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Direito e Ideologias Desencontro axiológico das normas O ESTUDO CONCEITUAL DO DIREITO, como será visto, sempre esteve muito ligado à discussão sobre o conceito de ideologia, sendo que muitos autores veem no direito escrito a ideologia jurídica oficial e no direito não escrito a ideologia das expectativas de mudança, da utopia ou da esperança. Por outro lado, ainda conceitualmente, aqueles pensadores que veem no direito escrito a ideologia oficial, veem-na como objeto da ciência do direito, principalmente numa versão reducionista do grande pensador austríaco Hans Kelsen, assim como identificam no direito não escrito, às ideologias ascendentes, objetos de percepção intelectual muito mais próximos da sociologia do direito. Nessa linha, advogados e juízes são meros agentes de implementação do direito escrito, enquanto ideologia oficial, cabendo aos reformadores, numa dimensão mais ampla, aumentar esse espectro, e à sociologia jurídica, a sua adaptação no tempo histórico. Em contrapartida, as ideologias jurídicas oficiais, sempre traduzidas no ideário profissional, por mais abrangentes que sejam nos seus objetivos, sofrem as restrições impostas pelas disposições legislativas, reduzindo sempre a ação do advogado ao ideário profissional, como estudaremos, traduzido sempre aos limites estatutários da advocacia e do amplo leque das profissões jurídicas, deixando o seu impacto transformador à sociologia jurídica e o alcance de eventuais interpretações à dogmática, enquanto leitura exegética, ou ao direito escrito. Para alcançar resultados mais extensivos, numa obra de natureza didática, fica imprescindível um estudo mais aberto sobre as ideologias e suas consequentes relações com o direito, enquanto direito posto, objeto da ciência do direito, que não propriamente trabalha com o extensivo conceito de direito como direito pressuposto ou expectativa de direito, mais presidido pelo conceito de justiça do que pelo conceito de lei. Neste capítulo, a nossa preocupação, no entanto, está voltada para as relações que possam existir no processo de transformação das ideologias em direito e para o papel perceptivo do direito (escrito) pela ciência do direito.

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Direito e Ideologias

Desencontro axiológico das normas

O ESTUDO CONCEITUAL DO DIREITO, como será visto, sempre esteve muito ligado à discussão

sobre o conceito de ideologia, sendo que muitos autores veem no direito escrito a

ideologia jurídica oficial e no direito não escrito a ideologia das expectativas de mudança,

da utopia ou da esperança. Por outro lado, ainda conceitualmente, aqueles pensadores

que veem no direito escrito a ideologia oficial, veem-na como objeto da ciência do direito,

principalmente numa versão reducionista do grande pensador austríaco Hans Kelsen,

assim como identificam no direito não escrito, às ideologias ascendentes, objetos de

percepção intelectual muito mais próximos da sociologia do direito. Nessa linha,

advogados e juízes são meros agentes de implementação do direito escrito, enquanto

ideologia oficial, cabendo aos reformadores, numa dimensão mais ampla, aumentar esse

espectro, e à sociologia jurídica, a sua adaptação no tempo histórico.

Em contrapartida, as ideologias jurídicas oficiais, sempre traduzidas no ideário

profissional, por mais abrangentes que sejam nos seus objetivos, sofrem as restrições

impostas pelas disposições legislativas, reduzindo sempre a ação do advogado ao ideário

profissional, como estudaremos, traduzido sempre aos limites estatutários da advocacia e

do amplo leque das profissões jurídicas, deixando o seu impacto transformador à

sociologia jurídica e o alcance de eventuais interpretações à dogmática, enquanto leitura

exegética, ou ao direito escrito. Para alcançar resultados mais extensivos, numa obra de

natureza didática, fica imprescindível um estudo mais aberto sobre as ideologias e suas

consequentes relações com o direito, enquanto direito posto, objeto da ciência do direito,

que não propriamente trabalha com o extensivo conceito de direito como direito

pressuposto ou expectativa de direito, mais presidido pelo conceito de justiça do que pelo

conceito de lei. Neste capítulo, a nossa preocupação, no entanto, está voltada para as

relações que possam existir no processo de transformação das ideologias em direito e

para o papel perceptivo do direito (escrito) pela ciência do direito.

Conceito de ideologia

Para facilitar a compreensão evolutiva deste capítulo, dividiremos o quadro conceitual dos

estudos sobre ideologia (Mannheim, 1968:81-287) em duas grandes linhas: o conceito

intelectualista, que evolui a partir do reconhecimento das ideologias como disfarce

(argumentativo) sobre o real, e o conceito pragmático, que, apesar das críticas

intelectualistas, é visto como linguagem expressiva de interesses, sejam particulares,

sejam globais. No primeiro grupo figuram pensadores como Karl Marx e Karl Mannheim,

precursores incontestáveis da discussão; no segundo grupo, são apresentados pensadores

que evoluíram criticamente do pensamento marxista e assumiram posição mais realista,

aliás, imposta pelo quotidiano compreensivo que a linguagem marxista não conseguiu

sufocar para explicar sua própria postura.

Na primeira parte, devido à similaridade com o conceito de ideologia, concentraremos

nossos esforços no estudo do conceito intelectualista. Deixamos para a segunda parte o

estudo das dimensões pragmáticas do conceito de ideologia, com especial destaque para

a Escola de Frankfurt. Essa escola de pensamento e, muito especialmente o reconhecido

filósofo Max Horkheimer – que quebraram a rigidez marxista e a versão perceptiva de

Mannheim, o efetivo patrono do intelectualismo – abriram as possibilidades de se

reconhecer na ordem jurídica mecanismos que viabilizaram mudanças da ordem jurídica

dentro da ordem jurídica, linha de enfoque essencial num estudo sobre ideologia e

direito.

Dessa forma, na grande linha do conceito intelectualista, foi Michael Löwy que

efetivamente estudou o conceito de ideologia numa perspectiva de distinção do próprio

objeto, teoricamente, sem desconhecer suas diferentes variações. Ele chegou a afirmar

que “existem poucos conceitos na história da ciência social moderna que sejam tão

enigmáticos e polissêmicos como este de ideologia” (Löwy, 1987:9). Ideologia, ao mesmo

tempo em que é um termo simples e leve, porque fácil de manipular no quotidiano da

linguagem, é um termo carregado e complexo, porque traduz formas especialíssimas e

conflitivas de ver a vida: as relações humanas, nos seus diferentes níveis e desníveis, e o

poder na sua obscuridade cênica (e na cínica obscuridade) do Estado.

Essa posição se torna mais complexa à medida que, neste capítulo, procuramos

aplicadamente trabalhar o tema, principalmente no contexto evolutivo, não de

organizações ou lutas políticas abertas, como, por exemplo, nas disputas entre os partidos

políticos, quando ainda resguardavam propósitos ideológicos, mas de organizações

corporativas fechadas, engajadas em lutas políticas específicas, muitas vezes de interesse

profissional. Assim, mais que polissêmica e enigmática, a discussão aplicada do tema pode

adquirir, pragmaticamente, dimensões paradoxais e ambíguas. No caso específico deste

capítulo, mais grave ainda, porque o tema ideologia não se incorporou ao quotidiano dos

estudos jurídicos, e mais profundamente ao quotidiano da própria advocacia, por um

lado, e, enquanto prática aplicativa do direito, a situações concretas, por outro lado,

veem-na em altíssimo grau de rejeição, especial forma de se evitar a redução do conceito

de direito ao conceito (classista) de ideologia, que produziria efeitos dissociativos da

dinâmica interpretativa das decisões judiciais.

Karl Mannheim, sem fugir do conceito de que a ideologia seria um disfarce do real, a

identifica numa dimensão particular “que traduz uma postura cética em relação ao

discurso” e uma dimensão total que se refere à ideologia e a uma época de um grupo

histórico-social concreto. Ambas as posições, todavia, guardam um elemento comum, ou

seja, que o discurso ideológico tem significado e intenção reais. São disfarces retóricos

para alcançar objetivos (subjetivos) (Mannheim, 1968:81-287). Paradoxalmente, a posição

originária de Karl Marx, precursor da posição de Mannheim, evoluindo por caminhos

diferentes, não desenvolveu uma linha conceitual muito diferente, especialmente porque,

para ele, a ideologia é um discurso alienado da realidade, uma realidade que não é a sua

própria realidade, mas que procura fazer das ideias que permeiam o projeto das classes

dominantes as expectativas das classes dominadas.

Para a maioria dos pensadores marxistas clássicos, que não conviveram com o filtro da

Escola de Frankfurt, o processo de decisão judicial, teoricamente, é uma manifestação

coercitiva do Estado enquanto agente de aplicação ou ação repressiva dos valores

expressivos da classe politicamente dominante. Essa leitura, mais que uma simples leitura,

uma postura, compromete as demandas do advogado ao aparato instituído e as decisões

dos juízes, da mesma forma, a esse aparato, que, na prática, prioriza a legalidade posta e

despreza a dinâmica modificativa que predomina na legitimidade das relações.

Nesse sentido, à medida que o direito se confunde (se confundiria) com a ideologia, na

sua manifestação de direito subjetivo escrito (expressivo do interesse de poucos)

transmuda-se no direito subjetivo de todos, mas (como nem todos ou a grande maioria da

sociedade) não é titular de direito(s) subjetivo(s), como, por exemplo, o direito à

propriedade, o direito subjetivo daqueles que têm força legislativa ou decisória nada mais

é (seria) do que o dever (direito objetivo), ou seja, respeitar a propriedade daqueles que

não são titulares de direito(s) subjetivo(s). A estes cabe, de qualquer forma, respeitar a

razão escrita, o direito subjetivo escrito (a lei, os decretos ou, modernamente, as súmulas

de tribunais) sem o que ficam (ficariam) suscetíveis a penas e sanções.

Assim, o conceito marxista (originário) de ideologia está também determinado pelo

conceito de disfarce, de apresentação alienada da realidade como forma de controle e

dominação daqueles que não produzem os cânones ideológicos (Marx e Engels, 1984).

Todavia, numa paradoxal ironia da história, que nasceu não apenas da crítica marxista,

mas também do seu quotidiano discursivo, o conceito marxista de ideologia ficou

pragmaticamente assimilado como discurso propositivo de transformação social, como

conjunto de ideias expressivas dos interesses (prospectivos ou defensivos) de grupos,

classes ou categorias sociais dominadas na forma do direito escrito.

Por outro lado, permitindo uma posição mais confortável e infensa às sucessivas dúvidas

semióticas, historicamente antecedentes à própria discussão conceitual de Michael Löwy,

o conceito apareceu e evoluiu como um sistema de ideias e princípios que permite

compreender (e analisar) a dinâmica da vida social e política e, inclusive, fixar parâmetros

de ações estratégicas. Essa linha conceitual, todavia, não é exclusiva, permitindo

reconhecer que a ideologia pode, também, se definir como conhecimento

conscientemente perfunctório da realidade (e do seu inconsciente coletivo), ampliando

não apenas a capacidade de percepção do ambiente circunstancial, mas o próprio domínio

das circunstâncias.

Neste capítulo, o primeiro conceito de natureza intelectualista, todavia, perceptível com

mais facilidade, possivelmente atribuível na sua formatação a Karl Marx, não foi utilizado

na sua manifestação simples e leve, na linguagem de Michael Löwy, pelo próprio Karl

Marx, que procurou trabalhar não propriamente com sua aplicação direta, nascida dos

confrontos de opiniões políticas, mas como conceito que reconhecia na ideologia uma

percepção deformada, que desvirtuava as situações reais para manipular interesses de

baixa (ou nula) capacidade de compreensão da(s) realidade(s) como fenômeno total,

contribuindo para alienar e distorcer a dinâmica do objeto da própria investigação. Assim,

na percepção conceitual originária, para Karl Marx (e Friedrich Engels) ideologia é um

sistema de ideias e princípios que conduzem para uma visão (percepção) deformada da

realidade orientando estratégias e projetos divergentes da dinâmica (natural) da própria

história, no que com ele (Marx) concordará o próprio Karl Mannheim (1968:295).

Por isso mesmo, apesar das posições polares, ambos os autores reconhecem nas

ideologias uma leitura compreensiva da sociedade a serviço das classes dominantes,

interessadas em fomentar uma leitura desviante da vida social como estratégia de

durabilidade de seu próprio poder. É exatamente nesse sentido que as ideologias

transformadas formalmente em direito tanto para Marx, quanto para Mannheim, fazem

da ordem jurídica (posta) e de seu aparato funcional aplicativo instrumento de controle

social da perspectiva da ordem estabelecida, expressiva de interesses sociais dominantes,

o que não impede que nessa linha argumentativa intelectualmente se conviva com o

conceito de ideologia como pressuposto da contraordem, ou seja, aquela ideologia que

poderá se transformar em ordem ou, por força de leis modificativas, de emendas

constitucionais, de eventuais assembleias constituintes ou de revoluções vitoriosas.

É nessa linha argumentativa que o conceito marxista de ideologia, como saber de

dominação (posto) das classes dominantes, se confunde ou não consegue se desvencilhar

com o próprio conceito de ideologia, como saber de libertação (pressuposto) das classes

oprimidas, permitindo que, no tempo histórico, na dimensão de sua própria praxis, se

reconheça também como a teoria que identifica as contradições internas da classe

dominante e não apenas os seus nódulos vulneráveis, mas as próprias estratégias para

exponencializá-las. O que Karl Marx pretendeu, efetivamente, foi contrapor a leitura

ideológica da história e da sociedade como um conhecimento anticientífico, divergente,

por conseguinte, da epistemologia (científica) desenvolvida nos seus clássicos trabalhos.

Por outro lado, Marx negou também à ideologia (originariamente) a dimensão de teoria

do conhecimento, para reconhecer no materialismo dialético, se não a própria ciência, a

metodologia das ciências sociais, subtraindo-lhe a percepção deôntica, como ensinou e

instruiu Hans Kelsen, estudada e aprofundada neste livro, e jusnaturalista, como tantos

fizeram no passado, por uma percepção dialética (devir) da realidade material (ôntica) que

se desdobra historicamente nos tempos futuros como compreensão dos tempos

passados, o que a praxis marxista reconheceu como a própria ideologia (ou uma lógica

ideológica). O conceito de ideologia evoluía, por conseguinte, do mero reconhecimento de

ordenações de ideias para justificar a vida e a realidade (opressiva ou de classe) para se

transformar, diferentemente do que pretendeu a teoria classista, nos albores do

materialismo-dialético, num instrumento de compreensão, se não apenas da

transformação social, também da conservação institucional.

Essa especial postura permite que se veja no Estado a encarnação da ideologia da classe

dominante, alienada e deformante, que faz das leis (o direito escrito) um instrumento de

dominação e de controle das classes sociais dominadas, a que (dominados)

inconscientemente (classe em si) aderem e admitem a ordem de valores instituídos como

seus próprios valores. Essa situação não impede, todavia, que a classe dominada e/ou

frações das classes dominantes e, em muitas circunstâncias (ou quase sempre),

intelectuais e políticos, resistam à própria ordem de valores instituídos e reajam, se não à

própria ordem, à sua radicalização iníqua como manifestação propositiva de uma nova

ordem ideológica.

Essa, na verdade, é a dimensão ambígua do conceito marxista de ideologia:

originariamente como pretendeu Marx, seria um sistema de ideias destinado a impor a

compreensão intelectual e jurídica da sociedade, em parâmetros de dominação e,

consecutivamente, não como obra de Marx, mas dos marximos, num sistema eficaz de

posturas práticas, capaz de converter as expectativas de libertação em luta efetiva contra

a dominação, revertendo as origens históricas e simbólicas do conceito de ideologia. No

primeiro caso, identificava-se no direito escrito a sua manifestação sofisticada de

dominação inalcançável pela consciência simples e, no segundo caso, se não reconhece

apenas nas revoluções o único caminho de reversão da dominação da classe, pressupõe

mecanismos de direito escrito capazes de transformar a ordem legal democrática em

expressivo instrumento de legítimas modificações estruturais.

A postura do marxista, como demonstramos, evoluiu da radicalidade da gênese de suas

formulações para propostas mais abertas, não apenas na dimensão conceitual, mas

também na própria formulação metodológica, ideologicamente reconhecendo que a

síntese, o efeito final das contradições históricas entre grupos ideológicos divergentes que

metodologicamente se expressam entre a tese ideológica estabelecida e a antítese a

contra ordem da ordem estabelecida. Modernamente se reconhece que a radicalidade

desses conflitos entre tese e antítese, em que, por exemplo, a ideologia do grupo

dominado antítese (negação da afirmação) não necessariamente evolui para a “afirmação

da negação”, ou seja, a imposição institucional da ideologia rebelada. Dessa releitura, no

contraste entre tese e antítese, a síntese não necessariamente será (seria) a afirmação da

negação antítese, mas fica também em aberto a possibilidade da ordem “afirmação da

afirmação” se impor a contraordem. Nessas tantas circunstâncias, o Estado pode fazer da

ordem jurídica instrumento continuísta de dominação de classe, assim como a ordem

jurídica instituída pode evitar que a ação repressiva do Estado ultrapasse os limites da

própria legalidade, ou em circunstâncias especialíssimas, permita que a ordem modifique

a ordem. Admitindo-se apenas que em circunstância especialíssimas permita a imposição

da contraordem. O que se espera, todavia, é que no contexto das novas discussões sobre

ideologia, a ordem estabelecida incentive mecanismos de abertura que permitam que a

ordem modifique a ordem, num processo que distingue reforma de revolução, evitando o

caos entrópico, conforme veremos mais adiante neste livro.

Todavia, muitos foram os caminhos que permitiram uma formulação mais aberta do

conceito de ideologia, assim como outros tantos foram significativos para reconhecer no

Estado não apenas um agente repressivo das classes dominantes, mas também um agente

propositivo de mudança. As páginas que seguem procuram, exatamente, analisar os

diferentes veios que conduziram a uma mais harmoniosa convivência entre o radicalismo

originário do conceito marxista de ideologia e as suas modernas aberturas para o Estado

ou a ordem jurídica prospectiva.

Finalmente, apenas para uma visão concreta do que estamos levantando, a ação do

aparato judicial, advogados, juízes, promotores etc., é uma ação fechada, circunscrita à

ideologia jurídica, muitas vezes desviada de seus próprios objetivos por provimentos

judiciários internos que provocam desvio de sua própria missão, o que não impede nas

dimensões do moderno constitucionalismo, o desenvolvimento de um papel mais

extensivo dos agentes judiciários ao alcance de objetivos ideologicamente pressupostos.

Por outro lado, no contexto dos sistemas ideológicos abertos, o seu espaço de confronto é

a própria ideologia estabelecida enquanto ordem jurídica, implementada pelo Estado. Daí

a razão pela qual a nossa preocupação neste capítulo se inclina para o estudo das formas

possíveis de se superar esse paradoxal dilema entre a lei, como instrumento de

dominação jurídica, e as ideologias como propósitos; se não de desconstruir a ordem,

repensá-la como instrumento de segurança jurídica, não apenas de ideias, mas das

expectativas da sociedade civil.

Ideologia, repressão e direito

Nessa linha discursiva, muito embora sejam frágeis e dispersos os estudos marxistas sobre

o tema, a ordem jurídica (vulgarmente traduzida como direito) é reconhecida como

superestrutura (metáfora de efeito diminutivo que a descreve como simples reflexo do

mundo econômico real, a infraestrutura, termo que muitos afirmam, não foi usado por

Marx) destinada a reproduzir, articuladamente com os “aparelhos repressivos do Estado”

(exército, polícia, tribunais, prisões) a pluralidade dos aparelhos ideológicos (escolas,

igrejas, partidos, empresas, famílias, jornais etc.). Althusser (1983, p. 70 et seq.), que nos

seus estudos se aproxima do conceito pragmático de ideologia, formulou essa sistemática

que não propriamente faz uma indicação da ordem jurídica ou dos conteúdos

substantivos (ideológicos) impostos pelos “aparelhos ideológicos do estado” permitindo-

nos reconhecer que, na verdade, esses aparelhos ideológicos impõem, para resguardar a

estabilidade, uma determinada ideologia de classe expressa como religião, educação,

representação política, organização, comunicação etc., deixando aos tribunais, ao que se

presume, enquanto aparelho (repressivo) do Estado, a imposição da lei (conversão formal

restrita do direito).

Nesse sentido, a ordem jurídica seria, para Althusser, o efeito repressivo do tribunal, o

que parece um excesso ou demonstra mesmo o desprezo de amplas vertentes do

marxismo pelos estudos jurídicos, como também se dá o contrário. Neste capítulo, apesar

de suas limitações, estamos exatamente preocupados em reverter essa leitura, ou seja,

demonstrar que os institutos jurídicos (ideológicos) não apenas se definem como

“conteúdo repressivo”, mas, significativamente, também como conteúdos (valores) de

libertação, muitas vezes assimiláveis, independentemente de rupturas profundas do

Estado.

Claro que essa é uma discussão conceitual complexa e profunda, porque coloca os

advogados, não no seio da contradição, mas a serviço mesmo dos valores instituídos ou

como agentes da “afirmação” da ideologia do Estado. Todavia, modernamente, muitos

juristas têm questionado essa postura, se não como uma inconveniência hermenêutica,

como uma displicência perceptiva do também papel social do advogado, embora esse não

seja o objeto de seu quotidiano, mas, principalmente, da sociologia jurídica em

convivência epistemológica com a sociologia geral e com a ciência política ou mesmo com

a moderna filosofia do direito (Habermas, 1973:44-45; 87-90).

Essas disciplinas, quando premidas pelas variáveis marxistas, fazem uma relação direta

entre o direito instituído (a lei) e a ideologia, o que não é absolutamente verdadeiro: em

primeiro lugar, porque a lei é o direito filtrado que, dependendo de sua produção, em

algumas ocasiões, institui o espectro comezinho e perverso dos princípios, mas, em

outras, traduz o seu espectro mais aberto e magnânimo; em segundo lugar, porque a

dimensão fragílima ou grandiosa da lei está vinculada à funcionalidade democrática do

Estado. A estrutura democrática do Estado é que permitirá que as ideologias ou seus

especiais segmentos convertidos em lei traduzam as dimensões restritivas ou abrangentes

do direito.

Esses segmentos ou fragmentos ideológicos transformados em norma (lei geral) é que

permitem a evolução no quadro evolutivo da discussão sobre o conceito de ideologia à

imersão epistemológica que viabiliza uma abertura para se discutir não propriamente o

conceito de ideologia, mas de ideologia jurídica, enquanto transmutação do pensamento

ideológico geral em pensamento juridicamente assimilável. É exatamente essa

transmutação conceitual, em que o conceito de ideologia se enquadra na estrutura lógica

de reflexão jurídica, que torna possível abrir um novo leque de discussão para distinguir

não apenas esses dois conceitos, como faremos em adiante, mas para introduzir a

discussão sobre ideário profissional dos advogados. As ideologias que não têm aberturas

de alcance jurídico encontram profundas resistências, não apenas para influir na

formatação da ordem jurídica, mas também encontram profundas resistências no ideário

estatutário dos advogados porque elas podem converter a estrutura de ofícios

corporativos em estruturas de classe (ou de nação).

O pressuposto da ordem jurídica (a lei), por conseguinte, é o direito e o direito, no tempo

histórico, é uma ideologia específica, reduzida ao pragmatismo dos interesses, um

conjunto sistemático (específico) de ideias, no quadro (geral) das ideias, que muda e se

transmuda em função dos valores humanos essenciais. O compromisso do ideário

corporativo, muitas vezes instituído como prerrogativa ou dever do advogado, é como o

direito, enquanto pressuposto aberto da lei, e não como a lei, enquanto redução dos

valores essenciais do homem.

Portanto, sendo frágil a democracia, fica frágil o princípio (jurídico), fazendo com que as

órbitas positivas de alcance legal fiquem reduzidas (cada vez mais) a grupos privilegiados.

Por outro lado, todavia, sendo forte a democracia, as órbitas positivas de alcance dos

princípios instituídos se dilatam e restringem a força dos grupos privilegiados de poder

pelo poder ou de poder pela força econômica (ou prestígio social). É exatamente nesse

quadro que se define o papel dos advogados, não apenas como advogados isoladamente,

mas também, advogados no contexto da corporação estatutária.

A ordem jurídica frágil, comprimida pela sua própria natureza constitutiva, ou pela

imposição de forças (políticas) de exceção (ou de excepcionalidade), limita o alcance

aplicado do Direito (da ideologia jurídica), mas, sendo a ordem jurídica aberta, amplia-se

significativamente o alcance dos princípios que presidem a ideologia jurídica, favorecendo

a ideologia jurídica: o princípio de justiça, o princípio da liberdade, o princípio da isonomia

(mesmo no seu sentido amplificativo) e o princípio da equidade (evitando sua

transmutação em variantes da iniquidade), o princípio da inviolabilidade física e o

princípio da liberdade de consciência, incluindo-se o princípio do devido processo legal (o

direito de pedir), mesmo na ausência de suporte legal, como, aliás, até recentemente

aconteceu no Brasil.

Por conseguinte, se os limites de ação do advogado podem estar (são) restritos à

corporação, por força de seus compromissos com a própria ideologia jurídica, não o

impedem de reforçar o processo de descompressão dos princípios normativos instituídos

restritivamente. Esse processo pode acontecer no âmbito exclusivamente hermenêutico

dos tribunais ou mesmo através de procedimentos legislativos, mais abertos,

dependendo, é claro, da ordem constitucional vigente, ou através de processos políticos

de engajamento e mobilização mais visíveis, muitas vezes, contra a própria ordem

constitucional compressiva. Essa posição, todavia, só se tornou possível com a superação

do conceito marxista de ideologia ou, senão de sua superação, pela assimilação

coordenada do conceito enquanto conceito que traduz expectativas não apenas das

classes dominantes impostas aos dominados, mas também enquanto expectativas dos

dominados assimiláveis pela ordem instituída.

Escola de Frankfurt e pragmatismo ideológico

Antonio Gramsci, em especialíssimo contexto, e pensadores da Escola de Frankfurt, como

Horkheimer, Adorno, Benjamin, Habermas, bem como Herbert Marcuse e o já referido

Althusser, contribuíram decisivamente para abrir, se não alterar, as posturas referenciais

das ideologias, viabilizando, como anteriormente observamos, o conceito “pragmático” de

ideologia, que não é uma negação do intelectualismo, mas coloca-o como conceito de

ordem geral infenso ao determinismo classista. Por outro lado, fugindo do reducionismo

conceitual, ao mesmo tempo, tendo em vista suas posições, cria as condições teóricas

para a teoria do direito romper com o dogmatismo jurídico tradicional influenciado pelo

romanismo histórico.

Essa evolução ruptiva com a rigidez ideológica classista, que identifica a ordem jurídica

como instrumento de dominação de classe, abriu o conhecimento jurídico para a

sociologia jurídica, permitindo o reconhecimento das novas dimensões fáticas do direito e,

ao mesmo tempo, fragilizou a hermenêutica dogmática de forte influência romanista.

Essas duas novas variantes do conhecimento jurídico, combinadamente, contribuíram

para o fortalecimento de uma ideologia jurídica pragmática e pluralista e, também,

infensa aos radicalismos ortodoxos.

Nesse sentido, Karl Marx qualificou conceitualmente o objetivo da ideologia burguesa,

identificando-a como a percepção alienada da própria sociedade transmudada em direito

e deveres de todos. Mas Karl Mannheim, precursoramente contribuiu para esvaziar, se

não a radicalidade dessa concepção, para torná-la permeável como ato da consciência

projetiva ou construtiva. Essa especial formulação facilitou a reformatação conceitual

desenvolvida por Max Horkheimer, que desenvolveu uma concepção (positiva) de

ideologia como sistema profundo de ideias e valores que sobrevivem, prospectivamente,

recuperados do passado e inseridos em determinada época. Essa concepção contribuiu

decisivamente para o conceito de ideologia jurídica que estamos procurando adotar neste

capítulo, como instrumental pragmático apoiado em princípios ideais racionais de

reflexão. Essa leitura ideológica pragmática, em primeiro lugar, esvazia o classismo da

concepção intelectualista e, ao mesmo tempo, viabiliza a utilização conceitual da(s)

ideologia(s) como instrumento(s) aberto(s) à compreensão da sociedade e das leis,

permitindo reconhecer que a ideologia é uma forma de compreensão do mundo, e não

uma forma de compreensão da dominação de classes e de identificação de seus

instrumentos repressivos.

Em Horkheimer (1984), a ideologia perdeu o seu caráter classista, destinado apenas a

falsear a verdade, mistificar ou desmistificar situações, para viabilizar o exercício (muitas

vezes inconsciente) da dominação ou políticas (conscientes) de intervenção social, para se

transformar em um sistema coerente de ideias perceptíveis pela inteligência, não apenas

filosófica, mas politicamente sensível a determinados grupos, que não se confundem com

classes sociais, que a fazem ponta de lança de uma nova proposta ou (até) de nova ordem.

A superação da preocupação classista do caráter conceitual das ideologias facilitou a

implementação, não por grupos ou profissionais acima das classes, mas pela inteligência

“política” de valores essencialmente comprometidos com a sobrevivência da pessoa

humana, altamente resistente à sua degeneração pelo Estado (ou por ações de indivíduos

ou por grupos criminosos que possam enfrentar esses valores).

Esses valores humanos essenciais não são imutáveis, são históricos, mas, no contexto

dessas circunstâncias, são resfriados ou amplificados e, no tempo, sobrevivem como

sobrevive o próprio homem. O direito instituído, por conseguinte, a ideologia jurídica, é

uma forma de compreender o homem na sua subjetividade e nas suas relações

intersubjetivas, não apenas nos limites da lei, mesmo que essa lei, e é fato essa situação,

guarde em si mesma a sua própria e específica subjetividade. A ideologia jurídica poderá

se opor sempre a outro e alternativo sistema de ideias e valores, mais profundo que o

próprio direito subjetivo (instituído) de exigir (de terceiro) o cumprimento do dever: o

direito de lutar pelo direito, apesar do próprio direito instituído com base em novas

expectativas de valor, quase sempre imersas em novos e especiais fatos sociais.

Nesse sentido, os estudos de Jürgen Habermas, sobre ideologia e linguagem, quando

incentivam a dicotomia conceitual entre a (velha) “razão instrumental”, que na forma de

sua concepção (nunca desenvolvida, porque esse não era seu terreiro) seria o (velho)

direito (dogmático), e a (nova) “razão comunicativa”, abriu significativos espaços para a

compreensão etimológica das palavras e para a inteligência jurídica, incentivando uma

hermenêutica (de dúvida) desconstrutiva dos dogmas, para reencontrar, muitas vezes na

própria dogmática, o bom senso do “velho” “senso comum”, enquanto valores essenciais

do próprio homem. Para Habermas, “a razão instrumental se desenvolve em função das

necessidades do sistema, porém, a razão comunicativa pode se abrir para a

inesgotabilidade da vida”, inibindo as condições de o “sistema” conseguir legitimar formas

constrangedoramente antidemocráticas de desigualdades e de dominação (Habermas,

1973:44-45; 87-90), apesar das resistências e das condições circunstanciais.

Essa construção nos permite observar que, cada vez mais, a ordem jurídica não se

apresenta como a consciência “restrita” de uma classe (dominante), mas como, se não a

consciência “ampla” de todos, a consciência da luta pelos valores comuns (universais) a

todos os homens, abrindo extensos espaços para uma “razão” (ideológica) pragmática

que, apesar da ideologia jurídica instituída, pode, efetivamente, evoluir para ideologias

(jurídicas) alternativas à própria ordem. Essa evolução resulta sempre de fatores exógenos

à dogmática dominante, mas também e, quase sempre, de fatores endógenos, que

traduzem a decomposição pontual ou genérica da ideologia juridicamente instituída.

Walter Benjamin, no quadro das memoráveis contribuições da Escola de Frankfurt, se não

numa linha cronológica de evolução, trouxe nova colaboração para a discussão desse

tema, evoluindo, na sua leitura da questão ideológica, para sugerir a sua interconexão

com a ação, recuperando o conceito de praxis, um conceito marxista que se perdera no

intelectualismo, como engajamento político ideologicamente comprometido. Leandro

Konder (2002:95), recuperando o pensamento do emblemático pensador de Frankfurt,

observa:

Na introdução de seu livro sobre a Origem do Drama Barroco Alemão,

Benjamin explicava: as ideias se relacionavam uma com as outras como

constelação, sem o sangue da empiria, tornavam-se anêmicas, os

fenômenos, caso lhes faltasse a organização promovida pelas ideias,

dispersar-se-iam, perder-se-iam. Ao conceito cabia a função de viajar

constantemente de um polo ao outro, pondo as ideias em contato com

os fenômenos e os fenômenos em contato com as ideias [...].

Na compreensão desse tema, especialmente na sua percepção sistemática, não podemos

deixar de citar o livro de István Mészáros (2004:57) intitulado Poder da ideologia, não

somente pelo seu estudo sobre a natureza e necessidade da ideologia, vendo seu

potencial emancipador, como também procurando identificar o seu caráter construtivo.

Esse autor, entre todos os que tivemos oportunidade de consultar com maior

profundidade, mergulha com nítida clareza na questão das relações entre a ideologia e a

política, sem se esquecer do indispensável consenso entre as ideias e os mecanismos

institucionais de mudança. A recuperação histórica que faz do tema redimensiona a

discussão sobre as teorias de Adorno e Habermas, principalmente preocupada com a

mediação entre a praxis intelectual e a praxis política, encontrando nesta última o

caminho da realização das ideologias como projeto que subtrai magistralmente da leitura

crítica de obras e romances sobre a vida cotidiana dos homens.

A leitura de Mészáros (2004, p. 146 et seq.), da mesma forma lhe permite um estudo

comparado que não podemos desenvolver nesta obra, sobre a influência weberiana sobre

Raymond Aron, um dos grandes críticos das ideologias de esquerda como anti-ideologia,

que possuía uma concepção de democracia extremamente conservadora, influenciada

pela fórmula do bismarkismo alemão. O autor, todavia, introduz na discussão da questão

ideológica as posturas socialistas revolucionárias que marcaram autores como Rosa

Luxemburgo (Mészáros, 2004:376 e 389), no ponto de sua tragédia, assim como deixa

aberta a discussão sobre o “beco sem saída” do pensamento de Bernstein, que se perdeu

na discussão sobre a questão ideológica da reforma ou da revolução. São nesses autores,

todavia, que ele encontra, no conceito de solidariedade, a abertura para rediscutir o papel

do direito como instrumento de mudança e contribuição para a construção de uma nova

ordem aberta às posturas ideológicas radicais do início do século passado. Essa postura

(Mészáros, 2004:478) abre seu pensamento para a compreensão do conceito de “senso

comum”, não propriamente como queria Gramsci, entendendo-o “como elemento amorfo

da massa”, mas como ponto médio da praxis cotidiana construtiva da vida.

Ficava demonstrada, nessa leitura, característica ímpar das ideias jurídicas fecundarem o

fenômeno (empírico) fáctico (juridicamente relevante), evitando a anemia das ideias para

que o fenômeno evitasse a liberdade extrapolativa da ideia. A ideologia, como o mundo

das sombras (de Platão), estava mergulhada na “luz da vida”, encontrando, no direito, a

interconexão da convivência entre a ideologia e a(s) realidade(s) do(s) homem(s). Estava

aberto o caminho para se reconhecer no direito as vertentes nítidas da ideologia, assim

como, na ideologia, as dimensões ínsitas da ideologia jurídica, como conjunto de ideias

presididas por valores comuns comprometidos com a essência do homem. O direito,

enquanto conjunto de valores humanos essenciais, estava infiltrado nas ideologias, mas as

ideologias aprenderam a abrir caminhos no mundo (circunscrito) do direito, rompendo o

corpo hermético da dogmática, que fechara o direito (a lei) para o próprio direito (não

escrito), como compromisso com a dinâmica da vida social.

Nesse contexto, os estudos jurídicos encontraram os espaços para reconhecer, no seu

próprio ideário profissional, as aberturas de convivência ideológica, filtradas

imprescindivelmente pelos valores humanos essenciais, que o tempo histórico identificará

nas democracias o solo no qual viceja e o âmbito em que se realiza. Fora do contexto

jurídico discursivo, mas trazendo para o seu contexto, essas posições se fortaleceram

significativamente à medida que Antonio Gramsci, reconhecendo que as ideologias

arbitrárias devem ser desqualificadas, conceitua as ideologias historicamente orgânicas

como aquelas que reconhecem na realidade os valores universais imprescindíveis para a

sobrevivência do homem, independentemente de interesses especificamente particulares

de grupos ou classes (Gramsci, 1999-2002).

Finalmente, reforçando a conversão ideológica, Gramsci faz uma importante abertura

para reconhecer (também) na superestrutura certa unidade de valores históricos do

conhecimento aberto à criatividade do sujeito humano, permitindo-se reconhecer a sua

autonomia relativa, mas insuprimível, quando se tratar de preservar, não a lei, enquanto

consciência para si (não vinculada às necessidades do próprio homem) do poder político

instituído, ou de consciência em si (vinculada às necessidades do próprio homem) dos

excluídos, mas o direito, enquanto consciência instituída dos valores humanos essenciais,

muitas vezes, circunstancialmente subtraídos na formatação superestrutural da ordem

jurídica, mas implícitos em nova formatação na luta pelo direito, enquanto alternativa do

próprio direito instituído.

Ideologia, ideologia jurídica e ideário profissional

A correlação entre essas três variantes não tem sido objeto de estudos jurídicos

sistemáticos e poderíamos, inclusive, afirmar que, nem ao menos esparsamente, ou

pontualmente, esses temas se identificam entre os temas cotidianos da vida jurídica.

Todavia, quaisquer das três dimensões permeiam o cotidiano jurisdicional do exercício

profissional, não apenas em função do seu engajamento político, mas também em função

das determinantes dogmáticas do próprio exercício profissional. De qualquer forma, como

demonstramos anteriormente, as discussões sobre o conceito de ideologia são bastante

amplas, muito embora restritas no que se refere à relação ideologia e direito, exatamente

o espaço em que se define o conceito de ideologia jurídica, pressuposto não propriamente

dos padrões disciplinares da advocacia, mas do ideário profissional.

Nos itens anteriores, procuramos demonstrar que o conceito de ideologia historicamente

se desenvolve como um conceito intimamente vinculado às classes dominantes,

permeando as instâncias socializadoras e, inclusive, definindo os instrumentos repressivos

que possam coibir os desvios expectados pelo Estado classista. Por outro lado,

procuramos também mostrar que esse conceito originário de ideologia não propriamente

se fixou como uma única e exclusiva expressão dos processos de dominação, mas muitos

foram os estudiosos, principalmente aqueles que sucederam a Gramsci e a Escola de

Frankfurt, que procuraram encontrar, também no conceito de ideologia, os ideais de

esperança, demonstrando assim que esse conjunto coerente de ideias pode se prestar a

justificar os atos formativos e repressivos do Estado, mas pode também justificar as

expectativas de mudança social ou ruptura com a ordem estabelecida.

Exatamente nessa dimensão é que se definem os parâmetros da ideologia jurídica, porque

não se confundindo exatamente com o conceito de ideologia, ela filtra as variáveis

ideológicas que podem ser absorvidas ou suportadas pela ordem jurídica dominante,

muitas vezes, inclusive, como foi o caso brasileiro na definição dos direitos fundamentais

individuais e coletivos, rompendo com padrões matriciais tradicionais. É bem verdade que

a história brasileira não tem demonstrado a força ruptiva dessas ideologias jurídicas, mas

efetivamente demonstram que as ideologias da esperança penetram e permeiam, se não

absolutamente, a ideologia da ordem, permitindo-nos observar que é sempre provável

que a desordem da compreensão hermenêutica da ordem contribua para a construção de

aspectos prospectivos de uma nova ordem. A experiência brasileira, nesse sentido,

demonstra que os atos ruptivos são excepcionais e as expectativas de composição sempre

se impõem como realidade, criando as condições favoráveis à convivência das matrizes

essenciais da ordem com as mudanças sensíveis às próprias matrizes. Nesse contexto de

variantes que se define o ideário profissional do advogado, ou seja, o ideário profissional é

uma expressão estatutária que filtra da perspectiva exclusivamente profissional a

ideologia jurídica constitucionalmente definida pelos fatores reais de poder, o que

significa que as constituições não são normas puras, mas traduzem formas de composição

entre estruturas conservadoras e projetos de força prospectiva.

O ideário estatutário historicamente funciona como um instrumento conservador da

ordem, fazendo da advocacia uma profissão essencialmente vinculada à conservação do

status quo, o que não significa que manifestações isoladas ou pontuais da advocacia não

tenham força ruptiva da superfície das estruturas conservadoras. É exatamente nesse

momento que vamos identificar as flutuações do ideário corporativo, todavia, nunca se

comprometendo com o processo de ruptura institucional, mas quase sempre procurando

formas de viabilizar mudanças restauradoras das aberturas da ordem esbulhada que

evolui para projeções mais significativas de mudança. A experiência brasileira, nesse

sentido, demonstra que os atos ruptivos são excepcionais e as expectativas de

composição sempre se impõem como realidade, criando as condições favoráveis à

convivência das matrizes essenciais da ordem com as mudanças sensíveis às próprias

matrizes.

Muitos autores, principalmente os envolvidos nessa discussão temática, permitem

afirmar, e também já fizemos essa observação, que a própria confecção conceitual do

ideário guarda uma significativa conotação ideológica, ou seja, o ideário está impregnado

de ideais e ideias que se justificam e explicam, assim como é sempre conveniente

entender que o ideário corporativo é uma redução disciplinar da ideologia jurídica, assim

como a ideologia jurídica é uma redução pragmática, quase sempre eclética, da ideologia

geral. Assim, da mesma forma que a bibliografia clássica relaciona as ideologias (muitas

vezes) diretamente à posição de grupos sociais e classes na sociedade (ou mesmo no

processo produtivo), o ideário está sempre vinculado a categorias profissionais e, no seu

conjunto, sintoniza o contexto profissional geral com a ideologia jurídica instituída.

Neste capítulo, abordamos apenas o conceito de ideologia enquanto discussão sobre a

influência do flutuante fluxo (sempre mais presente na formulação de leis ou

regulamentos) das ideias e ideais expressivos ou não de grupos sociais, sem, contudo,

desconhecer que o ideário corporativo também será, possivelmente, uma tradução

eclética de outras experiências profissionais. Não podemos, propriamente, falar em

ideário puro como podemos falar em norma pura, mas é sempre possível reconhecer o

ecletismo estatutário das corporações em relação aos projetos ideológicos.

Este, por conseguinte, não é um estudo sobre ideias puras, mas um estudo que traduz o

contraditório das dificuldades argumentativas dos próprios advogados, muito

especialmente nos momentos de crises e mudanças, quando as ideologias efluem e o

ideário reflui ou, como não é de todo impossível na história, quando o ideário se

desprende da ordem instituída e incorpora ideologias e fluxos endógenos.

Nesse sentido, não é de todo improvável ou epistemologicamente desprezível afirmar

que, independentemente dos sistemas de ideias puras e coerentes, existe uma ideologia

jurídica que realiza, pragmaticamente, no contexto da ordem (ou da desordem), projetos

e prognósticos políticos suportáveis pelo ideário corporativo. No tempo, esse mesmo ideal

corporativo transmuda-se, absorvendo e acomodando as novas ideias que resistirão a

outros tantos e novos projetos, para se engajarem, novamente, em outras tantas

proposições. A ordem jurídica é a alma (a essência) do ideário profissional, mas é a

ideologia jurídica que define a hermenêutica de sua implementação enquanto ordem e

enquanto ideário. É exatamente nesse circuito epistemológico fechado que podem

ocorrer as anomias, as falhas do sistema, os curtos-circuitos que viabilizam o seu

(re)conhecimento ou a sua nova compreensão.

Na verdade, esse é o dilema dos sistemas fechados, mas ao mesmo tempo é o fenômeno

que permite a redução (política) das ideologias ao ideário profissional e a seu subsequente

desdobramento ideológico demonstrando que a ação dos grupos profissionais (e o

advogado, entre eles, se enquadra exemplarmente) está comprometida com o ideário

profissional, o que impede uma ação ideológica aberta, mas sedimenta um certo

pragmatismo ideológico (ideologia jurídica) que dificilmente rompe com os limites do

próprio ideário, exceto quando as aberturas são provocadas pelo próprio pragmatismo da

ideologia jurídica. Por essas razões, a ideologia dos advogados, quando se manifesta, se

mostra como uma ideologia pragmática, permeada pelos próprios valores éticos da

profissão, e rompê-los pode ser uma ruptura profissional com uma consequente

transmutação do grupo profissional em grupo político ou partidário, ou sindical.

Por conseguinte, enquanto podemos identificar a tomada da consciência política, como

reconhecimento da “missão” do advogado (do profissional), nas palavras de Rui Barbosa,

a ideologia jurídica se define como uma adesão a um sistema de ideias (jurídicas) voltadas

para a compreensão crítica ou defensiva da ordem a partir da própria ordem (vigente) ou

da sua capacidade de traduzir ideias (novas) ou fatos sociais (novos). Por isso, toda

hermenêutica jurídica é uma ideologia jurídica permeada sempre pelo pragmatismo

compreensivo da ordem jurídica e pelo discurso sobre a sua capacidade de traduzir ideias

e valores sociais emergentes ou decadentes na dimensão possível das resistências e

aberturas do ideário profissional.

Nesse sentido, uma mesma ideologia jurídica pode criticar uma determinada ordem, nos

seus diferentes matizes e nos seus fundamentos sociais ou superestruturais (Bastos,

2000), assim como, a partir dela, nada impede a proposição construtiva de uma nova

ordem, assim como essa postura ideológica não impede, todavia, que as mesmas ideias e

ideais que serviram à crítica e à construção da ordem prestem-se para defender a sua

conservação ou sobrevivência. As ideologias são sistemas de ideias que justificam e

explicam a ordem, assim como a criticam nos seus diferentes patamares ou no seu todo,

mas as ideologias jurídicas são construções hermenêuticas pragmáticas (e, por isso,

muitas vezes ecléticas), que, da mesma forma, prestam-se, principalmente no tempo

histórico, para a construção da (des)ordem ou (des)construção da ordem.

Finalmente, todas as profissões comprometidas com determinado ideário corporativo têm

os seus princípios específicos (muitas vezes, exclusivamente, éticos) inerentes à essência

(vida) da própria profissão, que, em geral, traduzem ideologias dominantes na perspectiva

de seu trabalho. Os advogados, todavia, têm um ideário mais complexo, exatamente

porque o objeto da própria profissão, a norma (o direito escrito) é (ou pode ser) uma

redução normativa da ideologia (geral) dominante ou o fato jurídico, enquanto realidade

normativa ou conhecimento do fato (juridicamente) relevante. Por isso, essa posição

sempre paradoxal: reconhecer na norma instituída os limites do próprio ideário e, no

ideário, o âmbito de alcance (abertura) modificativo (hermenêutico) da própria norma.

Esses limites e aberturas são a própria ideologia jurídica que flui e evolui no contexto das

circunstâncias políticas. É nesse sentido que os itens subsequentes deste capítulo evoluem

preliminarmente para demonstrar as fortes relações estruturais entre o ideário

profissional do advogado e o Estado de direito, por um lado, mas ao mesmo tempo,

procuramos nos itens subsequentes demonstrar as condições possíveis do ideário

profissional vigente, muitas vezes comprimido pelo Estado e, quem sabe, por isso mesmo,

encontrar as formas possíveis de contribuir para a abertura de espaços jurídicos que

permitam o rompimento de situações institucionais compressivas.

Origens do ideário dos advogados

A formação do ideário profissional dos advogados se desenvolveu a partir da criação do

Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) na forma do aviso de 7 de agosto de 1843,

promulgado, por determinação do imperador dom Pedro II, nos seguintes termos:

Sua Majestade, o Imperador, deferindo benignamente ao que

representam diversos advogados desta Corte, manda pela Secretaria de

Estado dos Negócios da Justiça, aprovar os estatutos dos advogados

brasileiros que os suplicantes fizeram subir à Sua Augusta presença, e

que com esta baixam assinados pelo Conselheiro Oficial-maior da mesma

Secretaria de Estado, com a cláusula porém de que será também

submetido a imperial aprovação o Regulamento Interno, de que foram os

referidos Estatutos. Palácio do Rio de Janeiro em 7 de agosto de 1843.

Honório Hermeto Carneiro Leão.

O regimento interno do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB), de 15 de maio de 1844,

dispõe no seu art. 2º explicitamente: “O fim do Instituto é organizar a Ordem dos

Advogados em proveito geral da ciência e da jurisprudência”.

Historicamente, o estatuto do IAB, na sua promulgação, sofreu visível influência da

Associação do Contrato Constitutivo da Associação dos Advogados de Lisboa, mas na

avaliação geral de seus objetivos, principalmente na definição de seu ideário, sofreu

também grande influência do Estatuto da Advocacia de Paris, reformulado por Napoleão

Bonaparte e editado em 1810. O IAB, na sua orientação constitutiva, adotou a orientação

predominante na Associação dos Advogados de Lisboa, que não propriamente se

constituiu (se criou) como Ordem dos Advogados, mas em seu estatuto estava indicada a

ideia de se instalá-lo (no futuro) como Ordem dos Advogados, diversamente do estatuto

da Advocacia de Paris, que se reinstalara num contexto histórico divergente do seu

passado, mas como Ordem dos Advogados.

O art. 1º do estatuto da Associação dos Advogados de Lisboa dispunha semelhantemente

ao que viria acontecer na criação do IAB: “O objetivo da Associação é conseguir a

organização definitiva da Ordem dos Advogados, e auxiliarem seus associados

mutuamente, tanto para consultas, como para manutenção dos seus direitos”. Como

observamos no estatuto da Advocacia de Paris, muito embora sejam inegáveis as suas

históricas conexões de origem e compromisso com o absolutismo medieval, a

radicalização revolucionária francesa rompeu com suas práticas provocando os atos

também radicais de Napoleão Bonaparte, que chegou a suspender o Barreau para

posteriormente restaurá-lo na forma do estatuto da Advocacia de Paris de 1810, presidido

pelos ideais do liberalismo e de uma profunda revisão das práticas jurídicas, em relação

aos próprios padrões da advocacia romana, influenciado pelos estudos que evoluíram a

partir do Renascimento e do pensamento jurídico que sobreviveu na Lombardia.

O estatuto francês, que trazia no seu bojo a questão protetiva dos novos direitos civis,

ilustrou muitos debates no IAB, mas de significativa influência no Parlamento Imperial e

Republicano. Na verdade, todavia, o ideário estatutário da advocacia evoluiu, no Brasil,

preliminarmente, não dos propósitos ideológicos franceses, apesar de sua interveniente

presença, mas muito mais das disputas das elites brasileiras pela ocupação de espaços no

Estado, o que, por um lado, provocou uma vinculação do IAB à dinâmica do próprio

Estado Imperial (e Republicano), e por outro, uma hipertrofia do exercício da advocacia

como suporte público de demandas privadas do estamento burocrático do Estado, na

linguagem de Raymundo Faoro.

Essa situação permitiu que muitos bacharéis, por um lado, viessem a constituir a elite

política dos poderes de Estado, mas procurando assegurar, também, o exercício da

advocacia privada, em detrimento, por outro lado, do exercício profissional independente,

muitas vezes praticado por rábulas ou profissionais provisionados. Essa hipertrofia

funcional, entre o público e o privado, entre outras causas e fatores que estudaremos,

permitia o exercício cumulado de funções públicas relevantes por advogados privados,

assim como admitia que a advocacia fosse também exercida por servidores do Estado, o

que favoreceu o mais importante fenômeno da formação institucional brasileira: o Estado

patrimonialista.

Esse quadro circunstancial demonstra, por outro lado, que a criação da OAB, inclusive

como finalidade regimental precípua do IAB, mais do que um projeto imperial para

viabilizar a convivência entre os advogados, inclusive entre rábulas e provisionados, e esta

a causa geral das resistências à sua criação, foi um projeto de definição dos direitos e

deveres profissionais dos advogados como pressuposto de sua independência diante do

patriarcalismo do emergente Estado patrimonialista (de natureza imperial) e da necessária

proteção na luta pelos direitos civis de sua clientela, cujos efeitos disciplinares ficavam

suscetíveis à ação dos juízes dos tribunais. Com a proclamação da República, a situação

não se alterou, pelo contrário, ela foi mais radical que o Império no esvaziamento do

projeto corporativo dos advogados ao transformar o IAB em Instituto da Ordem dos

Advogados Brasileiros (IOAB), excluindo do regimento Imperial o objetivo estatutário de

se criar a Ordem dos Advogados.

Nesse sentido, assim dispunha os arts. 1º e 2º, respectivamente, do Estatuto do IOAB,

aprovados nas sessões de 27 de abril a 18 de maio de 1899, demonstrando que o

bacharelismo republicano, paradoxalmente, tanto quanto às práticas profissionais

provisionadas dos rábulas representavam as verdadeiras resistências à criação da OAB.

O Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros constituído em 7 de

agosto de 1843 e instalado um mês depois nesta capital, é uma

associação de advogados graduados em ciências jurídicas [...]. O IOAB

tem por fim o estudo do direito no seu mais amplo desenvolvimento, nas

suas aplicações práticas e comparação com os diversos ramos da

legislação estrangeira [...] (e) a assistência judiciária.

Estava desmontada, no formato republicano, a ideia de uma corporação disciplinar,

voltada para as questões, mesmo que sem eficácia efetiva referentes aos direitos e

prerrogativas dos advogados, incompatibilidades e impedimentos, e sobre o exercício da

ação disciplinar pelos próprios profissionais.

Esse fenômeno “vicioso” de evidente influência bacharelista estava marcado pelo

quotidiano de enfrentamentos entre rábulas e bacharéis, provocado, não propriamente,

por um Estado comprometido com a defesa dos direitos individuais, apesar da dimensão

exemplar da Constituição de 1824, guardadas as proporções do tempo histórico e a

Constituição de 1891, mas com a burocracia dos procedimentos judiciais, que constrangia

a hermenêutica discursiva das acusações e das defesas da clientela, bem como favorecia o

beletrismo inconsequente, retórico e vazio. Por essas razões, a formação do ideário

corporativo dos advogados nunca esteve permeada pelos grandes debates de ideias, mas,

dominantemente, pela definição do papel e das prerrogativas dos bacharéis no exercício

da advocacia em contraposição aos efeitos institucionais remanescentes da prestação de

serviços jurídicos pelos rábulas.

Nesse sentido, os próprios textos constitucionais, tanto do Império quanto da República,

que tão efetivamente estavam marcados pela proteção aos direitos individuais, muito

contribuíram para interromper o pleno exercício da advocacia. Não há como desconhecer,

por conseguinte, que o inc. XXV do art. 179 da Constituição Imperial e o §24 do art. 72, e o

§14 do art. 141 da primeira Constituição Republicana ao abolirem e limitarem as

corporações de ofício interferiram diretamente na questão formativa da organização

disciplinar do ofício de advogado. Assim dispunha o inc. XXV do art. 179 da Constituição

Imperial: “ficam abolidas as corporações de ofícios, seus juízes, escrivães e mestres”.

Semelhantemente, o §24 do art. 72, o mesmo que no seu caput e demais incisos tratava

da declaração de direitos e da proteção dos direitos individuais, dispunha que “é

garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial”. Todavia, a

leitura desse texto, de formatação de ideário formatativo mais aberto, no seu

reconhecimento hermenêutico, ficou interpretada no cotidiano parlamentar e dos

próprios tribunais:

à luz da experiência argumentativa do próprio Parlamento Imperial,

demonstrando que, exatamente, não haviam maiores divergências entre

os grupos de resistência à criação da OAB no Império e na República.

Nesse sentido, foi exatamente a hermenêutica desses dispositivos que

inviabilizou a constituição de uma ordem dos advogados e, no correr do

tempo, no andamento dos projetos que tramitaram na Câmara dos

Deputados e no Senado Federal.

De qualquer forma, esses sucessivos anos de confrontos com o Estado Imperial e,

posteriormente, de contraposição e composições com a velha República não impediram

que a cada reforma dos estatutos do IAB (ou do IOAB) mais se ampliassem as definições

dos espaços de garantias da advocacia, muito embora tivesse esmaecido, no tempo

republicano, o objetivo de se criar a Ordem dos Advogados como instituição corporativa,

com evidentes efeitos sobre a formatação do ideário profissional. O Instituto, todavia, não

podemos desconhecer, através de seus presidentes ilustres, todos de alta representação

na vida política e intelectual do Império, e da República, postulavam no Parlamento, e nos

órgãos de Estado, pela criação da Ordem dos Advogados Brasileiros, mas não obtiveram

sucesso no seu empenho, muito embora, de qualquer modo, pelo menos em princípio,

procuraram transformar as ideias metropolitanas (européias) em ideais de projetos do

Império e da República, o que, de qualquer forma, foi uma grande abertura às influências

exógenas sobre o ideário da advocacia.

Nesse sentido, até o fim da primeira República, a história do exercício da advocacia no

Brasil é a história do confronto (e da convivência) entre os rábulas, provisionados pelo

Estado Imperial (Poder Moderador, Executivo e Judiciário) e pelo Estado republicano; e os

bacharéis, formados pelas escolas oficiais de direito ou aqueles que, originários das

faculdades livres, eram aprovados nos “exames de Estado” promovidos pelas faculdades

oficiais. Esses confrontos entre os rábulas provisionados e a ascendente advocacia de

bacharéis pela ocupação dos espaços institucionais e judiciais levaram à organização

corporativa dos advogados a evoluir mais em função dos enfrentamentos práticos da

profissão, do que, propriamente, sob a inspiração dos ideais iluministas e das conquistas

dos advogados franceses após a promulgação do Decreto de 1810, de Napoleão

Bonaparte, que restaura e reorganiza a velha corporação francesa dos advogados

(Barreau).

A luta dos advogados na França foi uma luta pelos ideais de liberdade e pela restauração

da Ordem dos Advogados de Paris, que havia sido suspensa imediatamente à Revolução

Francesa, sem que assumisse qualquer compromisso com os modelos econômicos

corporativistas absolutistas remanescentes. Todavia, no Brasil, a luta dos advogados pela

sua organização profissional e pela institucionalização dos ideais de liberdade foi rejeitada

pelas elites imperiais e pelas oligarquias republicanas como uma luta corporativista

inspirada nas corporações medievais de ofício, por força de esdrúxula e sucessiva

interpretação de dispositivos constitucionais sobre liberdade profissional e a imposição

restritiva de dispositivos regulamentares pelo Estado Imperial e pelo Estado Republicano.

Nesse contexto, a criação do IAB não evoluiu da luta por ideais profissionais abertos, mas

da luta pela ruptura das limitações que o Estado Imperial e República impunham ao

exercício da profissão, reduzindo-lhe o espaço profissional pelos próprios rábulas

provisionados, inclusive, nos âmbitos do Poder Judiciário, comprimido pelo Poder

Moderador, no Império, e pelo poder das oligarquias na República. Nesse paradoxal

contexto, o ideal da organização profissional foi transmudado em luta pela criação de uma

corporação de ofício contra a liberdade de exercício profissional, não restando aos

advogados se não a luta pela definição de seus direitos, prerrogativas e deveres, não

tanto, inicialmente, perante os poderes públicos, mas junto aos seus clientes e ao Poder

Judiciário, incipiente e acautelado diante do estado moderador (poder real) (Constant,

1988) e autoritário, e o subsequente poder oligárquico.

O contexto expositivo do tema permite identificar um leque de resistências à criação da

OAB de fundamento ideológico comprometido com as estruturas de dominação do Estado

Imperial e do Estado Republicano. Essas resistências à criação da OAB no Império e na

República podem ser identificadas em várias dimensões compreensivas que,

coordenadamente, explicam os fundamentos históricos das dificuldades encontradas para

não apenas criar a Ordem dos Advogados, mas definir o seu ideário não exclusivamente

restrito às dimensões das exigências profissionais específicas. Essas resistências,

basicamente, podem ser resumidas em quatro especiais tipos:

� resistência econômica;

� resistência política;

� resistência profissional;

� resistência jurídica.

A resistência econômica se manifestou através das elites agrárias, monocultoras e

exportadoras comprometidas com o sistema fundiário-escravista, no Império, e servil, na

República, contrários ao livre-comércio e às regras civis de organização da sociedade e da

propriedade comercial moderna. Por outro lado, as elites políticas tradicionais sempre

foram acentuadamente resistentes às interferências e cognições jurídicas voltadas para

abrir o sentido hermenêutico dos institutos políticos fechados, predefinidos, dominantes

na legislação metropolitana (portuguesa, especialmente as Ordenações), remanescentes e

comprometidos com um projeto de construir o Estado nacional como o Estado da realeza

nas suas relações com os políticos (e seus acordos), especialmente parlamentares.

Nesse contexto, estava sempre visível a resistência dos “profissionais” provisionados para

prestar serviços de advocacia, rábulas sempre envolvidos com a burocratização das

demandas e com questiúnculas “praxistas”, assim como com os interesses de grupos

associados a funcionários do Estado em alianças com bacharéis em direito que

controlavam o poder público para reproduzir os seus interesses atávicos. Coroava esses

níveis de resistência a hermenêutica jurídica a serviço dos interesses instituídos que,

interpretavam os dispositivos constitucionais para fazer do conhecimento da ordem

jurídica o conhecimento dos interesses dominantes. As críticas aos provisionados, todavia,

nem sempre eram assim tão radicais (Bastos, 2003).

Esse argumento (enquanto tal) se ressaltava, entre todos, especialmente, porque ele

desviava as questões centrais para uma discussão retórica e interpretativa, assim como

traduzia as resistências jurídicas à criação da Ordem dos Advogados como uma luta contra

a restauração do passado e preservação do presente que adviera com a formação do

Estado nacional, que o futuro criticará como o Estado agrarista exportador dos barões e

oligarcas. Na verdade, essas linhas de resistência traduziam os interesses do Estado

patrimonialista, cuja natureza híbrida não distinguia funções e posições do Estado com

funções e posições privadas, favorecendo e viabilizando o nepotismo e o tráfico de

influências como especiais formas de se incentivar as resistências econômicas e

profissionais conservadoras (Mercadante, 2003:185-239), fundamentos ideológicos da

resistência ao ideário corporativo aberto aos princípios essenciais do direito.

Para essas elites ou para suas específicas frações, o Estado no Brasil seria uma construção

jurídica, como todos os estados (coloniais), construído pelas metrópoles, que deve(ria) ser

politicamente (re)conhecido (desvendado) apenas pelos que dominavam o processo de

sua construção. Para as elites metropolitanas, e sua reprodução imperial, o Estado não é

uma construção política que deva ser juridicamente (re)conhecida (identificada),

diferentemente do Estado burguês francês, originário da Revolução, que foi (pelo menos

em tese) politicamente construído para ser juridicamente compreendido como Estado de

direito. Na verdade, esse (precursor) Estado de direito no Brasil evoluiu para um Estado

legalista e positivista, mas que, diferentemente do Estado nacional (brasileiro), tornou

imprescindível a contribuição jurídica dos advogados, como titulares do munus publico,

atores essenciais aos poderes públicos, não apenas isoladamente, mas também,

organizadamente, conforme o documento francês de 1810 (Bastos, 2003).

Os princípios jurídicos que presidem as relações éticas entre os advogados e o seu

comportamento na defesa dos seus constituintes, bem como as relações entre os

advogados e as autoridades de Estado, são a base compreensiva do Estado de direito,

diversamente do Estado autoritário, politicamente construído e/ou juridicamente

formalizado na Constituição Imperial do Brasil de 1824. Esses princípios, essenciais ao

Estado de direito, definem-se em uma vertente substantiva, comprometida,

originariamente, com a garantia e a defesa dos direitos individuais, sufocados durante o

período medieval, e numa dimensão organizativa, comprometida com a predefinição das

competências das autoridades estatais, constrangidas pelo absolutismo monárquico após

o período medieval e, antes das revoluções burguesas, pelos modelos políticos

centralistas.

O Estado imperial brasileiro era a exata tradução do Estado politicamente construído para

os políticos da realeza, enquanto o Estado republicano, de 1889-1891, transformou-se na

construção jurídica para os políticos governarem. Enquanto o primeiro estava influenciado

pelos contornos remanescentes do absolutismo, traduzidos de Poder Moderador, que se

reproduziu na história brasileira nos modelos políticos autocráticos, sempre resistentes ao

seu conhecimento hermenêutico, o segundo, embora juridicamente construído, estava

tomado pela oligárquica fundiária descendente do Império e resistente à compreensão

jurídica do funcionamento político. Em ambas as situações, se o advogado, enquanto

advogado, tinha um papel representativo, qualquer estrutura corporativa de advogados

provocaria o confronto entre o aparato ideológico do Estado de origens republicana e

liberal e as suas práticas políticas autocráticas, especialmente devido à natureza

autóctone do ideário profissional, mesmo que incipiente.

A exata compreensão do insucesso das lutas pelo ideário corporativo está diretamente

associada ao insucesso das lutas parlamentares pelos projetos de lei voltados para a

institucionalização do catálogo dos direitos e deveres da advocacia. Por outro lado, por

sua vez, estão diretamente relacionados à natureza patrimonialista e à força endógena

atávica dos seus autores, inicialmente comprometidos com o escravismo agrário

exportador e, no desdobramento republicano, com a hermenêutica oligárquica que

dificultava a construção efetiva do Estado de direito e a proteção dos direitos individuais.

As demandas institucionais e legislativas para a criação da OAB ficaram restritas no

período imperial e no período republicano à definição dos espaços corporativos e das

prerrogativas e deveres profissionais nos regimentos do IAB e/ou IOAB, que não

alcançaram, até 1930-33, dimensão legislativa e estatutária, como propunha o decreto de

criação do IAB, em 1843, esvaziado em 1888-89 com a criação do IOAB. No fundo, por

conseguinte, um especial conjunto de fatores políticos e institucionais entrecruzados

contribuiu para as sucessivas rejeições dos anteprojetos de criação da Ordem, deixando os

advogados cerceados nas suas prerrogativas, nos limites possíveis da restritivíssima ação

do IAB/IOAB que, por isso mesmo, não se transformou, nem criou a OAB.

Finalmente, a criação da Ordem dos Advogados nesse contexto não refletiu uma ação

política interventiva, nem muito menos parlamentar do IAB/IOAB, mas foi um ato da

Revolução de 1930 na forma do art. 17 do Decreto (revolucionário) nº 19.408, de 18 de

novembro de 1930, assinado por Getúlio Vargas, chefe do Governo Provisório, e por

Oswaldo Aranha, ministro da Justiça. Imediatamente à criação da OAB, sucedeu, sob a

coordenação do presidente da OAB, Levi Carneiro, ex-presidente do IOAB, a edição do

Decreto Regulamentar nº 20.784, de 14 de dezembro de 1931, alterado pelo Decreto nº

21.582, de 1º de julho de 1932; pelo Decreto nº 22.089, de 1º de novembro de 1932; e

pelo Decreto nº 22.266, de 28 de dezembro de 1932, que viabilizaram a

institucionalização do ideário profissional dos advogados, na forma de seus objetivos

disciplinares e de suas prerrogativas, a que imediatamente sucedeu a edição do primeiro

Código de Ética e Disciplina, em 25 de julho de 1934, após a promulgação da Constituição

de 16 de julho de 1934. Foi nesse especialíssimo contexto histórico, vencidas as barreiras

imprescindíveis ao exercício profissional da advocacia, que lançaram as bases de

frutificação futura o ideário da advocacia como compromisso com a ideologia jurídica

consagrada constitucionalmente.