as orientações e possibilidades le-gais, permitiu que duas bibliotecas fechassem e outras duas tivessem ho-rário de funcionamento reduzido, expondo desajustes na forma de exer-cer os deveres viabilizadores do acesso a direitos culturais.

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Somente após a interrupção dos serviços públicos, a secretaria pro-curou estabelecer parcerias para solucionar a situação financeira e, em consequência, a institucional. Isto, no entanto, claramente afron-ta o dever de assegurar a realização de direitos culturais. Atente-se que “os resultados devem ser continuamente avaliados pelo Poder Público, de tal forma que algum controle seja exercido, no sentido de possíveis redirecionamentos durante o curso das ações, e não de registro ou diag-nósticos a posteriori”. (BRASIL, 1998, p. 42)

Em nome do cumprimento das metas acordadas, a SEC deveria ter interferido na situação, tempestivamente, com vistas à renegociação do contrato de gestão. É o que também prega o “guia”, de acordo com Brasil (1998, p. 37), ao mencionar que o acompanhamento do desempenho ins-titucional “permitirá que se redefinam os objetivos e metas pactuados, caso as circunstâncias em que atua a instituição sofram alterações que justifiquem uma redefinição”.

Quanto à segunda referência, destaque-se que, mesmo lidando com circunstâncias adversas, a gestão do IDG, conforme revelado pela pes-quisa de campo com os usuários, obteve resultados positivos, particular-mente voltados ao acesso a direitos culturais pertinentes à “Fruição dos bens culturais”, às “Condições de acesso aos bens culturais” e à “Apro-priação dos meios culturais existentes”.

Já no que concerne às demais categorias, como “Informação e co-municação institucional”, “Informação quanto aos serviços culturais”, “Participação de atividades culturais”, “Formação cultural e artística” e “Participação do fazer cultural”, verificou-se a necessidade de se aprimo-rar os mecanismos de gestão que abarcam esses serviços.

A reboque dessa análise, o modelo de cooperação da OS deve ensejar a observância de dois aspectos: i) o Estado não pode se afastar do com-promisso de prover os recursos necessários à execução dos serviços/me-tas pactuados na assinatura ou no curso do contrato de gestão. Trata-se, precipuamente, do engajamento que se impõe ao exercício dos deveres viabilizadores do acesso a direitos culturais; e ii) no campo do esforço

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possível de colaboração da OS, como as captações de recursos, é crucial que se leve em conta a realidade e a lógica do mercado cultural, dada a existência de segmentos com potenciais distintos de atratividade, ainda que sob o manto das leis de incentivo. Qualquer movimento que despreze essas variáveis resultará em prejuízo à gestão institucional e, de modo consequente, à cidadania cultural. Na verdade, descuidos nesses pontos podem ser peremptórios para o fracasso desse arranjo organizacional.

Em síntese, tem-se que os elementos empíricos emanados do caso es-tudado apontam, ressalvadas as limitações da pesquisa,11 para a necessi-dade de aperfeiçoamento de mecanismos de gestão, a fim de que o mode-lo possa propiciar condições de oferecer contribuição mais efetiva para o acesso a direitos culturais. Talvez desse modo seja possível vislumbrar a plena validade dos pressupostos da NGP.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Brasileira de 1988, conhecida como a “Constituição cidadã”, reflete o processo de construção de direitos sob a base da social democracia. Resgatando represados direitos individuais, sociais, huma-nos e políticos, após mais de duas décadas de regime autoritário, a Car-ta reconhece a cultura como direito fundamental, passando a compor aqueles direitos que exigem condições materiais e iniciativas específicas para garantir os meios de realização da cidadania. É a primeira vez que um texto constitucional afirma os direitos culturais.

A significativa expansão dos direitos culturais reclama ações enérgi-cas do Estado no sentido da materialização desses preceitos. A lógica que cuida da relação entre deveres e direitos, porém, não é trivial. A histó-

11 A falta de acesso a informações no âmbito da SEC trouxe prejuízos à análise do tema, na medida em que deixa de se conhecer números relacionados ao caso, bem como a percepção dos dirigentes de ambas as instituições, todos importantes a uma melhor compreensão do fenômeno; também a subtração das unidades que seriam investigadas nesse estudo, de-corrente do fechamento de duas importantes bibliotecas (BPE e BPN), ocorrido no exato período em que seria realizada a pesquisa de campo com os usuários; e o contrato de gestão que, 31/12/15, tinha somente dois anos de execução.

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ria republicana registra iniciativas voltadas à estruturação da máquina estatal, tendo como pano de fundo uma eficiente prestação de serviços públicos, algumas sob as bandeiras de modelos teóricos construídos em bases que, em geral, não correspondem à realidade brasileira. Como co-rolário, as implementações esbarram em diversificados aspectos.

O debate sobre a gestão de equipamentos culturais por OSs vem adqui-rindo robustos contornos, elevando a temperatura em várias searas, dado seu caráter de controvérsia. Não é possível desprezar a avidez de dirigentes culturais por soluções mais adequadas à prática dos atos de gestão, visto que deles depende a realização de políticas públicas responsáveis pelo de-senvolvimento do tema e pela promoção da cidadania cultural.

As formas de contribuição para a efetivação de direitos Culturais são múltiplas e precisam ser ponderadas a partir da interdependência de vários fatores. Convém propor que a discussão não só paire no terreno das possibilidades já previstas no ordenamento jurídico, mas também, e principalmente, que sejam levados em consideração argumentos inova-dores, aptos a engendrar uma via de acesso a direitos.

Se considerarmos que a construção de um modelo de gestão ideal ten-de à utopia, como alcançar então o melhor possível para a cultura nessa relação entre direitos e deveres?

Decerto, modelos institucionais não garantem efetividade na pres-tação de serviços públicos, mas sobretudo a capacidade das pessoas de utilizar adequadamente as ferramentas de gestão que lhes são disponi-bilizadas pelo ordenamento jurídico, preferencialmente erguido com as premissas fomentadoras da democracia cultural.

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REFERÊNCIAS

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BARBOSA, Frederico; ELLERY, Herton; MIDLEJ, Suylan Midlej. A Constituição e a democracia cultural. Políticas Sociais: acompanhamento e análise, Brasília, v. 2, n. 17, p. 227-281, 2009.

BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992.

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CHAUÍ, Marilena. Reflexos de Cidadania (Discurso de posse na Secretaria de Cultura de São Paulo, a 2 de janeiro de 1989). São Paulo, PMSP/SMC, 1989. In: PEREIRA, Mirna Burse. O direito à cultura como cidadania cultural (São Paulo, 1989/1992). Projeto História, São Paulo, n.33, p. 205-227, dez. 2006. Disponível em http://www.pucsp.br/projetohistoria/downloads/volume33/artigo_10.pdf. Acesso em 25/10/2015.

CUNHA FILHO. Direitos culturais no Brasil. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 11,p. 119, 125, jan./abr. 2011.

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

KAUARK, Giuliana. Os Direitos Culturais e seu lugar no Plano Nacional de Cultura do Brasil. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL – POLÍTICAS Culturais, 4., 2013, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2013.

RIO DE JANEIRO (Estado). Secretaria de Estado de Cultura. Contrato de gestão SEC/Nº 002/2013. Disponível em: http://www.idg.org.br/wp-content/uploads/2015/08/Contrato-Gest%C3%A3o-Bibliotecas-RJ.pdf. Acesso em 17 jan. 2016.

ZUGLIANI, Luiz Fernando. A organização social e o acesso à cultura: o caso das Bibliotecas Parque do estado do Rio de Janeiro. 2016. 200 f.

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Dissertação (Mestrado em Bens Culturais e Projetos Sociais) - Programa de Pós-Graduação em História, Política e Bens Culturais, Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2016. Disponível em: <https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/bitstream/handle/10438/16505/DISSERTA%C3%87%C3%83O%20LUIZ%20FERNANDO%20ZUGLIANI%20-%20VERS%C3%83O%20FINAL %20%28PDF%29%20SUBMETIDA%20%C3%80%20BIBLIOTECA%20FGV%2018% 2004%2016.pdf?sequence=1&isAllowed=y>. Acesso em: 15 ago. 2017.

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APÊNDICE

Apêndice I – Questionário de pesquisa

1. Sexo

Masculino Feminino

2. Faixa Etária:

de 13 a 19 anos

de 20 a 29 anos

de 30 a 39 anos de 40 a 49 anos

de 50 a 59 anos

de 60 a 69 anos

maiores de 69 anos

3. Grau de Escolaridade:

1º Grau incompleto

1º Grau completo

2º Grau incompleto

2º Grau completo

Superior incompleto

Superior completo

4. Você sabe o que é uma Biblioteca Parque?

Sim Não

5. Você sabe quem administra a biblioteca?

Governo

Organização não governamental

Empresa privada Não sei

6. Como você conheceu a biblioteca?

Amigos/Família

Site da Secretaria de Cultura

Passando pela porta

Mídia

Informes/Folders

Site do Gestor da Biblioteca

Outros

7. Com que frequência você utiliza os serviços da biblioteca?

Diariamente 1 vez por semana

1 vez por mês Raramente

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8. Você encontra dificuldade para chegar à biblioteca (ex: trânsito, transporte)?

Sim Não

9. Você tem interesse por eventos culturais?

Muito Mais ou Menos

Pouco Nenhum

10. Você conhece a programação cultural e os serviços que a biblioteca presta?

Sim Mais ou Menos

Pouco Não

11. Você já participou das atividades culturais oferecidas pela biblioteca?

Sim Não

12. Qual seu maior interesse quando visita a biblioteca?

Atividades culturais (Shows,

Teatro, Cinema,

Exposições)

Navegar na Internet

Descansar/Passar o Tempo

Empréstimo de Livro

Estudar

Leitura de livros/jornais/revistas

Atividades Recreativas

Conhecer Pessoas Outro: Qual?

13. Você já fez algum curso de formação cultural ou artística pela biblioteca?

Sim Não

14. Você tem algum problema na hora de usar os serviços da biblioteca?

Sim Não

15. Você considera o acervo:

Muito bom Bom Mais ou Menos Ruim Péssimo

16. Você pretende utilizar os serviços da biblioteca novamente?

Sim

Provavelmente sim

Provavelmente não

Não

17. Você recomenda os serviços da biblioteca a outras pessoas?

Sim Não

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18. A biblioteca oferece serviços de acordo com as suas necessidades?

Sim Mais ou Menos

Pouco Não

19. Você é estimulado a dar sugestões sobre as atividades culturais da biblioteca?

Sim Não

20. De um modo geral, como você avalia os serviços da biblioteca?

a) Atenção por parte dos funcionários da biblioteca e agilidade no atendimento:

Muito satisfeito

Satisfeito Insatisfeito Muito insatisfeito

b) Organização dos serviços/atividades (ex:

pontualidade,

acomodação,

divulgação):

Muito satisfeito

Satisfeito Insatisfeito Muito insatisfeito

c) Infraestrutura (instalações, móveis

e equipamentos,

etc):

Muito satisfeito

Satisfeito Insatisfeito Muito insatisfeito

d) Horário de funcionamento:

Muito satisfeito

Satisfeito Insatisfeito Muito insatisfeito

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Experiências conselhistas no Brasil: cultura, política e participação social

Giane Maria Souza

INTRODUÇÃO

Este artigo1 aborda a história do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), instância ligada à estrutura do Ministério da Cultura (MinC) como uma interface institucional de políticas públicas participacionistas redesenhada na gestão de Luís Inácio Lula da Silva (2003-2010) e Dilma Rousseff (2011-2016) na presidência da república. Para esse escopo será analisado o desenho institucional do CNPC, retomando seu surgimento na década de 1930 como Conselho Nacional e na década de 1960 como Conselho Federal de Cultura. Suas atribuições e representações sociais serão analisadas por meio de seus decretos de criação e alteração legal.

Para a análise histórica e sociológica foi realizado um arrolamento documental do desenho institucional do CNPC para compreender se as mudanças institucionais refletem a atuação dos conselheiros da so-

1 O artigo é inédito e faz parte da pesquisa de doutorado da autora. Foi elaborado a partir da disciplina Teoria Democrática e Participação Social ministrada pela Professora Doutora Lígia Lüchmann no Programa de Pós-Graduaçāo em Sociologia Política da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

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ciedade civil e do governo com suas pautas reivindicativas. O texto está composto metodologicamente de duas seções de análise, a primeira aborda reflexões teóricas sobre as concepções de democracia liberal, republicana e deliberativa e as respectivas perspectivas da participação e representação da sociedade civil junto ao Estado. A segunda discorre sobre os documentos investigados e o desenho institucional do CNPC. Importante destacar que esse texto possui uma característica interdisci-plinar, pois aborda sob o ponto de vista da história e sociologia a institu-cionalização das políticas públicas no Conselho de Cultura.

Muitos autores pesquisam sobre o tema da participação social e as interfaces entre o Estado e a sociedade civil. Não obstante, há um volume substancioso de trabalhos científicos sobre as políticas participacionis-tas e conselhistas nas áreas da saúde, educação, mobilidade urbana, as-sistência social. Porém, a área da cultura ainda se coloca como um cam-po aberto para a pesquisa acadêmica. Esse artigo contribui para lançar sobre a cultura um olhar sobre as políticas públicas participacionistas, sobretudo, identifica a cultura e suas especificidades na estrutura regi-mental e nas negociações e relações de poder estabelecidas dentro do CNPC pelos seus múltiplos Colegiados Setoriais. Enfim, refletir sobre essa interface conselhista auxilia no entendimento da diversidade cul-tural e dos agentes Culturais mobilizados nas políticas públicas do País.

SOBRE A PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃO SOCIAL

No Brasil o histórico da participação e representação social adquiriu uma dimensão de política pública inclusiva a partir da Constituição Federal (CF) de 1988. Após a ditadura militar os movimentos sociais se organizaram no final da década de 1970 para reivindicar espaços de participação e representação social conforme suas pautas identitárias. Paoli e Telles (2000) afirmam que nos anos oitenta os novos movimentos sociais tinham como bandeira “O direito de ter direitos”, principalmen-te, no que tange a diversidade cultural e políticas públicas para grupos historicamente alijados dos processos democráticos no Brasil.

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Entretanto, Gohn (2001) afirma que essas lutas em torno da parti-cipação e mobilizações sociais remetem a história do Brasil desde sua colonização. No século XIX, os movimentos pela independência, contra a escravidão, pela república, a favor do sufrágio universal reivindicavam maior participação e autonomia política para o povo. E no século XX os anarquistas, os sindicalistas, as mulheres, os camponeses, os negros, o movimento estudantil e operário pleiteavam melhorias nas condições de vida, trabalho, moradia, educação e também maior participação po-lítica dessas categorias frente ao Estado. Nas décadas de 1970 e 1980, os movimentos contra a ditadura, pela anistia, Diretas Já exigiam direitos políticos equânimes na participação social e representação política. Por isso, a CF de 1988, ficou conhecida como Constituição Cidadã, pois ab-sorveu essa luta histórica por direitos, participação e representação so-cial que marcaram a formação do Brasil.

A democracia brasileira foi se forjando conforme as disputas e a atuação dos movimentos sociais e partidos. Trajetórias de intelectuais e instituições negociavam por projetos políticos. Em alguns momentos a democracia se expandiu e em outros houve uma retração no movimento histórico.

Uma chave para entender as concepções de democracia que se apre-sentam em determinados movimentos políticos pode ser os modelos de democracia apresentados por Habermas (1995). Para ele existem dois ti-pos consagrados de concepções do modelo democrático, um liberal e ou-tro republicano. O sociólogo alemão nas duas concepções apresentadas contrapõe o trabalho do professor de teoria de Harvard Frank Michel-mann. Sendo assim, a concepção liberal consiste na perspectiva de que o Estado trabalha na administração das necessidades sociais, ou seja, ao Estado cabe o planejamento político que atenda os múltiplos interesses dos indivíduos que compõem a sociedade. Já a sociedade é formada por um sistema complexo no qual o mercado, a vida privada, o trabalho, a comunidade determinam esses interesses. Ao Estado cabe à adminis-tração dessa complexidade em favor do bem coletivo. O Estado para a

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concepção republicana exerce uma função além de administrador/me-diador dos conflitos sociais. A política é percebida sob o ponto de vista ético e solidário e a complexidade da sociedade é trabalhada na perspec-tiva do consenso social. O Estado já não media as relações controversas, mas a sociedade como um todo participa de forma equânime do pro-cesso, reconhecendo todas as demandas e a diversidade de interesses e acordando possíveis consensos sociais. Dessa forma, há uma ênfase na participação e autonomia dos cidadãos objetivando uma integração co-munitária solidária em prol da coletividade.

Habermas (1995) discorre sobre o papel dos cidadãos nessas duas concepções. Para a concepção liberal, os cidadãos possuem direitos sub-jetivos e, por isso, recebem a tutela de proteção do Estado. Desta forma as individualidades e os direitos políticos serão atendidos nos limites da lei, por isso, os cidadãos são livres para suas escolhas pessoais e po-líticas. Já a concepção republicana percebe o cidadão a partir de suas liberdades positivas que devem ser alcançados com participação e co-municação. Assim, o campo dos direitos está condicionado ao campo da participação social. O Estado não se coloca como um mediador, mas um facilitador dessa participação política, que visa cidadãos livres e iguais numa relação dialógica constante.

Contudo, Habermas (1995) propõe uma concepção alternativa para esses dois modelos. A terceira via proposta por ele é a concepção de de-mocracia deliberativa. Habermas ao analisar os pontos positivos e ne-gativos de ambas as concepções anteriores advoga que o modelo de de-mocracia deliberativa leva em consideração a pluralidade das formas de comunicação social e consequentemente o equilíbrio das demandas e interesses diversos envolvidos no processo político. Há uma relação dialógica e pedagógica nessa forma de comunicação social. A relação institucional entre sociedade civil e Estado proposto por essa teoria não apenas media nem busca o consenso social, mas a partir de argumenta-ções finalmente delibera sobre as políticas públicas. Sobretudo, a teoria

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deliberativa atua na legitimidade política de tomada de decisões dos ci-dadãos livres e iguais sobre o bem coletivo.

Lüchmann (2007, p. 147) ao discorrer sobre as experiências partici-pativas brasileiras aponta no Brasil, nos anos noventa, prevaleceu à con-cepção habermasiana de democracia deliberativa que

[...] caracterizada neste modelo teórico, por um conjunto de sujeitos coletivos que tematizam novas questões e problemas, que clamam por justiça social e que organizam e representam os interesses dos que são excluídos dos debates e deliberações políticas. Com efeito, construindo e ampliando a esfera pú-blica, a sociedade civil passa a articular-se, ou a constituir-se em um núcleo central do conceito de democracia deliberativa.

Diante deste quadro, a sociedade civil, paulatinamente ocupou espaços deliberativos na democracia brasileira como os conselhos gestores, fóruns públicos, orçamento participativo, conferências públicas. Nesses espaços se estabelece uma relação dialógica, porque não necessariamente se bus-ca somente o consenso, mas sim o diálogo por meio de representações pa-ritárias que definirá deliberação sobre determinadas agendas políticas.

Contudo, existem diferentes graus de participação e representação política que podem incidir sobre a qualidade ou não da democracia de-liberativa. A teoria dos capitais de Bourdieu (2015) pode ser uma expli-cação para diferentes percepções e atuações na prática democrática. Os capitais sociais, culturais, econômicos e simbólicos dos indivíduos se diferem conforme suas trajetórias, determinando suas idiossincrasias, posições políticas e práticas sociais. Por isso, o campo da participação e representação será sempre movido por tensionamentos de múltiplas va-riáveis. Essas variáveis podem ser percebidas, entre os agentes públicos envolvidos, os mecanismos de acesso aos canais participativos, os dese-nhos institucionais das interfaces participacionistas, os burocratas de nível médio, os que gerenciam e implantam políticas públicas e os indi-víduos que ocupam espaços associativos. Lüchmann (2012) observa que

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muitas vezes há uma debilidade do Estado para lidar com essas plurali-dades e complexidade da sociedade brasileira.

Cortes e Lima (2012) afirmam que as políticas públicas se expandi-ram vertiginosamente no Brasil a partir da década de 2000. E as relações entre o Estado e sociedade civil tornaram-se foco de pesquisas acadêmi-cas e interpretações de inúmeras perspectivas teóricas e metodológicas. Muitos conselhos, conferências, fóruns públicos foram estimulados pelo Estado com a característica de democracia deliberativa. Os novos sujei-tos de direitos, assim como suas relações identitárias e formas associati-vas, tornaram-se objetos de estudos da sociologia e história, assim como surgiram redes e novos movimentos sociais.

Isto fez com que no Brasil surgisse uma celebração da denominada democracia participativa e representativa. Avritzer (2008) ao analisar os desenhos institucionais aponta que existem três variáveis de arran-jos institucionais participativos: a) modelo de baixo para cima, como é o caso do orçamento participativo onde a comunidade decide o que será investido em políticas públicas; b) o modelo de participação paritária onde os membros do Estado e da sociedade civil debatem sobre os en-caminhamentos e implantação das políticas públicas numa espécie de poder partilhado; c) modelo de referendo social, processos nos quais os indivíduos são chamados para referendar as decisões do Estado.

Diante desse levantamento teórico exposto sobre algumas reflexões da democracia deliberativa, participação e representação social no Bra-sil, será problematizado nesse artigo, em que medida e circunstâncias efetivamente se modificam as concepções das políticas públicas relacio-nadas à área da cultura. Também será realizado um exercício de interpre-tação para os modelos de democracia que são instituídos pelo Estado para a cultura, de um modelo de referendo, de mediador, para um deliberativo e participativo. Pretende, sobretudo, mostrar essas intersecções e rupturas no desenho institucional dessas políticas públicas a partir dos decretos governamentais, e desta forma, discutir sob o ponto de vista teórico, onde algumas variáveis se encontram, singularizam e rompem trajetórias, for-mas e modelos das instituições participativas.

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A ORIGEM HISTÓRICA DO CONSELHO E SUAS TRAJETÓRIAS POLÍTICAS

Muitos teóricos e agentes culturais advogam que o estabelecimento de uma política nacional de cultura tomou corpo a partir do governo Lula. Por outro lado, o histórico das políticas culturais no Brasil remete a dé-cada de 1930. Há uma intersecção metodológica das políticas culturais nos anos 2000, mas há uma ruptura com a forma tradicional dos conse-lhos de cultura.

A origem das políticas públicas na área de cultura no Brasil remete--se ao governo de Getúlio Dornelles Vargas no período do Estado Novo (1937-1945). Quando o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Na-cional (SPHAN) foi criado pelo Decreto Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937, um ano depois, foi criado o Conselho Nacional de Cultura (CNC), pelo Decreto Lei nº 526, 1 de julho de 1938, como um órgão de cooperação sob o controle e influência do Ministério da Educação e Saúde (MES). O CNC seguia o exemplo do Conselho Nacional de Educação (CNE) cria-do em 1931 sendo que pela Constituição de 1934 recebeu a responsabili-dade de elaborar o Plano Nacional de Educação. Se a educação para Gus-tavo Capanema estava a serviço da Pátria, a cultura por outro lado era um instrumento cívico igualmente. (HORTA, 2012)

Apesar do Decreto Lei nº 25 de criação do órgão de patrimônio, ter instituído no mesmo aparato legal seu Conselho Técnico Consultivo, o CNC havia sido criado para trabalhar sob o controle do MES no que tange ao desenvolvimento cultural. Segundo a concepção do MES as atividades pautadas no espírito cívico, no cultivo das artes, na conservação do pa-trimônio cultural:

• a produção filosófica, científica e literária;

• o cultivo das artes;

• a conservação do patrimônio cultural (patrimônio histórico, ar-tístico, documentário, bibliográfico, etc.);

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• o intercâmbio cultural;

• a difusão entre as massas através dos diferentes processos de pe-netração espiritual (o livro, o rádio, o teatro, o cinema, etc.);

• a propaganda e a campanha em favor das causas patrióticas ou humanitárias;

• a educação cívica através de toda sorte de demonstrações cole-tivas;

• a educação física (ginástica e esportes);

• a recreação individual ou coletiva. (BRASIL, 1938)

O CNC era composto por sete conselheiros, entre funcionários do alto escalão do governo oriundos do Ministério da Educação e Saúde e “pessoas notoriamente consagradas ao problema da Cultura”. Eles rece-biam a quantia de cinquenta mil réis por sessão que comparecerem e não poderiam exceder quinhentos mil réis por mês em reuniões. (BRASIL,’ 1938) Competia ao CNC conforme seu art. 3º:

• Fazer o balanço das atividades, de carater público ou privado, realizadas em todo o país, quanto ao desenvolvimento cultural, para o fim de delinear os tipos de instituições culturais e as dire-trizes de sua ação, de modo que delas se possa tirar o máximo de proveito;

• Sugerir aos poderes públicos as medidas tendentes a ampliar e aperfeiçoar os serviços por eles mantidos para a realização de quaisquer atividades culturais;

• Estudar a situação das instituições Culturais de caráter privado, para o fim de opinar quanto às subvenções que lhes devam ser concedidas pelo Governo Federal. (BRASIL, 1938)

O CNC atuaria dessa forma no suporte técnico burocrático do go-verno varguista. A cultura era concebida como atividades culturais,

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principalmente de difusão cívica, educação de cunho nacionalista para contemplar os ideários do governo estadonovista. Por isso, a responsa-bilidade do CNC também era estudar possíveis subvenções que seriam concedidas pelo governo federal, mas que tivessem dentro desse panora-ma de interesse. O desenho institucional do CNC foi remodelado no iní-cio da década de 1960 para atender os requisitos militares e desta forma foi reinstituído pelo Decreto nº 50. 293, de 23 de fevereiro de 1961, pelo presidente Jânio Quadros. Foram criados inúmeros órgãos temáticos para organizar seu organograma funcional: a) Comissão Nacional de Li-teratura; b) Comissão Nacional de Teatro; c) Comissão Nacional de Ci-nema; d) Comissão Nacional de Música e Dança; e) Comissão Nacional de Artes Plásticas. f) Comissão Nacional de Filosofia e Ciências Sociais. Como atribuições o CNC em seu terceiro artigo apresentava:

a) estabelecer a política cultural do Govêrno, mediante pla-no geral a ser elaborado, e programas anuais de aplicação; b) estudar e opinar sobre [sic] todos os assuntos de natureza cul-tural que lhe forem submetidos pela Presidência da Repúbli-ca; c) sugerir à Presidência da República medidas de estímulo à atividade cultural; d) proceder ao balanço das atividades culturais em todo o País, de caráter público ou privado, rela-cionando os órgãos e entidades que as exercem, para o fim de coordenar a ação do Govêrno frente tôdas as instituições cul-turais existentes, visando o maior rendimento de sua ação; e) propor ao Govêrno a reestruturação, ampliação ou extinção de órgãos culturais da União a sua articulação dentro do pla-no geral de estímulo à cultura e a criação de órgãos novos para atender as necessidades de desenvolvimento cultural do País; f) manter atualizado um registro de tôdas as instituições cul-turais de caráter privado do País para fim de opinar quanto às subvenções, auxílios ou quaisquer outras medidas de iniciati-va do Govêrno Federal; g) apresentar anualmente à Presidên-cia da República um relatório sôbre as atividades culturais do País e sôbre a ação desenvolvida pelo próprio Conselho; h) apreciar, previamente, os programas de trabalho anualmente elaborados pelas Comissões criadas pelo artigo 2º, bem como decidir sôbre quaisquer outras sugestões dessas Comissões; i)

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cooperar com os periódicos de difusão cultural do País, con-tribuindo para assegurar a sua continuidade; j) editar uma revista destinada a difusão cultural das artes e da cultura e ao registro das atividades culturais em todo o País; k) estudar e desenvolver medidas no sentido da população da cultura, in-clusive através da manutenção de estação emissora de rádio e de televisão; l) estimular a criação de Conselhos Estaduais de cultura e propôr convênios com órgãos dessa natureza, para unidade e desenvolvimento da política cultural do País; m) elaborar o Regulamento Interno do Conselho e aprovar o das Comissões a êle subordinadas; n) articular-se com todos os órgãos culturais da União, podendo requisitar dêles o que ne-cessitar para o cumprimento de suas atribuições.

Como se observa, nesse Decreto prosseguia a função técnica admi-nistrativa e burocrática do CNC, organizado em comissões de especia-listas. Em relação às políticas públicas, o Decreto sinalizava um estímulo ao surgimento de órgão de cultura como conselhos, secretarias e funda-ções nos estados e munícipios. A função do Conselho ainda reforçava as atividades culturais como foco de atuação dos conselheiros tanto no ma-peamento (como entregar relatórios dessas atividades para o governo) como no fomento. A atuação conselhista, era meramente burocrática e de consultoria. Os conselhistas estudavam, opinavam, sugeriam, porém não deliberavam sobre absolutamente nada.

Nesta nova versão surgiram comissões especializadas no teatro, música, cinema, rádio, literatura, ou seja, em políticas exclusivas, para substituir o que vagamente estava colocado no Decreto varguista, quan-do atribuía à função pedagógica do conselho em relação às “massas”. Todos os verbos das atribuições do CNC no Decreto variavam entre: estabelecer, opinar, estudar, sugerir, proceder, apreciar, editar, articu-lar, estimular e cooperar. Sobretudo, o CNC aconselhava o governo, não deliberava e não compartilhava poderes, nem tampouco, incidia sobre a execução e o acompanhamento das políticas públicas.

No período de 1964 a 1966 o CNC esteve desativo, quando foi recriado com o nome de Conselho Federal de Cultura (CFC), por meio de Decreto

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Lei nº 74, de 21 de novembro de 1966, e a partir do Decreto nº 60.237, de 17 de fevereiro de 1967 foi instituída sua instalação e funcionamento. O CFC era composto, por 24 membros, todos nomeados pelo presidente do Brasil com áreas específicas de atuação, divididas em: a) artes; b) letras; c) ciências humanas; d) patrimônio histórico e artístico nacional. Todos os conselhistas eram indicados pelo presidente do Brasil, a escolha entre intelectuais, literatos, artistas e todos aqueles que tivessem uma trajetó-ria consagrada de acordo com aquilo que o governo acreditava. Novamen-te os homens2 de notório saber circulavam entre os conselhistas.

Maia (2010) ao analisar a história do CFC afirmou que esses ho-mens de notório saber eram recrutados da Academia Brasileira de Le-tras (ABL), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Sphan, lugares considerados consagrados para o campo cultural. Gilberto Freyre afirmava que os conselheiros do CFC eram cardeais da cultura, reforçando uma visão santificada do Conselho e da incumbência que lhes foi outorgada.

O Conselho Federal de Cultura permaneceu sob a jurisdição do Mi-nistério da Educação até a promulgação do Decreto n.º 91.144, de 15 de março de 1985, o qual instituiu o Ministério da Cultura e dispôs sobre sua estrutura, órgãos e atribuições. O Conselho Federal de Cultura (CFC), o Conselho Nacional de Direito Autoral (CNDA), o Conselho Nacional de Cinema (Concine), a Secretaria da Cultura, a empresa Brasileira de Filmes S/A (Embrafilme), A Fundação Nacional de Arte (Funarte), Fun-dação Nacional Pró-Memória (Pró-memória), a Fundação Casa de Rui Barbosa e a Fundação Joaquim Nabuco passaram para a estrutura3 ad-ministrativa do MinC.

2 Rachel de Queirós foi uma conselheira designada pelo Presidente para compor o CFC. Ela encontrava-se no meio dos 23 homens que compunham as cadeiras do CFC.

3 a) CFC - criado pelo Decreto-lei nº 74, de 21 de novembro de 1966, e alterações posteriores; b) CNDA - criado pela Lei nº 5.988, de 14 de dezembro de 1973, e alterações posteriores; c) Concine – criado pelo Decreto nº 77.299, de 16 de março de 1976, e alterações posteriores; d) Secretaria da Cultura – criada pela Portaria nº 274, de 10 de abril de 1981; e) Embrafi-me - criada pelo Decreto-lei nº 862, de 12 de setembro de 1969, e alterações posteriores; f)

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Um dos argumentos centrais para a criação do MinC, era de que a cultura deveria se estabelecer como pasta autônoma, pois possuía sin-gularidades que necessitavam de uma atuação mais setorializada. Desta forma, perdurou até 1990, quando o governo de Fernando Collor de Mello fechou o MinC e o CFC. Contudo, os dois foram reabertos dois anos depois no governo de Itamar Franco em 1993 e desta vez o Conselho Federal de Cultura mudou seu nome para Conselho Nacional de Política cultural (CNPC).

A seguir o Decreto de nº 3.617, de 2 de outubro de 2000 instituiu no-vamente o Conselho Nacional de Política cultural no governo de Fer-nando Henrique Cardoso com Francisco Weffort a frente do Ministério da cultura. Porém, o Conselho não atingiu uma égide participacionista no seu desenho institucional, nem com a criação do MinC, tampouco, após a Constituição Federal de 1988. Há de se registrar que o Brasil no início dos anos 2000, já estava consolidando experiências conselhistas paritárias na área da saúde, mobilidade urbana entre outras. Mas, para a cultura ainda permanecia, a antiga competência de sugestão de políticas públicas, de assessoramento:

Art. 4o Compete ao Conselho assessorar o Ministro de Estado da Cultura na formulação e definição de diretrizes, estraté-gias e políticas públicas para a ação governamental na área cultural, emitindo pareceres em assuntos que lhe forem sub-metidos pela Presidência ou sobre proposições apresentadas por qualquer dos seus membros. (BRASIL, 2000)

Essa prerrogativa de “assessorar” o ministro de estado da cultura retor-nava a função clássica dos conselhos com uma perspectiva puramente técnica burocrática e não política. No mais, não houve eleição para os conselheiros, mas sim a tradicional indicação do Presidente da Repú-

Funarte - criada pela Lei nº 6.312, de 16 de dezembro de 1975, e alterações posteriores;g) PRÓ-MEMÓRIA - criada pela Lei nº 6.757, de 17 de dezembro de 1979, e alterações poste-riores; h) Fundação Casa de Rui Barbosa - criada pela Lei nº 4.943, de 6 de abril de 1966, e alterações posteriores; i) Fundação Joaquim Nabuco - criada pela Lei nº 770, de 21 de julho de 1949, e alterações posteriores.

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blica. Esta recomendação, porém, agora ficava restrita aos titulares das secretarias e autarquias que compunham a base administrativa do MinC como: secretário do livro e leitura; presidente do Iphan, secretário do audiovisual; secretário do patrimônio, museus e artes plásticas; secre-tário da música e artes cênicas e os presidentes das Fundações Cultural Palmares, Casa de Rui Barbosa, Funarte e Biblioteca Nacional. Os ho-mens de notório saber agora se restringiam aos burocratas das secreta-rias e autarquias do governo. (BRASIL, 2000)

Este desenho institucional perdurou até 2005 quando no governo Lula houve uma mudança radical na orientação política do CNPC. Com a insti-tuição do Decreto nº 5.520, de 24 de agosto de 2005, o CNPC foi composto por Plenário, Comitê de Integração de Políticas Culturais (CIPOC), Cole-giados Setoriais, Comissões Temáticas ou Grupos de Trabalhos e Confe-rência Nacional de Cultura. O Plenário ainda era composto por 24 repre-sentantes do poder público federal, a exemplo do CFC, mas agora possuía na sua base: a) 4 representantes do poder público dos Estados e Distrito Federal; b) 4 representantes do poder público municipal; c) 1 represen-tante do Fórum Nacional do Sistema S; d) 1 representante das entidades ou das organizações não governamentais; e) 14 representantes das áreas técnico-artísticas; f) 11 representantes do patrimônio cultural; g) 3 per-sonalidades com notório saber na área cultural (indicado pelo Ministro da cultura); h) 1 representante de entidades dos pesquisadores da área de cultura; i) 1 representante do Grupo de Institutos, Fundação e Empresas (Gife); j) 1 representante da Associação Nacional dos Dirigentes das Ins-tituições do Ensino Superior (Andifes); l) 1 representante da Associação Nacional das Entidades de Cultura (Anec); m) 1 representante do Institu-to Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB): n) 1 representante da Socie-dade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Percebe-se que nessa configuração institucional o governo tentou mapear e arrolar técnicos que de alguma forma atuavam em frentes mi-nisteriais, institucionais governamentais, associativistas, corporativis-tas e obviamente manteve três representantes de notório saber, o que

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tradicionalmente compôs as versões anteriores dos Conselhos de Cultu-ra, a exemplo do CNC e do CFC. Mais, uma vez um aparato técnico buro-crático relevante.

Como se percebeu até aqui, nada de novo no desenho institucional do CNPC, exceto, a entrada da sociedade civil que foi estimulada pelos Co-legiados Setoriais. Os Colegiados podem ser interpretados à luz das anti-gas Comissões Técnicas de versões anteriores do CFC. Porém, a ruptura finalmente se faz presente quando a composição dos Colegiados passa ser exclusividade da sociedade civil, ou seja, nenhum servidor, ou cida-dão que possui cargo comissionado em nenhuma esfera de poder, poderá concorrer a uma vaga no Conselho Nacional de Política Cultural e nos seus respectivos Colegiados Setoriais.

Desta forma, há uma nova formatação institucional dos Colegiados Setoriais, como instância do CNPC com a participação efetiva da socie-dade civil. Cada Colegiado possui 15 membros titulares e 30 membros su-plentes. Os membros titulares de cada Colegiado escolhem um membro para representar o Colegiado no Pleno do CNPC. Os Colegiados foram divididos, primeiramente em duas áreas específicas: 1) Área Técnica Ar-tística: a) artes visuais; b) música popular; c) música erudita; d) teatro; e) dança; f) circo; g) audiovisual; 2) Área de Patrimônio Cultural: a) cul-turas dos povos indígenas; b) culturas populares; c) arquivos; museus; patrimônio cultural material. Observa-se que até aqui são 12 cadeiras, ao passo que as indicações do governo representam vinte e quatro, sendo as-sim, não havia paridade. Os Colegiados tinham como função conforme o Decreto nº 5.520, “fornecer subsídios para a definição de políticas, dire-trizes e estratégias dos respectivos setores culturais de que trata o artigo 12, e apresentar as diretrizes dos setores representados no CNPC, pre-viamente à aprovação prevista no inciso II do art. 7 º.” (BRASIL, 2007)

Entretanto, o Decreto nº 6.973, de 07 de outubro de 2009, alterou e atribuiu nova redação ao Decreto nº 5.520 justamente quando se refere ao inciso II do art. 7 º, que determinava que: “Art. 7 º § II acompanhar e fiscalizar a execução do Plano Nacional de Cultura;” (BRASIL, 2005) e

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agora pelo Decreto de 2009, recebia a seguinte alteração: “Art. § II - pro-por e aprovar, previamente ao encaminhamento à coordenação-geral do SFC tratada no inciso I do art. 3o, as diretrizes gerais do Plano Nacional de Cultura;” (BRASIL, 2009) Também esse Decreto, aumentou as cadei-ras do CNPC instituindo mais alguns Colegiados como: a) artesanato; b) design; c) patrimônio imaterial; d) moda. As cadeiras setoriais agora eram dezessete versus vinte e quatro representantes do governo.

Percebe-se aí uma indicativa deliberativa nas competências do CNPC, ou seja, acompanhar e fiscalizar, propor e aprovar são verbos que lhe conferem uma responsabilidade política que não somente técnica. Sob a ótica da atuação do CNPC e as possíveis arenas de debates e nego-ciações se percebe também uma mudança na orientação regimental dos Colegiados. Os verbos acompanhar e fiscalizar faziam parte do Decreto de 2005 e foram substituídos pelos verbos propor e aprovar no Decreto de 2009. Essa mudança semântica também é uma mudança política na condução e orientação do trabalho do conselheiro nacional de cultura. Cunha Filho (2010) analisou a função do CNPC e afirmou a partir do De-creto de 2005, que o CNPC, adquiriu um caráter potestativo – órgão de poder que está ligado diretamente à estrutura do Ministério da Cultura –, sendo assim, em sua análise apresenta os quatro tipos de naturezas distintas que possuía o CNPC: 1) Fiscalizatória; 2) Normativa; 3) Con-sultiva; 4) Executiva.

A natureza do CNPC é evidentemente política, não apenas pelo que revela a sua designação, mas por cada uma e princi-palmente o conjunto de suas competências, todas construí-das no sentido de interferir nos rumos públicos adotados para a cultura. Contrastando esta conclusão com a composição do conselho, no qual muitos dos seus integrantes emanam de órgãos de representação cultural, infere-se que esta opção se justifica muito mais por questão de legitimidade que de expertise, posto que versam sobre políticas e não sobre técni-cas dos fazeres das respectivas áreas. (CUNHA FILHO, 2010, p. 103-104)

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Nesse sentido, esses quatro tipos de natureza que o Conselho Nacional de Política Cultural possuía, ia redesenhando as outras interfaces nortea-doras da política nacional, como os Colegiados Setoriais, Fóruns Públi-cos e a Conferência Nacional de Cultura. Contudo, observa-se que essas naturezas jurídicas das quais fala Cunha Filho (2010) serão modificadas em decretos posteriores, a exemplo do Decreto de 2009.

O último decreto analisado para esse artigo, o Decreto nº 8.611, de 21 de dezembro de 2015, instituiu outros Colegiados Setoriais, aumentando as cadeiras da sociedade civil no Pleno do CNPC. Essas cadeiras foram solicitadas na III Conferência Nacional de Cultura em 2013. Cultura hip-hop, expressões artísticas culturais afro-brasileiras, capoeira, cul-tura alimentar, culturas quilombolas, culturas dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana, e pelo art. 1º § VIII que o CNPC teria também uma cadeira para um “representante das expressões Culturais lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) e demais gru-pos da diversidade sexual.” (BRASIL, 2015) agora seriam 24 cadeiras versus 24, um Conselho com paridade representativa.

Observa-se que há similitudes nos Colegiados propostos, porém, al-gumas modalidades foram fragmentando-se em áreas dispersas confor-me os interesses diversos de seus representantes. Assim, o Colegiado de Cultura Popular, por exemplo, já não atendia as demandas dos povos de matriz africana, que também não se sentia a vontade para representar a capoeira, o hip hop. Já a Capoeira e cultura alimentar poderiam estar inseridas no Setorial de Patrimônio Imaterial. Mas, os representantes desse segmento resolveram reivindicar uma cadeira exclusiva, mesmo se tratando de um bem registrado como patrimônio imaterial pelo Iphan como é a Capoeira. Ainda controversa é a reivindicação de uma cadeira para culturas dos povos e comunidades tradicionais de matriz africana, quando já havia uma para cultura afro-brasileiras. Como entender essa celeuma de representações e reivindicações?

Todas essas cadeiras foram reivindicadas em Moções pela III Con-ferência Nacional de Cultura. De acordo com o discurso de abertura da Ministra Marta Suplicy “Foram 50 mil pessoas participando das Con-

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ferências Municipais, Intermunicipais, Territoriais, Regionais, Esta-duais e Livres. É o dobro de participantes em relação a 2010 (200 mil)”. (REVISTA DO MINC, 2013, p. 8) E na plenária final da III Conferência fo-ram aprovadas 104 moções, a exigência para apreciação do plenário seria o mínimo de 50 assinaturas. (REVISTA DO MINC, 2013, p. 15) Todas es-sas mudanças foram estabelecidas por recomendações da sociedade civil em uma instância deliberativa e legítima como uma Conferência Pública.

A partir dessas questões levantadas nesse artigo a respeito do histó-rico do CNPC, observa-se que há no caso dos Colegiados Setoriais e suas múltiplas representações e divisões disputas identitárias no campo so-cial. Essas disputas alimentam as proposições, as moções e recomenda-ções que são deliberadas na Conferência de Cultura. Estabelece-se um jogo político que influencia a dinâmica societal dos movimentos sociais e culturais e por outro atinge também a atuação estatal. A partir do mo-mento que a moção ou recomendação foi aprovada pela plenária da Con-ferência ela deve ser publicada em Diário Oficial da União e ser aprecia-da e referendada no plenário do CNPC e executada na agenda política do Ministério pelo gestor público.

A quantidade de moções e recomendações que a III Conferência de Cultura aprovou mostra que há além da disputa ideológica e identitária, uma busca por reconhecimento social de determinados grupos dentro do Ministério da Cultura. O estabelecimento de cadeiras representati-vas pode dilatar o jogo político e incluir novos sujeitos de direitos nes-se processo, como podem fragmentar ainda mais a área de atuação de determinados grupos ou coletivos. Por isso, esse reconhecimento social desejado pode ser entendido na chave explicativa da categoria de inter-subjetividade que Axel Honneth (2003) elaborou a partir de Hegel.

O filósofo e sociólogo alemão reflete que os primeiros debates sobre o reconhecimento social a partir da perspectiva da intersubjetividade surgiram a partir da teoria hegeliana do conhecimento. Desta forma, se o reconhecimento é um processo de devir, onde todas as demandas são construídas historicamente de forma intersubjetiva a partir do campo cultural, racial, social, econômico, religioso, todas as políticas sociais

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devem considerar essa questão como um processo em construção e anta-gônico. Estabelece-se aí, uma gramática moral, que nos casos heterogê-neos exemplificados de composição da sociedade civil do CNPC e a reivin-dicação por cadeiras específicas, demonstra que o reconhecimento não se restringe a uma luta de autodeterminação, valorização cultural ou distri-buição econômica, mas fundamentalmente é marcado pelo processo de alteridade. Há a necessidade do reconhecimento do outro para o outro.

Os conselhos políticos são espaços de consagração. Esses espaços po-dem ser de poder, status social, disputa de hegemonia e de proposições, debates e deliberações sobre políticas públicas. E por mais que ele seja aberto e inclusivo os conselhos sempre serão espaços de poder, elitizados. Por isso, estar inserido nesses espaços significa ser reconhecido como re-presentante de alguém ou de alguma causa específica. Isso requer uma questão de responsividade, a quem se representa e em que condições as demandas dos representados se fazem presentes dentro da esfera conse-lhista, onde todos são diferentes – representam causas e interesses di-versos– e iguais ao mesmo tempo – todos possuem o mesmo poder de de-cisão e os mesmos direitos com exceção a representação governamental.

A partir dessa reflexão pode-se trabalhar a ideia de campo de Bour-dieu (2015) na análise dos Colegiados Setoriais e na formatação insti-tucional do CNPC por seus decretos e portarias. As negociações, as dis-putas, os jogos de poder que são forjados no interior e fora do Conselho fazem com que aja uma disputa de campo, consequentemente uma dis-puta por reconhecimento. Como foi observada nas novas composições de cadeiras, a capoeira acredita que não pode ser representada pelo hip hop e os povos de terreiros e esses não se sentem representados pelo Se-torial de Cultura Popular e Patrimônio Imaterial.

Alterações, inclusões, recomendações, exclusões fazem com que o CNPC seja redesenhado a cada Conferência de Cultura. Por um lado, isto é muito saudável, pois, mostra que o processo é vivo e dinâmico, por ou-tro mostra fragilidades nessas disputas e a incapacidade de se pensar as diferenças que existem dentro dessas comunidades/representatividade imaginárias. Anderson (2005) reitera que essa uniformidade sonhada

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de uma comunidade e território não existem, a homogeneidade é sempre imaginada e inventada historicamente. Todos possuem suas demandas sociais, percepções sobre o tempo, espaço, cultura, construções identi-tárias e trajetórias sociais distintas que interferem na sua prática social.

Por isso, a fragmentação, não necessariamente pode favorecer a pa-ridade, mas denota uma correlação de forças e disputas por hegemonia que se encontra dentro da própria diversidade cultural, um processo inerente do fazer cultural. As representações culturais são como pat-chworks em uma colcha de retalhos, difíceis de serem costuradas e dis-formes conforme o tamanho dos retalhos em suas variadas cores e tipo-logias de tecidos.

Por isso, os desenhos conselhistas devem ser pensados de formas transversais, horizontais, mas inclusivos e desiguais. Pensar em polí-ticas públicas dentro de uma lógica ampla e não setorializada para não correr o risco da reivindicação parar na demanda de um grupo ou de uma única representatividade. Indubitavelmente, há uma complexidade po-lítica na relação de participação e representação que muitos autores ten-tam responder teoricamente que interferem na eficácia e efetividade da atuação dos conselhos públicos.

Mas, por outro lado, há de se pensar a participação e representati-vidade no CNPC a partir de seus Colegiados. Quem são os conselheiros, como são eleitos, quais suas orientações políticas, suas bases e movi-mentos sociais? Há um processo democrático na escolha dessas repre-sentações? Como se dá na prática a arena de apresentação dos diferentes discursos e agendas num espaço múltiplo e diverso como o CNPC? Es-sas são questões problematizadoras que serão futuramente trabalhadas, porque é preciso entender essa performance política dos conselhistas e suas disputas por espaços e cadeiras de representação no Conselho Na-cional de Cultura.

Urbinati (2006), ao trabalhar as múltiplas teorias sobre a partici-pação política e representação na teoria política, afirma que nenhuma participação é neutra e que os cidadãos à medida que participam das es-feras políticas refazem suas demandas conforme se altera sua realida-

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de e parafraseando Charles Taylor (apud URBINATI, 1998, p. 210) “as pessoas são capazes de se unir na diferença, sem se abstraírem de suas diferenças”. Essa reflexão é importante para entender os jogos políticos que se estabeleceram no desenho institucional do CNPC.

Igualmente, corrobora-se com a perspectiva de Pateman (1992) quan-do a autora afirma que a participação transforma-se um processo educa-tivo. Os indivíduos aprimoram suas percepções sobre a realidade onde es-tão inseridos e refletem sobre ela no fazer político cotidiano. Desta forma, todas as formas de associações e participações sociais são ativadas para atingir os objetivos da coletividade em uma relação dialógica e pedagógi-ca.

Isto faz com que essencialmente se qualifique a participação e repre-sentação social nesses espaços. Os conselhos de cultura não foram “in-ventados” pelo Partido dos Trabalhadores (PT), foram sim, criados pelo governo getulista. Mas, foram reconfigurados e ressignificados na gestão do PT. Percebe-se definitivamente, uma ruptura com a versão clássica dos conselhos nos governos do PT. Talvez a origem do partido ligado ao movimento operário e social seja uma explicação para tal fenômeno. Contudo, se percebeu uma nova configuração institucional da sociedade civil dentro do Conselho Nacional de Política Cultural, principalmente, na gestão do PT.

Neste sentido, pensar uma história dos conselhos públicos como as-sociações políticas atenta para aquilo que adverte Rioux (2003) quando reflete sobre as possíveis permeabilidades das fronteiras, entre o social, o cultural e o político que interferem diretamente nesses processos asso-ciativos e na agência dos sujeitos nesse movimento antagônico societal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse artigo refletiu sobre as interfaces institucionais e a história do Conselho Nacional de Política Cultural à luz dos desenhos institucio-nais que permearam a atuação e atribuição dos mais variados setores da sociedade civil junto ao MinC. Desta forma, diferentes ações e práticas

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sociais foram geradas a partir das demandas políticas distintas em pe-ríodos históricos diferentes, por isso, existem inúmeros modelos de con-selhos, conferências e fóruns públicos no campo da cultura que diferem de desenhos conselhistas de outras áreas.

Foi identificado que o histórico das políticas culturais no Brasil re-mete sua origem à década de 1930 e o ideal participativo foi se dilatan-do conforme os novos sujeitos e movimentos sociais entraram em cena política. Por outro lado, a constituição de múltiplas interfaces junto ao CNPC, como os Colegiados Setoriais, Conferências de Cultura, Fóruns Públicos fizeram com que esse desenho institucional tivesse um alcance maior de inclusão social e por outro lado, um alargamento de represen-tações no debate das políticas culturais.

Sem a composição tradicional de representantes de notório saber, mas de membros da sociedade civil oriundos dos movimentos culturais mobilizados entre seus pares. Assim, o Presidente Lula em 2005, ao as-sinar o Decreto de (re)instituição do CNPC privilegiou de certa forma a participação da sociedade organizada, conforme as orientações legais da Constituição de 1988. Esse desenho conselhista já vinha se consoli-dando nas áreas de saúde, educação, mobilidade urbana. Isto foi sem dú-vida uma mudança sintomática na reformulação das políticas públicas, principalmente nas questões relacionadas aos processos associativistas e interfaces como os conselhos públicos.

Mas, o artigo demonstrou que no caso do CNPC, a democracia delibe-rativa na formulação harbemasiana adquiriu um formato legal, porém conflituoso com as inconstâncias políticas, trocas de gestões, alterações na atribuição legal dos Colegiados Setoriais, no que se refere ao controle social. Percebe-se que o Decreto de 2015, retira o atributo, fiscalizar e o troca por acompanhar. Em tese seria a mesma coisa se não fosse o po-der atribuído nos atos de fiscalização do bem público e das políticas que os conselheiros possuem na sua atuação. O verbo acompanhar deixa o Conselho pelo seu Regimento mais aberto à orientação política e fisca-

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lizatória do mesmo, sem se fechar na obrigação de observância se há o cumprimento legal referente às políticas públicas.

É necessário se debruçar sobre as ressonâncias sociais dessas inter-faces institucionais e sua eficácia na implantação das políticas públicas na área da cultura. Contudo, observar os caminhos desses mecanismos participativos junto ao Estado e a atuação da sociedade civil pelo reco-nhecimento social, observando quem são os sujeitos envolvidos nesses processos participacionistas, como se colocam as questões identitárias, como as demandas se fragmentam em atuações isoladas ou disputas po-líticas por cadeiras ou questões mais específicas. Como um Conselho relativamente antigo como o CNPC, que já foi CNC e CFC sofreu as os-cilações políticas dos períodos históricos conturbados que atingiu o País e como ele conseguiu tornar-se um Conselho aberto a uma diversidade cultural que fosse o mais possível representante da realidade brasileira. E como os grupos envolvidos no processo disputam entre si reconheci-mento e ocupação de espaço, num processo constante de negação e afir-mação de alteridade.

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(O)culto pelo patrimônio: (pre)tensões da memória do cangaço na cultura nordestina1

Vagner Silva Ramos Filho

INTRODUÇÃO

Passados quase 80 anos do fim do cangaço, fenômeno de banditismo da região nordestina brasileira, sua memória continua presente em vários cenários culturais do país. Em meio ao turbilhão de informações do atual mundo globalizado, as imagens do fenômeno, espalhadas em espaços ru-rais e urbanos, conseguem captar significativa atenção. As constatações dessa situação suscitam muitas indagações. Entender como a memória de um tipo de banditismo passou a receber valoração de patrimônio cul-tural nordestino é uma das mais intrigantes.

1 O texto é produto de nossa dissertação intitulada ‘Século Virgulino’: o cangaço nas (con)fu-sões da memória entre comemorações de Lampião no tempo presente, concluída em 2016. Parte substancial dessa versão foi apresentada oralmente na 11º “Conferência Internacio-nal de Jovens Pesquisadores em Patrimônio”, realizada em 2015, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em parceria com a Canada Research Chair on Urban Heritage - Université du Québec à Montréal. Alguns fragmentos do escrito estão presentes em versão publicada nos anais do III Seminário Internacional de História do Tempo Presente, promo-vido em 2017, na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).

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O problema estruturante da pesquisa é perceber em que circunstân-cias a memória do cangaço como elemento constituinte de identidade nordestina é forjada, contestada, negociada e neutralizada entre bata-lhas da memória que variam conforme os usos do passado, as demandas do presente e os vislumbres de futuro daqueles que acionam tais engre-nagens. A análise das experiências de rememoração e comemoração dos ex-cangaceiros, familiares, cordelistas, artistas, intelectuais, memoria-listas e vítimas do cangaço indica como o conflito é sua marca inerente.

Neste texto, o caminho a ser trilhado é esclarecido pelas proposições de Dominique Poulot. Considerando que “[...] a história do patrimônio é amplamente a história da maneira como uma sociedade constrói seu patrimônio”, procuramos notar como ele se mantém “[...] vivo devido às profissões de fé e aos usos comemorativos que o acompanham”, bem como os investimentos políticos, éticos e financeiros que o conformam, a fim de problematizar sua “[...] vocação em encarnar uma identidade [...]”. (POULOT, 2009, p. 12, 40)

CANGAÇO, NORDESTE E MEMÓRIA

O cangaço foi um fenômeno de banditismo vivenciado na zona rural do Nordeste brasileiro entre a segunda metade do século XIX e a primeira metade do século XX.2 Virgulino Ferreira da Silva, mais conhecido como o cangaceiro Lampião, é considerado o “Rei do Cangaço”. Lampião nas-ceu no sítio de Passagem das Pedras, atual município de Serra Talhada, estado de Pernambuco, em 1897, e morreu na Gruta de Angico, municí-pio de Poço Redondo, estado de Sergipe, em 1938. Nesta mesma ocasião, outros dez cangaceiros também morreram em Angico. Depois da morte desses bandoleiros, encomendadas pelo Governo Federal por os conside-rarem estorvos ao processo de centralização político-administrativa que tentava-se impor com o chamado Estado Novo (1937-1945), suas cabe-ças decepadas e seus despojos foram tomados como troféus da força da

2 Entendemos banditismo como fenômeno reconhecido oficialmente como um tipo de cri-minalidade.

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repressão estatal contra a criminalidade e exibidos pelas cidades nor-destinas para inibir qualquer prática semelhante.

Foi nessa conjuntura, em específico nas primeiras décadas do século XX, que foi construída a “comunidade imaginada” que é a região nordes-tina. (ANDERSON, 2008) Apesar da região concentrar uma realidade múltipla de vidas, sua imagem no senso comum está relacionada a de-terminados estereótipos: sociedade rural, agrária e artesanal, popular, violenta, religiosa e mística. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013) No con-texto de criação desse imaginário, houve corrente associação entre can-gaço e Nordeste, porque os cangaceiros transitavam pelos territórios que viriam posteriormente integrar a região. Com o passar do tempo, toda-via, o que outrora foi uma associação conjuntural virou uma associação modular, por isso as forjadas ligações são apresentadas como se fossem essenciais. Mesmo assim, as representações dos cangaceiros, sobretu-do de Lampião, podem variar ao extremo e circular entre as facetas de “bandidos”, “facínoras”, “reacionários”, “rústicos” e “viris” até “heróis”, “valentes”, “revolucionários”, “instruídos” e “afeminados”.

Toda identidade, entendida como a imagem construída socialmente de si, para si e para o outro, é mutável, negociada e atualizada. (POLLAK, 1992; CANDAU, 2012) Sugerir que a memória do cangaço é forte na estru-turação da identidade nordestina parece ser válido porque ela se impõe à uma grande maioria de nordestinos, o não quer dizer que seu significado seja consensual entre eles. Embora o cangaço tenha acabado há décadas, sua memória sobreviveu em diferentes meios culturais, tais como obje-tos, oralidades, locais, folhetos de cordel, artesanato, periódicos, foto-grafias, livros, filmes, músicas etc. que, por sua vez, propiciaram demais tipos de conservação, transmissão e ressignificação. Ao longo dos anos, essa memória foi trabalhada, manipulada e abusada com vários interes-ses, de forma que ela, a priori mais rural, regional e popular, ultrapassou em muito as fronteiras do sertão nordestino em caráter de repercussão.

Referente à sua sobrevivência na Gruta de Angico, percebe-se que de-pois do ocorrido em 1938, a memória da morte logo incrustou-se no local.

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O interessante é notar que “[...] o lugar pode reativar a recordação das pessoas, assim como as rememorações das pessoas podem reativar a re-cordação do lugar”. (ASSMANN, 2011, p. 25) A experiência de familiares do cangaço é exemplo significativo dessa combinação. Algumas de suas práticas, como a colocação de cruzes na década de 1950 em ato de condo-lência aos mortos em Angico, foram responsáveis por reativar mais ain-da a memória da morte lá incrustada. A propósito, os familiares também se engajaram na luta pelo sepultamento das cabeças decepadas dos can-gaceiros, pois assim como parte dos seus despojos, elas foram conserva-das no Museu do Instituto Médico Legal Nina Rodrigues, do estado da Bahia, sob justificativa de interesse científico e etnológico, e a liberação só ocorreu três décadas depois, no final dos anos 1960. Estácio de Lima, diretor do Instituto, alegava que as cabeças mumificadas eram “[...] documentos inestimáveis de uma época da criminalidade brasileira”. (LIMA, 1965)

Os citados interesses preservacionistas pelo cangaço, que não são únicos no período, revelam minimamente que a dita “[...] cultura po-pular só passou a ser estudada no momento em que foi censurada”. (CERTEAU, 1995, p. 65) Portanto, não seria completa metáfora dizer que, antes de a cultura popular nordestina ser ressignificada no tempo presente, ela foi policiada, repreendida e fichada.

UM “PASSADO QUE NÃO PASSA” NORDESTINO: CULTURA DA MEMÓRIA NO TEMPO PRESENTE, MEMÓRIA DO CANGAÇO RESSIGNIFICADA E O CASO DA GRUTA DE ANGICO

No terço final do século XX, conjuntura de redemocratização no mun-do ocidental, há um fortalecimento da cultura da memória em nome da tríade - memória, identidade e patrimônio. Com o incentivo ao direito à memória, dimensão básica das cidadanias que se aspiravam construir, uma profusão de “memórias subterrâneas” (POLLAK, 1989), questio-nadoras em potencial de marcos memoriais oficiais, conquistou força na cena pública, operando “fragmentação de identidades homogêneas”

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(HALL, 2011) e reivindicação de “novos patrimônios” (POULOT, 2009) por grupos que não se reconheciam nas heranças antes instituídas.

A intensificação memorial está relacionada ao surgimento, dilata-ção e expansão globalizada da cultura da memória. (HUYSSEN, 2014) Alguns vetores desse “boom” memorial (WINTER, 2006) são os seguin-tes: descentralização de ações e representações mnemônicas que não estão mais restritas a poucas instituições, como Estado, Igreja e Esco-la (NORA, 1993); o direito à memória mobilizado sobretudo por grupos marginalizados que, ao terem tido suas memórias relegados de marcos oficiais, ressaltam um desejo de tradição que também está ligado à luta por poder (HEYMANN; ARRUTI, 2012); expansão dos suportes da me-mória com o desenvolvimento da tecnologia da informação que viabili-zou maior registro, produção e difusão; interesse do público, demanda por bens culturais e tipos de consumo cultural que fomentam a espeta-cularização; ruminação de memórias de eventos traumáticos, respon-sáveis por incitar o dever de memória – compromisso em não esque-cer tais passados – a fim de que se consiga extrair alguma lição da dor. (HARTOG, 2013)

Nesse período, que vive parte mergulhado na “Era das Comemora-ções” (NORA, 1992), as comemorações enquanto práticas de rememora-ção coletiva e as valorações que demarcam o campo do patrimônio susci-taram vários debates públicos. Para Dominique Poulot (2009, p. 9, 199, 200), o fim do século XX assistiu ao “reconhecimento de novos patrimô-nios que resultam de uma profusão de esforços públicos e privados em fa-vor de múltiplas comunidades [...] e estão longe da definição canônica de herança cultural [...]”, sendo que muitos “usos são instrumentalizados na via do desenvolvimento econômico em função do turismo [...]”. Para Gilberto Nogueira, os debates sobre patrimônio foram acompanhados de mudanças conceituais elaboradas “[...] em perspectiva com os anseios de novos sujeitos históricos que entraram em cena e forjaram a necessidade de se repensar os silêncios e os ocultamentos, assim como o que deve ser protegido, valorizado e repertoriado.” (NOGUEIRA, 2014, p. 52)

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Em consonância, ressalta-se a importância das ideias de John Tunbri-dge e Gregory Ashworth sobre o chamado patrimônio dissonante para no-tar a “contestação inevitável do patrimônio em função das discordâncias quanto ao seu valor” em esforço de tratar “[...] sua história não como linha-gem de continuidade imaginária, mas como uma história rizoma de deser-ção enquanto condição básica de construção democrática”. (ASHWORTH; GRAHAM; TUNBRIDGE, 2007, p. 36) Cristina Meneguello, de forma se-melhante, reflete acerca daquelas memórias difíceis – desprovidas de gla-mour histórico ou dolorosas – que conformam os “patrimônios sombrios”, cujas dissonâncias trazem a constante indagação: “o que ocorre quando não se quer ou não se pode preservar o passado?” Partindo disso, a autora discute memórias de regimes totalitários e ditatoriais. Por um lado, res-salta como o “[...] patrimônio não é apenas um relicário de testemunhos estéticos da atividade humana, ele fala do dever de rememoração e de dí-vida para com as vítimas de crimes de Estado”. (MENEGUELLO, 2014, p. 54) Por outro, mostra preocupação com a banalização que pode atraves-sar a transformação do “lugar de barbárie” em “lugar de Cultura” e tor-ná-lo, por exemplo, repositório de souvenir. A preocupação advém de sua observação à prática do chamado Dark Tourism que “[...] ao invés de ter um olhar crítico ao ocorrido em lugares traumáticos se prende mais a exci-tação do risco”. (MENEGUELLO, 2014, p. 59)

Todos esses sintomas são pistas para entender o que David Harvey denomina de “condição pós-moderna” da sociedade – marcada pela in-tensificação da globalização, incerteza, fragmentação, efemeridade e descontinuidade. (HARVEY, 1992) Nessa circunstância, em que o regi-me de historicidade presentista é mais vivenciado, François Hartog su-gere com sua hipótese que as relações subjetivas com o tempo se altera-ram. Daí dizer que “[...] esse futuro não é mais um horizonte luminoso rumo ao qual caminhamos, mas uma linha de sombra que colocamos em movimento em nossa direção, enquanto parecemos patinar no campo do presente e ruminar um passado que não passa”. (HARTOG, 2013, p. 245)

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Em particular, a preocupação global com os traumas do passado, so-mados aos receios de futuro, foram decisivos para que a temporalidade contemporânea fosse dominada pelo presente. Por sua vez, esse presen-te não deixa de viver desorientado entre o que não pode ser esquecido e a incapacidade de imaginar o porvir. (REIS, 2012) Nessa propriedade, os tais “passados que não passam” são tipos de passados que as pessoas não querem ou não conseguem se desvencilhar facilmente, o que geralmente está relacionado às memórias dolorosas, por isso que o dilema – lembrar ou esquecer – ecoa tão forte quando são colocados em debate. A princí-pio, a expressão foi usada para memórias dolorosas da Segunda Guerra Mundial na Alemanha e França, mas passou a ser aplicada a outras me-mórias, como a da União Soviética, na Rússia, do Apartheid, na África do Sul, e das Ditaduras Militares, na América Latina. (VARELLA, 2012) A característica do dilema fez com que outras memórias, não situados necessariamente nesse panorama, também ganhassem essa conotação.

Como se pode perceber, o interesse pela memória tem múltiplos fa-tores. Pensando especificamente na sociedade dita pós-moderna, nota-mos como as imagens polidas pelo espetáculo, entendido como propõe Guy Debord (1997), isto é, “[...] não como um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada pelas coisas”, conseguem atrair mais atenção entre as tantas imagens da contemporaneidade. Por atributos de produção midiática, adequação ao consumo e repeti-ção massiva, algumas atingem estágio em que parece haver certa eman-cipação entre “realidade” e “representação”, como se fosse o que Jean Baudrillard chamou de “simulacro”. (BAUDRILLARD, 1991) Conforme sintetizou David Harvey, simulacro seria um “[...] estado de réplica tão próxima da perfeição que a diferença entre o original e a cópia é quase impossível de ser percebida”. (HARVEY, 1992, p. 261)

Se todo exercício da memória é o seu uso, isso comporta o seu abu-so. Paul Ricoeur, que oferece contribuição significativa para se entender essa conjuntura, indica como “[...] entre uso e abuso insinua-se o espec-tro da mimética incorreta. É pelo viés do abuso que o alvo veritativo da

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memória está maciçamente ameaçado”. (RICOEUR, 2007, p. 72) Não por acaso, uma política de justa memória, “[...] diante do inquietante espe-táculo que apresentam o excesso da memória aqui e o excesso de esque-cimento acolá” (RICOEUR, 2007, p. 17), é um dos temas cívicos confes-sos do autor. Ricoeur sugere igualmente que a mobilização da memória a serviço da reivindicação de identidade surge de fragilidades identitá-rias cuja uma delas é a “herança da violência fundadora”, pois “aquilo que celebramos como atos fundadores são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um estado de direito precário” e que a “glória de uns foi humilhação para outros”. (RICOEUR, 2007, p. 95) Por isso também Aleida Assmann comenta que os locais marcados por “[...] perseguição, humilhação, derrota e morte têm valor na memória mítica, nacional e histórica”. (ASSMANN, 2011, p. 348)

Com essas leituras, pensamos ter aberto caminho interessante para entender como um passado tão controverso quanto o do cangaço, pas-sível de ser visto como uma derrota histórica, vai sendo transformado até em conquista cultural marcada por dever de transmissão, pratica-mente uma vitória, visto que a “[...] história de um fracasso coletivo se torna o sucesso de uma empresa de rememoração”. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2013, p. 69)

A forjada relação entre a memória do cangaço e a identidade nordes-tina precede o tempo presente, assim como a valoração dessa Cultura mnemônica não é nenhuma novidade presentista. O diferencial, além do recorte temporal, apresenta-se na participação diversificada de insti-tuições, grupos e indivíduos que se multiplicaram com a redemocratiza-ção política brasileira dos anos 1980 na cena pública.

Marcos Clemente, que investigou as memórias do cangaço entre as décadas de 1950 e 1980, particularmente nas cidades do sertão nor-destino onde os cangaceiros passaram, como Juazeiro do Norte (CE), Mossoró (RN), Serra Talhada (PE), Triunfo (PE), Piranhas (AL), Poço Redondo (SE) e Paulo Afonso (BA), mostra como o “desejo de conhecer histórias locais” possibilitou a criação de grupos de defesa da memória,

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associações culturais e museus do cangaço. Com a promoção de seminá-rios, palestras, encontros, lançamentos de livros, monumentos e come-morações, as vezes apoiados pelos poderes locais, os sujeitos envolvidos nas iniciativas propõem novo debate sobre o cangaço para entender pro-blemas sociais da região sertaneja, como latifúndio, seca e fome, reabili-tando assim o assunto na cena pública. (CLEMENTE, 2009)

Há igualmente uma disputa em que cada cidade tenta reivindicar para si a memória do cangaço. Parte significativa dessas contendas entre as cidades pode ser entendida como fruto dos seus processos de urbani-zação que levaram a “governança” – administração pública e parceiros privados – a assumir caráter empreendedor (HARVEY, 2005), possibi-litando a criação de políticas mnemônicas para o tema que objetivavam fazer os locais serem atrativos para o capital. Assim, algumas cidades sertanejas, semelhantes nas desigualdades sociais e herança da passa-gem do cangaço em seu território, entraram em concorrência para dis-putar tal memória, buscando filtrar imagens negativas do fenômeno na construção de suas tradições identitárias.

Na perspectiva das comemorações, Fernando de Araújo Sá mostra como as batalhas da memória ressoaram fortemente na década de 1980, com comemorações aos centenários da Abolição da Escravidão (1988) e da Proclamação da República (1989) e, sobretudo na década de 1990, quando comemorações ao Tricentenário de morte de Zumbi dos Palmares (1995), aos Centenários da Guerra de Canudos (1993-1997) e ao Centenário de nascimento de Lampião (1997-1998) fizeram emergir “[...] discursos antes marginalizados no contexto da história oficial”. (SÁ, 2011, p. 32)

Nessa conjuntura, em que se assistiu a emergência de memórias marginalizadas da cena oficial – indígena, negra e sertaneja –, o tema do cangaço entrou mais em pauta. É perceptível um movimento nordesti-no que, ao ser incentivado por interesses que circulam entre – desejo de tradição, dever de memória e consumo cultural – revisita o tema ques-tionando estigmas, descasos e censuras que consideram ter sido histori-camente impostos, redefinindo o seu lugar nos quadros das identidades

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nacionais, regionais e locais. Alguns marcos dessa ressignificação po-dem ser vislumbrados: a exibição televisa nacional do seriado “Lampião e Maria Bonita”, na década de 1980; a criação da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço (SBEC), na década de 1990; e a consolidação da Mis-sa do Cangaço, na Gruta de Angico, na década de 2000. Contudo, não se pode perder de vista as contendas em torno dessa memória conflituosa, cercada de feridas abertas em seus mais variados corpus. As insatisfa-ções são reveladas sobretudo pelas vítimas do cangaço e seus descenden-tes que se incomodam com o que acreditam ser a “glorificação”, “endeu-samento” e “apologia” do cangaço.

As ressignificações, valorações e negociações dos conflitos da memó-ria cangaceira são fortemente manifestados por premissa do início dos anos 1990: “Lampião não é nem bandido, nem herói, ele é história!”.3 Na região nordestina, existem inúmeras apropriações. Obviamente, o cur-to mapeamento feito não contempla todas as possíveis interfaces envol-vidas. Entretanto, parece-nos que tal busca memorial constitui singular amostra de como o fenômeno situa-se no tempo presente, provavelmente, inserido no corolário do aforismo “um passado que não passa” por carre-gar em seu bojo dilema constante para os nordestinos – lembrar ou esque-cer?

O processo de tombamento da Gruta de Angico, aberto no início dos anos 1980, no Conselho Estadual de Cultura de Sergipe (CEC-SE), é uma das primeiras iniciativas oficiais de preservação do cangaço no tempo presente. Trata-se de um marco das disputas e acordos do tema e uma expressão sintomática da sua patrimonialização.4

3 A ideia remonta a plebiscito de 1991 na cidade de Serra Talhada para saber se a população era a favor ou contra a construção de estátua para Lampião. No caso, a organização adotou tal dizer como slogan.

4 Conselho Estadual de Cultura de Sergipe (CEC-SE). Processo do tombamento da Gruta An-gico. Iniciado em 14 de maio de 1982, com tombamento estadual em 5 de outubro de 1989 e finalizado em 26 de dezembro de 1996, quando o local passou a ter uso público. A documen-tação inclui ofícios, cartas, notícias, panfletos etc. Encontra-se na Subsecretaria de Estado do Patrimônio Histórico e Cultural de Sergipe (SUBPAC-SE). Mais informações sobre seu acondicionamento são escassas. A partir de agora, as citações realizadas sobre o processo referem-se a esse material.

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Diferente das décadas anteriores, as práticas relativas à Gruta nesse momento não resultam apenas de sofrimento pelos cangaceiros mortos, pois também decorre consideravelmente de atenção midiática em tor-no do local, o que desencadeia reativações de memória mais variadas. O pedido de preservação é feito em 1982, poucos depois do fim da exibição televisiva nacional do seriado “Lampião e Maria Bonita”, quando algu-mas informações de bastidores relacionadas à Gruta ganham destaque na imprensa sergipana, através da Gazeta de Sergipe, em artigo edito-rial. No artigo, uma denúncia é anunciada: “querem destruir a Gruta”. No tocante à espetacularização, ressalta-se como diziam que houve mui-ta ficção, já que não apresentaram “Lampião como alguém perverso, san-guinário e capaz de matar friamente”, mas sinalizando que o importante era ver um “trabalho com bom profissionalismo e bom acabamento cê-nico” motivar o “País inteiro a acompanhar os capítulos da minissérie”. (INCIDENTE..., 1982, p. 3)

A denúncia é usada posteriormente como justificativa para a solicita-ção do tombamento no CEC-SE, a qual foi articulada por alguns intelec-tuais sergipanos, familiares dos cangaceiros e funcionários da emissora de televisão que exibiu o seriado. Em linhas gerais, o pedido aponta que o proprietário da fazenda onde fica a Gruta teria dito “[...] em tom grave e ameaçador que nada tinha a ver com a cultura e que destruiria o anti-go pouso do ‘Rei do Cangaço’”. Em contrapartida, o pedido imputa que “o Estado pode e deve zelar pelo passado”, destacando que a Gruta deve ser declarada de interesse cultural para fins de tombamento porque é a forma de “preservar uma fase que não pode ser julgada pelo gosto e não gosto das pessoas, mas sim pela evidente contribuição ao estudo social do meio nordestino”. O requerimento, entretanto, não atinge o propósito almejado, pois não há resposta oficial imediata, o que relativiza a neces-sidade de preservação colocada como obrigação de primeira ordem.

Nesse sentido, três momentos comemorativos transforaram-se em importantes espaços de discussão da memória do cangaço nos quais o assunto do tombamento da Gruta, os usos do local e as imagens dos can-gaceiros foram pontuados.

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Os empreendimentos memoriais em torno do cinquentenário da morte de Lampião, ocorrido no ano de 1988, fizeram com que o final da década de 1980 fosse um momento basilar. Assim, destaca-se o I Simpó-sio Regional sobre o Cangaço: 50 anos da chacina de Angico. Seu subtí-tulo é provocador. Embora pareça ser uma frase qualquer em primeiro instante, ela expressa uma mudança significativa na forma de entender a Gruta, pois expressa claramente a tentativa de transformar o local de morte em local de memória trágica, num esforço de potencialização dos deveres da memória que pareciam ser cruciais para o tombamento.

Um indício instigante da reanimação do debate é que neste mesmo ano, o Ministro da Cultura brasileira, José Aparecido de Oliveira, mani-festa-se sobre o assunto após inúmeras solicitações, sinalizando que en-tende a demanda do tombamento da Gruta, a qual adjetiva como “último reduto do cangaço”, distanciando-se assim do que era forjado por grupos empenhados em sua preservação como local “trágico”. Além disso, tam-bém nesse ano, o local é preservado. Apesar de terem buscado proteção em nível federal, o que elucida essa articulação não tão bem-sucedida com o ministro, a Gruta é tombada apenas em nível estadual, como pa-trimônio histórico-cultural, pela Constituição Estadual de Sergipe, de 5 de outubro de 1989. A ação jurídica do tombamento, que tem certo poder de sacralização, também envolve a preservação de outros bens. Na sua seção “da cultura”, artigo 229, consta: “[...] ficam tombados todos os documentos referentes ao cangaço e o sítio histórico da gruta de Angi-co, localizada no Município de Poço Redondo”.

As comemorações ao centenário de nascimento de Lampião e seu se-xagenário de morte, datadas do fim da década de 1990, especificamente em 1997 e 1998, constituíram-se igualmente como momento relevante no quesito das ressignificações. Parte significativa das produções cultu-rais, como livros, cordéis, panfletos etc., corroboram com algumas re-presentações estruturantes do cangaceiro, como a do “injustiçado” com propensão a justiceiro; do “mal-dito” por carregar consigo traços de fe-minilidade; do “cruel” sem escrúpulos; e do “assassino” capaz de come-

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ter várias atrocidades. (RAMOS FILHO, 2016) A amplitude da imagem do injustiçado tem profunda relação com práticas de martírio que, a sa-ber, fizeram de Angico um local cativo.

Os desdobramentos dessas iniciativas, cujo ponto de inflexão rele-vante é a criação da Missa do Cangaço, em 1998, contribuíram com a con-solidação de um momento diferenciado marcado por calendário festivo do tema no início dos anos 2000. Os eventos ditos oficiais, como a Missa, fortalecem a representação do cangaceiro injustiçado, ocultando ima-gens que só ficam mais evidentes em eventos alternativos. Isso implica na “[...] tentativa do apagamento das divergências do assunto como con-dição para o estabelecimento de relativo consenso sobre a importância da apropriação turística para o desenvolvimento socioeconômico da re-gião”. (ARAÚJO SÁ, 2011, p. 44) Em certas situações, a espetacularização é tão nítida que, num dos passeios turísticos pela Gruta, pode ser que se encontre até a própria “morte à venda” através de algum souvenir das cabeças decepadas dos cangaceiros banhadas em sangue. No caso, o que importa é, literalmente, a “beleza do morto”. (CERTEAU, 1995)

Figura 1 - Souvenir de cabeças decepadas dos cangaceiros

Fonte: acervo do autor.5

5 A peça em si exposta na fotografia faz parte da coleção de objetos do cangaço do memoria-lista cearense Angelo Osmiro Barreto.

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(O)CULTO PELO PATRIMÔNIO

A ressignificação da memória do cangaço desvela uma multiplicidade de combates pelas identidades nordestinas, seja entre os nordestinos e os “outros” ou entre eles “próprios”. O processo de tombamento da Gruta é significativo porque mostra como o sentimento do sofrimento pelos can-gaceiros pode ser apropriado para unir os nordestinos em prol de lutas para a melhoria social da região.

A partir das tipologias dos usos e abusos da memória, propostas por Paul Ricoeur, algumas reflexões sobre o complexo jogo mnemônico do cangaço. No plano “patológico-terapêutico”, a prática do martírio pe-los cangaceiros vem revisitando a memória do cangaço de forma que se possa conviver com ela no presente, o que vem muito acompanhado da representação do cangaceiro injustiçado, possivelmente por ser uma das menos complicadas de lidar, usar e abusar. No plano “propriamente prático”, as práticas são realizadas com interesses ideológicos variados e forjam as mais diversas representações dos cangaceiros. A espetacu-larização é crucial nesse processo porque tem a capacidade de negociar conflitos ao condicionar certos simulacros que, apesar de não serem tão verossimilhantes com o passado cangaceiro, são interessantes para al-guns pela capacidade de uso social, político e econômico. No “plano éti-co-político”, a prática do dever de memória tenta alertar para um desca-so do Estado que teria sido o principal responsável por sertanejos terem se tornado cangaceiros e uma denúncia da sua violência cometida após a morte dos cangaceiros por terem feito das cabeças decepadas troféus macabros da repressão e não terem também cobrado por uma sepultura devida. Assim, os sujeitos envolvidos tentam extrair alguma lição do pas-sado, para que casos assim não mais aconteçam. Contraditoriamente, as vítimas que os cangaceiros fizeram não costumam aparecer muito nesses debates.

Desse cenário surgiu uma série de atribuições de valores a locais, bens e práticas que parecem convergir em direção à construção direta ou indireta de um patrimônio cultural nordestino reivindicado, dissonante

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e contestado. O patrimônio é reivindicado porque, ao emergir de vozes alternativas à memória instituída, suscita valorações que se distanciam da definição tradicional de herança cultural; dissonante porque há gran-de dissenso em torno do seu valor na identidade nordestina, seja em contestação ao seu valor enquanto elemento identitário ou por falta de acordo quanto a algumas valorações que, embora não rompam a ligação de identidade, são impugnados porque se chocam com imagens cristali-zadas; e contestado porque há questionamentos à vinculação identitária entre o fenômeno e a região.

A observação das pretensões em torno da memória cangaceira instiga a perceber o quê do culto pelo patrimônio fica por ele oculto na tensão que se faz constante entre os imperativos lembrar, esquecer e silenciar coloca-dos em jogo. Com intuito de notar mais (pre)tensões, faremos as últimas observações. Para percebê-las com mais nitidez bastaria sair um pouco do local de morte de lampião e ir para o local de seu nascimento, onde ve-mos uma das maiores contradições. Se no local de morte, encontramos o grupo folclórico “Pisada de Lampião” que, com suas práticas de valora-ção, enaltece uma dita cultura tradicional, representa o cangaceiro como valente e evoca a identidade do nordestino viril; no local de nascimento, encontramos o grupo artístico homoafetivo “Canga-Gay” que questiona essa suposta cultura tradicional com suas práticas de, por exemplo, ves-tir-se com indumentária do cangaceiro em cor de rosa, representando o cangaceiro como um afeminado em ato de ironia à identidade do nordes-tino viril.6 Sob justificativa de “deturpação do patrimônio”, existem ações judiciais para impedir esta prática que, embora não rompa a vinculação identitária entre o cangaço e a região, atribui valoração que descontrói o senso comum da identidade nordestina estereotipada.

6 Ver reportagem sobre o Canga-Gay em: https://www.youtube.com/watch?v=BU9Py-_5DiI. (CANGA-GAY..., 2009) Existem estudos acadêmicos que refletem sobre o “lado feminino” do cangaceiro Lampião pelo fato de ser muito vaidoso, usar perfume, costurar suas roupas etc. Uma referência é Lins (1997).

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o fortalecimento da cultura da memória no tempo presente, a memória do cangaço conquistou força no cenário público como contraponto aos mar-cos da memória política dominante no país. Nesse período, surgem muitas memórias, mas aos poucos elas foram sendo paulatinamente silenciadas.

No ano de 1992, quando o debate sobre o retorno das memórias sub-terrâneas estava a todo vapor, Maria Paoli (1992, p. 27) disse: “trazê-las à luz deve também implicar em não sacralizar a sua presença: uma his-tória ‘dos vencidos’ não pode ser a construção de novas mitologias, mas a produção de um direito ao passado que se faz como crítica e subversão constantes das versões instituídas”. A autora não se referia ao cangaço, mas o que disse esclarece em muito o que ocorreu com sua memória. Nesse caso, houve sacralização, monumentalização e espetacularização da memória, a ponto de alguns dos guardiões da memória do cangaço cri-minalizarem atos que destoam de imagens generalizadas.

Fica, por conseguinte, a questão - “a representação do patrimônio está se sobrepondo a seu sentido e conteúdo?”7 Particularmente, a lembrança de uma entrevista feita durante essa pesquisa tem ajudado a pensá-la. O entrevistado foi o poeta Abraão Batista, organizador do Simpósio “100 anos de Lampião”, em 1997, na cidade de Juazeiro do Norte (CE). Pergun-tado sobre o porquê da comemoração a Virgulino, logo no início do diálo-go, foi enfático ao afirmar pausadamente: “Não foi uma comemoração... Foi uma oportunidade para se analisar o fenômeno Lampião!”.8 Embora nossa proposta seja considerar o ato de comemorar como uma prática de rememoração coletiva, a sua aversão ao sentido mais enaltecedor do termo abre terreno para muita indagação.

7 Provocação lançada durante a 11º “Conferência internacional de Jovens Pesquisadores em Patrimônio - O Espetáculo do Patrimônio”, realizada em novembro de 2015, na Universida-de Estadual de Campinas (Unicamp), em parceria com a Canada Research Chair on Urban Heritage - Université du Québec à Montréal, aos pesquisadores que participavam do evento.

8 Entrevista concedida por Abraão Batista ao autor em Juazeiro do Norte, 2014.

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Dessa forma, acreditamos que toda busca de sentido justo sobre o cangaço em sua sobrevida no campo mnemônico precisa ter noção de algumas fusões e confusões da memória em torno do fenômeno. Primei-ro, é necessário perceber que os nordestinos convergem por comparti-lharem a memória do cangaço em suas faculdades mentais, mas diver-gem nas representações que fazem; que existe uma diferença entre a prática de comemorar e a representação construída com comemoração; que é preciso distinguir ações de valoração da memória que a tornam pa-trimônio das representações que engendram. Segundo, os acordos e con-flitos da memória do cangaço podem dizer, em alguns casos, mais sobre os sujeitos que constroem seus significados do que o próprio significante que é o fenômeno do cangaço. Terceiro, memória e história se entrecru-zam, e qualquer tentativa de separação total parece temerária, pois de-pendendo do objeto de estudo tanto a história pode elucidar a memória quanto a memória pode elucidar a história, contribuindo assim para a produção de conhecimento das verossimilhanças do nosso futuro passa-do que esteja adequado às exigências epistemológicas do saber histórico crítico aberto ao diálogo democrático com o outro.

Destarte, essas são apenas algumas reflexões. Certamente, há mais ruminações entre as memórias do cangaço e as identidades nordestinas do que manifestam as que foram aqui redigidas. De qualquer forma, o ensinamento de que a “[...] memória deve servir para a libertação e não para a servidão” (LE GOFF, 2003, p. 471) das pessoas continua sendo pri-mordial na tentativa de construção de uma política da justa memória, identidade e patrimônio para o assunto no âmbito da cultura nordestina.

REFERÊNCIAS

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Integração sistêmica dos instrumentos acautelatórios para a proteção do patrimônio cultural no Brasil1

Vitor Melo Studart

INTRODUÇÃO

O advento da Constituição Federal de 1988 (CF/88) representou uma transformação na preservação do patrimônio cultural em decorrência da incorporação de diversos direitos e, especialmente, novos instrumen-tos acautelatórios. Estes incorporaram no texto constitucional diversos conhecimentos técnicos e científicos produzidos ao longo da trajetó-ria do desenvolvimento da doutrina preservacionista, tanto brasileira quanto internacional.

Dentre as várias formas que se tem para buscar a concretização da proteção ao patrimônio cultural, a mais requisitada é a via dos instrumen-tos acautelatórios. Registra-se que antes da CF/88 já existiam duas nor-mas matriciais que tratavam sobre o acautelamento aos bens culturais:

1 Este texto trata-se de uma adaptação de parte do terceiro capítulo de minha dissertação intitulada “Integração sistêmica da atividade estatal de proteção do patrimônio Cultural no Brasil” defendida junto a Universidade de Fortaleza em 2017. Sobre a dissertação em si, a íntegra da mesma poderá vir a ser disponibilizada on-line pela universidade em seu sítio eletrônico.

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o Decreto-Lei nº 25/37, que trata do tombamento; e a Lei nº 3924/61, que trata da proteção dos bens arqueológicos, ambos ainda vigentes. Na CF/88 foram previstos, além dos dois instrumentos já mencionados, a figura dos inventários e listados como meios acautelatórios a desapropriação, a vi-gilância, além de uma cláusula aberta a outras formas de acautelamento.

Adentrando na temática específica dos instrumentos acautelatórios, pode-se afirmar que o mais conhecido e utilizado na prática preserva-cionista brasileira é o tombamento, instituído por meio do DL nº 25/37. No segundo grau da escala de conhecimento e utilização, está o registro, geralmente destinado a proteger bens não suscetíveis de tombamento. No direito brasileiro, destacam-se dois tipos principais de registro: um que é aplicável aos bens culturais intangíveis ou imateriais e outro que versa sobre a proteção aos sítios arqueológicos, este previsto na Lei nº 3.924, de 26 de julho de 1961.

Em terceiro lugar, aparece o pouco difundido inventário, que no Brasil tem sido, via de regra, utilizado de forma bastante limitada, restringin-do-se ao objetivo de servir de meio para o conhecimento de bens Culturais materiais e imateriais. Por seu turno, a desapropriação, prevista no Decre-to-Lei nº 3.365/41, também tem sido pouco utilizada como instrumento de proteção do patrimônio cultura. E, por fim, tem-se ainda a vigilância.

Além destes, a Constituição abre espaço para outras formas de acaute-lamento, que podem se referir à criação ou à adaptação de instrumentos, sempre com o viés de operacionalização da proteção aos bens culturais.

Cabe destacar a merecida atenção ao Art. 37, CF/88, cuja redação foi alterada por meio da Emenda Constitucional (EC) 18/98, que incluiu um princípio importante à administração pública, o da eficiência, como uma força motriz a todas às ações do Poder Público, que deve prover a proteção aos bens culturais de forma adequada, à luz do referido prin-cípio. A introdução desse princípio é um marco importante, pois, por mais que se trate de um dever lógico, sua explicitação resta relevante sob aspecto simbólico (NEVES, 2011), operando como uma resposta do legislador à inoperância administrativa na máquina pública, maculada

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historicamente pela reputação de corrupta ou provedora de serviço de baixa qualidade à sociedade.

A gestão do patrimônio cultural necessita proporcionar a máxima eficiência do emprego dos recursos existentes. A CF/88 prevê, em seu art. 216, § 1º, uma série de instrumentos acautelatórios aptos a serem meio de proteção aos bens culturais, a saber: os inventários, os registros, o tombamento, a desapropriação, a vigilância, bem como outras formas de acautelamento. Desses instrumentos, poucos são conhecidos e pos-suem regulamentação atualizada. Observa-se, ainda, que os mesmos têm sido utilizados de forma independente e isolada dos demais, limi-tando consideravelmente o potencial protetivo aos bens culturais.

Este artigo tem por objeto tratar sobre a possibilidade de uso dos ins-trumentos de acautelamento previstos na Constituição Federal de 1988 de forma integrada, os seus pontos de convergência entre os instrumentos acautelatórios e um breve panorama sobre as ações de codificação da legis-lação protetiva aos bens culturais. Pondera-se se os instrumentos elenca-dos no Art. 216, § 1º poderiam ser utilizados de forma gradativa, propor-cional ao possível dano ou em razão da necessidade específica de proteção.

A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 E A PROTEÇÃO AO PATRIMÔNIO CULTURAL

Falando sobre o Patrimônio Cultural, a proteção deste é apresentada como um dever de todos os entes, é, portanto, competência comum. De acordo com o Art. 23, cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o dever de proteger “os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural, monumentos, além das paisagens naturais notáveis e os sítios arqueológicos”. Prevê, ainda, o dever de im-pedir a “evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural”.

A temática da Cultura é tratada com maior especificidade na Seção II do Capítulo III da CF/88. Em seu Art. 215, é previsto que “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos Direitos Culturais, bem como o

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acesso às fontes da cultura nacional e o incentivo à valorização e à di-fusão das manifestações culturais”. O caput deste dispositivo aponta o dever estatal em garantir o exercício dos Direitos Culturais por meio de ações prestacionais.

O comando constitucional previsto no caput do Art. 216 destaca o de-ver do Estado, em cooperação com a comunidade, na proteção aos “[...] bens [culturais] portadores de referência à identidade, à ação, à memó-ria dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”.

O parágrafo primeiro do Art. 216 estabelece que o Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cul-tural brasileiro. Por serem de dimensão cultural ampla, diversa e difusa, as ações de proteção necessitam da cooperação do Poder Público com a comunidade. Neste sentido, cabe à sociedade e aos Poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – prover ações que visem efetivar tal proteção, em razão de suas competências, possibilidades, deveres e direitos. Ro-drigues (2006, p. 12) menciona que a CF/88 optou pela expressão patri-mônio cultural, de forma diferente da adotada por outros textos consti-tucionais, a exemplo da espanhola, que se refere a patrimônio artístico e histórico. Essa percepção brasileira, abrange um rol maior de elementos, que podem ser considerados como cultural, não o reduzindo à dimensão da arte e história.

No parágrafo primeiro do dispositivo em apreço são listados ainda os instrumentos dos quais a proteção ao patrimônio cultural deverá se utilizar, mais precisamente os “inventários, registros, vigilância, tom-bamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e pre-servação”. Dos instrumentos previstos, apenas três possuem previsão legal em âmbito federal: o tombamento (Decreto-Lei - DL nº 25/37), o re-gistro arqueológico, este previsto na Lei nº 3.924/61 e a desapropriação (DL nº 3.365/41). O registro de bens culturais de natureza imaterial, por sua vez, é tratado no Decreto nº 3.551, de 4 de agosto de 2000. Cabe desta-car que a redação da Constituição abre espaço para a existência de diver-sos inventários e registros, bem como para a criação ou aproveitamento de outras formas de acautelamento.

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O TOMBAMENTO, INVENTÁRIOS, DESAPROPRIAÇÃO E AS OUTRAS FORMAS DE ACAUTELAMENTO

Ao longo dos quase de 80 anos de existência, o tombamento atuou, em pelo menos metade deles, de forma isolada na proteção dos bens cultu-rais e ambientais. Somente a partir da década de 1960 este instrumen-to passou a contar com a colaboração de novos aliados, a exemplo da Lei nº 3.924/61, que dispõe sobre a proteção dos bens arqueológicos e a Lei nº 6938/81, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA).

Um dos principais desafios do tombamento no contexto atual é inter-preta-lo à luz da CF/88. Pires (2015) e Cunha (2008) mencionam que ele tem sofrido profundas revisões no sentido de sua atualização, conside-rando que a fisionomia da compreensão do que é patrimônio cultural em 1937 era completamente diferente do que se percebe hoje.

Nestes quase oitenta anos em que o DL nº 25/37 está em vigor, novos instrumentos foram publicados, ampliando o rol de possibilidades de proteção aos bens culturais. Esses novos instrumentos esvaziaram parte das atribuições iniciais dedicadas ao tombamento, a exemplo da legisla-ção de proteção aos bens arqueológicos e da legislação ambiental. De ou-tro lado, algumas definições do DL nº 25/37 foram alargadas, ampliando a abrangência da proteção dos bens culturais.

Além disso, cabe destacar que o Decreto-Lei tem que ser percebido à luz do Art. 37 da CF/88, que trata dos princípios da administração pú-blica, tais como a publicidade, eficiência, entre outros. Sob o aspecto infralegal, o tombamento possui diversas portarias que regulamentam alguns aspectos de sua operacionalização; cabe exemplificar com a Por-taria nº 187, de 2010, que trata sobre a apuração de infrações administra-tivas, e com a Portaria nº 420, de 2010, que versa sobre os procedimentos de intervenção aos bens tombados e área de entorno.

Já os inventários são instrumentos com grande potencial na ação de preservação dos bens culturais, contudo, no Brasil, eles têm sido pouco

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utilizados para fins acautelatórios, especialmente em razão da ausência de norma geral regulamentadora.

Na prática, tal instrumento tem sido utilizado de formas diver-sas, sendo a mais conhecida a que se refere ao emprego do inventário como ferramenta metodológica de conhecimento dos bens culturais. (MIRANDA, 2008) Em outros países, o inventário tem sido utilizado como um instrumento mais brando de restrição de direitos, de forma complementar ao instrumento equivalente ao tombamento.

O inventário também tem sido utilizado em países como a França, Portugal e Espanha, contudo aplicando efeitos restritivos à proprieda-de. Cunha (2000) menciona que a prática preservacionista material da França é realizada por meio da classification, instrumento equivalente ao tombamento, em associação com inscription, por sua vez equivalen-te ao inventário.

A principal diferença entre estes seria a flexibilidade dos bens inscrit, que impõe ao proprietário o dever de notificar o órgão de gestão patrimo-nial alguns meses antes de início da obra pretendida. Em o órgão iden-tificando o cabimento ou a necessidade de uma proteção mais rígida, se procederia ao processo de classification, que, por sua vez, impediria a de-molição, restauração ou alteração sem o consentimento administrativo.

Com estrutura bastante similar, a Lei de Bases do Patrimônio Cul-tural de Portugal, Lei nº 101 de 8 de setembro de 2001, refere-se ao cabi-mento do inventário aos edifícios em que a classificação (equivalente ao tombamento) não seja cabível de forma imediata ou plenamente percep-tível, mas que existam elementos históricos que possam ensejar a pre-servação mais rígida. O inventário se procederia por meio de decisão de autoridade administrativa, provocando aos proprietários a obrigação de não proceder a nenhuma modificação sem antes informar as intenções de intervenção com quatro meses de antecedência. Da mesma forma da experiência francesa, em não se concordando com as alterações, deverá ser iniciado o procedimento equivalente ao tombamento.

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Diferentemente dos instrumentos acautelatórios de conhecimento ou limitação administrativa, a desapropriação é a via empregada para retirar dos particulares a propriedade do bem. Trata-se do meio mais rígido nes-ta seara, visto que resulta na aquisição compulsória da propriedade pelo Estado, que passa a ser o responsável pela tutela direta do bem cultural.

A desapropriação é regulamentada pelo Decreto-Lei nº 3.365, de 21 de junho de 1941, que dispõe sobre as desapropriações por utilidade pública. Segundo o Decreto, todos os bens poderão ser desapropriados por quaisquer entes, em razão da declaração de utilidade pública. Esta é prevista também no Art. 19 do DL nº 25/37, devendo ser aplicada às situa-ções em que se tenha a necessidade de realização de obras de conserva-ção no bem tombado e o proprietário não disponha de recursos, cabendo ao Poder Público executá-las ou proceder à desapropriação da coisa (vide parágrafo primeiro do dispositivo).

Para Soares (2009, p. 320), a desapropriação só deve ser utilizada em casos excepcionais, sendo sempre fundamentada no princípio da proporcionalidade, quando verificado ser o único meio de findar na proteção do bem. No mesmo sentido, Miranda (2006) considera que a ação de desapropriação só deve ser realizada se for efetivamente indis-pensável. Para o autor, uma das características do novo modelo preser-vacionista é o da mínima intervenção nas propriedades que possuem um valor cultural. De fato, a experiência tem mostrado que a atuação Estatal é muito mais eficiente na fiscalização do que como proprietário e administrador do bem em si.

Por fim, a CF/88 abre a possibilidade da criação ou aproveitamen-to de outras formas de acautelamento em favor do patrimônio cultural. Em função do histórico de desenvolvimento dos instrumentos acaute-latórios, pode-se observar que a criação de novos instrumentos é uma constante. A partir do maior conhecimento das cidades e dos bens cultu-rais, os legisladores e administradores passam a usar de sua criativida-de para pensar em novas possibilidades e soluções aos casos concretos atinentes às temáticas da preservação. O parágrafo primeiro do Art. 216

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é bastante visionário neste sentido, abrindo espaço para o desenvolvi-mento das políticas e instrumentos de preservação do cultural, inde-pendentemente de uma trabalhosa alteração constitucional. Segundo essa (MARCHESAN, 2007, p. 231), os zoneamentos, a transferência do direito de construir e o direito de preempção são instrumentos vetores de sustentabilidade urbano- ambiental nas cidades.

Em linhas gerais, pode-se dizer que a legislação de ordenamento do uso do solo tem por objetivo resolver os problemas da urbanização, es-tabelecendo medidas de limitação e adequação, visando proporcionar benefícios à coletividade, encontrando um ponto de equilíbrio com o desenvolvimento. (CUNHA FILHO; STUDART, 2017) O Estatuto das Cidades, instituído pela Lei nº 10.257/2001, tem por objetivo principal o estabelecimento de diretrizes gerais da política urbana, bem como os instrumentos para sua viabilização. Entre os instrumentos empregados em âmbito urbanístico, alguns merecem destaque em razão do seu gran-de potencial para a proteção dos bens culturais de forma mais efetiva, uma vez que consideram o patrimônio cultural no contexto do tecido ur-bano.

INTEGRAÇÃO SISTÊMICA DOS INSTRUMENTOS ACAUTELATÓRIOS

A integração sistêmica da atividade estatal na proteção aos bens cultu-rais também pode ser realizada na aplicação dos instrumentos acaute-latórios. O Estado possui a exclusividade do exercício da função admi-nistrativa de proteção ao patrimônio cultural, devendo exercê-la em colaboração com a comunidade. No campo do patrimônio cultural, essa relação tem ocorrido costumeiramente nos conselhos consultivos, for-mados por representantes do Poder Público e da sociedade civil, mas deve ser considerada a possibilidade de se envolver mais fortemente a sociedade nos seus processos.

Deve-se ter a compreensão de que as ações de acautelamento são necessárias, mas custam caro. (STUDART, 2014) A ação de solicitar

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o tombamento de um bem, por exemplo, é apenas o começo da ação de preservação, uma vez que se fará necessário o emprego de recursos para realizar a instrução técnica, proceder ao monitoramento, e idealmente conceder benefícios que facilitem a conservação. Ademais, no caso de o proprietário não dispor de recursos, o Estado terá ainda que realizar intervenções de conservação emergenciais. Considerando as diversas li-mitações de recursos, já vastamente mencionadas, uma possível atuação em rede e o melhor emprego dos instrumentos acautelatórios previstos na CF/88 podem ser importantes aliados na busca por ampliar a eficá-cia das ações protetivas. Em outras palavras, o uso racional dos recursos, humanos e financeiros, e o emprego gradual da força do Estado sobre os bens, objeto de preservação, podem contribuir neste sentido.

Como já tratado na segunda seção, o Art. 216, § 1º, da CF/88 prevê que a proteção do patrimônio cultural brasileiro será realizada por meio dos “inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação”. Mesmo na iminên-cia de completar trinta anos da CF/88, muitos destes instrumentos não foram regulamentados ou necessitam de uma grande reforma. Cada um dos instrumentos possui – ou quando vierem a ser regulamentados de-vem possuir – ritos, características e efeitos específicos que podem ser utilizados conforme a real necessidade de preservação. Além disso, exis-te a possibilidade de sua utilização em convergência com outros instru-mentos, inclusive os da política urbana, para findar no objeto de prote-ção almejado.

Paulo Miranda (2006, p. 159) manifesta a opinião de que a sequên-cia em que estes instrumentos foram listados significa alguma coisa. Em observação ao dispositivo, pode-se observar que os instrumentos fo-ram listados em razão do nível de força de seus efeitos restritivos para a preservação dos bens culturais. Contudo, esta lógica não se confirma plenamente em se considerando a possibilidade de dotar o inventário de efeitos restritivos, à semelhança da prática estrangeira.

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Em se considerando o emprego do instrumento inventário restriti-vo como um meio acautelatório, é possível pelo menos quatro instru-mentos de proteção aos bens culturais que podem ser empregados de forma integrada na proteção aos bens culturais materiais. São eles: in-ventário de conhecimento, inventário com efeito restritivo, tombamen-to e desapropriação.

O tombamento é o instrumento acautelatório mais conhecido e uti-lizado. Contudo, cabe lembrar que na prática preservacionista, espe-cialmente na estrangeira, ele não é o único com capacidade de aplicar limitações administrativas em relação aos bens culturais. Como já cita-do, em países como Portugal, França e Espanha, a classificação – equi-valente ao tombamento – é utilizada em conjunto com o inventário com efeitos restritivos, apesar de o último possuir efeitos mais brandos.

Outra questão importante é que o emprego demasiado de força, a exemplo de tombamentos muito rígidos, pode resultar em efeitos adver-sos, como o abandono do bem ou perda de função ou interesse no uso de uma região próxima ao bem acautelado.

Na maior parte das vezes, o tombamento é tido como um grande pre-juízo econômico e amplificador de burocracias ao uso dos bens acaute-lados e do seu entorno. Cabe avaliar se algumas destas burocracias são efetivamente necessárias ou se se poderia empregar outros instrumen-tos que tivessem efeitos práticos similares, mas com menor custo para o Poder Público e menor limitação para os proprietários. Uma alternativa para cumprir essa função é o inventário com efeitos restritivos.

A não regulamentação do inventário com efeitos restritivos trata-se do mais evidente desperdício de potencial na legislação federal brasileira. Na Espanha e em Portugal, o inventário tem sido empregado como uma espécie de tombamento mais brando, em que se procede a uma notifica-ção e se estabelece o impedimento à realização de intervenções no bem inventariado, sob pena da aplicação de penalidades. Em havendo o inte-resse do proprietário em proceder a uma intervenção no bem, ele deverá notificar o órgão acautelador para proceder à autorização ou não da inter-

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venção. Caso o órgão não concorde, este deverá proceder à realização do processo de classificação, aplicando assim um maior rigor sobre o bem.

Em se estabelecendo essa relação entre o inventário e o tombamento, o segundo poderia vir a ter o seu emprego reduzido, em favor de um ins-trumento mais rápido e barato. A utilização do tombamento em si pode-ria ser mais bem empregada a bens culturais, cuja relevância histórica ou arquitetônica seja mais evidente ou nos casos em que os proprietários de bens inventariados pretendam realizar intervenções consideradas inapropriadas pelo Poder Público.

O inventário de conhecimento figuraria como instrumento inicial, devendo ser empregado pelos entes para que possam arrolar os bens cul-turais em seus limites territoriais. Esse tipo de inventário poderia ser realizado em cooperação entre os diversos entes e com maior envolvi-mento da comunidade, utilizando-se, inclusive, de recursos de tecnolo-gia da informação. Em posse do inventário dos bens, os entes poderiam realizar planejamentos para a preservação de bens culturais, por meio de inventários restritivos, tombamentos, desapropriações, instrumen-tos de política urbanística, entre outros.

Partindo para o instrumento mais rigoroso, o emprego da desapro-priação é a via mais extrema, mais cara, mais traumática em relação à proteção ao bem cultural, pois removerá a propriedade do bem cultural de seu proprietário. Esse instrumento deve ser utilizado especialmente quando houver o interesse em desenvolver alguma política pública em relação ao bem, como a instalação de museus, centros culturais, reparti-ções públicas ou quando da ocorrência de casos extremos, em que o pro-prietário reiteradamente tenha demonstrado descaso ou intenção em fazer o uso do bem de forma irregular.

Como visto, cada instrumento tem suas vantagens, desvantagens e situações específicas de aplicação, mas pensar o seu emprego de forma sistemática poderá fazer com que o Poder Público potencialize a utili-zação de seus recursos. Atualmente, os instrumentos acautelatórios são regulamentados por normas bastante fracionadas, desatualizadas, sem conexão entre si. Entretanto, isto não impede que eles sejam repensados

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e utilizados a partir da metodologia ora proposta. Nesse sentido, deve ser considerado o emprego dos instrumentos na seguinte sequência lógica

Quadro 1 - Os instrumentos acautelatórios e os seus efeitos

Instrumento 1ºInventário de Conhecimento

2º Inventário com efeito Restritivo (Sem norma geral)

3º Tombamento 4º Desapropriação

Restrição sobre a propriedade do bem

Nenhuma Limitação Branda Limitação Rigorosa

Remoção da propriedade

Efeito sobre o entorno

Nenhum Nenhum Poligonal Nenhum

Custo administrativo estimado

Baixo Baixo-Médio Alto Altíssimo

Tempo de realização

Curto Mediano Longo (meses) Longo (meses)

Fonte: elaborado pelo autor com base em Brasil (1937, 1941) e Studart (2014).

O inventário de conhecimento seria o mecanismo inicial, utilizado para compreender os bens culturais situados em seus limites. Trata-se de uma ferramenta básica, sem a qual não se poderá proceder à realização de nenhuma ação preservacionista planejada, equilibrada e coerente. O inventário restritivo poderia ser empregado aos bens que prima facie possuam uma menor referência cultural ou cujo risco de dano ao bem ou ao seu entorno seja bastante pequeno, possibilitando que o Poder Públi-co avalie futuramente a necessidade de acautelamento ou qual melhor procedimento a ser realizado.

O inventário com efeitos restritivos é bastante interessante para mu-nicípios que possuam um grande déficit de proteção aos seus bens sig-nificativos e que possuam baixa capacidade operacional para proceder à realização de processos de tombamento em maior quantidade. Outra grande vantagem seria a exigência de estudos técnicos simplificados,

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se comparado aos necessários para a produção de uma boa instrução de tombamento, portanto, menos oneroso ao erário. Nesse sentido, o inven-tário com efeitos restritivos e o tombamento poderiam ser utilizados de forma planejada, baseada em um plano setorial que faça previsão de rea-lizar uma maior quantidade de inventários em um menor espaço de tem-po e o planejamento de processos de tombamento a médio e longo prazo.

Os processos de tombamento devem ser bem elaborados, buscando retratar a essência do bem e a descrição precisa das limitações admi-nistrativas necessárias para a sua preservação. Um bom estudo técni-co e um processo bem instruído, além de transparecer que os recursos públicos foram bem utilizados, fará com que ações complementares de acautelamento sejam menos necessárias ou totalmente desnecessárias. Além disso, um bom processo evita problemas como excessos em áreas de entorno – assunto que será mais detalhadamente analisado em bre-ve – ou mesmo na intromissão excessiva na propriedade, o que poderia configurar o congelamento ou o tombamento do uso. (CUNHA FILHO; STUDART, 2017)

É recomendável que a desapropriação em razão do valor cultural seja pensada em associação ao tombamento do bem, pois por meio do tomba-mento se poderá delimitar de forma precisa o que poderá ser realizado ou não em relação ao bem cultural, bem como proceder ao estabeleci-mento da área de entorno. Ainda sobre o entorno, embora o tombamento seja o meio adequado para estabelecer áreas de entorno, cabe ser ava-liada a possibilidade do emprego do inventário restritivo ou de um dos instrumentos de política urbana, com destaque para os que determinam limitações de índices construtivos.

Conclui-se que o uso escalonado desses instrumentos, associado à implementação do Sistema Nacional do Patrimônio Cultural (SNPC), poderá lograr em bons resultados. Dentre as propostas possíveis, pode-riam ser estabelecidos planos de ações entre os entes, em que estes se responsabilizem por políticas associadas a determinados instrumentos.

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Para se promover uma gestão do patrimônio cultural de for-ma eficiente é necessário um conjunto de leis atualizadas que sir-vam aos objetivos da gestão e traduzam políticas públicas coerentes. (HERNÁNDEZ; TRESSERRAS, 2010) A codificação seria um grande desafio, considerando os vários problemas tratados ao longo deste estu-do, mas poderia ser um importante instrumento para o aperfeiçoamen-to da atuação da atividade estatal, ampliando as possibilidades admi-nistrativas, almejando sempre a eficácia.

Em um panorama geral das normas brasileiras que tratam sobre a proteção ao patrimônio cultural, pode-se dizer que são caracterizadas como bastante fracionadas, desatualizadas, pouco ou mesmo nada in-tegradas entre si e de inteligibilidade pouco amigável para pessoas não treinadas a interpretar e operacionalizar as normas. Ressalva-se, entre-tanto, que a sistemática sugerida já pode ser aplicada em grande parte, desde já, com uso da legislação ora disponível.

CONCLUSÃO

Pensar a proteção à cultura de forma sistemática e buscar meios de integrar, simplificar e atualizar a legislação, implica tentar produzir normas relativas a um sistema que auxilie a superar questões da rea-lidade brasileira de difícil solução, como exemplo as deficiências de recursos e falta de integração entre os vários órgãos do setor, mas sem desprezar suas autonomias.

Para superar esses e outros desafios, é necessário que se proceda a um novo olhar sobre o patrimônio cultural. A CF/88 representou um grande avanço no sentido de ampliação dos Direitos Culturais. Contudo, todo esse potencial necessita ser convertido em ações concretas em benefício à consecução de tais direitos.

Preservar o patrimônio cultural representa muito mais que fazer normas, processos de acautelamento e também que aplicar penalidades; na verdade, eles são apenas instrumentos que auxiliarão na concretiza-ção destes direitos culturais. A estrutura de preservação do patrimônio

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cultural brasileiro tem todos os subsídios constitucionais para ser atual e eficiente, mas no plano legal, as normas infraconstitucionais necessi-tam de uma profunda revisão.

A organização dos instrumentos acautelatórios possui uma sequência lógica. Primeiramente, os inventários, que podem ser utilizados para fins de conhecimento ou regulamentados para prover efeitos restritivos aos bens culturais. Em segundo lugar, aparecem os registros, cujo efeitos são específicos em razão na natureza dos instrumentos. Em terceiro, a vigilân-cia, dever e poder da administração pública em prover a proteção e da so-ciedade em observar e noticiar ações lesivas aos bens culturais. Em quarto lugar, o tombamento, com efeitos restritivos mais rigorosos. Em quinto lu-gar, a desapropriação, ação mais rígida em relação ao bem, pois se retira a propriedade. E por último, a referência as demais formas de acautelamen-to e preservação, que somente podem ser avaliadas topicamente.

Toda ação de acautelamento deve ser pensada visando à proteção de um bem cultural, que deve ser executada de forma proporcional e eficiente administrativamente. O emprego inapropriado ou excessivo dos instrumentos acautelatórios poderá resultar em um efeito adverso, tornando o uso do bem e/ou da área de entorno algo excessivamente bu-rocrático, resultando no afastamento dos proprietários usufrutuários, o que seria na verdade uma política pública contrária à preservação.

O aperfeiçoamento legislativo, consolidação, atualização e aperfei-çoamento das leis que versam a proteção aos bens culturais são de gran-de importância, mas não devem ser consideradas as únicas soluções para todos os problemas. Trata-se apenas de instrumentos para se lograr o objetivo de proteção dos bens culturais, meio de concretização dos Di-reitos culturais.

REFERÊNCIAS

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BRASIL. Lei n. 6.938, de 31 de agosto de 1981. Dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, seus fins e mecanismos de formulação e aplicação, e dá outras providências. Lex. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6938.htm>. Acesso em: 12 jul. 2017.

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SOARES, Inês Virginia. Direito ao (do) patrimônio cultural brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009.

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O direito econômico como instrumento de efetivação dos direitos culturais

Nichollas de Miranda Alem

O uso político da cultura é tão antigo quanto a organização das sociedades. No entanto, a ideia mais contemporânea de política cultural, aqui enten-dida como programa de ação do Estado com o objetivo de satisfazer as ne-cessidades da população, só ganhou força a partir do final do século XIX início do século XX, como decorrência das grandes transformações do pe-ríodo. O Estado Liberal, então vigente, passa a lidar com novos conflitos e demandas, exigindo-se uma reformulação da simples postura absten-cionista em prol das liberdades culturais (liberdade de expressão, credo e reunião).

Com os processos de industrialização, a distinção entre o tempo de trabalho e o tempo de lazer tornou-se mais evidente. Os proletários, em suas horas livres, não buscavam apenas consumir alimentos ou roupas, mas também praticar atividades culturais e esportivas como forma de entretenimento, lazer e exercício lúdico. Meios de entretenimento de massa e ações pedagógicas sobre práticas contrárias aos padrões mo-rais, por exemplo, o consumo excessivo de álcool, tornaram-se preocupa-ções recorrentes dos governos. (DUARTE, 2010; UNESCO, 1970)

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A Segunda Guerra Mundial, por sua vez, foi marcada pelo intenso movimento migratório, o extermínio de minorias, grupos étnicos e re-ligiosos, o saque de obras de arte e a destruição generalizada do patri-mônio cultural. Os países tiveram então que lidar com difíceis questões envolvendo as novas e complexas composições culturais dos povos, a re-construção de monumentos destruídos e os apátridas. Na mesma toada, as antigas colônias europeias também travaram seus movimentos de in-dependência no plano simbólico, investindo na reconstrução e reconhe-cimento de sua identidade cultural.

Logo, sobretudo a partir da década de 1950, o soerguimento de novos padrões de dignidade levou ao reconhecimento do caráter multifacetá-rio do ser humano, com necessidades econômicas, sociais e políticas. A cultura passa a ser uma dimensão importante na concepção do homem e desenvolvimento de sua personalidade, já não podendo ficar ao revés dos instrumentos jurídicos de proteção.

Assim, na esteira dos processos de ampliação e positivação dos di-reitos políticos, sociais e econômicos, foram reconhecidos os direitos culturais que, internacionalmente, encontram seu marco na Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 de dezembro de 1948:

Artigo 22.Todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvol-vimento da sua personalidade.

Artigo 27.

1. Todo ser humano tem o direito de participar livremente da vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar do processo científico e de seus benefícios.

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2. Todo ser humano tem direito à proteção dos interesses mo-rais e materiais decorrentes de qualquer produção científica, literária ou artística da qual seja autor.1

Entretanto, passados quase 70 anos de sua proclamação, ainda não se sabe ao certo quais são esses direitos culturais, qual o seu conteúdo e o que pretendem tutelar. Possivelmente, essa dificuldade se dá em razão da própria tentativa de explicá-los a partir dos diversos, complexos e abrangentes conceitos de cultura.

Tomando por base o conceito de cultura sugerido pela Unesco e pela Declaração de Friburgo, poderíamos sugerir que os direitos culturais tu-telam a criação, transmissão, transformação, preservação e fruição dos valores, crenças, convicções, línguas, conhecimentos, artes, tradições, instituições e modos de vida pelos quais uma pessoa ou um grupo de pessoas expressa sua humanidade e os significados que dá à sua existên-cia e ao seu desenvolvimento.2

A Constituição Federal de 1988 incorporou em seu texto algumas es-pécies de direitos Culturais, tais como: o direito autoral, que protege as relações de natureza patrimonial e moral do autor com sua obra (arti-go 5º, XXVII e XXVIII); o direito à liberdade de expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, que garante a livre exteriorização das ideias (artigos 5º, IX, e 215, §3º, II); o direito à pre-servação do patrimônio histórico e cultural, que implica na manutenção daqueles espaços, bens ou memórias tidos como bens simbólicos por um determinado grupo (artigos 5º, LXXIII, e 215, §3º, inciso I); o direito à diversidade e identidade cultural, que permite a cada indivíduo conser-var os saberes próprios de seu modo de criar, fazer e viver (artigo 215,

1 Para uma bibliografia introdutória sobre direitos culturais, conferir: Revista Observatório Itaú Cultural (2011), Silva (2001), Chauí (2006), Varella (2014). Bui-Xuan (2009), Meyer--Bisch (2008/2009), Unesco (2000), Cunha Filho (2014), Silva (2007), Soares e Cureau (2015), Souza (2012) e Meyer-Bisch e Bidault (2014).

2 A Declaração de Friburgo foi elaborada em 2007 por diversos professores universitários, membros de organizações sociais e profissionais dos setores culturais como uma proposta de marco internacional para os direitos culturais. (UNIVERSIDADE DE FRIBURGO, 2007; MEYER-BISCH, 2014)

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caput, § 1º, 2º, 3º, V, 242, § 1º); e, por fim, o direito de acesso à cultura, que tutela a possibilidade de aproveitamento e participação na vida cul-tural da sociedade (artigo 215, §3º, II e IV).

Por ora, mais importante que o conceito ou a delimitação do rol de di-reitos que podem receber a alcunha de “culturais”, necessário esclarecer que estes representam, juridicamente, as necessidades e reivindicações sociais no campo da cultura reconhecidas e positivadas pelo ordena-mento. Por esse motivo, a ampliação e sofisticação do papel do Estado no campo das políticas culturais – em seu sentido mais moderno – acom-panhou o movimento de positivação desses direitos. Como previu a pró-pria Constituição Federal em seu artigo 215, cabe ao Estado a garantia do “pleno exercício dos direitos culturais”.

Conforme as demandas culturais se tornam mais complexas, o Esta-do precisa diversificar seus mecanismos de formulação e implementa-ção de políticas públicas. Garantir o direito de acesso à cultura envolve desde questões político-ideológicas – por exemplo, a censura – à criação de condições materiais para o aproveitamento e fruição pelo indivíduo (transporte, educação, saúde, preço do ingresso etc). Afinal, não é pouco lembrar que a política Cultural também lida com problemas de escassez de recursos.

Dessa forma, a ação do Estado no campo da Cultura também se vale de instrumentos de política econômica, com vistas à promoção do bem-estar cultural da sociedade. A política econômico-cultural se materializa com concessão de subsídios para apresentações de artistas, a fixação de cotas de programação nacional nos cinemas, os incentivos fiscais para proje-tos culturais, o estabelecimento da “meia entrada” para estudantes, entre tantas outras. A última matéria, aliás, chegou a ser apreciada pelo Supre-mo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 1950-3, de São Paulo, contando com a relatoria do ministro Eros Roberto Grau, que assim ponderou:

A ordem econômica ou Constituição econômica pode ser de-finida, enquanto parcela da ordem jurídica, mundo do dever

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ser, como o sistema de normas que define, institucionalmente, determinado modo de produção econômica. A ordem econô-mica diretiva contemplada na Constituição de 1988 propõe a transformação do mundo do ser. Diz o seu artigo 170 que a ordem econômica [mundo do ser] deverá estar fundada na va-lorização do trabalho e da livre iniciativa e deverá ter por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados determinados princípios. É Cons-tituição diretiva. Mais do que simples instrumento de gover-no, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a socie-dade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170. Os fundamentos e os fins definidos em seus artigos 1º e 3º são os fundamentos e os fins da sociedade brasileira. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2005)

Nesse ínterim, conclui:

[...] se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providên-cias tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à edu-cação, à cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da Constituição]. Ora, na composição entre princípios e regras há de ser preservado o interesse da coleti-vidade, interesse público primário. A superação da oposição entre os desígnios de lucro e de acumulação da empresa e o direito de acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, como meio de complementar a formação dos estudantes, não apresen-ta maiores dificuldades. (BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2005)

Esse julgado nos ajuda a compreender que os fins da ordem econômica brasileira, fundada na valorização do trabalho humano e na livre inicia-tiva, não são, portanto, exclusivamente econômicos, mas orientados a assegurar a todos existência digna – nos termos do artigo 170, da Consti-tuição Federal. Nossa ordem econômica não apenas pode, mas deve estar comprometida com os fundamentos e objetivos da sociedade brasileira,

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inclusive aqueles de “caráter cultural”, tais como a garantia ao pleno exercício dos direitos culturais – prevista no artigo 215 da Constituição.

Por conseguinte, existe uma disciplina normativa da ação estatal sobre as estruturas do domínio econômico orientada à persecução do bem-estar cultural sociedade. Esse é um dos possíveis sentidos do Direi-to Econômico da cultura.3 Conforme já havia sido apontado por Gérard Farjat (2004), o mercado não é capaz de suprir todas as necessidades Culturais dos indivíduos e das coletividades, o que faz demandar uma política especialmente voltada a suprir ou corrigir tais insuficiências.4

Com efeito, não fosse o Estado, não existiria fomento suficiente aos bens coletivos, nem pleno acesso ao patrimônio cultural, nem tutela sobre as criações através do direito de autor, tampouco guarida contra abusos de poder econômico em detrimento da diversidade cultural e li-berdade de expressão. As manifestações ou expressões culturais desin-teressantes à exploração da atividade econômica ficariam relegadas ao acaso – assim como suas potenciais externalidades positivas. Em suma, não apenas o pleno exercício dos direitos culturais não poderia ser ga-rantido, como não existiria um projeto cultural democrático para o país. É somente a partir da política pública, fundamentada nas diretrizes já cristalizadas na Constituição Federal, que é possível promover um pro-grama voltado ao bem-estar cultural da população.

Observe-se que, mesmo sob uma ótica liberal, por assim dizer, con-tinua sendo necessária a atuação do Estado para a correção de falhas de

3 Para uma bibliografia introdutória de Direito Econômico, conferir: Comparato (1978), Vi-digal (1977), Souza (1980), Bercovici (2005, 2009).

4 Nesse mesmo sentido, interessante citar Celso Furtado (2012, p. 63): “[...] os objetivos maiores da política de desenvolvimento têm que ser, entre nós, de natureza social, ainda que os meios para alcançá-los sejam com frequência de caráter econômico. Ora, o que cha-mamos de política cultural não é senão um desdobramento e um aprofundamento da políti-ca social. Em um sentido amplo, a política social visa a corrigir as insuficiências do sistema econômico no que respeita o atendimento das necessidades do indivíduo, e da coletividade, consideradas como fundamentais. Observando o mesmo problema de outro ângulo, pode-mos afirmar que, mediante a política social, obtém um perfil de utilização do excedente ge-rado pelo sistema econômico mais condizente com os objetivos e aspirações da coletividade do que seria aquele produzido pelas forças de mercado.”

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mercado. Isso é especialmente verdade se considerarmos as diversas peculiaridades do mercado e das indústrias culturais, que muitas vezes escapam dos pressupostos e normas da teoria econômica.5

Chamamos de Direito Econômico da Cultura o conjunto de técnicas jurídicas utilizadas pelo Estado na realização de sua política econômi-co-cultural. Por certo, essa disciplina normativa sobre as estruturas do sistema econômico e cultural irá variar a depender dos objetivos da po-lítica, seja para corrigir falhas e insuficiências de mercado, seja para ga-rantir as necessidades culturais dos indivíduos e coletividades. Vejamos a seguir algumas modalidades de formas de atuação do Estado a partir das lições de Eros Roberto Grau (2010).

De acordo com o autor, a atividade econômica é tratada como um gênero, no qual estão inclusos tanto os serviços públicos, quanto as ati-vidades econômicas em sentido estrito. Os primeiros compreenderiam aquelas atividades vinculadas ao interesse social, indispensáveis à con-secução da coesão social. A atividade econômica em sentido estrito, por sua vez, designaria aqueles campos típicos da exploração especulativa pela iniciativa privada, ou seja, o “domínio econômico”.

Assim, o Estado atuaria no campo da atividade econômica (em senti-do amplo) de duas maneiras: através da prestação de serviço público ou de intervenção, quando se referir ao campo da atividade econômica em sen-tido estrito. A intervenção, por sua vez, ocorrerá em quatro modalidades: (i) por absorção; (ii) por participação; (iii) por direção; e (iv) por indução.

Nos dois primeiros casos (intervenção por absorção e por participa-ção), diz-se que o estado intervém no domínio econômico, pois assume de fato o papel de agente econômico no mercado. Nos dois últimos casos (indução por direção e por indução), trata-se de intervenção sobre o do-mínio econômico, uma vez que o Estado desenvolve uma ação regulató-ria da atividade econômica (em sentido estrito).

Ao nosso ver, para se configurar como serviço público, uma determi-nada atividade econômica (em sentido amplo) deve, cumulativamente:

5 Sobre o assunto, conferir: Benhamou (2009), Tolila (2007), Reis (2007).

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(i) ser uma prestação positiva do Estado (ou por aquele legitimado a atuar no exercício de sua função); (ii) cujo aproveitamento seja, ao menos tendencialmente, destinado ao público em geral; (iii) com titularidade originária da Administração; (iv) sob regime jurídico parcial ou total de Direito Público; (v) essencial à coesão social ou ao pleno exercício dos direitos fundamentais. (SOUZA NETO; MENDONÇA, 2007) Podemos citar como exemplos de serviço público no campo da cultura: as funções de preservação e promoção do patrimônio cultural brasileiro – prevista nos artigos 24, VII, 29, IX, 214, § 3º, I, e, especialmente, artigo 216, da Constituição Federal; a promoção e manutenção de centros culturais, áreas de lazer e demais espaços voltados à democratização do acesso e incentivo a práticas de sociabilidade; as atividades de educação e ensi-no de natureza artística e cultural; o registro de obras pela Biblioteca Nacional para reconhecimento de titularidade dos direitos autorais; a promoção de shows, eventos e festas para difusão da cultura local, regio-nal ou nacional; e a manutenção de canais públicos de televisão, focados em conteúdos brasileiros.

A intervenção por absorção, por sua vez, não existe no ordenamen-to brasileiro para os setores culturais. Isso porque ela se dá nos casos de regime monopólio, ou seja, quando o Estado exerce integralmente o controle dos meios de produção e/ou troca em determinado setor da ati-vidade econômica em sentido estrito. É o que ocorre na pesquisa e lavra de jazida de petróleo no Brasil. Por se tratar de hipótese excepcional de supressão da livre iniciativa (em prol do interesse coletivo), as hipóteses de monopólio estão previstas expressamente na Constituição Federal em seu artigo 177.

Já a intervenção por direção ocorre quando o Estado estabelece meca-nismos e normas imperativas, ou seja, de caráter compulsório e dotadas de força cogente. Através dessas, direciona o comportamento dos agen-tes econômicos e da própria atividade econômica (em sentido estrito) em um determinado sentido. Logo, intervém por direção quando, por exemplo, determina padrões sanitários para a circulação de produtos,

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impõe condições para a importação de produtos etc. No caso da cultu-ra, são modalidades de intervenção por direção: a regulamentação dos sistemas de preços dos bens culturais; medidas de restrição à exporta-ção de obras de arte; as cotas de exibição, programação ou reservas de espaços para produções e manifestações nacionais, regionais ou locais; as diversas normas para produção, distribuição e exibição de obras au-diovisuais, no Brasil, fixadas em sua maioria pela Agência Nacional de Cinema (Ancine), entidade criada pela mesma Medida Provisória nº 2.228-1/2001; o estabelecimento da meia-entrada para atividades e espetáculos culturais (Lei n.º 12.933, de 26 de dezembro de 2013); a determinação de normas e critérios para a acessibilidade de pessoas portadoras de deficiência ou mobilidade reduzida (Lei n.º 10.098, de 19 de dezembro de 2000); a definição de classificações indicativas (Es-tatuto da Criança e do Adolescente, Portarias do Ministério da Justiça n.º 1.100/2006 e n.º 1.220/2007 e no Manual da Nova Classificação Indi-cativa, previsto na Portaria da Secretaria Nacional de Justiça nº 8/2006); e a Lei de Direitos Autorais como um todo (Lei n.º 9.610, de 19 de feve-reiro de 1998).

Na intervenção por indução, as normas e os mecanismos adotados estão em consonância e conformidade com o funcionamento do próprio mercado. Ou seja, através do uso de mecanismos de recompensa ou re-preensão, o Estado induz o comportamento dos agentes ou da atividade econômica em geral num dado sentido. Exemplos de intervenção por in-dução para a cultura são: o apoio financeiro a projetos e atividades artís-ticas e culturais através de subvenção, ou seja, transferência não reem-bolsável de recursos financeiros, normalmente, bolsas para residências artísticas, convênios e editais de apoio e fomento; a abertura de linhas especiais de financiamento, mais adequadas à realidade dos setores cul-turais; a tributação, inclusive as chamadas “Leis de Incentivo”; a criação de incubadoras para empresas dos setores culturais; programas e oficinas de qualificação técnica e profissional; e a concessão de vouchers, cheques ou vale-cultura para incentivar o consumo de bens e serviços culturais.

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A intervenção por participação, por sua vez, ocorre quando o Esta-do atua em regime de competição com empresas privadas de um dado setor. Isso se dá por meio da criação das chamadas “empresas estatais” – representadas pelas empresas públicas ou sociedades de economia mista. A Caixa Econômica Federal, por exemplo, não detém qualquer tipo de monopólio, atuando em competição com as demais instituições financeiras. Esta exploração direta de atividade econômica será permi-tida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou rele-vante interesse coletivo, conforme definição legal – nos termos do arti-go 173, da Constituição. Atualmente, há dois exemplos de intervenção por participação no Brasil: a Distribuidora de Filmes S.A – RIOFILME e a Empresa de Cinema e Audiovisual de São Paulo – Spcine. Ambas en-tidades atuam em diversas etapas da cadeia produtiva do audiovisual, incluindo a realização de eventos de profissionalização, o financiamen-to de obras, entre outras ações.

Feita essa exposição, cumpre-nos fazer ainda uma breve observação sobre o instituto do planejamento. Este não se enquadra propriamente como uma das formas de atuação do Estado, pois é anterior a todas elas. O planejamento é o método pelo qual o Poder Público qualifica e raciona-liza sua atuação, definindo princípios, estabelecendo objetivos e metas, e organizando e coordenando sua estrutura administrativa. Com isso, evita a sobreposição de competências, ordena os instrumentos e recur-sos disponíveis e otimiza o resultado de suas ações.6 No Brasil, está em vigência o Plano Nacional de Cultura, previsto no parágrafo 3º, do artigo 215, da Constituição Federal, e Lei n.º 12.343/2010. Infelizmente, a des-peito de sua construção democrática, com ampla participação da popu-lação e da classe artística, o plano parece ter perdido grande parte de sua efetividade institucional.

A utilidade dessa classificação é mostrar a ampla gama de modalida-des de atuação do Estado e o regime jurídico de cada uma delas. Afinal,

6 Sobre o planejamento, conferir: Grau (1978), Comparato (1989), Souza (2002) e Bercovici (2006).

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acreditamos que o estudo e aprofundamento do conceito e conteúdo dos direitos culturais não pode prescindir da reflexão sobre a forma efetiva-ção de seu pleno exercício. O Direito Econômico da Cultura pode colabo-rar com esse debate oferecendo um vasto campo de pesquisa sobre as téc-nicas jurídicas que dão suporte à política econômico-cultural do Estado.

REFERÊNCIAS

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Sobre os organizadores

Francisco Humberto Cunha Filho

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitu-cional – Mestrado e Doutorado – da Universidade de Fortaleza (UNI-FOR), onde ministra a disciplina de Direitos Culturais e lidera o Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Culturais. Advogado da União.

Isaura Botelho

Doutora em Ação Cultural pela Escola de Comunicação e Artes da Uni-versidade de São Paulo (ECA-USP), gestora cultural com larga experiên-cia na área federal de cultura, tem contribuído como coordenadora e pesquisadora de temas estruturantes para o setor da cultura e é autora de textos e livros sobre o assunto. Atualmente, dedica-se à pesquisa e es-pecialmente à qualificação de gestores culturais.

José Roberto Severino

Professor da Faculdade de Comunicação e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É pesquisador do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (CULT) e pesquisador associado do Diversitas/Universidade de São Paulo (USP).

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Sobre os autores

Aimée Schneider Duarte

Graduada em Direito (2013) e mestre em História (2016) pelo Programa de Pós-Graduação em História, ambos pela Universidade Federal Flumi-nense (UFF). Doutorado em andamento pelo Programa de Pós-Gradua-ção em Sociologia e Direito/UFF.

Amanda Karolini Burg

Advogada com experiência em Direito Público. Pós-Graduanda em Di-reito Processual Civil pela Academia Brasileira de Direito Constitu-cional (ABDConst). Graduada em Direito pela Faculdade Cenecista de Joinville (FCJ).

Giane Maria Souza

Historiadora e mestre em Educação pela Universidade de Campinas (Unicamp). Doutoranda em História Cultural pela Universidade Fede-ral de Santa Catarina (UFSC) e do programa de Bolsas Universitárias de Santa Catarina (UNIEDU/SC). Representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Política Cultural do Ministério da Cultura (CNPC/MinC) no Colegiado de Patrimônio Imaterial. Atua como especialis-ta Cultural na Secretaria de Cultura e Turismo de Joinville na unidade Coordenação de Patrimônio Cultural – Setor de Patrimônio Imaterial.

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Luana de Carvalho Silva Gusso

Doutora em Direito do Estado pelo Programa de Pós-Graduação em Di-reito da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Professora do Curso de Graduação e Pós-Graduação em Direito e do Mestrado em Patrimônio Cultural e Sociedade da Universidade da Região de Joinville (Univille).

Luiz Fernando Zugliani

Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Ge-túlio Vargas (CPDOC/FGV) e especialista em Gestão Pública pela Esco-la Brasileira de Administração Pública e de Empresa da FGV (EBAPE/FGV), com Extensão na The George Washington University; economis-ta. Servidor Federal da Fundação Biblioteca Nacional/Ministério da Cultura (FBN/MinC) e, atualmente, Diretor-Executivo da FBN.

Marcella Souza Carvalho

Advogada atuante na área de Assuntos Culturais e Terceiro Setor. Mes-tranda do Programa Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (DIVERSITAS) da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). Especialista em Gestão de Projetos Culturais (CELACC/USP). Professora da Faculdade Curitibana (FAC). Produtora Cultural. Membro do Colegiado Nacional de Dança do Ministério da Cultura (CNPC/MinC).

Nailah Neves Veleci

Mestre em Direitos Humanos e Cidadania (2017) e bacharel em Ciência Política (2015) ambos pela Universidade de Brasília (UnB). Pesquisado-ra do Maré - Núcleo de Estudos em Cultura Jurídica e Atlântico Negro. Embaixadora da Juventude 2017 (UNODC) e Cofundadora da Frente Ne-gra de Ciência Política da UnB.

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Nestor Castilho Gomes

Doutorando em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professor de Direito Constitucional e Processo Constitucional na Uni-versidade da Região de Joinville (Univille).

Nichollas de Miranda Alem

Bacharel e Mestre em Direito Econômico pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado especialista em Direito do Entretenimento. Fundador e Presidente do Instituto de Direito, Economia Criativa e Artes. Membro da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual.

Ricardo Damasceno Moura

Especialista em Populações Indígenas da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Pós-Graduação em Língua Brasileira de Sinais na Educação Inclusiva pela Universidade Integrada Brasil Amazônia (FIBRA).

Vagner Silva Ramos Filho

Professor substituto do departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN/Campus Assú). Mestre em His-tória pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Pesquisador do Grupo de Estudo e Pesquisa em Patrimônio e Memória (GEPPM-UFC/CNPq).

Vitor Melo Studart

Mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Fortaleza (UNI-FOR). Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas em Direitos Cultu-rais - UNIFOR. Membro do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCULT). Membro da Comissão Especial de Cultura e Arte do Conse-lho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

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COLOFÃO

Formato 17 x 24 cm

Tipologia Harriet TextBlogger sans

Papel Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)Cartão Supremo 300 g/m2 (capa)

Impressão Qualigraf

Tiragem 1000

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COLEÇÃO CULTURA E PENSAMENTO

volume 1

Direitos culturaisFrancisco Humberto Cunha Filho, Isaura Botelho, José Roberto Severino

volume 2

Políticas culturais para as cidadesFábio Fonseca de Castro, Luiz Augusto Fernandes Rodrigues, Renata Rocha

volume 3

Políticas para as artesAnita Simis, Gisele Nussbaumer, Kennedy Piau Ferreira