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DIREITO E MÉTODO NA TEORIA POSSESSÓRIA DE SAVIGNY

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DIREITO E MÉTODO NA TEORIA POSSESSÓRIA DE SAVIGNY

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Thiago Reis

DIREITO E MÉTODO NA TEORIA POSSESSÓRIA DE SAVIGNY

Sergio Antonio Fabris Editor Porto Alegre / 2013

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© Thiago Reis

CATALOGAÇÃO NA FONTE

Bibliotecária Responsável : Inês Peterle, CRB-10/631. Diagramação e Arte:

PENA – Composição e Arte Fone: (51) 3434-2641 CNPJ 94618667/0001-04 Porto Alegre - RS

Reservados todos os sdireitos de publicação, total ou parcial, à SERGIO ANTONIO FABRIS EDITOR Rua Riachuelo, 1238 CEP 90010-273 Fone: (51) 3227-5435 *Geral) email: [email protected] www.fabriseditor.com.br Porto Alegre - RS

R375d Reis, Thiago Direito e método na teoria possessória de

Savigny / Thiago Reis. – Porto Alegre : Sergio Antonio Fabris Ed., 2013.

139 p. ; 15,5 x 22 cm.

ISBN 978-857525-604-6

1. Direito de Posse. 2. Savigny, Friederich Karl von : Crítica e Interpretação. 3. Dogmática Jurídica : Metodologia. I. Título.

CDU – 347.251

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ÍNDICE Prefácio ..........................................................................................09 Introdução.......................................................................................11 Capítulo Primeiro Premissas Ordenadoras ...................................................................19 I. Sobre o jovem Savigny: metodologia jurídica e teoria da posse.........................................................................................19 1 – Nota preliminar ...................................................................19 2 – Alguns marcos biográficos..................................................21 3 – Sobre os cursos de metodologia ..........................................27 II. Metodologia jurídica como elaboração científica do direito ....29 1 – Regras do trabalho científico ..............................................29 2 – Fundamentos da metodologia savignyana: jurisprudência como ciência do direito .......................................................32 3 – Epistemologia jurídica: história e sistema ...........................39 III. Notas sobre a teoria da interpretação .....................................46 Capítulo Segundo Faticidade do Fenômeno Possessório..............................................53 I. Delimitação da relação possessória no mundo fático: o conceito de detenção..............................................................53 1 – A definição de detenção nas teorizações anteriores ao Besitz..............................................................................53 2 – O aporte de Savigny............................................................57

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II. A abstração do conceito de detenção no plano fático e seus pressupostos ....................................................................61 1 – Demonstração a partir do conceito de apreensão.................61 2 – Antecedentes na formulação da detenção em termos abstratos..............................................................................65 III. Definição do conceito de detenção no plano fático, em alusão a conceitos jurídicos....................................................69 Capítulo Terceiro Juridicidade do Fenômeno Possessório ...........................................79 I. Colocação do problema da posse em termos jurídicos ..............79 1 – Sobre o presente capítulo ....................................................79 2 – Colocação do problema historicamente: a subjetividade, os efeitos da posse e a posição de Savigny..........................80 II. Determinação da realidade jurídica do conceito ......................87 1 – Reconhecimento da juridicidade pela eficácia.....................87 2 – As categorias ordenadoras do fenômeno possessório: possessio civilis, possessio, possessio naturalis ...................91 III. O elemento caracterizador da juridicidade da relação possessória: o problema do animus domini ..........................96 Capítulo Quarto Fundamentação do ius possessionis e natureza da posse ...............101 I. A fundamentação da tutela interdital e sua ordenação sistemática ............................................................................101 1 – Retomando alguns conceitos e delimitando o tema ...........101 2 – A inviolabilidade da pessoa como fundamento dos interditos possessórios ......................................................103 3 – Ordenação do ius possessionis junto às obligationes ex delicto...........................................................................115 II. Determinação da natureza da posse .......................................119 1 – Colocação do problema.....................................................119 2 – Partindo de uma intuição de Pontes de Miranda................122 3 – Análise a partir dos aspectos material e formal do conceito de posse ............................................................................123 Conclusão .....................................................................................129 Bibliografia...................................................................................133

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Sapere aude!

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PREFÁCIO

Este estudo foi apresentado originalmente como trabalho de

conclusão de curso para a obtenção do grau de Bacharel em Ciências

Jurídicas e Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio

Grande do Sul em dezembro de 2005. Participaram da banca exami-

nadora os Professores Luis Renato Ferreira da Silva, Alfredo Flores

e Eugênio Facchini. A todos o meu sincero agradecimento pelos

valiosos comentários e críticas ao texto. Agradeço especialmente ao

Prof. Dr. Luis Renato, que orientou o trabalho com generosa aten-

ção, bem como ao Prof. Dr. Alfredo Flores, que me apresentou a

Savigny no primeiro semestre da faculdade de direito e tem sido,

desde então, um interlocutor essencial. Ainda na graduação, tive a

oportunidade de discutir vários aspectos do texto nos seminários de

pós-graduação em filosofia do Prof. Dr. Nythamar de Oliveira na

PUCRS, a quem agradeço vivamente pela acolhida num espaço de

discussão franca e alto nível acadêmico. Ao Prof. Dr. Luiz Gustavo

Loureiro (UnB), com quem compartilho a minha curiosidade pela

pandectística, agradeço o incentivo para publicar este primeiro tra-

balho. Ao editor Sérgio Fabris agradeço a cordial admissão do

manuscrito na sua prestigiada editora.

Com algumas alterações pontuais, o texto ora publicado repro-

duz a versão original. As conclusões aqui apresentadas formam a

base de pesquisas que, entre 2006 e 2011, tive a oportunidade de

aprofundar durante uma longa estadia como bolsista do Max Planck-Institut für europäische Rechtsgeschichte de Frankfurt am Main.

Orientado pelo Prof. Dr. Joachim Rückert da Universidade de Frank-

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furt, atualmente uma das maiores autoridades no estudo da obra de Savigny e da história da ciência jurídica alemã em geral, conclui o doutorado em direito em outubro de 2011 com a tese Savignys Theo-rie der juristischen Tatsachen (A teoria savignyana dos fatos jurídi-cos), tese que incorpora e desenvolve uma linha de investigação já estabelecida na monografia (cf. infra p. 131). Vincular a reflexão metodológica e teórica com as soluções concretas da dogmática jurí-dica é uma preocupação que tem me acompanhado desde então.

Dedico este livro à minha família. Sem o apoio incondicional dos meus pais, Luiz Antônio e Flávia, do meu irmão Gustavo e dos meus avós Helena e Domnio (in memoriam), eu dificilmente teria persistido – e insistido – no caminho que trilhei até agora. Gostaria que eles recebessem esse livro como um sinal de gratidão. Desde que escrevi as primeiras linhas deste trabalho tive e tenho o privilégio de contar com o carinho e a presença da Geórgia ao meu lado. Este livro não é só para ela, é dela também.

Porto Alegre, novembro de 2012

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INTRODUÇÃO

I. O título do presente estudo poderia facilmente gerar, no leitor

que pretendesse enquadrá-lo nos modelos atuais de classificação da literatura jurídica, alguma incerteza quanto ao seu conteúdo. Espe-cialmente a articulação entre dogmática, metodologia jurídica e o nome de um certo autor alemão do séc. XIX que, muito citado e pouco lido em matéria de posse, permanece um desconhecido do público jurídico brasileiro, pode parecer, à primeira vista, pouco evidente. Pois prestemos desde já um serviço ao leitor e estabeleça-mos sobre o que aqui se trata: este é um estudo de história da meto-dologia jurídica que, tomando como ponto de partida a teoria posses-sória de Friedrich Carl von Savigny (1779-1861), tal como exposta no Das Recht des Besitzes de 1803, pretende compreender o modo como se dá, na concepção jurídica desse autor, a formação de con-ceitos para uma elaboração científica do direito. Em outras palavras, o que está em jogo aqui é menos a correção ou incorreção das posi-ções assumidas por Savigny quanto à validade de determinado insti-tuto jurídico – neste sentido este não é um estudo de dogmática –, do que o seu método, ou seja, a maneira pela qual é identificado, na complexidade do mundo social, o elemento caracterizador do juridi-cum. Assim, o problema a ser resolvido nas páginas que seguem consiste em analisar o aparato conceitual utilizado por Savigny para selecionar determinadas situações como situações relevantes para o direito, como situações jurídicas em oposição àquelas juridicamente

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indiferentes, meramente fáticas. Com base em quais critérios Sa-vigny traça a linha divisória entre o jurídico e o não-jurídico? Esta é a pergunta que pretendemos responder. A relação estabelecida entre fático e jurídico é um ponto fundamental de qualquer concepção metodológica e, como teremos a oportunidade de ver, a matéria da posse, cuja natureza oscila historicamente entre fato e direito, se mostra extremamente propícia para este tipo de análise.

II. A idéia de problematizar aspectos centrais da metodologia jurí-

dica savignyana a partir de uma obra de dogmática como o Besitz pode parecer inusitada e, visto que constitui o pano de fundo da pre-sente investigação, demanda uma justificativa. Ainda que a literatura concorde que há muitas chaves de leitura de Savigny1, podemos di-zer que há uma tendência de separar, no pensamento savignyano, a reflexão metodológica da elaboração do direito romano vigente na sua época, que ele posteriormente chamará de direito romano atual. Principalmente a partir da primeira edição, em 19512, do curso de metodologia jurídica anotado por Jacob Grimm no inverno de 1802/03, difundiu-se tanto na literatura alemã quanto na brasileira que a reproduz uma interpretação que enfatiza uma longa continui-dade no pensamento savignyano em relação a temas controvertidos como “sistema”, “formalismo” e “positivismo”3. Trata-se de uma

1 - Essa ressalva, de tão verdadeira, vem expressamente acentuada em duas contribui-ções ao congresso florentino de 1980, organizado por Paolo Grossi, su Federico Carlo di Savigny e editada nos Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, vol. 9 (1980): respectivamente PIO CARONI, La cifra codificatoria nell’opera di Savigny, pp. 69-111; e MARIO BRETONE, Il ‘Beruf’ e la ricerca del ‘tem-po classico’, pp. 189-216. 2 - Ainda que conhecido do grande público desde um artigo de HERMANN KONTORO-

WICZ, Savignys Marburger Methodenlehre. in: Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte-(RA) 35 (1933), pp. 465-471, a primeira edição é de GERHARD

WESENBERG, Friedrich Karl von Savigny. Juristische Methodenlehre. Nach der Au-sarbeitung des Jakob Grimm. Stuttgart: Koehler, 1951. Para mais detalhes, cf. infra n. 44. 3 - Veja-se, por exemplo, a interpretação de KARL LARENZ, Methodenlehre der Rechtswissenschaft, Berlim et al.: Springer, 1960, p. 13: Savigny como precursor da jurisprudência dos conceitos; cf. também FRANZ WIEACKER, História do Direito Privado Moderno, 2ª ed., Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1993, pp. 421 e segs.

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linha interpretativa construída sobretudo a partir do curso de 1802/03,

que incorpora alguns aspectos da polêmica em torno da codificação

de 1814 e culmina com a publicação do primeiro volume do System des heutigen römischen Rechts (Sistema de Direito Romano Atual)

em 1840. Como já apontava Wolfgang Kunkel na sua resenha à pri-

meira edição da Privatrechtsgeschichte de Wieacker (1952), uma das

obras que, ao lado da Methodenlehre de Larenz (1960), pautaram o

debate sobre a história da metodologia jurídica moderna na segunda

metade do séc. XX, o problema dessa interpretação não reside ape-

nas no fato de atribuir um papel central a um curso nunca publicado,

cuja repercussão era, portanto, bastante restrita, mas acima de tudo

na forma seletiva de sua abordagem4. Pois, como observaria Kunkel

em 1962, o “lado forte” de Savigny residia justamente na “dogmáti-

ca jurídica”, sobretudo na forma como esta havia circulado em obras

como o Besitz (1803), o System (1840-49) e o Obligationenrecht (1851-53). Na visão de Kunkel, a importância de Savigny para a

ciência jurídica moderna devia-se precisamente à sua “capacidade de

formatação” da matéria jurídica (juristische Gestaltungskraft)5, as-

pecto que havia sido negligenciado nas interpretações de Wieacker,

Larenz e outros, onde obras como o Besitz ou o System raramente

constituíam objeto de análise sob o ponto de vista dogmático-

metodológico. Não por acaso, o primeiro estudo mais aprofundado

acerca dos pressupostos da teoria possessória de Savigny é bastante

recente e se insere justamente num contexto de revisão das interpre-

tações difundidas desde a metade do séc. XX6.

4 - WOLFGANG KUNKEL, Resenha das obras: Franz Wieacker, Privatrechtsgeschichte

der Neuzeit unter besonderer Berücksichtigung der deutschen Entwicklung, Göttingen

1952; Gerhard Wesenberg, Neuere deutsche Privatrechtsgeschichte im Rahmen der

europäischen Rechtsentwicklung, Lahr 1954, in: Zeitschrift der Savigny-Stiftung für Rechtsgeschichte (RA), vol. 71 (1954), pp. 509-539.

5 - Ver WOLFGANG KUNKEL, Savignys Bedeutung für die deutsche Rechtswissenschaft und das deutsche Recht, in: Juristenzeitung, vol. 15/16 (1962), pp. 457-463, aqui 463.

6 - Trata-se de KENICHI MORYIA, Savignys Gedanke im Recht des Besitzes. Frankfurt:

Klostermann, 2003. Para uma crítica das narrativas sobre a história do direito privado

moderno difundidas desde meados do séc. XX ver JOACHIM RÜCKERT, Geschichte des Privatrechts als Apologie des Juristen – Franz Wieacker zum Gedächtnis, in: Qua-derni Fiorentini, 24 (1985), p. 531-562.

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Podemos dizer sem exagero que a modernidade jurídica nasce com a obra de Savigny7, fundador de um paradigma científico desti-nado a um excepcional sucesso dentro e fora da Europa ao longo de todo o séc. XIX8. De forma significativa, um dos livros de metodo-logia mais influentes atualmente sentiu a necessidade de legitimar-se historicamente precisamente a partir da metodologia savignyana9. Atuando num contexto de excepcional florescimento cultural e de grande instabilidade político-institucional, o papel transformador de Savigny parece residir justamente na sua capacidade de fornecer as condições de possibilidade de uma elaboração sistemática da matéria jurídica, garantindo através da ciência a ordenação da matéria que a legislação era incapaz de produzir10. Parece ter residido, além disso, no esforço por elevar uma cultura jurídica dividida entre o particula-rismo praxista de um lado, e as abstrações do tardo jusracionalismo de outro, a um novo patamar de compreensão científica da realidade jurídica11. O objetivo do presente estudo é analisar as primeiras for-mulações desta nova compreensão de ciência do direito, tomando como eixo central a teoria possessória de Savigny. A escolha do Besitz para uma análise da aplicação da metodologia savignyana sobre a matéria jurídica muito antes que arbitrária, reflete, ao contrá-rio, a percepção da importância do papel desta obra não apenas no conjunto de publicações do autor, mas na própria ciência jurídica alemã do séc. XIX. Considerando que já a própria literatura da épo-

7 - Cf. JOACHIM RÜCKERT, Friedrich Carl von Savigny, the Legal Method and the Modernity of Law, in: Juridica International XI (2006), pp. 55-67, agora in: ID., Savigny-Studien. Frankfurt: Klostermann, 2011, pp. 609-630. 8 - Veja-se, sob uma perspectiva global, DUNCAN KENNEDY, Three Globalizations of Law and Legal Thought: 1850-2000, in: D. TRUBEK und A. SANTOS (Ed.), The New Law and Economic Development, Cambridge: CUP, 2006, pp. 19-73, p. 27 e segs. para Savigny; Cf. também ALDO MAZZACANE, Prospettive savignyane vecchie e nuove: i corsi inediti di metodologia. in: Quanderni Fiorentini, 9 (1980), p. 217. 9 - A referência aqui é KARL LARENZ, Methodenlehre (n. 3), p. 8 e segs. 10 - Sobre o papel das universidades alemãs como fator de unificação nacional à título de Verfassungsersatz ver PIERANGELO SCHIERA, Laboratorium der bürgerlichen Welt. Deutsche Wissenschaft im 19. Jahrhundert, Frankfurt: Suhrkamp, 1992. 11 - Sobre o contexto do início do séc. XIX, ver JOACHIM RÜCKERT, Heidelberg um 1804 oder: die erfolgreiche Modernisierung der Jurisprudenz durch Thibaut, Savigny, Heise, Martin, Zachariä u.a. (1987), agora na coltânea: ID., Savigny-Studien, Frank-furt: Klostermann, 2011, pp. 235-269.

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ca12 reconhece que o impacto da obra sobre a cultura jurídica con-temporânea se deve à forma como ali se encontra elaborada e siste-matizada a matéria da posse, o estudo do Besitz nos fornece uma fonte preciosa de interpretação. Assim o é em parte dada sua estrutu-ra em si, que logo se tornou modelo de monografia jurídica para o restante do séc. XIX13, mas em parte também pela própria matéria que ele toma por objeto, razão de discórdia entre juristas desde sabi-nianos e proculeianos. A teorização da posse, que gira permanente-mente em torno da definição de sua natureza, assume historicamente o papel de um caso extremo da teoria do direito privado e da meto-dologia jurídica em geral, ponto em que as concepções metodológi-cas e o próprio conceito de direito com o qual a ciência jurídica ope-ra se manifestam mais nitidamente do que em qualquer outro institu-to. Não por outro motivo, a discussão a respeito da natureza da posse que se arrastou ao longo de todo o séc. XIX até o Besitzwille de Jhering de 1889 reflete não uma mera discordância sobre uma fili-grana dogmática, mas uma contenda pelo próprio conceito de direito e sua repercussão na construção da ciência jurídica14.

IV. Considerando o que chamamos acima de aspecto fundamental

de qualquer metodologia, qual seja, a delimitação entre fático e jurí-dico, o objeto central do presente estudo consiste em reconstruir a definição da natureza da posse no Besitz de Savigny. Em outras pa-lavras, trata-se de reorganizar a argumentação em torno dos temas centrais da teoria possessória, bem como de apontar os traços distin-tivos e as marcas originais que a teoria savignyana imprime aos seus conceitos fundamentais. Para que fique claro, desde já, o nó que pretendemos desatar na teoria savignyana, a passagem a seguir é especialmente ilustrativa:

12 - CARL GEORG BRUNS, Das Recht des Besitzes im Mittelalter und in der Gegenwart, Tübingen 1848, p. 411. 13 - HANS KIEFNER, Der junge Savigny [II]. Agora reunido in: ID., Ideal wird, was Natur war. Abhandlungen zur Privatrechtsgeschichte des späten 18. und des 19. Jahrhunderts. Goldbach: Keip, 1997, pp. 224*. 14 - Como já notara LÉO PININSKI, Der Thatbestand des Sachbesitzerwerbs nach gemeinem Recht. Leipzig: Duncker & Humblot, 1885, p. 5.

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“[...] a posse em si, segundo seu conceito originário, é um mero fato: da mesma forma é certo que as leis lhe vincularam conseqüências jurí-dicas. Assim ela é fato e direito simultaneamente, e esta relação dupla é enormemente importante para todo o detalhe”15. A natureza dupla da posse, formulação algo inusitada para o ju-

rista atual, que desde Jhering se acostumou a admitir a mera fatici-dade do fenômeno possessório, mas que Savigny reputa aqui funda-mental “para todo o detalhe” de sua teoria, somente pode ser expli-cada, esta a nossa hipótese, a partir dos pressupostos da metodologia savignyana. Em realidade, a apreensão da relação possessória como fática e jurídica simultaneamente remonta a uma premissa do método savignyano que impede o rompimento total entre mundo fático e mundo jurídico, tão caro à civilística contemporânea. Trata-se de um aspecto da metodologia jurídica savignyana que dificilmente conse-guiria ser exposto tão explícita e claramente como na teoria da posse. Nossa hipótese de trabalho implica ainda um segundo ponto: a rela-ção que se estabelecerá, ao longo do estudo, entre metodologia jurí-dica e dogmática parte não de uma derivação de um discurso geral para um caso de aplicação deste, mas da premissa de que é a partir da fixação concreta de uma dada relação jurídica que a argumenta-ção metodológica melhor se explica e é compreendida. Este é um aspecto importante, pois nele a elaboração dos institutos não se re-sume a um ponto a mais de confirmação da argumentação geral, por exemplo, das implicações da filosofia do direito no direito privado, mas constitui o ponto de partida da argumentação metodológica. Poderíamos, talvez, qualificar esta perspectiva como um ponto de observação eminentemente jurídico.

15 - SAVIGNY, Das Recht des Besitzes. Eine civilistische Abhandlung. 1a ed. Gießen: Heyer, 1803. §5, p. 22: “[...] der Besitz an sich, seinem ursprünglichen Begriffe nach, ein bloses Factum ist: eben so gewiß ist es, daß die Gesetze rechtliche Folgen damit verbunden haben. Demnach is er Factum und Recht zugleich, und dieses zweyfache Verhältnis ist für das ganze Detail ungemein wichtig”.

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V. Ao leitor mais atento não passará despercebido que a bibliogra-

fia citada, em grande parte ainda indisponível em língua portuguesa, se limita, em larga medida, a obras publicadas a partir da década de 198016. Este fato se deve à nova fase em que entrou a pesquisa sobre Savigny, a Savigny-Forschung dos alemães, nas últimas décadas17, principalmente após a aquisição dos manuscritos de Savigny pela biblioteca da Universidade de Marburgo, muitos dos quais disponí-veis hoje em edições críticas na coleção Savignyana, editada por Joachim Rückert18. De especial interesse para o nosso estudo é a organização, sob os cuidados de Aldo Mazzacane, dos cursos de metodologia jurídica ministrados por Savigny entre 1802 e 1842, que se estendem portanto desde o início de sua carreira universitária na Universidade de Marburgo até a época de maturidade em Berlim19.

Por esse motivo, e dado o ineditismo de inúmeros textos de Sa-vigny em língua portuguesa que são fundamentais para a compreen-são da sua concepção metodológica, pareceu-nos razoável iniciar com um capítulo preliminar sobre o jovem Savigny e a vinculação entre metodologia jurídica e seu interesse pelo direito possessório. Obviamente, não se trata aqui de fornecer um quadro detalhado da biografia de Savigny, mas apenas de equipar o leitor com alguns dados gerais a respeito da atividade do autor na época em que elabo-rava sua teoria possessória. O foco recai, portanto, sobre o início da atividade docente de Savigny em Marburgo, bem como sobre os trabalhos preparatórios para o Besitz. Depois deste capítulo introdu-tório, segue-se uma primeira incursão sobre o conteúdo da teoria 16 - Ver o diagnóstico de Aldo Mazzacane no congresso florentino citado: Prospettive savignyane vecchie e nuove: i corsi inediti di metodologia. in: Quanderni Fiorentini, 9 (1980), pp. 217-244. 17 - JOACHIM RÜCKERT, Savignys Konzeption von Jurisprudenz und Recht, ihre Fol-gen und ihre Bedeutung bis heute. In: Tijdschrift voor Rechtsgeschiedenis, 61 (1993), p. 65. 18 - Significativamente, um dos marcos desta nova fase da pesquisa savignyana se dá justamente com a publicação da obra fundamental de JOACHIM RÜCKERT, Idealismus, Jurisprudenz und Politik bei Friedrich Carl von Savigny. Ebelsbach: Gremer, 1984. Sobre a coleção Savignyana, cf. a apresentação de JOACHIM RÜC-KERT, Einführung zur Gesamtedition Savignyana, in: H. HAMMEN (ed.), Pan-dektenvorlesgungen 1824/25. Frankfurt: Klostermann, 1993, pp. V-XIII. 19 - ALDO MAZZACANE, Friedrich Carl von Savigny: Vorlesungen über juristische Methodologie 1802-1842. 2ª ed. Frankfurt a.M.: Klostermann, 2004.

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possessória savignyana, que tem por objeto justamente a delimitação do conceito fático de detenção, uma das inovações introduzidas pelo Besitz na dogmática jurídica moderna. Após, voltaremos nossa aten-ção para o lado jurídico da problemática da posse, buscando iden-tificar o elemento caracterizador do jurídico no factum detentionis, momento em que o animus domini, provavelmente o aspecto mais conhecido da teoria possessória savignyana, adquirirá especial im-portância. Por fim, o capítulo quarto analisará os argumentos ofere-cidos por Savigny para fundamentar juridicamente a defesa da posse, outro ponto em que o Besitz traz importantes inovações, sobretudo no que diz respeito ao enquadramento sistemático do instituto.

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CAPÍTULO PRIMEIRO

PREMISSAS ORDENADORAS

I. Sobre o jovem Savigny: metodologia jurídica e teoria da posse

1 – Nota preliminar O período em que se reconhece, no desenvolvimento intelectual

de Savigny, o início de sua reflexão metodológica e de seu trabalho como civilista costuma ser caracterizado na literatura como aquele do jovem Savigny, ou da sua época de Marburgo20. Esse período, que se estende até o inverno de 1803/0421, situa-se entre a entrada de Savigny como aluno da faculdade de direito de Marburgo no verão de 1795, curso que concluirá no inverno de 1799, e a publicação do Das Recht des Besitzes (O direito da posse) em 1803. Para uma in-vestigação que se propõe a analisar a metodologia savignyana apli-cada à matéria jurídica, particularmente à teoria possessória, traçar uma breve caracterização deste período se apresenta como um ponto de partida razoável.

20 - Assim, por exemplo, HORST HEINRICH JAKOBS, Der Ursprung der geschichtli-

chen Rechtswissenschaft in der Abwendung Savignys von der idealistischen Philoso-

phie. In: Tijdschrift voor Rechtsgeschiedenis, 57 (1989), pp. 241-273. Jakobs segue a divisão de ADOLF STOLL, Friedrich Karl von Savigny. Ein Bild seines Lebens mit

einer Sammlung seiner Briefe. Bd. I: Der junge Savigny: Kinderjahre, Marburger und

Landshuter Zeit Friedrich Karl v. Savignys, Berlin: Carl Heymann, 1927. 21 - Segundo JOACHIM RÜCKERT, Savignys Konzeption (nota 17), p. 67. Ver também JAKOBS, Der Ursprung (n. 20), p. 241, situa este período entre 1795-1803.

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Ainda que a literatura secundária tenha reconhecido que poucos juristas tiveram tantas páginas destinadas a elucidar seu pensamento como Savigny22, não se pode dizer que a literatura em língua portu-guesa tenha demonstrado igual interesse, muito embora um dos nos-sos maiores tenha oferecido admiração e reconhecimento expressos pela obra do autor alemão23. Por esse motivo, iniciaremos nossa ex-posição com um apanhado geral da época em que Savigny formulou, ainda que de maneira incipiente, sua posição metodológica, que aqui pretendemos relacionar com o Besitz. A esta segue uma exposição mais aprofundada das concepções de direito, método e de ciência jurídica com as quais Savigny trabalha neste primeiro estágio de suas reflexões. Não obstante seja possível demonstrar uma linha con-stante que liga a formulação metodológica dos anos de 1802-03 àquela do System24, cuja publicação se inicia em 1840, procuraremos nos ater com mais intensidade às concepções próprias do período da publicação da primeira edição do Besitz, recorrendo a argumentações posteriores quando demonstrada a modificação na formulação de um conceito ou o esclarecimento de um ponto obscuro nas conceituações anteriores. Trata-se, portanto, de fornecer ao leitor subsídios para a leitura dos capítulos que seguem, não de uma exposição exaustiva da metodologia savignyana. O propósito deste capítulo é muito mais fornecer as lentes com as quais deverá ser lido o restante desta inves-tigação, e não resolver as questões de interpretação envolvidas na época de Marburgo de Savigny, que constituem, por si só, provavel-mente algumas das mais controversas relacionadas à obra do autor25.

22 - ALDO MAZZACANE, Prospettive savignyane (n. 16), p. 219. 23 - AUGUSTO TEIXEIRA DE FREITAS, Consolidação das Leis Civis, 3ª ed., Rio de Janeiro: Garnier, 1876, p. CLV sobre posse: “Passemos agora á outra innovação do nosso plano, que nos-incumbe também justificar, e que felizmente está protegida pela suprema autoridade do admirável Escriptôr, que tantas vezes havemos invocado”, citando a tradução francesa, Traité de La Possession em Droit Romain, de Charles F. D’Audelange, Paris: Louis Delamothe, 1841. 24 - Este é um ponto decisivo na argumentação de Rückert sobre o idealismo objetivo como chave interpretativa do pensamento de Savigny, Savignys Konzeption, p. 70, que discutiremos mais pormenorizadamente abaixo. 25 - A título de exemplo, cf. as interpretações divergentes em JAKOBS, Der Ursprung (n. 20); RÜCKERT, Savignys Konzeption (n. 17) e também Idealismus, Jurisprudenz und Politik (n. 18); HANS KIEFNER, Friedrich Carl von Savigny [I] e [II]. In: Ideal wird, was Natur war. Abhandlungen zur Privatrechtsgeschichte des späten 18. und des 19. Jahrhunderts. Goldbach: Keip, 1997, pp. 227-241.