entrevistas com trabalhadores/as que residem...

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1 ENTREVISTAS COM TRABALHADORES/AS QUE RESIDEM NO ASSENTAMENTO TIMBORÉ – 22 de março de 2006 – Andradina/SP Entrevista com Graciele da Silva Evangelista, 19 anos Entrevistador Onde você mora e se vc tem alguma função na organização do assentamento ou no MST? Graciele Moro na Timboré e não tenho nenhuma função na coordenação. Entrevistador Há quanto tempo você está no assentamento Timboré e o que vc faz? Graciele É, a gente está lá desde que iniciou o acampamento, passamos por toda aquela batalha, né? Porque foi, assim, uma grande luta, pra gente conseguir lá... Houve muitas coisas, até tiroteio e tudo... Desde pequena. Praticamente, quase dezenove anos. Entrevistador Quantos anos vc tinha quando foi para o acampamento? Graciele Ah, eu era muito pequena. Acho que, o que, uns... três anos quatro anos? Por aí, mais ou menos... Entrevistador Praticamente você cresceu lá na fazenda Timboré. Graciele Isso. Cresci lá. Entrevistador Como era a tua vida no início, antes do assentamento? Graciele Ah, a gente vivia em barraca de lona. Assim, é... muita.... como fala assim... Tinha assim algum desentendimento. Assim, que acho que em todo lugar há. Mas a gente, por sorte, conseguimos. Entrevistador E hoje você tem uma casa? Como é que é a tua vida hoje? Você é solteira ou é casada? Graciele Solteira. Hoje a gente tem uma casa, que a gente conseguiu construir, uma casa de material... E a gente planta, vive do leite, e de plantação. Entrevistador Você sabe dizer como vocês conseguiram construir a casa? Graciele Foi um projeto, que teve do governo pra gente construir, porque ninguém tinha condições de construir uma casa, porque não tinha dinheiro, não tinha condições. As vacas, do mesmo jeito. A energia também, foi da mesma forma. Entrevistador E hoje vocês vivem da produção de leite? Graciele Da produção de leite. A gente plantou milho, mas assim, vive mais da produção de leite. Que todo mês você tem aquele dinheiro. Entrevistador Quantos irmãos você tem? Como é que é a tua família? Pai, mãe e quantos irmãos?

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ENTREVISTAS COM TRABALHADORES/AS QUE RESIDEM NO ASSENTAMENTO TIMBORÉ – 22 de março de 2006 – Andradina/SP

Entrevista com Graciele da Silva Evangelista, 19 anos

Entrevistador Onde você mora e se vc tem alguma função na organização do

assentamento ou no MST?

Graciele Moro na Timboré e não tenho nenhuma função na coordenação.

Entrevistador Há quanto tempo você está no assentamento Timboré e o que vc faz?

Graciele É, a gente está lá desde que iniciou o acampamento, passamos por

toda aquela batalha, né? Porque foi, assim, uma grande luta, pra gente

conseguir lá... Houve muitas coisas, até tiroteio e tudo... Desde

pequena. Praticamente, quase dezenove anos.

Entrevistador Quantos anos vc tinha quando foi para o acampamento?

Graciele Ah, eu era muito pequena. Acho que, o que, uns... três anos quatro

anos? Por aí, mais ou menos...

Entrevistador Praticamente você cresceu lá na fazenda Timboré.

Graciele Isso. Cresci lá.

Entrevistador Como era a tua vida no início, antes do assentamento?

Graciele Ah, a gente vivia em barraca de lona. Assim, é... muita.... como fala

assim... Tinha assim algum desentendimento. Assim, que acho que em

todo lugar há. Mas a gente, por sorte, conseguimos.

Entrevistador E hoje você tem uma casa? Como é que é a tua vida hoje? Você é

solteira ou é casada?

Graciele Solteira. Hoje a gente tem uma casa, que a gente conseguiu construir,

uma casa de material... E a gente planta, vive do leite, e de plantação.

Entrevistador Você sabe dizer como vocês conseguiram construir a casa?

Graciele Foi um projeto, que teve do governo pra gente construir, porque

ninguém tinha condições de construir uma casa, porque não tinha

dinheiro, não tinha condições. As vacas, do mesmo jeito. A energia

também, foi da mesma forma.

Entrevistador E hoje vocês vivem da produção de leite?

Graciele Da produção de leite. A gente plantou milho, mas assim, vive mais da

produção de leite. Que todo mês você tem aquele dinheiro.

Entrevistador Quantos irmãos você tem? Como é que é a tua família? Pai, mãe e

quantos irmãos?

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Graciele Tenho mais dois irmãos...

Entrevistador E os três estão com os pais e trabalham no assentamento, ou já teve

alguém que saiu?

Graciele Não. A minha irmã mora aqui em Andradina e trabalha aqui. Eu e meu

irmão trabalhamos no assentamento.

Entrevistador E como é que você analisa o trabalho do INCRA? Vocês não estão

assentados definitivamente?

Graciele Assentados a gente estamos na área. Mas... assim, é duro você tá lá,

você construir uma vida e de repente, assim, você ser despejado de um

lugar. Uma que, todas essas famílias que moram aqui, eu acho que pra

sair daqui vai precisar ter muita coisa, porque você deixar toda sua vida,

uma vida que você construiu, e você, assim, ver que você perdeu tudo,

e ficar sem nada, é bem complicado.

Entrevistador E qual é a tua avaliação do INCRA, nesse processo todo?

Graciele Acho que o papel dele não foi cumprido. Porque ou é ou não é. Se ele

falar assim, “não, vocês vão ficar aí”, deveria ter dito isso desde o

começo. Porque agora as pessoas construíram a vida, construíram a

casa, ter tudo lá, e de repente, assim, você ter que deixar tudo pra

trás... Então, assim é complicado. A justiça tá sendo lenta...

Entrevistador Como é que você vê a atuação do Poder Judiciário, dos juízes, neste

caso? Já teve alguém lá do assentamento que foi preso por conta da

luta pelo assentamento?

Graciele Já tivemos sim, alguns companheiros presos. Assim, mas a justiça, eu

acho que ela é um pouco lenta. E não sei, a gente espera que seja feito

o melhor, que a gente fique aqui. Porque até então, pra todo mundo

deixar, acho que vai ser difícil, porque vai resistir muito.

Entrevistador Vamos supor que a justiça decida que vocês devem sair da área. Você

tem, nesse momento, alguma perspectiva de qual seria a reação das

famílias?

Graciele Pacificamente, eu acho que não sairia. Porque você vê, ali, que tudo

que você tem tá ficando ali. Porque, se não fosse pra ficar aqui, talvez,

então teriam construído antes, teriam decidido antes. E não agora.

Então acho que não seria pacífica, porque a gente ia resistir muito,

porque aqui é nossa vida.

Entrevistador Você confia no Poder Judiciário?

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Graciele (longa pausa) Ah, a gente espera que a justiça seja feita, mas... é

complicado você poder dizer. Acho que a gente não pode ter muita

confiança. Às vezes a justiça vem, mas muitas vezes ela é demorada.

Entrevistador Foi feita alguma reunião aqui no assentamento pra explicar esse

problema que tem sobre esta área, esse conflito de interesses, onde o

proprietário entrou com uma ação para retirar as famílias desta área?

Graciele Já teve alguma reunião sim. Até a muito tempo atrás, onde tava,

novamente assim, alguns anos atrás, novamente isso veio à tona, a

gente fez até uma manifestação, saímos aí às ruas. Mas é isso.

Entrevistador Se você pudesse falar com o juiz pessoalmente ou através de uma

carta, que argumento você utilizaria pra convencer o juiz pra ele decidir

a favor de vocês?

Graciele Hum... Que... aqui é nossa vida. Se não fosse pra nós estarmos aqui,

que então, talvez, isso tivesse sido decidido antes. E não agora que a

gente tem a casa, temos a plantação. Porque, pra sair agora, vai pra

onde? Porque ninguém tem pra onde ir, vai sobreviver do quê? Vai ficar

na casa de parente?

Entrevistador Você acha que existe alguma força política que pode ajudar vocês?

Para convencer o juiz que vocês devem ficar nessa área?

Graciele Assim... Eu não sei te responder essa pergunta. Mas eu acho que... a

gente espera muito em Deus. Assim... a gente confia muito em Deus, e

tenho certeza que nós vamos ficar aqui.

Entrevistador Muito obrigado.

Entrevista com Estevão da Silva Rocha, 19 anos. Entrevistador Desde de quando você está no assentamento da fazenda Timboré e se

vc tem alguma função na coordenação?

Estevão São dezesseis anos, quando chegamos na Fazenda Timboré, cheguei

pequeno, é... Vim depois do meu pai, que meu pai veio primeiro.

Morava no Monte Castelo, depois que ele pegou trouxe nós. Quando já

tinha organizado mais o assentamento. E hoje eu participo da

coordenação do assentamento.

Entrevistador Quais são as tuas primeiras lembranças do assentamento? De quando

você era pequeno, o quê que você lembra?

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Estevão Assim, o que eu mais lembro, assim, era a dificuldade pra estudar. Pra

pegar e sair de casa. Porque quando eu fui, eu tinha uns quatro anos, aí

já pegou, aí já com uns cinco já comecei a ir pra escola, e era muito

longe da pista que tinha que pegar o ônibus, os ônibus não entrava lá. E

todo dia eu tinha que pegar e vir pra pista pegar o ônibus, e o mais ruim

era pegar e vim pra escola. E ter que voltar, chegava de noite. O ônibus

demorava, era pouco ônibus pra fazer a linha lá em volta tudo, né, pra

deixar os alunos. Essa é a mais lembrança que a gente tem.

Entrevistador E como é que foi a vida no assentamento logo no início?

Estevão No início, primeiro, a gente chegou a morar num barraco. Aí depois fez

uma casinha de tábua, aí pegou e plantamos um pedaço de roça lá e a

coisa foi melhorando. Mas no começo foi tudo difícil.

Entrevistador Você trabalha na terra?

Estevão Sim. Junto com um pai, na roça de algodão, às vezes plantava feijão...

Chegava da escola cedo, de manhã ia pra escola, chegava e ajudava

na área rural.

Entrevistador E hoje, o que seu pai e vocês plantam?

Estevão Criamos gado. Tiramos leite, plantamos quiabo, um pouco de pimenta,

essa coisas assim pra vender. Levamos na feira. Meu pai às vezes

trabalhava fora, também, de pedreiro. Eu ficava cuidando do sítio. Mais

na área de gado mesmo, que o povo mexe.

Entrevistador Como é que você vê a atuação do INCRA no assentamento? Tem

alguma pendência ainda do assentamento, ou vocês já estão tranqüilos

em cima da terra?

Estevão Assim, o povo hoje está mais tranqüilizado. Acho que assim, a

possibilidade, assim, de sair daqui... Muitos não querem sair daqui.

Então o povo é mais tranqüilo.

Entrevistador O INCRA faz reuniões com vocês? Você conhece o representante do

INCRA na região?

Estevão Não conheço. Mas sempre que acontece alguma coisa, assim, em

relação ao assentamento é divulgado através de reuniões.

Entrevistador Você sabe como é que tá a atual situação do assentamento, neste

momento? Se existe alguma ação de reintegração de posse contra as

famílias... Quais são as informações que você tem sobre a situação

atual do imóvel?

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Estevão Às vezes eles falam assim, que nem, que o fazendeiro, ele tinha

ganhado uma instância, às vezes fala. Aí outra vez fala que não

ganhou. Aí uma vez fala que vai ser despejado. Aí assim, aí fica

nesse... nem tá indo pra lá e nem pra cá. Então ninguém sabe ao certo

o quê vai acontecer. Isso é o real, é o que acontece.

Entrevistador Qual é a tua visão do Poder Judiciário? Como é que você vê o trabalho

dos juizes? Você confia no pode judiciário?

Estevão Ah, acho que a gente tem que confiar. Porque... se não é o juiz, que ele

tem o poder de decidir tudo, então... Acho que a gente tem que confiar.

Que nem a gente ali na terra, o que a gente confia ali é que ele não dê a

reintegração. Então, é isso que a gente confia.

Entrevistador Você acha que o juiz tem todos os elementos pra decidir essa causa?

Estevão Eu acho que não. Pelo meu ponto de vista, eu acho que não. Assim,

pegar e tirar, tirar o pessoal daqui, eu acho que não tem não.

Entrevistador Se você pudesse falar com o juiz ou mandar uma carta pra ele, o que

você diria para convencê-lo que vocês devem ficar na área?

Estevão Ah, eu diria que ali, eu acho que pra muitos ali... igual, se for ter que sair

daqui e ir pra cidade, ele não tem condições de sobreviver na cidade.

Em termos de idade, de arrumar emprego, que é difícil... muita gente

idosa, a procurar emprego, aí é mais difícil. Em termos de

sobrevivência, sair daqui e ir pra cidade.

Entrevistador Se o juiz mandar as famílias saírem da área, você acha que as famílias

iriam sair pacificamente?

Estevão Que nem, eu acho que eles aceitariam a decisão, se houvesse uma

indenização. Porque, que nem, a pessoa sair daqui assim sem nada, aí

é complicado. Mas se houver assim uma indenização eu acho que vão

sair sem problema nenhum.

Entrevistador Você acha que teria algumas outras forças políticas que vocês

poderiam recorrer, para ajudar a convencer o juiz que vocês tem direito

de ficar sobre a área?

Estevão Eu acho que sempre tem um jeito de recorrer, assim, alguma coisa.

Sempre surge uma nova instância. Então acho que sempre tem um jeito

sim, político de resolver.

Entrevistador Por que você acha que os trabalhadores deveriam ficar nesta área?

Estevão Em termos assim de produção, assim... que nem, na cidade, o que o

povo ganha lá, gasta tudo em Andradina, você tá entendendo? Então

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assim, em termos de movimento, o capital dentro de uma cidade, eu

acho que... ajuda muito.

Entrevistador Porque a demora para o INCRA resolver definitivamente este

assentamento?

Estevão Eu sei lá. Eu vejo, assim, o seguinte, que nem, o INCRA quer pagar pro

fazendeiro, né, que já morreu. Só que é um preço muito alto, o que ele

queria. Então, aí fica o jogo: o INCRA não quer pagar, e o fazendeiro

quer a terra. Então aí nenhum dos dois lados quer ceder, em termos

assim de decidir o que acontece com a terra.

Entrevistador Muito Obrigado.

Entrevista com Wagner de Souza Silva, 22 anos.

Entrevistador Wagner, me diga, desde quando você está na fazenda Timboré?

Wagner Eu tô lá desde o começo, desde 89.

Entrevistador Qual a tua primeira lembrança, quando ainda criança?

Wagner Eu lembro do acampamento, da gente, onde se localizava na beira do

rio. Lembro também quando a gente se localizava ali no “buracão”...

Chamava “buracão” porque ficava na margem da rodovia.

Entrevistador No início, como é que era o trabalho teu e da tua família?

Wagner No início a gente trabalhou com lavoura. Sempre com lavoura. Milho,

feijão. A gente se sustentava da lavoura.

Entrevistador E hoje, como é que a família vive na área? Ainda tá no barraco de lona,

ou não?

Wagner Não, hoje a situação, já... Vamo dizer que já tá bem melhor. Não vamos

dizer que tá 100%, mas uns 80%, já tá bem melhor. A gente mora numa

casa de material, a gente sobrevive de uma renda mensal, que é o leite.

A gente usa a roça pra se manter mesmo, só pra uso da gente, e não

pra vender. Porque roça hoje em dia não tá compensando. O gado

ainda compensa porque tem o leite, tem as "cria" dele que a gente

ainda pode utilizar. E a gente ainda tem uma casa de material, tem

energia, melhorou bastante, bastante.

Entrevistador Essa melhoria, ela se deu em razão do trabalho de vocês, da própria

família, ou teve projetos do Governo Federal ou Estadual para

construção de casas, compra de vacas, enfim... Como é que foi?

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Wagner Essa melhoria é devido a um conjunto. Juntamente com o Estado, com

o Governo. A gente teve essa melhoria junto com o conjunto, a família

junto com todos.

Entrevistador Você tem informações sobre a atual situação da área?

Wagner Então, o que eu sei é a gente tá assentado, mas não é definitivamente.

Tem ainda uma ação aí, diz-se que a fazenda ainda não é do INCRA,

não é nossa, ainda é do fazendeiro. E aí o que eu sei é isso, que ainda

não é totalmente nossa.

Entrevistador Já teve alguma reunião com vocês no assentamento, pra discutir essa

situação? Como é que chegam essas informações até vocês?

Wagner Sim, sim, foi feito reuniões sim, através do MST, que sempre trás

informações, e tem as assembléias. E sempre chega algumas

informações pelo MST.

Entrevistador Como é que você avalia o trabalho o INCRA no assentamento?

Wagner Eu acho que como muitos órgãos, ele tem suas boas razões e suas

más razões. Ele age às vezes... eu acho que ele age, às vezes, não

corretamente. Age às vezes muito devagar... Vamo dizer, que é meio

devagar... E às vezes é meio injusto algumas, algumas... vamo dizer...

algumas ações que eles movem lá dentro, eu acho que é errado.

Entrevistador A que você atribui essa demora no assentamento?

Wagner Ah, eu acho que isso daí não depende só dele, é uma escala, vamo

dizer que é uma escala. Então vem lá de cima, e vai vindo, vai vindo,

até chegar no INCRA. Não depende só do INCRA.

Entrevistador O quê você acha do Poder Judiciário e dos juizes em geral?

Wagner Bom, o que eu acho, eu nunca tive com nenhum juiz. Eu acho que a

justiça hoje no Brasil demora demais. E as vezes é injusta. Ela age,

sempre tende pro lado mais fraco mesmo. E... eu acho que demora

demais a justiça.

Entrevistador Você confia no Poder Judiciário?

Wagner Não.

Entrevistador Por quê?

Wagner É, eu não confio porque o Poder Judiciário ele sempre... É como eu

disse pra você, ele age mais pro lado... o lado mais... vamo dizer, dos

fazendeiro. O lado mais rico. O lado mais pobre ele sempre deixa

pendente.

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Entrevistador Se você pudesse falar com o juiz que tá pra decidir essa questão da

reintegração de posse, se você pudesse falar pra ele o que você diria?

Wagner Ah, eu diria pra ele que, se a gente sair, vai aumentar o índice de

desemprego, a criminalidade. A periferia da cidade vai aumentar mais.

A economia do país vai abaixar. Eu diria pra ele que a reforma agrária,

hoje em dia, é um dos meios de desenvolvimento do país. É um meio

do desenvolvimento. De acabar com a criminalidade, com a drogas,

com a periferia, com a pobreza, isso é, eu diria isso.

Entrevistador Você acha que se o juiz decidisse que vocês devem sair da área as

famílias iriam aceitar pacificamente?

Wagner Ah, eu acho que se haver, se haver essa situação, eu acho que

ninguém vai aceitar sair pacificamente daqui. Porque a gente já criou

um amor aqui dentro. Todos que, a maioria nasceu, nasceu crianças ali,

já cresceram alguns, alguns é pai de família tudo ali dentro, então já tem

um amor aqui, então acho que ninguém aceitaria sair dali pacificamente,

não.

Entrevistador Você acha que o juiz tem todas as condições pra decidir bem essa

causa?

Wagner Então, eu acho que ele não sabe ainda a realidade nossa. Eu acho que

não. Acho que ele não conhece ainda a nossa realidade, ali como é que

a gente tá, agora, como que a gente entrou, e agora como que a gente

tá, agora, como que melhorou bastante, né? Como a gente veio do

passado da gente e como a gente tá no presente.

Entrevistador Se vocês não estivessem nesse assentamento, onde você acha que a

tua família estaria hoje?

Wagner É, eu acho que a gente estaria numa cidade grande, aumentando lá o

índice de desemprego, a concorrência por emprego. Talvez

desempregado. Não teria o que a gente tem agora, que é um carro,

uma casa... a gente tem o nosso, vamo dizer, o saldo todo mês, ali, um

saldo bom, que dá pra gente se manter no mês tranqüilo... Eu acho que

a gente taria aí, mais uma aí, disputando por emprego, no país.

Entrevistador Quantas família moram hoje no assentamento Timboré?

Wagner São 176 famílias.

Entrevistador E todas elas vivem do trabalho na roça?

Wagner Então, alguns... a maioria, vamo dizer assim, a maioria vive da renda do

leite. Alguns vive... alguns mexe com roça, milho, vassoura, outros já

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tem projeto como piscicultura, tem um que tem apicultura. Tem vários

projetos, mas o forte mesmo, que o pessoal vende, vive mesmo, é a

renda do leite.

Entrevistador Uma última pergunta: quais os interesses que estão em discussão nesta

fazenda?

Wagner Bom, o interesse, o interesse que eu vejo do lado dos fazendeiros, ... o

interesse deles, eu não sei qual o interesse dele, porque ele não tem só

essa fazenda, ele tem mais fazenda, ele sabe que ele tá irregular. A

fazenda não tá adequada às porcentagens de produção, ela não era

produtiva... Então, o interesse dele, eu não sei qual é o interesse dele

em tirar nós daqui, sendo que ele não só tem essa fazenda, ele tem

mais fazenda.

Entrevistador Muito obrigado pela entrevista.

Entrevista com Maria José, 49 anos. Entrevistador Dona Maria José, como era a vida aqui na fazendo no início do

acampamento?

Maria José Em barraco de lona, muitos anos em barraco de lona. E muitos anos já

ficou mudando de um lugar para outro. Inclusive, aqui, quando a gente

entrou aqui, a gente mudou umas quatro vez de um barraco pra outro.

Entrevistador Sei.

Maria José O vento vinha, inclusive uma vez o vento tirou meu barraco, eu fiquei no

tempo, custou e eu consegui outro barraco. Não foi fácil, e a gente não

passou precisando das coisa, sabe por quê? Porque tinha um filho que

ficava na cidade ajudando, tinha os menino tudo pequeno, ajudando.

Vinha e trazia as coisas no barraco pra nós. E foi difícil. Até pra

assentar nós aqui foi com muitos anos.

Entrevistador Como era o trabalho no início: O Incra ajudou?

Maria José As primeiras assim, não teve ajuda do INCRA não, de jeito nenhum. A

gente ia plantando os pedacinhos, assim, por a gente. Arrumava um

pouquinho de semente, plantava um pedacinho... arrumava um outro

pouquinho, plantava outro. E foi assim. Foi difícil pro INCRA poder

ajudar pra gente plantar, foi muito tempo. Não foi fácil.

Entrevistador E hoje, como está a situação de vocês aqui hoje?

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Maria José Ah, hoje... tendo em vista do que nós passou... hoje, até que a gente tá

bom. Eu já comecei a fazer a casa aqui. A gente não planta muito,

também, porque não tem ajuda, a ajuda do banco tá tão difícil pra

gente, que a gente deve bastante. Então... em vista do que nós ficamo

na entrada, hoje até que dá pra ir, que tá... Eu comecei a fazer aqui, eu

tenho gado, tenho um pouco de leite que a gente tira, né, mas... a ajuda

é essa. No banco, se você quiser pegar um dinheiro é a coisa mais

difícil, com os nome tiver lá, você não pode pegar dinheiro. Igual, nós

tamo devendo o banco, bastante. Como tá aparecendo conta aí pra

pagar! E é muito, e é uma atrás da outra, pra pagar.

Entrevistador E a senhora tem filhos?

Maria José Eu tenho quatro filhos, graças a Deus! Tenho quatro filhos.

Entrevistador Eles moram com a senhora?

Maria José Não, meus filho... Só tenho um que mora aqui, mas inclusive fim de

semana, todos eles tão aqui comigo, e no começo também eles tava

aqui. Mas como não tinha dinheiro, não tinha nada pra gente manter

todo mundo. Uns queria ganhar... ficava sem dinheiro no bolso, falou:

"mãe, nós vamo trabalhar em Andradina, já que foi criado aí, e a

senhora fica aí mais o pai”. Então ficou assim. Aí, foram casando, e já

são tudo casado e eu só tenho solteiro o Valdir, que mora aqui comigo.

Mas tem o Juvenil, tem a Ana, tem a Carminha, que todos, a hora que a

gente precisa de alguma coisa, eles tão aqui pra ajudar nós. Só isso.

Mas por enquanto eu tenho a cunhada que mora aqui comigo... o Valdir,

meu esposo, e eu, que fica aqui com... Juntando, com o pão de cada

dia, tirando um pouquinho de leite hoje, outro amanhã... A roça não dá

pra plantar muito, porque você não tem condição de plantar uma roça,

porque... olha as tombação... Você vê, agora aqui tá sessenta,

cinqüenta real pra tombar, plantar... Quando você acaba de fazer um

pedacinho, você não tem condição de comprar semente! E no banco

não ajuda porque no banco você já tá devendo, e não sabe quando que

vai pagar. Então assim, a condição tá difícil pra gente aqui! Tá melhor

porque de... a gente ficou assentado nos barracos muitos anos, mas

agora que a gente já tem a casa, já tem um gadinho, né?

Entrevistador O quê vocês produzem hoje?

Maria José Mais com leite, a roça já é bem pouca porque tá difícil de você fazer um

pedaço de terra pra plantar. É mais com leite, já tem o tiramento de

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leite, a gente tira o leite, vai lá leva e volta, quando chega o fim do mês,

você vem, pega quatrocentos, trezentos... conforme o leite que você

manda, inté quinhentos. E assim a gente vai mantendo. Pega o

carrinho, vai levar o leite e volta, aí cuida do gado, a tardezinha aparta...

Aí no outro dia cedo começa a tirar leite de novo, e manda o leite. É

assim que você vai mantendo aqui. É difícil, se você não tiver o leite...

não tem condição pra poder sobreviver. Porque roça já não planta mais.

O que planta é um pedaço de milho... é, assim, um quiabo... é, uma

pimenta que eu plantei muito aí pra vender, mas você vai vender não

tem preço, não tem saída, porque leva no lugar, tem muitos que muitos

já tá aí.

Entrevistador O INCRA tem vindo aqui dar assistência, como é a que a senhora

analisa o trabalho do INCRA?

Maria José Como é que eu associo o trabalho do INCRA? Eu acho o INCRA assim,

agora, no começo o INCRA sempre fazia muita visita pra nós. Agora o

INCRA às vezes aos poucos tá chegando... Mas é difícil assim, o

INCRA tá nos visitando muito. Mas agora sempre tem uma turma do

INCRA que sempre tá vindo aqui, inclusive tá vindo aqui com material

pra fazer a casa. E... que é pelo “fundo perdido”, a gente tá em conjunto

assim, então nós estamos, assim, em conjunto pra poder adquirir esse

material, esse material vem todo pra nós, tá aí pra gente acabar as

reforma. Quem tem reforma igual eu, acaba, eu acabo a minha. Às

vezes muitos não tem casa, quer acabar de fazer a casa, né, que mora

em casa de tábua... Eu também morava na casa de tábua, aí.

Devagar... devagar, com o dinheiro do leite, eu fui guardando um pouco

hoje, um pouco amanhã, eu levantei esse cômodo. Tinha os dois

cômodo aqui levantado, mas assim com o dinheiro do leite, com um

pouco de dinheiro, naquele tempo que eu plantava o milho, a gente

mandava debulhar o milho e vendia, e ia guardando um pouco pra fazer

a casa... Mas eu tive muitos anos a minha casinha de tábua também.

Então o INCRA agora tá sempre com nós aqui, porque tem esse tal de

“fundo perdido” aí que a gente tá no conjunto pra poder tirar, ele agora

tá sempre aqui dentro com nós. Mas... eu acho que assim que teve

muitos anos atrás que a gente ficou muito sem o INCRA aqui. Não tinha

apoio, não tinha apoio de INCRA, não tinha apoio de ninguém, o apoio

nosso era a nós mesmo e o apoio de Deus, que Deus dava, sempre dá

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saúde, dá aquela força de vontade pra poder você poder ir trabalhando,

aí. E assim a gente vai vivendo, com um quiabo que planta, às vezes de

uma pimenta que você planta, de uma mandioca, mandiocal, e eu tenho

um mandiocal grande, aí, às vezes tá sem dinheiro, aí eu vendo

mandioca, aí eu levo pra vender... E assim você vai lutando com a vida.

A vida tá difícil pra viver! Porque com a tombação que você vê que tá, tá

50, 55 a hora assim... Então tá difícil pra nós, igual, mandar tombar dois

alqueires ou três alqueires de terra, pra poder plantar... Você acaba de

fazer a terra, que preço tá? Você vai vender o milho, você compra o

milho na base de quê, de uns... uns 60, 70 real o saco, você pega o

saco, igual eu comprei aqui. No fim, a hora que você vai colher, você vai

tirar a conta da terra que você mandou pagar pra tombar, pra gradear...

Você vai colher o milho, na hora que você colhe o milho pra vender, não

tem preço! Então tá difícil pra viver aqui.

Entrevistador Não sei se a senhora sabe que tem uma ação de reintegração de posse

contra as famílias aqui do assentamento? Quais informações que a

senhora tem?

Maria José As informação que às vezes a gente... a gente ia no ITESP, o ITESP às

vezes falava que o fazendeiro aqui não queria que a gente ficasse aqui,

que ele tava ganhando que nós ia perder... Então a gente tinha essas

informação deles lá, né? A gente assim ficava sabendo que eu sempre

vou no ITESP também, e sempre eles tá assim passando aquelas conta

que a gente tá devendo no banco, eles vem dar aquela informação pra

nós. Então você fica assim atento, sabendo dessas informação deles,

do ITESP, né? Que a gente não vai ganhar, que o fazendeiro tava

ganhando, e a gente quer é ganhar, né, com tanto tempo que nós já tá

aqui... Perder, que a gente acabou tudo o que tinha, aqui! Você vê,

inclusive eu trabalhei quatro anos no frigorífico, o que eu tinha eu acabei

tudo aqui. Até terreno que nós tinha, vendemo pra ficar aqui. Senão

passava fome, passava muita precisão. Então, é assim, essa

informação já vem de lá dos menino, né? Você sabe de umas

informações, eles vêm, passa pra gente... e gente fica atento,

esperando o que é que Deus vai preparar pra nós.

Entrevistador Se a senhora pudesse falar pro juiz pra convencê-lo a tomar uma

decisão, o que a senhora diria pra ele?

Maria José Pro juiz?

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Entrevistador Pro juiz, que vai decidir essa causa aqui. O que a senhora gostaria de

falar pra ele?

Maria José Eu diria pra ele que nós, a quantos anos que nós tá aqui? Nós queria

ganhar essa causa. Nós todos aqui quer ganhar. Eu acho que sim, né,

porque todo mundo... Quantos anos que nós tá aqui? Perder essa

causa, 16 anos? Tem a outra parte, do Liberdade, eu acho que já tá

com 18 anos já? 18, 17... Porque nós é mais novo aqui. Nessa parte

Chico Mendes, nós é mais novo. Agora a parte do Liberdade, já são

mais velhos assentados. Então, eu diria pro juiz que nós não queria

perder, que nós queria ganhar essa causa. Nós, tudo que nós tinha

perdeu aqui, esses anos todo aqui, ainda perder? É meio difícil pra

gente.

Entrevistador Se a senhora tivesse que sair daqui, pra onde a senhora iria?

Maria José Meu filho, eu nem... nem sei te responder isso aí. Porque a gente se

acostumou tanto aqui no sítio, pra ir pra cidade tá tão difícil... Aqui pra

nós tá difícil, e na cidade como é que tá? Porque todos que tá na

cidade, quer um pedaço de terra. Todos não quer ficar lá, porque na

cidade, o que você vê? É fome, é briga, é desavença. Aí é um matando

o outro, é pai matando filho, é filho matando a vó... Por quê? É por

causa do dinheiro! Então eu acho assim que ia ser difícil de eu voltar

pra cidade. Eu queria sempre tá lutando por um pedaço de terra, eu

acho que nós todos que tamo aqui. Porque se eu tenho aqui e eu vou

vender, ou eles me tira daqui... eu acho que é meio difícil eu voltar pra

cidade! Porque a cidade, meu filho sempre tá pra lá, tá falando: "olha

mãe cada dia tá difícil, se nós puder, nós vamo é acampar também,

pegar um pedaço de terra pra tá aqui com a senhora, tá pequeno, tá

difícil"... Mas eu digo assim, meu filho, pra voltar pra cidade, pra mim, no

meu jeito, no que eu penso de ser, eu meu esposo e meu filho, é um

pedaço de terra. Porque tem tantos que tá lá, que quer vir pra cá! Nós

acha que é difícil pra nós, mas não é! Aqui é muito melhor! Você tá aqui,

você tá acordado, porque tem uma galinha, você tem um ovo, você tem

um porquinho... você tem abóbora, você tem uma mandioca... Sempre

você tá tendo o pão de cada dia, pra passar fome também é muito

difícil!

Entrevistador Qual a visão da senhora sobre o Poder Judiciário? A senhora confia no

Poder Judiciário?

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Maria José Às vezes eu penso que eu confio, às vezes eu penso que eu não

confio... a minha palavra é essa. Eu acho assim que, a gente confia

deles ajudar a gente, né? Por quê? Como que vai... o que vai acontecer

com nós, se o fazendeiro ganha essa terra aqui? Como que a gente vai

fazer? Então a gente confia neles ajudar nós. Nós confia na força deles,

e na de Deus também, né? Primeiramente na de Deus e depois na

deles. Porque Deus é tudo pra nós todos, né? Porque você tá com uma

causa difícil, né... às vezes você pega uma bíblia ou um santinho, você

vai pegar com Deus: “Deus, me ajuda, que eu tô precisando da tua

ajuda”, né? Então, eu acho assim, que primeiramente, a gente confia

em Deus e depois no juiz, como você tá falando aí... A gente confia sim.

Entrevistador A senhora gostaria que o juiz viesse aqui, ou a senhora acha que não

iria mudar nada?

Maria José Assim, eu me penso assim, que às vezes ele poderia até ajudar aí nós,

né? Quem sabe? Se ele viesse dentro da área, visse a condição de

todo mundo, a precisão... Assim, que ninguém quer sair... Eu mesma,

pela pena, eu não quero sair, eu quero ficar, ele podia ajudar lá, né!

Porque você acha que se ele fosse vir aqui, fazer uma visita pra nós...

se ele vem de bom coração, a gente espera coisas boas, né? Porque a

gente não sabe se ele vem mesmo de bom coração, nos ajudar, dar

uma força pra nós... Então eu acho que se ele viesse aqui... seria uma

boa.

Entrevistador Dona Maria, muito obrigado pela entrevista.

Entrevista com Vanderlei Arvelino Gomes, 33 anos. Entrevistador Vanderlei, me diga como é que foi a tua chegada aqui na área?

Vanderlei Foi 19 de agosto de 1989. Quando a gente tentamos fazer a primeira

ocupação aqui na fazenda Timboré, no município de Andradina. A gente

foi recebido pelos jagunços, pelas polícias, na época, e a gente não

tivemos nem condições de entrar pra dentro da fazenda, a gente ficamo

acampado num barranco, onde a gente apelidou o lugar de “Vale das

Lágrimas”, porque lá a gente sofreu muito. Então são lembranças

bastante dolorosas, onde a gente passamo fome, passamo frio,

perdemos muitas das vezes barraco... E foi nesse ano, ainda, que a

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gente fizemo a ocupação da fazenda, no dia 19 de agosto de 1989,

onde que, onde fomo recebido a bala, onde teve companheiro que

perdeu a vista, o companheiro Santilo, que hoje já não se encontra

assentado, foi embora. E dali pra cá, a gente... fomos passando muita

dificuldade, mudamos muitas das vezes de lugares. E, a gente teve até

o processo no fórum, onde tivemos acompanhando, e acabamos

perdemos a causa, porque a gente sabe muito bem que os latifundiários

são bastante organizados. Perdemos a causa, e o companheiro... foi

injustamente, né, foi injustamente interpretado, perdeu a causa e hoje

ele é cego de um olho, por questão da luta, por questão da luta e pela

incompreensão da justiça, o companheiro hoje deixou de ser assentado,

mora na cidade. E nós passamos muita dificuldade, muita fome. E foi

isso que aconteceu.

Entrevistador E quantos anos foi nessa primeira etapa?

Vanderlei A gente teve esse período de intranqüilidade, de desespero, de passar

fome, frio, necessidade das coisas, durante uns dois anos. A gente

ficamos durante dois anos, depois que a gente entrou pra dentro da

área, e quando o INCRA teve o conflito né, entre os acampados e os

jagunços, o INCRA entrou com o seqüestro da área, onde o pessoal

conseguiu ficar permanente na área. Ali a gente começou já a ir

tombando alguns pedacinhos de terra, mas mesmo assim a gente tinha

as necessidade das coisas. Aí o INCRA começou a dar cestas básicas

pra nós, enviava cesta básica, aonde dava o fôlego. Então foi durante

um ano ainda, que a gente continuou naquela peleja, naquele

sofrimento, até a gente começar a ir pros lotes emergenciais que a

gente mesmo cortou, e até hoje a gente fica aguardando o processo de

desapropriação definitivo dessa área.

Entrevistador Por que vocês entraram nessa área? O que que levou vocês a entrar

nessa área, a ocupar essa área?

Vanderlei Desde a época da organização das famílias pra vir pra luta, a gente

tinha pesquisado, se informado de uma área que é do mesmo

fazendeiro, da Timboré, que é a Pendengo. Foi em 1989 ainda, a gente

ocupamos ela. E é um fazendeiro que todo mundo temia ele, por ser um

grande latifundiário na região. A gente ocupamos essa fazenda

Pendengo lá, é do município de Nova Independência... De lá, a gente foi

despejado também, depois de 30 dias, fizemos uma caminhada até a

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cidade de Nova Independência, de lá a gente fizemos uma assembléia

e tiramos como prioridade a fazenda Timboré, que é no município de

Andradina, por questões de justiça. Porque é um fazendeiro temido,

hoje já falecido. E as famílias concordaram com a idéia, porque era uma

questão de justiça. Porque ele era um fazendeiro muito ruim na região,

e por outro lado ele devia pra União, até hoje deve pra União, todas as

suas fazendas são "empenhoradas", então a gente não viu o porquê

desistir dessa fazenda. Então foi questão de justiça e questão de luta

mesmo dos próprios acampados.

Entrevistador Você lembra quantas famílias entraram nesta área? Quantos entraram e

quantos estão assentados hoje?

Vanderlei Na época foi o primeiro grupo que entrou. Foi o pessoal que veio de

Campinas, veio de Campinas, região de Campinas, Sumaré... Se

agrupou com algumas famílias da região que ocuparam, foram em torno

de 130, mais ou menos, famílias, que ocuparam a parte de baixo da

fazenda Timboré, que tem o nome de Liberdade. Liberdade, que a

gente demos Liberdade, porque o dia que o companheiro Santilli levou o

tiro ele falou “liberdade”, então ficou esse nome como Liberdade,

porque o pessoal se comoveu com a luta, e tem esse nome. E depois,

outro grupo se organizou através do Sindicato dos Trabalhadores

Rurais, em torno de 80 famílias, mais ou menos, ... um pouco mais, não

tenho o número correto. Ocuparam a parte de cima da fazenda.

Inclusive o grupo de baixo apoiou, foi lá ajudar os companheiros na

ocupação, e que se chamou Chico Mendes. O grupo Chico Mendes.

Então, a história do assentamento se divide em duas partes, como disse

a companheira Marta, a entrevista passada. São grupos bastante

distintos, mas porém no mesmo objetivo, da terra.

Entrevistador Nos primeiros anos o que vocês produziam aqui na área?

Vanderlei Então, tinha uma produção diferenciada. O pessoal, como tinha,

passava muita necessidade, da cesta básica, nessas questões, o povo

produzia e tinha criação, como porco, né, criação de porcos, tinha

criação de galinha. O pessoal então, a questão dos cereais, o pessoal

plantava muito arroz, na época. Na época plantava muito arroz, muito

feijão, muito milho, pra sustentação da própria família, nada se vendia,

era tudo pra o consumo da família. Abóbora. Devido as necessidades

de recurso financeiro, as pessoas plantavam poucas coisas, pequenos

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pedaços de terra devido às dificuldades. Então, um pouquinho de

semente que ela ganhava, ela plantava. E era tombado, era carpido na

enxada, tombado no animal. Então, o que se plantava, o que se tinha na

época era essas coisas, que era a coisa mais básica da família. Então,

às vezes surgia um trabalho extra, que era fora, o pessoal ia trabalhava

e comprava as outras coisas que era mais necessárias – como café,

açúcar - essas coisas de necessidade, sabão, essas coisas assim.

Entrevistador E hoje como é que tá a vida das famílias?

Vanderlei A atual situação hoje, das famílias, que são 176 famílias, que resistiram

a todo esse sofrimento, toda essa peleja... Eu digo que a atual situação

hoje das famílias são boas, não vou dizer que é ruim. Mas também não

é... boa, também. Vamos se dizer que não temos uma vida digna, mas

pelo menos a gente tem o que comer. A gente temos casa, todas as

famílias tem casa de alvenaria, são poucas famílias que ainda residem

em casa de madeira, não existe mais barraco de lona. Todo mundo tem

as vacas de leite, tem uma renda extra. O pessoal... a renda, que mas

tem, que se tira, hoje, de cada propriedade, é o leite, devido o dinheiro

que entra mensal. Então o pessoal construiu um salário mínimo em

volta da questão da área leiteira. Então, as famílias, hoje, têm uma vida

digna, pelo menos. Saiu daquele, daquela fase de problemas na

questão alimentar, e hoje tem uma vida melhor. Consegue ir pra cidade,

fazer suas compras, ter um dinheiro pra sair com a família às vezes,

muitas das famílias tem carro, tem um carrinho de carroça, de tração

animal. Então assim, a vida das famílias hoje, vamos se dizer que é

uma vida mais digna.

Entrevistador Qual a avaliação que você faz do trabalho do INCRA

Vanderlei Ó, a avaliação do INCRA, ela teve ausente por muitos anos. Inclusive, o

processo da fazenda até hoje não saiu por causa do déficit de

acompanhamento do INCRA. Por isso que o processo se encontra

dessa forma hoje. E ela ficou ausente, ela não participou da vida dos

assentados – se participou, ela participou à distância. E hoje, ela está

pretendendo assentamento por causa da liberação do recurso das

casas, que foi uma luta do Movimento Sem-Terra, uma luta dos

companheiros, na marcha que a gente fizemos, essa negociação em

Brasília. Então, hoje eles vêm por pra questão de fiscalização. Mas na

questão de orientação, na questão da produção, na melhoria da

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produção, na melhoria de vida dos assentados, ela sempre teve

ausente, na vida dos moradores. Então, eles estão aqui hoje somente

mesmo pra fiscalizar a questão das obras, a questão das casas. E tem

um outro aspecto, que hoje ela também está assumindo mais, na

gestão agora, essa gestão do INCRA, que foi o convênio que o

Movimento Sem-Terra fez, juntamente com o INCRA, que hoje temos

filhos de assentados juntamente com os técnicos, no convênio. Eles tão

acompanhando os assentamentos. Mas é muito pouco. Então a

avaliação que eu faço é que esteve muito ausente na presença das

famílias.

Entrevistador Você teve conhecimento das ações que tramitam sobre essa área?

Vanderlei Todos os processos de reintegração de posse a gente teve acesso

porque a gente tem uma equipe, uma coordenação, que é bastante

presente dentro do assentamento, que procura tá a par de todos os

processos que tão acontecendo, e tudo. A gente faz assembléia com as

famílias, passa o que tá se passando dentro do assentamento. Então a

gente fica sabendo através da coordenação e do Movimento Sem Terra,

que sempre tá aqui junto com a gente, orientando a gente.

Entrevistador Se você pudesse escrever uma carta pro juiz, ou falar com o juiz

pessoalmente... o que você diria pro juiz?

Vanderlei Eu diria pro juiz que... que ele levasse em conta todos os anos de

sofrimento que a gente sofreu, as famílias nossas, as crianças, idosos.

E pelos anos de sofrimento que a gente sofreu, pelos anos de fome que

a gente passou, pelas nossas necessidades... E também, tudo aquilo

que nós já construímos dentro do assentamento. De um simples

barraco de lona, hoje a gente moramos em casa de alvenaria. E pelo

que o INCRA já colocou dentro do assentamento, investiu dentro do

assentamento. São dezesseis anos de luta e de muito trabalho e de

muito sofrimento. E que hoje, na região de Andradina, o assentamento

Timboré, ele é fundamental, foi fundamental e é fundamental, até hoje,

no crescimento de Andradina. Porque todos recursos que entram dentro

do assentamento, toda produção que é do assentamento é investido na

cidade de Andradina. Então o juiz, eu peço pro juiz que ele leve em

consideração tudo isso que a gente temos aqui, e que a gente faz pelo

município de Andradina.

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Entrevistador Se você e a tua família fossem obrigados a sair daqui pra onde vocês

iriam?

Vanderlei Bom, eu não poderia responder pela maioria das famílias, mas eu

acredito que boa parte dos assentados hoje, principalmente daquelas

que vieram de longe, elas não teriam condições de voltar pra cidade. Se

fosse despejado, principalmente, eu iria pra baixo da ponte. Por quê?

Porque eu não tenho parentes que moram na cidade de Andradina, eles

moram tudo longe, São Paulo, Campinas. Acredito eu que boa parte

das famílias também não tenha condições, por isso as famílias iriam

morar na rua. E isso ficaria ruim para o próprio governo, para o próprio

juiz que tomaria essa decisão. Então, eu, nós, famílias, não teríamos

condições de voltar para cidade. Se a gente fosse despejado, com

certeza a gente iria pra rua. Não teria condições de tá morando na

cidade, ter um trabalho, pra sustentar uma família.

Entrevistador Você acha que o juiz tem todas as informações pra tomar uma decisão

sobre essa área?

Vanderlei Eu acho, não, eu tenho certeza que o juiz tem todas informações do

processo. Do processo e das famílias que aqui residem neste

assentamento. Eu acredito que ele deveria... o INCRA, juntamente com

o Movimento Sem-Terra, junto com o Poder Judiciário, analisar melhor a

política... a política do processo, em termos. Porque eu acredito que

seria um absurdo despejar as famílias que há 16 anos aqui moram.

Entrevistador Por que você acha que as famílias têm direito de ficar nessa área,

assim?

Vanderlei Eu acredito por questões... Questões, por exemplo assim: é questão de

justiça e é questão também de... que a gente tem que... o juiz, ele tem

que... como é uma pessoa, um ser humano que estudou e tem todo

esse gabarito dele hoje, ele sabe muito bem que existe uma lei que nos

dá esse direito, que é o Estatuto da Terra, tá escrito no Estatuto da

Terra. Então eu acredito que ele sabe muito bem dessa lei, e que essa

lei nos dá esse direito, né. Então, nós temos direito a essa terra, devido

a essa lei, né, e porque o INCRA também já investiu recursos aqui

dentro e as famílias também investiram aqui neste assentamento. Então

eu não vejo porque nós ser despejado de uma área que tá trazendo

benefícios pra sociedade.

Entrevistador Muito obrigado.

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Entrevista com Claudinei de Campos Gomes, 21 anos. Entrevistador Há quanto tempo você tá aqui na área da Timboré e se vc tem participa

da coordenação política do assentamento?

Claudinei Tem uns 18 anos, por aí. Não participo da coordenação. Sou apenas

um trabalhador.

Entrevistador Como você veio aqui pra área?

Claudinei Vim com a família inteira...

Entrevistador E quantos irmãos você tem?

Claudinei Seis.

Entrevistador E todos eles vieram pra área?

Claudinei Não, esse aqui nasceu aqui, o Cosme. Nasceu aqui.

Entrevistador Quais são as tuas lembranças dos primeiros momentos aqui na área?

Claudinei No “Buracão”, lá na beira da pista.

Entrevistador E como é que era a vida no começo?

Claudinei Ah, rapaz, não era bom não, uai! Sofrimento né? Só que a esperança

nunca acaba, a gente tem uma esperancinha a mais, aí, de conseguir

uma terra. Pra gente plantar, colher... Ter uma vida mais melhor.

Entrevistador E hoje, como é que tá o assentamento?

Claudinei Ah, produz tudo, né, um pouquinho de cada coisa. Mexemos mais com

leite, com gado... mas sempre tem uma coisinha que a gente planta,

uma mandioca, um milho, alguma coisinha pra poder... pro gasto.

Entrevistador Se você não estivesse aqui no assentamento, onde você estaria?

Claudinei Rapaz, eu não tenho a mínima idéia, hein? Que nós não tinha nada

quando nós começamo, nós... Meu pai era empregado, nós não tinha

casa, não tinha nada em Campinas. Então aí surgiu a oportunidade de

nós vir, nós viemo. Com a cara e a coragem. (risos) Meu pai, minha

mãe e mais um monte de moleque no pé... Cinco criança, eu com

quatro anos de idade... E viemo aí, Batalhamo, batalhamo e

conseguimo... Agora tomara que continue assim.

Entrevistador Qual a tua avaliação do trabalho do INCRA?

Claudinei Rapaz, é meio que... é médio. Porque algumas coisa a gente precisa,

algumas coisa eles ajuda, algumas coisa eles também não ajuda.

Então, a avaliação, assim, que eu acho, é média... Eu não entendo

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muito do INCRA também. Não participo muito das reuniões, quem vai

mais é meu pai. Já fui em algumas. Pra mim é normal...

Entrevistador Você tava sabendo de uma ação de reintegração de posse contra as

famílias?

Claudinei As anteriores eu tinha conhecimento. Dessa eu não tenho, eu tô

sabendo por você agora. Mas é uma coisa que... já passou muito

tempo. Eu acho que... Mesmo que ele entre com reintegração de posse,

acho que não tem como eles tirar nós daqui, porque é muita família, tem

energia, casa montada. E acho que nem que ele queira, entrar, nem

que o juiz fala que vai ganhar, que ganhou, não tem como tirar nó daqui,

não. Com certeza não tira...

Entrevistador Se vocês tivessem que sair daqui, qual seria o destino de vocês?

Claudinei (risos) Rapaz... Bom... Aí eu não tenho a mínima idéia. Eu acho que nós

sair daqui, com certeza, nós vamo entrar tudo dentro daquela Brasília

lá, e ficar tudo dentro do palácio deles lá. Porque não tem pra onde ir,

uai! Se tirar nós daqui, nós não tem como comer, não tem onde morar...

Enfia lá! Tudo as família que mora aqui dentro dos Sem-Terra aqui, nós

vai lá entra dentro da tropa lá e fica comendo às custas deles lá. Pra

onde nós vai? Eles não vai deixar nós na beira da rua.

Entrevistador Vocês vivem do trabalho na roça?

Claudinei É. Só do trabalho da roça.

Entrevistador Se você pudesse falar com o juiz, ou mandar uma carta pro juiz que vai

decidir essa ação de reintegração de posse, o que você diria pro juiz?

Claudinei O que que ele faria com esse monte de família aqui. (risos) É a única

coisa que eu diria, eu diria assim, pra ele, pessoalmente, ou então por

uma carta, o quê que ele ia fazer com esse monte gente aqui, porque...

Nós já tá aqui já há 18 anos aí... nós lutemo por isso aqui... e se nós

lutemo por isso aqui, nós temo direito. Então eu acho que... é isso que

eu ia perguntar pra ele, o que ele ia fazer com esse monte de gente

aqui.

Entrevistador Você acha que o juiz tem todas as informações pra decidir uma causa

como essa?

Claudinei Eu acho que não.

Entrevistador Você acha que a vinda dele aqui pra conhecer a a realidade seria bom

ou não?

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Claudinei Seria bom, pra ele ver como é que mudou a situação das famílias,

pessoalmente, quando entramo aqui ninguém tinha nada, entramo com

uma mão na frente outra atrás... Como que mudou, o desenvolvimento

das famílias... Sei lá. Eu acharia que seria bom pra ele ver como a

gente batalhemo, lutemo por isso aqui e conseguimo.

Entrevistador Qual a tua visão do Poder Judiciário?

Claudinei Eu acho que ele, sei lá... É meio complicado pra mim dizer isso, porque

eu não entendo muito dessa parte... Mas eu não confio não, né?

Porque, né, confiar numa pessoa que a gente não conhece, que... o

dinheiro hoje em dia compra tudo. Sei lá. Eu não confio não.

Entrevistador Você pretende ficar morando nesta área?

Claudinei Pretendo morar na área. Com certeza. Minha mulher já tá aqui, já o meu

filho tá vindo aí... Meu irmão tem sítio, meu outro irmão também tem

sítio, entendeu? Eu sou o único filho que pode ajudar meu pai, meu pai

tá ruim de saúde, hoje em dia. O único filho que pode ajudar sou eu.

Luteie por isso aqui desde os quatro anos de idade, vou continuar

lutando, e continuar sempre com o pensamento em crescer aqui dentro.

Entrevistador Por que você acha que vocês tem direito de ficar aqui nas terras?

Claudinei Bom, a razão principal é que quando nós entramo aqui, se o INCRA pôs

nós aqui dentro é porque com certeza a fazenda era improdutiva. Não

tinha... E tudo que nós lutemo aqui dentro, pelo desenvolvimento que

teve aqui dentro, acho que é isso aí... Se a gente conseguiu entrar aqui

dentro, acho que algum motivo teve. Agora, depois que ele perdeu, aí a

gente não... tem culpa nenhuma. Só sei que a gente tá produzindo, e a

gente tem direito nisso aqui, tanto quanto ele. Pelo tanto de tempo que

teve aqui dentro, pelo desenvolvimento que teve. A gente já tem casa,

gado, energia, tem plantação, gastou dinheiro aqui dentro, já, também,

muito... Então eu acho que a gente tem muito dinheiro envolvido aqui

dentro, que a gente gastou, tirou do bolso da gente pra investir... Então

é isso daí...

Entrevistador Claudinei muito obrigado.

Entrevista com José Aguiar Gonçalves, 47 anos.

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Entrevistador Gostaria queria que o senhor falasse um pouco como é que foi a sua

chegada aqui e se vc tem alguma função na coordenação do

acampamento.

José Faço parte da coordenação do acampamento. Vim pra cá em 1989.

Entrevistador Como é que foi esse primeiro período?

José Primeiramente a gente, a primeira entrada da gente foi na fazenda

Pendengo, em 27 de janeiro, por onde ficamos lá, cerca de 15 dias.

Depois daí aventuramos a entrada aqui, o que não deu certo, na época.

Ficamos seis meses acampados na beira da estrada, até que no dia 19

de agosto de 89 a gente entrou na área, na qual surgiu o conflito.

Inclusive até com a perca de um olho de um dos companheiros.

Entrevistador Como é que foi a vida no início aqui no acampamento?

José É, falando assim, é muita dificuldade, e assim... primeiro, assim, pelo

preconceito da sociedade aqui na região, e isso daí contribuía muito pra

que, assim, as autoridades policial e outros fazendeiros pressionassem

muito a gente. Mas, por outro lado, a gente tinha outra vantagem que,

assim, a natureza contribuía bem com chuvas e sendo assim, produzia

bastante. Embora a gente tinha umas áreas pequenas pra plantios, que

nós inventamos por nossa conta mesmo, meio que "na marra",

arrumamos áreas pra plantar, mas produzia bem, na época, que eu me

lembro.

Entrevistador E hoje, como é que tá a vida de vocês aqui hoje?

José No geral assim, do assentamento, praticamente todos tem uma casa,

pode-se considerar assim, embora seja inacabada. São casas que,

assim, algumas melhor, outras mais inferior... Mas, assim, praticamente

todos tem uma casa.

Entrevistador E o que vocês produzem hoje? Do quê vocês vivem?

José O básico no nosso assentamento aqui, hoje, é a pecuária leiteira, né,

em decorrência assim das mudanças de clima, assim, que as chuvas,

de uns anos pra cá, passou a ficar assim mal distribuídas aqui na

região, daí tornou-se necessário a gente mudar também a atividade de

produção. E passando pra pecuária leiteira, que ficou fácil essa forma.

Entrevistador Qual atua avaliação do trabalho do INCRA?

José Infelizmente, o INCRA, ele falhou várias vezes, né, porque assim...

Como são várias situação, é complicada essa área aqui, então teve

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várias falha do INCRA no passado. E... o que resultou assim, de dar

brechas pra juntar muito processo também. Então, isso é no passado.

Agora, atualmente, ou de uns anos, uns dois, três anos pra cá, o INCRA

vem trabalhando de uma forma até razoável, prometendo solucionar o

problema.

Entrevistador Você tem conhecimento de uma ação de reintegração de posse que o

proprietário está movendo contra as famílias que estão no

assentamento?

José Sim, isso se iniciou em 15 de março de 2004, foi quando o fazendeiro

entrou com essa reintegração, e eu tenho conhecimento disso sim. E a

gente tá... até hoje tá lutando por isso daí.

Entrevistador O que você acha do fato do proprietário tá querendo retomar a posse

dessas terras aqui?

José É, numa disputa de “cada um puxa pro seu lado”, eu acho que ele tá

certo, ele na condição de fazendeiro, tá certo. E nós na condição de

precisar de um pedaço de terra, tamo certo de lutar por ela.

Entrevistador Você acha que o juiz que vai decidir essa causa tem todas as

informações necessárias pra decidir corretamente essa situação?

José Ó, o que eu diria pro juiz é pra ele observar o seguinte: o impacto, ou a

causa social. Que passa a ser um prejuízo muito grande a desocupação

do pessoal aqui, nesta área, levando em consideração que antes aqui

vivia uma família só, e hoje são 176 famílias que vivem na área. Então,

pra onde vai esse povo? Novamente, conflitos novamente. Então o que

eu diria para o juiz é pra ele pensar nessa causa social aí.

Entrevistador Se você tivesse que sair daqui hoje, pra onde você acha que você iria?

José O meu destino seria juntar pessoas com o mesmo ponto de vista meu e

partir pra... partir pra luta, é... no sentido de pegar aqui de volta. Pegar

de volta.

Entrevistador Você acha que as famílias iriam aceitar sair daqui pacificamente?

José Com certeza que não. Seria um grande conflito. Porque, assim, eu

entendo que o pessoal não aceita mais sair daqui assim... numa boa,

não. Com certeza é conflito.

Entrevistador Você acha que o juiz deveria vir conhecer a área e as famílias?

José É, em parte sim. Em partes, eu entendo que isso contribui. Porque até

hoje juiz nenhum aqui... Eu nunca vi a presença de um juiz, in loco,

nunca vi.

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Entrevistador Uma última pergunta: você confia no Poder Judiciário?

José Ah, baseado na conjuntura atual do país eu não confio não... (risos)

Entrevistador Por que você não confia?

José É porque as leis têm muita brecha. Por isso.

Entrevistador Muito obrigado José.

Entrevista com Julinda Oliveira Lopes, 50 anos. Entrevistador Dona Julinda eu queria que a senhora me dissesse se vc faz parte da

coordenação do assentamento e como é que foram os primeiros anos

aqui?

Julinda Eu não faço parte da coordenação. Ah, quando eu vim pra cá, foi em

89. A gente veio porque, você vê, a gente morava na região, na cidade.

E a região, tinha muita terra. E a gente era bóia-fria, sabe? Então, eu

achei que se... tinha o direito de ter um pedaço de terra pra mim poder

trabalhar. E a gente morando numa cidade muito tempo, sem estudo,

você não ia conseguir nada. Então um pedaço de chão, acho que seria

melhor pra gente acabar o resto de vida da gente. Então foi onde a

gente conseguiu, porque aqui eu trabalhava a muito tempo de bóia-fria,

então a gente falou assim “essa região muito explorada, muito serviço,

dá muito serviço pra gente que mora aqui na região”. Aí nós resolvemo

vir pra terra, sabe? Da terra, eu só saio quando morrer. Porque acho

que é uma coisa que Deus deixou pra todo mundo, e não pra um só,

né? Então nós resolvemo vir.

Entrevistador A senhora sempre trabalhou na roça?

Julinda Sempre trabalhei, de bóia-fria. Morava na cidade, mas trabalhava na

região de bóia-fria. Achei que o meu lugar seria na roça, né, então falei

“eu vou ficar pra um pedaço de terra”.

Entrevistador Como é que foi os primeiros anos aqui no acampamento?

Julinda Foi difícil. Nos primeiros anos, foi difícil, porque esse acampamento foi

quase um dos primeiro. O pessoal tinha muita assim... Rejeitava a

gente, não aceitava, achava que sem-terra era tudo baderneiro,

bagunceiro, só... porque veio de São Paulo, esse pessoal veio de

Campinas, São Paulo, achou “o pessoal da periferia veio tudo fazer...”.

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Porque quando nós ocupamo aqui foi difícil, nós ocupamo na marra,

com tiro. Então foi bem na marra, então eles achou que nós ia fazer

bagunça a vida toda. Mas não, a gente queria mesmo cada um

pedacinho de terra. Pode ver que cada um que pegou seu pedacinho de

terra tá tocando conforme pode, tá aí pra todo mundo ver que aqui era

tudo.

Entrevistador Qual é a principal produção aqui?

Julinda Hoje, mais é o leite. Que roça nós começamo mais... esse negócio do

governo aí, quando a gente vai comprar coisa tá lá em cima, quando

você vai vender tá lá embaixo... Nós desistimos de mexer com roça,

porque o leite é uma coisa que, pra nós, assim, se dá mais. Porque...

devido à seca também, você planta, faz financiamento, depois você não

consegue pagar, vai só devendo, o banco vai só... Então nós falamo

“vamo no leite, porque o leite é melhor, uma alternativa melhor”, né.

Entrevistador Qual é a avaliação da senhora sobre o INCRA?

Julinda Bom, meio na marra eles vêm ajudando. Meio na marra, com a pressão

nossa, ele tá na força. Mas com pressão. Porque por eles mesmo,

disponível, nós... nem aqui tava mais. Porque a gente pra conseguir

uma coisa tem que fazer luta, movimento, ajuda a gente pra ir lá em

cima cutucar eles, porque senão não saía nada.

Entrevistador Qual a principal reivindicação para o INCRA?

Julinda Ah, eu acho que eles devia tá mais aqui junto com a gente, pra poder

ver o que a gente tá precisando. Porque eles fica de lá, a gente fica

aqui, aí eles não sabe o quê a gente tá precisando. Contando aqui junto

com a gente, alguém do INCRA junto com a gente, pra modo de ver o

quê a gente tá precisando, pra poder tá ajudando a gente, porque... só

no papel não resolve, tem que tá aqui vendo o quê a gente tá

precisando, vendo como é que tá o problema da gente plantar, não

colher. Mudar alguma coisa pra ver se a gente produz mais e melhor.

Entrevistador A senhora sabe que tem uma ação de reintegração de posse contra as

famílias aqui da área?

Julinda Vai ser difícil do pessoal sair, hein? Porque muita gente que veio pra cá,

que nem no meu caso e outros aí, não tem onde ficar. Não tem aonde

sobreviver. Que nem mesma, eu fui bóia-fria, eu vim pra terra, eu quero

morrer na terra, daqui eu só saio morto! Isso daí nós falamo até pro

ministro, dá pra falar pra qualquer um, quem quiser ouvir, a gente tem a

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coragem de falar... Porque dessa terra, tem que sobreviver da terra

porque... já era bóia-fria, não tem estudo, não tem serviço, você vai

viver aonde?

Entrevistador Se a senhora pudesse falar com o juiz pessoalmente, ou mandar uma

carta pra ele, o quê que a senhora diria pro juiz?

Julinda Eu falava pra ele, porque o seguinte: a terra, a gente sustenta a gente

da terra. Daqui a gente come, a gente bebe. Tanto eles como nós. Se

nós sair da terra, quem é que vai produzir isso daqui? Daqui não vai sair

mais o sustento que sai daqui. Aí vai ficar o pessoal tudo na cidade só

fazendo baderna, só roubando, matando... indo pras favelas, que nem a

gente vê aí na televisão, dia-a-dia, as favela ocupada por bandido, por

quê? Porque não tem serviço, vai tudo pra lá, fica lá um guerreando

com o outro. Agora tendo terra não, cada um vai cuidar do que é seu!

Se todo mundo na favela tivesse um pedacinho de terra, não acontecia

aquelas morte que nem acontece lá. Cada um ia cuidar da sua terra, ia

sobreviver daquilo que ele tá plantando, sobrevivendo em cima dela.

Entrevistador A senhora tem filhos?

Julinda Tenho. Um só.

Entrevistador Mora com a senhora?

Julinda Mora, tem 14 anos, mora comigo.

Entrevistador A senhora acha que é bom o juiz vir aqui conversar com as famílias?

Julinda Eu acharia bom, porque vai ver a vida de cada um. Porque é que eu tô

aqui, qual é o que já passei, explicar o que já passei... Porque você vê,

passar seis anos debaixo de uma barraca de lona, e chegar onde eu

cheguei... Pra mim, sair daqui é muito difícil, tá entendendo? Porque eu

fiquei seis anos debaixo da barraca de lona, cheguei onde eu cheguei,

tenho tudo aqui. Agora eu vou ter que sair daqui pra ir pra onde? Pra ir

pra onde que eu vou ter que ir, debaixo da ponte? Então é difícil...

Entrevistador A senhora confia no Poder Judiciário?

Julinda Ah, eu acho que eles devia analisar muito mais a situação das pessoa

que tá no campo. Porque é do campo que vai sustento pra eles

também, porque se não fosse o pessoal da roça, quem é que ia plantar

milho, arroz, feijão pra eles poderem comer? O pessoal, juiz não ia fazer

isso. Os fazendeiro não ia plantar pra eles, o fazendeiro só ia criar boi.

E da onde tá saindo o sustento deles? É daqui da roça também.

Entrevistador A senhora confia no Poder Judiciário?

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Julinda Ah, não confio muito não...

Entrevistador Por quê?

Julinda Porque eu acho que a gente que mora no campo, sei lá, a gente...

(risos) não tem muita confiança no juiz porque uma hora ele tá do lado

nosso, outra hora ele tá do lado dos fazendeiro! Então a gente fica meio

indeciso, porque né? Que pode ter essa "diversão". Sabendo que ele

sabe a situação nossa, a situação do fazendeiro... E a gente tem que

produzir, a gente tem que trabalhar. Só criando boi não vai resolver o

problema do país... Se todo mundo que cria boi, você vê essa revolta do

boi aí, por exemplo, todo mundo cria boi, se ninguém plantasse roça ia

todo mundo morrer de fome, porque o boi, a carne do boi tá lá embaixo,

esse negócio, essa doença que deu aí, ó... Se fosse só boi tava todo

mundo morrendo de fome. Até eles, porque não ia ter nada. Então por

causa dos sem-terra, do pessoal que tá plantando tem alguma coisa

mais barata que a gente pode amenizar a fome no Brasil.

Entrevistador Se as famílias fossem obrigadas a sair daqui, para onde iriam?

Julinda Pra beira da estrada. Fazer um barraco e morar lá. Porque eu não tenho

condições de pagar aluguel, não tenho casa na cidade. Ia fazer mais

barraco nessas pista todinha e ficar acampada, porque, fazer o quê?

Quem mora numa terra, sair da terra, não tem como sair pra cidade.

Porque pra cidade você não tem condições de morar, porque não tem

emprego. Você não tem, como fala... estudo. A idade não permite mais.

Com a idade uma aposentadoria, e assim mesmo meio na marra,

porque nem conseguir aposentar, hoje, você não consegue, se tiver

algum problema de saúde. Tem que ter, né, tem que tá ali morrendo

mesmo, pra poder aposentar, senão não consegue.

Entrevistador Dona Julinda, muito obrigado pela entrevista.

Entrevista Adelvita Braga da Silva, 38 anos. Entrevistador Dona Adelvita, a senhora é da coordenação do acampamento, ou

exerce alguma função nos trabalhos coletivos, e como e quando a

senhora veio pra cá?

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Adelvita Sou agente comunitária da saúde. Vim pra cá em abril de 1991. E foi

uma luta difícil, pra gente vir, mesmo porque já tinha um pessoal que já

tava há dois anos e pouco. Dois anos e pouco a outra turma tava aqui.

Foi uma luta difícil e tudo, mas compensativa. Porque a dificuldade, pelo

menos eu vim da cidade, e não tinha espaço pra gente lá na cidade.

Porque o trabalho da gente sempre foi trabalho rural mesmo. Então, o

trabalhador rural, na cidade, ele não tem espaço. Então esse foi o

motivo da gente ter vindo pra cá. E de lá até aqui, eu não tinha

conhecimento dessa ação que o fazendeiro está movendo. Mesmo

porque ele, agora são herdeiros, já não é mais o fazendeiro. Mas eu

acho assim, um retrocesso total de todo esse trabalho que foi feito, se

vier a acontecer alguma coisa com a gente. É um retrocesso total.

Porque de 91 até agora, os avanços que teve aqui dentro, em questão

social, financeira, tudo, tudo, geral. Foi um avanço grande.

Entrevistador Como é que é a vida hoje aqui?

Adelvita Hoje eu trabalho como agente comunitária de saúde.

Entrevistador A senhora faz o atendimento na questão da saúde pras pessoas aqui do

assentamento?

Adelvita Isso. A gente procura dar o atendimento na prevenção. Que é o

fundamental, primeiro trabalhar com a prevenção, e também na parte já

curativa. De pessoas que já tem um problema, então a gente trabalha

nesse sentido.

Entrevistador Tem algum convênio que mantém o posto de saúde aqui?

Adelvita É pelo município, e agora pelo Programa Saúde da Família, que é o

Programa "Qualis Rural".

Entrevistador A senhora sabe me dizer como é que as outras pessoas vivem aqui no

assentamento?

Adelvita Todos têm casa. No meu setor e que eu tenho conhecimento, acho que

só tem uma família que mora assim... num barraco de material,

aproveitado, que é agregado, não é assentado. Mas os assentados,

todos eles têm casa.

Entrevistador Qual é a avaliação que a senhora faz do trabalho do INCRA?

Adelvita Pra mim, no meu ponto de vista, o trabalho do Incra foi satisfatório sim.

Tem algumas coisas, ainda, pra ser melhorado. Mas o quê tem sido

feito até agora, tem sido satisfatório.

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Entrevistador O que as senhora acha do fato do fazendeiro estar pedindo a retirada

das famílias aqui?

Adelvita Eu não tenho muito conhecimento da causa, mas eu acho que não. No

meu ponto de vista, eu acho que não, que ele não pode conseguir

retirar as famílias.

Entrevistador Se a senhora pudesse falar com o juiz, o que a senhora diria pra ele?

Adelvita Acho meio complicado de responder esta pergunta, hein...

Entrevistador Mas pode ficar à vontade...

Adelvita No caso aí, ele, o juiz, ele teria que analisar bem a questão de quando

foi, desde lá do início – não quando o pessoal ocupou a fazenda, lá do

início quando a fazenda foi considerada como improdutiva – e fazer

essa avaliação de lá até, até agora. Pra ver a evolução que teve, como

que foi o andamento. Porque, pra ele tomar uma decisão nesse caso,

ele tem que avaliar lá no começo. Porque se ela fosse realmente

produtiva, eu acho que ninguém teria ocupado.

Entrevistador Pra onde a senhora acha que as famílias que moram aqui hoje iriam, se

o juiz mandasse retirar essas pessoas aqui?

Adelvita Eu acho que aí, ele, o próprio juiz, ele teria que ter um local pra levar

esse pessoal. O próprio juiz. Teria que ter, a justiça teria que ter um

local pra tá levando esse pessoal, porque o pessoal que sair daqui, eles

não têm... pelo menos eu não tenho pra onde, assim, voltar. E acho que

todas as famílias aqui é a mesma coisa.

Entrevistador Adelvita, muito obrigado pela entrevista.

Entrevista com Adevino Pires de Oliveira, 49 anos. Entrevistador Adevino vc exerce alguma função pública dentro do assentamento?

como é que foi os primeiros anos aqui?

Adevino Não tenho nenhuma função pública não. Sou apenas um trabalhador.

Vim pra cá em 1989. Foi muito difícil. Antes da gente vir pra cá, a gente

morava na periferia lá de Sumaré. Aí, viemos pra cá no dia 27 de janeiro

de 89. Chegamos aqui no dia 28 de janeiro de 89, quatro e meia da

manhã. Aí, nos entramos em uma área, antes dessa aqui – hoje nós

estamos aqui no Timboré, mas a primeira área, que é a do mesmo dono

daqui, é a fazenda Pendengo. Lá ficamos, 20 dias na área, ocupamos

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lá, no dia... já no dia 28, amanhecemos lá. 28 de janeiro de 89. Aí,

ficamos 20 dias, na área. Aí depois, aí o fazendeiro entrou com o pedido

de reintegração de posse. Aí houve o despejo. Fomos despejados,

viemos pra praça Nova Independência, ficamos durante 30 dias. Na

praça Nova Independência, nós dormíamos na igreja, no salão da igreja

católica. E a mulheres dormiam num salão comunitário, ficava retirado,

mais ou menos, a quase... uns 300 metros. Aí ficamos ali, nós sendo

vigiados por polícia, passava sempre, assim, por longe... ver se não via

alguma movimentação estranha. Achando que a gente ia ocupar

imediatamente outra área, e sentar em cima - pra sentar em cima, no

campo. Pra evitar, então nós tava sendo vigiado. Aí, quando, depois dos

30 dias, que nós tivemos lá na Independência, aí, já entramos com

posse da fazenda, no dia 20, no dia 15 de março de 89. Tentamos. Mas

não houve possibilidade, porque foi de manhã. Nós pousamos dia 14

pro dia 15 em Andradina, aí no dia 15 tentamos ocupar a fazenda,

entendeu? Quando chegamos ali na... aonde era pra ser, que tem

aquela placa do INCRA, aí vinha uns jagunços, não deixava... tentando

impedir, pra não deixar o pessoal descer dentro da pista! Aonde que

uma pessoa tem autonomia de impedir, assim, a pessoa de circular na

pista, né? Eles não autorizavam, né? Aí nós furamos o bloqueio, lá, e

viemos descendo, né. Imediatamente já veio polícia de Andradina,

impedindo que nós entrasse aqui. No espaço – não, foi oito da manhã,

quando nós viemos ali, né – no espaço de, mais ou menos, 40 minutos,

tinha eu acho que uma média de umas 60 polícia. De todo canto, de

Castilho, veio um pouco de cada cidade. Aí, acompanharam nós de a

pé – dali da entrada dava 8 quilômetros, até onde nós ficamos

acampado no final da fazenda, na beira da estrada, a retirar, mais ou

menos, uns 400 metros da margem do rio Tietê, e ficamos ali. Sofremos

ali as pior humilhação. Os jagunço do fazendeiro, ficava ali durante o dia

e durante a noite. Durante a noite, eles pegavam uma camionete, uma

D10, cabine dupla, com alto-falante, falava palavrão de baixo calão, ali

com o pessoal... Atirava foguetes, provocando. A polícia vendo. E ficava

ali, durante o dia de plantão, a policia, dois polícia, né? E via tudo

aquilo. E conformava, a situação, já que... pra não levar ninguém preso,

os jagunços, que eles provocava o pessoal. Quando era de

manhãzinha, bate seis e meia, sete da manhã, eles pegava aquelas

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D10, cabine dupla, colocava os armamento pesado, enrolava numa lona

preta. Ponhava as arma dentro, enrolava tipo um cesto. Ponhava na

caminhonete, levava e deixava onde era a sede, na casa do capataz.

Que ia tá no lugar. Administrador e capataz. Ficava lá. No outro dia de

manhã, eles retiravam do acampamento que fizeram, que era de frente

– o acampamento de um lado da pista, e eles de frente, lá, no barraco

deles. Durante a tarde lá, quando ia chegando a tarde, passava o dia,

na base de seis e meia, sete horas... da tarde, eles vinha de novo, com

aqueles armamentos. Vinham e ficavam ali, só pra provocar. Foi cinco

meses e quatro dias. Chegamos lá naquele local, no dia 15 de março, e

saímos no dia... e tentamos ocupar aqui, aí... nós não tentamos, aí

ocupamos de verdade. Aqui, a fazenda. No dia 19 de agosto. Isso, cinco

meses e quatro dias, depois.

Entrevistador Porque vocês ocuparam essa propriedade?

Adevino É o seguinte, é pra nós poder retirar o sustendo dela. E ela tinha... tinha

entrado, assim, em decreto... Tinha sido decretado pelo Presidente da

República, José Sarney, de 86. Como... foi desapropriada por ele, em

86, para fins de interesse sociais. O fim de Interesse Social, significa

que nós vamos ser beneficiados, no caso, vamos ter uma lei, na

Constituição, dizendo que toda área improdutiva, do latifúndio, por

exploração, ela tem que ser desapropriada, e repassada pro povo. Aí,

isso foi o motivo que nós ocupamos. Pra tirar o sustento e por ter sido,

assim decretado, assim, pra Reforma Agrária pelo Sarney.

Entrevistador Como é que foi os primeiros anos, aqui na área?

Adevino Era barraco. Barraco de lona, revestido de capim, por cima, pra

amenizar o calor. Até, inclusive, o filho caçula que nós tem, aqui,

nasceu dentro de um barraco de lona, há mais ou menos 150 metros da

margem do rio. Nós já tava aqui dentro da fazenda. No dia 16 de abril

de 1990, que ele nasceu. Então, aí, ocupamos, aqui... no dia 19 de

agosto de 89, então o pessoal morava assim, aglomerado. Aqueles

aglomerado de barraco, um próximo do outro, no máximo dois, ou três

metros. Aí, pra um garantir a segurança do outro. Ficava mais fácil,

você ia ver se matar, por parte do fazendeiro. Então, é mais fácil de a

gente se defender, também, e se comunicar com os companheiros. Aí,

nós trabalhemos, depois, com um sistema coletivo. Era 101 família, aí

foi subdividido esse grupo. Aí ficou 11, foi subdividido em 11 grupinho.

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Tinha o grupo 1 até o 11. E tinha grupo com 13 famílias, tinha com 14,

tinha com 10. Então, aí deu 11. 11 grupinhos. Durante dois anos, nós

plantamos coletivo, então, todo mundo trabalhava junto, plantava.

Quando colhia, então dividia o que produziu: o arroz, o feijão, o milho. E

dividia a importância cabível a cada um. No primeiro ano. Aí, no

segundo ano foi procedido da mesma forma. Dois anos. E tinha um

advogado, na época, o nome dele era Dino. O Dino. Até foi, acho, pelo

pedido dele, foi que o juiz, aí, seqüestrou a área, uma época. Houve

conflito quando nós entramos aqui - um companheiro perdeu a vista, e

como houve esse conflito, o juiz seqüestrou a área. Só que esse

seqüestro, ele podia durar 24 horas, uma semana, um mês, ou um

ano... ou até dez anos. Ficamos 6 anos. Quando foi no dia 22 – 22 ou

23 de março – acho que hoje tá fazendo um ano... hoje, ontem, 23. Aí,

foi dada a emissão de posse. Nós ficamos 6 anos, na condição, assim,

de acampado. Só que no terceiro ano – ficamos trabalhando 2 anos,

né... Era, a média, um alqueire e meio pra cada família, que não dá três

hectares... dá, não dava, é... um alqueire e meio são 30 mil metros... um

alqueire, 24... mais de três hectares por família, né? E aí, o INCRA, na

época, disse assim: “ó, vocês têm que ficar limitado, entendeu?”. Essa

área que nós tava ocupando dava mais ou menos 140, 150 alqueires.

Aí, o INCRA pegou, e chegou a apresentar a proposta de cercar.

Cercar, e nós ficar limitado nessa área aqui dentro. Aí, tinha orientação

das pessoas – pessoa assim, intelectual, que nós não é – nós não tinha

a experiência que nós tem hoje. Eles falou “bom, quando o juiz

seqüestra a área, ele seqüestra a área total, e não parcial. Não um

parte dela, né?”. Aí no terceiro ano, aí seguimos por nossa conta, na

área. Medimos igual oito alqueires, cada um, assim, botou na corda.

Entrevistador E hoje, como é que é a produção~?

Adevino É o seguinte, com a família... hoje, aqui, pode dizer, 90% do pessoal

sobrevive do leite. Antes do leite o pessoal plantou, tentou de tudo

quanto foi forma: algodão, milho, feijão... só arroz que não, que não é

muito próprio para arroz, em lugar baixo, é proibido plantar, que o

IBAMA não deixa. Então, mais essas 3 culturas. Aí, o Presidente que

entrou, na época, e lascou com a agricultura. Aí foi a agricultura é uma

agricultura falida. Uma agricultura que você planta, no caso, o que você

produz você não consegue pagar. Na verdade, você não consegue,

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mesmo você trabalhando, envolvendo o seu tempo, ali, chega no final

do ano, é a mesma coisa que trocar seis por meia dúzia. Você paga,

consegue pagar, mas fica sem nada, fica areado, limpo. Aí foi a razão,

ou o motivo, que levou o pessoal de trocar de atividade, de algodão e

milho, aí passou pro leite. Hoje 90% sobrevive do leite.

Entrevistador Qual a avaliação que o senhor faz do trabalho do INCRA?

Adevino Na época, ou hoje?

Entrevistador Em todo o período, na época e hoje?

Adevino Em todo período. Tudo bem. Então, antes o INCRA deixou a desejar.

Era antes. Hoje, o acompanhamento do INCRA tá sendo melhor. A

gente consegue conhecer quase todos eles que trabalham no INCRA –

isso é o que a gente tá vendo. Porque a gente pode assim, o que a

gente cobra, vê que precisa, a gente cobra deles, eles vai e faz o que

for. Onde que não pode, também, eles vai e fala que não tem jeito. Mas

era a coisa mais difícil, no início a gente ver um funcionário do INCRA.

Nas a primeira vez que eles andaram aqui, eles andaram aqui na

época, olhando a área aqui, mas no sentido de proteger o lado do

fazendeiro.

Entrevistador O senhor sabe que tem uma ação de reintegração contra as famílias?

Adevino É o seguinte: o fazendeiro... a burguesia, ele ou outro rico, que seja, ele

não quer perder o que tem. Se ele acha que ele tem direito, ele bate em

cima. Mas... é... nós não sai daqui. Eu mesmo não saio não. Ele bate

em cima, pra querer aquilo. Porque ele deve, diz que deve muito pro

Banco Central. Se for fazer um balanço, o que ele deve pro Banco

Central, e o valor da área, então o valor não dá nem a metade do que

ele deve. Então, ele quer bater em cima de uma coisa ali que ele acha

que tem direito de levar. Então, se haver a reintegração de posse, ou se

a terra voltar na mão dele ou da União, eu não saio daqui.

Entrevistador Haveria alguma resistência?

Adevino O pessoal, sem dúvida, vai resistir ao máximo. Vai resistir porque, se

sair daqui, não tem pra onde ir. Se sair daqui, tem incidir de outra área,

vai importunar, incomodar lá... lá, quem tiver o rebanho em volta dessa

área, onde for. Se fosse acontecer isso, né? Então, nós não temos,

assim, lugar... É aqui mesmo, né, por isso que nós não abre mão. De

uma coisa... que a gente já tá aqui já há 17 anos. Um tempo, de 17

anos.

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Entrevistador Se o senhor pudesse falar pro juiz, ou escrever uma carta, que o senhor

diria pro juiz?

Adevino Olha, fica difícil. No caso, se for escrever, assim, pro juiz, o juiz, eu – ou

outra pessoa qualquer, se for fazer isso – ele vai achar que a pessoa, a

gente vai escrever pra ele, e pedindo pra ele pra ele ter clemência da

gente. Não, do povo, nós todo. Pra ele ter clemência, e falar: “não, eles

tão querendo ganhar o juiz no caso, ficar fazendo de vitima. E pedindo

clemência no sentido de me sensibilizar, no caso”. Aí, acho que é pior.

É pior, escrever uma carta pro juiz. Eu acho que é pior. Porque esse

povo da justiça, o juiz, ele não tem dó, assim, de ninguém. Ele não te dó

de ninguém. É um povo, assim, que é a mesma coisa de uma cobra. A

mesma coisa. Porque a cobra ela morde, o individuo, ela sabe arranjar

a mata. E outros animais, em comparação, mudando de uma coisa pra

outra, morde pra se defender. Então o Poder Judiciário, é difícil a

pessoa pedir assim, pra ele, uma compreensão, porque tem muitas

coisas que é feita através de reivindicação pra ele. No Brasil, e em

outros estados, aqui mesmo no estado de São Paulo, manifestação de

duas mil, duas mil e quinhentas pessoas, ele não atende o pedido do

povo! Ele não atende o pedido, não fica do jeito que o povo queria que

fosse. No sentido de não ser prejudicado, mas ele prejudica mesmo.

Entrevistador O senhor confia no Poder Judiciário?

Adevino Eu não confio, não.

Entrevistador Por quê?

Adevino Eu não confio, porque a justiça brasileira, ela privilegia mais a

burguesia. Ele não privilegia a classe trabalhadora. Os trabalhadores

não são valorizado por eles. Não são valorizados. Eles beneficia mais a

classe empresarial. Ou Rural ou Urbano.

Entrevistador Se o senhor e sua família fossem obrigados a saírem daqui, para onde

iriam?

Adevino Não temos idéia. Nós só pensamos aqui mesmo. Já tamo aqui já faz 17

anos. E quando a pessoa reside num lugar há 17 anos, então já

acostumou ali, gosta do lugar. Que se fosse num lugar, assim, que a

gente não gostasse, a gente iria embora. Mas a gente tá aqui, porque a

gente gosta daqui, e não pretende sair daqui.

Entrevistador Muito obrigado pela entrevista.

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Entrevista com Jandira Vieira Pereira, 63 anos. Entrevistador A senhora poderia me dizer se exerce alguma função na coordenação

do assentamento? E como foi o início da ocupação?

Jandira Eu participo da coordenação do assentamento. Quando eu vim, o povo

já tava acampado na beira da estrada. Aí falaram pra gente assim: "Oh,

lá tá fácil"... E eu nem sabia direito como que era um acampamento, aí

me chamaram, eu falei: "então vamo". Aí eu peguei e vim, aí quando

tava com quinze dias que a gente tava na estrada, ali, acampado na

beira da estrada, aí nós entramo. Então nós tava de um lado e os

jagunços do outro. Aí então, pra enganar os jagunços inventamos um

forró. Aí nós começamos na quarta-feira esse forró, dançamo a quarta-

feira a noite todinha, a quinta-feira e a sexta-feira também foi forró.

Quando foi pra amanhecer no sábado, ali pra umas cinco horas, aí foi

que o capanga do jagunço lá chegou e percebeu que o povo tinha

entrado... Aí eles tava lá no começo, nós entramo aqui por baixo, pelo

porto aqui embaixo. Cortamo e entramo por aqui. Foi aonde foi que

aconteceu aquele "trupetudo", que o cara chegou, atirou no Santilho,

não sei se o senhor conhece ele pessoalmente...

Entrevistador Não, pessoalmente não conheço.

Jandira Aí foi aquele alvoroço tudo, foi aquele quebra-pau, aí ficou todo mundo

sem saber o quê que fazia, cataram o Santilho, levaram pra lá, e depois

o povo acalmou um pouco. Até “inclusivamente”, tinha um ônibus de

gente que veio lá da fazenda Promissão, que veio aqui pra ajudar a

gente, tava tudo desnorteado, fizemo almoço tudo, debaixo das árvore,

porque não tinha nem lugar pra fazer almoço pro povo, nem nada...

Fizemo almoço debaixo das árvore, e por ali ficou. Aí, daí três dias, foi

que chegou, o povo tava tudo desesperado, sem saber o que ia

acontecer, aí chegou uma conversa que tinha saído, que tinham

seqüestrado a fazenda, que nós não ia ser despejado. Ali foi onde o

povo acalmou, e depois ficamo tudo amontoado num canto só. Aí

depois com o tempo nós fomo esparramando, né, cada um pegou uma

quantia de um pedacinho de terra, e fomo plantando até que saiu a

emissão de posse, que saiu em 95.

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Entrevistador Como é que foi esse primeiro período?

Jandira Plantava um pedacinho de terra, ali, uma base de um meio alqueire

cada um só, e ia sobrevivendo daquilo dali.

Entrevistador E hoje, como é que as pessoas vivem?

Jandira Olha, em vista do que nós viveu antigamente, tá todo mundo

sossegado. Graças a Deus. Principalmente, eu falo da minha parte, eu,

graças a Deus, eu hoje em dia, eu tô tranqüila.

Entrevistador A senhora é casada? Tem filhos?

Jandira Viúva. Sou mãe de oito filhos.

Entrevistador Seus filhos trabalham aqui com a senhora?

Jandira Tem dois que moram aqui comigo. Tem os casado que mora fora. E tem

quatro solteiro. Mas um trabalha mais lá pro Mato Grosso... Tem o

caçula, que não está comigo porque ele tá estudando pra padre,

inclusive ele tá em Taubaté, ele foi pra Taubaté, ele tava em Taubaté. E

fica esses dois que tá trabalhando aqui, que são os dois filhos meus, ele

ficam aqui diretamente, trabalhando aqui.

Entrevistador Hoje em dia como as pessoas vivem ?

Jandira É, do leite.

Entrevistador Do leite? Vende o leite direto pra cooperativa?

Jandira É, nós temos a nossa Associação, “Associação 19 de Agosto”, nós

entrega pra nossa Associação e a Associação entrega pra Nestlé.

Entrevistador Certo. Qual é a avaliação que a senhora faz do trabalho do INCRA?

Jandira Ah, sobre a avaliação do INCRA eu já não sei explicar não. O que é

verdade eu falo logo, e isso aí eu não sei explicar.

Entrevistador A senhora sabe da ação de reintegração de posse que os proprietários

estão movendo contra as famílias?

Jandira Sim, eu tô sabendo porque o Joaquim falou ontem pra nós. Nós tava

numa reunião lá da Associação, pra ver esse negócio do dinheiro que tá

vindo agora, então ele tava explicando pra nós o que tava acontecendo.

Entrevistador O quê que a senhora acha dessa ação?

Jandira Isso aí eu não sei não, hein? Isso aí agora não sei responder não. Sei

que se for pra tirar as famílias daqui, acho que vai dar um reboliço muito

grande. Porque tem família aqui que fala que daqui não sai, só sai

morto, agora eu não sei... Inclusive lá na sede tem uma senhora que já

quase morreu por umas três vezes por causa de um negócio, quando

chega aquele boato: "Ah, tem uma ação de despejo, agora vai ser

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despejo". Aí, o povo tá na reunião lá, a mulher já desmaia, já precisa

catar ela correndo, larga ela pra Andradina, lá fica dois, três dias

internada e depois é que volta... E assim vai indo. E eu sei que se for

pra ter despejo aqui, acho que vai acontecer muita coisa, muito triste

aqui, vai acontecer.

Entrevistador Se a senhora pudesse falar pro juiz ou escrever uma carta pro juiz que

vai decidir essa ação de reintegração de posse, o quê que a senhora

diria pro juiz?

Jandira Ah, eu diria pra ele pensar bem primeiro o quê que ele vai fazer, porque

ao invés dele dar uma reintegração de posse pros fazendeiro, acho que

ele daria pra nós, porque aqui você vê, você vê... Quantas famílias

"vevi" aqui dentro, que tira o sustento disso aqui? Quantas pessoa

inocente têm aqui dentro, inclusive crianças pequenas? Se for pra retirar

esse povo daqui de dentro vai por aonde? E o sofrimento dessas

crianças, não conta? Porque a pessoa que é adulto, se ele vai sofrer,

mas ele tá sabendo porque ele tá sofrendo. Agora uma criança, ele vai

sofrer, ele não sabe por que ele tá sofrendo! Porque, já pensou uma

hora um filho chegar pra mãe, pedir um prato de comida e a mãe não

ter pra dar, o desespero dessa mãe?

Entrevistador Durante todo esse tempo que a senhora tá aqui, a senhora ouviu falar

se algum juiz veio visitar aqui as pessoas, conversar com as pessoas

aqui, algum juiz esteve aqui na região, na área, conversando com as

pessoas?

Jandira Eu não ouvi falar não. Nunca vi um juiz aqui.

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ENTREVISTA COM PROCURADOR DA REPÚBLICA

PAULO DE TARSO GARCIA ASTOLPHI ARAÇATUBA -SP

Entrevistador Qual é a tua visão sobre a execução de políticas públicas no Brasil pelo

Estado. As políticas públicas estão realizando o seu objetivo enquanto política

pública, ou estão deixando a desejar?

PTG Olha, eu acho que a constituição tem uma... uma... uma contradição. Na

minha opinião - em termos. Aliás, essa visão é baseada em um professor que

deu aulas na GV. É... ao mesmo tempo em que ela fala de uma sociedade

livre, justa, o fortalecimento nacional, o pleno emprego, etc e tal, como

princípios sociais e econômicos, ela abona, como nenhuma outra constituição

fez, o esforço exportador do país. Que aliás, nos termos de Reforma Agrária, o

fato dela isentar a propriedade produtiva de desapropriação, para a Reforma

Agrária, já é um indicio disso. Essa produtividade que se tem que obter,

vamos dizer assim, quase que a qualquer custo, aparentemente - a

construção é um pouco confusa, nós vamos levar esse termo mais a fundo, –

faz com que, enfim, se é pra obter produtividade... enfim, produzir de qualquer

jeito, vai produzir pra quem se você não tem renda no mercado interno?

Então... a gente deve presumir que é pra exportação, mesmo. E como...

realmente, ela coloca em toda, no sistema tributário dela, ela isenta tudo que

vai pro exterior, praticamente, pra exportação. Então, se é pra exportação, é o

que basta. Mas e a questão interna? E a sociedade que nós vamos criar aqui

dentro, dessa forma? Que fica só destinada para fora? Então, a constituição,

ela estabelece políticas públicas, objetivos a serem alcançados por meio de

políticas públicas, que na verdade, ela acaba impedindo ela própria de fazer.

Ou ela cria uma dificuldade pra isso.

Entrevistador Você falou da desapropriação e produtividade. A propriedade produtiva não

pode ser desapropriada? Qual a tua opinião sobre o artigo 5º, inciso 22 e o

artigo 184 e o 186?

PTG A gente nem precisa ir pro artigo 5º. Nós podemos ficar no 184, 185 e 186. Na

verdade, a gente não precisa sair do 185. Pra chegar a uma conclusão

seguinte: a propriedade improdutiva, para que não seja desapropriada, ela

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tem que cumprir a função social oportunamente. Quando, e nesse ponto, na

minha opinião, e com todas as venias devidas ao Supremo Tribunal Federal,

que está, tem decidido que a propriedade produtiva, por si só, não é

desapropriável, ele, ao interpretar assim o artigo 185, inciso 2 da Constituição,

ele está esquecendo o parágrafo único, do mesmo artigo, que diz que a

propriedade produtiva que não cumpra, basicamente, que não cumpra a sua

função social, teria que ter estabelecidas em leis os requisitos pra que

cumprisse. Em algum tempo depois. Em outras palavras, a propriedade que

não é expropriável para a Reforma Agrária é aquela que cumpre a função

social. Não é? A produtiva é um desses requisitos. Mas não é o único, e nem

poderia ser. Do contrário, você vai chegar à conclusão de que ele pode ser

produtivo, e portanto, escapar do problema da expropriação, com trabalho

escravo. Que ele pode ser produtivo com a depressão dos recursos

ambientais. Com a afetação do meio ambiente. Ou seja, que a propriedade,

que a produtividade pode ser alcançada a qualquer custo. Em outras palavras,

por fim, que os fins justifiquem os meios. E já começa por aí, que há um

problema nessa... nessa admissão. E há também um problema na

interpretação em si mesma, que é o fato de você ignorar um parágrafo de uma

norma. E normas paragrafadas não podem ser ignoradas.

Entrevistador Na tua opinião o que é necessário para que o INCRA passe a adotar o critério

da função social, e não apenas da produtividade nas ações desapropriatórias?

PTG O INCRA, pelo que eu tenho visto, aqui, nessa ação, pelo menos, e onde mais

eu atuei, o INCRA tem insistido nesse ponto, tem batido nesse ponto nos

pareceres, os procuradores têm insistido - embora seja difícil, porque eles têm

contra essa opinião as decisões do Supremo, nesse sentido – mas eles têm

batido, eles têm insistido. Aliás, particularmente, os assistentes técnicos,

embora isso não seja da área deles, mas eles têm tentado enfatizar esse

ponto. É claro que um dos problemas de política pública, aliás, nesse sentido,

pra execução particularmente da Reforma Agrária, é o fato de você não ter,

eles não terem gente o suficiente, terem que dar com um parecer, assim, de

assuntos complexos, como esse, em três, quatro páginas, correndo, com a

premência dos prazos, com outros casos pendentes... E, nessa situação, fica

difícil, realmente, convencer o juiz, que é a quem, em ultima análise, se dirige

o parecer dele, dessa questão. Ou seja, realçá-la.

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Entrevistador Você vê alguma possibilidade de alteração da interpretação do poder

judiciário, nessa questão da função social versus produtividade, na área das

desapropriações, para a sociedade?

PRG Esse assunto, como, vai, ocorre com todos os outros, em Reforma Agrária tá

bem confuso. Além do que a doutrina, de forma geral, mesmo os juristas que

mais se afinavam, vamos dizer assim, com a linha “mais social”, digamos

assim... pelo que eu li, pelo que eu estudei, até o momento... todos

concordaram, de forma geral, com essa interpretação da discussão. Então,

nesse quadro, fica difícil. Eu, particularmente, gostaria, pretendo, talvez um

dia, publicar algum artigo a respeito dessa opinião. Pelo menos pra colocar

em debate. Já que a gente aqui, atuando sozinho, acumulando tudo, fica

impossível você (risos), parar pra estudar, fazer uma tese a respeito, não há

mais condições disso, pelo menos aqui em Araçatuba. E eu tenho, eu

acredito, aliás, de forma geral, nas procuradorias. No meu caso,

particularmente, eu não vou deixar, inclusive, de enquanto não for convencido

do contrário, em termos de argumentação, eu não vou parar de expor esse

entendimento, colocá-lo nos autos.

Entrevistador Tem observado alguma mudança, nesses últimos anos dessa interpretação no

Poder Judiciário?

PTG A esperança é a última que morre! (risos). Mas “engessado”, está. Engessado

está. Bom, até agora, pelo menos, eu ainda não vi, tô esperando, pelo menos,

que os juizes de Araçatuba apreciem, se for o caso, esse argumento. Mas eu

tenho a impressão que... como, de forma geral, nenhuma propriedade, que

tenha sido objeto de ação de desapropriação, nenhum... nenhuma delas

conseguiu comprovar, satisfatoriamente a produtividade, que os juizes vão

acabar por não apreciar esse argumento na sentença. Talvez no tribunal, se

eles entenderem que o laudo, o argumento do proprietário, melhor dizendo,

prevalece contra a produtividade, talvez eles decidam a respeito. Mas é uma

questão que se perde no meio de tanta alegação e tanta coisa pra analisar,

tanta questão de fato, questão de direito, que envolve, de forma geral, as

alegações dos proprietários nas ações que questionam a desapropriação e,

via de regra, tentam provar apenas a produtividade. Mas tenho insistido nisso.

Agora...

Entrevistador Como é que você vê a responsabilidade do Judiciário na execução das

políticas públicas?

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PTG Bom. Pelo que se vê da mídia, você pode perceber que a atuação judiciária,

por exemplo, na questão da saúde – isso é a Justiça Estadual, de uma forma

geral. Aliás, a Federal, eu não tenho conhecimento que atue nessa área, né -

mas quando ela determina, por exemplo, que se forneça o SUS forneça

medicamento a um determinado doente, isso é tido, é noticiado e visto como

uma coisa natural. Uma coisa assim, sem grandes traumas. Então, o

Judiciário, ele nesse ponto, ele intervém, portanto, em políticas públicas.

Embora, claro, naturalmente, sempre aplicando a lei. Mas... está intervindo,

ele está participando disso de alguma forma, está antecipando alguma coisa,

está determinando alguma coisa. Já no caso da Reforma Agrária, tendo em

visto a passionalidade, que envolve a questão. E que praticamente você não

tem ninguém que não tenha uma opinião, e alguma opinião sempre radical, ou

contra ou a favor, isso inegavelmente, como era de se esperar, se reflete nas

decisões judiciais. Então você tem decisões que, refletindo essa divisão,

social, pelo menos da intelectualidade, acabam optando mesmo entre o direito

de propriedade, o respeito à ele, independentemente da questão da função

social, que fica relegada a um ponto futuro, na causa, e aqueles que

entendem que desde logo, a função social, o direito do Estado de desapropriar

primeiro, vamos dizer assim, ou pelo menos tirar a posse do proprietário,

primeiro, e depois discutir a questão da produtividade, ou pelo menos do

cumprimento dos demais requisitos da função social da propriedade, e isso...

prevaleça, em relação à preservação da sua, do direito de propriedade. Então

você tem, tem, e isso tá bem claro, que a interpretação... Aliás, não só os

juizes de primeiro grau, mas nos tribunais também. Você percebe claramente

essa, quase, eu diria quase que uma radicalização. Como, vamos dizer assim

– e como eu já disse, inclusive numa palestra, feita há algum tempo, na

Câmara de Andradina – não existe decisão técnica que não seja também

ideológica. Não existe decisão puramente técnica. Aliás, quem falava isso era

um professor da GV, Chico, eu não sei se ele se encontra lá, inclusive, até

hoje. E dizia isso em relação à economia. Aliás, a propósito, bem se vê que

não há decisões econômicas que não sejam ideológicas, que não partidárias,

que não impliquem tomada de decisão com relação a um ponto de vista,

econômico ou outro. Das linhas tradicionais de pensamento econômico. Em

direito, isso também ficou claro nesse ponto, a opinião do juiz quanto à

inutilidade... ele acaba transparecendo isso nas decisões. Quanto à inutilidade

da Reforma Agrária, ou a necessidade de rever, embora isso... Mas você fica

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nitidamente percebendo que ele não tá... ele tá indisposto, em relação a isso.

De certa forma, os próprios movimentos sociais contribuem pra isso.

Particularmente o MST, que... pelo menos pela transmissão das suas ações

pela mídia, acaba sendo endemoniado. Não sei se isso é verdade ou não, eu

não vou questionar, Mas isso afeta a mentalidade, e você já não consegue

discutir na causa... na causa judiciária, de um ponto de vista minimamente

isento. Quer dizer, eu não estou aqui, nós não estamos aqui, o Judiciário não

está, o Ministério Público não está aqui pra dar o parecer pensando se a

Reforma Agrária vai ser boa pra região ou não, se é justa ou injusta, se a

constituição precisava ser melhorada, ou não. Mas, a partir do momento em

que você pega, em quase todos os laudos, periciais, por exemplo, opiniões

políticas, que não são pertinentes ao peritos, por exemplo, na Justiça em

Araçatuba, você fica inviabilizado de também não tomar uma posição, né, em

relação a isso. Quer dizer, em vez de discutir a questão técnica, se é produtivo

ou não, e a questão jurídica, de hermenêutica, se a produtividade basta pra,

ou não, para impedir sua aplicação, você fica atrelado também a essas

questões políticas, à questão do que deve ou do que não deve, da justiça ou

injustiça. No caso, é claro que eu procuro sempre apartar as situações, tenho

procurado, pelo menos.

Entrevistador O que poderia ser feito, quer seja pelas universidades, pela academia, na

formação dos profissionais que atuam nessa área, para que a atuação do

Poder Judiciário fosse no sentido de realizar a obrigação do Estado na

discussão da política pública, e que não se perdesse na discussão ideológica

da questão?

PTG Olha, como eu disse, de forma geral, a questão está bem... passionalizada,

não é, bem partidarizada, na sociedade, de forma geral. O que a universidade

devia fazer nesse, aliás, como em qualquer outro caso, é estudar mesmo, a

partir de todos os princípios, não tentar refletir ou repercutir essa opinião

midiática da questão, e esclarecer, pelo menos, aos operadores de direito, né,

que está formando, essa... essa diferença entre a questão técnica, a questão

jurídica e a opinião política que influi nas duas. Partidarizar, deixar bem claro

pra eles. Naturalmente que o juiz e os demais operadores, o Ministério

Público, os advogados, vão atuar conforme queiram, mas pelo menos a

universidade cumpre a sua função esclarecendo isso.

Entrevistador No caso da Fazenda Timboré, é possível identificar claramente quais os

interesses que estão em discussão no processo, nos vários processos que

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envolveram a Fazenda Timboré, será que dá pra identificar os interesses em

discussão? E a partir da Constituição, dizer qual deles deve prevalecer?

PTG Bom. Mas... Na questão da Timboré, o Supremo já disse, no próprio acórdão

dele, que anulou o decreto declaratório de interesse social, ele já disse que as

regras, que a desapropriação será feita sim, mas não em títulos de dívida

agrária. Ou seja, não a desapropriação para a Reforma Agrária. Embora

também não vá mudar o destino que já foi dado, que, no caso, foi de

assentamento. Mas ele apenas quis dizer “pra esse proprietário, ele vai ser

indenizado em dinheiro, mediante justa e previa indenização”, vai jogar no

caso do artigo 5º. da Constituição e não dos casos dos artigos 184 a 186. Ou

seja, na pratica, não vai ser pago em títulos a dívida agrária. Foi só isso que

ele disse. A partir daí, né, desse trechinho que foi deixado, o proprietário, de

certa forma, fez o que era de se esperar. Ele está esperneando de todos os

lados. Inclusive, mesmo em relação à possessória, ela parece ser mais uma

tentativa de... porque se ele, como eu disse vai, não nega que vai receber

indenização total pelo imóvel. Tudo, tudo, Como é que ele pode querer, né,

por que que ele pode, enquanto ele não recebe a indenização, ele pode

querer ficar com a posse desse imóvel? Onde já há assentamento? Pra que,

se a indenização já inclui tudo isso, inclusive esse período em que ele fica

sem? Que ele só não recebeu porque não aceitou o acordo. Então, ele faz a

parte dele, eu não vou mencionar, os advogados dele, ele não quer aceitar, é

um problema dele. Agora, talvez ele tenha, particularmente... aliás, o

proprietário mesmo, principal, se eu não me engano, faleceu. Não é? Mas os

sucessores, como até o momento não tem noticia que desistiram da ação ou

coisa que o valha, eles, eventualmente podem ter algum tipo de prevenção, e

provavelmente devem ter, contra os Sem-Terra, de forma geral, ou contra a

Reforma Agrária, e por isso não querem aceitar. Mas isso é uma opinião, no

caso, localizada. De uma forma geral, eu não vejo, a partir daí, como

extrapolar, de forma geral, a não ser como reflexo dessa partidarização geral

da sociedade nesse tempo.

Entrevistador Num outro caso semelhante, o proprietário conseguiu cassar o decreto

desapropriatório no STF, logo após publicado o acórdão, ele entrou com uma

ação de reintegração na Justiça Estadual, e o juiz deferiu a liminar de

reintegração de posse, contra famílias que estavam há 17 anos na área, num

processo já iniciado, e assim que obteve a liminar, contratou os tratores de

esteira, passou em toda a plantação, as casas foram destruídas, enfim, e

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depois restou aos trabalhadores uma ação indenizatória contra o Estado do

Paraná por ter determinado o cumprimento daquela liminar de reintegração de

posse.

PTG De qualquer maneira, se o acórdão do Supremo, se ele cassou no Supremo o

decreto, e o acorde do Supremo autorizava isso, essa reintegração, então

esse acórdão está em franca contradição com o acórdão do caso do Timboré.

Em que ele, pelo acórdão, pelo menos, não há como você tirar conclusão de

que ele, o proprietário, possa reintegrar a posse do imóvel. Se ele, como disse

no acórdão, deve receber indenização por ele - não em TDA, mas apenas em

dinheiro.

Entrevistador Então, na sua opinião, a ação desapropriatória, a ação indenizatória que está

em curso e que os autos fazem parte desse projeto, é uma desapropriação

indireta, aonde o proprietário reclamou uma indenização, inclusive pra terra

nua, ou a União, ao pagar essa indenização, está fazendo uma

desapropriação direta, que não pelos TDA´s. Mas é uma desapropriação de

posse que o Poder Judiciário autoriza e determina à União o pagamento do

valor da terra nua?

PTG Foi colocado nos autos. Esta lá, quem leu os autos percebe claramente que

ele está sendo pago pela Fazenda, pela terra nua e benfeitorias como se

fosse uma desapropriação comum, exceto pelo fato de que não vai ser em

TDAs. No mais, é a mesma coisa! Tá nos autos, isso.

Entrevistador As ocupações de terra, quer seja aqui na região de Araçatuba, no estado de

São Paulo, ou mesmo em nível nacional, qual a tua interpretação desse

conflito? São conflitos localizados, é uma ação especifica de um movimento,

ou é um problema da sociedade brasileira que deve ser enfrentado com uma

política pública, ou com força policial?

PTG Tem... tem de tudo. Tem ocupações e invasões tipicamente políticas, apenas

pra manter, e, particularmente, pelo que eu tenho visto, é a posição do MST.

Mas aqui em Araçatuba, pelo menos, essas ocupações são, inclusive, quando

ocorrem aqui - pelo que eu tenho percebendo, posso estar enganado,

interpretando mal os fatos, mas... pelo que eu estou percebendo - eles

decorrem de uma determinação, uma política, e nesse tipo, de âmbito

nacional. Aqui na região, pelo menos, e aí nós entramos no ponto focal, que é

a alimentação dos movimentos, a exasperação, a exasperação dos conflitos,

dessa conflituosidade, da qual, eventualmente, um movimento ou outro se

aproveita, mas ela se alimenta, basicamente, da falta de informações, a

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respeito dos casos, da inacessibilidade dos juizes, particularmente, com

relação a esses movimentos. Então, muitas vezes, invasões são feitas com

base em boatos, e sem objetivo útil nenhum. Muito pelo contrário! São

invasões que, inclusive por lei, agora, ou pelo menos em Medida Provisória

que vigora com força de lei, já há alguns anos, acabam subtraindo o imóvel à

vistoria, avaliação e desapropriação, por dois, e, na reincidência, por quatro

anos. E isso, como assim, é um protesto que não tem sentido, que muitas

vezes eles pegam, por má informação a respeito do que é decidido nos autos,

do que não é decidido pela demora do Judiciário, e do Ministério Público

também, porque não? Acabam fazendo esses atos que eu diria que são quase

que de desespero, né... sem objetivo útil nenhum. E acabam por isso tendo

essa fama de baderneiros. Em alguns casos, eventualmente, isso pode ser

ruim. Em outros casos, não sei, mas os casos que a gente tem visto aqui, o

simples fato de você explicar, na causa, o que está acontecendo, né, sem...

tirando opiniões, ou previsões de fulano ou de ciclano, que disse que o juiz

não vai decidir, que ele já decidiu, enquanto isso não tem base real

nenhuma... Só o fato de você esclarecer, você já faz um apaziguamento da

região. Pelo menos do local. E tira, eventualmente. Nesse ponto, o juiz, e

particularmente o Ministério Público, são agentes políticos, pela Constituição.

Né? Ou seja, não são... aliás, como eu já disse, não existe um agente técnico

totalmente técnico, não existe decisão técnica totalmente técnica, toda tem

algum viés ideológico ou político, também não existe agente propriamente

técnico. Mas o Ministério Público, e o juiz em particular, são agentes políticos,

tanto quanto... tanto que a constituição determina, que eles, os juizes, sempre

que for possível, se façam presentes nos locais onde há conflito fundiário.

Além de o código determinar, o código do processo determinar a intervenção

do Ministério Público sempre que houver conflitos coletivos pela terra rural.

Então... Agora, o que exaspera, e deixa numa situação – e isso é

generalizado, nesse ponto não são só os candidatos a acampamento, como

os juizes, e eu mesmo, particularmente, acredito que todos os demais

exasperam – é a impossibilidade material que você tem de dar minimamente

uma satisfação a esses casos num tempo razoável. Cumprindo, aliás, a nova

norma da Constituição, né, entre as garantias fundamentais, que é a duração

de tempo razoável do processo. Se você não tem condições materiais disso, a

não ser que você literalmente não olhe direito a causa, isso é inadmissível,

mesmo porque, nesse monte de alegações, né, você pode muito bem, e é

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bem fácil você acabar decidindo com base em coisas que não constam nos

autos! Com base em parecenças que não dizem respeito! E não é incomum,

muito pelo contrário, é muito comum, particularmente aqui em Araçatuba!

Decide com base em aquilo que parece ser, aquilo que o proprietário alegou,

e quando olhado mais analiticamente, nem ele alegou isso, propriamente, e

nem é a situação, de fato, dos autos. Que, o que inclusive implica o seguinte,

que nem dá pra condenar o autor por políticas de má-fé. Então, é uma coisa

impressionante o que ocorre aqui, nesse ponto. Então, a morosidade,

infelizmente, da minha parte, particularmente, acaba sendo... Olha, eu

concordo que deveria ser mais. Agora, precisamos, a gente precisaria de mais

procuradores, mais juizes, mais funcionários, portanto, e isso gera um custo. E

vai daí uma questão de... outra questão: é caro, não é, mas... a sociedade

pagaria por isso? Quer dizer, justifica-se isso? Então, nós temos um problema,

realmente. O motivo básico da morosidade do Judiciário e do Ministério

Público, incluir bem pra não dizer que eu tô acusando alguém aqui, na minha

opinião, não tem nada a ver com excesso de recursos, tem a ver com falta de

meios humanos. Né? E que parece que sempre passa pela conveniência de

alguns, né? Porque, quanto mais se ataca, “porque eles ganham bem”,

“porque não sei o que”, você consegue fazer todo um tipo, “e olha, ainda

demora, tá vendo?”, “vai demorar muito tempo pra decidir sua causa”. Pô, mas

você consegue decidir bem decidido, com responsabilidade, tendo aqui pilhas

e pilhas de processos pra decidir? De casos, né? Se os outros são... Ninguém

vai dizer que um caso de Reforma Agrária, que discuta produtividade, seja um

caso que você leve pra casa num dia, e no dia seguinte você traga

pensadinho e tudo mais. Nesse ponto, se existe alguém que tem essa

capacidade, eu reconheço a minha limitação, então, intelectual.

Entrevistador Qual a tua opinião sobre a atual legislação instituidora do programa de

Reforma Agrária?

PTG Bom, primeiro lugar, como consta nos meus pareceres, o artigo 7º. da lei

8.629, que tira da desapropriação, temporariamente, pelo menos, o imóvel,

que seja improdutivo, pelo grau de utilização da terra, esse artigo é

inconstitucional! No entanto, ele decorre da interpretação que se deu ao

artigo... ao artigo 185, em seu parágrafo único. Ele é a única explicação, como

eu coloco nos pareceres, inclusive. Não tem outra explicação pra um artigo

desses! Ao invés de o artigo 7º. regrar a inexpropriabilidade provisória do

imóvel que seja improdutivo, enquanto ele não cumpre a função social, que é

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o que deveria ser, ocorrer pela constituição, ele diz simplesmente que o imóvel

que é improdutivo, terá um prazo, pelo grau de utilização da terra, terá um

prazo para cumprir. Estou citando de memória, pode haver algum engano

aqui, Quando ele deveria dizer, não, o imóvel que é produtivo, que alcance o

grau mínimo, o CUT mínimo e o GEE mínimo, ele, pra não ser desapropriado,

caso ele não cumpra com o... respeito ao meio ambiente, etc e tal, ele deveria

ter um prazo pra cumprir. Tem um projeto certo pra isso, ter um projeto pra ele

tirar, por exemplo, pastagem, ou ocupações de áreas de preservação

permanente. Um tempo pra ele instituir efetivamente a reserva florestal, é isso

que ele deveria fazer! A lei não faz! A lei, por incrível que pareça, regulou um

outro caso! Que não tem nada a ver com a discussão! Tudo bem, é minha

opinião, tá na lei, respeito, data venia, mas não posso concordar com isso! De

qualquer maneira, tenho que aplicar a lei. Então eu aplico analogicamente

esse artigo 7º., aos casos de desapropriação, dizendo basicamente o

seguinte, que tem aqui: o imóvel é produtivo, por hipótese, digamos que seja,

até hoje nenhum caso, eu vi um caso que tenha conseguido, o proprietário

tenha conseguido provar produtividade. Mas digamos que esse caso apareça.

Então, vai aparecer que tem um sentido, tudo bem. Mas ele é produtivo às

custas da utilização dos TDAs? À custa da inexistência de reserva florestal,

efetiva, não formal? Então ele deveria ter um prazo pra que ele recomponha

isso, se ele cumprir essa recomposição, essa preservação do meio ambiente

no prazo, ele ficará, então, efetivamente, inexpropriável. Mas se ele não

cumprir isso no prazo, então ele seria submetido a desapropriação ainda, e a

despeito de ser, produtivo. Isso é um caso. Outro caso: a questão da emissão

na posse. Né? Regular ou regrar em lei, urgentemente, a questão da emissão

na posse, quando há uma ação prévia, questionando a produtividade, ou por

outra forma, tendente a tirar o imóvel da desapropriação. Por quê? Porque a

lei complementar 76, bem lida, bem atenciosamente lida, veda apenas a prova

de produtividade nela. Ou seja, nela não se faz perícia, ou outra prova, se for

o caso, se for possível, por exemplo, testemunhar por produtividade. Se fosse

o caso, né, mas isso é muito difícil. No entanto, isso não quer dizer que eu não

possa discutir ela lá. Discutir a produtividade na ação desapropriatória. E o

argumento maior dos proprietários é realmente esse. Mas se você discutir a

produtividade e reconhecer que ela é produtiva, que, portanto, em principio,

abstrair a minha opinião a respeito da função social, ela não poderia ser

desapropriada, como é que faz se já houve emissão na posse? Então, a lei - e

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isso é função do legislador! A gente, as decisões dos tribunais, dos mais

variados tipos, desde aqui diz que, entrou com desapropriatória, tem que

emitir na posse. Não importa que a ação... tenha perícia dizendo que é

produtiva, tenha até sido julgada por sentença, desde que não julgada, que é

produtiva, como há decisões que dizem o seguinte: que só vai continuar a

desapropriatória quando transitar em julgado a decisão na ação que questiona

a produtividade. Ou seja, que afirma que o imóvel é produtivo, ajuizado pelo

proprietário. E há uma decisão intermediaria do Superior Tribunal de Justiça,

que é muito utilizada, pelo menos aqui em Araçatuba, que diz que o processo

tem que ser suspenso. Só que, pelo menos pela ementa, ela não ressalva que

essa suspensão, pelo código do processo civil não pode ultrapassar um ano!

Então, daí, você tem os... percebeu? Os três... as três linhas de interpretação,

e o juiz, a partir daí, ele vai, obviamente, conforme o seu entendimento, optar

por uma ou por outra. Mas isso gera uma insegurança enorme. Aliás, gera um

problema grave, que é o seguinte: (como o INCRA ressalta, inclusive) você

tem depositados, pelo menos... emitidos, os títulos da divida agrária; este

valor, em principio – correspondente aos títulos – não pode ser... tem que ser

destinado, né, não pode ser utilizado pra outros fins, acredito eu, pelo

orçamento; tem os valores das benfeitorias depositadas em dinheiro e em

juízo; tudo isso parado, né, esperando uma decisão, ao mesmo tempo em que

você não tem uma contrapartida... a contrapartida esperada, desse depósito,

dessa imobilização desse valor, que é a emissão na posse, e portanto o

apaziguamento local, na questão da terra. Então, você fica imobilizado dos

dois lados, por um lado. Por outro lado, você associa isso à morosidade da

justiça. Que, como eu disse, é uma questão de possibilidade material. Ao

mesmo tempo em que, via de regra, ou pelo menos nos últimos anos, aqui na

região de Araçatuba, pelo menos, as terras têm se valorizado, por uma

questão circunstancial, a questão, parece que da cana, né, a questão do

álcool, dos carros... vai se valorizar as terras. E, com isso, valorizando as

terras, ainda que o proprietário dê perca a discussão da produtividade, ou do

cumprimento da função social, ele vai ter uma indenização, que ele vai ter que

ser indenizado, fixado, a indenização da propriedade, fixado na data da

perícia. Fixada por lei. E não haveria mesmo de ser diferente, porque o perito

dificilmente ia poder descobrir o valor do imóvel retroativo, né, relativo à época

da avaliação do INCRA, pra poder comparar as duas. Então ele fixa o valor

nessa data, na data da perícia, que, muitas vezes, passa anos depois da

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avaliação do INCRA, a avaliação do INCRA, portanto, não é que esteja

errada, mas ela fica defasada pela valorização normal dos imóveis –

valorização inclusive acima da inflação, né. Ou seja, ainda que esses TDAs

sujeitem-se à correção, eventualmente juros, assim como o depósito das

benfeitorias, né, no banco, essa correção não cobre. Com isso, você tem,

portanto, uma diferença, pela qual a União vai se condenada, e sobre a qual

vão incidir simultaneamente juros compensatórios e moratórios. Isso eleva a

dívida a um patamar absurdo, ainda que seja mínima, só pelo fato de

condenar. Vai daí outra questão, que é, vamos dizer assim, desesperadora,

que é aonde vai parar isso. E aí, a minha solitária opinião, já externada em

autos, vencida, inclusive agora por lei – já havia sido vencida por suma, do

Superior Tribunal de Justiça – mas são devidos apenas, juros moratórios e

compensatórios não se acumulam. É uma questão... uma questão bem

técnica, vamos dizer, no bom sentido do termo, mas, de qualquer maneira,

como está na lei. Embora eu pugne pela sua compreensão correta, aplicação

correta da lei, nesse sentido, mas eu tenho que admitir que não vai ser uma

posição vencida, como tantas outras, e que a gente tenta corrigir. Mas, se não

houver essa correção, você vai ter uma infração milionária, isso estimula a

litigiosidade, a falta de acordo, porque o proprietário que não precisa do

dinheiro, pra que ele vai fazer acordo, se daqui a dez, vinte anos, ele deixa

uma “herança”, vamos dizer assim, muito boa para os seus sucessores, que

seria essa indenização. É um investimento de longo prazo. Não é possível que

essa situação continue assim. Tudo bem que em matéria de juros, o Brasil, a

política econômica, agora voltando, a política pública, econômica e fiscal seja

bem generosa... mas... não vamos entrar na área econômica, técnica,

especifica da questão. De bancos, ou política de... é... política... é...Monetária!

Mas há uma espécie de reflexo dela nessa questão, que é a admissão desses

juros. Então, fica também o meu pedido, aqui, que nesse ponto – aliás, se me

permite, se a GV, e voltando àquela sua pergunta, se a GV, ou, de forma

geral, as escolas, a universidade, particularmente, podem contribuir é em

casos como esse! Que ele comece a questionar isso! O Supremo decidiu

assim, vamos questionar porquê. Tá na lei que se cumulam juros, vamos

questionar porquê. Por quê que está cumulando juros? Que sentido tem isso?

Vamos ver direito. Eu não sou o dono da verdade. Não é? Mas estou

questionando, fazendo aquilo que eu aprendi. Que é o correto, que é jamais

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aceitar as coisas impostas, fazer por obrigação apenas, e questionar as outras

nesse ponto.

Entrevistador A Constituição Federal fala da função social da propriedade, e fala que a

propriedade produtiva não será desapropriada. Não haveria que ter uma

alteração na legislação ordinária estabelecendo a participação do Ministério

Público do Trabalho, e Ministério do Meio Ambiente nas ações

desapropriatórias?

PTG Olha, eu acho que quanto mais pessoas intervêm no processo, pior. Diria o

professor (risos)... o professor da Faculdade de Direito, Antônio Carlos

Marcatto, pro Ministério Público, quando ele não tem o que fazer no processo,

mas quer falar alguma coisa – isso na época dele, eu acho, né? – ele sempre

atrapalhava. E hoje é o inverso, hoje o Ministério Público, de uma forma geral,

não quer intervir, mas porque não tem mais condições materiais. Não é que

ele não queria porque não quer mais trabalhar, é porque os casos não são

dele. Em geral, a gente, e isso ocorre às vezes, a gente até oferece um

parecer, ou alguma coisa, a gente adentra no mérito, por exemplo, em casos

que a gente, preliminarmente, diz “ó, não é caso da gente intervir”. “Não é

caso de intervenção do Ministério Público”. Mas, né... tipo assim: você

conhece o juiz, você tem uma opinião, você pode auxiliar em alguma coisa,

“eu vou contribuir”. Você tá mandando intervir. Você entende que é, tanto é

que mandou uma intervenção; eu entendo que não. Mas eu não vou recusar.

Se eu tenho, já assinei o caso, já vi, vou externá-lo aqui. Pela eventualidade,

vai que eu estou enganado, ou vai que eu mude de idéia amanhã. Hoje isso

não tá sendo mais possível. O Ministério Público simplesmente recusa, e, de

fato, não há motivo pra intervir em vários casos, que ele tem que intervir. Por

lei! Né? Uma mudança na lei - mas isso é uma questão genérica, não tem

nada a ver com a questão de política pública – mas a especificação dessas

hipóteses seria melhor, né, pra... Aliás, eu gostaria de sugerir aqui, uma

espécie de “lei de responsabilidade jurídica”, à semelhança da lei de

responsabilidade fiscal, né, que diz o seguinte: toda vez que você estabelecer

a participação, por exemplo, do Ministério Público em um caso, ou criar um

novo caso de intervenção judicial, com ou sem o Ministério Público, você deve

também estabelecer os meios pra tanto, ou seja, prever cargo de juiz, né, ver

aonde que isso vai acontecer, de uma forma geral, aumentar esses cargos,

aumentar os cargos de funcionários, de servidores da justiça. Porque não é

possível, por exemplo, como ocorre hoje, em que... você... cria-se hipóteses

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de intervenção – no caso, estou falando do meu caso, né, os que eu conheço

– de intervenção do Ministério Público, em que ele teria que pegar o caso,

estudar, pra ver se ali tem algum motivo pra ele intervir, sendo que não há

meios, já não se fornece os meios, pra intervir nos casos obrigatórios! Pelo

menos, não a tempo, como determina a Constituição. Claro que se ninguém

estiver preocupado, né, com a morosidade da prestação, aí não haveria

problema. E nem com a qualidade, né? Porque quando a prestação judicional

ou ministerial, né, os pareceres ministeriais, não são demorados, seriam,

teriam eles a mesma qualidade? Ou você vai ter sempre que contar que o

procurador seja um cara excepcional, que dê o parecer, né, brilhante, e em

curtíssimo prazo. Ele vê tudo rapidamente, quer dizer... E pode existir pessoas

assim. E desculpe, não é o meu caso, eu não tenho essa capacidade! (risos)

Entendeu? Me esforço, muitas vezes vim, até o ano passado, enquanto tinha

condições físicas, assim, né, quer dizer... tava me esforçando, pra vir de

manhã, de tarde e de noite. Abdicando da convivência familiar, e tudo mais...

mas não é mais possível, isso! Eu vou perder o meu filho! Literalmente! Mas é

isso que eles querem da gente? Não, eu acho que não, né? Bom, de qualquer

maneira, eu tenho minhas responsabilidades, eu vou fazer, vou cumprir, na

medida do possível. É... estou, eventualmente, com alguma... Há, há,

evidentemente, aqui em Araçatuba, prejuízo sim, da parte criminal, por

exemplo, há vários inquéritos relatados, nos quais a gente não tem condições

de trabalhar! Minimamente! Não vou ser irresponsável, não vou fazer uma

denuncia leviana, nem um arquivamento superficial ou leviano. Né? Isso...

isso eu não vou fazer. Não, como também não faço na questão... nas

questões envolvendo questões agrárias. Mas, voltando à sua pergunta, e

respondendo conclusivamente... questões trabalhistas, questões ambientais

que sejam levantadas no processo, o Ministério Público Federal já intervindo,

ele já comunica os órgãos, né, competentes. Inclusive os colegas dos outros

ramos do Ministério Público. Não é necessário que eles intervenham, só vai

assoberbar esse serviço, eles procurarem motivo que, que um já vendo, já

comunica a eles. Isso, de uma forma geral, já está na lei, não há problema,

não há necessidade, portanto, de intervir, o que há, sim, é prever uma outra

mudança legislativa, a mesma lei que regra a questão da suspensão ou não, e

a questão possessória, nas ações que tendam a impedir a desapropriação, ela

deveria regrar, e melhor dizendo, especificamente prever, obrigatoriamente a

intervenção do Ministério Público. Mesmo porque, se o Ministério Público

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Federal tem algum motivo pra intervir numa ação desapropriatória... diversa,

numa questão agrária... ele tem mais motivo pra intervir naquela que prejudica

a desapropriação, do que naquela que discute, em principio, apenas o valor.

Né? Ou já discute a produtividade, como eu havia dito, no início, mas já, a

questão já provada. Porque, não me lembro se concluí essa resposta antes,

ou não, mas... embora eu não possa provar na ação desapropriatória a

produtividade, eu posso discutir ela, sim. Né? Só que se o Ministério Público

intervém lá, e intervém obrigatoriamente, ele não pode chegar lá e, por

exemplo, falar numa ação em que a prova já foi feita numa ação, por exemplo,

prévia cautelar, de produção de estado e prova. Que é o que se esperaria que

ocorresse.

Entrevistador Uma das saídas seria a criação de uma justiça especializada?

PTG Essa é uma questão que a sua “Escola” deveria questionar e debater,

começando bem detrás. Pra que existe justiça especializada? Pra resolver

conflitos negativo ou positivo de competência? Rogério Laureia Tucci, diz,

com todas as letras no livro “Constituição de 1988”, processo dizia nas aulas

de direito que eu tive com ele na São Francisco, que o Poder Judiciário é

nacional, é um só. Existem apenas “justiças”, né, mas o poder é único. Ora, a

justiça especializada, ela tem a sua razão de ser, eventualmente, quando a

matéria é muito específica. Né? Ou por uma outra questão bastante... Mas o

problema de criar... de se criar uma justiça especializada, são os conflitos de

competência. Quantas vezes, quantas... procure... eu gostaria de fazer essa

pesquisa, é uma outra sugestão, que eu gostaria de... fica, pro pessoal, né, os

estudantes da GV - pesquisem no STJ, qual que é o percentual de decisões,

por exemplo, somente entre... de decisões que... somente entre conflitos de

competências entre federal e estadual. Justiça Federal e Justiça Estadual.

Porque até com relação à Justiça do Trabalho e a Justiça Militar, são matérias

especificas. Mas... e Justiça Federal e Justiça Estadual, sendo que o Poder

Judiciário é nacional. O Poder Judiciário é um só, data vênia a opinião, ou

melhor, inclusive, os títulos que existem em sentenças, dizendo assim “Poder

Judiciário do estado tal”. “Poder Judiciário do...”. Não, não é Poder Judiciário

do estado. É justiças dos estados. Isso está claro na constituição, até o

momento, se eu não me engano, a Constituição do estado de São Paulo já foi

emendada pra colocar o Poder Judiciário. Como se existisse... Existe Poder

Executivo estadual, federal e municipal. Existe Poder Legislativo federal,

estadual e municipal. Mas Poder Judiciário é um só, ele não tem a tripartição

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entre as entidades ou unidades federadas, e isso não ficou claro na

Constituição. Outra confusão que gera. Na prática, além da questão conceitual

em si, na prática, você fica criando mais uma série de conflitos. Como são

justiças especializadas, a questão acaba tendo de ser entendida como

incompetência material, que não... que não se... que não se... não se saneia.

Ou seja, teria que anular tudo, em principio, tanto que alguns tribunais, à vista

dessa situação lamentável, acabam aceitando, pelo menos a produção de

provas, não as decisões... A produção de provas na justiça incompetente, em

razão da matéria, e, com isso, de qualquer maneira, já não bastasse o

excesso de causas naturais, e que decorrem, aliás, em grande parte, da

incapacidade do Estado de executar as políticas públicas, mesmo por causa

da sua contradição intrínseca, que se reflete na constituição, que é, enfim,

privilegiar o país como nação, privilegiar o país como plataforma exportadora...

você agora coloca também pra eles a decisão: se um roubo de uma agência

de correios franqueada é estadual ou federal. Isso vai, e vai e são vários

casos decidindo, e quanto tempo se perde nisso? Pra que isso? Vamos

começar a questionar por aí. Eu acho assim: se a... A questão agrária,

realmente, ela é especializada demais. Muito especializada e merecia várias...

de Reforma Agrária... e varas Agrária. Especificas. O juiz não dá, to vendo

aqui, não dá pra você trabalhar bem, já não bastasse o excesso de serviço, a

insuficiência de material humano e físico, não é, você ainda tem que pegar,

hoje, uma questão criminal, e amanhã um estudo de um grau de eficiência de

exploração, num caso de Reforma Agrária. É evidente que não... que a

produtividade não é a mesma. A produtividade da prestação judicional e

ministerial, vamos dizer assim, Então... agora, isso é uma coisa. Outra coisa é

você falar “não, você vai entrar numa justiça especifica”, e a partir daí você

nunca... porque se cria uma Justiça Agrária, existirão tribunais agrários,

eventualmente um Tribunal Regional Agrário, um Tribunal Superior Agrário, e

eles só vão tratar de questões agrárias. Com isso, você especializa demais,

você direciona demais o conhecimento. É muito importante pros juizes, que

ele fique sim, algum tempo somente ali nas matérias, como as cíveis, as

criminais, né? Tanto é que existem várias cíveis e criminais, mas, veja-se

bem, que o juiz estadual, né particularmente, e mesmo o federal, quando ele

começa, ele começa pegando tudo. As varas não são especializadas. Não é?

E ele pode também ficar um tempo na criminal, e outro tempo na civil. Ele

pode variar, conforme o seu gosto. Mas, de forma geral, ele tem que ter um

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conhecimento generalizado. Um dos grandes problemas que se poderia

colocar, é a excessiva... no campo cientifico, hoje, de uma forma geral, não só

no direito, mas, por exemplo, particularmente na medicina, por exemplo, pelo

que eu vejo, é a excessiva concentração de conhecimento em certas áreas.

Um, conversando outro dia com um médico, ele me disse que um colega que

especializou-se apenas em parto de mulher com pressão alta, não consegue

acompanhar todas as... a matéria que se publica a respeito do assunto. Mas

ele só conhece isso, ele não pega uma parturiente que tenha pressão normal.

Ele pega só a parturiente que tenha pressão alta. Ora, eu acho assim, que ele

só trabalhe com isso, mas que ele, eventualmente, vá pras outras áreas, ou

possa ter essa possibilidade, eu acho isso necessário, porque senão ele,

daqui a pouco ele não vai nem saber onde fica o coração. Eu to... eu estou

aqui brincando, evidentemente, mas... nós não podemos segmentar a tal

ponto o conhecimento das coisas. Em direito, particularmente, não há como

segmentar, você tem... são ramos do direito. Não é? Não tem sentido, quando

ele vai decidir a questão agrária, ele vai envolver direito civil, ele pode

envolver direito criminal, ele vai envolver direito ambiental... Né? Quer dizer,

ele teria que ser um conhecedor, um conhecedor, um expert. No mínimo,

então, se for o caso, o “juiz agrário”. Se houver uma justiça agrária, ele deveria

antes passar por todas as instâncias normais, vamos dizer assim, comuns.

Pra que ele tenha não só a experiência, o conhecimento jurídico, que todo juiz

tem... todo juiz, todo promotor, todo operador de direito que passou em algum

concurso, se exigiu, de forma geral, os conhecimentos amplos e genéricos de

direito. Mas depois que ele só atua nisso – uma coisa é esse conhecimento,

outra coisa é a experiência prática. Que é outra questão, que a reforma do

judiciário podia ter feito, né... e que fica como sugestão de pensamento, mas

isso aí foge muito ao tema, aqui, da...

Entrevistador Na sua opinião, o poder judiciário pode atrapalhar a execução de uma política

pública do Estado?

PTG Em vista da passionalidade, nessa questão agrária, ou seja, ninguém tem uma

opinião radical, em um sentido e em outro... Seria melhor, na minha opinião, a

alteração legal. A definição em lei de todos esses casos. Apesar que isso não

vai... não vai ser um... uma solução, porque a lei... não é um... não é uma

coisa que se aplique, assim, que defina ou acabe com os conflitos, mesmo

porque toda lei é aplicada de forma... mesmo quem diz que não interpreta a

lei, na verdade, está interpretando, quando a aplica. Ou não a aplica. Então,

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é... uma reforma legal é desejável, mas é desejável, de forma geral, enfim,

que o Estado tente realizar a sua política pública, e, particularmente, política

pública educacional, que dê, as mais variadas visões às pessoas, que ensine

a questionar, de forma geral. Essa é a função da universidade, da escola de

uma forma geral. Que ela, na minha opinião, acaba não cumprindo, tão a

contento, mesmo porque, hoje em dia, pra fugir de novo do tema, você acaba

sendo questionado por informações, Você... muito pouco – a GV parece que

está tentando mudar isso, de forma geral, inclusive no vestibular, né. Mas,

basicamente, você tem que ter o seu repositório de informações. Você tem

que saber os caras. Você não tem que saber propriamente aplicá-los. É claro

que isso implica uma outra... um outro tipo de abordagem, vamos dizer assim.

Mas o que a escola, de uma forma geral, e a universidade, em particular, pode

exigir, é um... é... um questionamento sério, científico. Ou seja, não aceitar

apenas as informações. Questioná-las. E esse método a escola pode ensinar.

De questionamento. Método de questionamento.

Entrevistador Como que você avalia a atuação do INCRA na política pública de Reforma

Agrária? Você tem alguma opinião formada sobre a atuação do INCRA na

execução, na implementação da política de Reforma Agrária?

PTG Que eu tenho visto, e do que eu tenho conhecimento, o INCRA faz o que é

possível. Ante as suas limitações naturais. Primeiro pela falta de um

procurador aqui, ou nos locais, desde quando... decidiu-se, aqui na Terceira

Região, São Paulo e Mato Grosso do Sul, que as ações agrárias tramitariam

pela... pelo foro da situação, né, o foro, a sanção judiciária da situação de um

imóvel, o INCRA tem feito o possível e até o impossível fazer, né, pelo que eu

tenho visto. A atuação, ela é satisfatória - em vista das suas limitações – mas

deixa muito a desejar, ainda. E nisso, e eu não estou falando, não estou

fazendo nenhuma critica, mesmo porque a minha atuação, na minha própria

opinião, minha auto-avaliação, eu faço o que é possível, mas ainda deixo

muito a desejar. É claro que eu espero melhorar, com o tempo. Mas é

evidente que, enfim, você não tem como trabalhar, se a capacidade é sobre-

humana, você não vai ter como trabalhar em todas as causas a tempo.

Alguma coisa sempre acaba sendo prejudicada, ou não resolvida, ou não

solucionada a contento. A gente tenta evitar. Deveria fazer um estudo, um

planejamento de manifestações e processos. Que eu não tenho mais

condições, eu tenho que planejar as coisas aqui. Talvez por isso o curso de

administração seja bom pros... juristas... (risos) ou pelo menos pra aqueles

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que pretendem trabalhar como juiz e promotor... (risos) Fazer planejamento,

você não tem... você não pode mais deixar ao léu, você tem que ver, “isso

aqui não pode, aquilo não pode”... uma questão de utilidade... fator de

utilidade, mesmo! Chegou a esse ponto! Mas, voltando à questão do INCRA.

No caso deles, também, como em todos os casos, precisa de mais

procuradores, mais gente pra assessorar, mais...

Entrevistador O interesse primário dos lavradores Sem-Terra como um interesse coletivo,

partindo dos conceitos dos direitos difusos e coletivos, o Poder Judiciário está

preparado para trabalhar com processos coletivos? Já houve algum caso de

utilização da Ação Civil Pública para reclamar esses direitos?

PTG Não, eu não tive conhecimento, não houve um caso, mesmo porque, na parte

federal, a ação civil pública seria manejada por mim, entre outros.

Particularmente por mim. E eu não... não... não vi um caso, até agora, que

precisasse atuar dessa forma. De forma geral, esse interesse coletivo, ou até

eventualmente difuso, tem sido defendido caso a caso, nas ações que

aparecem. Inclusive possessórias, quando são emitidas pra justiça federal.

Mas... com a ação civil pública, ainda não me surgiu um caso em que ele se

colocasse... que demonstrasse a utilidade da utilização da ação civil publica,

pra defender esse interesse. Agora, em tese, em princípio, salvo o melhor

juízo, é possível, caracterizar assim. Resta saber se vai ter utilidade prática.

Entrevistador Teria algum comentário a fazer sobre o caso especifico da Timboré?

PTG O caso Timboré, ele acaba... é um caso emblemático da possibilidade de

repercussão negativa ou positiva da questão agrária. Você tem um caso bem

definido que é colocado, inclusive na justiça, como um esbulho, uma invasão.

Tanto é que a ação possessória foi ajuizada com base nesse fundamento, e

só isso já é... já gera uma, uma situação assim. Então, o INCRA esbulhou a

propriedade do cidadão, do autor da ação possessória, dos autores da ação

possessória. Os assentados estão lá irregularmente. Isso cria uma

intranqüilidade, criou, no caso, uma intranqüilidade, uma aflição, em todos

aqueles que estão assentados lá, contribuiu, mais uma vez, pra radicalização

do clima, de forma geral. Ou seja, apenas... com um objetivo... nenhum, nada

construtivo, não é? E o fundamento da ação, conforme meu parecer isolado

nos autos, não se sustenta. Não há fundamento, não há... O único, principal

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fundamento dela, que é o acórdão no Supremo, manda desapropriar. Apenas

mudando a forma de pagamento. Então, é um caso assim que você percebe

como que essa situação... acaba gerando, ou contribuindo pra gerar mais

litigiosidade, mais conflito, mais insegurança, mais radicalismo, nessa

questão, por um lado. E por outro lado, como que a atuação dos... agentes da

justiça, ou seja, os membros do poder judiciário, e do Ministério Público, pode

contribuir pra, pelo menos, dissipar um pouco essa situação, né, colocando as

coisas nos seus devidos lugares, e tudo mais. Claro, estou aqui, não estou

aqui criticando a atuação propriamente dos proprietários, eles estão no direito

deles, o advogado também está exercendo o seu direito, está argumentando,

procedente ou improcedente, é a justiça que vai decidir. Mas a forma como ele

coloca a situação, é por si só uma forma que gera conflito. Gera animosidade,

gera... aflição social. Em toda aquela comunidade. Gerou, talvez até hoje

gere, inclusive, a insegurança, com relação ao tempo que eles vão ficar lá,

ou... porque, enfim...

Entrevistador Na sua atuação, você tem observado outros casos onde o STF tem

determinado a suspensão, ou a anulação do decreto de desapropriação, e o

processo de assentamento já tenha sido iniciado?

PTG Esse caso Timboré é o único que eu tenho conhecimento, mesmo esse do

Paraná, que eu havia citado antes, eu não... nem imaginava, talvez até não

consiga entender que o Supremo possa ter determinado o... Porque é

principio do direito, isso... os professores de Direito Agrário – que é uma

matéria que aliás eu não fiz, né, tive que fazer na prática, aqui, a

Especialização em Direito Agrário – dizem que, enfim, a desapropriação, ela

não é, ela não é reversível. Isso é principio de direito administrativo, de forma

geral. Nenhuma desapropriação é reversível. Você não vai, porque não era o

caso, por exemplo, de interesse público, mandar desfazer um viaduto

construído num imóvel particular, pra devolver ele pro proprietário. E não é

porque os Sem-Terra estejam lá com... com bens mais facilmente, bens ou

coisas, mais facilmente removíveis, como uma casa, ou uma plantação, que

vá mudar esse princípio. Enfim, você não desmancha esse viaduto, você não

desmancha uma escola construída num terreno particular, ainda que depois

haja ou comprove-se alguma nulidade ou erro no... no procedimento

desapropriatório, mesmo porque é o interesse público que deve prevalecer

sobre o particular. Né? E isso já é, de novo, voltamos à questão ideológica ou

política envolvida na questão. E, no caso da Reforma Agrária isso fica... se

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exponencializa. Fica uma coisa radicalíssima. Mesmo porque entra a

facilidade de, enfim, tirar todo mundo de lá, passar uma máquina e voltar

àquilo, às pessoas, o que não seria possível, ou tão fácil, no caso de uma

escola, ou um viaduto, ou coisa que o valha.

Entrevistador Você tem mais alguma consideração a fazer?

PTG Eu gostaria só de fazer uma... uma consideração, aqui... que tem sido, tem se

batido muito, é uma questão também técnica, desapropriatória. Tem se batido

muito na questão do uso das Áreas de Preservação Permanentes, e daquela

que seria da Reserva Florestal do Imóvel, e se esse uso o INCRA pode fazer,

ou considerar as áreas ocupadas, ou não, pra calcular o... os índices que

informam a produtividade do imóvel. Essa discussão, inclusive, eu vi, há

alguns dias, num... pela transmissão de TV por assinatura, no plenário do

Supremo. E... não se questionou, em nenhum momento – porque a

argumentação, de forma geral, e isso não é mais dos advogados, ou de um ou

outro, é uma argumentação geral, generalizada, de que você não pode

considerar o uso, com pastagens, com atividades agrícolas, feito em áreas de

preservação, ou na que seria da reserva florestal. E, portanto, se não pode

considerar, essas áreas têm que ser excluídas. Mesmo que, portanto, não

esteja efetivamente preservada, ou tenha efetivamente uma floresta, uma

vegetação que se assemelhe, ou cumpra suas funções. Ora, mas essa

discussão, pelo menos no grau de eficiência da exploração, não influi em

nada, porque se... não tem sentido você tirar essa área, sem tirar o produto da

exploração da área! E isso não tem sido visto, de forma geral. Os técnicos, e

todos os que defendem essa tese, nada falam sobre o produto da exploração.

Então, você tira a área de pastagem que está em APP, mas não tira o gado

que esta sobre ela. Proporcionalmente falando, já que o gado não é

localizado. Mas algum gado está lá! Não está? E pra onde vai esse gado? Vai

pra área restante. Com isso, o que que ele faz? Adensa a ocupação da área

restante? Com isso, se obtém a produtividade! Pelo GEE, Grau de Eficiência

da Exploração. Esse tem sido, de forma geral, quando o índice... o índice do

GEE é muito próximo de 100% - próximo assim, não está muito abaixo dele,

melhor dizendo, uns 70, 80%, né – esse tem sido o expediente utilizado, aqui

em Araçatuba, e de forma geral, pelo que eu tenho informação, no país todo,

pelos peritos. Que são engenheiros agrônomos. E que repercutem essa tese,

só que esquecem de retirar, quer dizer, não fazem uma coisa minimamente

coerente, na minha modesta opinião. Ou, pelo menos, não deixam isso claro.

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Jamais deixam isso claro. Em todas as impugnações que eu fiz – estava

analisando uma delas agora – o perito não fala disso, não toca no assunto!

Aonde foi parar o gado que estava nas APPs? Que você excluiu! Foi parar no

resto da propriedade? Você tirou, então! Você tirou a APP, tira o gado

também! Você tirou o gado que estava na reserva florestal, ou deveria... na

área que seria da reserva florestal, e portanto na reserva... Você tirou essa

área, você tirou essa área, então tire o gado que está nela! Tire a produção

agrícola, a produção de algodão, a produção de milho... Tirou? Tirou a área de

milho, então tire a produção! Você não vai jogar a produção pra lá, senão você

vai colocar uma produção fictícia, vira um laudo fictício! A verdade, é que nós

temos também uma outra mudança, que eu não sei se tem que ser legislativa,

ou... o que seja, mas seria conveniente constar na lei, esse ponto, para

esclarecer em definitivo essa questão. Né? Porque esse é o grande... Os

peritos, pelo menos aqui em Araçatuba, eles já não fazem mais perícia de

fato, eles fazem perícia e interpretação de lei! Eles estão interpretando a lei,

falam “olha, eu vou excluir”, “eu vou colocar”, “o INCRA errou nesse seu

método”, “errou naquele método”, e, com isso, “ufa!”, a discussão de fato se

perde, né? Você já não tá mais discutindo mais fato nenhum, você tá fazendo

uma nova... uma nova adequação do fato, conforme a norma, e essa é uma

questão pro juiz fazer... Quer dizer, se o perito entende isso, ele deveria deixar

isso claro... fazendo no caso, dois cálculos de produtividade, como eu tenho

me batido, e jamais obtive resposta. Né? Mas eles não fazem dois cálculos de

produtividade, uma conforme o índice correto, o outro... e deixando isso claro,

porque daí, onde foi parar a produção, o produto de exploração de áreas

ambientalmente protegidas, ou que deveriam ser ambientalmente protegidas...

E, com isso, também, chegam tranqüilamente, quando, como eu disse,

quando o GEE já é um pouco alto, embora não atinja o mínimo, falta alguma

pouca coisa, eles conseguem. Porque as Áreas de Preservação Permanente

em geral são bem grandes. É 50 metros de um... ou 30 metros, melhor

dizendo, de um rio, né, 50 metros de nascente... isso, nascente tem por todo

lado, vários imóveis, então você consegue muita coisa, e com isso fica fácil.

De novo, é uma posição quase que... quase que pol... Aliás, muitas vezes

política, mesmo. O INCRA denunciou a atuação política de peritos, aqui em

Araçatuba... da qual não teve praticamente resposta. E nem teria como,

porque a atuação é claramente política. Ele mesmo, homem, pessoa de

confiança do juiz, né, externando opiniões políticas em laudos onde deveria

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ser tão imparcial quanto o juiz. É evidente que esses laudos não têm

condições de aproveitamento. Agora, se, de novo, - e a questão de política

pública – de alguma forma, teria que regrar a produção da prova pericial.

Porque da forma como está hoje, pelo menos essa é a informação que me

passaram, pelo menos no INCRA, o que ocorre aqui não é exclusivo daqui. É

comum no país todo! De forma geral! Se isso é verdade, nós temos então uma

outra questão, que é... a parte da... partir da realização sub-reptícia... da

questão agrária nos laudos técnicos que são apresentados ao juiz, para a

apreciação do juiz. E aí, de novo, se ele tem muita coisa pra decidir, se ele já

não gosta da questão, já não simpatiza... né, e o MST, também... (risos) nesse

ponto, acaba muitas vezes não colaborando - estou falando daquilo que se

divulga pela mídia do que ele faz, e eu não sei efetivamente o que ele faz de

concreto. Né? Uma coisa é a noticia do fato, outra coisa é o fato. Isso tá isso

bem claro pra mim, mesmo porque é a minha própria experiência pessoal,

aqui. Mas o juiz acaba refletindo isso, e muitas vezes acaba... colhendo esses

laudos, né, e, involuntariamente, colocando neles, como se fossem...

colocando em sentença questões que parecem ser técnicas, e na verdade são

políticas. Né? Além de incongruentes, tecnicamente falando, como eu tentei

agora, em poucas palavras, demonstrar.

Entrevistador A Reforma Agrária uma política pública capaz de alterar a estrutura agrária

brasileira?

PTG Ameniza. Mas realizar ele não vai realizar não. Ou ele muda a sua política

econômica, que está na Constituição, e é, de forma geral tida... mas pra isso,

é preciso estender o questionamento que a gente faz em direito, migrar para

as áreas econômicas. É preciso, enfim, que as faculdades de economia se

questionem. Quando... se... se... por exemplo, pegando um caso resistente,

que foi a questão da criminalidade em favelas no Rido de Janeiro. Filmada,

crianças, no tráfico, e tudo mais. Essa questão deveria ser posta, não ao

Ministro da Justiça, na minha opinião, proposta não apenas a ele, pra ele

responder, mas também pra área econômica. Como é que você vai apartar –

de novo a segmentação do conhecimento – como é que você vai apartar a

política econômica, monetária, fiscal, de... disso? Da violência? Ou não há

uma relação entre elas? Não é? Se não há, eu fico quieto. Mas, se essa

definição de que a questão da violência ou da segurança pública é uma área

especifica, e não diz nada à respeito, com os demais ministérios, e tudo mais,

já é uma posição ideológica. Por si mesma. Agora, o questionamento que se

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faz, e, de forma geral, não é aceito na universidade... é... Que se faz, não, que

não se faz, né, melhor dizendo. E por isso mesmo não se aceita. É a questão

da discussão econômica de forma geral, aliás, não só no Brasil. Nesse ponto,

o Brasil não reflete senão o que ocorre no mundo todo, de forma geral. Já

estrapolamos pro mundo todo. Mas a universidade deveria tomar... ficar

apenas na posição “eu sou de direita ou de esquerda”. Porque eu acho que as

duas, já estão vencidas, essas posições. Tanto a esquerda não realizou a sua

função, como a direita também não realiza. E aonde vai parar essa situação?

Em guerra civil? Em guerra social? Nós temos um Estado bem longe daquilo

que ele precisa ser, não só no Brasil como no mundo todo, e a universidade

deveria ter essa... essa... essa... grandeza de aceitar todos os pontos.

Particularmente, eu estou aqui falando de um caso concreto que envolve a

própria Fundação Getúlio Vargas, que em determinado, alguns anos atrás...

pelo menos, pelo que eu fiquei, tive a informação, ela tirou os professores

mais bem avaliados do curso, por uma questão formalmente dita de excesso.

Que é o professor Celso Buarque Bueno. Que, obviamente, não aparece e

nunca vai aparecer na mídia. Esse professor tem um livro, tinha todas as suas

aulas, tem uma experiência enorme, foi consultor da ONU, e tudo mais, tinha

uma visão diferente, pelo menos, de economia, do país e do mundo, de forma

geral, e foi, vamos dizer assim, defenestrado da fundação, por causa, ao que

parece, das suas opiniões radicais contra o governo de então. E que, pelo

jeito, continua. Eram antes, continuam, como sempre foram. Mas esse tipo de

obliteração da discussão não serve aos fins científicos a que a universidade

deve ser propor. E a Fundação Getulio Vargas tem esse compromisso,

inclusive está classificada até como fundação.

Entrevistador Quando o INCRA manifesta interesses na ação possessória, e mesmo quando

ele não manifesta, alguns advogados dos movimentos sociais, acabam

requerendo ao juiz estadual que seja oficiado o INCRA, pra que ele manifeste

interesse, naquela possessória. E, manifestando interesse, a competência

seria da Justiça Federal. Qual a sua opinião sobre esse assunto?

PTG Eu acho que o Ministério Público deve se manifestar nessas ações, sim. Aliás,

é muito importante – aliás, eu acho, não, isso está em lei! Eu não entendo

porque que o... se foi o caso, se não estiver havendo uma representação de

Ministério Público efetiva, nesses casos, na Justiça Estadual, precisaria

analisar os fundamentos. Mas, em princípio, está no código de processo civil.

Com a alteração de uma lei que acho que já tem aí acho que 10, 12 anos. Ou

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menos. Portanto, é obrigatória. Agora, eu entendo o seguinte: que a definição

de justiça competente não deve ficar ao alvedrio do interesse do INCRA. Ou

seja, se ele interessa num caso ou em outro... - na verdade, o INCRA tem que

dizer que tem interesse... tem que ter um critério objetivo de manifestar o

interesse. E, nesse caso, adotando-se esse princípio, a competência

conhecida possessória, passa a independer da manifestação formal do

INCRA, de ter interesse nessa ou naquela. Isso não pode ser uma coisa ação

ad hoc, para o caso “X” e não para o caso “Y”. Se as duas são possessórias, e

envolvem sem-terras, entre aspas, que estão ali por causa da futura

desapropriação do imóvel para fins de Reforma Agrária. Com ou sem ação

desapropriatória ajuizada na Justiça Federal. Então, a nossa... a minha

proposta, aqui em Araçatuba, que ainda não foi julgada, está pendente de

julgamento, e até foi proposta como... se for o caso de chegar ao Superior

Tribunal de Justiça, é que toda a ação possessória em que o conflito derive,

ou tenha a ver, com a expectativa de o INCRA ser emitido na posse do imóvel,

por causa da desapropriação - ou seja, que a possibilidade da sua emissão na

posse, com a ação desapropriatória com o ajuizamento da ação

desapropriatória, motive a concentração de acampamentos de sem-terras nas

proximidades do imóvel, ou até a invasão do imóvel, pra esse fim, que eles

acreditem que sancione isso, (ou não, eventualmente), que essa ação venha

para Justiça Federal. Porque o artigo 18 da lei complementar de 76 fala que

toda a ação que veste, né, envolva o imóvel desapropriando, deve ser

encaminhada ou deve ser distribuída à vara que for, a que vier a ser

distribuída, ou estiver a ação desapropriatória, e essa lei não está distinguida

entre as ações possessórias e as reivindicatórias, ou que envolvam só

questionamento de direito de propriedade. Mas, ou por isso mesmo, é que

eles deveriam, então, conhecer de todas essas causas. Até porque, enfim, se

o juiz federal não emite o INCRA na posse, e, por isso, gera um conflito, tanto

é que gerou a emissão na posse, é ele que deveria solucionar. Se ele – aliás,

ele emite ou não, né. Às vezes ele emite, e o tribunal reforma, ou ele não

emite, ou, até, não há ação desapropriatória ainda, e, portanto, não há que se

falar em decisão, emitindo ou não. Mas, a concentração existe em vista da

expectativa de ser ajuizada a ação desapropriatória. Então, nesse caso, deve

ir pra Federal. Além do que, e, complementando a resposta anterior, sobre a

questão das Varas Agrárias, e da Justiça Agrária, eu acho que a Justiça

Agrária, como eu disse, em princípio, ela mereceria ser melhor discutida - eu,

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na minha opinião, por enquanto, tenho a opinião de que a justiça, de forma

geral, deveriam ser relativizadas bastante a questão da competência,

transformadas todas em competência relativa... né, ou seja, que não se anula;

diminuir ao máximo, se for possível, até, eventualmente, fazer uma fusão

maior entre Justiça Federal e a Estadual, pra que não haja tanta discussão de

competência, e perda de tempo com isso; e, no mais, que... seja previsto, que,

na lei, em lei, que as varas agrárias, ou, eventualmente, o juiz agrário, ou a

justiça agrária, que... a... que a compet... que venha a discutir uma causa, que

essa vara não se situe no foro da situação do imóvel. Em exceção absoluta e

completa ao código de processo civil, que prevê que de maneira geral o foro

da situação do imóvel é o competente para discutir as questões a ele relativas.

Mas, na questão agrária, isso não convém. Convém, ao contrário, que o juiz

fique longe do foro da situação do imóvel, haja vista, aí, a passionalidade, a

magnitude dos interesses em jogo. E isso, eu acho que resolveria um dos

grandes argumentos, inclusive, que eu ouvi de alguns... representantes, até,

de movimentos de sem-terra, que dizem que o juiz se envolve, e

particularmente os juizes estaduais, se envolvem muito com... com a... com as

partes, né, no caso, com os produtores, ou, enfim, teriam essa... eu não sei

até que ponto eles confundem, talvez, um conhecimento, né, uma... uma

amizade, que pode decorrer de freqüentar os mesmos lugares, com

favorecimento. Vai daí uma relação. Cada um tem a sua conclusão, né, a

respeito dos fatos. Eu, particularmente, até conheço um ou outro produtor,

proprietário rural da região, que, aliás, antecipo, não está envolvido em

nenhum caso de Reforma Agrária, mas, mesmo que estiver, ou venha a estar,

o meu parecer vai ser totalmente isento. Mesmo porque, se não for isento, e

eu perceber que não vai ser, por causa da minha amizade com ele, eu vou

declinar minha suspensão. Que é o que o juiz deveria fazer, e parece que o

movimento entende que não. De qualquer maneira, não custa prevenir, né. E

eu acho, tenho a impressão, que a vara de Reforma Agrária que faça essa...

essa alteração, essa inversão de competências, né, “eu julgo as suas, os seus

casos, você julga os meus, na minha área”, na questão agrária, já seria um...

É claro que isso, eu, inclusive, me reservo o direito de melhor pensar sobre o

assunto, né, mas é uma proposta em discussão. Inclusive a universidade, e a

Fundação Getulio Vargas em particular, o curso de direito dela, pra ver isso

não resolveria, pelo menos os pontos que tem sido opostos pelos movimentos

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dos Sem-terra, à questão da suspensão, da isenção dos juizes de julgar esses

casos.

Entrevistador Muito obrigado.

ENTREVISTA COM A PROCURADORA DO INCRA

MARIA CECÍLIA PRADEIRO DE ALMEIDA 29 de março de 2006 – São Paulo/SP

E Gostaria que a senhora descresse o papel do INCRA dentro do Estado.

MC O INCRA é fruto da união de dois institutos, que é o IBRA – Instituto Brasileiro de

Reforma Agrária – e o INDA – Instituto de Desenvolvimento Agrário, que foram

criados no governo do Marechal Castelo Branco, junto com a aprovação do

Estatuto da Terra. Então, já na mensagem 33, o Legislador... aliás, o Poder

Executivo, ao falar sobre a necessidade de uma legislação agrária, que viesse

abarcar toda a vida da Zona Rural, e não apenas uma lei de Reforma Agrária -

até mesmo porque nós éramos signatários da Carta de Punta Del Este, daquele

programa “Aliados Para o Progresso” - essa legislação é criada, essa legislação,

uma vez promulgada, ela deve ter os órgãos que venham a fazer, exatamente,

essa execução de uma política agrária, vocacional para o Brasil. Portanto, foram

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criados, tanto o IBRA, como o INDA, em 1970, pela lei 1.110, eles se

transformaram em INCRA, unificando esses dois institutos, e outros institutos,

que cuidavam, também, paralelamente de... Institutos Federais que cuidavam de

Política Fundiária, de forma paralela. O papel do INCRA, hoje - que já tentaram

extinguir, e ele foi revigorado várias vezes - é o papel, efetivo, de fazer uma

política fundiária para o Brasil. Essa política fundiária envolve diversos

segmentos. Então eu tenho, que a gente pode chamar, lato sensu, de

Regularização Fundiária, onde envolve colonização, legitimação de posse,

discriminatórias de toda ordem, e tenho, entre outras opções, a opção da

Reforma Agrária, onde houver disfunção fundiária. Então, onde há indefinição

fundiária, eu falo Regularização Fundiária lato sensu, que envolve esses projetos

que eu já disse, legitimação de posse, regularização de propriedade,

discriminatória... havia “usocapião” em terras devolutas, que lamentavelmente a

Constituição bloqueou, isso ainda é discutível. E, há outro... O outro segmento

era a utilização das propriedades que descumpram a função social, para fins de

Reforma Agrária, e daí, então, essa outra política, que é a política de Reforma

Agrária. Então compete ao INCRA fazer toda essa política de desenvolvimento

da Zona Rural. Tanto a desapropriação, como a colonização, elas não morrem

em si. Não é o ato, apenas, de repartir terra, de dividir, ou colocar as pessoas,

assentá-las, ali, que é... o papel do INCRA não morre aí. Muito pelo contrário, eu

só posso falar de Reforma Agrária lato sensu, só posso falar Regularização

Fundiária, na medida em que eu trago este assentado ao processo produtivo

nacional. Então, nós temos um papel complementar, de dar condições pro

assentamento viver de maneira mais... com maior dignidade, desenvolver e

integrar esse assentado, torná-lo independente ao processo produtivo. Esse é o

papel dele. Nas últimas... nos últimos governos, esse papel foi sendo, ao meu

ver, reduzido drasticamente. Então, já no final da década de 80, se não me

engano, o INCRA perdeu a parte de Extensionismo Rural, Segmento de

Cooperativismo, praticamente, deixou de existir dentro do INCRA, o próprio

Estado deixou de ter a fiscalização e controle das cooperativas, que não vou me

dedicar a esse assunto, mas o INCRA trazia, trazia junto com o assentamento,

ele podia trazer viabilização dessas propriedades familiares numa empresa

maior, que seria através de uma cooperativa, e aí as outras formas societárias.

Então, ele tem sido reduzido, lamentavelmente, como se nós não tivéssemos um

problema agrícola no país, ou um problema agrário no país. Então é esta... e

neste governo, o último, quer me parecer que o INCRA voltou a ter uma maior

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atuação, houve o remanejamento da própria máquina, máquina que foi sendo

destruída, nesses últimos anos. Nos últimos governos, o INCRA foi sendo

desmontado, literalmente. No Estado de São Paulo, que eu posso falar com

tranqüilidade, nós tínhamos mais de 200 funcionários, com uma equipe formada,

por exemplo, uma Procuradoria com mestres, doutores e livre-docentes,

catedráticos, da USP e outras universidades, e isso foi sendo reduzido...

economistas, enfim: todo o INCRA, que tinha, em São Paulo, mais de 200

funcionários, hoje não tem 50. Então, foi um desmanche da máquina em todos os

sentidos: nível de pessoal, nível de treinamento de pessoal, nível de alocação de

recursos, enfim, houve um desmanche da máquina. Acrescido ao desmanche do

próprio ensino de Direito Agrário, dentro... pelo menos no Estado de São Paulo, e

de uma política que vem minando os cursos de Direito Agrário dentro das

Faculdades. Como se isso não fosse importante pra Zona Urbana. Você não

pode falar de desenvolvimento rural, e, ou urbano de uma maneira desassociada.

Só existe uma coisa quando existe outra.

E Como definir o problema agrário? Como conceituar o problema agrário brasileiro?

Que problema é esse?

MC A questão agrária brasileira, é questão de, primeiro lugar, de indefinição

fundiária, por conta da formação territorial do Brasil. Isso, pra mim, é passível. Se

a gente voltar na história do Brasil, sob o ponto de vista legal, nós vamos ver que

desde a sua formação, ela tem graves problemas. Que vêm historicamente.

Então, nós temos a primeira fase de formação das sesmarias, aquelas

capitanias, aquelas sesmarias que eram dadas, sem que houvesse a efetiva, até

mesmo pela falta de recursos técnicos, a efetiva mensuração - onde é que ficava

a sua sesmaria, onde é que ficava a minha. Então aí você começa a falar em

Superposição de Títulos – usando a terminologia moderna. Aí entra numa

segunda fase, que começa em 1822, um pouco antes da Independência – 17 de

julho de 1822 – onde você tem o que a gente chama de fase Extra-Legal ou

Regime das Posses. Justamente, ainda, o Príncipe Pedro de Alcântara, ele

suspende as concessões de sesmarias, ele determina que seja criada uma

Assembléia para a constituição de uma Lei de Terras para o Brasil, e faz com

que um cidadão, no interior de Minas Gerais, que alegava não ser sesmeiro,

alegava que... – a Coroa também não sabia se aquilo era de alguém, ou se era

Sesmaria de alguém, ou era da Coroa – ele mantenha, se mantém esse cidadão,

Manoel Joaquim dos Reis, ou um nome assemelhado, que permaneça nesse

imóvel para uma futura legitimação de posse - usando terminologia moderna, é

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claro. Isso faz com que esse período, que vai de 1822 a 1850, haja profundo

descaso aos títulos, então concedidos... Primeiro da violência no campo, que se

alguém, que tem posse, ainda que não seja sesmeiro, vai ter legitimidade, vai ter

domínio, “eu também quero”. Então começou uma briga, uma violência no campo

enorme. E a criação das mais fantásticas provas, que na verdade não eram

provas, mas para a concepção da prova de que “eu sou posseiro, e que eu serei

legitimidado”. Então eu tenho: violência no campo, descaso aos títulos e

ausência de lei. Nesse período que vai de 1822 até 18 de setembro de 1850,

quando da Lei Imperial de Terras. Aí eu tenho o terceiro problema. O terceiro

problema é o Registro do Vigário. Que todo aquele, pela lei e pelo seu

regulamento, todo aquele que tinha pretensões, que viesse trazer suas

pretensões para uma grande auditoria - a que nós chamamos de Ação

Discriminatória. Então, cada um vinha, e fazia a alegação para o vigário, que era

a única criatura que tava em todo território nacional, que fazia o papel do Estado,

nesse ponto, ele chegava ao vigário e declarava suas pretensões: “eu tenho a

posse de não sei quantos hectares, há não sei quantos anos”. Verdade ou

mentira, isso era irrelevante, porque o vigário não podia contestar. Ele podia

dizer: “Olha, não é bem assim. Eu sei que o senhor não está aqui há tanto

tempo...”. Mas ele dizia: “Não, eu to sim, o senhor aponte aí a minha pretensão”.

E o vigário fazia essa anotação. De noite o cidadão, eu digo assim, o cidadão

confessava o pecado, dizia que tinha mentido, o padre absolvia, mas o registro

tava feito. Então, a indefinição das nossas titulações, na formação territorial do

Brasil, são fantásticas, são pavorosas. Hoje eu trabalho com títulos, que se você

fizer uma cadeia nominal de 50 anos... 20 anos, ou 50 anos, eles não têm base.

Então eu tenho essa indefinição fundiária, eu não sei quem é dono. Partindo de

um pressuposto único, que o Brasil é do Reino Português - tava na posse, ele

tomou posse de terras conquistadas, é espolio dele - e isso se transforma, na

República, nas Terras Devolutas, que passam a ser dos Estados e dos

Municípios, ressalvadas aquelas que são da União. E aí você vê que a ressalva é

muito maior que a regra geral. Então você tem todo este problema pra falar em

titulação. Depois, uma ausência – eu não sei se por uma questão de interesse da

sociedade, ou de grupos – de não dar efetividade à legislação que vem, só em

1976, que é a Lei de Registros Públicos. Eu passo pelo período de Código Civil,

onde você vai encontrar milhares de títulos, de regularizações, etc, etc, etc.

Mas... mas... todas elas usando metragens que são cômicas! “A profundidade do

imóvel é o trote de um cavalo de dois dias, por uma extensão adentro”, “até onde

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a minha vista avista”, “a sombra da jaqueira”, e aí as medidas são as mais

estapafúrdias. Quando a gente encontra, naquelas medidas, um acidente

geográfico, um rio, um costão, uma montanha, a gente dá graças a Deus! Que

você pode trazer, recuperar essa planta pros dias atuais. Então, ainda, entre

1850 e o Código Civil, eu tenho duas leis, que é a Lei do Registro Geral de

Hipotecas, que dá uma certa... certeza, e depois o Registro Torrens, que também

não foi utilizado no Brasil, jogando-se o custo. Porque o Registro Torrens, na

verdade, era a homologação judicial das medidas de confrontações. É um

registro que veio de Torrens – Torrens é um cidadão viveu na Austrália, ele cria

esse registro pra regularizar a situação fundiária lá, e ele é rapidamente adotado,

em 1890, pelo Brasil. E que hoje tá em vigor, de acordo com a Lei 6.015, lá nos

seus artigos 277 e seguintes. Então, eu tenho esse quadro de indefinição

fundiária. Quando entra a Lei 6.015, em vigor em 73 - e ela é publicada meio na

marra, no dia 31 de dezembro, e ela só entra em vigor em 76 - ela vai tentar

utilizar o sistema alemão para fazer o cadastro imobiliário. Porque nós não temos

o cadastro imobiliário. Nossos títulos são de acordo com os negócios jurídicos

feitos. Então, “Dona Maricotinha comprou de seu Pedrinho, em tal época, pagou

por tanto”. Qual é a descrição do imóvel? “Ah, uma casa onde se vê duas janelas

e uma porta”. “Um lote de terras que tem de dimensão um trote de cavalo circular

por dois dias”. Então, coisas mais estranhas. Esta lei, por conta do cadastro,

exigia, paulatinamente, os registros antigos feitos naqueles livros, eles fossem

sendo, na medida em que fosse havendo a modificação, qualquer, do registro,

eles fossem se transformando em matrícula. Onde você começa com o... com a

descrição do imóvel. E depois os negócios jurídicos vão sendo registrados, e/ou

averbados, de acordo com o artigo 167, 168 dessa lei. O que que aconteceu?

Então, quando você modificava o registro velho, vamos chamar assim, para a

matrícula imobiliária criada no sistema cadastral, então você vem fazer a

atualização do imóvel, a princípio da especificidade. Da especialidade, perdão.

Então, o que que eu vou fazer? Eu vou descrever, de maneira precisa, de

maneira que no final, o que tenha no papel, tenha no chão, o que tenha no chão,

tenha no papel. Só que daí vai, “vai ser caro”, “não tenho agrônomos suficientes”,

“eu vou resolver muito o problema fundiário”, “que não é conveniente”... Porque

enquanto tem indefinição fundiária, todo mundo é dono de qualquer coisa, e faz o

que quer, “eu manipulo máfia”, e assim por diante. Então, há uma lei que diz que

quando não há alteração do perímetro, você pode manter a descrição como ela

estava. Então, eu continuo tendo uma casa onde se vê duas janelas e uma porta,

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e um imóvel que tem de diâmetro, de perímetro um trote de cavalo, em círculo,

por dois dias. E daí pra frente. O que nós temos hoje? Vamos tentar fazer de

novo o georeferenciamento. O georeferenciamento deve resolver? Eu espero que

sim. Só que: “olha, não tem dinheiro, não tem recurso, não tem gente...”. Será

que ele vai resolver nosso problema? Vai. Então, “vamos adiar”. E ele já foi

adiado. O prazo fatal, que era esse ano, para determinar, determinando...

determinadas dimensões, o prazo fatal é agora e vai procrastinando no tempo.

Só que, já, o prazo fatal deste ano, já foi prorrogado. Tá? E mais, e aí, todo

mundo quer ganhar dinheiro. Então, eu já tenho uma série, eu já recebi gente, na

minha procuradoria, que vieram integrar o imóvel pro INCRA. Porque, “eu não

tenho dinheiro pra pagar, Dona”. “Mas, meu senhor, isso não é caro”. Fazendo

uma análise, vamos imaginar, nesse caso, que eu passei a mão no telefone, e

liguei pro meu agrônomo, e disse: “me diz uma coisa, um imóvel dessa

dimensão, quanto seria pra fazer um georeferenciamento?”. Ele disse: “olha,

doutora, uns 5 mil reais”. Eles tavam cobrando 100 mil reais pro pessoal. Então,

sabe como é que é? Então, já virou um caos danado. Vai resolver muito

problema? Vai. Este é um fato pra formação territorial.

Um outro fato pra nossa questão agrária: a falta de uma política agrícola

condizente. Então, muitas propriedades são grandes extensões de terras, isso é

inegável, que estão... não estão cumprindo a sua função social. Têm grande

concentração fundiária. Se elas cumprissem a sua função social, elas gerariam

empregos, gerariam arrendamento, gerariam um série de fatores que inibiriam a

pressão social que você tem. Mas elas não cumprem a função social por “N”

motivos. Inclusive, uma falta de política agrícola por anos e anos e anos e anos

no país. Bom, então, o que que eu tenho agora? Tenho uma pressão social. Eu

não posso mais dizer que o filho do agricultor gaúcho, saiu em busca de terra

para si, por causa da micro propriedade, ou do minifúndio, lá no Rio Grande do

Sul. Esse era o meu primeiro perfil de INCRA. Quem era o meu Sem-Terra? Era

o filho do produtor, era o produtor, cuja propriedade não tinha dimensões, ou ele

não tinha mais terra. Hoje o meu... a maioria da minha clientela, nos termos de

Movimento Sem-Terra, e outros movimentos, é uma última opção de trabalho.

Com dignidade. Então, eu tenho um movimento migratório às avessas. Eu tenho

muita gente na Zona Rural, mas eu tenho muita gente que é filho, ou neto, ou

bisneto, daquele que migrou pra Zona Urbana. Que foi o metalúrgico, ou o filho

foi contador, ou neto é um desempregado. E a opção que ele tem é voltar pra

Zona Rural. Porque é o maior programa de capacitação humana, ainda é a

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Reforma Agrária no Brasil. Ele é uma grande solução pra vida dele. Então você

tem problemas de ordem social, e problemas de ordem espacial, física, que é o

problema fundiário em si. Questão da falta, total, de Regularização dos nossos

imóveis, por aí.

E Você descreveu muito bem essa ausência de um controle do Estado, no seu

território. Eu queria que você me falasse um pouco sobre, ainda dentro deste

contexto do problema agrário brasileiro, dos reflexos da estrutura agrária para o

meio urbano. E daí, numa terceira etapa, nós entraríamos aí nessa questão dos

conflitos fundiários, hoje, e do aparecimento dos Sem-Terra, e dos movimentos

sociais.

E Quais os reflexos da questão agrária na área urbana?

MC Se você olhar pra qualquer lugar, que a gente se vire dentro da Zona Urbana,

não há nada aqui que não venha da Zona Rural. Então, da roupa que a gente

usa, que vem do bicho da seda, da calça jeans, que você tem o algodão do

índigo, do sapato que tem o solado feito de borracha artificial e borracha natural -

não há nada, na Zona Rural, que não tenha reflexo na Zona Urbana. A Zona

Urbana não vive sem a Zona Rural. Eu posso ter uma população,

majoritariamente urbana hoje, mas ela sobrevive graças à “Mimosa” que tá lá no

campo. Eu digo pros meus alunos: “o leite não dá na caixinha, o chopp não dá no

barril, né, e frango não dá na gandula do supermercado”! Eu só tenho uma

socialidade urbana boa, produtora, porque eu tenho uma Zona Rural que a

sustenta. Portanto, qualquer desequilíbrio dessa Zona Rural, gera efeitos

devastadores pra Zona Urbana. O êxodo rural de décadas passadas, é fruto

disso. Se você der um pulo, por exemplo, vamos centrar na França, que tá com

sérios problemas hoje: 3% da população francesa faz umas das melhores

agriculturas do mundo. Mas quando aquele caboclo francês diz assim: “Ah, vou

subir o preço não sei do quê”, e ele foi nos carneiros, na avenida Champs

Elisées, a França pára. Por quê? Porque ele precisa do cara do campo, e ele não

quer o cara da cidade. Enquanto o cara está na França, enquanto o cidadão está

no campo, eles dá fonte de subsistência pro cidadão da Zona Urbana. E se esse

cidadão da Zona Rural vier pra Zona Urbana, ele vai ter que dividir o que ele tem

de escola, de saúde pública, de ensino, de habitação, de transporte, etc, com o

cidadão que tá na Zona Rural. Então, você quando fala em grandes cidades,

enormes como São Paulo, você tá falando de um inchaço populacional. Isso não

é cidade desenvolvida. Isso daqui é um caos! Você pega a Zona Leste inteira,

90% deles são de origem migratória! Porque perderam as suas condições na

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Zona Rural. As duas senhoras que trabalham na casa da minha mãe, com 50, 50

e poucos anos, o pai é um sitiante, razoavelmente com uma boa extensão de

terra, no interior da Bahia! Mas ele não tem a mínima... Sabe o que a gente faz?

A gente manda comida pra ele! Porque ele não tem como plantar! Mas como que

ele não tem como plantar? Porque não tem condições. Então falta, realmente,

política... Falta não. No papel, elas tão aí. Falta executoriedade, efetividade,

políticas públicas para a agricultura e para redimensionamento de espaços

físicos ociosos. E isso é um fato importante.

Outro fato importante, da falta de um controle maior de Estado, é que a gente

reduziu tanto a máquina o Estado, na virada do governo militar pro governo civil,

a gente tentou reduzir tanto - e o fenômeno da privatizações, etc. – que o Estado

se encolheu tanto, que nós não temos mais Estado. No redimensionamento do

Estado totalitário, nós perdemos o próprio Estado. Então, hoje, isso é uma

verdade. Hoje eu tenho situações, e que por questões de uma “ata” de uma

democracia, que não é a verdadeira democracia que se almeja, mas pela

alegação da democracia, o Estado não mais consegue interferir e agir como

deveria agir. Você que ver um problema fatal, que eu tenho? Existe uma Medida

Provisória... Não, mentira, desculpa. Não é Medida Provisória. Existe uma... um

parecer da Advocacia Geral da União, aprovado pelo presidente, então, o

Fernando Henrique, esse parecer foi publicado no Diário Oficial e tem força de

inibir a atuação do Poder Executivo. Quem? O INCRA. A lei está revogada? Não.

A lei está em vigor. O INCRA pode atuar fiscalizando a questão de imóvel rural

por pessoa jurídica estrangeira? Não. Então, meu amigo, se você é um

estrangeiro pessoa física, que comprove três hectares aqui em São Paulo, você

tem que passar por toda aquela via crucis, que é o processo administrativo. O

que não é difícil. Que é fácil. Mas você tem que fazer isso, para poder adquirir

esse imóvel rural. Você tem que ter uma prévia autorização do governo federal.

Mas se você é pessoa jurídica, (???) não sei em que buraco nesse mundo, você

compra livremente! E eu não tenho mais controle sobre isso. Por quê? Porque

tem esse parecer que inibe a atuação do INCRA. Tá? Então você hoje tem o

Estado, que de alguma forma, ao meu ver, está afastado disso, que é um bem,

que serve de desenvolvimento nacional, e de estratégia de defesa nacional, que

é o imóvel rural.

E Esse problema agrário tem alguma ligação direta com o desemprego no meio

urbano?

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MC Eu acho que hoje tem. Eu acho que hoje está intimamente ligado. É o êxodo rural

às avessas, é o êxodo urbano. Você, quando observa os questionários

respondidos pelos candidatos, na forma da Lei 8.629, você vê, assim, às vezes

até por ingenuidade, assim: “me diz uma coisa? O senhor... mora na Zona

Rural?”, porque ele tem que ter vocação, tem todo aquele... 8.629, de 93, como o

Estatuto da Terra já determinava anteriormente, você tem uma vocação prevista

em lei, quem é que pode ser assentado. Em primeiro lugar, há uma preferência

do desapropriado no seu próprio lote; depois posseiros, arrendatários e

trabalhadores rurais do imóvel; as mesmas figuras dos imóveis circunvizinhos; os

pequenos proprietários cujo imóvel não atinge a dimensão do ponto de equilíbrio

econômico, etc, etc. E depois, o cara que tá na estrada. Ele é o último, dessa

história. Então quando você começa a fazer os questionários, pra colocar as

pessoas na ordem de preferência que a lei determina, umas das questões mais

comuns é perguntar: “me diz uma coisa, o senhor tá na Zona Rural?”. “Ah, to”. “O

senhor sabe...?”. “Ah, sei”. “O senhor sabe mexer com a enxada? Olha, a vida lá

é difícil. O senhor sabe?”. “Ah, sei, claro que sei”. “Me diz uma coisa, quantos

anos o senhor tem?”. Mesmo que na ficha... “Ah, eu tenho 26 anos”. “Ah, sei. E o

senhor morava aonde?”. “Ah, eu morava em Santo André, em São Bernardo,

Votuporanga, sei lá o quê”. “Ah, sei, sei. E o que o senhor fazia lá?”. “Ah, eu perdi

o emprego, então por isso...” (risos). Ele tem 26 anos. Há 2 tá na... tá na... vamos

dizer, tá na lona, como eles dizem. Mas a grande maioria perdeu a vocação

agrícola, porque eles são filhos ou netos de população urbana. Tem pessoas que

vivem na Zona Rural? Tem muitas. Não to dizendo que não tem. Mas você tem

um contingente enorme de pessoas da Zona Urbana, que vão pra Zona Rural.

Então, daí você tem um outro problema: Eles tem direito? Claro que eles tem

direito. Não to negando direito a eles. Mas o que eu to dizendo é que você tem

que treiná-los com mais eficiência. E aí, nos últimos anos, o Estado – não vou

dizer que abandonou, mas não pode atender aos assentados como a lei

determina aquilo. Então, muitos dos assentamentos, entre aspas, quase que

foram abandonados. E aí, você não fez a Reforma Agrária, certo? Você distribuiu

terra e disse “dana-se”! Aí você não fez Reforma Agrária. Reforma Agrária é você

trazer esse cara... Você só faz – é isso que eu dizia uma vez ao Presidente do

INCRA – “você não vai fazer Reforma Agrária, no governo Lula. Você vai

continuar no processo, e vai deixar outro pra alguém fazer”. Porque é um

processo contínuo!

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E Estamos assistindo, já, há cerca de 10 anos, 15 anos, semanalmente, inclusive,

ou mensalmente, na imprensa, as notícias de conflitos agrários, ocupações de

terra. Qual a razão, ou como é que você vê essa intensificação desses conflitos,

nesses últimos 10 anos, ou 15 anos?

MC Eu acho que é uma... to falando francamente. Tá? Dois pontos: Um, é uma falta

de sensação que pelos meios e legítimos e pacíficos, as coisas se resolvem. Faz

25 anos, 30 anos, que o Movimento Sem-Terra - dando esse nome a todos os

movimentos que existem, e que são vários. Tá? Não só o MST, como o...

E Exato.

MC Há quantos anos esses caras fazem planos, etc? Isso é um fato. Dois: A

manipulação de imagem. Então, eu faço pressão, e assim eu consigo alguma

coisa. É claro, foi assim que eu aprendi. Então, eu faço pressão. E neste quadro

de envolvidos, nesses movimentos, você tem gente... que nós sabemos que

ganha diária pra fazer isso. Tem gente que não tem nada a ver, que é

arregimentado pra fazer, que a gente chama de “soldado do movimento”. Certo?

E esta figura, e neste meio, além de tudo, tem gente infiltrada pra fazer bagunça.

E pra desacreditar o movimento. E o que é pior, nesse último congresso da FAO,

agora, em Porto Alegre, agora em outubro, eu ouvi, de viva voz, de... dizerem –

eu não tenho comprovação disso – de dizerem que infiltrados no movimento,

você tem figuras... é... Eles tão com muito medo, porque dentro do movimento, tá

entrando todo tipo de bandido, quadrilha, tráfico, etc. Então, eles tão muito

assustados. De usar o movimento legítimo, pra este fim. E isso, o que que

acontece? Você vai contar que hoje foi um dia maravilhoso, que não aconteceu

nenhum crime dentro do jornal? Não. O que que vende? A Dona Maricotinha, lá

do fim do mundo, bateu com o martelo na cabeça de alguém. Isso vende

horrores! Então, a dimensão da notícia é enorme, né? E, algumas coisas, e aí vai

muito – é lógico, não pertenço ao movimento, mas eu vejo do lado de fora –

algumas coisas que são radicalizações. Eu não sei se por falta de esperança, por

dogma, ou... fincar pé, eu não sei o que é. São algumas radicalizações. Nós

somos – no meu tempo era assim – o candidato, ele era contra o pecuarista.

“Mas o senhor não come carne?” “Como”. “Então o senhor é contra o pecuarista

por quê? Porque ele é pecuarista, ou porque ele não cumpre a função social?

São duas coisas diferentes!”. E a questão não tinha resposta. Hoje, eu vejo: “Eu

sou contra o agro-business”. Por quê? Porque eu sou contra? Tá, o agro-

business... Nós temos espaço suficiente pra ter agricultura de agro-business, eu

tenho espaço suficiente pra ter agricultura familiar. Eu acho que as duas

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empresas se completam. Uma não pode viver sem a outra. Porque ninguém

pode, em sã consciência, pensar que vai plantar soja, pra exportação, numa

propriedade familiar. Se eles tiverem um monte de propriedades familiares, onde

eles fazem um cultivo ultra-extensivo, uma empresa em cima deles, chamada

Cooperativa, Consórcio, Associação, empresa “X”, seja lá o que for, aí eu posso

dizer que você vai concorrer no mercado. Mas há mais de 10 anos, eles pensam

assim, a propriedade familiar, em si, é uma utopia falida. Se ela não se agrega à

outra, e nisso, nós não temos uma entidade maior, uma empresa, com o nome

que se queira dar, a forma societária que se queira dar, eles não sobrevivem! É

lindo, mas não sobrevivem! Eu vou plantar feijão? Eu tenho sítio! Você acha que

eu vou plantar feijão? Pra comer o feijão que eu planto? É muito mais caro do

que eu cruzar a rua e ir no supermercado! Então, a economia de escala é uma

realidade. Então, essa coisa que é bonita, que é utópica, não tem condição. Você

precisa trabalhar no sentido de quê? Você vai ter atividades produtivas que

exigem - ou seja, eles chamam de agro-business, de uma maneira geral – e

atividade produtivas que exigem a propriedade familiar. Como hortifrutigranjeiros,

etc. Exigem as duas coisas que podem exigir. “Ah, eu sou contra”. Contra por

quê? E aí, quando você pergunta o porquê, a pessoa não dá resposta.

E Voltando ao problema agrário brasileiro. Você acha que uma política pública, de

Estado, seria capaz de resolver e de redimensionar a estrutura agrária brasileira,

que pudesse responder as demandas sociais urbanas e rurais?

MC Eu acho que sim. Só que nós temos uma política pública. O que nós não temos é

a efetivação dela. Política pública, nós temos tudo! Nós não temos uma política,

mas tem definição do que seja política agrícola! Tem definição constitucional do

que seja política agrária! Como nós já temos na lei, temos que cumprir. Tem

coisa pior, do que hoje, ter um projeto que quer revogar o Estatuto da Terra?

Quando o mundo inteiro adotou a figura do módulo rural, criada, essa foi a

grande sacada - a coisa mais importante do Estatuto da Terra é a criação da

figura, do módulo rural. Essa é a grande invenção brasileira. Que foi adotada, a

partir daí, em todo o mundo. Aí, como foi adotada, nós começamos a

descaracterizar o módulo rural e criamos: o Módulo Fiscal, o Módulo de

Exploração Indefinida, - e o Módulo Rural? Esqueça dele! - a Fração Mínima de

Parcelamento... Que é uma contradição! Se o Módulo Rural é a área mínima

necessária para a subsistência de uma família, porque que eu posso reduzir a

quantidades inferiores, que é a Fração Mínima de Parcelamento? “Ué, e daí não

tem condição legal de subsistência”. “Ah, mas tá dentro da Fração, pode”. Ué?

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Dentro da própria lei, você cria contradições. E daí você, pra completar, você tem

projetos de lei que quer acabar com o Módulo Rural. Quando esse projeto só

devia acabar com as outras figuras. Aquilo que foi invenção brasileira, que foi

criação... Então, o que que acontece? O que falta não é lei, não é política. A

política, tá escrito, a política agrícola “é”, tá na constituição – a política agrária “é”,

tá na constituição. Falta efetivação dessas políticas públicas. Como? Pelo

momento, pra começar: uma máquina que funcione. Não uma máquina capenga,

que não funciona. E hoje, tá muito melhor. A partir do governo Collor é que caiu

brutalmente. Já no governo Sarney foi, no mínimo, um desmanche fantástico. A

biblioteca agrária, que eu tinha dentro do INCRA, foi vendida pro jornal velho, por

ordem do senhor Collor de Mello. O que a gente conseguiu “quase que

esconder”, a gente conseguiu esconder. Mas é o mínimo do que tinha lá dentro.

Uma biblioteca tombada pelo patrimônio.

E Então, do ponto de vista legal, da legislação, nós temos instrumentos?

MC Eu acho que nós temos. Temos. Eu tenho uma grande preocupação do Estatuto

de Terra ser revogado, pelo projeto do Chico Graziano. Tá? Que acaba... que

tinha um embate, com ele, na Sociedade Nacional da Agricultura, uma vez, foi

hilário, eu fui convidada pra falar sobre a reforma do Estatuto. E eu fui e sentei.

E o Chico Graziano, inclusive, foi no mesmo avião, sentamos do lado, e eu não

sabia quem era o... (risos) Aí, “não, porque vamos acabar com o Módulo Rural”.

Eu subi na mesa, quase! (Risos) “Como, acabar com o Módulo Rural? Tem que

acabar com o resto! Não tem cabimento acabar”. A legislação é boa, é claro que

algumas coisas precisam ser atualizadas. A forma de... formação desses

assentamentos, de cima pra baixo, que já não se faz mais com aquela... Tira

aquela cooperativa integral de Reforma Agrária. Aquilo pode ser utilizado, mas

desde que haja... que venha do seio do grupo. Então, quando nós tínhamos os

departamentos de Associativismo, de Cooperativismo, que a gente fomentava

essas estruturas. Mas é a lei que faz, e é a lei que deve ser cumprida. O que não

pode, o que não pode é Medida Provisória ir atravessando essa lei, rompendo

tudo e todos. Você pega, na ação de desapropriação, e você fala que para

fiscalizar o imóvel, que não cumpre a função social, isso é poder de polícia, do

Estado. Você tem que notificar o cara, com tantos dias de antecedência, etc.

Você não notifica o botequim da esquina, quando você, membro da fiscalização

sanitária veio fazer... dar um flagra aí, ou não? Claro que não! Seu poder de

polícia está exatamente nisso. De você chegar e constatar a fraude do cidadão.

Por que que eu não... por que que eu não tenho de notificar o botequim da

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esquina, e chega a fiscalização sanitária e fecha, atua e multa e eu tenho de

notificar o proprietário que descumpre a função social? Isso veio como uma

Medida Provisória atravessar o direito. Então, por melhor que a gente tenha na

lei, elas, ainda por cima, estão sendo retalhadas e recortadas pelo poder da

polícia. Tem todo... Interessa, né? Cada um pelo seu.

E Ainda no Módulo Rural, a descrição exata do que é um Módulo Rural está na

legislação?

MC Está, está. Está na lei. Módulo Rural, artigo 4, inciso 1, no Estatuto da Terra.

Então ele diz assim: a propriedade familiar é aquela que supre as necessidades –

resumindo, né – as necessidades sócio-econômicas de um produtor e sua

família. Módulo Rural é... o inciso assina. Ele define, Módulo Rural, como sendo o

conceito de propriedade familiar.

E Certo. O INCRA tem uma independência dentro da estrutura organizativa do

Estado?

MC O INCRA é uma autarquia federal, hoje vinculada ao Ministério do

Desenvolvimento Agrário, que integra a Presidência da República. Ele já foi uma

secretaria especial, ou, já foi, perdão, uma autarquia especial, vinculada

diretamente à Presidência da República. Isso em tempos de governo militar, eu

não me lembro qual. Por muitos anos, nós temos uma ligação direta com o

gabinete da república. Figueiredo, Geisel, eu não tenho certeza. Figueiredo com

certeza. Então, ele é uma autarquia, ele tem patrimônio próprio, tem gestão de

recursos próprios. Não tem mais representação judicial própria. Por quê? Porque

na Constituição houve a agregação das procuradorias. Então, hoje a gente tem

Advocacia Geral da União. E eu sou egressa da procuradoria do INCRA, e me

sinto procuradora do INCRA. Só que hoje a gente é uma procuradoria

especializada a serviço do INCRA. Então, a advocacia Geral da União faz a

defesa de todas as suas autarquias, também. Mas algumas procuradorias têm

localização na própria autarquia. O INSS, o IBAMA, o INCRA, o CAD... Eles tem

procuradorias chamadas “especializadas”. Então, graças a Deus, não entrou na

vala comum da defesa da União, que aí, qualquer procuradora, qualquer lugar.

Porque é uma matéria extremamente especializada. E eu acho que, a bem

verdade, porque ninguém quer botar a mão em certas caixinhas.

E O INCRA hoje tem estrutura suficiente pra desenvolver a política pública

necessária pra fazer a Reforma Agrária?

MC Eu acho que não.

E Por quê?

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MC Porque falta, falta... Eu acho que melhorou muito, nesses 3, 4 anos, tá? Mas eu

fiquei 9 anos fora do INCRA. E eu me assustei muito, nesses 9 anos, eu fui me

assustando dia-a-dia. E voltei ao INCRA, em 93, e, paulatinamente, falando

apenas da minha superintendência, a gente tem visto um crescimento da

produtividade. Agora falta: mão-de-obra... – e melhorou muito – falta mão-de-

obra, falta mão-de-obra especializada, as próprias procuradorias do INCRA são

procuradores recém-formados, ou recém-concursados, nos últimos 7 anos, pra

cá – muito capacitados, mas que vêem a questão agrária como matéria de direito

administrativo. Então, não há formação. E por que não há formação? Não há

formação porque na escola não se ensina. Essa é uma escola onde o curso de

Direito Agrário era matéria obrigatória, até 3, 4 anos atrás, quando aquela

portaria do MEC jogou essa matéria como matéria optativa. Então, pela portaria

do MEC, ela deixou de ser obrigatória. Se ela é obrigatória, como era, eu tinha...

2 e 2, 4... eu tinha uma média de mil alunos, por ano, e que saía daqui com os

conceitos mínimos necessários de Direito Agrário. Hoje, por ano, devem sair

uns... 200. Isso reflete na formação do advogado, na formação do juiz, na

formação do Ministério Público, assim por diante. Há um total desconhecimento

da legislação agrária - que não é apenas a lei de Reforma Agrária. Essa

vinculação de Direito Agrário com o Direito da Reforma Agrária, é

equivocadíssima. Não é apenas isso. Isso é umas das matérias.

E Vamos tentar entrar um pouco na legislação que estabelece a Reforma Agrária.

Existe uma discussão sobre se Reforma Agrária se faz desapropriando

propriedade que não cumprem a função social, ou propriedades que são

improdutivas. Como que você isso?

MC É que não cumprem a função social. Artigo quinto da constituição - pra mim isso

é claríssimo! Eu não tenho nenhum problema com isso. Só que eu sou voto

vencido. Quando você fala - falando já, agora, em termos de constituição -

quando você fala que “recepcionou o dispositivo do Estatuto da Terra”; “O imóvel

que não cumpre a função social é passível de desapropriação”. Qual é o imóvel

que não cumpre a função social? Aquele que não atende, ao mesmo tempo, os 4

parâmetros: produtividade, meio ambiente, trabalho – relações de trabalho, que

se adote as normas de trabalho, enfim – e trazer o bem-estar ao produtor rural ou

rurícola, de uma maneira geral. Esses são os 4 critérios, que devem ser

observados, ao mesmo tempo. Se faltar 1, não cumpre a função social. Seja

porque ele detona o meio ambiente, seja porque ele tem trabalho escravo, seja

porque ele não cumpre outras normas, de toda forma de trabalho - que pode ser,

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não precisa ser trabalho assalariado, pode ser arrendamento, parceria, etc. - ou

seja por causa da produtividade. Acontece que, tradicionalmente, especialmente

a partir dos governos civis, onde se deixou o foco da colonização e se assumiu o

foco da desapropriação, só – o próprio INCRA, ele só pesquisava o imóvel que

não era produtivo. Como se produtivo fosse igual ao descumprimento da função

social. Tenho colegas, que têm teses, sobre o descumprimento da função

ambiental. Mas isso é simplesmente abandonado. Eu tinha um embate com uma

juíza federal, alguns anos atrás, num congresso em Salto no Rio Grande do

Norte, eu embati - de uma maneira civilizada. Eu na mesa e ela dizendo: “De jeito

nenhum!”. Porque é um artigo, lá no final da Constituição, que diz: “o imóvel

produtivo não será desapropriado”. Ora, você não pode fazer uma leitura disso

como um dos únicos dos parâmetros, que é a produtividade nacional. Eu só

posso entender esse imóvel produtivo aqui em baixo, não como aquele que tem

produtividade nacional, mas como aquele que cumpre a função social em toda a

sua extensão. Eu não posso falar em desenvolvimento, eu não posso falar em

desenvolvimento sustentável de um imóvel rural, sem que ele atenda as normas

do trabalho, que é o meio ambiente do trabalho; que ele atenda as normas do

meio ambiente natural, que é na proteção chamada meio ambiente, aquela que

nós mais conhecemos; e a produtividade. Produtividade, excesso de produção,

pode ser um imóvel que não cumpre a função social. Porque eu vou lá e

barranco, até a beirada do rio, e planto até lá. Uai, cadê a minha mata ciliar?

Produtividade é 130. Cadê o meio ambiente? Ele não é um imóvel produtivo. Tá?

Ele descumpre a função social. Porque ela exige os 4 parâmetros. Então, essa

visão tem que ser notificada. O próprio INCRA, recentemente, nesses anos mais

recentes - tem inclusive um trabalho muito bom, de dois colegas de Brasília, que

fizeram recentemente, da função social, ambiental, como razão do

descumprimento da função social. Do imóvel passível de ser desapropriado. Eu

tenho uma sentença - não me lembro agora da onde, mas sem dúvida dentro do

Estado de São Paulo - de primeira instância, que o juiz dá, ao condenar o imóvel

por descumprir as normas ambientais, determina que seja desapropriado por fins

de Reforma Agrária. Tá em grau de recurso, com efeito suspensivo, mas a gente

tá esperando pra ver o que que faz. Então, isso pra mim, eu não posso entender

produtividade, aqui do artigo 185, se eu não me engano, sem entender os demais

parâmetros. Produção Racional é uma coisa, produtividade aqui em baixo é

outra.

E Por que o INCRA...

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MC Mas não é isso que a justiça federal entende, tá? Não é isso. Ainda, nós estamos

começando a questionar isso judicialmente.

E Por que o INCRA, supostamente tem - a partir de 88, mesmo anteriormente a

isso - utiliza o critério apenas da improdutividade?

MC Porque era o mais... mais visível! Que gerava maior visibilidade!

E Porque era mais fácil?

MC Não, não é mais fácil. Porque... questionamento ambiental só vem depois! O

questionamento ambiental... Porque... fazer queimada não é crime ambiental. É

crime contra a política agrícola, desde o tempo da Coroa! E ninguém fala isso! A

queimada passou a ser uma coisa preocupante, depois de 88, depois das novas

legislações ambientais. Porque o Direito Ambiental teve um boom tão grande,

que passou a ser visto como uma coisa muito importante. Antes, a questão

ambiental, era renegada! A segundo plano, terceiro plano, quinto plano. E o que

que era mais visível? O que que era os primeiros imóveis a serem

desapropriados? Os imóveis que eram improdutivos. Porque eles eram

visivelmente fáceis de serem detectados. Pelo INCRA, pelos movimentos, enfim.

Pelo próprio cadastro...

E Existe uma tentativa, ou um trabalho para resgatar o conceito da função social

para desapropriação, em detrimento do conceito da improdutividade e

produtividade?

MC Hoje tem, hoje tem. Hoje tem. A gente tem debatido muito sobre isso, dentro da

própria procuradoria do Estado de São Paulo, e já com colegas de Brasília. Tem

um encarte novo... O Paulo Sérgio Migues, há muitos anos, fala isso, há mais de

15 anos, fala isso, aqui em São Paulo. E hoje tem até, nós temos até um encarte,

publicado pelo Ministério de Desenvolvimento Agrário, onde há um trabalho de

dois colegas de Brasília falando da possibilidade disso. E há toda uma doutrina

se voltando pra isso, já há uma certa conscientização do Ministério Público

Federal – e isso é muito importante. Porque, quando eles chegam e condenam,

sendo os exploradores do meio ambiente, eles chegam e conseguem condenar o

imóvel rural. Bom, condenou e daí, o que faz? Puxa, olha, tem uma sanção

constitucional, aqui. Ele passível de descumprimento da função social. Então,

isso tem sido um grande parceiro do cumprimento da função social. Do Ministério

Público Federal. De uma maneira geral.

E Quais os critérios pra dizer quando um imóvel é improdutivo?

MC Esso é um conceito que vem da Ciência Agronômica, e que, na verdade, de

maneira simples, eu posso dizer o seguinte: existe um ponto de equilíbrio entre o

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espaço físico que eu posso produzir. Por exemplo, dentro dessa sala em que nós

estamos, dá pra produzir bicho da seda? Dá, puxa vida! Dá bastante. Eu ponho

umas certas mesas aí, os casulos ficam aí, eu jogo folhas de amoreira, e aquilo

se desenvolve e eu entrego pra qualquer outra empresa que manipula o casulo e

pronto. Mas sem dúvida, dentro dessa sala eu não crio um boi. Portanto existe,

dentro da Ciência Técnica Agronômica, eu tenho recomendações que vão se

legalizando, para dizer que dentro desse espaço físico eu posso ter tanto

animais, e as regras gerais: bom, depende do que? Depende da região que eles

estão, depende do tipo de trato de animal, se o animal de... confinado, semi-

confinado, solto no pasto, tudo isso dá o nosso – voltamos aí, o Módulo Rural.

Então, esse cumprimento, ou não, da função social, no critério de produtividade,

está ligado a essa idéia: que nesse espaço físico, nesse estado, que tem essa

expectativa de produção, ele atende ou não, o perfil dele está enquadrado ou

não. No Estado, como São Paulo, existe produtividade, que são muito elevados.

Né? Por quê? Porque eu tenho cultura com alta tecnologia, eu tenho condições

de culturas grandes, grandes culturas, com grandes produtividades, eu tenho

portos pra escoamento, aeroportos pra escoamento da produção, e assim por

diante. Então é um Estado cujo perfil do produtor tem um perfil muito grande,

muito próximo do ótimo. E que isso, inclusive, mexe com o valor dos hectares

que do Módulo, lá atrás. Sem dúvida nenhuma, dependendo do tipo de produção

que ele tem, ou da região que ele está, e da dimensão do seu imóvel, ele terá

mais ou menos prosperidade, de acordo... para ser considerado produtivo, ou

não. Então, eu volto dentro dessa sala, um boi é altamente improdutivo. Que dirá

uma manada. Mas num espaço territorial de alguns hectares, ou de muitos

hectares, vão caber tantos animais, tantas cabeças em pé. Se for confinado, vai

caber muito mais. Se for semi-confinado, um tanto. Se for solto, muito menos.

Mas essa Ciência Agronômica nos dá esses dados. E quando o cidadão está, ou

não, é ou não produtivo, é porque ele atingiu aos índices de 100% do GUT e 80%

do grau da efetiva exploração.

E Qual é o profissional que assina o levantamento pra dizer se uma propriedade é

produtiva ou não?

MC Os agrônomos treinados para tal. Hoje eles são chamados Peritos Agrários

Federais.

E Eles são funcionários públicos?

MC Eles são funcionários públicos. O INCRA tem um quadro, na visão técnica de

agrônomos, agrimensores, engenheiros florestais – aqui em São Paulo, hoje, não

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tem engenheiro florestal, se eu me lembro, mas que eu me lembre não tem. Mas

eles são formados, são pessoas capacitadíssimas pra exercer essas atividades.

Tá? E eu posso, mediante convênio, conforme a constituição me permite,

celebrar isso com outras entidades, especialmente se forem estaduais. Tá? Para

a celebração, para a efetivação dessas perícias. Mas eles não fazem de acordo

com a vontade deles. Eles também têm essas tabelas, que normalmente são

editados pelo Instituto, no Estado de São Paulo, Instituto Agronômico de

Campinas, IMBRAPE, etc, que dizem estes valores. Então, quando eu faço uma

perícia para a avaliação de um imóvel, esses dados não tá de acordo com a

cabeça do agrônomo, e nem do INCRA. Ele se utiliza de uma série de dados

oficiais para a análise.

E A imprensa tem noticiado uma discussão sobre a atualização dos índices da

produtividade. O que significa isso?

MC Sim. Os índices de produtividade adotados por tabela e aprovados por normas

internas, normas legais, eles têm como base o censo de 1970. E o censo de 70,

a publicação de 70 está... tem como lastro a década de 70. Então, a tecnologia

avançou bastante – a tecnologia, ela lida os animais, e na agricultura, ela

avançou muito mais – onde eu antes, eu tinha uma ou duas safras, hoje eu posso

ter cinco, seis. E, portanto, se eu não tenho esse cinco, seis e tenho só uma e

duas, eu, em tese, em termos atuais, eu não sou produtivo. Mas como as

tabelas, as atualizações, não foram feitas até hoje, basta ter uma ou duas safras,

pra eu ser considerado produtivo. Então, o que é preciso é voltar a isso. Voltar a

estes índices e atualizá-los. Se atualizados, é obvio que a produtividade geral

dos imóveis vai cair mais ainda. Tá? Isso em alguns imóveis, tem imóveis que

são altamente produtivos, né? Mas aquele que tá lá, usando o imóvel apenas

para... como reserva de capital, ele vai ficar realmente frustrado. Não adianta ter

10 vacas, que dão 5 litros de leite... Uma vaca, a média no Brasil, parece que é

15 litros de leite. Isso é uma aberração! Você vai pra Holanda, a Holanda é do

tamanho de um ovo! Na Holanda, se você andar três passos mais depressa,

você sai do país. Uma vaca leiteira dá 60 litros de leite, dia, na Holanda. E aqui

no Brasil dá 15, por quê? Não tem cabimento! E falta. Aí, você também volta

naquela história de falta de política agrícola. Então, o agricultor, o agricultor, no

fim, também, ele é penalizado. O agricultor é penalizado. Não tem coisa pior, foi

uma das piores experiências que eu tive, foi encontrar um Liechteinstein - que é

um paiseco do tamanho de um ovo, que é, literalmente uma rua, um café, uma

montanha, e um bando de lojinha em baixo. Que é entre a Áustria e a Alemanha

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– entre a Suíça e a Alemanha. Eu tô tomando um sorvete, comprando uma

camiseta, “estive aqui e lembrei de você”, aquelas coisas básicas de turista.

Escuto uma voz, atrás de mim, e dentro da Áustria, como é bom ouvir gente falar

português. Eu me virei pra ele e disse assim: “Tá aqui passeando também?”. Ele

disse “não, eu trabalho aqui”. Eu disse “aonde?”. “Ah, Dona, eu sou produtor

rural. Eu perdi o meu sítio pro Banco do Brasil. Eu, e o grupo que veio comigo”.

Então, a cada – eu não me lembro, mais, o ciclo temporal, mas era assim – a

cada 5 anos, há um grupo de gaúchos que trabalha na produção de gado leiteiro

de Liechteinstein. Eu disse “mas aqui não cabe uma vaca”. Ele disse: “Mas o sítio

doou, o pessoal daqui é lá na Suíça ou na Alemanha”. (risos). Mas ele deixa o

Brasil – o que é uma coisa inacreditável! – e vai trabalhar lá! Depois ele volta, fica

30 anos aqui, e pode voltar. A mesma pessoa pode fazer isso. Nós estamos

exportando mão-de-obra! Porque o cidadão não tem condições! E ele era um

produtor rural efetivo. Quer dizer, aí não é falta de política agrária, é falta de

política agrícola também, que incendeia mais a falta de política agrária.

E Por que os índices não foram atualizados?

MC Eu acho que há muito interesse deles não serem atualizados. Fica extremamente

cômodo. Eu não sei se esse interesse se transforma numa ação inibitória à

atualização. Mas é lógico que é cômodo. Se eu sou proprietário remediado, se eu

utilizo mais aquilo como uma reserva de capital e mantenho um mascaramento

de produtividade, um índice atualizado vai fazer com que eu tenha de investir

muito mais.

E Qual é a tua avaliação da ação, da atuação do poder judiciário, no Programa

Nacional de Reforma Agrária?

MC Isso, o Lula outro dia até falou na televisão que ele acha que o Poder Judiciário

emperra, de alguma forma ele falou isso. Não é o Poder Judiciário. Eu não acho

que é o Poder Judiciário, e até eu e o presidente do INCRA estávamos

conversando isso. Não é “o” Poder Judiciário, isso eu falei até na FAU, outro dia.

A legislação permite você se utilizar de uma série de mecanismos. E o juiz só

tende a decidir, de acordo com que está na legislação. Então, eu volto de novo.

Eu tenho uma lei, que diz que eu posso vistoriar o imóvel, com poder de polícia,

pra verificar se ele cumpre ou não a função social. Vem uma Medida Provisória e

atravessa isso, que é a 2.173, se eu não me engano, e diz o seguinte: “ó, mas

pra fazer essa vistoria - que na verdade é o exercício do poder de polícia pra

fiscalizar, como pra fiscalizar qualquer coisa, inclusive o boteco aqui da esquina -

tem que avisar o cara com tantos dias de antecedência”. O que ele faz? Ele traz

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as vacas do vizinho e põe no imóvel dele. Ele tem... você dá chance ao cidadão,

de ele mascarar o seu imóvel. Então você dá chance a ele, de o quê? De entrar

com um pedido legal, pra que o imóvel não seja vistoriado. Pra entrar com uma

ação declaratória de produtividade. Pra entrar com um monte de coisa, de

medidas judiciais, previstas em lei. A que o juiz tem que receber! Ele não pode

não receber. Não o juiz... o juiz não senta em cima do processo. De dizer “eu

casso” - vamos imaginar uma situação, que eu desconheço. Mas ele não senta

no processo, engaveta o processo e diz “isso aqui eu não julgo”. Não é isso. Ele

tem mecanismos legais que permitem, hoje, você ter uma legislação – aquela

história do excessivo, aspas, uma democracia, que não é uma democracia,

porque ela torna o Estado mais... – não que eu seja contra a democracia, não é

isso que eu tô dizendo... Deu pra entender o que eu estou dizendo, né? Em que

a pessoa, você dá, você reduz o papel do Estado, no exercício dos próprios

ditames constitucionais. Então, você permite... Se eu digo assim: “eu vou

desapropriar”. A primeira coisa que o camarada faz: ele entra com uma ação

para que eu não tenha acesso ao Poder Judiciário. Eu tenho uma sentença do

Supremo Tribunal Federal, que inibia o INCRA a propor uma ação de

desapropriação. Ora, mas isso é acesso... inibir o acesso ao Poder Judiciário!

Como é que pode? Se é... não se pode inibir o acesso judiciário de ninguém! Que

é norma profissional. Daí, o cidadão entra com uma ação, um mandato de

segurança, pra que a gente não vá fazer a vistoria. A gente não faz. Daí ele entra

com um mandato de segurança contra o Presidente da República, quando já tá

em fase mais adiante, pra ele não declarar o imóvel passível de desapropriação.

Mas como? Isso é um ato privativo do Presidente da República! Mas ele tem o

mecanismo lá, no mandato dele. Depois ele entra, ou ainda, ele entra com ação

declaratória quando eu vou entrar com a ação de desapropriação. Com a ação

declaratória – há um equivoco aí de interpretação, mas é o que tá sendo

considerado – a ação declaratória de produtividade, na verdade, ela retira da

ação de desapropriação a sua fase instrumental. Por quê? Porque a fase

instrumental disso é provar que cumpre, ou não, a função social. Provar que é

produtivo, no melhor sentido da palavra, ou não. E o proprietário retira isto, e joga

dentro de uma ação declaratória de produtividade, que, por sinal, inibe a ação de

desapropriação. Só que é o seguinte: a ação de desapropriação tem critério

preferencial, e prejudicial, a todas as demais ações que versem sobre o imóvel.

Mas os tribunais entendem que não!

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E Aí nós temos, então, a partir desta última um problema de legislação, que abre

muita brecha jurídica?

MC Sem dúvida! Porque era o Decreto 554, de 79? Que falava... que era o primeiro

Decreto sobre fins de Reforma Agrária? O INCRA entrava com uma ação, o juiz

tem 48 horas determinava a “titulação” do imóvel, em nome do INCRA, e depois

dizia assim, pro desapropriado: “olha, o senhor vai contestar, se o senhor quiser”.

Bom, suponha - que é a grande discussão – mas se o INCRA estiver

desapropriando errado? Então, você tem mecanismos, na legislação, em vigor.

Se eu desapropriar errado – que isso pode, ele é passível – se eu desapropria

errado, a própria lei determina que eu vou pagar o cara em dobro, porque eu

tenho que pagar perdas e danos. É o Estado que age mal que é obrigado a

indenizar. Então, se eu desapropriei um imóvel que não era passível de ser

desapropriado, lá no final, essa desapropriação, que seria por interesse social,

para fins de Reforma Agrária, cujo pagamento é em títulos e dinheiro, ela vai se

transformar em uma desapropriação por interesse social, prevista na Lei 4.132.

Cujo pagamento é integral, à vista e em dinheiro! Mais perdas e danos. Então eu

tenho um mecanismo, eu já tenho um mecanismos, para sancionar o Estado –

mecanismos legais, legítimos – para sancionar o Estado, que venha,

eventualmente, a agir equivocadamente. E não emperrar a ação de

desapropriação, e criar uma ação de produtividade, que não tem fim! E o que é

pior: quantos milhões de reais não são depositados nas Caixas Econômicas, e

nas agências dos bancos, por esse interior afora, aguardando o término da ação

declaratória, que vai até o final, pra depois eu continuar ou não com a ação de

desapropriação? Quantos recursos públicos foram alocados, por essa agência –

porque pra eu entrar com essa ação de desapropriação, eu tenho que levar

dinheiro pra lá, eu tenho que fazer o depósito prévio. E eu faço o depósito prévio.

E essa ação fica parada. O que acontece com esse dinheiro? Tá parado. Bom, tá

parado, claro. Não tá perdido. Mas ele não tá alocado pra outra coisa. Inclusive

pra outra reforma agrária. Porque eu tenho um valor de orçamento, que acabou,

acabou!

E Na tua opinião, qual é o problema, então, para a efetivação da política pública de

Reforma Agrária?

MC Jesus, é muita coisa! É muita coisa. Primeiro: vontade. Capacitação profissional

efetiva. Que a gente já tem bastante, mas falta muito. Recuperar o órgão de

política fundiária – seja ele com o nome do INCRA, ou nome que queira dar. E,

efetivamente, uma legislação melhor e adequada. Porque a legislação, hoje, é

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uma colcha de retalhos. De retalhos. O Canotilho, aquele constitucionalista

português, ele diz uma coisa séria: a constituição, na verdade, ela é formada

pelos diversos atores sociais, que representam os diversos segmentos da

sociedade. Ninguém nega isso. Portanto eu tenho, no nosso assunto, aqui, um

ator, que é um representante daqueles que não têm terra, com o ator daqueles

que têm terra. E volta o ator daqueles que têm terra e produzem. Essas três

pessoas entram em choque. E o que precisa depois? É uma “equação” desses

interesses. O que acontece na constituição é que, quando chegou num – na

nossa constituição hoje – é que quando chegou num ponto da revisão do texto

constitucional, o Doutor Ulysses Guimarães, é ou vai ou não vai! Porque senão

nunca mais ia sair, aquela constituição. Então esses descompassos, essas

coisas marotas que tão sendo colocadas aqui e ali, criando todos esses obstas

que nós temos hoje que nós temos hoje, precisavam ser readequados! Isso é um

fato. Bom, como a gente não pode dizer que existe norma “constitucional” e

“inconstitucional”, aquele critério de propriedade produtiva tem que estar

adequado ao artigo 5°, que a cláusula pétrea. Aqui ele diz que o imóvel garante a

propriedade privada, desde que se cumpra a função social. É aquilo que vai... E

cumpre-se a função social quando atende aos quatro requisitos ao mesmo

tempo. Então, eu tenho problemas de legislação, problema de maior vontade,

problema de equipamento dos órgãos públicos, dos órgãos públicos que cuidam

da Reforma Agrária, tudo é necessário. E todos esses atores que estão brigando.

É claro que o proprietário tem direito de defender a sua propriedade privada.

Ninguém tá negando isso à ele. E tem todo direito. E ele tem todos os

mecanismos! Os mecanismos legais! Então, o poder judiciário decide ou não

dentro daquilo que é proposto a ele. Então, você tem a ação declaratória,

medidas incidentais, ação, desapropriação, o poder judiciário vai julgar! E isso

tem um tempo. E esse tempo é que transforma, essa ação, hoje, num calvário!

Tá? Precisa mudar a lei, adequar a lei à realidade... Precisa maior vontade

política de equipar, equipar, melhorar os equipamentos humano e não humano...

Revendo, então. Você tem que alterar a legislação, uma legislação mais

adequada à realidade, mais atualizada, menos conflitante, entre si. Que faça que

o Poder Judiciário tenha maior agilidade na tomada das decisões. Você tem que

equipar material humano e não-humano, os órgãos que cuidam da política

fundiária, sem dúvida nenhuma, isso é fundamental. Porque o INCRA foi

completamente desmontado. É uma coisa absurda, o que fizeram com essa

estrutura. E que, graças a Deus, nesses últimos 3 anos conseguiu, eu não sei

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como, mas conseguiu ter um lastro maior. Tá? Isso é fundamental. Isso pra

mim... E, sem dúvida nenhuma, uma maior conscientização das necessidades de

uma política agrícola e agrária, condizentes com as nossas necessidades,

através de educação, desde a educação escolar, isso é fatal, tá. Então, o Luciano

Godoi, nesse mesmo evento que nós estávamos, na FAO, ele disse uma coisa

muito interessante: o direito agrário encolheu, nós últimos 20 anos. Quando ele

começou, quando ele começou a... terminando, aliás, o seu curso de Direito, e

que ele foi fazer pós-graduação em Direito Agrário, a gente tinha um quadro... o

próprio INCRA tinha um quadro, em São Paulo – falando de São Paulo, que eu

conheço – nós tínhamos um quadro de professores, doutores, de professores

titulados, com grande conhecimento em direito agrário... o Direito Agrário era

administrado em diversas faculdades do Brasil, e é de São Paulo, São Paulo

tinha cursos de doutorado em Direito Agrário, e ninguém sabe o que aconteceu

com ele. Tem professor catedrático que não recebe alunos de Direito Agrário.

Como você é doutor em direito, ele escolhe de outra base, e faz direito agrário.

Sabe, umas outras escolas abriram um curso de especialização e pós-

graduação, como Goiânia, como o Pará... Quase nada! Eles são uns verdadeiros

heróis. Então, o ensino está encolhendo. O juiz, hoje, formado, não tem a menor

idéia do que você fala. Por quê? Porque não aprende na escola! É claro que não!

Desapropriação, pra ele, é matéria de Direito Administrativo, e não de Direito

Agrário, que tem todo um contexto. E uma... merchandising, sabe? Eu acho que

falta, pra gente, muito de merchandising. As coisas boas, da política agrária, não

são levadas. Eu tenho um ex-aluno, que é meu... um aluno, que é estagiário

meu, lá, outro dia, em processo de assentamento, ele parou... chegou em mim e

disse assim: “Professora...!”. Por quê? Porque nós somos um bando de bandido!

O que que é visto no INCRA e o que é visto no Movimento Sem-Terra? O

Movimento Sem-Terra é o dono do INCRA, e é um bando de bandido. Todos

comunistas, vão comer criancinhas amanhã. E não é nada disso! Ele sentou,

fazendo relatórios pra mim, de projetos de assentamentos, virou e disse assim:

“Puxa, professora! Nós estamos pagando pra gente beber água potável!”. Porque

a gente abre poço, leva a... no assentamento se leva o extensionismo rural à

essas regiões. Então, o agrônomo vai ensinar como é que produz, o que produz,

abre-se poço, abre-se estrada, dá dinheiro pra construção de casa e etc. Nós

estamos, o que ele me disse, nós estamos dando dignidade a essa gente! Tem

gente que vai beber água, hoje, porque nós pagamos um poço, a abertura de um

poço artesiano! Nós estamos dando subsídios agrícolas, pra eles! Isso, não é

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levado pra ninguém. Isso não sai no jornal. Então, merchandising, ainda é um

negócio muito importante, que também resolve.

E Na tua opinião, o que é um assentamento de Reforma Agrária? Qual é o

conceito, e como deve ser, enfim, a partir do ponto de vista legal?

MC O assentamento é um caminho para essa consolidação da Reforma Agrária, que

como eu já disse, é a integração do homem ao sistema produtivo. Então, sorte

que um assentamento, nos termos da lei, ele deve trazer, em primeiro lugar,

atendendo às pessoas, que, por lei, tenham vocação para isso, lá na 8.629, que

seria o proprietário, até mesmo o proprietário desapropriado, a preferência da

escolha do primeiro lote; depois aos posseiros, empregados, enfim, do imóvel;

posseiros, empregados e outros colonos, de uma maneira geral, que estavam

nos demais imóveis; e assim a lei traz lá um elenco de preferência, e depois

desse elenco de preferência, uma segunda vocação que é as famílias mais

numerosas, com maior força de trabalho e maior experiência, dali, da agrária,

versus o que tem menor família, menor experiência, assim por diante. Então, tem

essa vocação legal. Uma vez adotado esses critérios, e escolhidos os

beneficiários desses assentamentos, que é o segundo passo dessa

desapropriação; uma vez lá instalados, através do INCRA, é feito, então, a

divisão em parcelas, ou lotes, como eles chamam - na verdade, o nome técnico é

“parcelas” - com estradas vicinais, com aberturas de poços artesianos, e outros

benefícios levados à Zona Rural, que são necessários. Projetos pra construção

de moradias, num primeiro momento moradias mais simples, depois, eles

mesmos podem melhorar isto. E, enfim, de uma maneira geral, quando você fala

em assentamento, você fala em colocar a pessoa na terra, e levar a ela aquilo

que é chamado os “benefícios de apoio”, para que ela tenha condições de

integrar o processo produtivo nacional. Então, o INCRA já teve todo um setor de

assistência, de extensionismo rural, onde englobavam psicólogos, pessoas...

assistentes sociais, técnicos de toda ordem, que faziam esse papel, inclusive de

como essas pessoas têm que se relacionar. Você coloca, às vezes, 400, 500

pessoas que nunca se viram. Que não tem o menor contato. Então, essa

integração dentre elas é muito importante. Tinham técnicos em sindicalismo,

técnicos em cooperativismo, tudo isso ia ao lado da primeira fase, que é a fase

da desapropriação, do retalhar a terra, e de “ó, esse lote é seu”. Não é só isso. O

assentamento, eu acho que é o momento mais importante: um assentamento

bem feito, com boa infra-estrutura, é a fase mais importante para que você

consiga atingir aquilo que a gente chama de Reforma Agrária. Que é integrar,

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finalmente, modificar a estrutura da pendência, da posse da terra, e, mais do que

isso, integrar o cidadão ao processo produtivo. Porque, retalhar, entregar um lote

pra cada um, e continuar tudo num estado de miséria, isso não faz ninguém feliz.

Não é esse o contexto final. O INCRA já teve setores de cooperativismo, por

volta de 88 deixou de haver atividades, do INCRA, em cooperativismo. Existe o

Departamento Nacional de Cooperativismo, vinculado ao Ministério da

Agricultura, eu não sei, sinceramente, o que ele faz nesse papel. Mas a gente

tem tentado, até mesmo aqui dentro do INCRA, moldar ou incentivar os

assentados a se constituírem em cooperativas, que na verdade é uma grande

forma deles poderem colocar a sua produção no mercado. Porque ele não

produz só pra comer, isso é um primeiro momento, ele deve produzir para

integrar o mercado, para sobreviver com isso. Não subsistência, exclusivamente.

E Vamos entrar um pouco no caso da fazenda Timboré. Eu queria, inicialmente,

que você me dissesse quais as informações que você tem sobre aquele caso da

Fazenda Timboré, que iniciou-se em 1986, com o Decreto Presidencial,

considerando Área de Interesse Social pra fins de Reforma Agrária...

MC As informações que eu tenho não são diretas, posto que em 86 eu passei um ano

internada num hospital, por força de um acidente automobilístico na estrada, que

eu já comentei com você. Mas de qualquer modo, as informação são de que era

um imóvel, que foi dado como passível de desapropriação pra fins de reforma

agrária. Houve um Decreto Presidencial, esse Decreto foi revertido, já havia

assentados... Houve um seqüestro da área. Essas ações correram

paralelamente, houve a declaração de produtividade do imóvel. O imóvel foi

declarado produtivo. E a partir daí, são quase 20 anos, ou mais de 20 anos... é

20 anos, exatamente. A partir daí, criou-se um impasse. Por quê? Porque eu

tenho um imóvel que é produtivo, ou declarado produtivo pela justiça, em decisão

já com resultado julgado, e eu tenho um assentamento, literalmente, consolidado

há 20 anos. Então, o que fazer? Além disso, o proprietário entrou com uma ação

indenizatória, a que tem direito, e, por outro lado, não tem direito de pedir a

retomada do imóvel. Entendeu? Uma coisa, ou outra, né? Se não, ele tá tendo aí

um enriquecimento ilícito, né, um enriquecimento sem causa, em razão disso. Ou

se entrega o imóvel, ou se indeniza. Isso tem gerado uma série de perturbações,

com liminares, pedindo a desocupação imediata do imóvel, etc, etc, mas, o que

se deve fazer, sob o ponto de vista legal, é, sem dúvida, uma vez que houve a

decisão apresentada e julgada, que eu não vou questionar, mas um vez que ela

existe, é preciso indenizar. Se o imóvel cumprir a função social, segundo a

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sentença, a indenização dele não sai por títulos, deverá ser em dinheiro, por

força, não mais da lei complementar de 86, mas por força da lei 4.132, de 62,

desapropriação por interesse social, simplesmente. Que eu posso desapropriar

qualquer imóvel, ainda que produtivo. Não é a função do INCRA, essa, mas

quando acontece essa situação, que é única, a gente tende a atender a lei, é

lógico. E portanto a indenização dele, salvo um acordo, salvo uma interpretação

divergente, deverá ser em dinheiro, por força da lei, e ponto final. O

assentamento existe, e você não tem como tirar 20 anos dessas pessoas daí, é

um número considerável de pessoas, e o que eu creio, que deve acontecer, é

justamente é a indenização, e a pacificação do assentamento. O Estado, em

tese, pode devolver a terra e retirar os assentados? Pode. Mas aí, nós vamos ter

um problema ainda maior do que é, a indenização, porque eles são parceiros de

boa fé, etc, etc.

E O primeiro Decreto Presidencial, considerando a área de Interesse Social para

fins de Reforma Agrária, foi de 86. E a primeira ação desapropriatória foi de 88, e

havia passado 2 anos além do prazo estipulado para ingressar com a ação

desapropriatória. Esse foi o motivo para que a primeira ação desapropriatória

fosse julgada, nem fosse julgado o mérito. Essa situação de passar 2 anos é

muito comum no INCRA? Qual é o motivo...?

MC Não. Não é comum. É uma situação bastante incomum. Não é comum o INCRA

perder o prazo. O que a gente tem que lembrar, nessa desapropriação da

Fazenda do Timboré, é que nós vivíamos sob a égide do Decreto 554, de 1969, e

já se questionava a caducidade desse Decreto. Tanto é que em 93 vem a surgir a

Lei-complementar 76, e a Lei 8.629. O Decreto não tinha prazo específico,

determinado, pra a propositora da ação. Utilizava, portanto, o Decreto-lei 3.365,

de 41, cujo prazo era de 5 anos. Então, esta ação ocorreu em 86, ela foi

alcançada pela constituição de 88, e foi alcançada pelas leis de 93. E o próprio

INCRA, nesses momentos, ainda, ele tinha uma tremenda experiência na

primeira opção do Estatuto da Terra, que era a colonização. Então, como você

mesmo disse, como é que é essa primeira ação de desapropriação? E isso,

realmente, deve ter - eu não vivi aqui, nessa época – mas deve influenciado,

entre tentativas de acertos, e erros, acertos e erros, a esta ação, que em tese

não teria sido proposta utilizando-se a legislação de hoje, em época “A”. No

segundo momento, a desapropriação foi considerada nula, por falta de vistoria

prévia.

E Citação...

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MC ... de citação pra vistoria prévia. Isso também, hoje, de novo, é questionado,

porque nós temos jurisprudência hoje, dizendo que, antes de caducar o Decreto,

mas se não foi possível, ainda, fazer essa vistoria, eu posso reeditar o Decreto. E

tem jurisprudência dizendo que não. Então a matéria, tanto naquela época, como

hoje, não está pacificada. Tá completamente em ebulição. Há uma total... Há

posições controvertidas à própria jurisprudência, não só no Estado de São Paulo,

como nos demais Estados. O que é importante, hoje, declarar, é que nós já

estamos mais escaldados, sem dúvida nenhuma, em tantos anos, de 20 anos de

experiência em desapropriação, nós, o INCRA, quer dizer, e que dificilmente uma

ação, ela demoraria 2 anos para ser proposta. O que acontece, sem dúvida

nenhuma, é que na medida em que eu informo o proprietário, que ele vai ser

vistoriado, ou, já numa segunda fase, quando há o Decreto, entre o Decreto do

Presidente da República, declarando o imóvel passível de desapropriação – que

o decreto, simplesmente declara que é passível a desapropriação, que autoriza o

INCRA a propor a ação – nós, muitas vezes, não conseguimos entra com a ação,

porque o proprietário obsta, por medidas judiciais – que são previstas em lei, de

forma de medida provisória, ou não, mas estão previstas em lei – ele obsta a

entrada dessa ação. Nós temos uma posição, doutrinária, específica, dizendo

que a ação de desapropriação, ela é preferencial e prejudicial a qualquer outra

ação que verse sobre o imóvel. Portanto, ainda que ele entrasse com qualquer

medida, ela não teria o condão de suspender a ação de desapropriação. Mas não

é esse o entendimento da Justiça Federal Paulista, que tem se propagado pelas

outras regiões da Justiça Federal. Se o camarada entrar com uma liminar, se o

camarada entrar com uma ação declaratória, seja lá o que for, ele obsta o Poder

Judiciário. Então, chegamos ao ridículo de ter uma medida judicial que impedisse

o INCRA a propor uma ação judicial. Isso é o máximo! Você impede o acesso à

justiça. Né? Então, realmente, o que nós temos... tudo sempre chega no mesmo

ponto: um estrangulamento da lei. A lei precisa ser... Ela foi feita de um jeito, foi

retalhada, virou uma... tem uma medida provisória, com dispositivos

completamente estapafúrdios. E essa lei precisa ser – dentro do processo

democrático, discutida, novamente, pelas Câmaras – mas ela deve ser alterada,

porque se não, não é possível dá continuidade.

E Quando o INCRA entrou com a segunda ação de desapropriação, o proprietário

entrou com uma cautelar denominada de “produção de provas”, pretendendo

demonstrar que a área era...

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MC Era produtiva. Que é o que eles fazem, atualmente. E, o que casa, também,

porque, de uma maneira muito tímida, talvez, quero crer, a instituição, o INCRA,

naquela época, em que pese muitos procuradores já propalarem isso, até em

termos de defesa de tese, em universidades, etc, o único critério, ou o primeiro

critério – porque era o mais visível – porque era aquele que batia na idéia de “não

cumpre a função social, porque não produz”, a produção é a coisa mais

escancarada, e também, não tinha... não se tinha essa preocupação ambiental,

sob o ponto de vista da sua executoriedade, e não sob o ponto de vista legal – o

próprio INCRA, nas suas perícias, ele também não verificava a fundo, a

possibilidade, ou não, de atender os demais parâmetros. O critério visível era

esse: produtividade. E isso é uma coisa que não tem cabimento, porque a própria

constituição, como o antigo Estatuto da Terra, ele fala em critérios que devem ser

atingidos ao mesmo tempo. Onde você conclui que se não atingir um deles, não

há, porque dentro da função social, isso é pacífico.

E A realização de uma política pública, como a Reforma Agrária, deveria levar em

consideração a mobilização, por parte do Poder Executivo dos outros poderes,

ou seja, Poder Judiciário, Poder Legislativo?

MC Ele tem possibilidade. Quer dizer, hoje se permite a impedir... tem Mandato de

Segurança contra o Presidente da República, pra ele não declarar o Decreto, pra

não assinar o Decreto. Quer dizer, são interferências, no meu entender, de

competências. O Poder Judiciário não pode impedir o Presidente da República

de decretar alguma coisa. Isso é competência privativa e exclusiva do

Presidente. Mas essa interferência teria acontecido de maneira gritante.

E Qual é o caminho para que houvesse uma mobilização do Estado, enquanto 3

poderes, para a discussão de uma política, como a Reforma Agrária?

MC Maior conhecimento. Maior conhecimento legal. Uma visão melhor, disto, como

política pública. Um maior conhecimento nas faculdades, aos formandos em

Direito. Isso é fundamental. Uma visão que seja agrária, e não civilista, aos

moldes do que foi o Código Civil, até agora. Porque o Código Civil, até agora, era

o direito de propriedade da Doutrina Liberal Francesa. Então, quando você

estuda propriedade, você estuda aquela Doutrina, que é super superada. Quando

agora, o novo Código Civil fala em função social, ele mesmo comete aquilo que

ele fala em Função Social e Proteção Ambiental, como se fossem duas coisas

diferentes. Tá no 1.228, do Código Civil, parágrafo 1°. Como se fossem duas

coisas diferentes, e não é. E Função Social não é limite à propriedade. Função

Social é conteúdo dos Direitos de Propriedade. Isso é uma lei, ó, de 1906. A

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propriedade obriga. Você tem direito, desde que você cumpra a função social.

Você tem, realmente, ao seu proprietário, você tem ônus, você tem encargo, para

com a sociedade. E isso, só agora, o Código Civil, por força da Constituição,

recepciona pro imóvel rural, e recepciona pro imóvel urbano, também. Então,

este conhecimento, esta modificação de visão. A Reforma Agrária não é um

assunto de Direito Administrativo, e muito menos de Direito Civil. É um assunto

de Direito Agrário. E ela tem que ser vista dentro de um contexto maior, onde

você conhece todos os institutos, do Direito Agrário, aí você consegue

compreender porquê que a lei, ou porquê que a Reforma Agrária tem que ser

feito nestes moldes, dentro da lei. E não modificar a lei, à idéia, às idéias, ou à

interpretação judicial, e dos tribunais, sob o ponto de vista de uma visão civilista

de 1789! Que é do Código Napoleônico, de 1804. Então, isso tem de mudar. É

preciso educação; é preciso, talvez, maiores interligações entre os 3 poderes, eu

acho que isso é muito importante. Um seminário com cursos de workshop, seja o

que for. Eu não quero impor a vontade do Poder Executivo, mas eu acho que

deve tem de um entrelaçamento, entre eles, justamente pra um maior

entendimento. Até mesmo pra fazer um subsídio de uma política executiva cada

vez melhor. E não cada um falando o que quer, do lado que quer, em posições

opostas.

E Teria algum conselho para as universidades, as faculdades, específica, no que

diz respeito à formação...?

MC Teria que ter um conselho para o Poder Executivo, fazer ver ao Ministério da

Educação, que ele tem de modificar essa portaria que cria, ou que organiza as

faculdades de Direito. O Direito Agrário é matéria obrigatória. Nós somos um país

agrícola. Quer queira, quer não (risos). Não é porque a gente manda gente pra

Lua, não é porque a gente tem indústrias, etc. Nós não deixamos de ser um país

agrícola. O segundo maior produto de exportação dos Estados Unidos é

alimento. Primeiro é avião, o segundo é alimento. Na França, é perfume. O

segundo é alimento. Então, e eles têm uma grande preocupação, especialmente

aquele que não está na Zona Rural, eles têm uma grande preocupação em

manterem, em boas condições, a Zona Rural. Com as suas pessoas, com a

forma de produção, etc. Porque ele vive disso! É o que eu disse no início: tudo o

que a gente olha – se você olhar em nossa volta – tudo vem da Zona Rural. Ou

porque se exerce atividade agrária, ou porque não se exerce atividade agrária,

pois nós temos atividade rural. Da onde se extrai o petróleo, da onde se faz os

produtos sintéticos, etc, etc. Então, falta, talvez, à Zona Rural um pouco mais de

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merchandising, que eu tava brincando no início, né? E eu acho que precisa haver

esse maior entendimento. Pra ver se eles entram dentro próprio Ministério! O

Ministério da Agricultura não vê o assentado como produtor rural. Ele é um

bandido... (risos) De modo que tem muito técnico falando isso. Eu não estou

falando isso do Ministro, mas eu to falando isso de muitos técnicos – e de muitos

produtores rurais. E muitos produtores rurais, que tem na sua origem assentados,

(risos) eles fazem hoje a discriminação. O assentado velho, não quer o

assentado novo! Isso é o máximo! (risos). Isso é o máximo da coisa! (risos) Tá?

E o assentado velho, também, muitas vezes, não se entende como um produtor.

Ele não consegue, também, às vezes, mudar de posição. Ele pode continuar,

perfeitamente sensível ao Movimento Sem Terra. Mas ele tende a reacionar,

como um produtor rural que é. Maior ou menor, isso não tem nada a ver. Mas ele

é um produtor rural. Então, esse congraçamento – uns não pulam de assentado

– o que não deixa de ser um produtor rural – mas ele não deixa, ele não sai da

condição de assentado, ele não se integra, enfim. Outros assentados não

aceitam os assentados novos. Os produtores rurais, mais tradicionais, também

não aceitam os assentados. Então, é um nó! Chega lá no fim, você não consegue

resolver o problema. Há muitos anos, teve aqui um senhor - muitos anos - e ele

começava: porque ele era do Movimento Sem-Terra, porque não sei o que,

porque “pápápá”. Eu disse: “Mas o senhor já foi assentado...”, “ah, já. Eu tenho

um lote, eu sou assentado no programa tal...”. E era um dos casos raros, que ele

já tinha sido, inclusive, titulado. “Mas que ótimo! E o senhor faz parte do

Movimento Sem-Terra?”, “faço”. Eu dei uma risada, e falei assim: “O senhor tá no

lugar errado, senhor tem de entrar pra UDR”. Ele “imagina, doutora! Imagina

doutora, eu não vou pra UDR...”. Eu falei: “Escuta, sem terra, aqui, sou eu. O

senhor é produtor rural”. Passou um ano, aparece ele aqui, de novo, “a senhora

tinha razão. Eu fui pra UDR!”. (risos) Isso é uma brincadeira, naturalmente. Mas é

o que eu disse a ele: “O senhor tem que se ver como um produtor rural. E não

como um assentado de canequinha na mão”. O senhor é um produtor rural, que

tem direitos de produtor rural, como assentados tem direitos a... Mas o senhor

tem que migrar, pra essa concepção que o senhor integra o país, como produtor,

e tem os seus direitos como isso. É essa a sua visão. Porque fazer... assentar

uma galera pra dar cesta básica, pelo amor de Deus! Pro cara morrer na miséria?

Pelo amor de Deus! Ele tem uma agricultura de subsistência, em caminho a uma

agricultura de mercado, no melhor sentido da palavra. Isso que ele deve ser. Aí

você tem, senão não tem razão de ser! Senão não tem razão. Custa uma fortuna,

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pro cara ficar o quê? Comendo de canequinha? E como é que ele faz isso? Ele

não precisa ter... ele não precisa ter agricultura ultra-extensiva, ou ele ser fã

desses – como chama – transgênicos. Não é nada disso. Ele produz, lá, uma

cestinha de batatinha, produz... mas ele se agrega com associações, com

cooperativas, com consórcios. Ele se agrega àquele grupo, ele se agrega a

outros grupos, o grupo dele se agrega a outros. Forma essa coisa incrível, que é

o trabalho em conjunto, Agricultura de Grupo, se chama. E aí, vai pra frente. Mais

ou menos. Ninguém tá querendo que todo mundo seja rico. Mas também não

precisa ser todo mundo pobre. Precisa desenvolver as pessoas. Não é?

E Teria mais alguma observação a se fazer, sobre essa questão?

MC Não. Eu acho que é um grande programa social. Hoje, é um grande programa

social pra Zona Rural, e um grande programa social para a Zona Urbana. Porque

ainda que ele seja deficiente, esse cidadão que tá migrando, de novo, pra Zona

Rural, ele tá encontrando, ali, uma renda de 3 mil reais, se ele ficar bonitinho,

fizer certinho – coisa que ele não tem na Zona Urbana. Então, é preciso, quando

você encontra esse programa social, você não vai dizer assim: “Ah, não vou

aceitar”. Dentro da escala, da vocação, da lei, ele tem que ser aceito, mais cedo

ou mais tarde. Então, o papel do Estado se torna muito maior, muito mais

importante. Ele tem... o extensionismo rural é fundamental. E é isso que os

governos, de uma maneira geral têm que ver. Reforma Agrária não é distribuir

terra. “Desapropriei 500 milhões de hectares”, isso, você não fez Reforma

Agrária. Reforma Agrária é criar novos proprietários rurais. É uma política de

fortalecimento da propriedade produtiva. Ela não é contra a propriedade

produtiva, ela é a favor, tanto é que ela transfere uma, ela consegue criar 300,

400. Se a gente focar isso, e verificar as condições, você dá condições para este

homem deixar de ser um párea, deixar de ser uma pessoa que tá à margem da

sociedade, do processo de distribuição de riqueza do país.

E Você falou em 3 mil reais, que seria um rendimento médio...

MC Médio de um assentado. Ele já estabelecido. Ele já recebeu... Porque ele,

quando entra, ele recebe alguns... 1300, 2 mil reais. Ele vai recebendo recursos

públicos pra construção da casa, pra construção... pra formação de sua primeira

roça, etc, etc. E isso é uma inversão de dinheiro muito grande, no todo. Quando

ele se estabiliza – a gente tem gente aqui plantando, tem uns gaúchos, aqui,

plantando fruta, aqui perto da Castelo Branco, num assentamento... esqueci o

nome. Ele tá tendo uma renda... Planta goiaba, e outras frutas, ele já tá tirando 3

mil reais por mês. O que eu falo não é o absoluto, sem dúvida, merece toda

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contestação. Mas é a visão que eu tenho, direta ou indiretamente, ligando dentro

do INCRA, há... pelo amor de Deus, desde 1980, pelo menos. E vem de uma

família que esteve dentro do IBRA e do Ministério da Agricultura há séculos.

Então a gente tem uma história de vida, que não é só a minha, mas eu tenho dos

meus tios, dos meus avós, e assim por diante. De outras pessoas que,

coincidentemente, trabalharam dentro... dentro também, do Ministério, e, enfim, é

a visão que a gente tem.

Entrevista Paulo Sérgio Domingues Dia 16 de maio de 2006

Rua Libero Badaró, 73 – São Paulo - SP Entrevistador Gostaria que o senhor falasse sobre o trabalho da Justiça Federal

na área da política de Reforma Agrária. PSD Em breves palavras, o trabalho, ele é o de intervir em processos

onde a gente tem sempre o poder público de um dos lados da ação. O interessante do trabalho da Justiça Federal é exatamente essa visão de que a gente está sempre analisando uma conduta do Estado: se o Estado está certo ou não em alguma das suas atitudes. Quando alguma parte ingressa com uma ação na Justiça Federal, necessariamente, em se tratando de uma ação cível, ela está contestando uma atitude do Estado. Está dizendo que o Estado agiu errado de alguma maneira, e portanto ela quer que a justiça tome uma providência. Esse já é um fator interessante, porque nós não estamos falando da briga entre duas pessoas físicas, de briga com uma empresa... Estamos falando de uma ação onde o cidadão está brigando com um ente, um “ente desconhecido”, né. Quem quiser assistir a uma audiência onde tenha uma grande briga, né, é melhor não procurar a Justiça Federal, porque isso é muito raro. Porque dificilmente você vai ter dois vizinhos brigando, duas pessoas físicas discutindo. Você vai ter alguém querendo um apelo em relação ao Estado, esse ente impessoal, desconhecido, e que até

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por ser desconhecido muitas vezes as pessoas... as pessoas acham que as coisas do Estado são coisas de ninguém. Então essa é uma coisa característica interessante dessa atuação da Justiça Federal. Na parte especifica de Reforma Agrária, é uma atuação que não é muito grande, porque ela acaba acontecendo especialmente quando se consegue evocar a intervenção do INCRA, nesses processos, nas questões de Reforma Agrária. E infelizmente não é muito, na verdade. Mas existe, e acho que ela tem - o interessante é ela estar se transformando, deixando de ser uma atuação meramente passiva, para, em alguns casos, retomar uma posição de condução verdadeira do processo, o que é uma coisa muito interessante.

Entrevistador Como é que você vê a atuação do Estado, como ente único, na execução das políticas públicas.

PSD De uma maneira geral? Entrevistador De uma maneira geral. PSD Como ente único, você está querendo dizer? Veja, é... Tudo bem,

o Estado é quem deve definir políticas públicas de maneira geral. Ele é eleito pra isso, o legislativo é eleito pra isso. O problema é que as formas de eleição de prioridades dentro do Estado, é uma forma, que nós temos visto, não é das mais... Das mais... sérias, baseadas somente em critérios... de necessidade, mesmo. As formas de eleições de prioridades públicas são as mais variadas. E alguém tem que definir essas prioridades. Agora, o Estado naturalmente não está conseguindo definir essas prioridades de acordo com o que a gente gostaria como cidadão. Tudo bem, temos que pagar bilhões de juros, ok. Mas o restante do dinheiro que sobra está sendo dividido nas mais variadas políticas públicas, de uma maneira que ninguém consegue compreender quais são os verdadeiros critérios.

Entrevistador E a atuação do Estado na execução de política pública de Reforma Agrária.

PSD Eu acho que, infelizmente, essa é uma decepção, com relação ao governo atual. Porque se nós já não tínhamos uma política pública de Reforma Agrária definida, eu hoje não verifico também a existência de uma política pública que se possa reconhecer como tal, na área da Reforma Agrária. A gente vê algumas ações isoladas aqui e ali, mas uma política que compreenda a definição de áreas, uma real preocupação com quais as áreas que serão atingidas, com como se fará a distribuição da terra, com o financiamento de produção, assistência técnica, escoamento, não é, da produção feita naquele local... A gente não vê isso. Então, infelizmente, a gente tem visto é o contrário, é algumas situações em que assentamentos dão errado, as terras acabam sendo abandonadas e passadas adiante.

Entrevistador Como você definiria a atual política de Reforma Agrária? PSD Não consigo. Não consigo. Acho que ela... como eu disse, ela é

tão baseada em atitudes esporádicas, e que a gente... Na minha opinião pessoal, é claro – você entende disso muito mais do que

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eu, mas na minha opinião pessoal – a gente não consegue identificar uma linha. A gente vê atitudes esparsas. Quase que espasmos. E eu não consigo ver, não dá pra identificar um padrão, na minha opinião.

Entrevistador E dá pra você fazer uma avaliação do trabalho da Justiça Federal ou do Poder Judiciário, nessa atual política de Reforma Agrária?

PSD Olha: nessa, atual, compreendendo os últimos anos, inclusive anos do governo anterior – que eu acho assim, que o governo, ele brinca, às vezes, com a justiça. O poder público brinca com a Justiça. O Judiciário procurou especializar a vara, depois procurou descentralizar novamente as ações nas varas do interior, porque se está mais próximo do local onde está desapropriando, mas o que a gente vê é que muitas vezes, o poder público não sabe o que ele quer. O poder público, ele gosta de fazer barulho com ação, mas ele brinca com as ações, ele não se preocupa numa avaliação correta, ele não se preocupa com o acompanhamento verdadeiro dos processos... E a Justiça acaba sendo... acaba ficando envolvida na história. Tudo bem, a Justiça é lenta? É. A Justiça não está preparada pra atender as situações com a velocidade que às vezes ela exige? Sim. Mas o governo, ele é assediado de uma maneira... Ele não... é... Ele não prepara convenientemente até mesmo os procuradores que vão agir nos processos, muitas vezes.

Entrevistador Houve, na Justiça Federal, a experiência da especialização de

varas para a Reforma Agrária. Qual a sua avaliação dessa experiência?

PSD Eu acho que é muito bom, a gente especializar varas, de certo modo. Mas, às vezes, a gente tem aquela dificuldade da distância. Então é uma questão que a gente tem que analisar com cuidado. Porque, se a gente, na capital de São Paulo, tinha uma vara especializada, até alguns anos, quando a Justiça Federal, pouco descentralizada, pelo interior, havia uma certa razão: você tem vinte e tantas varas aqui na capital, vamos pegar uma e especializar, pra matéria de Reforma Agrária. Agora, a partir do instante a Justiça Federal se capilariza, chega mais perto do cidadão na cidade do interior, me parece razoável que a gente tenha, que aquele juiz da localidade, que está vendo a situação acontecer, que tem uma consciência maior do problema, uma visão melhor do problema, porque... é razoável que ele vá julgar. Agora: também se deve dar, a própria Justiça deve dar assistência para o juiz, para que ele possa agir naquele processo, que não é um processo corriqueiro, não é um processo daqueles que gente lida no cotidiano. É uma dificuldade grande, não adianta. A gente tem uma vara com 8 mil processos. O juiz tem que dar conta de 200 novos processos que ele recebe todo mês. Desde aqueles que são mais repetitivos, até os mais complicados, e mais individualizados. É claro que aqueles mais complicados, aqueles mais delicados, aqueles... onde se exige uma certa atenção maior, como é o caso desses de Reforma

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Agrária, e de desapropriação para fins de Reforma Agrária, esses trâmites, eles acabam andando muito devagar. Infelizmente.

Entrevistador O planejamento e a execução de uma política geral, profunda, de Reforma Agrária, implicaria na criação de uma Justiça especializada para atender essa demanda?

PSD Não acredito. Não acho que ele seja necessário, não. Eu acho que haveria – há como a gente trabalhar, uma política pública de Reforma Agrária, no âmbito da Justiça Federal. A gente escuta, dentro dessas... em vários setores, necessidade de se pensar em uma Justiça especializada, ou em varas especializadas. O que eu penso é que a questão aí teria que ser analisada em termos de política judiciária, não... mais até do que na política de Reforma Agrária. A nossa Justiça, ela deveria atuar nessa espécie de problemas. E não em milhões de ações idênticas, que o cidadão propõe contra o Estado. Nós não devíamos estar nos preocupando, por exemplo, em julgar dois milhões de processos iguaizinhos, com relação ao reajuste das aposentadorias... no ano, no mês de janeiro de 94. O problema, o que que deveria acontecer: deveria, no momento em que alguém, um dia, julgou definitivamente, o Supremo reconheceu que “os aposentados têm direito ao reajuste de janeiro de 94”, o governo deveria, num momento ou em outro, aplicar esse reajuste pra todo mundo. Pra todo cidadão que estivesse naquela mesma situação. Com isso, ele estaria respeitando, demonstrando respeito ao cidadão, e demonstrando respeito à Justiça. Mas não. O que que o governo faz? Ele diz: “Então tá. Eu vou pagar pra este aqui - e aí, ele diz - mas eu não vou estender pra todo mundo. Cidadãos: vou lhes dar um calote; vocês, se quiserem, entrem com uma ação contra mim. Eu vou pagar no dia em que eu for obrigado pela Justiça”. É uma coisa do tipo “devo, não nego, só pago quando obrigado pela Justiça”. Aí, o que acontece: nós acabamos recebendo um milhão, dois milhões de processos iguaizinhos sobre aquele assunto, e sendo obrigados a julgá-los, ainda tendo que escutar o governo dizendo “tá vendo como a Justiça é lenta?”. Porque esses processos demoram pra sair! Com relação a ultima grande leva de processos previdenciários, nós tivemos, em quatro meses, um milhão de processos propostos. Em quatro meses tivemos que dar conta disso. Felizmente, temos uns juizados especiais federais que já estão informatizados, então deu pra dar conta disso de uma certa maneira. Mas periodicamente acontecem essas coisas, e a Justiça se congestiona. Em todas as cidades do país onde há Justiça Federal. Então, o que acontece? Essas ações mais complexas, que são realmente casos individualizados, acabam ficando pra trás. Então, a postura do poder público, que leva a que essas ações de Reforma Agrária seja complicada, seja difícil, pro trâmite dessa ação seja difícil, é a mesma postura que faz com que o Judiciário esteja congestionado por ações idênticas, e não possa tomar conta, como se deve, das ações mais complicadas. Então é um problema de política judiciária, é um problema de

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postura ética do poder público perante os seus cidadãos, e da postura ética do poder público em juízo. E isso congestiona a Justiça, e impede que ela atue dentro daquilo que devia. Então, pra concluir: se a gente tiver - acredito eu, tem – na escala do movimento de diminuição do número de processos, atualmente; na medida em que esse processo se concretizar – porque a correção monetária acabou, e grande parte dos nossos problemas dizia respeito à discussão sobre índices, planos econômicos mirabolantes, e aquela história toda, e isso esta diminuindo com o passar do tempo; e nós não temos tido grandes levas de discussão de inconstitucionalidade, grandes teses tributárias, etc, isso não tem surgido com freqüência, atualmente. Então, se se mantiver essa tendência dessa queda da quantidade de novos processos, a partir do instante em que o Judiciário conseguir dar conta de limpar o “estoque acumulado”, eu acredito que nós teremos uma melhora na velocidade dos processos. Isso num curto prazo, até mesmo em dois, três anos. E vai fazer com que a Justiça Federal acabe realmente cumprindo o seu verdadeiro papel, que é o de julgar esse tipo de causa complexa com maior eficiência. Isso torna-se, pra mim, desnecessário a criação de uma nova Justiça, de uma nova estrutura burocrática, para analisar esse tipo de questão. Uma estrutura como essa daqui a pouco vai acabar entrando no mesmo processo que outras estruturas burocráticas: acabar lutando pela sua própria sobrevivência, ao invés de lutar para atingir o objetivo para o qual ela foi criada.

Entrevistador É possível perceber, da parte do poder executivo, alguma mobilização do Poder Judiciário, dos juizes federais, para dar celeridade no processo de Reforma Agrária?

PSD Do executivo? Entrevistador É. Que desenvolvesse alguma ação para sensibilizar o Poder

Judiciário, chamando a atenção e reclamando celeridade nas ações de desapropriação?

PSD Nunca. Entrevistador Nunca? PSD Pelo contrário. Pelo contrário! Quando alguém... Quando

qualquer governo propõe uma ação de desapropriação, qualquer que seja ela, na minha... pelo menos na minha experiência, o que a gente vê é que o que interessa pra ele é a emissão na posse. É um dinheirinho ali pra obter a emissão na posse, e resolvido isso, não interessa que o processo ande rápido. Porque o processo andar rápido significa o quê? Pagamento em dinheiro! E eu não conheço nenhum governo que tenha pressa em pagar. Então eu não tenho visto isso, não. Tenho visto algumas atitudes, assim, de uma melhora na postura, nessa postura ética, a que eu me referi há pouco. Tenho visto, porque a própria criação dos juizados especiais federais, significou uma disposição do governo em fazer com que as ações contra ele demorassem menos. Uma coisa que foi criada no governo anterior, e solidificada neste. Mas isso é pro processo em geral, e jamais

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alguma coisa especifica com relação à Reforma Agrária. Muito pelo contrário: tivemos alguns exemplos no finalzinho do governo passado terríveis, onde processos demorados de Reforma Agrária eram jogados nas costas do Judiciário, e quando a gente ia ver o que que tinha acontecido no processo, a gente via que tinha pedido de desistência da ação por parte do governo, depois o governo desistia da desistência... Uma confusão enorme, né, nos processos, onde parecia que o governo não se entendia dentro do próprio INCRA, do próprio Ministério. (risos)

Entrevistador Qual a sua avaliação do trabalho do INCRA nas ações de desapropriação. Dá pra fazer uma avaliação?

PSD Olha: a minha avaliação pessoal vai ser até há algum... há algum tempo. Tá? A minha avaliação pessoal, nesse aspecto, estaria um pouco defasada, uns dois ou três anos. Mas é uma atuação ruim. Uma atuação ruim... Como era ruim, como toda a advocacia pública, pela falta de estrutura que era dada aos procuradores. Mas eu tenho detectado uma melhora na qualidade da advocacia pública, nos últimos anos, uma melhora na... na espécie de defesa que se fazia, né? E eu tenho detectado essa melhora no âmbito geral. Então eu acredito que isso também deva estar acontecendo no INCRA.

Entrevistador O juiz federal, e o Poder Judiciário como um todo, o próprio Supremo, acabam dando grande peso, na hora de decidir, para o laudo elaborado pelo perito do INCRA que fez a avaliação da área, que diz se a área é produtiva ou improdutiva. Não existe aí uma grande carga, sobrecarga, sobre este documento, elaborado pelo perito do INCRA, ao dizer se a propriedade é produtiva ou improdutiva? Não haveria um outro mecanismo que pudesse ser mais coerente, digamos, com a função social daquela propriedade, ao elaborar este laudo, atestando se a área é produtiva ou improdutiva?

PSD É. Toda vez que o juiz depende de uma prova técnica, e ele vai se utilizar da perícia, ele vai enfrentar esse problema. Estejamos nós falando de uma avaliação em termos financeiros, estejamos nós falando se a área é produtiva ou não é produtiva, ou se nós vamos estar falando, por exemplo, de uma perícia médica de uma pessoa, pra saber se ela é apta ao trabalho ou não, pra saber se ela vai receber uma aposentadoria por invalidez. Né? Então sempre vai enfrentar esse problema. A questão é: o juiz conseguir ter peritos da sua confiança, em que ele consiga verificar se naquela área há a produtividade ou não... A questão é saber se nós teremos condições de ter uma decisão bem subsidiada. Elementos que já dêem a decisão. Tudo bem, hoje a gente tem muito mais o laudo do INCRA, porque é difícil... o que que a gente vai ter, vai por no lugar? Se a gente tem outras coisas pra por no lugar, nós vamos nos fiar em outras, e ver aquela balança: do perito judicial, do INCRA, né, do réu, ou seja lá de quem for. Tem outros elementos: a gente vê por exemplo, laudo com aqueles elementos baseados nas fotos de satélite, em

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satélite, aquele projeto da Embrapa, né? Existe essa possibilidade. E dali, de se começar a analisar qual é a produção que tinha naquela área nos últimos anos. Com base nisso você consegue checar se aquela área realmente é produtiva, se ela é improdutiva, ou se ela se tornou produtiva de repente, só pra esperar a avaliação. Né? Isso é possível de ver. Agora: é... por outro lado, a gente não pode esquecer que o Poder Judiciário, ele, em si, ele é um poder conservador. Isso tá mudando? Tá. Nos temos visto posturas mais progressistas por parte dos juizes, com mentalidades novas, baseadas até mesmo na mudança da própria origem dos juizes que iniciam a carreira, né? Que não é... Mas ainda é, o Judiciário, um poder conservador. E isso faz com que a própria demanda sejam vistas com olhos diferentes. Né? Eu sou otimista nesse aspecto, acho que a gente tá melhorando.

Entrevistador Sobre a legislação que institui a política de Reforma Agrária. Qual a sua avaliação sobre a legislação como um todo, desde a Constituição Federal e das leis ordinárias que estabelecem as regras para as ações de desapropriação?

PSD A mesma coisa. Altamente conservador. A gente não tem, hoje, nem sequer clima pra pensar em algo diferente. Porque a... a postura adotada pelo governo em relação a isso é uma postura ambígua. O Congresso também, afinal de contas quem tá no Congresso são pessoas que refletem o substrato social que consegue ter acesso àquele lugar, né, com raras exceções... E isso também é conseqüência de... de movimentos como os que deram origem a uma oficina do Fórum Social Mundial – do primeiro, não, do segundo Fórum Social Mundial que nós fizemos – sobre a criminalização dos movimentos sociais. Os movimentos sociais hoje são vistos como... é... como... esses movimentos sociais são vistos como movimentos criminosos, como um bando de baderneiros, e essa tendência, ela dificulta qualquer medida concreta que vise se buscar uma legislação de Reforma Agrária mais produtiva. Acaba, ainda, alimentando a visão de que “esse povo é gente que tem que ir trabalhar ao invés de ficar reclamando dessas coisas”.

Entrevistador Mas na sua visão, a atual legislação seria suficiente para o Estado desenvolver uma política de Reforma Agrária eficaz? Ou teríamos que, teríamos necessariamente que ter a alteração?

PSD Não, dá. Dá. Acho que se ele quisesse, faria. Mesmo com a atual legislação. Acho que os instrumentos, eles existem. Essa legislação é conservadora – ah, agora entendi. Essa legislação é conservadora? É. Mas se quisesse dava pra fazer. Acho que dava.

Entrevistador Existe uma discussão que nasce a partir da Constituição Federal, e que tem a ver com posturas mais conservadoras ou mais progressistas. Qual a sua opinião sobre aquele princípio de regras da Constituição Federal que diz que a Reforma Agrária tem que ser feita na propriedade que não cumpre a função social?

PSD Bom. Que é polêmico, naturalmente que é. E... as decisões que prevalecem, hoje, elas são aquelas que assumem a posição mais

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conservadora. Mas eu entendo o contrário: eu acho que a função social, ela é um elemento intrínseco à propriedade, e a propriedade que não cumpre essa função social, ela “não o é”. E ponto. E aí então a gente analisar, tem que olhá-la de uma maneira diferente. Tá? Eu acho que não é uma questão só de produtividade ou não. É uma questão da função social, que vai além disso, certamente.

Entrevistador Na sua opinião, se o INCRA provocar, através de uma ação a desapropriação de uma propriedade - não apenas pelo critério da produtividade, mas pelo conjunto da função social - o juiz federal tem condições, de acordo com regras legais, de decidir pela desapropriação, porque não cumpre a função social?

PSD Olha... Acho que tem, e... mas a discussão ainda vai mais longe sobre o que que vai significar esse descumprimento da função social. Ainda que o juiz fale “tá, eu concordo. Se não está cumprindo sua função social, pode desapropriar”. Aí nós vamos pra uma outra análise, que é igualmente subjetiva, sobre se estará ou não atingindo aquilo, dentro do que se espera pra aquela propriedade, do que se espera pra aquele local. Acho que dá uma confusão danada, mas eu acho que já já isso vai começar a acontecer. E já andou acontecendo.

Entrevistador Aproveitando o gancho dos movimentos sociais, qual é a sua visão sobre os vários movimentos sociais, ou especialmente sobre o MST?

PSD Olha. Não é um movimento isolado não, acho que é uma coisa altamente organizada, hoje, e... Ao mesmo tempo, se a gente tem algum movimento em direção à Reforma Agrária, hoje, no país, é porque existe essa pressão. Se não houvesse essa pressão, isso não aconteceria. E como qualquer movimento de pressão, comete excessos. E, claro que, pelo lado que se opõe a ele, ele será julgado pelos excessos, e não pelo movimento que ele representa efetivamente, como um todo. Não é? Então, eu acho que se não fosse a existência desses movimentos, nada aconteceria. Então, eu acho, eu vejo uma real utilidade dele pra poder movimentar o governo a fazer as coisas. Não digo só e simplesmente esse, é como eu estou dizendo: o poder público de maneira geral.

Entrevistador Você teria algum conselho para um curso de direito que se proponha a discutir a política de Reforma Agrária?

PSD Levar todo mundo pra discutir. Um curso de direito, ele tem a obrigação de fazer com que os alunos possam se tornar, não mais massa de manobra, mas sim uma massa crítica. Então, eles têm que dar informações a eles, de todos os lados que existem numa questão, pra permitir que cada aluno possa formar, fazer sua própria análise critica sobre aquela questão, e chegar às suas próprias conclusões. Sem ficar simplesmente reproduzindo o que vê no jornal da noite na televisão – não vou nem dizer o que lê no jornal, porque hoje poucos lêem isso. Mas - mesmo os que lêem o jornal - então os alunos têm que formar sua própria conclusão. E pra isso tem que levar todo mundo. Não foi

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diferente, não foi outra coisa o que a gente fez lá em Ribeirão Preto, num evento sobre Reforma Agrária, que a AJUF promoveu lá, quando nós levamos o MST e o Ministério da Reforma Agrária pra discutir a questão da Reforma Agrária, num debate que durou três horas e meia, e que foi mediado por um juiz federal. Nós fizemos a mesma coisa com um juiz federal, levando esse tipo de informação a ele, que também nem sempre é acessível.

Entrevistador Se tiver outras considerações o microfone está aberto. PSD Você conversou comigo antes sobre a atuação do judiciário nas

políticas públicas, como quase um formulador de políticas públicas. Eu acho que o Judiciário vai intervir cada vez mais nisso, sim. E isso não é um absurdo. Acho que a visão positivista, estritamente positivista, do nosso direito, ela está cedendo à realidade... E acho que vai existir cada vez mais uma... um chamado do judiciário a intervir em questões que digam respeito a políticas públicas. E o ponto ótimo dessa intervenção ainda está longe de ser alcançado. Ainda está longe de ser descoberto e alcançado. Penso que o ideal seria que não precisasse. O ideal seria que os governantes definissem as políticas públicas, que elas fossem políticas de médio e longo prazo, muito bem definidas, que permitissem ao eleitor decidir, né, e toda vez que um juiz fosse chamado a analisar uma política pública, analisar, saber se essa ou aquela atitude deve ser tomada pelo poder público, ele dissesse: “não, isso aí vocês votaram nesse governo, que tem essa plataforma, que tem essa política, nesse partido, e vai ser assim”. E esse poderia ser o ideal. Mas infelizmente isso não acontece, e está longe de acontecer. O judiciário vai ser chamado sim, porque muitas vezes há cidadãos que permanecem à margem de qualquer política pública, e eles têm o direito de tê-las! Têm o direito de serem beneficiados por políticas públicas. A dificuldade é: que nós vamos estar substituindo o formulador da política pública, o definidor da política pública. Né? Mas vai ser com o exercício desse tipo de dialética que nós vamos chegar no ponto ótimo.

Entrevistador Uma outra questão ainda: no caso que nós estamos analisando, que é o caso da Fazenda Timboré, verificamos a ação do poder do Estado, através do Poder Executivo, que é quem tem a competência para desenvolver a política de Reforma Agrária, e, paralelo a essa ação do Estado, observamos o trabalho do particular, proprietário, através de um mandato de segurança, que impediu a ação do Poder Executivo, na discussão da política de Reforma Agrária. Aí não existe uma contradição interna do próprio Estado – você estava até falando agora há pouco, que o Poder Judiciário irá cada vez mais interferir nas políticas públicas. Mas aqui não houve uma contradição, no caso especifico da fazenda Timboré? Como explicar isso?

PSD É, veja... Eu não conheço os detalhes do caso, tá, mas a princípio, eu vejo assim: que toda questão tem no mínimo dos lados, e aí o cidadão está tentando - o particular - estava tentando defender a sua posse, a sua propriedade. Tudo bem,

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ele tem direito a fazer isso, e foi o que ele fez, pelo visto. Ele estava entrando com uma ação, um mandado de segurança, tentando impedir que sequer se discutisse a desapropriação.

Entrevistador Exato PSD Não é? Direito ele tem. E esse direito, ele deve ser analisado,

também, com o mesmo cuidado que se analisa os outros direitos que estão colocados aí na balança. A dificuldade, pra mim, é verificar como é que um mandado de segurança - se ele foi baseado em... se dizer se um laudo está certo ou está errado - a dificuldade pra mim está principalmente aí, de saber se é possível um mandado de segurança bloquear todo um processo de desapropriação, com base em um laudo. Isso é uma matéria de fato... totalmente fática, essa matéria. Então fica difícil imaginar que num mandado de segurança diga “não, este laudo está errado, logo, pare”. Mas além disso, eu não vi, exatamente, a questão.

Entrevistador Bom, eram essas as questões. Agradeço muito, agradeço muito a consideração pela entrevista.

PSD Não, eu que agradeço a deferência, de ser honrado com essa possibilidade de conversar com você. Fico muito contente. Muito obrigado.

Entrevista com juiz federal Luciano Godoy Avenida Paulista – Prédio do Tribunal Regional Federal da 3ª Região

Entrevistador

Gostaria de saber qual é a tua opinião sobre a responsabilidade do Estado na solução do problema agrário brasileiro. Entendido aqui problema agrário como o complexo problema que gerou, entre outras coisas, o êxodo rural e a concentração de muita gente em algumas cidades, a concentração da propriedade na mão de poucas pessoas e a baixa produtividade das terras brasileiras em comparação com outras nações.

LG Agradeço a oportunidade de falar. Eu tenho uma vinculação com a questão agrária, não só a partir da origem, de ser uma pessoa interiorana, do interior de São Paulo, como por uma vocação

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profissional, que trabalhei nas questões do Pontal do Paranapanema como procurador do Estado e depois fiz o meu mestrado em Direito Agrário na USP. E nesse trabalho de mestrado, eu elaborei uma idéia que a Constituição Federal de 88, traz um sistema nacional agrário, um sistema nacional de direito agrário onde o constituinte, o legislador da constituição pretendeu estabelecer um conjunto de institutos - que nós poderíamos mencionar sete institutos que vinculam o Estado e os três entes, a União e os estados, e com menor importância os municípios, mas também os municípios - no desenvolvimento de uma política agrária nacional, baseada na aplicação do princípio da função social da propriedade. Princípio da função social que está disciplinado no artigo 186, já trazido do estatuto da terra. E por esse princípio, a propriedade agrária deve ser, deve atender os seus requisitos, basicamente ligados a três aspectos, que é: a produção e a produtividade, o respeito ao meio ambiente e as relações de trabalho. Com vistas a quê? Com vistas à melhora do ambiente do meio rural, o ambiente onde estão as pessoas empregadas, os trabalhadores rurais, mas principalmente atender a idéia de segurança agro-alimentar, que é uma idéia de um conceito já não tão moderno, que viaja pelo mundo; isto é, produzir alimentos e matérias-primas para as pessoas que moram na cidade. Então, são duas as finalidades da política agrária: gerar o bem-estar entre proprietários e trabalhadores no meio rural, e atender à produção de alimentos e matérias-primas para o país e gerar uma segurança alimentar. Em razão disso, a Constituição traz seus inúmeros institutos que podemos destacar três: política agrícola, imposto territorial rural progressivo e desapropriação para fins de reforma agrária. Institutos que sempre levam a estimular a produção e desestimular a improdutividade. E outros institutos como usucapião, como a aquisição de terras por estrangeiros, como a proteção da pequena propriedade rural e a disciplinação do uso de terras públicas, esses outros institutos são complementares desta aplicação do princípio da função social. E a Constituição, é interessante dizer que ela compatibiliza todos os institutos no artigo 186 em torno da idéia da Reforma Agrária, mesmo quando o instituto não é diretamente ligado à Reforma Agrária, como o uso das terras públicas, a constituição liga, dizendo: "A disciplinação em terras públicas deverá ser vinculado ao projeto nacional de Reforma Agrária". Mesma coisa, a questão do usucapião: o usucapião, de início, não tem vinculação à Reforma Agrária, mas tem uma finalidade social de atender a uma pessoa que não tem imóveis, que não é proprietário, e ali tem que tornar produtivo o imóvel para adquirir usucapião. Então, é um sistema nacional que visa atender uma política nacional agrária com essas duas finalidades: o bem-estar da população que vive nesse meio, e a produção de alimentos. No entanto, sabemos que o Estado, e aqui o Poder Público, e em regra a União Federal, não vêm dando cumprimento a este comando constitucional de forma adequada. A política agrícola é capenga; os créditos agrícolas, em

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regra, não chegam aos pequenos produtores; os juros são altos; o imposto territorial progressivo não é cobrado seriamente, de forma a punir aquele não produz e de forma a estimular quem produz; a Reforma Agrária, por meio de desapropriação, é feita de uma forma pontual, sem nenhum planejamento; a questão da aquisição de terras por estrangeiros também não é levada de forma muito organizada; e a questão da disciplinação em terras públicas é algo que vem caminhando de forma muito devagar. Isto é, não há um investimento estatal, do Estado, não há investimento do poder público na política agrária, que conjugaria todos esses institutos.

Entrevistador E qual a responsabilidade do Poder Judiciário na implementação de uma política pública de Reforma Agrária?

LG Eu penso – até já me manifestei outras vezes nesse sentido, e publiquei trabalhos – que o juiz, no Estado moderno – ainda mais num Estado moderno de um país que é tido como “em desenvolvimento”, um país que é um país pobre como o Brasil – que o juiz tem um papel até mais importante que se fosse um país plenamente desenvolvido: ele ocupa um papel de ter que analisar, no caso, julgamento, não só a questão jurídica ali, mas a repercussão da sua decisão. A sua decisão irá causar um impacto no meio social, na sociedade como um todo, de forma relevante. E isso em todos aspectos onde há política pública envolvida. Então, podemos falar dos casos próprios da Justiça Federal, como é o caso dos benefícios previdenciários. É lógico que os juizes julgando as causas, ou a estrutura judiciária tendo aparelhagem suficiente para julgar as causas, você vai estar favorecendo uma população que é pobre, que não tem acesso à justiça, que não vêm obtendo os benefícios, porque o INSS os concede de forma muito econômica. Em outras áreas, como a área de proteção ao consumidor e proteção ambiental: o Estado também não atua da forma como deveria, então a cobrança das entidades civis, das associações civis, das ONGs, por meio do judiciário, é importante para a defesa do meio ambiente e defesa do direito dos consumidores. Especificamente no caso da Reforma Agrária, há necessidade do juiz ter uma sensibilidade social na questão envolvida, na questão envolvida. Por quê? Porque é uma questão que remonta a cinco séculos, desde da origem do país. É uma questão que vem da colonização, que uma camada da sociedade brasileira sempre teve acesso a terra e mantém este volume de terras de forma bastante grande, até hoje. Até porque, durante muito tempo, - acho que hoje diminuiu, mas ainda presente – o poder político era derivado da quantidade de terras que essa camada da população tinha. E uma outra camada da população nunca teve acesso ao meio de produção, né? Era uma camada da população desfavorecida, e por isso que gera uma desigualdade na distribuição de terras no Brasil. E que também nunca foi corrigida: os programas de Reforma Agrária nunca chegaram ao fim, os governos sempre foram econômicos e nunca fez-se nada que tivesse continuidade – nem durante o Regime Militar, que

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editou o Estatuto da Terra, nem depois da redemocratização do país a partir de 85. Então, o juiz, para entender esta questão, precisa um pouco considerar a evolução histórica desta questão. Eu chamo “evolução histórica da formação territorial do Brasil”. Porque está muito ligado a isso. E pensar, que muitas vezes, alguma atitude dos movimentos sociais são criminalizadas, não porque seja um crime em si, mas porque isso vai favorecer a manutenção deste próprio status quo. Nós, por meio da Associação dos Juizes Federais do Brasil, já fizemos vários trabalhos sobre esta questão de criminalização de movimentos sociais para a manutenção do status quo jurídico, - isso também está publicado, e foram trabalhos feitos durante o Fórum Social Mundial em Porto Alegre nas suas várias edições. Então, o juiz, e o juiz federal, que é um juiz que lida com políticas públicas, resumindo, é um juiz que tem que ter uma sensibilidade social para essas questões, e nas questões de Reforma Agrária ainda maior, porque a discussão envolve apelo social e envolve uma causa que é originária da formação territorial do país.

Entrevistador O Poder Judiciário vem desempenhando a contento o seu papel na execução da política de Reforma Agrária?

LG Não, acho que não. Não vem, porque as causas acabam ficando de grande litigiosidade, acaba-se demorando muito para se ter o resultado, e o resultado nesse tipo de demanda, quando demora, ele faz perpetuar o conflito existente. Se existe um conflito subjacente na sociedade, a demora da solução pelo Judiciário faz permanecer o conflito, envolvendo até risco de vida para as pessoas. Por isso é que eu, particularmente, defendo a posição, e a nossa entidade também, em vários seguimentos, que sejam criadas varas especializadas em questões agrárias, no âmbito da Justiça Federal, e varas que julgariam não só os processos relativos à Reforma Agrária, mas também as reintegrações de posse entre proprietários e trabalhadores rurais, que envolvesse discussão coletiva. Essa questão caminhou em 2004, foi apresentada ao Governo Federal, e o Governo Federal iria apresentar como projeto de emenda constitucional, e não apresentou até hoje, essa criação de varas federais agrárias. Mas a nossa defesa é isso, que a especialização vai trazer uma melhora no quadro. Não acredito que vamos, não vai resolver da noite pro dia, porque a causa é complexa. Mas vai melhorar o quadro. Você tendo juizes especializados, você tendo a quem recorrer, tendo interlocutores, irá criar um “meio ambiente”, dentro do Judiciário, favorável, que as causas tramitem com mais velocidade. E essa é uma demonstração que hoje não está sendo julgada a contento.

Entrevistador Em São Paulo, durante um tempo, houve uma vara especializada nessas questões de desapropriação. Por que foi modificada sua competência?

LG Na verdade, a criação que foi feita dessa vara especializada, foi feita de forma equivocada. Ela foi feita por uma norma administrativa do Tribunal, que baixou uma resolução e criou,

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dentre as varas da capital, uma que era especializada em matéria agrária. Na época, a Justiça Federal não tinha varas no interior do estado, eram varas todas na capital. Então, dentre as varas da capital, uma julgava essa matéria. A partir de 1992, a Justiça Federal começou a interiorizada em maior velocidade, e hoje nós temos 50 cidades que têm varas da Justiça Federal no estado de São Paulo, pra maior acesso da população ao Judiciário Federal. E, nesse meio tempo, foi julgado, num conflito de competência aqui do TRF, uma questão sobre uma ação de desapropriação para fins de Reforma Agrária, fazendo um confronto entre essa resolução interna e o código de processo civil, que diz que as causas que julgam imóveis, as causas de natureza real, têm que ser julgadas no foro do domicílio do imóvel. E acabou prevalecendo essa posição, porque a lei que ocorre o processo civil teria que prevalecer. E a resolução, então, foi revogada por decisão judicial do próprio Tribunal. A partir daí é que nós defendemos, então, a criação dessas varas especializas, que terão foro na capital, mas terão atuação, terão jurisdição em todo estado. Então as causas do estado todo concentrarão numa vara só, que pode estar localizada em qualquer lugar, de preferência também na capital, mas pode estar localizada numa outra cidade do interior. As causas serão concentradas ali, e o juiz irá se deslocar - até pra fazer vistorias e acompanhar os trabalhos - por todo o estado, né, seria uma vara que teria um caráter um tanto quanto itinerante, né. Então seria uma concentração, só que isso feito por meio de emenda constitucional e depois por projeto de lei, pra não ter essa discussão acerca da legitimidade perante o código de processo civil.

Entrevistador Os juizes, em sua maioria, possuem informação técnica-jurídica para atuar nessas ações de desapropriação?

LG A questão é perversa. (risos) Faço questão de usar esse termo: perversa. Porque é um ciclo de ineficiência. Não há cadeira de direito agrário nas faculdades. Até onde eu sei, no estado de São Paulo, nós temos quatro faculdades que ensinam direito agrário, que é: a Universidade de São Paulo, a Universidade São Judas, a Universidade Mackenzie e a Faculdade de Direito de Itu. São essas quatro faculdades. Eu, por muitos e muitos anos, fui e sou professor e "palestrista" de direito agrário e profiro palestras, cursos em vários lugares e sei do desconhecimento que os profissionais em direito, em geral, têm da matéria. Então a cadeira não é ensinada. Se não é ensinada, nós temos advogados, juizes, promotores, delegados de polícia, funcionários de cartório... todo o aparato que lida com a justiça, que passa pela faculdade de direito, desconhece o assunto; porque ele não estudou aquilo, ele não teve discussão na faculdade, ele não teve que pegar um livro... Ele sabe que existe, ele ouve dizer, geralmente por notícia de jornal, mas não tem uma proximidade com o assunto. Com isso - nós deveríamos ter as cadeiras, e já foi pedido ao MEC que incluísse no currículo geral. No entanto, nós sabemos que não há professores para dar a cadeira. Por quê?

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Porque as faculdades precisariam ter cursos de pós-graduação e não têm. A única faculdade, a única universidade que tem curso de mestrado e doutorado em direito agrário é a Universidade de São Paulo. Nem a PUC, que tem toda uma visão social do direito, uma vinculação com a igreja católica, nunca ensinou direito agrário na sua escola de direito. Nem a PUC de São Paulo, nem a PUC de Campinas. Isso no estado de São Paulo. Então, você teria que ter formação de professores, para que pudesse instituir isso na grade geral. E é isso, os profissionais do direito como um todo, acabam não tendo conhecimento na matéria. Não tendo conhecimento da matéria, o que gera uma perversidade depois, na aplicação dos institutos que eu acabei de mencionar, quando eles se judicializam. Porque os institutos são aplicados sem aquela chamada “mentalidade agrária”, que é um termo usado pelos agraristas antigos como Paulo Tomini, como Fernando Pereira Sodero, que falavam que o profissional precisava ter uma mentalidade agrária. Por isso, mais uma vez, que eu reforço: a criação de uma vara especializada seria um momento de fomento do estudo da matéria. Porque essa vara precisaria de profissionais como juizes, servidores do cartório, haveria procuradores da União, haveria advogados e membros do Ministério Público destinados a isso, e criaria-se um ambiente saudável para o estudo e o amadurecimento da matéria e da discussão. Isso aconteceu com a Justiça do Trabalho: o Direito do Trabalho no Brasil se desenvolveu muito a partir da criação da Justiça do Trabalho, porque você precisava de profissionais para trabalhar nesse novo ramo especializado da Justiça. Então o Direito Agrário é perverso por isso, você cria um ciclo: como você não tem professores, você não tem alunos e aí você não tem quem trabalhe direito, e você começa a não gerar professores. Então é ciclo todo, que eu tenho certeza e convicção, por experiência de vida, que nada é sem razão. A razão é justamente que a matéria não amadureça porque não se quer mudar o status quo atual.

Entrevistador Em que medida este despreparo dos magistrados e do sistema jurídico como um todo contribui com as mazelas do problema agrário brasileiro?

LG Eu não saberia dimensionar, não tenho pesquisas para fazer isso. Mas pela experiência de vida, sem dúvida. A falta de amadurecimento da matéria, gera uma falta de conhecimento. A grande maioria dos juizes, eu tenho convicção que são pessoas de boa fé, dedicadas ao seu trabalho e competentes. Mas muitas vezes não têm a informação jurídica-técnica suficiente para o julgamento. E com isso, vão aplicar outros ramos do direito no julgamento, numa causa que teria que ter uma mentalidade agrária envolvida: Direito Civil, Direito Administrativo, Processo Civil. E volto a falar: eu acho que a falta de desenvolvimento da matéria tem por dentro uma intenção também perversa, de que o desenvolvimento do Direito Agrário vai desenvolver maior questionamento. Então é melhor deixar como está, porque não se criam tantos problemas. No Judiciário, no Judiciário, o

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encaminhamento da questão, por incrível que pareça, hoje, eu acho que é bem melhor do que já foi há cinco, dez anos atrás, né. O trabalho dos movimentos sociais e da advocacia dos movimentos sociais vem esclarecendo a questão e vem melhorando a “assimilidade” do assunto, né? Hoje você tem um tráfego melhor dessas causas do que tinha há dez anos atrás, sem sombra de dúvida. Se hoje já não é muito bom, há dez anos era pior. Mas não é aquela discussão técnica ainda. Técnica-jurídica, da aplicação da Constituição, da função social da propriedade agrária, da discussão dos princípios que o legislador traz e assim por diante, né. Então, os processos acabam ficando muito mal trabalhados. Além disso – e aí volta na questão da especialização, que eu acho que hoje é a saída – além disso, as varas federais de São Paulo, elas são muito abarrotadas de processo, o que nós chamamos aqui, que o tráfego de processo aqui é bastante lento. E isto é, nós temos um número insuficiente de juizes para o volume de causas. E o juiz tem que lidar, então, com uma escolha de prioridades; e a Reforma Agrária, por mais prioritária que seja, são processos muito trabalhosos e de uma dedicação muito grande. E ele convive com processos da mesma vara, de benefício de aposentadoria, de auxilio doença, questões relativas a servidor público, relativas a sistema financeiro de habitação... Todas causas importantes, porque se está na Justiça é porque tem uma demanda de dois que tão litigando, e na Justiça Federal é sempre alguém litigando contra o Poder Público Federal. Então, por uma questão até de trabalho cotidiano, de sobrevivência diária, essa demanda, que é trabalhosa, que levaria um mês pra julgar, vai ficando pra trás. Porque ele vai julgar aquilo que está mais à mão, e que também é importante, que são principalmente as causas de aposentados, né. As varas do interior têm essas causas em volume bastante grande, aposentadoria rural, pensão por morte e etc. Então, há necessidade não só do aprimoramento técnico, mas de ampliação, de ampliação da estrutura judiciária, né? Da ampliação da estrutura judiciária, que no estado de São Paulo é ainda bastante pequena. Para se ter uma idéia, em 2002 a AJUF fez uma pesquisa, e se verificou que metade dos processos da Justiça Federal do país tramitam no estado de São Paulo. A outra metade tramita em 26 estados. E que o Tribunal Regional Federal da terceira região, este que nós estamos, o TRF, tem mais da metade dos recursos julgados pela Justiça Federal. Os outros quatro TRFs não são do tamanho, somados, não são do tamanho do TRF de São Paulo. Por quê? Porque é o estado mais populoso, é o estado onde as pessoas tem maior nível de acesso à informação, aos advogados, então o nível de questionamento judicial é muito alto, o que se transmite em muitas causas, né. E as questões de Reforma Agrária estão nesse meio, né, como mais um problema a ser resolvido.

Entrevistador Qual a tua avaliação do trabalho do INCRA nas ações de desapropriação?

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LG Eu não conheço muito o trabalho do INCRA. O que eu conheço são trabalhos muito bem feitos. Não tem grandes reclamações a fazer. Mas já ouvi reclamações de ineficiência do trabalho do INCRA, porque o número de procuradores é reduzido, e as causas estariam espalhadas por todo estado. Até diziam, na época da criação da vara especializada, que essa era uma demanda também para favorecer o INCRA, que tem os seus procuradores concentrados na capital. Era uma das alegações da época. Mas, sinceramente, não tenho conhecimento de trabalho ‘ineficaz’ do INCRA. Eu sei que falta estrutura... Tenho notícias de trabalho de perícias, de judiciais, de laudos de vistoria do INCRA, e que nem sempre são bem realizados. E o juiz tem que repetir essa prova. Não adianta o INCRA, na hora de fazer o processo administrativo, na hora de fazer o laudo de vistoria prévio à ação de desapropriação, ser tendencioso ou alterar... ou levar a questão de forma a criar as condições para a desapropriação, porque isso só cria meios e brechas pra depois haver uma discussão judicial sobre aquele laudo de vistoria. Então, quanto mais idôneo, mais isento, melhor detalhado for o laudo de vistoria, menor chance de discussão judicial aquilo terá depois no judiciário, né. Então, já ouvi dizer. Mas de perto, pessoalmente, de frente, não conheço e não posso dizer que haja um trabalho que não seja bom.

Entrevistador As leis que temos hoje são suficientes para o Estado desenvolver uma política pública capaz de resolver o problema?

Luciano Eu acho que são em parte, em parte são suficientes. Eu não acho que a lei complementar 76 é uma lei de processo boa. No atual ambiente constitucional, não teria meios de se fazer uma lei que fosse mais eficaz do que aquela, pela preservação do direito de defesa, a lei já é uma lei bastante rígida com o proprietário, que é o réu da ação de desapropriação. A lei 8.629 também, com as alterações que foram realizadas, me parecem condizentes, está de acordo com a jurisprudência do Supremo. Eu faria só algumas observações. A primeira questão é: se volta a falar da criação de vara especializada, e que exigiria uma alteração processual. A segunda é a inadequação e até uma inconstitucionalidade da Medida Provisória que proíbe a desapropriação de áreas ocupadas ou invadidas – que esse não é um obstáculo que a Constituição coloca, e eu sempre me posicionei, porque eu acho que é imprópria essa legislação, que o governo atual mantém. A terceira questão é o artigo 7º da lei 8.629 que autoriza a apresentação de um projeto técnico para imunizar a propriedade de expropriação agrária pelo prazo do projeto técnico. Essa é uma abertura que eu também acho que não deveria acontecer, porque ela isenta de forma muito fácil, alguém que hoje não cumpre a função social, mas que promete cumprir no futuro. E não há uma fiscalização do INCRA pra ver se esse projeto agropecuário está sendo executado. Outra alteração legislativa que acho que poderia ocorrer, seria na questão da prova técnica da Reforma Agrária, na perícia judicial, né. A perícia judicial não poderia ser deixada na mão de um perito só, e mais um perito que geralmente está na região do conflito, e

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que trabalha para os produtores rurais, né. Seria o correto aí. Então, eu acho que a prova pericial talvez seja o ponto maior que tem que ser atacado, para que a perícia judicial, que vai avaliar a vistoria do INCRA, seja feita por um corpo de técnicos. O laudo de vistoria é feito por vários técnicos: agrônomos, zootecnistas do instituto. A prova judicial não pode ser feita só por um agrônomo, teria que ser feita também por alguma instituição, por algum corpo técnico que pudesse ter uma maior amplitude de discussão, uma visão isenta daquela discussão sobre a produtividade do imóvel. Então, não só nessa questão, mas em outras também eu acho que a perícia judicial tem que caminhar para uma prova técnica institucional, um instituto, uma faculdade de agronomia, algum instituto de terras, ou pelo menos um corpo de peritos que pudesse fazer a prova de forma mais adequada, e com total isenção. Então é uma outra proposta de alteração legislativa que já fiz várias vezes. Ah, e por último, já estava me esquecendo, tem que ser discutido critérios legais para indenização. Porque se a falta de dinheiro do poder público é a maior alegação para a Reforma Agrária, nós temos que adequar a indenização que é prevista na Constituição, mas uma indenização que seja justa, que seja constitucionalmente admitida, mas que não seja também superavitária, que não seja uma indenização super valorizada. E aí a principal questão, que aí passa por reforma legislativa, mas também por evolução jurisprudencial, evolução da consciência do juiz, é a questão dos juros compensatórios em Reforma Agrária, que eu acho que não deveria existir, porque se a propriedade não cumpre função social, não deveria haver o pagamento de juros pela perda da propriedade. Juros sim, de mora, pelo atraso no pagamento. Mas não os juros compensatórios. Já existem alguns precedentes de Tribunais Regionais Federais, principalmente da primeira região e do Superior Tribunal de Justiça, e eu acho que é um caminho que nós vamos percorrer e alcançar, que é o não pagamento de juros compensatórios na indenização da Reforma Agrária.

Entrevistador Uma ação de desapropriação, ela tem início com uma vistoria prévia do INCRA, que desta vistoria prévia autoriza um decreto presidencial. Esse decreto presidencial autoriza a ação desapropriatória. No entanto, nós temos observado que, em alguns casos, o proprietário consegue impedir o andamento da ação desapropriatória com um mandado de segurança no STF, discutindo o objeto central da ação desapropriatória que é o laudo prévio, ou algum problema na elaboração e na produção do laudo técnico, o laudo prévio. Como decidir isso, já que através da ação desapropriatória o Poder Executivo está realizando uma obrigação do Estado, que é a política pública de reforma agrária?

LG É. Em princípio, se há uma concessão de uma decisão judicial obstando a política pública, a idéia central, a idéia nuclear, seria que houve um problema legal, processual, de adequação do procedimento administrativo que gerou o laudo de vistoria. O Supremo tem a competência constitucional para fazer o controle

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de legalidade dos atos baixados diretamente pelo Presidente da República - artigo 102 da Constituição. Por isso que os mandados de segurança, quando decreta o Presidente da República, vão ingressar direto também no Supremo Tribunal Federal. Em razão disso que o Supremo tem a competência constitucional. A parte lesada vai ao Supremo porque verifica que tem a possibilidade de questionar o ato do Presidente da República por algum aspecto formal, naqueles mandados de segurança originariamente propostos pelo Supremo, só pode haver o questionamento de aspectos formais do procedimento administrativo que gerou o laudo de vistoria prévio ao decreto expropriatório. Por isso que eu disse que é muito importante que os procedimentos administrativos do INCRA sejam levados de forma muito adequada, muito... de forma muito rígida, sob o ponto de vista da lei, pra não se abrir brechas para questionamentos futuros. Porque a questão, a causa agrária, a questão agrária, não é segredo pra ninguém, tem uma litigiosidade inerente muito grande: o proprietário expropriado, ou em expropriação, resiste muito a que haja a expropriação. Os advogados que trabalham com essa matéria, geralmente têm uma dedicação bastante grande, gerando uma dificuldade até de realização de acordos. É um ambiente onde a possibilidade de acordo sempre é muito complexa, é muito difícil, porque envolve uma belicosidade bastante grande. E isso que eu acho que deveria partir pra se diminuir. Lógico que o Estado tem que desenvolver a política pública, mas sob o ponto de vista das partes envolvidas, teria que ter uma certa acomodação, uma certa forma de se encaminhar para, vez ou outra, ter acordos. Mas é uma causa judicial que envolve aspectos ideológicos, envolve aspectos políticos, sociais e vem tendo nos últimos trinta anos, com certeza, um nível de belicosidade bastante grande, e isso acaba desaguando na mão do juiz e do judiciário. Por isso a necessidade de uma maior consciência, de maior informação, de maior proximidade do Judiciário com a questão agrária, para que ele possa ter essa sensibilidade no julgamento. É verdade, é sabido também, que o judiciário é um dos ramos mais conservadores da sociedade; e quanto mais se sobe na hierarquia institucional judiciária, mais conservadoras são as decisões. E essas causas exigem uma posição mais progressista da Justiça para solução do problema. Então talvez aí também uma das, vamos dizer, das frustrações, que a sociedade, que os movimentos sociais, que aqueles que querem ver a Reforma andar têm da própria atuação do Judiciário. Eu junto tudo: é a falta de estrutura, falta de formação, falta de sensibilidade e também uma inadequação dos procedimentos administrativos ao poder público, que geram abertura para o questionamento judicial.

Entrevistador A Constituição Federal, nas ações de desapropriação pode ser interpretada de duas maneiras: uma autorizando a desapropriação, apenas pelo critério da produtividade, e uma outra interpretação, onde é possível desapropriar propriedades a

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partir do descumprimento da função social. Qual a tua opinião sobre isso?

LG Este é um dos núcleos da minha defesa de dissertação de mestrado, está num livro publicado, que chama "Direito Agrário Constitucional", que eu acho que como foi adotado pelo critério da lei agrária 8.629, que o artigo 185 da constituição deve ser interpretado, que a propriedade pode ser desapropriada, aquela propriedade improdutiva, e também a propriedade que não cumpre a função social. Quando a Constituição diz: "é imune à desapropriação a propriedade produtiva", quer dizer a propriedade produtiva que cumpre a função social da propriedade. Infelizmente, a Justiça, pros seus tribunais, já foi mais pró a essa posição que eu falei. As decisões já foram mais no sentido de harmonizar o artigo 184, 185, 186, para criar o meio ambiente favorável à desapropriação, mediante complementação social. Recentemente, tenho visto decisões dos Tribunais Superiores e também dos Tribunais Regionais Federais, na posição de interpretação mais literal - que eu volto a dizer, eu acho que não é a melhor, acho que está errado - que é "a propriedade é produtiva, então não cumpre função social". E isso leva a um outro problema: até a Constituição de 88, o Judiciário não podia apreciar a legislação anterior à Constituição de 88 à improdutividade do imóvel. Isto é, se ele era produtivo ou não, se ele cumpria a função social ou não. E isto era uma discussão que acontecia no âmbito só do procedimento interno da administração pública, do procedimento interno do INCRA. A partir da Constituição, passou-se a discutir, na ação da desapropriação, se o imóvel cumpre função social ou não. Então, eu trouxe um volume de questões de fato, que eram questões que não eram julgadas no processo judicial, e hoje são. A discussão de fato, é o maior entrave para o encerramento célere da desapropriação, porque fica toda uma discussão de produtividade por perícias, por laudos técnicos, até onde ela pode chegar ou não. Se nós formos ver o procedimento geral da lei de desapropriações, de uma desapropriação normal, do dia-a-dia da administração pública – que o metrô de São Paulo desapropria para construir estação de metrô, ou a prefeitura desapropria para fazer uma rua, uma avenida, ou um posto de saúde ou uma escola - o Judiciário não pode ingressar no mérito da desapropriação, não pode ingressar no motivo da desapropriação, porque a lei geral de desapropriação proíbe. Isto é, o juiz não pode dizer: "olha, esse lugar aqui não é bom pra fazer uma escola, aqui é bom fazer um hospital", então eu julgo improcedente a desapropriação que quer fazer escola, ou julgo improcedente a desapropriação pra construir estação de metrô, porque não é bom passar uma linha de metrô nesse lugar. O judiciário não pode fazer isso, sob pena de interferência de um poder no outro. Na verdade, é o administrador, o Poder Executivo, eleito pela maioria da população, que tem a possibilidade de fazer as opções políticas de onde se gasta o dinheiro público, e isso envolvendo os projetos de políticas públicas de execução dos atos.

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O juiz da desapropriação normal da lei geral de desapropriação verifica o quê? Se o procedimento seguir os requisitos da lei, se há legalidade, e se a indenização está sendo ofertada no preço que reflita o justo preço de mercado. No entanto, na Reforma Agrária, o motivo da desapropriação, que é o não atendimento da função social, é o mérito da própria desapropriação, é o que mais se discute. Então, é uma desapropriação que tem uma discussão, vamos dizer, ampliada, uma discussão mais complexa, porque você traz pra dentro de um processo que foi feito pra discutir só questões de direito, você traz toda discussão da matéria de fato. E é isso que entrava. Porque a matéria de fato é conflituosa, a matéria de fato ela é debatida, a matéria de fato, ela tem que ser feita a partir de discussões em laudos técnicos, né, e o juiz tem que fazer ali opções do que ele acha que é a discussão técnica. Aí, você vê jurisprudência da Reforma Agrária discutindo: "a mata não explorada, além da reserva legal, é indenizada ou não?"; "O custo da aração da terra pra se fazer a pastagem, é indenizada ou não?"; "A cerca, as construções, os barracões, são indenizados pelo valor de custo ou pelo valor atual?"; "Deprecia-se o valor do custo ou não se deprecia?". Então, são discussões que vão fazendo com que o processo se demore. A discussão em torno da produtividade e em torno da indenização.

Entrevistador Na tua opinião, é possível desenvolver alguma política de Reforma Agrária tendo como principal mecanismo o mercado, ou seja, a compra e venda de imóveis, para o assentamento de lavradores, os sem-terra?

LG Não sei dizer. Isso deveria ser feito a partir de estudos do próprio INCRA. Com certeza o nível de debate político e agilidade do processo seria maior. Nós teríamos, vamos dizer, maior agilidade com menos desgaste dos atores desta questão, dos atores desta questão. Por outro lado, a Constituição tem um comando que não abre mão de que o Estado atue por meio da desapropriação. Então, sendo alguém que trabalhou na terra e que tem uma experiência, sem maiores dados técnicos, eu acho que deveria aliar os dois meios. Não acho que a gente deva abrir mão, a princípio, nem de um modelo, nem de outro. Deve-se aliar alguns meios. O país é muito grande, a legislação é nacional, talvez em algumas regiões do país se aplicar a desapropriação, porque é adequada, e esses outros meios onde houver oferta de terras a preços mais baixos, não se justifica a desapropriação. Nós sabemos, também já foi dito, que em algumas regiões do país onde há excesso de oferta de terras, até por questões de má organização de recursos, foi feita desapropriação para favorecimento dos próprios expropriados. Se o Governo comprasse aquelas terras, compraria mais barato do que a desapropriação. Então, eu não excluiria nenhum dos meios, né. E acho que sempre os processos devem ser transparentes, com maior controle público possível, com participação do Ministério Público, com participação dos interessados, do trabalhadores, dos

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movimentos sociais, assim que o país vai avançar numa democracia plena e com transparência.

Entrevistador Bom Dr., se desejar pode fazer considerações finais, ou algum conselho aos estudantes de direito?

LG É, eu acho que nós temos que trabalhar para criar um meio ambiente favorável a estudos do Direito Agrário. Precisa-se ampliar o estudo, por meio de, primeiro por cursos de extensão, depois por centros formadores de professores, por cursos de especialização, para nós podermos depois caminhar para uma segunda etapa da instituição da matéria como cadeira obrigatória nos cursos de direito. Hoje, muito provavelmente, nem uma literatura básica para o estudo vai se encontrar com qualidade, né? E eu, que estudo Direito Agrário há 15 anos, não há um dia nesse país nos últimos 15 anos que você não abra o jornal e não tenha uma notícia de um conflito de terras. Isso eu digo porque presto atenção todos os dias. Todos os dias, nos grandes jornais do país, há notícia sobre o conflito de terras. E a matéria, juridicamente, ela é pouco estudada. Então, preciso da ajuda, e estou à disposição para ajudar outras pessoas, mas precisa haver uma rede de esforços entre aqueles que têm afinidade com a matéria, para criação de um meio ambiente saudável ao estudo e à criação de disciplinas. E enquanto isso, cursos de extensão, e cursos de especialização, e convênios com a escola da magistratura, com escolas do Ministério Público, com as faculdades de direito para a divulgação da disciplina e estudo da matéria, e assim nós vamos criar aquilo que chamamos uma “sensibilidade agrária”, de uma “mentalidade agrária”, naqueles que são advogados, juizes, promotores, delegados de polícia, servidores do judiciário, do Ministério Público e do próprio Poder Executivo.

Entrevistador Muito obrigado. Luciano Eu que agradeço.

Entrevista com Juiz Federal aposentado Sérgio Lazzarini Dia 9 de junho de 2006 – Rua Hadock Lobo, 337 – São Paulo/SP

Entrevistador Eu gostaria de algumas considerações do senhor sobre o problema

agrário brasileiro. Ainda cabe falar em Reforma Agrária na atual conjuntura brasileira, na atual estrutura agrária brasileira?

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SL Bom, eu tive contato mais efetivo com essa questão da Reforma Agrária, foi quando eu fui juiz federal, na Justiça Federal de São Paulo, a partir de 1987. Na época, eu fui titular da 21ª vara de São Paulo, que era a única vara incumbida de qualquer feito, em todo o Estado de São Paulo, especializada em Reforma Agrária. Interessante notar que, à época, anterior à Constituição de 88, toda a legislação que existia, que regulava a matéria, era uma legislação vinda do Regime Militar. E, por mais que possa causar espécie, o famoso Estatuto da Terra, que foi feito na época do Regime Militar, foi considerado, e ainda é, um dos diplomas jurídicos mais aperfeiçoados em matéria de Reforma Agrária. De lá pra cá, não se conseguiu fazer, ainda, um instrumento jurídico mais eficiente e bem elaborado, daquele que foi feito dentro do Regime Militar. Esse Estatuto da Terra, à época, 1987, ele estabelecia critérios, normas reguladoras da Reforma Agrária, do uso da propriedade com uma função social definida, que talvez não sejam os mesmos critérios de hoje, modernos, porque a tecnologia avança, o maquinário avança... E o que inspirava a Reforma Agrária na época, até mesmo nessa legislação ainda hoje, é a fixação do homem na terra, e uma fixação com o uso produtivo da propriedade, preenchendo a sua função social. Hoje em dia, muitas propriedades rurais são extensas, enormes, são produtivas, mercê de maquinários, implementos agrícolas, que muitas vezes se realizam sem a primeira preocupação, que é a fixação do homem na terra. Hoje, vemos que está havendo um fenômeno diferenciado, que merece um estudo profundo: a produtividade da terra, hoje, está cada vez mais ligada aos interesses agrícolas, aos maquinários, do que à ação humana. Vejam-se por exemplo as grandes fazendas de soja, que produzem, que são grandes responsáveis por produção de exportação no Brasil, e pela balança de pagamentos. O número de pessoas que trabalha nessas fazendas é muito pequeno; são grandes máquinas, grandes maquinários. Então, me parece que hoje, a questão da Reforma Agrária ainda está sendo vista sob um enfoque de 30 anos atrás, ou 20 anos atrás, com uma mudança social muito rápida que nós estamos experimentando. Então, qual é o problema que se vive hoje: há cada vez menos gente assentada na terra, muitas áreas latifundiárias produtivas – o latifúndio é produtivo, e hoje, tem-se grandes latifúndios produtivos – e o problema da fixação do homem. Eu me lembro que, na época, já o INCRA, que era bastante eficiente, ele tinha um problema: ele fazia a desapropriação para a Reforma Agrária, e o problema maior do INCRA não era fazer a desapropriação; o problema maior era, depois, como assentar, quem assentar e de que maneira assentar. Então, tínhamos muitos processos na vara que, de um simples processo de uma desapropriação de uma fazenda tida como improdutiva, surgiam inúmeros processos de briga de assentamento. Porque o INCRA tinha uma classificação de famílias, os trabalhadores do Movimento Sem-Terra impunham uma outra lista de pessoas que eles achavam que deveriam ser assentadas; muitos assentados ficavam um tempo, não produziam na terra e vendiam a área, o INCRA acabava

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pedindo reintegração de posse de lotes, e eu tive muitas ações desse tipo. Então, no Estado de São Paulo, que é um Estado que tem muita produtividade, nós tínhamos umas duas ou três áreas conflagradas, e tínhamos na vara umas seis, oito desapropriações, no máximo, para reforma agrária. Mas o número de problemas surgidos depois era muito maior, e aumentava o número de processos. Isso falando genericamente de todos os processos. Um outro problema que existia muito, na época: quando começavam esses movimentos de invasão de terras, e de reintegração de posse, isso tudo ficava, por competência, ao julgamento da Justiça Estadual. Só passava à Justiça Federal quando o Presidente da República fazia um decreto de interesse social federal. Aí então a competência se deslocava para a Justiça Federal. Enquanto isso, os conflitos continuavam na Justiça Estadual, e era juiz estadual dando liminares, Tribunal de Justiça cassando...etc. O que fazia o Movimento dos Sem-Terra na época, e faz hoje: forçava a desapropriação de fazendas tidas como improdutivas, e se o Governo Federal se conscientizasse que, pela análise do INCRA, era isso mesmo, fazia um decreto de desapropriação. Posteriormente – eu não sei se foi no governo Fernando Henrique – como começou a haver muita invasão de terras pra provocar o processo de desapropriação, fizeram um decreto que impedia o Presidente da República de desapropriar se a área estivesse invadida.

Entrevistador: Medida Provisória. SL Uma medida provisória. E... foi fazer um escudo para o próprio

Presidente da República ter uma desculpa pra não desapropriar mais. Aliás, foi o problema do incidente, na semana passada, no Congresso, que parece que era pra revogar esse dispositivo. Aquela invasão toda lá no Congresso, parece que era esse que... o objetivo era esse. Pela notícia no jornal.

Então, o que eu vivi na época, esses processos de desapropriação - com exceção da Fazenda Timboré, que teve esse caso de uma cautelar de seqüestro – as outras desapropriações acabavam sendo feitas normalmente. Eu me lembro que tinha uma desapropriação grande, enorme, de uma área nobre da famosa família Ribas, e acabou em indenização, em pagamento com títulos, e... foi desapropriada, não teve problema. Resistiram, mas depois a desapropriação foi feita. Então, as desapropriações que foram feitas na época, todas foram realizadas, com exceção dessa da Timboré, que ficou, que foi contestada até o Supremo Tribunal Federal.

Entrevistador Como o senhor analisa a participação do Poder Judiciário na

execução de uma política pública, nesse caso a política pública de Reforma Agrária?

SL Bom o Poder Judiciário, tem que se saber sempre, é um poder que não toma iniciativas. O Judiciário é um poder chamado “passivo”, porque age por provocação de alguém. Nenhum juiz determina a abertura de um processo, nenhum juiz determina a iniciativa de uma desapropriação, ou qualquer coisa. É preciso que alguém provoque o

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assunto. Então, o que o Judiciário pode fazer, nesse momento, é, uma vez provocado, uma vez instaurado o processo, através do juiz – com aquele ensinamento de que ele deve atender mais a função social da propriedade e da própria lei, os fins sociais da lei – ao aplicar a lei, ponderar e estabelecer o equilíbrio das relações sociais. Aí eu acho que o Judiciário ajuda muito. O Judiciário que evita conflitos sociais, ou que, de certa maneira, contorna problemas graves fundiários, ele colabora pra evitar problemas mais graves. Porque um juizado insensível, ele acaba ocasionando conflitos maiores, de conseqüências maiores. Uma vez provocado, instaurado o problema, cabe ao juiz ter o equilíbrio necessário para adotar todas as medidas para evitar danos maiores à própria sociedade.

Entrevistador O senhor acha que a instituição de varas especializadas, ou uma

Justiça Agrária especializada, seria a solução? SL Eu vou lhe dar um dado histórico: quando eu assumi a 21ª vara de

São Paulo, ela era, como todas as outras, uma vara cível, com competência geral. E, na época, se pretendia ampliar o numero de varas federais e era Presidente Sarney que queria criar varas especializadas em Reforma Agrária. E todos achavam que criando varas especializadas em Reforma Agrária isso iria resolver todos os problemas sociais do Brasil, e... efetivamente isso não resolve. Então, os Membros do antigo Tribunal Federal de Recursos convenceram o Presidente que não precisava fazer varas especializadas, varas exclusivamente agrárias. Eles o convenceram que poderiam determinar determinadas varas, com competência exclusiva agrária – que foi o caso da 21ª em São Paulo que, como eu lhe falei nós tivemos de 6 a 8 processos de Reforma Agrária, só. E não se justificava, e não se justifica criar em determinados lugares varas exclusivamente agrárias, porque... é... não há tanto número de processos que justifique uma vara exclusiva disso. E, você tendo uma vara com outras competências, que seja especializada nessa matéria, dá pra processar tudo, sem necessidade de uma vara específica só pra isso. E com um outro agravante: se se cria uma única vara, com uma única competência, no fim, fica-se na mão de um único juiz, que poderia ter um entendimento de um lado ou de outro, e... não... não ajuda, eu acho que complica mais. Ao passo que hoje a Justiça Federal tem competência de todas as varas estaduais – antes era só São Paulo -, temos, no interior, vamos dizer, 10, 12 juizes federais com competência agrária, que podem até temperar uma jurisprudência melhor. Porque é perigoso, para um lado e para o outro, ter um único juiz em um único Estado, com competência exclusivamente agrária. Ele teria o “monopólio” da Reforma Agrária, uma única pessoa.

Entrevistador O senhor tem alguma avaliação sobre o trabalho que o INCRA

realizava e realiza na execução da Reforma Agrária? SL Olha. Na execução, eu realmente não acompanhei, não se sabe do

resultado. O que chegava às nossas mãos era o processo de desapropriação, e aquilo que eu lhe falei que eu sentia: depois de

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um ano, alguns meses, depois de feito a imissão na posse, o INCRA demorava mais ou menos um ano pra fazer os assentamentos. Depois de feitos os assentamentos, começávamos a ter problemas secundários em relação a eles. Eram lotes que não produziam, assentados que acabavam indo embora e vendiam o seu lote, ou então cediam para terceiros, o INCRA se via obrigado a entrar com a reintegração, invasão de lotes dos assentados por terceiros, por posseiros, nada a ver com a Reforma Agrária... Então, aí surgia um outro tipo de processo. Isso é o que a gente via na Justiça. Agora, parece que, no geral, os assentamentos e a Reforma Agrária, na época, estavam indo razoavelmente bem. Agora tudo isso depende de o INCRA ter recursos, ter dinheiro – Reforma Agrária se faz pagando as fazendas, ainda que em títulos da dívida agrária. Me parece, a impressão que eu tenho, é que hoje o INCRA tem menos recursos pra fazer a Reforma Agrária do que tinha naquela época. Não sei se... por conta de toda uma política econômica, de contingenciamentos, de necessidade de... de se diminuir verbas... Na Reforma Agrária, não sei se está funcionando agora como funcionava na época.

Entrevistador A legislação agrária dá suporte necessário ao Poder Executivo para

executar uma política de Reforma Agrária séria? SL Dá. Eu acho que sim. Eu acho que o Estatuto da Terra, no Brasil, é

um documento muito bem feito, com muito estudo, durante anos, comparativamente com outros países. E não é por falta de instrumentos jurídicos que não se faz a Reforma Agrária, não. Instrumentos jurídicos existem. De lá pra cá, até piorou um pouco, com essas alterações legislativas que inibem, de certa forma, a desapropriação de algumas áreas, porque tem invasão, ou porque considera o imóvel produtivo. Mas a legislação está à disposição do governo, se quiser... não vejo problema, não.

Entrevistador E por que não faz a Reforma Agrária? SL Por quê? Isso é decisão política. Fazer Reforma Agrária ou não fazer

é decisão política de governo. Isso... tem que ter vontade política. E volto a falar aquilo, eu não sei se hoje o conceito de Reforma Agrária que se fez, de desapropriar uma terra, dividir em lotes, entregar e assentar, se está funcionando, hoje. Até porque, muitas áreas improdutivas e desapropriadas, são improdutivas e continuam improdutivas. Então, o que se faz: tira-se de um latifundiário, divide em lotes, dá para os assentados, que não conseguem produzir quase nada, a não ser uma agricultura de fundo de quintal, que não... não resolve. E acaba não fixando o homem na terra.

Entrevistador Gostaria de saber a sua opinião sobre a função social da

propriedade. A Constituição fala que “será desapropriada para fins de Reforma Agrária a propriedade que não cumpre a função social”. O artigo 186 estabelece os critérios para a perícia. E o artigo 185, parágrafo segundo, diz que não será desapropriada a terra

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produtiva. Na opinião do senhor, o INCRA, e o Poder Judiciário, deveriam utilizar o critério da função social, ou o da produtividade?

SL Existe uma regra de hermenêutica, de interpretação da Constituição, que diz que existem normas com conflito aparente, na Constituição. Então, é muito comum nós encontrarmos artigos ou parágrafos que, às vezes, colidem uns com os outros. Esse é um caso típico, em que um artigo diz que não poderá desapropriar a fazenda, a área produtiva, e o outro fala da função social, e diz o que se considera o cumprimento da função social. A saída que os juristas têm para isso é uma expressão que diz o seguinte: na Constituição existem “conflitos aparentes” de normas. Não existem conflitos de normas na Constituição. Então esses conflitos são aparentes. O que quer dizer que eles têm que ser interpretados conjuntamente. Então, quando se fala em função social da propriedade, isso já é uma expressão que já é pra afirmar que não existe a propriedade privada absoluta. Qualquer que seja o interesse social, o particular pode perder a sua propriedade pra isso. Quando, para fins de Reforma Agrária, se colocaram aqueles requisitos do 186, nós achamos que aquilo basta, e é suficiente, para configurar a função social. E a expressão “produtividade” está embutida naquilo que diz do uso racional da terra, como os bens de preservação do meio ambiente, etc. Então, falar que “basta a produtividade” – pra mim nunca foi, e acho que isso nunca foi contestado – a simples produtividade não é motivo suficiente para não fazer Reforma Agrária. Porque, imagine um grande fazendeiro que tenha uma fazenda produtiva, e que usa o trabalho escravo no imóvel. Então ele não está preenchendo a função social. Ou que ele tenha uma fazenda produtiva e comece a desmatar toda a área da Amazônia, em desobediência ao meio ambiente, para produzir e para plantar. Então, o critério de produtividade é o minus em relação aos requisitos do 186.

Entrevistador No caso especifico da fazenda Timboré. É possível que foi um

equívoco do INCRA entrar com a ação apenas dois anos após o decreto presidencial que declarava a área de interesse social para fins de Reforma Agrária?

SL Olha, o retardamento dessa ação deve se dar por motivos, acho que meramente econômicos e financeiros do governo, porque o... ao desapropriar, ele tem que indenizar a parte de benfeitorias produtivas, tem que depositar em dinheiro, quando tem a emissão na posse. E o restante é que o governo emite os títulos da dívida agrária. E pode ser que, na época, não tinham reservado recursos pra fazer a emissão na posse. Só isso. Mas o INCRA estava preparado, já tinha... o cadastramento da fazenda, já tinha o laudo... tinha tudo. Isso é um aspecto formal, de não ter desapropriado em dois anos, que foi o motivo pra anular o processo, mas a realidade é que você joga no vaso o decreto de interesse social. Então... se não for em dois anos, renova-se novamente. Eu acho que o governo, quando viu que a área ficou conflagrada, começou... aí ele se apressou em fazer outro decreto pra desapropriar.

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Entrevistador No caso da Timboré foi utilizada uma ação de seqüestro

protagonizada pelo INCRA. Na avaliação do senhor, essa ação foi uma saída adequada para a situação?

SL Na época, eu me lembro que, no Estado de São Paulo, nós não tínhamos tido um conflito fundiário tão grave como aconteceu... os seguranças da fazenda, de tiroteio... E não se imaginava que pudesse chegar a um Eldorado de Carajás, como aconteceu mais tarde. Mas foi pra evitar, imaginando que uma coisa dessas pudesse acontecer, que nós fizemos, que o INCRA requereu o seqüestro da área e eu concedi. E, graças a Deus, eu acho que com aquilo, pelo menos, nós pacificamos o conflito e evitamos mortes, e coisas piores. Talvez, se tivessem feito isso em outras áreas, não tivesse acontecido o que aconteceu. Porque aí, gera conflito armado, e no conflito armado as conseqüências são imprevisíveis. Não há quem saiba onde elas possam terminar.

Entrevistador Porque que o INCRA não faz uso rotineiro desse instrumento? SL Mas eu acho que agora o INCRA tem esse impedimento legal, não

existia essa norma legal, antes, que impedia de se adotar qualquer medida judicial, relacionada com a desapropriação, de área invadida. Eu acho que hoje, o INCRA... se o INCRA fizer isso, ele pode submeter a sua diretoria, os seus agentes, a processos por... processo crime, até, por descumprir a lei. Hoje tem lei impedindo esse uso. É lei, e vale pra sempre. Para todo o sempre. Então, eu acho que o INCRA não tem hoje a legitimidade processual pra fazer isso, sob pena de desobedecer ao impeditivo dessa medida provisória. E talvez tenha sido... também para o governo - para os governos, sem falar em qualquer governo - uma blindagem de evitar que ele se veja forçado a desapropriar para a Reforma Agrária toda vez que houver uma invasão, e se essa invasão ficar cada vez mais grave com ameaça de conflito o governo tem que intervir e pedir o seqüestro. Porque aí, como aconteceu nessa, ele pode ser condenado a pagar grandes indenizações.

Entrevistador A ação indenizatória proposta pelo proprietário contra a União, onde

ele conseguiu indenização pelo valor da terra nua, benfeitorias e lucros cessantes no valor de 9 milhões de reais. Se fosse feita uma desapropriação direta, com o pagamento por títulos da dívida agrária, esse valor seria menor?

SL Olha. Eu não conheço exatamente o que aconteceu depois disso, nessa ação. Mas supondo que ele entrou com uma ação de indenização porque a ocupação do INCRA foi tida como irregular, o que se pede, no fundo, é perdas e danos pela perda da posse, apenas, nesse período. E, nas ações de reintegração de posse, que se discute a devolução da posse para o proprietário, se calcula uma espécie de um aluguel, que seria 1% do valor da propriedade. Então... nas ações cíveis em geral, a indenização calculada é essa. Se se imaginar que alguém fique com uma propriedade por 10 anos, a juros de 1% ao mês, em 10 anos eu tenho 100% do valor da área,

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a titulo de ação, como se fosse só o aluguel, sem a perda da propriedade. Talvez seja porque aí eles pediram a indenização, e ainda estão pedindo a indenização pra pedir a fazenda de volta.

Entrevistador Na ação indenizatória eles pedem o valor da terra, como sendo uma

desapropriação indireta, mais lucros cessantes, do fato de ter deixado a área durante dois anos, e mais o valor das benfeitorias que havia naquela época.

SL Bom. Eu não sei o que foi essa ação de indenização. Porque essa indenização, você pode transformar a ação numa simples ação de perdas e danos, sem que ele esteja renunciando o direito à propriedade, ou ele pode pedir as perdas e danos, e também já pede pra transformar a desapropriação indireta, porque ele já deu como perdida a área. E nesse valor de 9 milhões que você me falou, eu não sei se esse valor foi só pelos lucros cessantes, ou se foi também já pra desapropriar indiretamente a área. Se já foi pra desapropriação também, aí ele não poderia pedir a reintegração, porque ele já pediu o pagamento da expropriação indireta da área.

Entrevistador O senhor tem algum conselho aos estudantes de Direito? SL Olha, eu acho que, para os estudantes, a Justiça é... é muito bonita,

tem aspectos muito interessantes, e esses conflitos que existem, principalmente de Reforma Agrária, são assuntos que fazem o juiz, os advogados, as partes, pensarem muito na utilização da terra, na... na tentativa de fazer as ligações do homem com a terra, o seu assentamento. Eu apenas levanto um problema para a discussão: será que hoje, nos dias de hoje, com a tecnologia moderníssima, com equipamentos, com a informática, com a globalização do mundo, se nós não temos que repensar uma maneira de fazer a Reforma Agrária, para ver se nós também não estamos caindo num desuso, que também não resolve o problema social, e vai agravar cada vez mais. Será que os postulados da Reforma Agrária de 20 anos atrás são os mesmos de hoje? Essa é a grande questão.