direito e democracia v4, n2 - ulbra · valério de oliveira mazzuoli trata do direito dos tratados,...

218
COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO” Presidente Delmar Stahnke Vice-Presidente João Rosado Maldonado Reitor Ruben Eugen Becker Vice-Reitor Leandro Eugênio Becker Pró-Reitor de Administração Pedro Menegat Pró-Reitor de Graduação da Unidade Canoas Nestor Luiz João Beck Pró-Reitor de Graduação das Unidades Externas Osmar Rufatto Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Edmundo Kanan Marques Pró-Reitor de Representação Institucional Martim Carlos Warth Capelão Geral Gerhard Grasel Ouvidor Geral Eurilda Dias Roman DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Editor Plauto Faraco de Azevedo Editor Associado César Augusto Baldi Conselho Editorial Airton Sott (ULBRA) Aldacy Rachid Coutinho (UFPR) Altayr Venzon (ULBRA) Etienne Picard (Université de Paris I/França) Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA) Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA) Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR) Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha) José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS) Luís Afonso Heck (ULBRA) Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ) Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA) Vladimir Passos de Freitas (UFPR) DIREITO E DEMOCRACIA Revista de Ciências Jurídicas – ULBRA Vol. 4 - Número 2 - 2º semestre de 2003 ISSN 1518-1685 U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana do Brasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000. Semestral 1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil - Ciências Jurídicas. CDU 34 CDD 340 Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero - ULBRA/Canoas EDITORA DA ULBRA E-mail: [email protected] Diretor: Valter Kuchenbecker Capa: Everaldo Manica Ficanha Editoração: Roseli Menzen CORRESPONDÊNCIA/ADDRESS Universidade Luterana do Brasil PROGRAD/Divisão de Publicações Periódicas a/c Paulo Seifert, Diretor Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 127 92420-280 - Canoas/RS - Brasil E-mail: [email protected] Solicita-se permuta. We request exchange. On demande l’échange. Wir erbitten Austausch. ENDEREÇO PARA PERMUTA: Universidade Luterana do Brasil Biblioteca Martinho Lutero Setor de aquisição Rua Miguel Tostes, 101 - Prédio 05 92420-280 - Canoas/RS E-mail: [email protected] O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade ex- clusiva dos autores. Direitos autorais reservados. Citação parcial permitida, com referência à fonte.

Upload: lydieu

Post on 24-Dec-2018

215 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

COMUNIDADE EVANGÉLICA LUTERANA “SÃO PAULO”

PresidenteDelmar StahnkeVice-PresidenteJoão Rosado Maldonado

ReitorRuben Eugen BeckerVice-ReitorLeandro Eugênio Becker

Pró-Reitor de AdministraçãoPedro MenegatPró-Reitor de Graduação da Unidade CanoasNestor Luiz João BeckPró-Reitor de Graduação das Unidades ExternasOsmar RufattoPró-Reitor de Pesquisa e Pós-GraduaçãoEdmundo Kanan MarquesPró-Reitor de Representação InstitucionalMartim Carlos Warth

Capelão GeralGerhard Grasel

Ouvidor GeralEurilda Dias Roman

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas – ULBRA

EditorPlauto Faraco de AzevedoEditor AssociadoCésar Augusto Baldi

Conselho EditorialAirton Sott (ULBRA)Aldacy Rachid Coutinho (UFPR)Altayr Venzon (ULBRA)Etienne Picard (Université de Paris I/França)Gerson Luiz Carlos Branco (ULBRA)Ielbo Marcus Lôbo de Souza (ULBRA)Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (UFPR)Joaquín Herrera Flores (Universidad Pablo Olavide/Espanha)José Maria Rosa Tescheiner (PUC/RS)Luís Afonso Heck (ULBRA)Luís Luisi (ULBRA e UNICRUZ)Luiz Carlos Lopes Moreira (ULBRA)Vladimir Passos de Freitas (UFPR)

DIREITO E DEMOCRACIARevista de Ciências Jurídicas – ULBRAVol. 4 - Número 2 - 2º semestre de 2003

ISSN 1518-1685

U58u Revista Direito e democracia / Universidade Luterana doBrasil – Ciências Jurídicas. – Canoas: Ed. ULBRA, 2000.

Semestral

1. Direito-periódico. I. Universidade Luterana do Brasil- Ciências Jurídicas.

CDU 34CDD 340

Setor de Processamento Técnico da Biblioteca Martinho Lutero -ULBRA/Canoas

EDITORA DA ULBRAE-mail: [email protected]: Valter KuchenbeckerCapa: Everaldo Manica FicanhaEditoração: Roseli Menzen

CORRESPONDÊNCIA/ADDRESSUniversidade Luterana do BrasilPROGRAD/Divisão de Publicações Periódicasa/c Paulo Seifert, DiretorRua Miguel Tostes, 101 - Prédio 11, sala 12792420-280 - Canoas/RS - BrasilE-mail: [email protected]

Solicita-se permuta.We request exchange.On demande l’échange.Wir erbitten Austausch.

ENDEREÇO PARA PERMUTA:Universidade Luterana do BrasilBiblioteca Martinho LuteroSetor de aquisiçãoRua Miguel Tostes, 101 - Prédio 0592420-280 - Canoas/RSE-mail: [email protected]

O conteúdo e estilo lingüístico são de responsabilidade ex-clusiva dos autores. Direitos autorais reservados.Citação parcial permitida, com referência à fonte.

Page 2: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

252 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Índice

253 EditorialEditorialEditorialEditorialEditorial

Artigos

255. Breves considerações sobre as limitações do direito do autor, de GonzagaAdolfo

287. Direitos humanos, interculturalidade e racionalidade da resistência, deJoaquin Herrera Flores

305. A Europa como comerciante e advogado do mundo: o continente e osprocessos globais, de Göran Therborn

327. O direito fundamental à moradia na Constituição: algumas anotações arespeito de seu contexto, conteúdo e possível eficácia, de Ingo WolfgangSarlet

385. O direito urbanístico sob a ótica do Estatuto da Cidade: democratizando oespaço local, de Julio Cesar Mahfus e Viviana Cremonese

403. A criminalidade dos colarinhos, de Luiz Luisi

407. Observância e aplicação dos Tratados internacionais na Convenção deViena sobre o Direito dos Tratados de 1969, de Valerio de OliveiraMazzuoli

425. Do abuso do direito de demandar, de Rosanne Gay Cunha

437. Valores eticos en la actividad periodística, de Xabier Etxeberria

Documento Histórico

459. “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, de 1791.

465.465.465.465.465.Normas EditoriaisNormas EditoriaisNormas EditoriaisNormas EditoriaisNormas Editoriais

Page 3: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 253

Editorial

A Revista Direito e Democracia, chegando à sua 8ª edição (v. 4, n. 2),permanece fiel a seus propósitos, na certeza de que a vivência democráticaexige a permanente redescoberta do sentido do direito, tendo por alvo adignidade humana, que não se realiza sem que se busque a justiça social. Aaspereza dos tempos não permite que se deserte desta missão. Ao contrário,exige o concurso do direito, por meio do estudo crítico das instituições,aferindo sua consonância com as necessidades humanas, buscando a efeti-va realização dos direitos fundamentais.

Assim, o presente número da Revista começa pela colaboração deGonzaga Adolfo, que trata do direito do autor, em sua ampla gama deprojeções, enfatizando as limitações que a realidade lhe impôs. Segue-sea colaboração de Joaquín Herrera Flores, relativa à interculturalidadedos direitos humanos, analisando a sua interconexão com os problemaspolíticos e econômicos.

Göran Therborn destaca o papel da Europa no mundo globalizado,seja como comerciante seja como advogado do mundo, fazendo amploretrospecto histórico, em versão especialmente atualizada para a presentepublicação. O direito fundamental à moradia é oportunamente examina-do por Ingo Wolfgang Sarlet, aferindo seu conteúdo e possível eficácia nocontexto político-jurídico brasileiro. Júlio César Mahfus e VivianaCremonese examinam o Estatuto da Cidade, ligado à democraciaparticipativa, tendo como fulcro as virtualidades legais da função socialda propriedade.

Luiz Luisi considera a Criminalidade dos Colarinhos, à luz da legisla-ção brasileira, denotando suas características anti-sociais e enfocando adelinqüência do “colarinho azul”. Valério de Oliveira Mazzuoli trata dodireito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinandoa problemática atinente aos mecanismos de formação, entrada em vigor,aplicação e divergências entre tratados internacionais sucessivos regu-lando a mesma matéria. Rosane Gay Cunha analisa o direito de deman-dar sob a ótica do abuso do direito, visando sua adequação aos princípiosda proporcionalidade e da razoabilidade. Finalmente, Xabier Etxeberria,

Page 4: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

254 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

em conferência pela primeira vez publicada, aborda os valores éticos, vei-culados pela mídia, magno problema de nosso tempo de transbordanteinformação e correlata produção por um número cada vez menor e maisconcentrado de veículos.

O documento histórico deste número, datado de 1791, em plenaefervescência da Revolução Francesa, demonstra a relativa vetustez doárduo caminho, que tem feito “a mulher e a cidadã”, em busca do reco-nhecimento dos direitos que a história lhe tem sonegado.

Plauto Faraco de AzevedoCésar Augusto Baldi

Page 5: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 255Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.255-286

Artigos

Breves considerações sobreas limitações ao direito do autor

Brief notes on copyright limitations

GONZAGA ADOLFO

Advogado, mestre em Direito, professor de Direito na ULBRA Gravataí, na UNISINOS e no UNILASALLE,membro da Comissão Especial de Propriedade Intelectual da OAB/RS; e do Instituto Interamericano de Direito do

Autor – IIDA, com sede em Buenos Aires, Argentina.

RESUMO

O autor faz um relato histórico das limitações ao Direito do Autor na legisla-ção autoral brasileira, apresentando as principais possibilidades de utilizaçãode obras intelectuais sem necessidade de autorização do titular dos direitospatrimoniais do autor.Palavras chave: Direito autoral, Legislação, Hermenêutica.

ABSTRACT

The author makes a historical report on copyright limitations in Braziliancopyright legislation, presenting the main possibilities of using intellectualworks with no need of authorization from the holder of the author’s patri-monial rights.Key words: Copyright, legislation, hermeneutics.

Page 6: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

256 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

INTRODUÇÃO

O Direito do Autor é uma das áreas mais belas do Direito, em especialpela sua abrangência, atualidade, importância social, cultural e econômi-ca. É tema cada vez mais discutido, em decorrência do fantástico progressodas comunicações e seus meios, verificados na atualidade. Em decorrênciadeste progresso tecnológico, o Direito do Autor também mostra novas ca-racterísticas, ou, para ser exato, enfrenta nova realidade. Em sua prerroga-tiva relativa ao direito de exploração ou divulgação da obra, denominadana lei brasileira de Direito Patrimonial do Autor, o princípio básico é quetoda forma de utilização exige prévia e expressa autorização do titular.

Dentre os temas atuais relativos a esta área, um merece especial atenção:as limitações ao Direito do Autor, ou seja, as possibilidades de utilização daobra intelectual sem necessidade de prévia autorização do titular da obraautoral. É o tema desta pesquisa. Nela, faz-se rápida explanação inicial sobrea importância do Direito do Autor, depois uma análise do direito patrimonial– seria mais adequada a expressão prerrogativas – para, finalmente, ingressarno ponto principal, antes destacado, as limitações. Na verdade, trata-se deresumo de um estudo mais amplo da legislação brasileira no que concerne àmatéria, com comentários próprios do autor da pesquisa e amparado em des-tacados autoralistas, trazendo, antes da análise de cada limitação inserida nalei autoral, um rápido escorço histórico de como o tema constou em cadalegislação autoral que existiu no Brasil, desde a primeira.

A metodologia utilizada foi a de pesquisa doutrinária e legal, esta nalegislação autoral brasileira (Lei n.º 9.610, de 19 de fevereiro de 1998),como antes salientado, e aquela na pesquisa em obras e artigos de desta-cáveis autoralistas, como Hammes, Ascensão, Lipszyc, Villalba e Manso,entre tantos outros de idêntico destaque, apontados nas referências bibli-ográficas ao final.

1 IMPORTÂNCIA E DIREITO PATRIMONIAL DOAUTOR

O Direito do Autor assume importância significativa nos dias atuais,

1 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Algumas reflexões sobre a importância da propriedade intelectual no séculoXX. Revista Estudos Jurídicos, São Leopoldo, n. 78, p. 113-125, jan./abr. 1997.

Page 7: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 257

que de resto já se mostrou claramente em todo século XX, por nós consi-derado em outro trabalho como o “século da propriedade intelectual”1 .Afinal, na livre expressão de pensamento ampara-se firmemente, comoum de seus maiores esteios, o Estado Democrático de Direito.

No campo do Direito do Autor, a abrangência de seu objeto é enorme,da produção literária, de importância inquestionável ao mais incauto, àsartes em geral, tão necessárias para a humanidade: fotografia, escultura,litografia, cartografia, músicas com ou sem letra, projetos de engenharia earquitetura são apenas alguns exemplos. Sobre o Direito do Autor, belíssi-mo entendimento de D. Manoel Gonçalves Cerejeira, citado por Chaves2 :

Considero o direito de autor um dos direitos sagrados, seposso exprimir-me assim. Cumpre zelá-lo e defendê-lo.Nada mais belo que a criação intelectual. Se fosse possível,devia ser pago em mirra, incenso ou ouro.

Villalba e Lipszyc3 amparam-se em Le Chapelier para enfatizar o queassim se pretende:

Es célebre la frase “La más sagrada, la más personal detodas las propiedades” com que Le Chapelier calificó alderecho de autor en el informe al que siguió el decreto 13-19 de enero de 1791 que consagró a favor de los autores elderecho de representación pública sobre sus obras y quefue reiterada por Lakanal en el informe que precedió aldecreto 19-24 de julio de 1793 que reconoció a los creadoresel derecho de reprodución de sus obras.

O Papa João Paulo II4 afirmou para mais de cinco mil fiéis que certasmanifestações sublimes da arte, como a literatura, a filosofia e a música,refletem o espírito de Deus. Eis um trecho da manifestação do líder daIgreja Católica feita na tradicional audiência geral na quarta-feira, dia12 de agosto de 1998, no Vaticano:

2 CHAVES. Antonio. Direito de Autor; Princípios fundamentais. São Paulo: Forense, 1987, p. 4.3 VILLALBA, Carlos Alberto; LIPSZYC, Delia. El Derecho de Autor en la Argentina. Buenos Aires; La Ley, 2001, p. 3.4 PAPA exalta espírito de Deus. Zero Hora, 11 ago. 1998. Mundo, p. 44.

Page 8: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

258 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Quando repassamos certas páginas da literatura e da filo-sofia, ou admiramos alguma obra-prima da arte, ou escu-tamos peças de música que têm algo de sublime, esponta-neamente reconhecemos nessas manifestações do gêniohumano um luminoso reflexo do espírito de Deus.

Os direitos patrimoniais, ao contrário dos direitos morais, e como opróprio nome diz, referem-se à utilização da obra, que necessariamentenão precisa ser econômica. O princípio básico, enfatiza Hammes5 , parteda idéia de propriedade e da utilização decorrente da vontade do criador.Para ele, “a sua vontade determina o que acontece com a obra, quem e comoa utilizará”, pois “qualquer utilização depende de sua autorização”.

O artigo 28 do atual estatuto autoral brasileiro é claro: “Cabe ao autoro direito de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica”. Sãoprerrogativas normais de propriedade, conhecidas no Direito das Coisasdesde os romanos como jus utendi, jus fruendi, jus abutendi ou jus disponen-di e rei vindicatio. Vale dizer, em vernáculo pátrio, a faculdade de usar,gozar, dispor, fruir e reivindicar o bem, a coisa, o patrimônio, do qual étitular de domínio.

Importante, então, nesta linha de raciocínio, fazer rápida análise dosdireitos patrimoniais para, posteriormente, ingressar no próximo capítulonas limitações ao Direito do Autor, não sem antes fazer menção que oartigo 29 da Lei n.º 9.610 regula algumas formas de utilização da obra queexigem autorização prévia do titular, sendo meramente exemplificativa,como se depreende facilmente da leitura de seu caput e de seu inciso X

2 LIMITAÇÕES AO DIREITO DO AUTOR

2.1 introdução e fundamentação das limitaçõesAs limitações ao Direito do Autor, tema específico e principal desta

pesquisa, são as formas de utilização da obra autoral que não necessitam

5 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 81.

Page 9: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 259

de prévia autorização do autor ou do titular dos direitos patrimoniais deautor, para ser mais exato. São, então, exceções aos princípios de direitopatrimonial do autor antes noticiados. Afinal, como conclui Hammes6 ,“o caráter absoluto do direito de propriedade, em si mesmo, deve ser entendidocom restrições”. E acrescenta que “este é distinto da propriedade material enem se reduz pura e simplesmente a uma propriedade”.

Tem-se, desta forma, que o direito de propriedade sofre limitações dasmais diversas, como referido. O Direito do Autor, mesmo sendo proprie-dade de natureza especial, não poderia ser exceção à regra, como bemcoloca Hammes no trecho anteriormente citado. Seriam decorrentes, naacepção de Bittar7 , de um conflito existente entre o interesse público e ointeresse privado, que se configura mais latente do Direito de Autor, pois,

... em seu contexto, o choque é direto e originário, refletindo,portanto, a luta eterna entre os interesses em questão, e quese manifesta sob as formas de limitações e de exceções aosdireitos exclusivos assegurados aos autores, tanto nos paísesdesenvolvidos, como nos em desenvolvimento e, nestes, acom-panhados de fórmulas redutivas do nível de proteção, con-cebidas como mecanismos necessários para a sua integraçãoàs grandes Convenções internacionais existentes.

Nesta linha, Hammes8 ampara-se em Melichar, argumentando que,juntamente com a aceitação do Direito de Autor, há a interpretação deque ele está sujeito a uma vinculação social. O titular deve tolerar deter-minadas restrições aos seus direitos. Importante, ainda na visão de Ham-mes, é que as restrições são exceções à regra geral, que garante umaproteção mais ampla possível. Em conseqüência, devem ser interpretadasestritamente.

A propósito, destaque-se que as limitações encontram previsão na pró-pria Convenção de Berna9 , mormente em seu artigo 9, 2, com a seguinteredação em língua portuguesa:

6 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 90.7 BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais do Direito do Autor. São Paulo: LTr, 1992, p. 116.8 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 91.9 CONVENÇÃO de Berna relativa à protecção das obras literárias e artísticas. Acto de Paris, texto oficial portugu-

ês. Genebra: Organização Mundial da Propriedade Intelectual, 1996, p. 13.

Page 10: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

260 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

2) Fica reservada às legislações dos países da União a faculdade depermitirem a reprodução das referidas obras, em certos casosespeciais, desde que tal reprodução não prejudique a explora-ção normal da obra nem cause um prejuízo injustificado aos le-gítimos interesses do autor.

Parilli10 distingue a interpretação restritiva que deve ser dada a estaslimitações:

Esto quiere decir que tales límites son los impuestos, nosolamente a las legislaciones nacionales, sino también alintérprete de la ley, de modo que cualquier aplicación deldispositivo que consagre una excepción, há de tomar encuenta dichos principios rectores.

Ainda no artigo 10 da Convenção de Berna, que regula a possibilida-de de citação de obras tornadas acessíveis ao público, na medida justifi-cada para o fim a atingir, inclusive em jornais e revistas, além da utiliza-ção lícita de obras literárias e artísticas, a título de ilustração do ensinopor meio de publicações, emissões radiofônicas ou de gravações sonorasou visuais, desde que “conforme os bons costumes».

Na verdade, como bem defende Manso11 , haveria, nesta possibilidadede uso sem ferir o interesse privado do titular, o confronto entre doisinteresses: de um lado o autor, que deve ser protegido porque criou a obracom seu mérito, esforço e dedicação e, de outro, a sociedade, que lheforneceu a matéria-prima dessa obra e que é o seu receptáculo natural.

A seguir apresenta-se um rápido histórico das limitações nas leis auto-rais brasileiras e analisam-se as principais delas na lei vigente.

10 PARILLI, Ricardo Antequera. Derecho de Autor. Caracas: Servicio Autónomo de la Propriedad Intelectual,1998, t. I, p. 460.

11 MANSO, Eduardo Vieira. Direito Autoral; Exceções impostas aos direitos autorais (derrogações e limitações).São Paulo: José Bushatsky, 1980, p. 90.

Page 11: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 261

2.2 Principais limitações ao Direito do autor naLegislação Brasileira

2.2.1 Pequeno histórico das limitações ao Direito do Autor noDireito pátrio

A legislação autoral pátria, bem observando os preceitos da Conven-ção de Berna, prevê em um capítulo próprio as limitações ao Direito doAutor. Na atual Lei Autoral brasileira (n.º 9.610), esta previsão se faz nosseus artigos 46 a 48. De qualquer sorte, é bom destacar ainda que aslegislações anteriores já previram estas possibilidades.

A primeira Lei Autoral brasileira foi a de n.º 496, de 1º de agosto de1898. Nela já constaram dispositivos que inseriram no ordenamento jurí-dicos as limitações ao Direito do Autor. Constaram logo após os artigos 19a 21, que definiram o crime de contrafação, regulando quais atos não seconstituíam em crime. A seguir, reproduz-se o texto do artigo 22º, manti-da a grafia das palavras do texto original:

Art. 22º - Não se considera contrafação:

1 A reprodução de passagens ou pequenas partes de obras jápublicadas, nem a inserção, mesmo integral, de pequenos escri-tos no corpo de uma obra maior, contanto que esta tenha cará-ter científico ou que seja uma compilação de escritos de diver-sos escritores, composta para uso da instrução pública. Em casoalgum a reprodução pode dar-se sem a citação da obra de ondeé extraída e do nome do autor;

2 a reprodução em diários e periódicos de noticias e artigos políti-cos extraídos de outros diários e periódicos e a reprodução dediscursos pronunciados em reuniões públicas, qualquer que sejaa sua natureza. Na transcrição de artigos deve haver a mençãodo jornal de onde são extraídos e o nome do autor. O autor,porém, que dos artigos, qualquer que seja a natureza, quer dosdiscursos, é o único que os pode imprimir em separado;

3 a reprodução de todos os atos oficiais da União, dos Estados oudas municipalidades;

Page 12: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

262 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

4 a reprodução, em livros e jornais, de passagens de uma obraqualquer com um fim critico ou de polemica;

5 a reprodução no corpo de um escrito de obras de artes figurati-vas, contanto que o escrito seja o principal e as figuras sirvamsimplesmente para a explicação do texto, sendo, porém, obriga-tória a citação do nome do autor;

6 a reprodução de obras de arte que se encontram nas ruas e praças;

7 a reprodução de retratos ou bustos de encomenda particular,quando ela é feita pelo proprietário dos objetos encomendados.

O Código Civil vigente até 10.01.2003 (Lei n.º 3.071, de 1º de janeirode 1916)12 , regulou as limitações ao Direito do Autor em seu artigo 666,com a redação que abaixo se apresenta:

Art. 666. Não se considera ofensa aos direitos de autor:

I - A reprodução de passagens ou trechos de obras jápublicadas e a inserção, ainda integral, de pequenascomposições alheias no corpo de obra maior, contantoque esta apresente carater científico, ou seja compila-ção destinada a fim literário, didático, ou religioso, in-dicando-se, porém a origem, de onde se tomarem osexcertos, bem como o nome dos autores.

II - A reprodução, em diários ou periódicos, de notícias eartigos sem carater literário ou científico, publicados emoutros diários, ou periódicos, mencionando-se os nomesdos autores e os dos periódicos, ou jornais, de onde fo-rem transcritos.

III - A reprodução, em diários e periódicos, de discursos pro-nunciados em reuniões publicas, de qualquer natureza.

IV - A reprodução de todos os atos publicos e documentosoficiais da União, dos estados e dos Municípios.

V - a citação em livros, jornais ou revistas, de passagens dequalquer obra com intuito de critica ou polêmica.

12 Revogado em seus artigos 649 a 673 pela Lei n.º 5.988, de 14 de dezembro de 1973. Estranhamente, a Lei n.º9.610 os revogou mais uma vez.

Page 13: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 263

VI - A cópia, feita à mão, de uma obra qualquer, contantoque se não destine à venda.

VII - A reprodução, no corpo de um escrito, de obras deartes figurativas, contanto que o escrito seja o principal,e as figuras sirvam somente para explicar o texto, não sepodendo, porém, deixar de indicar os nomes do autores,ou as fontes utilizadas.

VIII - A utilização de um trabalho de arte figurativa, para seobter obra nova.

IX - A reprodução de obra de arte existente nas ruas e praças.

X - A reprodução de retratos ou bustos de encomenda parti-cular, quando feita pelo proprietário dos objetos enco-mendados. A pessoa representada e seus sucessores ime-diatos podem opor-se a reprodução ou publica exposiçãodo retrato ou busto.

A Lei n.º 5.988, de 14 de dezembro de 1973, que regulou entre nós amatéria daquela data até 20 de junho de 1998, também tinha um capítu-lo próprio, o de n.º IV, para regular as limitações que aqui são discutidas.A seguir, reproduzem-se as previsões legais nesse sentido daquele diplo-ma legislativo:

Art. 49. Não constitui ofensa aos direitos do autor:

I - A reprodução:

a) de trechos de obras já publicadas, ou ainda que integral, depequenas composições alheias no contexto de obra maior, desdeque esta apresente caráter científico, didático ou religioso, ehaja a indicação da origem e do nome do autor;

b) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo infor-mativo, sem caráter literário, publicados em diários ou periódi-cos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publica-ção de onde foram transcritos;

c) em diários ou periódicos, de recursos pronunciados em reuniõespúblicas de qualquer natureza;

d) no corpo de um escrito, de obras de arte, que sirvam, como

Page 14: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

264 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

acessório, para explicar o texto, mencionados o nome do autor ea fonte de que provieram;

e) de obras de arte existentes em logradouros públicos;

f) de retratos, ou de outra forma de representação da efígie, feitossob encomenda, quando realizada pelo proprietário do objetoencomendado, não havendo a oposição da pessoa neles repre-sentada ou de seus herdeiros.

II - A reprodução, em um só exemplar, de qualquer obra,contando que não se destine à utilização com intuito delucro;

III - A citação, em livros, jornais ou revistas, de passagens dequalquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica;

IV - O apanhado de lições em estabelecimentos de ensinopor aqueles a quem elas se dirigem, vedada, porém, suapublicação, integral ou parcial, sem autorização expres-sa de quem as ministrou;

V - A execução de fonogramas e transmissões de rádio outelevisão em estabelecimentos comerciais, para demons-tração à clientela;

VI - A representação teatral e a execução musical, quandorealizadas no recesso familiar ou para fins exclusivamen-te didáticos, nos locais de ensino, não havendo, em qual-quer caso, intuito de lucro;

VII - A utilização de obras intelectuais quando indispensá-veis à prova judiciária ou administrativa.

Art. 50. São livres as paráfrases e paródias que não forem verdadei-ras reproduções da obra originária, nem lhe implicarem descré-dito.

Art. 51. É lícita a reprodução de fotografia em obras científicas oudidáticas, com a indicação do nome do autor, e mediante o pa-gamento a este de retribuição equitativa, a ser fixada pelo Con-selho Nacional de Direito Autoral.

Page 15: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 265

2.2.2 As limitações na atual Lei Autoral brasileira

2.2.2.a Notícia e artigo informativo em diários e periódicos

O primeiro dispositivo concernente às limitações da Lei Autoral vi-gente regula as possibilidades de reprodução de obra que não são ilícitas.O caput do artigo 46 é claro ao prescrever que “não constitui ofensa aosdireitos autorais”, para logo no inciso I mencionar a expressão “a reprodu-ção”. Seguindo-se, tem-se a alínea “a”, com a seguinte redação:

a) na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informa-tivo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nomedo autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos.

Este dispositivo tem nítido caráter de fim público, pois a liberdade deinformação é um dos esteios do Estado Democrático de Direito. O Brasila tem no inciso LIX do artigo 5º da Carta Política de 198813 . Muito lógicae justa a limitação, então, pois nitidamente se valora o direito geral àinformação em prejuízo do direito do autor de notícias e artigos informa-tivos de diários e periódicos, com a menção do veículo em que forampublicados e do autor, se assinados.

Aprofunde-se, nesta linha, novamente amparado em Hammes14 , quefatos noticiados não são privilégio de ninguém, e que notícias publicadasnão são obras, inexistindo motivo para postulação de Direito de Autorsobre elas. O contrário não ocorre com artigos informativos, que são obrase não há dúvida de que têm tutela autoral.

Neste particular, possível amparar-se também em Manso15 , mesmo que

13 É bem verdade que há, especialmente por parte de destacados atores da grande mídia, uma interpretaçãoexageradamente ampla da liberdade de informação e de imprensa, ao ponto de muitos literalmente aconsiderarem acima do Direito e da Constituição, confundindo crítica e informação com ataques semqualquer cuidado à honra e imagem de cidadãos e de autoridades. Neste sentido, ADOLFO, Gonzaga.Globalização, mídia e opinião pública. Globalização e Estado Contemporâneo. São Paulo: Memória Jurídica,2001, p. 85-88, e STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. A opinião pública. Ciência Política eTeoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 169-174. A própria idéia de “opiniãopública” é deturpada, pois não raro ela é, na verdade, a opinião daquele que faz a crítica, pois o único critériorazoavelmente plausível de reconhecê-la seriam os pleitos eleitorais, ainda assim se houvesse uma democraciasubstancial e não democracia formal, como hoje. Mas isso aqui é apenas referencial e um rápido comentário,não sendo, evidentemente, tema da pesquisa, devendo ser ampliado em outro momento.

14 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 97.15 MANSO, Eduardo Vieira. Op. cit. (1980), p. 284.

Page 16: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

266 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

este comente o dispositivo da Lei Autoral anterior, mas plenamente apli-cável aqui:

Na verdade, a notícia não gera direitos autorais, eis quenem mesmo a forma em que ela fica registrada pode serconsiderada obra intelectual, no exato sentido do direito au-toral, como já se viu antes: não existe nela uma idéia confor-mada à pessoalidade de um autor, preponderando o conteú-do de fatos. Não há, assim, um autor de uma notícia, qua-lidade que não se poderia atribuir nem mesmo àqueles quelhe tivessem dado causa, como protagonistas do episódio.

Conclui, afirmando que teria sido mais correto inserir as notícias noelenco de obras às quais não se aplicam as disposições da lei especial,como se fez com relação aos textos de tratados, convenções e leis.

2.2.2.b Discursos pronunciados em reuniões públicas

A segunda alínea do inciso I do artigo 46 da Lei n.º 9.610, exclui danecessidade de prévia autorização do autor a publicação, “b) em diáriosou periódicos, de discursos pronunciados em reuniões públicas de qualquernatureza;”.

Também é uma limitação muito lógica, que caminha no mesmo rumodaquela da alínea “a”, antes analisada. Há um claro interesse públicono conhecimento de manifestações orais feitas em reuniões públicas ajustificar esta limitação. O importante, no correto modo de ver de Ham-mes16 , é o caráter informativo. O mesmo não se pode afirmar relativa-mente a coletâneas de discursos públicos ou aqueles pronunciados emdebates judiciais.

2.2.2.c Reprodução de representação de imagem por quemos encomendou ou seus sucessores

Prosseguindo, a próxima alínea do inciso I do artigo 46 da Lei Autoral

16 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 97.

Page 17: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 267

brasileira apresenta a disposição a seguir transcrita, como não incidindoem ofensa aos direitos patrimoniais do autor a reprodução:

c) de retratos, ou de outra forma de representação da imagem,feitos sob encomenda, quando realizada pelo proprietário doobjeto encomendado, não havendo a oposição da pessoa nelesrepresentada ou de seus herdeiros;

Este preceito tem sentido à medida que a pessoa que encomenda arepresentação de sua imagem paga o serviço do autor (direito patrimoni-al), geralmente fotógrafo. Logo, não teria lógica se não pudesse reprodu-zir estas formas. É prática comum e freqüente de demonstração de afeto ooferecimento de fotos entre amigos e familiares, mormente entre estes.São os conhecidos retratos de família. Nesta racionalidade, correta a li-mitação imposta aos autores dos retratos ou fotografia de família. Ca-bral17 , no entanto, alerta que “na Lei 9.610 não existe a figura da obra sobencomenda”. Assim, para ele, esse item trata de um assunto inexistente notexto legal.

Ressalve-se, novamente ancorado na exata hermenêutica de Ham-mes18 , que há que se distinguir entre o direito do autor da fotografia oude qualquer outra forma de retrato de família com o direito à imagem,constitucionalmente assegurado (inciso X do artigo 5º da ConstituiçãoFederal), que com aquele não se confunde, não sendo problema de Di-reito do Autor, “mas de direito de propriedade em sentido amplo”.

2.2.2.d Reprodução de obras literárias em sistema destinadoa deficientes visuais

O quarto e último dispositivo do primeiro inciso do artigo 46 da LeiAutoral brasileira é uma inovação, que não havia nas legislações autoraisanteriores, como se verifica no histórico anteriormente elaborado. Esta éa redação dele:

d) de obras literárias, artísticas ou científicas, para uso exclusivode deficientes visuais, sempre que a reprodução, sem fins co-

17 CABRAL, Plínio. A nova Lei de Direito Autoral. 2.ed. Porto Alegre: Sagra Luzatto, 1999, p. 122.18 HAMMES, Bruno Jorge. Ob. cit. (2002), p. 100.

Page 18: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

268 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

merciais, seja feita mediante o sistema Braille ou outro procedi-mento em qualquer suporte para esses destinatários;

Mais uma vez, é limitação de cristalina finalidade social, possibili-tando reprodução de obras literárias no denominado sistema Braille ououtro procedimento especificamente voltado à leitura por deficientesvisuais, desde que esta utilização não tenha um fim comercial. Comoinovação da lei que vige há pouco mais de quatro anos, deve ser sauda-da, como faz Cabral19 em curto parágrafo. Deve-se ter cautela com apossibilidade de exploração anunciada sem fins lucrativos em prejuízodo autor, se assim agirem camuflada ou disfarçadamente os utilizadores.Vale dizer, a análise específica e clara da ocorrência ou não de lucrodeve ocorrer no caso concreto, mormente pelo autor ou titular dos di-reitos patrimoniais.

2.2.2.e Reprodução de pequenos trechos para uso particular

O inciso II do artigo 46 da Lei Autoral faculta que o interessado façacópias de pequenos trechos de obras, desde que feitas pelo próprio e semobjetivo de lucro. A redação, que foi umas das principais modificações davigente lei quando cotejada com a anterior, é a seguinte:

II - a reprodução, em um só exemplar de pequenos trechos,para uso privado do copista, desde que feita por este,sem intuito de lucro;

Ocorreu aqui uma inovação salutar na forma como a matéria estáregulada entre nós, pois a Lei n.º 5.988 possibilitava a reprodução de umsó exemplar, desde que não se destinasse à utilização objetivando lucro,como se viu no inciso II do seu artigo 49, antes descrito. Houve, nesteparticular, na Lei de 1973, um retrocesso com relação ao que previa oCódigo Civil de 1916, no inciso VI do artigo 666, também reproduzido noitem 3.2.1, supra, pois este possibilitava uma cópia feita à mão de umaobra qualquer, desde que não se direcionasse à venda.

A nova forma decorre do fantástico e até então inimaginável desen-volvimento de novas formas de reprodução, especialmente das máquinas

19 CABRAL, Plínio. Op. cit., p. 122.

Page 19: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 269

reprográficas dos mais variados tipos. Neste dispositivo, na posição preci-sa de Hammes20 , está um dos grandes desafios do Direito Autoral. Eledestaca que, com o tempo, ocorreu um desvio de finalidade da limitação:

O art. 49, II da Lei n. 5.988/73 falava de reprodução, emum só exemplar, de qualquer obra, contanto que não sedestine à utilização com intuito de lucro. Quando essa exce-ção foi permitida, entendia-se que o autor não sofreria qual-quer prejuízo com o fato de alguém, interessado, por ex., emuma música, fosse à biblioteca e copiasse a partitura. Aospoucos, o modo de copiar foi se ampliando sem que comisso se temesse prejuízo para o autor. Assim se tolerava tam-bém que um pequeno conjunto musical fizesse meia dúzia decópias para o seu conjunto, valendo-se dos primitivos siste-mas de copiar (gelatinas, mimeógrafo, ...). O aparecimentode meios mais modernos de reprodução mudou fundamen-talmente a questão. Já não se pode dizer que os autores nãosofrem prejuízos com a cópia particular feita por gravadorde som e de imagem, acessíveis a qualquer pessoa de classenão muito pobre (Convenção de Berna, art. 9,2).

Ou seja, na boa intenção de possibilitar estes usos de um exemplar parauso privado, e sem prever – e nem poderia – o nível de desenvolvimentotécnico que viria, a Lei de 1973 criou um dos maiores problemas nos quaisestava inserido o Direito do Autor. Criou-se uma interpretação extensivademais, redundando em números inconcebíveis, como noticia Cabral21 :

A interpretação, sem dúvida distorcida, desse artigo, deu comoresultado uma vasta indústria marginal de reproduções de li-vros. Segundo pesquisas confiáveis, estima-se que, anualmen-te, são tiradas 20 bilhões de cópias ilegais no Brasil.

O problema afeta a indústria editorial e o direito do autor.Em 1994 a Câmara Brasileira do Livro estimou os prejuí-zos provocados pela reprodução ilegal de livros em 200bilhões de dólares.

20 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 110-111.21 CABRAL, Plínio. Op. cit., p. 122-123.

Page 20: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

270 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Continua, citando afirmativa que fazia Chaves22 , já em seus últimosmeses de vida, em 1997:

Mas é chegado o momento de submeter a uma revisão, oumelhor, eliminar completamente essa absurda idéia do in-tuito de lucro, que jamais foi considerada na regulamenta-ção de qualquer outra atividade humana a não ser a doautor. [Tese apresentada à Primeira Conferência de Direi-to Autoral, São Paulo, 8 jun. 1997].

Na verdade, tornou-se mesmo sem sentido o dispositivo da legislaçãoautoral que vigorou até 20 de junho de 1998. Observe-se que um interes-sado que procura reprografia para fazer a fotocópia de um livro poderiaaté não ter intuito de lucro, mas não há dúvida de que o proprietário daempresa tem lucro, e fabuloso. Em última análise, tem objetivo de lucrosim, mesmo quem faz cópia – integral, de obra disponível no mercado –de criação alheia. No mínimo um “lucro às avessas’, se assim se podedizer, pois deixou de pagar pela obra seu valor legítimo no mercado, ouseja, teve ganho econômico23 .

Correta, assim, mais uma vez, a perspectiva de Manso24 , quando ana-lisou a matéria ainda sob a égide da Lei de 1973:

Assim, enquanto o interessado na obtenção da cópia visa unicamentea utilizar a obra para fins meramente intelectuais, fazendo estrito usoprivado da própria obram segundo a natureza desta, aquela pessoa (nogeral uma pessoa jurídica) que possui a máquina copiadora estará tirandoum proveito econômico da mesma obra mediante um preço que cobrapela cópia que fornece. Há, pois, em cena, dois interesses que se satisfa-zem com diferentes formas de usar a obra: um, tira-lhe o proveito natural,que é a sua utilização intelectual (para a qual se vale da cópia); outro,um proveito anormal, quando não devidamente autorizado para tal.

Nesse modo de apreciar o tema, é alerta feito por Hammes25 que a

22 Idem.23 Nesta linha, destaque-se que uma das tantas definições de lucro fornecidas por Houaiss é “qualquer vantagem

ou benefício que se pode tirar de alguma coisa”. HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Houaiss da LínguaPortuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 1.788.

24 MANSO, Eduardo Vieira. Op. cit., p. 304.25 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 112.

Page 21: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 271

utilização de cópias para uso particular sem qualquer forma de controleextrapola as limitações permitidas pela Convenção de Berna:

O grande problema dessa cópia é que os meios de reprodução são hojeacessíveis a todos e deixam de ser a prática inofensiva de outros tempos.O que se multiplica hoje, a título de uso particular, está prejudicandogravemente os autores, os editores, os produtores de fonogramas, razãopela qual já não se conformam com art. 9,2 da Convenção de Berna.

Tem razão. Não se conformava já na Lei n.º 5.988, e continua não seadequando na Lei que aqui é analisada, pois, infelizmente, a utilizaçãoindiscriminada de obras alheias, mormente de obras literárias através defotocópias, contraditoriamente em vultos fantásticos nos estabelecimen-tos de ensino, onde deveria se instigar a observância do direito alheio eda lei, é realidade social e econômica que tem se sobreposto ao jurídico.Costume, dito de outra forma.

Mas, como se salientava antes e se fez até aqui, neste rápido escorçohistórico, a lei que atualmente prescreve a matéria autoral entre nós semostrou um aperfeiçoamento ao restringir a possibilidade de uso privadoa pequenos trechos. A questão hermenêutica relevante que daí surgiufoi a definição do que seriam os “pequenos trechos”, ou seja, quantificá-los, através de critérios objetivos.

Logo surgiram sociedades, no campo das obras literárias, que são as prin-cipais atingidas pelo dispositivo, para tentar frear a utilização sem controlealgum e exercer seus direitos autorais e editoriais. Foi fundada a AssociaçãoBrasileira de Direitos Reprográficos – ABDR26 , que, legalmente constituída,com estatutos e fins próprios, passou a firmar convênios com estabelecimen-tos de ensino e empresas de reprografia, permitindo reprodução de até dezpor cento (10%) de obras publicadas por suas editoras filiadas. Interpretou,desta forma, a ABDR que pequenos trechos poderiam ser conceptíveis atéeste patamar, desde que a empresa recolhesse um percentual sobre o montan-te cobrado pelas cópias no final do respectivo mês nesta rubrica.

Como oponente, foi criada por outro grupo de editoras a AssociaçãoBrasileira de Direitos Editoriais e Autorais – ABPDEA27 , que não autori-

26 Site acessível em www.abdr.com.br.27 Site acessível em www.abpdea.com.br.

Page 22: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

272 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

za fotocópia de nenhum trecho de obras daquelas editoras que a geraram,salvo se estritamente vinculadas ao uso e extração privados referidos noinciso aqui detalhado. Ou seja, a ABPDEA não autoriza que terceiros –diga-se reprografias – reproduzam as obras literárias. Baseia-se, entre outrosargumentos, naqueles que antes aqui foram expostos, especialmente nainterpretação restritiva dos direitos autorais, princípio que rege a maté-ria. Para ser fiel à realidade, diga-se que tudo caminha para a cobrançade remuneração pela cópia privada, o que expõe com a competência co-nhecida Lipszyc28 , aqui meramente referencial, pois não é o tema centraldestas linhas, embora certamente será enfocado em posterior momento.

Parece que ambas as posições, da ABDR e da ABPDEA, têm sentidológico. Nada impede que o titular do Direito de Autor e dos direitoseditoriais autorize cópia de determinado percentual (10%, no caso) desuas obras, mediante o recolhimento de retribuição. Em sentido contrá-rio, se assim não entender, pode negar, diante do artigo 4º da Lei Autoral,em caso de interpretação de que as empresas reprográficas têm atividadecomercial, altamente lucrativa, e, portanto, não estaria inserida comocópia para uso particular as reproduções feitas. A remuneração pela cópiaprivada, porém, que hoje é feita contratualmente, nos casos autorizadospela ABDR poderia ser legal, na opinião de muitos.

Para arrematar esta concisa análise, alerte-se, novamente com socor-ro de Hammes29 e Manso30 , que a disponibilização comercial de cópias deobras com intuito de lucro é “pirataria”, e como tal deve ser reprimido etratado. Mas o tema pirataria será enfocado em posterior trabalho31 , nãosendo objeto destas linhas.

2.2.2.f Citação de trechos de obras para estudo, crítica oupolêmica

A sexta limitação a ser analisada está inserida no inciso III do artigo46 de nossa Lei Autoral. Seu texto é o seguinte:

28 LIPSZYC, Delia. Derecho de Autor y derechos conexos. Buenos Aires: UNESCO/CERLALC /ZAVALIA, 2001,p. 241-244.

29 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 116.30 MANSO, Eduardo Vieira. Op. cit., p. 304.31 São fantásticos e lamentáveis, igualmente, os números sobre a pirataria de obras musicais e programas de

computador, e ainda a pirataria de marcas, com comercialização de produtos com estes sinais falsificados.

Page 23: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 273

III - a citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outromeio de comunicação, de passagens de qualquer obra,para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medidajustificada para o fim a atingir, indicando-se o nome doautor e a origem da obra.

Quem faz estudo, crítica ou polêmica, evidentemente deve se utilizarde trechos de obras alheias para assim proceder. Não teria sentido alguma impossibilidade de uso destes trechos para a efetivação daqueles intui-tos. Observe-se que o dispositivo permite a citação em livros, jornais,revistas ou qualquer outro meio de comunicação de passagens de obras,desde que na medida justificada para o fim a atingir, e que o utilizadorindique o nome do autor e a obra de onde foram extraídas. Infelizmente,este dispositivo não é observado como deveria, sendo muito ampliado,mormente no mundo escolar e acadêmico (fins de estudo), mais por des-conhecimento de normas técnicas que por má-fé ou dolo. Não são pou-cos os trabalhos escolares ou acadêmicos em que os alunos copiam textosliterários na íntegra, muitas vezes até sem fazer menção do autor e daobra da qual extraíram aqueles entendimentos. Isso não é trabalho cien-tífico, e tal agir não está amparado na limitação ora em comento. Trata-se de plágio, evidentemente, além de ofender direito moral do autor quan-do não indica autor e fonte.

Crê-se que os professores e instituições de ensino nos mais variadosníveis – começando pelo Ensino Fundamental, é claro – deveriam traba-lhar com mais acuidade temas relativos à elaboração de trabalhos de pes-quisa, as normas técnicas impostas pela ABNT e também pela legislaçãoautoral, neste particular, mas, antes de tudo, pela ética, por que não?Valoriza-se muito a extensão e pouco o conteúdo. Não raro, ao propor umtrabalho de pesquisa, o docente ouve a pergunta: qual extensão ou quan-tas páginas?

Não resta dúvida de que a utilização possibilitada deve ser discreta ena medida absolutamente necessária ao fim a atingir, como prescreve oinciso III do artigo 46 32 . A denominada “medida justificada para o fim aatingir”, entretanto, reclama melhor definição. Ascensão33 aprofunda coma propriedade de sempre:

32 Para Ascensão, “o que interessa é o condicionamento geral do art. 10º/1 da Convenção de Berna: ‘serem conformes aosbons costumes e na medida justificada ao fim a atingir’”. (Op. cit., p. 217).

33 Idem, p. 217-218.

Page 24: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

274 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Pode abranger tudo o necessário, porque a citação é um elementoimprescindível do diálogo intelectual que não pode ser coarctado pelasleis. Até à revisão de Estocolmo, a Convenção de Berna permitia apenasas ‘citações curtas...’ Hoje o adjetivo foi suprimido, e com inteira razão. Ofim que se prossegue pode exigir uma citação longa, e nesse caso nada adeve impedir. Uma polêmica pode exigir longas citações do texto do ad-versário.

O mesmo com relação à crítica ou polêmica. Um crítico de obras dequalquer tipo pode e deve utilizar pequenos trechos de obras para criticá-las, mas sempre com a cautela antes sugerida para a utilização em estu-dos. É muito comum a utilização destes. As revistas semanais de notícias,apenas para exemplificar, geralmente trazem trechos de obras literárias,nas seções em que fazem análise delas. O mesmo com relação à críticacinematográfica em televisão, apenas para exemplificar, já que o incisoamplia a utilização para qualquer outro meio de comunicação.

A parte final, entretanto, merece relevo. Ao utilizar os trechos para osfins permitidos, deve obrigatoriamente o utilizador mencionar a origemdele e o nome do autor. Se assim não agir, estará infringindo direito moraldo autor, sobretudo aquele do inciso II do artigo 24 da Lei n.º 9.610. Nomesmo rumo, não pode fazer qualquer modificação no trecho citado pois,se assim agisse, infringiria agora os incisos IV e V do mesmo artigo, mor-mente o primeiro.

2.2.2.g Utilização do apanhado de lições pelos alunos aquem se destinam

De duvidosa técnica de redação, o inciso IV do artigo 46, que nesteinstante se critica. Observe-se que, ao contrário dos demais antes verifi-cados (todas as alíneas do inciso I, e os incisos II e III), aqui não háverbo, de modo que ficou mal redigido o inciso, como se vê na seqüência:

IV - o apanhado de lições em estabelecimentos de ensinopor aqueles a quem elas se dirigem, vedada sua publica-ção, integral ou parcial, sem autorização prévia e expressade quem as ministrou;

Ora, o caput exprime que “não constitui ofensa aos direitos autorais”, eeste inciso – como os demais – deve, na melhor técnica de redação legis-

Page 25: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 275

lativa, a ele ficar vinculado. Então melhor seria utilizar no início a ex-pressão “a utilização” de apanhado de lições nos estabelecimentos deensino. Na verdade, não só o apanhado pode ser feito, mas sim sua utili-zação para os fins de estudo daqueles a quem se dirigem. No caso, “apa-nhar” tem a conotação de juntar, recolher. Nesta linha de mira, o que odispositivo permite é que os alunos de estabelecimentos de ensino utili-zem as lições transmitidas por seus professores, sem necessidade de per-missão destes e sem ofender a direito patrimonial do autor. Outra nãopoderia ser a interpretação. Então, aqui se trata de lições em sua conota-ção ampla, vale dizer aulas ditadas, esquematizadas, no quadro, em flip-chart, transparências em retroprojetor, Power Point ou qualquer outro su-porte, como polígrafos e planos de aula34 .

Saliente-se, mais uma vez com arrimo no magistério de Hammes35 ,que o verdadeiro sentido deste inciso está em sua segunda parte, ao regu-lar que o professor tem direito autoral sobre suas aulas. Logo, somente osalunos daquele respectiva turma poderão utilizar o apanhado das liçõesministradas naquele ambiente, não podendo ser feita sua publicação to-tal ou parcial sem autorização expressa de quem as ministrou, ou, emoutras palavras, vedada sua comercialização sem prévio consentimentodo titular.

A gravação de aulas, a nosso ver, extrapolaria esta previsão, que deveser interpretada – como todas as demais – restritivamente, norma, aliás,da própria Lei Autoral, inserida em seus artigos 4º e 49, VI. Destarte,somente podem ser gravadas as aulas com prévia e expressa autorizaçãodo docente. Fazê-la sem autorização significa lamentável ultraje aos maiselementares preceitos éticos, e utilizá-las em ilegalidade36 . Deve ser pre-servado o espaço próprio da sala de aula.

34 O professor é pago pela instituição para lecionar. A forma como fará está ligada à sua liberdade e autonomiaacadêmica. É linha mestra da educação nacional hoje a valorização desta, como consta na Lei de Diretrizesda Educação. A utilização pelos alunos, então, não pode ter custos adicionais que não aqueles de suamatrícula ou mensalidades. A retribuição do professor pela elaboração de polígrafos e compêndios ématéria afeita ao Direito do Trabalho. A atual Convenção Coletiva firmada entre o Sindicato de Estabe-lecimentos de Ensino e o Sindicato de Professores de Estabelecimentos privados de ensino no Estado doRio Grande do Sul prevê pagamento de certo valor pelos polígrafos elaborados para as respectivas aulas, oudo tempo (horas) que o professor dedicou à elaboração deles.

35 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 101.36 Também os meios de comunicação têm utilizado este expediente fartamente, na atualidade, principalmente

os programas do chamado jornalismo investigatório. O Poder Judiciário, felizmente, não tem dado guaridaa este tipo de prova, em especial das gravações telefônicas sem autorização legal.

Page 26: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

276 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

2.2.2.h A utilização de obras para demonstração à clientela

A oitava limitação que merece atenção, nestas rápidas linhas, é aque-la formalizada legislativamente no inciso V do artigo 46 da Lei Autoralvigente, assim sistematizado:

V - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicas,fonogramas e transmissão de rádio e televisão em esta-belecimentos comerciais, exclusivamente para demons-tração à clientela, desde que esses estabelecimentoscomercializem os suportes ou equipamentos que permi-tam a sua utilização;

De início, diga-se que se alargou o regulado em nosso ordenamentolegal até a vigência da atual Lei que prescreve a matéria. No inciso V doartigo 49 da Lei n.º 5.988, a limitação era restrita à execução de fonogra-mas e transmissões de rádio ou televisão, em estabelecimentos comerci-ais, para demonstração à clientela. A novidade do inciso ora examinadoestá na possibilidade também de utilização sem ferir os direitos autoraisde obra literária, para a exibição a quem pretende adquirir referidas obras.E, ainda na ressalva, inexistente no anterior ordenamento, de que osestabelecimentos comercializem os suportes ou equipamentos que permi-tam sua utilização.

Mais uma vez, a técnica de redação não foi a mais exata. É manifestoque esta parte final – relativa aos suportes e equipamentos – se relacionaespecificamente com a possibilidade de exibição à clientela de fonogra-mas (obras musicais), equipamentos de rádio e televisão. Não se vislum-bra, num primeiro plano, quais suportes ou equipamentos possam permitirutilização de obra literária, onde, salvo melhor visão, a própria obra é osuporte. No entanto, novamente com socorro do que corretamente pregaa respeito, Hammes37 , não se pode admitir a ampliação desta utilizaçãopara fins de demonstração à clientela, de modo a possibilitar demasiadainterpretação e utilização, como nas calçadas dos pontos de venda e nasvitrines, o que é comum, registre-se.

37 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 101.

Page 27: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 277

2.2.2.i Representação teatral e execução musical no recessofamiliar e em estabelecimentos de ensino

O próximo dispositivo em análise é o do inciso VI do artigo 46 da LeiAutoral de nosso país. A previsão é a seguinte:

VI - a representação teatral e a execução musical, quandorealizadas no recesso familiar ou, para fins exclusivamentedidáticos, nos estabelecimentos de ensino, não havendoem qualquer caso intuito de lucro;

O dispositivo faculta a representação teatral e a execução musical norecesso familiar ou em estabelecimentos de ensino, desde que sem finali-dade de lucro. Trata-se de duas possibilidades distintas, como se vê.Quanto à primeira, é necessário definir o recesso familiar, o que faz Ham-mes38 com precisão:

O recesso familiar não se restringe necessariamente às pessoas da fa-mília, mas é o ambiente que reúne pessoas cujo relacionamento é decaráter familiar. Não é preciso, segundo a doutrina alemã, que as pessoasreunidas tenham todas entre si tal relacionamento.

De muito bom senso a previsão. As pessoas podem perfeitamente utilizarobras, para representação teatral e em seu convívio familiar, sem infraçãoao direito do criador da obra, e do intérprete (direito conexo), no caso dasobras musicais. A questão hermenêutica fundamental é definir a extensãodo recesso familiar, como antes referiu Hammes, no trecho citado.

Acredita-se que esta interpretação também deve se dar de forma res-tritiva, para que se evitem os abusos e excessos. Como acentua Ham-mes39 , o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição de DireitosAutorais – ECAD, instituído pelo artigo 99 da Lei n.º 9.610 40 , com missãode arrecadar e distribuir direitos autorais sobre obras musicais e líteromu-sicais, entende que esta limitação não se aplica em festas de casamento,vale dizer que festa de casamento não estaria dentro do contexto de re-cesso familiar. Pensa-se necessário evitar radicalismos. Positivamente fa-lando, não há dúvida de que pode o ambiente de uma festa de casamento

38 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 102.39 Idem, nota de rodapé n. 3.40 Na verdade mantido, pois a Lei n.º 5.988, de 14 de dezembro de 1973, o instituiu em seu artigo 115.

Page 28: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

278 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

não ser “recesso familiar” no significado que lhe dão os doutrinadoresautoralistas. Crê-se, entretanto, que deve ser feita uma análise do casoconcreto, como sempre é de se esperar em qualquer interpretação jurídi-ca. Há festas e festas de casamento. Uma coisa é uma festa de casamentoem uma pequena associação de moradores de arrabalde, com cinqüentaconvidados, possivelmente todos com forte vinculação, seja de parentes-co ou de amizade, com os nubentes ou com os pais dos noivos. Outra,diferente, é uma festa para mil convidados, no melhor clube da cidade,com a banda mais famosa do momento e bufett finíssimo. O importante, éclaro, é a extensão do número de convidados, de sorte a se concluir quenão há ali “recesso familiar”. De qualquer modo, gize-se mais uma vezque esta interpretação é essencialmente dogmático-positiva.

A segunda possibilidade de utilização é das mesmas obras em estabe-lecimentos de ensino, sem escopo de lucro, para fins exclusivamente di-dáticos. Muito lógica a restrição ao direito do autor ou titular do direitodo autor ou direitos conexos. A finalidade eminentemente escolar, deensino, assim possibilita. Pondere-se, no entanto, que se vincula a objeti-vos eminentemente de instrução de alunos. Novamente o ECAD suscitapolêmica no Brasil em meados de cada ano, quando pululam em todo opaís as chamadas festas juninas, mesmo que muitas, em última interpre-tação, sejam julinas. O órgão arrecadador decidiu cobrar pela utilizaçãodas obras musicais em estabelecimentos de ensino. Ora, em um primeiroplano parece que festividades deste porte não se enquadram, efetiva-mente, como atividades de fim didático. Novamente, todavia, deve serlevado em conta o caso concreto, na verificação da extensão da utiliza-ção, ou seja, da festa. O bom senso também é fonte histórica de Direito, egeralmente não falha.

2.2.2.l Utilização de obras para prova judicial ouadministrativa

A décima limitação do Direito do Autor ora em apreciação possibilitaa utilização da obra autoral como prova em processos judiciais ou admi-nistrativos. Neste diapasão, é transparente a redação do inciso VII doartigo 46 da Lei sob exame:

VII - a utilização de obras literárias, artísticas ou científicaspara produzir prova judiciária ou administrativa;

Page 29: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 279

Não poderia ser outra a previsão a respeito. Prevalece princípio deordem pública, ou seja, a instrução de processo judicial ou administrati-vo, em detrimento do direito do autor da obra. Imagine-se a proibição deutilização em processo-crime de uma carta do acusado onde ameaçavaassassinar a vítima, apenas para exemplificar, sem prévia autorização da-quele. Evidentemente, não a daria.

Manso41 chega a vinculá-lo ao princípio constitucional da ampla de-fesa, destacando que a utilização da obra em prova deste tipo não temcomo fim precípuo um ganho econômico, ainda que a lide tenha comoobjeto central de discussão um ganho material. Para ele, com razão,

A administração da Justiça é um dever inadiável do Estado, que, dadasua relevância social, não poderia ser obstruída com a sonegação de pro-vas para apenas resguardar-se o interesse pessoal do titular do direitoautoral.

2.2.2.m Reprodução de fotografia em obra científica oudidática

O mais extenso dispositivo das limitações, na verdade o último incisodo artigo 46, possibilita a utilização de pequenos trechos de obras autoraisde qualquer natureza, ou de obra integral, se de arte plástica, em casosespecíficos, como se vê abaixo:

VIII - a reprodução, em quaisquer obras, de pequenos tre-chos de obras preexistentes, de qualquer natureza, oude obra integral, quando de artes plásticas, sempre quea reprodução em si não seja o objetivo principal da obranova e que não prejudique a exploração normal da obrareproduzida nem cause um prejuízo injustificado aos le-gítimos interesses dos autores.

Possibilita este inciso que sejam reproduzidos pequenos trechos de obrasde qualquer espécie, ou de obra integral, se de artes plásticas, quando areprodução em si não seja o principal objetivo da obra nova e, ainda,desde que não prejudique a exploração normal da obra reproduzida nemcause prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor. Embora ex-

41 MANSO, Eduardo Vieira. Op. cit., p. 326.

Page 30: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

280 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

tenso na redação, na verdade, trata-se de reprodução meramente ilustra-tiva em outra obra original. Imagine-se um autor que escreve livro sobrea história da literatura brasileira, e em determinado capítulo analisa estaou aquela escola literária. Pode reproduzir pequeno trecho de livro decerto autor vinculado àquela escola literária específica, nas condiçõesaqui previstas. Ou, em outro exemplo, um autor que publica obra sobreartes plásticas, pode licitamente reproduzir na íntegra – possivelmentepor fotografia – obra de arte de Vasco Prado, por exemplo, com o único eexclusivo intuito de ilustrar suas afirmativas42 .

2.2.2.n. Paráfrases e paródias

Após análise do longo artigo 46 e seus incisos, é o momento do artigo47 da Lei Autoral, cuja redação, sempre para fins de melhor compreen-são, se transcreve: “São livres as paráfrases e paródias que não forem verda-deiras reproduções da obra originária nem lhe implicarem descrédito”.

O artigo é de clareza singular, ao prever que são livres as paráfrases eparódias. Entrementes, previne-se a segunda parte do dispositivo, quelimita estas possibilidades a utilizações que não sejam verdadeiras repro-duções da obra originária, e que não lhe impliquem descrédito. Inicial-mente, convém destacar as expressões “paráfrase” e “paródia”, em seussignificados lexicográficos, na mais completa obra brasileira do gênero,na atualidade:

Paráfrase. S.f. (1720 cf. RB) 1 LIT interpretação ou tradução emque o autor procura seguir mais o sentido do texto que a sualetra; metáfrase. 2 LIT interpretação, explicação ou nova apre-sentação de um texto (entrecho, obra etc.) que visa torná-lo maisinteligível ou que sugere novo enfoque para seu sentido 2.1 pej.Trabalho desse gênero cujo texto, prolixo e supérfluo, só faz diluiro conteúdo do texto sobre que versa. 3 PED USO de paráfrase(acp. 1), no sentido de um texto ou no ensino de composiçãoliterária. 4 LIT versão versejada de um original em prosa, sem

42 CABRAL, Plínio. Op. cit., p. 127. O autor concorda com este raciocínio, chegando a dizer que “seria de todoinjusto - além de tecnicamente impraticável - proibir a reprodução de um quadro de autor contemporâneo numa obraque, por exemplo, estude esse período das artes plásticas brasileiras”.

Page 31: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 281

preocupação de perfeita equivalência 5 LIT versão, ger. Em ver-so, de passagem da Bíblia, cujo tema o autor desenvolve. 6 p. ext.pej. Narração ou discurso prolixo, verboso, supérfluo. 7 p. ext.infrm. Interpretação ou comentário desfavorável, maldoso. 8 LINGmaneira diferente de dizer algo que foi dito; frase sinônima deoutra. 9 MÚS técnica de contraponto dos séculos XV e XVI, emque uma voz (ou mais) fazia citações de uma melodia e cantochão.10 MÚS transformação de uma melodia a partir de um tema (p.ex., litúrgico)<p.pra órgão de Bach>. 11 MÚS fantasia de com-plexidade virtuosística para o executante composta sobre melo-dia ou obra preexistente <as p. de Liszt sobre óperas italianas>.ETIM lat. Paraphrasis,is’interpretação ou tradução livre quanto àforma>gr. Paráphrasis,eõs ‘íd.’, f.hist. 1720 parafrase, 1720 parafrasi,1720 parâphrasi, 1899 paráfrase43 .

...

Paródia s.f. (1833 cf. AGC) obra literária, teatral, musical etc. queimita outra obra, ou os procedimentos de uma corrente artísti-ca, escola etc. com objetivo jocoso ou satírico; arremedo ETIMgr. Paroidía, as’imitações bufa de um trecho poético, paródia’,do gr. pará ‘ao lado de’+’ode’pelo lat. parodia,ae‘id’. PAR paro-dia (fl. parodiar); paródias (pl.)/parodias(fl. Parodiar)44 .

Hammes45 destaca a limitação como natural decorrência de quem seexpõe, através da criação intelectual. Sendo ônus desta condição de au-tor, o autoralista gaúcho é enfático ao afirmar que “se o autor não quer sercriticado, assiste-lhe o direito de manter a obra inédita”. Entretanto, cite-sePimenta46 , que entende restritivamente a possibilidade paródia. Para ele,

A paródia, em princípio, se baseia na adaptação, e não naforma, constituindo em obra derivada. Assim não éadmissível a paródia de obra literária, porque esta seriacompleta imitação. O que poderia ocorrer com a obra

43 HOUAISS, Antonio et al. Op. cit., p. 2.127.44 Idem, p. 2.137.45 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 103.46 PIMENTA, Eduardo S. Código de Direitos Autorais e Acordos Internacionais. São Paulo: Lejus. 1998, p. 172.

Page 32: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

282 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

literária seria a crítica à obra ou sobre o autor. A paródiacaracteriza pelo efeito humorístico; portanto, esta não seconfunde com a obra originária.

Na verdade, as paráfrases e paródias são obras derivadas, contantoque não sejam verdadeiras imitações e não impliquem em descrédito daobra originária, como prevê a lei.

2.2.2.o Reprodução de obras de arte situadaspermanentemente em logradouros públicos

O último dispositivo legal relativo às limitações aqui analisadas é oartigo 48, verbis: “As obras situadas permanentemente em logradouros públi-cos podem ser representadas livremente, por meio de pinturas, desenhos, fo-tografias e procedimentos audiovisuais”.

Trata-se de limitação plausível, por estarem ditas obras em logradou-ros públicos47 . Diga-se, por necessário, que esta possibilidade tem formase tipos de utilização limitados em lei a pinturas, desenhos, fotografias eprocedimentos audiovisuais, como se vê na análise do artigo supra repro-duzido.

Hammes48 elogia a atual previsão legal, pois a redação da lei anterior,reproduzida no item 3.2.1, dizia que “é livre a reprodução de obras existen-tes em logradouros públicos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O tema primacial desta pesquisa foi a possibilidade de utilização dasobras autorais sem necessidade de prévia e expressa autorização do titu-lar da obra. São as limitações ao Direito do Autor. Chegando ao fim dodesiderato proposto – que será ampliado significativamente em capítulo

47 Neste sentido, convém consultar a classificação dos bens públicos, nos artigos 65 e 66 do Código Civil de 1916e artigos 96 a 98 do Código Civil de 2002.

48 HAMMES, Bruno Jorge. Op. cit. (2002), p. 99, item 203.

Page 33: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 283

de futura tese de doutoramento – convém fechar com algumas conclu-sões sobre o tema.

Sendo o Direito do Autor direito de propriedade, toda forma de utili-zação da obra exige prévia autorização do criador, ou do titular dos direi-tos sobre a obra. Prévia e expressa, convindo sublinhar o artigo 29 da Lein.º 9.610. Em última e correta análise, que se fez em rápidas pinceladasnas linhas que aqui se encerram.

As limitações ao Direito do Autor são, então, as formas legalmenteprevistas, onde não há necessidade desta prévia e expressa autorização.Afirmando de outro jeito, são as possibilidades de uso onde o utilizadorda obra não infringe o Direito do Autor. Direito patrimonial do autor,também é conveniente mais uma vez ser enfático.

Partem de uma interpretação que regula todo tipo de propriedade,desde as “comuns” até as de caráter especial, como o Direito Autoral.Desde o instituto da função social da propriedade até a desapropriação erequisição, como manifestado na parte introdutória do ponto nevrálgicodeste trabalho. Ou seja, a propriedade não é absoluta, especialmente emsua interpretação moderna. Na verdade, nunca foi, pois sempre enfren-tou determinadas limitações. Por razões óbvias, hodiernamente deve-seaprofundar esta interpretação. A propriedade artística, literária e cientí-fica também. Daí o ordenamento jurídico impor que o autor tolere deter-minadas utilizações de suas obras.

A Convenção de Berna bem tratou do assunto em seus artigos 9 e 10,como salientado, remetendo às legislações nacionais as formas específicasde regulação delas. O que fez o Brasil, desde a primeira Lei Autoral, a den.º 496, de 1º de agosto de 1898, como aqui se viu.

Averiguou-se, igualmente, que a vigente Lei trouxe alguns progressosem relação à matéria, quando se defronta com as que a antecederam,inclusive com a última, a Lei n.º 5.988, tendo na possibilidade de cópiapara uso particular, antes possível até um exemplar da obra e agora limita-da a pequenos trechos, a mais saudável inovação.

Ocorrem abusos, alguns até certo ponto próximos do crime ou propri-amente ações criminosas – a pirataria de obras, como se analisou mera-mente como notícia, pois não é objeto deste – em decorrência da inter-pretação indubitavelmente muito extensa e liberal que se dá ao dispostoem lei, sempre feita por interessados em explorar obras alheias sem nada,

Page 34: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

284 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

pouco ou menos pagar, ou seus prepostos e asseclas, diga-se de passagem.Quem tem o mínimo de conhecimento na matéria, jamais fará interpreta-ções tão demasiadamente alargadas como algumas vezes se vê.

Esta interpretação mais dilatada não pode prevalecer também pormotivos positivados no ordenamento legal das limitações de que se ocu-pa. Começando pela Convenção de Berna, que é clara ao referir, no item2 de seu artigo 9, que aqui deve ser enaltecido, que ditas reproduções/limitações não podem prejudicar a exploração normal da obra e nem cau-sar prejuízo injustificado aos legítimos interesses do autor. Sem falar nainterpretação restritiva dos direitos autorais, verdadeiro princípio norte-ador da matéria, que qualquer principiante no estudo dela conhece.

Com presteza, então, devem ser interpretadas restritivamente, sendo refu-táveis as propostas de alargamento que algumas vezes se verificam. Ainda, sãonumerus clausus, não existindo limitações à margem daquelas que a legisla-ção prevê.

Os abusos, mormente aqueles que giram em torno da pirataria, quenão se confunde com qualquer das limitações, como antes se concluiu,devem ser admoestados pelos princípios e regulações legais próprios.

Infelizmente, muitos se interessam pela matéria somente a partir devisão econômica. É utopia que antes seja por convicção pessoal, ética,intelectual, filosófica ou política. Mas vive-se uma época de extremo prag-matismo e interpretação essencialmente econômica do mundo, como cer-tamente nunca se viu.

Ao menos assim seja. Para o bem dos autores, através da proteção desuas obras. E da humanidade (coletividade), que cresce com as manifes-tações intelectuais, sendo uma das tantas formas de se chegar mais pertode Deus.

REFERÊNCIAS

ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Algumas reflexões sobre a importância da propriedadeintelectual no século XX. Revista Estudos Jurídicos, São Leopoldo, n. 78, p. 113-125, jan./abr. 1997.

______. Estudo Comparado do Direito de Seqüência na legislação autoral de Brasil,

Page 35: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 285

Alemanha, Espanha, França e Portugal. Revista Estudos Jurídicos, São Leopoldo,n. 83, p. 15-31, set./dez. 1998.

______. O Estatuto da Cidade e suas implicações. Jornal do Comércio, Porto Alegre, 17jul. 2001. Jornal da Lei, p. 6.

______. Globalização, mídia e opinião pública. Globalização e Estado Contemporâneo.São Paulo, Memória Jurídica, 2001.

ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito de Autor e direitos conexos. Coimbra: Coimbra,1992.

AZEVEDO, Philadelpho de. Direito moral do escriptor. Rio de Janeiro: Alba, 1930.

BITTAR, Carlos Alberto. Contornos atuais do Direito de Autor. São Paulo: LTr, 1992.

CABRAL, Plínio. A nova Lei de Direito Autoral. 2.ed. Porto Alegre: Sagra Luzatto,1999.

CHAVES. Antonio. Criador da obra intelectual; Natureza, importância e evolução. SãoPaulo: LTr, 1995.

______. Direito de Autor; Princípios Fundamentais. São Paulo: Forense, 1987.

CONVENÇÃO de Berna relativa à protecção das obras literárias e artísticas. Acto deParis, texto oficial português. Genebra: Organização Mundial da PropriedadeIntelectual, 1996.

HAMMES, Bruno Jorge. O Direito da Propriedade Intelectual. 3.ed. São Leopoldo:Unisinos, 2002.

______. O Direito do Autor; Algumas notas históricas. Revista Estudos Jurídicos, SãoLeopoldo, n. 27, p. 69-80, 1980.

______. Os cem anos da Convenção de Berna. Revista Estudos Jurídicos, São Leopoldo,n. 46, p. 35-37, maio/ago. 1986.

______. O Direito Moral do Autor. Revista Estudos Jurídicos, São Leopoldo, n. 18, p.149-174, 1977.

HOUAISS, Antonio et al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:Objetiva, 2001.

LIPSZYC, Delia. Derecho de Autor y derechos conexos. Buenos Aires: UNESCO/CERLALC/ZAVALIA, 2001.

______. Derechos Morales. Anais do Seminário Internacional Sobre Direitos Autorais.São Leopoldo: Unisinos, 1994.

Page 36: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

286 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

MANSO, Eduardo Vieira. Violações aos direitos morais. In: NAZO, Georgette N. (coord.)et al. A tutela jurídica do Direito de Autor. São Paulo: Saraiva, 1991.

______. Direito Autoral; Exceções impostas aos direitos autorais (derrogações e limita-ções). São Paulo: José Bushstsky. 1980.

MOUCHET, Carlos; RADAELLI, Sigfrido A. Derechos intelectuales sobre las obrasliterararias y artisticas. Buenos Aires: Guillermo Kraft, 1948, 3 tomos.

PARILLI, Ricardo Antequera. Derecho de Autor. Caracas: Servicio Autónomo de laPropriedad Intelectual, 1998, t. I e II.

PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 4.ed. SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1977, t. XVI.

PAPA exalta espírito de Deus. Zero Hora. Porto Alegre, 13 ago. 1998. Mundo, p. 44.

PIMENTA, Eduardo S. Código de Direitos Autorais e Acordos Internacionais. São Paulo:Lejus. 1998.

______. Dos crimes contra a propriedade intelectual. São Paulo: Revista dos Tribunais,1994.

STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. A opinião pública. Ciência Polí-tica e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.

UNESCO. ABC do Direito de Autor. Lisboa: Presença, 1991.

VILLALBA, Carlos Alberto; LIPSZYC, Delia. El Derecho de Autor en la Argentina.Buenos Aires: La Ley, 2001.

Page 37: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 287Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.287-304

Direitos humanos, interculturalidadee racionalidade da resistência*

Human rights, interculturalityand resistance rationality

JOAQUÍN HERRERA FLORES

Director del Doctorado “Derechos Humanos y Desarrollo”, Universidad Pablo de Olavide, UPO, Sevilla-Espanha.

RESUMO

O autor discute a teoria dos direitos humanos, a partir de um contextointercultural, defendendo um universalismo de mesclas como uma novaracionalidade de resistência .Palavras-chave: Direitos humanos, multiculturalismo, interculturalidade,Universalismo.

ABSTRACT

By considering an intercultural context, the author discusses the human rightstheory, defending a mixture universalism as a new resistance rationality.Key words: Human rights, multiculturalism, interculturality, universalism.

* Tradução por Carol Proner, professora de direitos humanos da Faculdades do Brasil.

Page 38: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

288 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

INTRODUÇÃO

Falar de direitos humanos no mundo contemporâneo supõe enfrentar-se a desafios completamente diferentes dos que enfrentaram os redatoresda Declaração Universal de 1948. Em décadas posteriores à “nossa” De-claração, os economistas e políticos keynesianos reformulavam os âmbitosprodutivos e geoestratégicos nas bases de uma “geopolítica de acumula-ção capitalista baseada na inclusão”, política que assentou as bases dochamado Estado de Bem Estar (pactos entre capital e trabalho com oEstado servindo de garantidor e árbitro da distribuição da riqueza). Des-de princípios dos setenta até os dias de hoje grande parte desse edifíciodesmoronou em razão da extensão global de uma “geopolítica de acumu-lação capitalista baseada na exclusão” e que recebe o nome de neolibera-lismo - desregulamentação dos mercados, dos fluxos financeiros e da or-ganização do trabalho, com a conseguinte erosão das funções do Estado).Se na fase de inclusão, os direitos significavam barreiras contra os “desas-tres” – efeitos não intencionais da ação intencional – que produzia omercado, na fase de exclusão é o mercado quem dita as normas permitin-do, principalmente às grandes corporações transnacionais, superar as “ex-ternalidades” e os obstáculos que os direitos e instituições democráticasopõem ao desenvolvimento global e total do mercado capitalista.

Vivemos, pois, na época da exclusão generalizada. Um mundo no qual4/5 dos habitantes sobrevivem no umbral da miséria; no qual, segundo oinforme do Banco Mundial de 1998, a pobreza aumenta em 400 milhões depessoas por ano, significando que, atualmente, 30% da população mundialvive (sobrevive) com menos de um dólar por dia – afetando de modo espe-cial às mulheres – e 20 % da população mais pobre recebe menos de 2% dariqueza ao passo que os 20% mais ricos reservam 80% da riqueza mundial.Um mundo no qual, em razão dos planos de (des)ajuste estrutural, impõe-se o desaparecimento das mínimas garantias sociais: mais de 1 milhão detrabalhadoras e trabalhadores morrem por acidente de trabalho, 840 mi-lhões de pessoas passam fome, 1 bilhão de seres humanos não tem acesso aágua potável e a mesma quantidade são analfabetos (PNUD, 1996). Ummundo no qual as mortes por fome e doenças evitáveis chegam por ano acifras iguais às mortes das Torres Gêmeas multiplicadas por 6000 ... Restaevidente que não importam as pessoas, mas unicamente a rentabilidade.

Estas são as cifras do “fim da história”, do final da bipolarização e dotriunfo do pensamento e do poder únicos. Cifras que demonstram o desa-

Page 39: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 289

parecimento de milhares de pessoas, condenadas à pobreza mais laceran-te e que contemplam, assombrados e indignadas, a ostentação dos paísesenriquecidos a suas custas. Cifras, pois, que estão na base do que se temchamado de “surgimento dos tribalismos e dos localismos”: em definitivo,dos fundamentalismos. O “Norte” recebe com surpresa e indignação asdemonstrações de raiva e cólera do “Sul”, encerrado na desesperança.Como responder? Pois fechando as fronteiras, construindo fortalezas jurí-dicas e policiais que impeçam a “invasão” dos desesperados e famintos ...diferentes. O debate político e teórico sobre o multiculturalismo, queocorre nos países enriquecidos pela ordem global, ao contrário de estaremconcentrados nas cifras da miséria e nos efeitos produzidos pela “globali-zação” das lutas de classe, dedicam-se a bradar contra os perigos cultu-rais que supõem os diferentes, principalmente aqueles que se vêem obri-gados a emigrar para melhorar, na medida do possível, suas precárias con-dições de vida. Já não há luta de classes. Conforme afirma Huntington,há somente “choque de civilizações”. As “profecias” desse autor são reco-nhecidas e amplificadas pela trama mediática comprometida com a ma-nutenção do status quo genocida e aparentemente imutável.

Há 110 anos o poeta de “nossa América” José Martí dizia na primeiraConferência Monetária Internacional Americana: “Quem diz união eco-nômica diz união política. O povo que compra manda, o povo que vendeserve; é preciso equilibrar o comércio para assegurar a liberdade”. Quempode negar que essas palavras, ditadas com o objetivo de cortar o passo aosaterradores abraços do “Big Brother”, possam aplicar-se à situação atualpela qual transcorre a ancestral problemática das migrações e a milenarrealidade da convivência e/ou confrontação entre diferentes formas deexplicar, interpretar e intervir no mundo. O país que recepciona manda, oimigrante, diferente/desigual serve: estamos ante a lei de oferta e demandaaplicada, neste caso, à tragédia pessoal de milhões de pessoas que fogem doempobrecimento de seus países em razão da rapina indiscriminada do capi-talismo globalizado. Vejamos os enfoques dominantes nesta matéria: emprimeiro lugar, a insistência por parte das autoridades da União Européiade fazer frente à “guerra de imigração ilegal”, adotando medidas puramen-te policiais tendentes à construção de uma Europa fortaleza que ambicio-na, novamente, proteger seu bem estar às custas de suas antigas colônias;em segundo lugar, veja-se a generalização de clichês e estereótipos vertidossobre os imigrantes, ideológica e interessantemente conhecidos como “ile-gais”, ou frases como: “eles vem retirar nossos postos de trabalho e depoisnão querem trabalhar, e sim protestar”; em terceiro lugar vejamos a falta de

Page 40: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

290 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

visão “global” do fenômeno migratório – e da realidade de multiplicidadede formas de vida – ao reduzi-lo a temas como os de identidades culturais– redução que retira a dimensão política – ou de “cupos” (número de imi-grantes por ano que podem se regularizar e viver nos países de recepção),que faz com que vejamos a imigração como um problema de simples neces-sidade de mão-de-obra em épocas determinadas e não como um fenômenocausado pelas injustiças da globalização neoliberal selvagem que vem apro-fundando o abismo entre os países ricos e os países pobres. Estes enfoquessão as notas que definem a tendência das atuais políticas européias ante arealidade da imigração; notas que seguem o papel pautado de imposição deuma ordem global cuja premissa ideológica explícita é a exclusão e o aban-dono de quatro quintos da população mundial.

Muitos dos que perdemos algum familiar em seu particular périplo bus-cando emprego nos Estados de Bem Estar do continente europeu, sabemosda tragédia pessoal que supõe o abandono do país de origem para buscarsaídas econômicas para a pobreza. E também conhecemos todas as seqüelasda aculturação e de submissão a condições laborais e de vida indignas queo próprio imigrante se auto-impõe para não chocar com o “cidadão” do paísacolhedor. A imigração é um problema de claras conotações culturais, mas,sobretudo, de desequilíbrio na distribuição de riqueza. Se uma só empresatransnacional é possuidora de um produto interior bruto superior a todas asáreas de países subsaharianos; se os povos do Sul sofrem bloqueio em seudesenvolvimento por conta da existência de uma dívida injusta cujo paga-mento está “assegurado” pelas instituições globais e multilaterais estranhasao mínimo controle democrático; e se sobre os países empobrecidos pelarapina das grandes corporações sobrevoam com maior intensidade os ver-dadeiros problemas meio-ambientais, populacionais e de saúde, está claroque as migrações e as diferenças culturais têm muito mais a ver com adesigualdade social e com os desequilíbrios econômicos entre países do quecom as questões bizantinas a respeito do reconhecimento dos outros: ospaíses que compram mandam, dizia Martí.

Se queremos refletir desde esse reconhecimento das especificidadesdos outros, devemos partir da convicção expressada nos parágrafos ante-riores: os problemas culturais estão estritamente interconectados com osproblemas políticos e econômicos. A cultura não é uma entidade alheiaou separada das estratégias de ação social; ao contrário, é uma resposta,uma reação à forma como se constituem e se desenvolvem as relaçõessociais, econômicas e políticas em um tempo e um espaço determinados.

Por essa razão, as visões tradicionais do multiculturalismo não acrescen-

Page 41: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 291

tam muito aos problemas concretos aos quais nos enfrentamos hoje em dia– veja-se o caso da imigração e suas conseqüências sociais e culturais. Porum lado, temos as propostas multiculturalistas de tendência conservadora– propiciar políticas de ação afirmativa ou discriminação positiva que apro-ximem o máximo possível os diferentes (e não os desiguais, ainda quandona maioria dos casos uma classe leva a outra) ao padrão ouro do que seconsidera normal. De diferentes modos, uma impõe-se à outra e ambas asposições compartilham um ponto de vista universalista abstrato que, comotal, não pode ser questionado, apesar das enormes falhas e das conseqüên-cias desastrosas que estão provocando para a maioria da humanidade. Damesma forma, as posições multiculturalistas holistas ou, para dizer de outromodo, nativistas ou localistas, tampouco acrescentam a nosso debate, dadoo radicalismo na esfera das raízes identitárias ou dos parâmetros religiosostotalizados. Estas posições também terminam defendendo, como veremosmais adiante, algum tipo de universalismo abstrato: se na “idéia” o queprima é a identidade – o que nos separa – mas na prática o que impera é ocontrato mútuo e a necessidade de convivência, o que podem aportar estasposições na hora de abordar a realidade plural na qual vivemos ? Não difi-cultaria ainda mais a exigência cultural do diálogo e a prática social inter-cultural? Para refletir sobre esses problemas, a partir de uma teoria compro-metida com os direitos humanos, devemos fazer uma série de precisões.

TRÊS VISÕES A RESPEITO DOS DIREITOSHUMANOS

A polêmica sobre os direitos humanos no mundo contemporâneocentra-se atualmente em duas visões, duas racionalidades e duas prá-ticas. Em primeiro lugar, uma visão abstrata, vazia de conteúdo, refe-renciada nas circunstâncias reais das pessoas e centrada em torno daconcepção ocidental de direito e do valor da identidade. E, em se-gundo lugar, uma visão localista na qual predomina o “próprio”, o nossocom respeito aos dos outros e centrada em torno da idéia particular decultura e de valor da diferença. Cada uma dessas visões dos direitospropõe um determinado tipo de racionalidade e uma visão de comocolocá-los em prática.

Visão abstrata ———— Racionalidade Jurídico/Formal ————— Práticas universalistasVisão localista ——— Racionalidade Material/Cultural ————— Práticas particularistas

Page 42: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

292 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

As duas visões contém razões de peso para serem defendidas. Odireito, visto desde sua aparente neutralidade, pretende garantir a“todos”, e não a uns frente a outros, um marco de convivência co-mum. A cultura, vista desde seu aparente encerramento local, pre-tende garantir a sobrevivência de símbolos, de uma forma de conheci-mento e de valoração que oriente a ação do grupo para fins preferidospor seus membros. O problema surge quando cada uma destas visõespassa a ser defendida apenas por seu lado e tende a considerar inferioras demais, desdenhando outras propostas. O direito por sobre o cultu-ral e vice-versa. A identidade como algo prévio à diferença ou vice-versa. Nem o direito, garantia de identidade comum, é neutral; nem acultura, garantia da diferença, é algo fechado. Torna-se relevanteconstruir uma cultura dos direitos que recorra em seu seio à universali-dade das garantias e o respeito pelo diferente. Mas isso supõe umaoutra visão que assuma a complexidade do tema que abordamos. Estavisão complexa dos direitos humanos é a que queremos desenvolvernestas páginas. Seu esquema respeita a seguinte estrutura:

Visão Complexa ——————Racionalidade de resistência ———— Prática intercultural

Com esta visão, queremos superar a polêmica entre o pretenso univer-salismo dos direitos e a aparente particularidade das culturas. Ambas asafirmações são produto de visões reducionistas da realidade. Ambas aca-bam por ontologizar e dogmatizar seus pontos de vista ao não relacionarsuas propostas com os contextos reais. Vejamos um pouco mais detida-mente as diferenças entre essas três visões dos direitos.

As visões abstrata e localista dos direitos humanos supõem sempre si-tuar-se em um centro a partir de onde se passa a interpretar todo o restan-te. Nesse sentido, passa a ser a mesma coisa analisar uma forma de vidaconcreta ou uma ideologia jurídica e social. Ambas funcionam como umpadrão de medidas e de exclusão. Dessas visões, deriva um mundo desin-tegrado. Toda centralização implica automatização. Sempre haverá algoque não esteja submetido à lei da gravidade dominante e que deve ficarmarginalizada da análise e da prática. É sutil recordar aqui aquela ima-gem com a qual Robert Nozick justificava metodologicamente seu Estadomínimo: fazer uma foto da realidade elegendo o plano que queremos res-saltar e, no estudo, recortar por todos os lados até chegar à imagem quenos convém. E, pois, o excluído vai ser regido e determinado pelo centroque impusemos ao conhecimento e à ação.

Page 43: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 293

Por esta razão, a visão complexa dos direitos aposta por situar-nos naperiferia. Centro somente há um. O que não coincida com ele é abandona-do à marginalidade. Periferias, no entanto, existem muitas. Na realidadetudo é periferia, se aceitamos que não há nada puro e que tudo está relaci-onado.1 Uma visão a partir da periferia dos fenômenos nos indica que de-vemos abandonar a percepção de “estar no entorno”, como se fossemos algoafastado ao que nos rodeia e que deve ser dominado ou reduzido ao centroque inventamos. Não estamos no entorno. “Somos o entorno”. Não pode-mos nos descrever a nós mesmos sem descrever e entender o que é e o quefaz o entorno do qual formamos parte. No entanto, nos educaram para nosentendermos e “vivermos” como se fossemos entes isolados de consciênciae de ação, postos em um mundo que não é o nosso, que nos é estranho, queé diferente ao que somos e fazemos e, por essa razão, podemos dominar eexplorar. Ver o mundo a partir de um pretenso centro supõe entender arealidade material como algo inerte, passivo, algo a que se necessita darforma a partir de uma inteligência alheia a ela. Ver o mundo a partir daperiferia implica entendermo-nos como conjuntos de relações que nos atam,tanto interna como externamente, a tudo e a todos os demais. A solidão docentro supõe a dominação e a violência. A pluralidade das periferias supõeo diálogo, a convivência. Seria o mesmo que comparar a visão panorâmicae fronteiriça de La mirada de Ulises de Theo Angelopoulus, como o simplis-mo violento e hierarquizador de Rambo.

Em segundo lugar, as visões abstrata e localista enfrentam-se a umproblema comum: o do contexto. Para aquela, há uma falta absoluta decontexto, vez que se desenvolve no vazio de um existencialismo perigosopor não se considerar como tal, mas fala de fatos e dados “da” realidade.Para a outra, há um excesso de contexto que, ao final, se esfumaça novazio, provocando a exclusão de outras perspectivas: outro existencialis-mo que somente aceita o que inclui, o que incorpora e o que valora,excluindo e desdenhando o que não coincide com ele. Dialética abstra-

1 Citemos o exemplo das manifestações expressadas por uma jovem chicana proposta por Renato Rosaldo no seu textoCultura y Verdad: “Concerta-se uma pessoa desenvolvendo uma tolerância frente às contradições, uma tolerân-cia frente às ambigüidades. Aprende a ser índica na cultura mexicana, a ser mexicana de um ponto de vistaanglo-saxão. Aprende a fazer jogos malabares com as culturas. Possui uma personalidade plural, funciona demodo plural – nada é desejado, nem o bom, nem o mal, nem o horrível, nada é rejeitado, nada abandonado. Nãosomente vive com as contradições, transforma a ambivalência em algo diferente” (cit. en Feyerabend, P.,“Contra la inefabilidad cultural, el objetivismo ,el relativismo y otras quimeras” Archipiélago. Cuadernos de críticade la cultura, 20, 1995). Este texto nos demonstra que hoje em dia os pretensos núcleos centrais das culturas nosensinam muito pouco a respeito das mesmas; são problemas de limites, de periferias que se tocam uma comoutras, as que nos ensinam muito mais acerca do que somos e de onde estamos situados.

Page 44: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

294 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

to/local que tão magnificamente se expressa nos personagens sombrios eatormentados das novelas de Joseph Conrad.

Em sentido contrário, para a visão complexa, o contexto não é umproblema. É precisamente seu conteúdo: a incorporação dos diferentescontextos físicos e simbólicos na experiência do mundo. Quanto nãoaprenderíamos sobre direitos humanos escutando as histórias e narraçõesa respeito do espaço que habitamos expressadas por vozes precedentes dediferentes contextos culturais! Da visão fechada de Conrad, chegaríamosà participação “carnavalesca” e “rabailesiana” da realidade proposta pelogrande Mihail Bajtin.

Por último, as visões abstratas e localistas do mundo e dos direitos nosconduzem à aceitação cega de discursos especializados. Provenha de umaphilosophe ou de um chamán, o conhecimento estará relegado a uma castaque sabe que o universal é que estabelece os limites do particular.

A visão complexa, em sentido oposto, assume a realidade e a presençade múltiplas vozes, todas como o mesmo direito a expressar-se, a denunci-ar, a exigir e a lutar. Seria como passar de uma concepção representativado mundo a uma concepção democrática que prima pela participação epelas decisões coletivas.

Neste sentido, que tipo de racionalidade e de práticas sociais surgemde cada uma destas visões sobre direitos?

Afirma o mestre George Steiner que “os que submergem a grandesprofundidades contam que, chegando a certo ponto o cérebro humano sevê possuído por uma ilusão de que é novamente possível a respiraçãonatural. Quando isso ocorre, o mergulhador retira a escafandro e se afo-ga. Torna-se bêbado com uma narcose fatal chamado de vertige des gran-des profondeurs ... Daí os intentos sistemáticos e legislativos para (chegara) uma finalidade acordada”. O texto, retirado do enigmático livro Pre-sencias reales, demonstra o horror que produz a multidimensionalidade doreal e as infinitas possibilidades de interpretação que existem. Tanto asvisões abstratas como as localistas abominam o contínuo fluxo de inter-pretações e re-interpretações. Cada uma por seu lado procuram colocarum ponto final hermenêutico que determine a racionalidade em suas aná-lises e propostas.

Por um lado, a visão abstrata sistematiza seu “ponto final” sobre as premis-sas de uma racionalidade formal. Ocupar-se unicamente da coerência inter-

Page 45: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 295

na das regras e sua aplicação geral a diferentes e plurais contextos resulta seruma armadilha conceptual e ideológica para não nos afundarmos, para nãosentirmos a vertigem da pluralidade e a incerteza da realidade e, desta for-ma, ser um álibi bem estruturado para as pretensões universalistas. Em últimainstância, o formalismo é um tipo básico de determinismo. Dado que a “estru-tura” de nossa linguagem e, supostamente, de nosso pensamento está subme-tida a regras, deduz-se que a realidade está “estruturada” do mesmo modo.Se a realidade resiste à forma, pior para a realidade. Como conseqüência daconcepção isolada do eu com respeito ao mundo e do próprio corpo, o forma-lismo reduz a ação cultural à intervenção sobre palavras e símbolos, nuncasobre a realidade material ou corporal. O mundo e o corpo são vistos semprecomo algo separado, alheio ou, quando menos, problemático. Palavras sobrepalavras. Transformação de palavras, de símbolos. Nunca incidindo sobre otransfundo real do qual formamos parte essencial. A partir dessa visão abstra-ta e essa racionalidade formal, o único que parece significativo é o que podeser “anotado” simbólica ou numericamente. Não se trata do problema queproduz tratar de fatos sociais como coisas, e sim como fazer para que os fatossociais cheguem a ser coisas. O formalismo supõe um endurecimento da rea-lidade capaz de permitir quantificar e “representar” em um “molde prefixa-do” a riqueza e a mobilidade social. Há somente um passo desde a consciên-cia da complexidade à “statistical objetification”. Tudo isso significa que,embora a realidade seja muito mais ampla que a lógica ou a estatística, estasdeveriam servir àquela e não ao contrário.2

Ao reduzir a racionalidade à coerência interna de regras e princípios,a visão abstrata dos direitos esquecerá algo muito importante para o en-tendimento da sociedade e dos direitos: as regras e princípios reconheci-dos juridicamente estarão submetidos às exigências de coerência e defalta de lacunas internas. Mas, por sua vez, esta racionalização do real em

2 O exemplo do que vimos criticando encontra-se na monografía de Salais, Baverez y Reynaud, La invención delparo en Francia. Historia y transformaciones desde 1890 hasta 1980, publicado pelo Ministerio de Trabajo,Madrid, 1990. O “ endurecimento” da realidade que supõe o formalismo e a quantificação não são casuaise nem estão separados dos interesses de poder: ver Serverin, E., De la jurisprudence en droit privé: théorie d’unepractique, Presses Universitaires de Lyon, Lyon, 1985, no qual se analisa o trábalo de taxonomia e declassificação abstrata da realidade por parte do poder judicial; e, também, Daston L., “The domesticationof risk: mathematical probability and insurance, 1650-1830” en Krueger, L., (edit.), The ProbabilisticRevolution: Volumen I, Ideas in History, MIT Press, Cambridge MA, em relação à funcionalidade dasanálises estatística com o surgimento e a consolidação das empresas de seguros de vida. Cfr., o interessanteensaio de Alain Desrosières “How to Make Things Which Hold Together: Social Science, Statistics andthe State”, en Wagner, Wittrock y Whitley (edit.), Discourses on Society. The Shaping of the Social ScienceDisciplines, Sociology of the Sciences Yearbook, vol. XV, Kluwer, Dordrecht, 1990, pp. 195-218 (existe trad. cast.en Archipiélago. Cuadernos de crítica de la cultura, 20, 1995, pp.19-31)

Page 46: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

296 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

termos jurídicos não terá em consideração a “irracionalidade das premis-sas” sobre as que se sustentam e as quais pretende conformar desde sualógica e sua coerência. Este é o limite de todo “garantismo jurídico”, detoda invocação formal ou neutral do Estado de direito, de toda políticarepresentativa. Se a realidade se rege pelo mercado e neste não existemais racionalidade que a mão invisível, essa racionalidade irracional nãopoderá ser regida pela racionalidade racional do direito, a menos queesse cumpra a missão de “garantir”, não as liberdades e direitos dos cida-dãos, mas as liberdades e direitos necessários para o mercado, a livreconcorrência e a maximização dos benefícios; ou seja, todos aqueles “apriori” do liberalismo econômico e político. Estamos, pois, ante uma raci-onalidade que universaliza um particularismo: o do modo de produção ede relações sociais capitalista como se fosse o único modo de relaçãohumana. A racionalidade formal culmina em um tipo de prática universa-lista que poderíamos qualificar de universalismo de partida, a priori, um pré-juízo ao qual deve adaptar-se toda a realidade. Todos temos direito pelofato de havermos nascido. Mas com que direitos se nasce; qual é suahierarquia interna e quais são as condições sociais de sua aplicação einterpretação constituem-se em matérias que não correspondem à visãoabstrata ou, o que significa o mesmo, descontextualizada dos direitos. Aosair do contexto o formalismo necessita criar uma nova realidade cujoscomponentes deixam de ser meras abstrações lingüísticas para converte-rem-se em coisas. Além disso, convertem-se em coisas equivalentes quese sustentam entre si: p.e. suposto de fato e conseqüência jurídica. Aquestão não reside em se perguntar se estes elementos são ou não equi-valentes e se sustentam ou não entre si (isso significaria cair na armadi-lha do formalismo), mas em perguntar quem decide tratar a esses ele-mentos como equivalentes e com quê finalidades aparecem como objetosque se sustentam entre si sem referência a seus contextos sociais, econô-micos, políticos ou culturais?

Esta visão abstrata induz a reduzir os direitos a seus componentes jurí-dicos como base de seu universalismo a priori. A prática social por direi-tos deverá, pois, reduzir-se à luta jurídica. Por muito importante que sejaesta luta, dada a função de garantia que o direito pode e deve cumprir,reduzir a prática dos mesmos a árbitros da norma nos levaria a aceitarcomo princípio essa contradição básica de todo formalismo: racionalida-de interna e irracionalidade das premissas. O que ocorre com os que senegam a aceitar essas premissas irracionais, essa lógica do mercado quetorna homogêneo tudo o que por ela passa? O mercado necessita de uma

Page 47: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 297

ordem jurídica formalizada que garanta o bom funcionamento dos direi-tos de propriedade. Essa ordem jurídica, com todo seu fundamento éticoe político, é o que se universaliza a priori, deslocando da análise questõestais como o poder, a diversidade ou as desigualdades. É o que constitui oracional e o razoável. Nele coincidem o real e o racional. Síntese final.Unidade de opostos. O universal.

Constitui uma saída a esse universalismo abstrato reivindicar o local,o particular ? Em princípio é preciso dizer que, em conseqüência desseimperialismo do universal a priori, têm surgido vozes que exigem umavolta ao local como reação compreensível frente aos desmandos e abusosde tal colonialismo conceitual. Entretanto, o localismo também se afogafrente à pluralidade de interpretações e, a seu modo, também constróioutro universalismo, um universalismo de retas paralelas que somente seencontrarão no infinito do magma das diferenças culturais. O “localis-mo” sistematiza seu próprio “ponto final” sob as premissas de uma raciona-lidade material que se resiste ao universalismo colonialista a partir dospressupostos do “próprio”. Fecha-se sobre si mesmo. Resistindo-se a umatendência universalista a priori de depreciar as “distinções” culturais como objetivo de impor uma só forma de ver o mundo, o localismo reforça acategoria de distinção, de diferença radical, com o que, em última ins-tância, acaba defendendo o mesmo que a visão abstrata do mundo: aseparação entre nós e eles, o desapreço pelo outro, a ignorância com res-peito a que o único que nos faz idênticos é a relação com os outros; acontaminação de alteridade. Daquele universalismo de ponto de chega-da, chegamos ao universalismo de retas paralelas, de átomos que somentese encontram quando chocam entre si. É uma reação natural enfrentar-se à eliminação das diferenças que provoca o universalismo abstrato. Mascontrapor a este a existência de essências diferenciais que podem rastre-ar-se unicamente por uma arqueologia histórica provoca novas distorçõesao dedicar-se, no melhor e mais pacífico dos casos, a supor, sem inter-relacionar, formas culturais diferentes. Estamos ante uma postura “nati-vista”. Ante, por exemplo, os essencialismos da “negritude”, do “latino-americano”, do “feminino”, do “ocidental” ... como formas de absolutizaridentidades. Adorar essas identidades essenciais faz-se tão perverso comoabominá-las. É deixar a história da humanidade ao arbítrio de essenciali-dades estranhas à experiência e que podem conduzir ao enfrentamentodos seres humanos entre si. Esta racionalidade “nativista” conduz a umaprática comumente denominada de multicultural dos direitos como con-clusão necessária de seu universalismo de retas paralelas. O termo “mul-

Page 48: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

298 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

ticultural” ou não diz nada, dada a inexistência de culturas separadas, ouconduz à suposição, no estilo de um museu, das diferentes culturas eformas de entender os direitos. O multiculturalismo respeita as diferen-ças, absolutizando as identidades e esfacelando as relações hierárquicas– dominados/dominantes – que ocorrem entre as mesmas. Tal e comoqual tem defendido em múltiplas ocasiões Peter McLaren3 , a visão abs-trata, no que concerne à polêmica sobre as diferenças culturais, nos con-duz a um multiculturalismo conservador: existem muitas culturas, massomente uma pode considerar-se o padrão ouro do universal. Por sua par-te, a visão localista nos conduzirá a um multiculturalismo liberal de ten-dência progressista: todas as culturas são iguais, não há mais que estabe-lecer um sistema de quotas ou de “afirmative action” para que as “inferi-ores” ou “patológicas” possam aproximar-se à hegemonia, mas, ao estilodo politicamente correto, respeitando sempre a hierarquia dominante.Outorgar voz e presença em razão das diferentes posições sociais é umaforma de ocultar a “diferença”, em muitas ocasiões não é mais que umaconseqüência das desigualdades que ocorrem no início ou bem no desen-volvimento do processo de relações sociais.

Há que dar um passo a mais. Como defendeu Lukács, os efeitos maisimportantes da implantação do capitalismo em nível conceitual são os dafragmentação e da coisificação do que entendemos separada e isolada-mente do contexto. Estamos ante a forma mais sutil de hegemonia. Amesma posição pós-moderna, com sua insistência na falta de discursosglobalizadores, não é mais que outra forma, quiçá indireta ou inconscien-te, de aceitar essa fragmentação e essa coisificação das relações sociais.

Por isso, nossa visão complexa dos direitos aposta por uma racionalida-de de resistência. Uma racionalidade que não nega que é possível chegar auma síntese universal das diferentes opções relativas aos direitos. E tam-pouco descarta a virtualidade das lutas pelo reconhecimento das diferen-ças étnicas ou de gênero. O que negamos é considerar o universal comoum ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal há quese chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes)de um processo conflitivo, discursivo de diálogo ou de confrontação noqual cheguem a romper-se os prejuízos e as linhas paralelas. Falamos do

3 Cfr. Dentre outros muitos textos, o autor norte-americano discípulo de Paulo Freire, McLaren, P., Pedagogíacrítica y cultura depredadora. Políticas de oposición en la era postmoderna, Paidós, Barcelona, 1997. Ver também,Douglas Kellner, Media Culture: cultural studies, identity and politics between the modern and the postmodern,Routledge, 1995, esp. cap. 3.

Page 49: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 299

entrecruzamento e não de uma mera superposição, de propostas. O uni-versalismo abstrato mantém uma concepção unívoca da história que seapresenta como o padrão ouro do ético e do político. A luta pelo local nosadverte que esse final da História nos conduz ao renascimento das histó-rias. Mas não basta rejeitar o universalismo; é preciso denunciar tambémque quando o local se universaliza, o particular se inverte e se converteem outra ideologia do universal. Ao converter em universal e necessárioo que não é mais que um produto da contingência e da interação cultu-ral, o resultado é a verdade absoluta. O universal e o particular estãosempre em tensão. Esta tensão assegura a continuidade tanto do particu-lar como do universal, evitando tanto o particularismo como o universa-lismo. Dizer que o universal não possui conteúdos prévios não significaque seja um conjunto vazio onde todo o particular se mescla sem razão.Trata-se, em outros termos, de um universalismo que não se interpõe, deum ou outro modo, à existência e à convivência, mas que se descobre notranscorrer da convivência interpessoal e intercultural. Se a universalida-de não se impõe, a diferença não se inibe; sai à luz. Nos encontramos aooutro e aos outros com suas pretensões de reconhecimento e respeito. Enesse processo – denominado por alguns como “multiculturalismo críticoou de resistência” –, ao mesmo tempo em que vamos rejeitando os essen-cialismos universalistas e particularistas, vamos dando forma ao únicoessencialismo válido para uma visão complexa do real: o de criar condi-ções para o desenvolvimento das potencialidades humanas, o de um po-der constituinte difuso que faça a contraposição, não de imposições ouexclusões, mas de generalidades compartidas às que chegamos (de chega-da), e não a partir das quais partimos (de saída).

Não vale acusar, por exemplo, aos países não ocidentais de boicotar asConferências internacionais de direitos humanos em fins do século XXporque estariam apelando para suas culturas, vez que no processo de to-das essas reuniões exige-se, por parte do Ocidente, a inclusão de cláusu-las de respeito ao livre comércio e de regras de instituições internacionaisde comércio que são impostas a todo mundo empobrecido como se fossemdogmas fechados e situados fora do debate. Como tampouco é válido par-tir da rejeição a todas as idéias ocidentais sobre direitos humanos como sefossem todas elas produtos do colonialismo e do imperialismo. Negar “ab-solutamente” a visão ocidental dos direitos humanos acaba gerando, porparte das culturas e dos países que consideram a sua cultura ocidental aúnica que postula e defende direitos humanos, a afirmação do padrãoouro a partir do qual se identifica a luta pela dignidade humana. Esta

Page 50: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

300 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

pretensão ao essencialismo ético provoca o auto-desapreço, herdeiro deuma longa tradição não-ocidental de luta pelos direitos humanos. Tantouma quanto a outra posição partem de universalizações e de exclusões;não partem de processos que nos permitiriam chegar ao conjunto de ge-neralidades que todos poderíamos compartilhar.4

Nossa racionalidade de resistência conduz, pois, a um universalismo decontrastes, de entrecruzamento, de mesclas.5 Um universalismo impuro que propõea inter-relação e não a superposição. Um universalismo que não aceita avisão microscópica que parte de nós mesmos no universalismo de partida oude retas paralelas. Trata-se de um universalismo que nos sirva de impulsopara abandonar todo tipo de visão fechada, seja cultural ou epistêmica, afavor de energias nômades, migratórias, móveis, que permitam deslocarmo-nos pelos diferentes pontos de vista sem a pretensão de negar-lhes, nem denegar-nos, a possibilidade de luta pela dignidade humana.

A última esperança para o pensamento – nos lembrava Adorno e seuMínima Moralia – é o olhar que se desvia do caminho trilhado, o ódio e abrutalidade, a busca de conceitos novos ainda não acoplados ao esquemageral. Necessitamos de uma racionalidade sem lar, descentrada e exiladado convencional e dominante. O problema não radica na preocupaçãopela forma, mas no formalismo. O problema não reside na luta pela iden-tidade, mas no essencialismo do étnico ou da diferença. Ambas tendên-cias outorgam estabilidade ontológica e fixa a algo que não é mais queuma, “outra”, construção humana.

Por isso propomos um tipo de prática, nem universalista e nem multi-cultural, mas intercultural. Toda prática cultural é, em primeiro lugar, umsistema de superposições entrelaçadas, não meramente superpostas. Esteentrecruzamento nos conduz a uma prática dos direitos inserindo-os em

4 A forma de salientar desses atoleiros é “buscar rasgos que conecten el ‘interior’ de un lenguaje o una teoríao una cultura con su ‘exterior’, y de este modo reducir la ceguera inducida conceptualmente a las causasreales de la incomprensión, que son la inercia, el dogmatismo, la distracción y la estupidez, habituales,normales, corrientes y molientes. No se niegan las diferencias entre lenguajes, formas de arte, costumbres.Pero (habría que atribuirlas) a accidentes de ubicación y/o historia, no a esencias culturales claras,inequívocas e inmóviles: potencialmente cada cultura es todas las culturas” Feyerabend, P., op. cit, p. 50. Aotexto de Feyerabend somente falta fazer uma referencia aos interesses econômicos e de poder como causados pretensos “encerramentos culturais” para nos servirmos por completo de sua análise.

5 Nossa proposta é coincidente com a de uma universalidade analógica, histórica e situada, proposta por J.C.Scannone em seu texto Nuevo punto de partida en la filosofía latinoamericana, Guadalupe, Buenos Aires, 1990.No mesmo sentido, consulte-se Milton Santos, Técnica, Espaço, Tempo. Globalização e meio técnico-científicoinformacional, Editora Hucitec, Sao Paulo, 1996, esp. cap. V, pp. 163-188.

Page 51: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 301

seus contextos, vinculando-os aos espaços e às possibilidades de luta pelahegemonia e em estrita conexão com outras formas culturais, de vida, deação, etc. Em segundo lugar, nos induz a uma prática social nômade quenão busque “pontos finais” ao acúmulo extenso e plural de interpretaçõese narrações e que nos discipline na atitude de mobilidade intelectualabsolutamente necessária em uma época de institucionalização, regimen-tação e cooptação globais. E, por último, caminharíamos para uma práticasocial híbrida. Nada é hoje “puramente” uma só coisa. Como afirma EdwardW. Said, necessitamos de uma prática híbrida e anti-sistêmica que possaconstruir “descontinuidades renovadas e quase lúdicas, carregadas de impure-zas intelectuais e seculares: gêneros mesclados, combinações inesperadas detradição e novidade, experiências políticas baseadas em comunidades de esfor-ços e interpretações (no sentido mais amplo da palavra), e não em classes ecorporações de poder, posse e apropriação”6 Uma prática, pois, criadora ere-criadora de mundos, que esteja atenta às conexões entre as coisas e asformas de vida e que não nos prive de “outros ecos que habitem o jardim”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: PARA UMARACIONALIDADE DE RESISTÊNCIA

Frente a tudo isso, a reflexão sobre a interculturalidade nos conduz a umaresistência ativa contra os roteiros que está tomando este tema nos debatescontemporâneos. Como exemplo, apliquemos a metodologia exposta ao casodas migrações, uma vez que este é um tema no qual se evidenciam as conse-qüências dos discursos multiculturalistas conservadores ou liberais.

Devemos resistir, em primeiro lugar, ao discurso que reduz o tema mi-gratório à luta contra os tráficos ilegais, dado que a postura dos governosna hora de “fornecer papéis” não está de acordo com as necessidades demão-de-obra necessária (ao menos que o que se pretenda seja manter“sob controle” aos que não possuem outro remédio além de ter que acei-tar condições escravizadoras de trabalho e que, por sua vez alimenta epotencializa as redes de tráfico ilegal de pessoas).

6 Said, E. W., Cultura e imperialismo, Anagrama, Barcelona, 1996, p. 514. Ver, da mesma forma, Boaventura deSousa Santos, A crítica da razão indolente. Contra o desperdício da experiência, Cortez Editora, São Paulo, 2000.E José Manuel Oliveira Mendes, “O desafio das identidades” en Boaventura de Sousa Santos (org.), AGlobalização e as Ciências Sociais, Cortez Editora, São Paulo, 2002, pp. 503-540.

Page 52: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

302 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Em segundo lugar, devemos resistir a considerar a problemática que de-monstram as migrações como um problema policial e de controle de frontei-ras. Assistimos a uma generalização de uma nova ordem global substancial-mente diferente da ordem internacional de décadas passadas. Cada veznos regemos menos por tratados e convenções internacionais e mais pelasmãos “bastante invisíveis” dos mercados, transnacionalmente inter-relaci-onados, e que servem, em última instância, para assegurar a eficiência dosistema frente aos desequilíbrios econômicos, sociais e culturais que, inten-cionalmente ou não, geram. Como vem afirmando a teoria social contem-porânea - se queremos abordar com “realismo” os fluxos migratórios e, comeles, os temas suscitados pelo contato entre culturas – devemos encarar ofenômeno a partir de três reconhecimentos: 1) O mundo mostra-se carac-terizado por desequilíbrios profundos, como pode ser visto no tema das li-berdades civis e também nos direitos sociais, econômicos e culturais; 2) Asfronteiras, sobretudo as fronteiras-fortalezas, são mecanismos essenciais paramanter as desigualdades entre nações e; 3) O controle das fronteiras repre-senta a linha crítica de divisão entre o mundo desenvolvido, “o centro” e asperiferias econômicas crescentemente subordinadas.

E, em último lugar, devemos resistir a entender a “realidade” da imigra-ção e da multiculturalidade como a principal geradora de problemas sociaisda época em que vivemos. Torna-se muito fácil, sobretudo após 11 de Se-tembro, justificar a superioridade do valor da segurança sobre o restantedos valores que inspiram os direitos humanos. E, mais fácil ainda, atribuirao imigrante ou ao diferente a responsabilidade, transformando-o em um“bode expiatório” no qual situamos nossas frustrações e nossa incapacidadepolítica para resolver os problemas da delinqüência organizada, assim comoos problemas derivados dos débeis sistemas de pensão (previdência) quenos asseguram um futuro incerto e problemático. O populismo de extremadireita se nutre dessas incapacidades do Estado de Direito. Contra essatendência, devemos reconhecer, primeiro, o papel benéfico que em todas asépocas históricas supuseram as migrações, as mesclas, as mestiçagens. E,segundo, fazer chegar à opinião publica as vantagens laborais, fiscais e cul-turais que a imigração é capaz de produzir.7

7 Por essas razões, deve-se ler com cautela as Diez tesis sobre la inmigración propostas por Agnes Heller. Segundoa professora da New School for Social Research, há que se estabelecer “semáforos” de comportamento paraevitar o choque entre partes distintas; estes semáforos estariam baseados em um princípio geral: “aemigração é um direito humano, enquanto que a imigração não o é”. Em outras palavras, se alguém quer“sair” não se deve opor nenhum problema já que possui o “direito”; mas se quer “entrar”, já não se trata dedireitos, mas de privilégios, os quais devem estar regulados pelos de dentro. O cuidado da leitura, e nãoa rejeição imediata do que propõe Heller, reside na convicção da necessidade de ações que prevejam

Page 53: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 303

Como nos dizia Martí, a economia deve ser controlada pela política.Mas não por qualquer política, e sim por uma política comprometida nãosomente com a livre circulação dos capitais, mas também com a livrecirculação das pessoas; uma política afastada de qualquer violação dosdireitos recorridos nos textos de direitos humanos; uma política, enfim,que nos aporte mecanismos para podermos resistir, imigrantes e residen-tes, a uma ordem global injusta e desigual.8 Os direitos humanos no mun-do contemporâneo necessitam desta visão complexa, desta racionalidadede resistência e destas práticas interculturais, nômades e híbridas parasuperar os resultados universalistas e particularistas que impedem umaanálise comprometida dos direitos já há muito tempo. Os direitos huma-nos não são unicamente declarações textuais. Tampouco são produtosunívocos de uma cultura determinada. Os direitos humanos são os meiosdiscursivos, expressivos e normativos que pugnam por reinserir os sereshumanos no circuito de reprodução e manutenção da vida, permitindo-nos abrir espaços de luta e de reivindicação. São processos dinâmicos que

possíveis conflitos interculturais e interclassistas. Mas a questão não reside em levantar obstáculos ou semáfo-ros, mas em construir espaços de mediação no qual possamos transitar estabelecendo novas relaçõessociais, econômicas e culturais. Que tipo de relações são estabelecidas quando todos estamos detidos anteo semáforo Não estaríamos voltando a justificar o atomismo social que apenas confia em normas heterônomasque aparentam impor-se a todos de modo igual ? Não constituem, os controles aduaneiros e fronteiriços,um semáforo unicamente para uns e não para outros ? Daí surge o princípio geral proposto por Heller: aemigração é um direito e a imigração não. Não estamos ante as duas caras de um mesmo fenômeno? Casoqueira, vá, ninguém te impedirá já que possui um direito “ individual”. Mas se quiser entrar, peça-mepermissão e eu decidirei se te autorizo entrar , já que o direito de veto é meu direito “individual” e suapretensão não é mais que um privilégio “coletivo” que pode chocar com meus interesses “individuais”.Puderam os indígenas norte-americanos, africanos, andinos ... controlar os “privilégios” dos colonizadoresque se estabeleceram em suas terras ? Podem os camponeses controlar os “privilégios” das grandes empresastransnacionais empenhadas em apoderar-se, sem precisar parar em semáforos de nenhum tipo, de todosseus conhecimentos ancestrais e propô-los em seu próprio benefício? Precisam os capitais financeiros pararem algum semáforo? Não estão sempre no vermelho os semáforos que impedem a mobilidade de milhões depessoas em busca de saídas à pobreza? Emigrar é imigrar. Ambos são direitos humanos na medida que ambossupõem a construção de relações de reconhecimento, de empoderamento e de mediação política. Ao invésde colocar semáforos, lutemos para construir situações de justiça, de solidariedade, de desenvolvimento,de empoderamento. Quando as relações sociais deixem de ser imposição de hegemonias unilaterais epartam para uma situação de equilíbrio e de igualdade, ali começará a assentar-se as bases que evitarão oschoques entre as partes. A prática intercultural define-se menos por impor barreiras e mais por construirespaços públicos de mediação, intercâmbio e mestiçagem. Ver Sami Naïr, Las heridas abiertas. Las dos orillasdel Mediterráneo. ¿Un destino conflictivo?, Santillana, (Punto de Lectura) Madrid, 2002, Prólogo a cargo deJoaquín Estefanía, pp. 9 y ss.

8 Neste sentido, veja-se os trabalhos de Samir Amin, “Las condiciones globales para un desarrollo sostenible”,Jorge Alonso, “La Democracia, base de la lucha contra la pobreza”, Wim Dierckxsens, “Hacia unaalternativa sobre la ciudadanía” y Vandana Shiva, “El movimiento Democracia Viva. Alternativas a labancarrota de la globalización”, publicados recentemente em español em Alternativas Sur, nº 1, Vol. 1 (2002)dedicado ao tema A la búsqueda de alternativas. ¿Otro mundo es posible?

Page 54: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

304 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

permitem a abertura e a conseguinte consolidação e garantia de espaçosde luta pela particular manifestação da dignidade humana.9 O únicouniversalismo válido consiste, pois, no respeito e na criação de condiçõessociais, econômicas e culturais que permitam e potenciem a luta pela dig-nidade: em outras palavras, consiste na generalização do valor da liberda-de, entendida esta como a “propriedade” dos que nunca “existiram” naconstrução das hegemonias. Desde essa caracterização, é necessário aban-donar toda a abstração – seja essa universalista ou localista – e assumir odever que nos impõe o valor da liberdade: a construção de uma ordemsocial justa (artigo 28 da Declaração de 1948) que permita e garanta atodas e a todos lutar por suas reivindicações. As violações ocorrem tanto nocaso das mulheres condenadas a viver enclausuradas e apartadas dos pro-cessos sociais cotidianos, como no caso dos seres humanos condenados pe-las políticas colonialistas de destruição de seus países de origem a buscartrabalho em um entorno hostil de um Ocidente-fortaleza. Reivindicar ainterculturalidade não se limita, por outro lado, ao necessário reconheci-mento do outro. É preciso também transferir poder ( “empoderar”) aos ex-cluídos dos processos de construção de hegemonia. E assim trabalhar para acriação de mediações políticas, institucionais e jurídicas que garantam ditoreconhecimento e dita transferência de poder.

Não somos nada sem direitos. Os direitos não são nada sem nós. Nessecaminho não fizemos mais que começar.

9 Joaquín Herrera Flores, “Hacia una visión compleja de los derechos humanos”; David Sánchez Rubio,“Universalismo de confluencia, derechos humanos y proceso de inversión”; Franz Hinkelammert, “Elproceso de globalización y los derechos humanos: la vuelta del sujeto”, os três trabalhos publicados emJoaquín Herrera Flores (ed.), El Vuelo de Anteo. Derechos Humanos y crítica de la razón liberal, Desclée deBrouwer, Bilbao, 2001, pp. 19-78, 215-244, y 117-128 respectivamente. Franz Hinkelammert, “La negativaa los valores de la emancipación humana y la recuperación del bien común” , Pasos, 90, 2000. Raúl FornetBetancourt, La transformación intercultural de la filosofía, Desclée, Bilbao, 2000. Juan Antonio Senent deFrutos, Ellacuría y los derechos humanos Desclée, Bilbao, 1998, esp. cap. 2, y “Los derechos humanos y latensión entre universalidad y multiculturalismo”, Actas del Congreso Internacional en el ciencuentenario de laDeclaración Universal de los derechos humanos, Asociación Pro Derechos Humanos, Granada, 1999. HelioGallardo, Política y transformación social. Discusión sobre derechos humanos, Tierra Nueva, Quito, 2000.Xabier Etxeberría, Imaginario y derechos humanos desde Paul Ricoeur, Desclée de Brouwer, Bilbao, 1995.Alejandro M. Medici, “El campo de los movimientos críticos de la globalización y las alternativas frente alneoliberalismo”, en Crítica Jurídica. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía y Derecho, 20, 2002. NormanJosé Solórzano Alfaro, “Los marcos categoriales del pensamiento jurídico moderno: avances para la discusiónsobre la inversión de los derechos humanos” en Crítica Jurídica. Revista Latinoamericana de Política, Filosofía yDerecho, 18, 2001, pp. 283-316. Asier Martínez de Bringas, Globalización y derechos humanos, CuadernosDeusto de Derechos Humanos, 15, Universidad de Deusto, Bilbao, 2001. Luis de Sebastián, “Globalización,exclusión y pobreza” en Revista Anthropos. Huellas del conocimiento“, 194, 2002, número dedicado a “Lapobreza. Hacia una nueva visión desde la experiencia histórica y personal”, pp. 55-64. María José Fariñas,“Globalización, ciudadanía y derechos humanos” en Cuadernos Bartolomé de las Casas, 16, 2000.

Page 55: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 305Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.305-326

A Europa como comerciantee advogado do mundo: o continente

e os processos globais

Europe as World’s Trader andAttorney: the Continent and the

Global Processes

GÖRAN THERBORN

Swedish Collegium for Advanced Study in the Social Sciences, Uppsala [email protected]

RESUMO

A posição da Europa é analisada especificando-se a globalização em cincoprocessos globais, nos quais o continente aparece como o centro dos fluxos decomércio e capital, como a região dos mais profundos entrelaçamentostransnacionais e como uma área de normatividade transnacional. Destacam-se os antecedentes históricos e a inter-relação entre comércio internacional edireito que transpõe as comunidades políticas na Europa, tanto na teoria socialmoderna quanto na construção de instituições após a Segunda Guerra Mundi-al, bem como a difusão do direito europeu para outros continentes.Os conceitos de posição, papel e identidade devem ser distinguidos. As posi-ções histórica e atual da Europa no mundo pouco se expressam nos papéis queos líderes de hoje desejam cumprir nas formulações contemporâneas do

Originalmente publicada em “European Journal of Social Theory”, volume 5, issue 4, november 2002, p. 403-418,a presente versão foi atualizada, pelo autor, especialmente para esta publicação, cortesia que agradecemos.Tradução de Roberto Cataldo Costa.

Page 56: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

306 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

patrimônio e da identidade do continente. Isso acontece, em parte, em funçãode um erro nostálgico de avaliação por parte de ex-políticos pertencentes àsaltas esferas do poder, mas em muito devido à posição delimitada do direito edo comércio europeus convencionais, e da transformação – real, mas nãoteorizada – das tradições comerciais em comércio socialmente enraizado, e datradição jurídica em normatividade democrática internacional. Por fim, argu-menta-se que essas práticas européias de comércio e direito correspondem, naverdade, a múltiplas visões críticas sobre comércio e governança globais.Palavras-chave: Globalização, integração européia, comércio, direito interna-cional, direito europeu, espacialidade, papel, identidade.

ABSTRACT

Europe´s position in the world is analyzed in relation to a specification of global-ization into five global processes, whereby Europe stands out as the central nodeof global flows of trade and capital and as the region of uniquely high trans-national entanglements, as an area of trans-national normativity. The historicalbackground and inter-relation of foreign trade and trans-polity law within Eu-rope, both in early modern social theory and in post-World War II institution-building, is highlighted, as well as the spread of European law onto other conti-nents. The concepts of position, role, and identity had better be distinguished.This historical and current position of Europe in the world is little expressed in theroles which contemporary European leaders want to play and in contemporaryformulations of European heritage and identity. This is due partly to a nostalgicmisjudgment by ex-great power politicians, but largely because of the delimitedposition of conventional trade and law in Europe, and of the actual but untheorizedtransformation of trading traditions into socially embedded trade and of the legaltradition into democratic inter-national normativity. It is finally argued that theseEuropean practices of trade and law in fact correspond to many current criticalviews on global trade and global governance.Key words: Globalization, European integration, trade, international law, Eu-ropean law, spatiality, role, identity.

INTRODUÇÃO

Grande parte, se não o conjunto, das contribuições positivas da Europa àhistória mundial moderna pode ser resumida em comércio e direito interna-cionais. É certo que assim deixaríamos de fora os avanços científicos, o ilumi-

Page 57: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 307

nismo e as revoluções populares, mas desde a idade das trevas européia dadécada de 1930, as fronteiras da ciência deslocaram-se para o oeste, a revo-lução popular saiu da agenda mundial nos anos 90, pelo menos por enquanto,e o iluminismo já é meio antigo, como parte que era do Antigo Regime.

A partir de uma perspectiva mundial, “Europa” tem significado, namaior parte do tempo, a Europa Ocidental, tendo sido esses europeusocidentais que entraram em contato com árabes, africanos, americanos,asiáticos do sul e do sudeste, japoneses, australianos e habitantes dasilhas do Pacífico. Os chineses, e mais tarde os otomanos, os persas e osafegãos, também tiveram que lidar com os russos, mas principalmente nosparâmetros da política de potências, desenvolvida entre estados. E o fa-moso tratado sino-russo de Nerchinsk/Nipchu, de 1689, que estabeleceuas fronteiras entre os dois países, foi negociado em latim, com intérpretesjesuítas portugueses (Spence, l990:65-6). No início do século XX, asterras polonesas produziram os mais argutos observadores da cultura oci-dental, Bronislaw Malinowski e Joseph Conrad. Durante um tempo, nasegunda metade da Guerra Fria, a União Soviética proporcionou ummodelo mundial de desenvolvimento, especialmente na África. Mas,enfim, o imperialismo russo, o modelo soviético e os escritos polonesespassaram a ser episódios da história mundial e, hoje em dia, o principalprojeto da Europa Oriental é ser absorvida pela Ocidental.

Dessa forma, embora fazendo o devido reconhecimento a NormanDavies (1996), que nos apresentou 1365 páginas de argumentos contrári-os a uma história européia ocidental da Europa, uma perspectiva globaltalvez nos autorize um foco nessa parte do continente, o qual, bem oumal, tem sido o mais influente, tanto hoje quanto em termos históricos.

Em outras circunstâncias, há boas razões para não ficarmos à luz do sole nos dedicarmos aos lados obscuros da Europa. Entretanto, feitas essasadvertências, quero me concentrar aqui em dois fatores que definem emgrande parte o que está acontecendo no continente e fornecem as basesde sua posição no mundo, ou seja, comércio e direito.

PARA ALÉM DA ESPACIALIDADE:“DESEMBRULHANDO” A GLOBALIZAÇÃO

No pensamento e no discurso sociais, os anos 90 foram o momento doespaço, da espacialidade. “Globalização” foi a palavra de efeito no mun-

Page 58: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

308 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

do todo, e a Europa foi lançada ao mar com programas baseados no espa-ço, o “Mercado Único”, a “Unificação” alemã, a ampliação da UniãoEuropéia para o leste e, de Paris a Bruxelas, espalharam-se idéias sobre“espaces européens”, uma “área econômica” européia e, nos anos 2000,uma “área de pesquisa”.

Façamos uma breve reflexão sobre as implicações de uma espacializa-ção do pensamento social. Acima de tudo, um foco exclusivo ou predo-minante no espaço social significa que os atores e sua condição socialnão-espacial sejam tomados como dados. No modo espacial, as caracte-rísticas dos atores, sua desigualdade e, possivelmente, conflitos de inte-resse, são nivelados ou encobertos, e a qualidade das condições/relaçõessociais e sua transformação são desconsideradas. O jogo e suas regras sãodados, a única questão é a extensão do campo e o número de jogadores.De qualquer forma, a noção de “globalização”, que têm tanto uma cono-tação de amplitude, a partir do local e do nacional, quanto de finitude,de limitação planetária, é um grande pacote, que estaria melhor desfeitoe especificado em um conjunto de processos globais.

Os cinco processos globaisEste conjunto consiste em cinco principais tipos de processos. Um

deles é um processo cultural, com um referente mental, pertencente aodomínio da consciência social e que pode ser subdividido em uma consci-ência global da variabilidade e interconexão mundiais, e uma consciên-cia planetária da finitude e da vulnerabilidade humanas e ecológicas.Socialmente, é um processo discursivo. Outro é histórico, expressando adependência dos rumos das economias, comunidades políticas e culturascontemporâneas. Existe uma forte correlação entre as distribuições mun-diais da renda nacional em 1820 e em 1910. Por exemplo, entre os dezprincipais países e regiões, existe uma correlação Pearson de 0,85 (calcu-lada a partir de Maddison, 1995: tabela 1-3, e Banco Mundial, 2000:tabela 1). Em terceiro lugar estão os fluxos globais, talvez os mais visíveise dramáticos entre os processos globais. Ou seja, os fluxos de comércio –de bens e serviços – de capital, de pessoas e de informações no sentidomais amplo, isto é, valores, conhecimento científico, música, etc.

Em quarto, estão os entrelaçamentos dos estados soberanos nas redestransnacionais de políticas e geração de normas. Por meio dessa interliga-

Page 59: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 309

ção do nacional e do transnacional, este afeta aquele na definição deagendas, na prescrição e na revisão de políticas, e no modelamento deinstituições.

A proliferação de estados independentes no período posterior à Se-gunda Guerra Mundial foi acompanhada dessas imbricações da organiza-ção e das políticas de estado com as instituições internacionais.

À parte o tradicional clientelismo entre estados, que não desapare-ceu, esses entrelaçamentos são de três tipos principais. Os verdadeira-mente globais são aqueles que se dão no âmbito dos mecanismos das Na-ções Unidas, com suas agências setoriais, conferências de definição deagenda e convenções, e das várias tentativas de estabelecer uma ordemlegal global sobre o ambiente planetário, sobre armamentos de elevadacapacidade de destruição, sobre condutas de guerra e crimes de guerra, esobre o comércio mundial. As organizações econômicas interestatais, vol-tadas ao auxílio e ao crédito condicionais – o FMI e o Banco Mundial –são praticamente globais, afetando principalmente os países pobres e/ouendividados. O funcionamento dessas duas instituições com relação asuas dependências tem muitas semelhanças com a operação imperial ecolonial de estados individuais, ou pequenos grupos deles, um século atrás.Em terceiro lugar, existem as ordens regionais e os entrelaçamentostransnacionais.

Por fim, os processos globais incluem a ação de âmbito mundial, o que,por sua vez, pode-se dividir em concertação global – os raros momentosem que existem Nações Unidas reais – e alcance global, isto é, outrora oorgulho da Marinha Real Britânica, posteriormente o objetivo da parida-de soviética na Guerra Fria, e atualmente, para a inveja de alguns políti-cos da Europa Ocidental, o monopólio dos mísseis e bombas por parte dosEstados Unidos.

O lugar da Europa nos processos globaisOnde se encontra a Europa nesses processos globais? Para começar,

não há muito dela na ação ou na consciência globais, enquanto suaspegadas na história do mundo ainda são bastante visíveis, particularmen-te fora do continente.

Os termos atuais da ação global foram captados com muita perspicácia

Page 60: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

310 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

em uma charge de janeiro de 2002, publicada no jornal conservador ale-mão Die Welt, que apresentava um enorme soldado americano em frentea um alvo chamado “Saddam”. O soldado olhava para baixo, com umcerto desdém, a um punhado de políticos nanicos europeus e lhes dizia:“sugiro a divisão de trabalho de sempre, ou seja, eu atiro e vocês aplau-dem quando eu acertar”.

A partir da evidência subjetiva da experiência pessoal, particularmentena Ásia e nas Américas, mas também na África, parece-me que a “Euro-pa” não ocupa um lugar importante na consciência global, ou na consci-ência do mundo. O Ocidente e o resto2 , ou o Norte e o Sul, aparecemcom muito mais destaque. Por outro lado, as preocupações humanitáriase ambientais indicam uma consciência planetária relativamente elevadaentre os europeus.

A história global, basicamente na forma de herança colonial, garanteà Europa uma influência importante no mundo contemporâneo. O que émais impressionante, um passado colonial ainda determina a língua deestados e elites, e os próprios nomes de muitos desses estados indicam suahistória. Os sistemas legais, as preferências esportivas, as rotas de comér-cio e migração ainda percorrem trilhas profundas, de origem colonial. Asupremacia de tempos atrás deixou menos traços na Europa contemporâ-nea, embora a direção do auxílio, das preocupações e da intimidaçãomoral, bem como as fontes de imigração de outros continentes, aindasigam em muito antigas linhas de comando coloniais.

Se, por um lado, as marcas da história global não abandonam a face docontinente, é em alguns dos fluxos globais, particularmente de comércioe capital, e em entrelaçamentos normativos transnacionais, que encon-tramos a Europa se destacando no mundo de hoje.

Tendo sido uma região de emigração por quatro séculos e meio, ocontinente se tornou uma destinação de maior imigração no início dadécada de 60. Atualmente, a proporção de pessoas de origem estrangeiranascidas na Suécia, uma das fontes mais vigorosas de emigração do sécu-lo XIX, é mais ou menos a mesma dos Estados Unidos.

Mas o principal fluxo de migrantes do mundo de hoje não se destina à

2 Em inglês, “the West and the rest”, do sonoro conceito de Huntington, em “The Clash of Civilizations”, ForeignAffairs, Summer 1993, p.39. (Nota do tradutor)

Page 61: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 311

Europa. Assim como cem anos atrás, a principal destinação é os EstadosUnidos, embora atualmente eles venham do sul e do Pacífico Ocidental,ao invés do Atlântico Oriental.

É muito difícil se obter um montante comparativo de fluxos de infor-mação mas, claramente, os fluxos mais importantes de conhecimento ci-entífico e de entretenimento acontecem dos Estados Unidos para o restodo mundo, embora o recrutamento de estudantes estrangeiros e as ven-das de música, por exemplo, demonstrem uma centralidade secundáriacontinuada da Europa Ocidental. No cenário das preferências e da cano-nicidade literárias, Londres e Paris, e Estocolmo, respectivamente, po-dem até mesmo ser tomadas como os principais centros do mundo (cf.Casanova, 1999).

O CENTRO DOS FLUXOS DE COMÉRCIOE CAPITAL

Entretanto, é nos fluxos internacionais de comércio e capital, sobretu-do, que a Europa ocidental permanece sendo o centro do mundo, aindaque um pouco menos do que no final da Belle Epoque. Em 1913, um terçodo comércio mundial era intra-europeu, e os negócios entre o continentee o resto do mundo perfaziam metade de todo o volume internacional. Ointercâmbio entre regiões não-européias chegava a apenas um sétimo detodo o comércio mundial (Zacchia 1976: tabela 1).

No ano de 2000, mais de um quarto de todo o comércio internacionalno mundo, ou seja, 27%, aconteceu na Europa Ocidental, quase um ter-ço (29%) dentro da Europa, e 40% das exportações mundiais tiveramorigem nos países da Europa Ocidental. As exportações dos Estados Uni-dos, incluindo os serviços comerciais, chegam a 14% do total mundial, eas japonesas, a 7% (OMC 2001: tabelas III.1, III.3 e III.5). O comércio nointerior da União Européia equivale ao dobro do ocorrido no interior doNAFTA (OMC 2001: tabela I.9).

Os fluxos de capital em torno de 1900 aconteciam principalmente apartir da Europa, sobretudo da Inglaterra, para as colônias européias dosnovos mundos. A Grã-Bretanha detinha algo como 40% de todo o inves-timento estrangeiro de longo prazo em 1913-14, e dois terços dos investi-mentos britânicos no exterior em 1907-13 foram para os novos mundos

Page 62: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

312 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

(Zacchia 1976:573: O’Rourke e Williamson, 1999:211), enquanto os doismaiores investidores estrangeiros seguintes, a França e Alemanha, que,juntas eram menores do que a Inglaterra, direcionavam seu capital prin-cipalmente às periferias da Europa (Williamson e O’Rourke, 1999:229).Em 1914, cerca de metade dos investimentos estrangeiros no mundo esta-va localizada nos novos mundos, e o restante quase que igualmente divi-dido entre a Europa (com uma fatia um pouco maior) e a África e a Ásia(Woodruff, 1973: 710-1).

Em 2000, a Europa Ocidental ainda possui mais da metade do estoquemundial de investimentos estrangeiros diretos (57%), enquanto os Esta-dos Unidos detêm um quinto e os investidores japoneses mal chegam a5% (mais especificamente, 4,7%). Essa região da Europa também era omaior receptor de investimentos estrangeiros, com quase 40% do estoquemundial em 2000, ao passo que os Estados Unidos recebiam 20% e o Ja-pão, menos de 1%. Em termos de fluxo, os países da Europa Ocidentalenviaram mais de dois terços (cerca de 71%) do investimento estrangeirodireto global em 2000, e receberam a metade desse montante (UNC-TAD, 2001: Tabelas anexas B4, B3, B2 e B1, respectivamente). As em-presas dos Estados Unidos foram responsáveis por apenas um oitavo dofluxo de investimento estrangeiro direto em outros países.

Em suma, embora tenha deixado de ser a parte mais rica da terra e oprincipal modelo econômico do mundo, a Europa Ocidental ainda é ocentro dos fluxos globais de comércio e capitais. Enquanto os EstadosUnidos se tornaram o maior produtor e o maior proprietário da riquezaglobal, a Europa ainda é a principal força motora dos fluxos econômicos.

Em termos gerais, e contrariamente ao que pode ser sugerido pelapalavra “globalização”, no último terço do século XX houve uma tendên-cia de maior regionalização do comércio, não profunda, mas, ainda assim,significativa.

A Europa tem estado na dianteira desse processo, mas ele não é, deforma alguma, uma realização única, e a integração formal e institucionaldo continente cumpriu um papel, na melhor das hipóteses, secundário outerciário neste aspecto.

Na Europa Ocidental (incluindo-se os países não-membros da UniãoEuropéia), o comércio intra-regional (de mercadorias) equivalia a 64%de todas as exportações em 1963 e a 68% em 2000. A fatia das importa-

Page 63: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 313

ções intra-regionais cresceu de 56% para 65% (OMC, 2001: tabela II.4),enquanto, na América do Norte, as exportações no interior do NAFTApermaneceram em seu nível anterior. A diferença se deve a um cresci-mento das importações da Ásia e ao superávit de importações dos EstadosUnidos (OMC, 2001: tabela II.3). O comércio japonês no mesmo períodose tornou mais voltado à Ásia (OMC:2001, Tabela II.5).

Entre os atuais quinze países que são membros da União Européia, aregionalização do comércio aconteceu principalmente na década de 60,com a generalização da prosperidade do continente, estimulada peloMercado Comum de seis países que teve início em 1958, quando o comér-cio intra-europeu representava cerca de um quarto de seu comércio ex-terior. A atividade no interior do bloco atingiu seu pico, até agora, noinício dos anos 90, em torno da abertura do Mercado Único em 1992,diminuindo levemente na segunda metade da década (OECD, 2000: Ta-bela anexa 64; OMC 2000: Tabela II.4).

Mesmo globalizadas, algumas partes do mundo estão muito mais próxi-mas entre si do que outras. No caso dos fluxos comerciais, essa tendênciaà dependência da distância espacial vem se fortalecido recentemente, aoinvés de esmorecer.

GOVERNANÇA GLOBAL E O MUNDO DO DIREITO

A governança global certamente opera sem governos, por meio de re-lações de poder e força, mas também através de normas, padrões e insti-tuições, acomodando estados-nação em redes transnacionais de atores,instituições e normas.

No lado direito, de caráter global, dos entrelaçamentos transnacio-nais, os países europeus cumprem um papel modesto. Pagando suas obri-gações ao FMI e ao Banco Mundial, e aderindo ao chamado Consenso deWashington, que tem no Tesouro Americano, na prática, seu elementomais forte, enquanto atribui ao Banco Mundial alguns aspectos humani-tários e de auxílio ambiental.

É no quadro normativo das Nações Unidas, e também na OMC, que aEuropa está cumprindo um papel fundamental no entrelaçamento globaldos estados, na dianteira da Convenção da ONU sobre Direitos Huma-

Page 64: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

314 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

nos, do Protocolo de Kyoto sobre a redução da poluição e do TribunalPenal Internacional, enquanto os Estados Unidos são o principal elemen-to contrário. A Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Crian-ça, por exemplo, foi ratificada por todos os países do mundo (apesar deterem sido acrescentadas algumas “cláusulas de escape”) com exceçãodos Estados Unidos e do Afeganistão. Tal convenção, uma das tentativasmais bem-sucedidas de normatividade global, em função da atividade docomitê de monitoramento de sua implementação foi, a propósito, um raroexemplo de cooperação entre as regiões ocidental e oriental da Europanos tempos da Guerra Fria. A idéia de uma convenção sobre os direitosdas crianças foi lançada pela Polônia no final da década de 70, e avançouem um curso preparatório de dez anos, devido ao forte apoio da EuropaOcidental (veja mais em Detrick, 1992).

Pode-se dizer que a Declaração dos Direitos Humanos da ONU, de1948, é o padrão normativo mais amplamente invocado no mundo con-temporâneo. Embora seja uma declaração sem força de lei, ela tem sidouma fonte recorrente de inspiração para advogados, bem como cidadãosde todo o mundo. Sua preparação foi um processo impressionante e ver-dadeiramente global, que aconteceu apesar da Guerra Fria incipiente, ese manteve durante a deflagração da primeira guerra na Palestina. Sualinguagem jurídica, contudo, é derivada do jurista francês René Cassin,e sua concepção de direitos, mais da perspectiva “dignitária” européia (elatino-americana) do que do individualismo anglo-americano, e seus ar-tigos longos sobre direitos sociais e econômicos, das lutas do movimentotrabalhista europeu (veja mais em Glendon, 2001).

A Europa se tornou o advogado do mundo no século XIX. Os estadoslatino-americanos recém-independentizados adotaram códigos legais na-poleônicos, que ainda exercem sua influência sobre o hemisfério, especi-almente no direito de família. A expansão imperialista trouxe a extrater-ritorialidade européia às comunidades políticas pré-modernas ameaçadase intimidadas da África, do Império Otomano ao Japão. Em 1865, osingleses estabeleceram em Xangai “a Suprema Corte de Sua MajestadeBritânica para a China e o Japão”.

As conquistas coloniais introduziram o direito Europeu na África e naÁsia, e criaram um novo sistema legal dual com o direito consuetudináriolocal, dualidade esta que persiste até os dias de hoje nas questões defamília. O Japão do período Meiji importou um sistema jurídico da Euro-pa, da França e, sobretudo, da Alemanha, uma transformação jurídica

Page 65: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 315

que inspirava, na época, as tentativas chinesas de reforma do direito. ATurquia pós-otomana adotou posteriormente um derivado do código suí-ço. O Instituto de Direito Internacional, com sede em Paris, concedeude forma benevolente a igualdade teórica de todas as nações, cristãs ounão, proclamando dessa forma um princípio de universalidade do direitointernacional (veja mais, por exemplo, em Mommsen e De Moor, 1992).Dessas formas variadas, o direito europeu se espalhou pelo mundo, che-gando ao que Kipling, em seu famoso, e de certa forma elegíaco, poema,Recessional, com a arrogância imperialista típica da época, chamou de “asraças inferiores, que não têm lei” (Untermeyer, s.d.: 510).

O enfraquecimento do poder da Europa diminuiu a importância glo-bal atual do direito e da regulamentação oriundos do continente. Adinâmica do capitalismo norte-americano, junto com sua educação deorientação empresarial, também fez com que o direito empresarial inter-nacional gravitasse informalmente para as concepções norte-americanas.Uma área crucial de controvérsia será a Organização Mundial do Comér-cio, onde, pode-se dizer (cf. Cass, 2001), tem lugar uma espécie de “cons-titucionalização” do comércio internacional no Órgão de Apelação dainstituição. Nesse domínio, a União Européia tende a defender seus di-reitos mesmo contra os Estados Unidos, e há muito em jogo do ponto devista econômico em uma ordem mundial do comércio, para que este paísrenuncie, ainda que levemente, a exercer uma jurisdição global. Sendoassim, o fato de a OMC não ter aceitado a nova proteção norte-america-na ao aço é significativo. Por outro lado, na reunião de Cancun, em 2003,o Brasil e o então chamado G-21 escancararam uma nova divisão na or-ganização, dessa vez relacionada ao protecionismo na área da agricultu-ra, questão em que os Estados Unidos e a União Européia assumiramposicionamento protecionista semelhante.

No mundo de nossos dias, entretanto, a transnacionalidade do direi-to europeu se manifesta principalmente em termos regionais, na forma deum entrelaçamento real, e como fonte global de inspiração para outrosacertos regionais e mundiais, misturando questões e regras nacionais etransnacionais. A Europa é a área de alta densidade no mundo em ter-mos de entrelaçamentos transnacionais, e a estrela-guia do entrelaça-mento global. Com vistas a captar esta posição, deve-se prestar um pou-co mais de atenção à interação do direito e do comércio na formação docontinente.

Page 66: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

316 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

A ÁREA NORMATIVA E O MERCADO COMUM

O Conselho da Europa adotou, em 1950, a primeira convenção inter-nacional com força de lei sobre direitos humanos, aplicada por uma Co-missão, um Comitê de Ministros com um sistema de votação majoritário eum Tribunal. A preocupação se concentrava apenas nos direitos e foipreciso mais de uma década para que sua supranacionalidade fosse reco-nhecida integralmente por todos os estados-membros, mas isso acabouacontecendo. Em 1961, adotou-se uma Carta Social Européia ampla, ela-borada na forma de obrigações aceitas pelos estados-membros, com umsistema supranacional de acompanhamento e queixas, tendo como ins-tância máxima as recomendações do Comitê Ministerial com uma maio-ria de dois terços (Steiner e Alston, 1996: cap. 10.B; Bundeszentrale,1999: 382ss).

A Europa Ocidental do pós-guerra era, portanto, uma área normativaantes de se tornar um Mercado Comum, objetivo do tratado de Roma de1957, e um Mercado Único, uma realização de 1992. Vale a pena observarque entre os vários projetos de integração do continente posteriores àSegunda Guerra Mundial, o de caráter comercial foi o mais bem-sucedi-do e de maior alcance.

Na arena mundial, também é sobretudo nos contextos comerciais quea União Européia realmente opera como um corpo único, por exemplo, naOMC, mas também é importante salientar que a regulamentação jurídi-ca e legal cumpriu um papel fundamental nessa unificação econômica.

O judiciário europeu – a Corte Européia de Justiça apoiada pelos ju-diciários nacionais dos estados-membros da Comunidade Econômica Eu-ropéia e da União Européia – constituiu uma importante força supranaci-onal na construção de uma nova Europa. A partir de algumas decisõesiniciais fundamentais – Van Gend en Loos (l963), Costa v. ENEL (l964),Internationale Handelsgesellschft (l970) – o Tribunal estabeleceu os princí-pios do efeito direto do Direito Comunitário, e de sua supremacia sobre odireito nacional, incluindo, dentro de sua área de jurisdição, sobre osdireitos constitucionais nacionais. No último caso mencionado, o tribu-nal declarou que “a validade de uma medida da Comunidade ... Nãopode ser afetada por alegações de que é contrária a ... Direitos funda-mentais formulados pela constituição do estado em questão ...” (Wou-ters, 2000: 46-7; cf. Bengoetsea et al., 2001).

Page 67: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 317

Em declarações mais pessoais, importantes juízes europeus considera-ram essas decisões judiciais como “tirar o direito da Comunidade dasmãos dos políticos e dos burocratas, e dá-lo ao povo” (de acordo comFederico Mancini, citado aqui a partir de Schepel e Blankenburg, 2001:11).Ademais, em seguida desenvolveu-se a prática de que os tribunais naci-onais consultassem a Corte Européia sobre como se deveriam interpretaro Tratado fundador e a legislação européia subseqüente.

A Corte Européia estabeleceu seus poderes gradual e cautelosamente(Schepel e Blankenburg, 2001), e com firmeza, eficácia e legitimidadetransnacionais impressionantes. Esta última foi recentemente questiona-da em parte, em alguns casos, é verdade, mas em um mundo formado porestados, o entrelaçamento regional de direito e jurisdição europeus enacionais, e a possibilidade de que indivíduos e organizações levem osgovernos de seus estados a um tribunal internacional em uma ampla gamade casos civis representam uma transformação histórica na soberania na-cional, que não se encontra em qualquer outra parte do mundo, emborainspire tentativas mais vagas de integração regional em todos os outroscontinentes.

TRADIÇÃO NA MODERNIDADE: HUGO GROTIUS

O comércio e o direito, juntamente com a religião cristã, têm sidotraços característicos da Europa por muito tempo. O Mediterrâneo, es-tendendo-se até o Mar Negro, foi durante um milênio o centro de impor-tantes cidades-estado, de Atenas a Veneza e Gênova, para as quais navi-gare necesse erat, bem como do mais poderoso império do continente. Osrios navegáveis, sobretudo o Reno, também fizeram com que o comércioprosperasse. Esse comércio e a religião salvacionista empurraram a Euro-pa para os oceanos, quando as rotas comerciais tradicionais do Orienteforam interrompidas com a ascensão da Casa do Islã.

O direito não era, obviamente, exclusividade da Europa, tampouco ocomércio, mas sua riqueza e complexidade o eram. Um corpus específicodo direito romano foi uma herança cultural central, diferenciada e elabo-rada na forma do Direito Canônico da Igreja e no direito secular (cf. Ber-man, 1983). A partir deste comércio transpolítico de longa distância e dafragmentação do poder e do direito seculares, desenvolveu-se na Europa

Page 68: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

318 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

medieval uma normatividade transpolítica específica, uma lex mercatoriaentre comerciantes, e uma normatividade entre príncipes cristãos.

A expressão política mais eloqüente dessa complexidade legal foi o“Sacro Império Romano Germânico”, que sobreviveu à Paz de Westfália,e que geralmente se supõe ter gerado um sistema de estados soberanos.Na verdade, a União Européia de hoje tem muito da complexidade doantigo Império, uma certa idéia de unidade, a qual é distribuída entreuma série de instituições e atores, um conjunto real de estados-membrosde caráter soberano, e que se mantém unida por uma liderança simbólica– antes um imperador, agora a Comissão – e por um judiciário supra-estatal – o Reichskammergericht (o Tribunal Cameral) e o Reichshofrat (oConselho Áulico), enquanto carece de uma administração adequada edispõe de meios militares apenas limitados ou condicionais (Gagliardo,1980: Parte I; Duchard 1990).

Na modernidade européia, o comércio e o direito foram associados peloadvogado, político, diplomata e intelectual erudito holandês do século XVIIHugo Grotius, tanto em sua pessoa quanto em sua obra. Na história dodireito, talvez ele seja conhecido principalmente como o fundador do direitointernacional, mas foi também um grande teórico do direito natural. Emuma perspectiva global atual, Grotius tem importância particular como teóri-co social que parte de um mundo de povos, e não de indivíduos, seja noâmbito ou no limite de uma sociedade nos moldes de um estado. Essa teoriainterestatal da sociedade e da política constituiu um pano de fundo para ateoria política de Hobbes (cf. Haakonsen, 1996: 1.3-1.4; Tuck, 1999: ap. 3).

Suas principais obras jurídicas tratavam da “liberdade dos mares” (MareLiberum, Grotius, 1609/1839/1983) e dos Direitos da Guerra e da Paz (Deiure belli ac pacis, 1625/1925), tópicos de grande importância em uma era derivalidade colonialista e guerras incessantes. O primeiro dos tratados cita-dos havia sido encomendado pela Companhia Holandesa das Índias Orien-tais, como defesa legal de seu questionamento à exigência portuguesa demonopólio do comércio com os molucanos. Como advogado de seu cliente,Grotius viria a apresentar argumentos eloqüentes também para as restri-ções sobre o livre acesso ao mar, da mesma forma que a Comunidade Eco-nômica Européia teve que fazer com suas negociações sobre a pesca com aInglaterra, a Dinamarca e a Noruega (Ehlermann, 1985).

Grotius apresentou uma antiga idéia européia de humanidade comouma comunidade na forma de uma divisão política e nacional, culminando

Page 69: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 319

em seu contemporâneo um pouco mais velho, o jurista jesuíta espanholFrancisco Suárez, que disse que “a humanidade, embora dividida em váriosestados e nações, constitui uma unidade política e moral ligada pela cari-dade e pela compaixão” (citado a partir de Pinto, 1985:48) – em uma basemais realista e mais seca. A humanidade tem um impulso social básico, umappetitus societatis, nas palavras de Grotius, a partir do qual se concluem,por meio do “ditado da reta razão”, certas regras minimalistas da coexistên-cia social. Seguindo-se a este direito natural, segundo Grotius, também sedesenvolve um “direito dos povos” (ius gentium), a partir da interdependên-cia de todos os estados, até mesmo dos mais poderosos, e com base no con-sentimento tácito e explícito (Grotius, 1625/1925/1985: 233ss).

O outro aspecto importante sobre Grotius neste contexto é seu movi-mento de ida e volta nas as relações entre estados e entre indivíduos ou,como diríamos hoje em dia, de forma anacrônica, ONGs. Tal capacidadeteve origem na íntima relação de empresas privadas e da política pública naRepública das Províncias Unidas, onde ele começou como advogado daCompanhia das Índias Orientais e foi designado para o equivalente maispróximo de um cargo de premiê, do qual acabou sendo derrubado em1618. Em nenhum lugar isso se expressa melhor do que em sua obra OsDireitos de Guerra e Paz (De iure belli ac pacis), na qual uma guerra justa,para proteger os próprios direitos que tenham sido violados, pode ser umabellum privatum, uma guerra privada, bem como pública, do estado.

Essa normatividade trans-comunidades políticas se destaca por servircomo ponto de partida para a teorização moderna sobre indivíduos e di-reitos individuais em uma sociedade construída como estado. No princí-pio, havia estados (ou príncipes), as relações entre eles e as normas queas deveriam governar; a seguir, vieram os indivíduos e o contrato social.O universalismo moral dos philosophes do iluminismo incluía também umaconsciência das divisões políticas da sociedade refinada.

A longa experiência histórica de ser parte de um sistema interestatal,bem como de uma área normativa, predispõe a Europa contemporânea auma normatividade transnacional, ao invés de uma dualidade entre uni-versalismo moral e unilateralismo político, típica dos Estados Unidos.

No entanto, se eu estiver mais ou menos correto até aqui, por que seouviu e se leu tão pouco anteriormente, no discurso público contemporâ-neo, sobre a Europa de comerciantes e advogados? Façamos primeira-mente uma pequena excursão teórica.

Page 70: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

320 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

POSIÇÃO, PAPEL E IDENTIDADE

Tratamos acima basicamente da posição da Europa no mundo. Ou seja,de algum objetivo, não necessariamente internacional ou mesmo inte-gralmente notado, resultante de recursos e ações. A “posição” nesse sen-tido, pode ser distinguida de dois conceitos relacionados, os de “papel” e“identidade”.

O “papel” costuma ser tomado na sociologia como um comportamentonormativamente esperado, como ação segundo o roteiro. Em termos ge-rais, o conceito tem servido bem às ciências sociais. Contudo, existe tam-bém uma concepção mais subjetiva de papel, enfatizando a aspiração e odesempenho, em lugar das normas. Um papel, assim, pode ser visto comoa função social que se quer desempenhar. É esta definição que me parecemais frutífera para lidarmos com os atores supostamente soberanos, comoos estados.

A identidade, em terceiro lugar, é a concepção acerca de si, de queme o que se é, o self que tem uma posição, seja boa ou má, justa ou injusta,e o qual quer cumprir um determinado papel no mundo.

As posições de comerciante e advogado não parecem ter um lugarmuito destacado nos papéis pelos quais os líderes europeus lutam no pal-co mundial, particularmente não a posição definida de centro comercial.Tampouco encontramos muito de comércio e direito em formulações deidentidade européia, que têm tendido a se concentrar no legado cultu-ral, na etnicidade (no caso do europeísmo nazista) e no sistema de estadopluralista (cf. Delanty, 1995; Pocock, 1997). Na Declaração de Laeken,de dezembro de 2001, sobre o futuro da União Européia, a Europa foidefinida de forma característica como “o continente dos valores huma-nos” (EU, 2001: 20), uma fórmula que consegue ser simultaneamenteautocongratuladora e vaga.

As ex-Grandes Potências da Europa aspiram a um papel para o conti-nente, de comunidade política com porte de grande potência, capaz deintervenções militares e diplomacia da força, e vislumbram a questão daidentidade européia a partir dessa perspectiva. Nessa visão, a identidadedo continente deve ser definida pelo jogo de poder global. Na linguagemdo Tratado da União Européia de 1992, os estados-membros estão “resol-vidos a executar uma política externa e de segurança que inclua a defini-

Page 71: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 321

ção, a prazo, de uma política de defesa comum... fortalecendo assim aidentidade européia” (Conselho das Comunidades Européias, 1992:4).

O ENRAIZAMENTO SOCIAL DO COMÉRCIOE A TRANSNACIONALIDADE DEMOCRÁTICADO DIREITO

Entretanto, existe também um conjunto de razões mais complexo doque o caráter da atual classe política, para a postura contemporânea daEuropa sobre comércio e direito. A Europa de hoje em dia não é umarepetição de suas tradições; o comércio e o direito no continente foramambos transformados.

A posição singular que o comércio e o direito ocupam na EuropaOcidental dos dias atuais, tomada do ponto de vista global, não significaque a sociedade européia seja composta de vendedores e advogados, emnenhum grau particularmente elevado.

As características específicas do comércio europeu são seu caráterinternacional – a elevada proporção do que tradicionalmente se chamoude comércio exterior – e seu enraizamento social. O iluminismo escocês,Adam Smith, John Millar e outros, consideravam a sociedade pós-agráriaque então surgia como uma “sociedade comercial”. Na verdade, a Euro-pa pós-agrária se tornou uma sociedade industrial, e a única na históriado mundo, no sentido de uma predominância industrial no emprego não-agrícola, algo que jamais aconteceu nos Estados Unidos ou no Japão, eque não irá acontecer no Brasil, na China ou na Índia de amanhã.

A sociedade industrial européia foi, por diversas razões, singularmenteconsciente e organizada em termos de classes (veja mais em Therborn, 1995).

Em meio a uma agitação de lutas de classe, isso resultou em uma com-binação sócio-econômica que surpreenderia a teoria econômica conven-cional, o exportador bem-sucedido com direitos sociais generosos. Osgastos sociais públicos são muito mais altos na União Européia do que nosEstados Unidos ou no Japão – respectivamente 28, 16 e 14% do PIB nofinal da década de 90 (Eurostat, 2001: 111; OMT, 2000: Tabela 14). Entreos países da OECD, a Organização para a Cooperação Econômica e De-

Page 72: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

322 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

senvolvimento, existe uma correlação positiva importante entre a depen-dência de exportações do mercado mundial, por um lado, e os gastossociais, por outro, que no início dos anos 90 tinha um coeficiente de 0,34(Therborn, 1999:249).

Por toda a Comunidade Econômica Européia/Comunidade Européia/União Européia, o enraizamento do Mercado Comum e, em termos maisgerais, do livre comércio, está corporificado sobretudo na política agríco-la. Cerca de metade do orçamento da integração do continente é dedi-cado à preservação do modo de vida de seus agricultores.

Em síntese, o papel social e, provavelmente, a identidade do europeu,são os de cidadão do estado de bem-estar social, e não de vendedor.

Os tribunais nunca tiveram, nas comunidades políticas européias mo-dernas, uma importância comparável à que tiveram, e ainda têm, nosEstados Unidos. O Rechtstaat, um estado de direito, parte importante daconcepção européia de estado moderno, desenvolveu-se na Europa pré-democrática, o estado de luta popular centrada na democracia, e não nodireito, no voto e na responsabilidade executiva diante do parlamento.Apenas na República Federal da Alemanha do pós-guerra, um tribunal, oTribunal Constitucional, adquiriu um destaque político, com inspiraçãooriginal dos Estados Unidos.

O lugar do direito na Europa não é sintetizado pelo papel do advogadoou do juiz. Ao invés disso, é o direito como parte de uma normatividadedemocrática e transnacional. “Democrática”, portanto, em um sentidopopular e republicano, com conotações de vontade e necessidades popu-lares, mais do que liberdades e litígio individuais. Uma concepção deri-vada das lutas de princípios, na Europa, pela democracia e contra ela(Therborn, 1992). A normatividade transnacional – ou, de forma menosanacrônica, as trans-comunidades políticas – é uma antiga tradição docontinente, a partir da qual refletiu Hugo Grotius. A Idade Média com-binou um conjunto de comunidades políticas fragmentado, mas interliga-do de forma complexa, com um padrão normativo comum, a religião cris-tã, o direito romano e o direito canônico, o qual foi posto de lado nasguerras contra e a favor da Revolução Francesa, e nas Guerras Mundiais,para ressurgir de forma mais clara.

Page 73: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 323

A RELEVÂNCIA E AS LIMITAÇÕES DA EUROPA

A despeito de sua origem antiga e especial, as tradições européiasmodificadas de comércio socialmente enraizado e normatividade demo-crática transnacional respondem, sim, pode-se dizer, às necessidades edemandas gerais do mundo atual. A abertura às inovações tecnológicas eaos desafios de produtividade, enquanto se preservam contextos socio-culturais e ambientais únicos e, além disso, normas mundiais dos direitoshumanos, respeitando diferentes manifestações populares, constituiriaimportante contribuição para uma sociedade global decente.

Os políticos das outrora grandes potências da Europa não têm a mes-ma opinião. Em Paris e Londres, e igualmente em Berlim e Roma, elesainda optam pelos “heróis” em detrimento dos “comerciantes”, como dis-se em 1915 o grande historiador econômico nacionalista alemão WernerSombart (Sombart, 1915). Na recente abertura da Convenção sobre oFuturo da Europa, o ex-presidente francês Giscard d’Estaing expressoueducadamente as aspirações dos líderes dos antigos grandes estados: “setivermos sucesso, (...) o papel da Europa será transformado (...) ela serárespeitada e ouvida, não apenas como a potência econômica que já é,mas como força política que irá falar de igual para igual com a maiorpotência em nosso planeta (...) (Financial Times, 3.1.02, p.2).

Um observador externo acrescentaria três coisas a tal elaboração, porsi só bastante legítima. Primeiramente, ela é parte de uma esquizofreniadebilitante dos políticos europeus, a um tempo visivelmente ressentidoscom sua subordinação aos americanos e de um servilismo sicofanta. “Osamericanos estão absolutamente certos...”, Tony Blair jamais se cansa derepetir, enquanto Gerhard Schröeder descobriu, em sua campanha elei-toral, que a opinião pública alemã tem se tornado sensível a um certoafrouxamento condicional da “solidariedade incondicional” anterior paracom os Estados Unidos. Em segundo lugar, o anseio dos políticos euro-peus de jogar de igual para igual com o Pentágono é ingênuo, pois esteabsorve mais de um terço de todos os gastos militares do mundo, e orecente aumento no orçamento de gastos militares dos Estados Unidosrepresenta mais do que o dobro do total militar da Alemanha (Kennedy,2002: 146; Sommer, 2002: 4). Em terceiro, ao ignorar sua própria posiçãoreal e assumir uma identidade deslocada ou anacrônica, os europeus fra-cassam em seu papel global mais importante. Para os políticos ingleses,franceses e alemães, em particular, é compreensivelmente difícil aceitar

Page 74: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

324 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

um papel para a Europa como sendo a Escandinávia do mundo, isto é, umlugar decente com uma ampla gama de aspirações institucionais e emtermos de políticas, mas sem aspirações de poder, e sem poder. Entretan-to, ao se identificar com os Estados Unidos e com a política mundial comosendo uma política das grandes potências, os europeus não conseguemobservar e apreciar a posição real da Europa do mundo, e adotar um papelsociopolítico adequado a defender as contribuições positivas específicasdo continente a ele.

Existe uma base, argumenta-se neste artigo, na centralidade da Eu-ropa nos fluxos econômicos globais e em sua longa e revigorada experiên-cia de normatividade transnacional, para um papel europeu de “potênciaque busca estabelecer a globalização dentro de um quadro moral”, naspalavras da declaração de Laeken. Até que ponto essa base, que é eco-nômica, normativa e institucional, em lugar de política e militar, serárealmente utilizada, é uma questão aberta.

REFERÊNCIAS

Bengoetxea, J., MacCormick, N. e Moral Soriano, L. (2001) “Integration and Integrityin the Legal Reasoning of the European Court of Justice”, in G. De Burca e J.H.H.Weiler (orgs.), The European Court of Justice, pp. 43-85. Oxford: Oxford UniversityPress

Berman, H. (1983) Law and Revolution. The Formation of the Western Legal Tradition.Cambridge Mass.: Harvard University Press.

Bundeszentrale für politische Bildung (l999) Menschenrechte. Dokumente undDeklarationen. Bonn: Bundeszentrale für politische Bildung.

Casanova, P. (1999) La République mondiale des lettres. Paris: Seuil.

Cass, D. (2001) “The ‘Constitutionalization’ of International Trade Law: Judicial Norm-Generation as the Engine of Constitutional Development in International Trade”European Journal of International Law 12 (1): 39-76

Council of the European Communities (1992) Treaty on the European Union Brussels-Luxembourg: European Union

Davies, N. (1996) Europe: a History. Oxford: Oxford University Press

Delanty, G. (1995) Inventing Europe. Basingstoke: Macmillan

Page 75: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 325

Detrick, S. (org.) (1992) The United Nations Convention on the Rights of the Child. AGuide to the “Travaux Préparatoires” . Dordrecht/Boston/Londres: Martinus Nijhoff

Duchhardt, H. (1990) Altes Reich und europäische Staatenwelt 1648-1806 Munique: R.Oldenbourg

Ehlermann, C.D. (1985) “Grotius and the European Community’s Common FisheriesPolicy”, pp. 294-97. in International Law and the Grotian Heritage, Haia: T.M.C.Asser Instituut

EU (2001) Laeken Declaration on the Future of the European Union, Anexo 1 às conclu-sões da presidência, Laeken, 14 e 15 de dezembro de 2001, Bruxelas, SN 300/1/01Rev 1.

Eurostat (2001) The social situation in the European Union Luxemburg: Eurostat

Ferro, F. (l994/ 1997) Colonization A Global History Londres: Routledge

Gagliardo, J. (l980) Reich and Nation The Holy Roman Empire as Idea and Reality, 1763-1806. Bloomington eLondres: Indiana University Press

Glendon, M. A. (2001) A Word Made New. Nova Iorque: Random House

Grotius, H. (1609/1916/1983) Mare Liberum, English “The Freedom of the Seas” (trad.F. van Deman Magoffin 1916), pp. 59 –93 in L.E. van Holk e C.G. Roelofsen(orgs.), Grotius Reader Haia: T.M.C. Asser Instituut 1983

Grotius, H. (1625/1839/1925/1983) De iure belli ac pacis, Edição em latim de 1839 etradução para o inglês (F. Kelsey, l925), bilingual extracts, pp. 223-38 in L.E. vanHolk and C.G. Roelofsen (orgs.) Grotius Reader. Haia: T.M.C. Asser Instituut 1983

Haakonssen, K. (l996) Natural Law and Moral Philosophy : Cambridge: CambridgeUniversity Press

ILO (2000) World Labour Report 2000 Genebra: OMT

Kennedy, D. (2002) “Der 500-Pfund-Gorilla” Der Spiegel Nr 6 146-49

Maddison, A. (1995) Monitoring the World Economy 1820-l992. Paris: OECD,

Mommsen, W., e De Moor, J.A. (orgs.) (1992) European Expansion and Law. Oxford/Nova Iorque: Berg OECD (2000) Economic Outlook 67, Paris

O’Rourke, K. e Williamson, J. (1999) Globalization and History. Cambridge, Mass.: MITPress

Pinto, M.C.W. (1985) “The New Law of the Sea and the Grotian Heritage”, pp. 54-93in International Law and the Grotian Heritage, Haia: T. M. C. Asser Instituut

Page 76: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

326 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Pocock, J.G.A. (1997) “What Do We Mean by Europe?” The Wilson Quarterly, (Inver-no): 1-20

Schepel,H. e Blankenburg, E. (2001) “Mobilizing the European Court of Justice”, pp.9-42 in G. De Burca e J.H.H. Weiler (orgs.), The European Court of Justice Oxford:Oxford University Press

Sombart, W. (1915) Händler und Helden. Munique/Leipzig: Duncker & Humblot

Sommer, T.(2002) “Die Achse der Betonköpfe Die Zeit” 28.2: 4

Spence, J. (1990) The Quest for Modern China. Nova Iorque/Londres: Norton

Steiner, H. E Alston, Ph. (l996) (orgs.), International Human Rights in Context. Oxford:Clarendon Press

Therborn, G. (l992) “The Right to Vote and the Four World Routes to/through Modernity”.In R. Torstendahl (org.), State Theory and State History. Londres: Sage.

Therborn, G. (l995) European Modernity and Beyond. The Trajectory of European Societies,1945-2000. Londres: Sage

Therborn, G. (l999) “The Global Future of the European Welfare State”, pp. 242-62 inG. Therborn (org.), Globalizations and Modernities. Experiences and Perspectives ofEurope and Latin America, Estocolmo, FRN

Tuck, R. (1999) The Rights of War and Peace. Political Thought and International Orderfrom Grotius to Kant Oxford: Clarendon Press

UNCTAD ( 2001) World Investment Report 2001. Genebra: UNCTAD

Untermeyer, L. (s.d.) The Albatross Book of Living Verse. Londres: Collins

Wang Tieya (1985) “China and International Law. A Historical Perspective”, pp. 260-54 in International Law and the Grotian Heritage, Haia: T. M. C. Asser Instituut

Woodruff, W. (1973) “The Emergence of An International Economy”, pp. 656-737 inC. Cipolla (org.), The Fontana Economic History of Europe, vol. 4:2, Londres:Fontana/Collins

Wouters. J. (2000) “National Consciousness and the European Union” Legal Issues ofEuropean Integration 27(1): 25-74

Organização Mundial do Comércio (2001) Relatório Anual 2000, Genebra: WTO

Zacchia, C. (1976) “International Trade and Capital Movements 1920-1970”, pp. 509-602 in C. Cipolla (org.), The Fontana Economic History of Europe, vol. 5:2, Lon-dres: Collins/Fontana

Page 77: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 327Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.327-383

O Direito Fundamental à Moradia naConstituição: Algumas Anotações a

Respeito de seu Contexto, Conteúdo ePossível Eficácia

The fundamental right to dwelling inBrazilian Constitution: some notes

about its context, content andpossible efficacy

INGO WOLFGANG SARLET

* Doutor em Direito pela Universidade de Munique (Ludwig-Maximilians-Universität), Alemanha.Professor Adjunto de Direito Constitucional na Faculdade de Direito e no Programa de Pós-Graduação em Direito(Mestrado e Doutorado) da PUC/RS, onde também integra a Comissão Coordenadora. Juiz de Direito no RS e

professor de Direito Constitucional da Escola Superior da Magistratura (AJURIS). Pesquisador (bolsista) doInstituto Max-Planck de Direito Social Internacional e Estrangeiro em Munique.

RESUMO

O autor analisa a inserção no âmbito dos direitos fundamentais do direito àmoradia, tecendo considerações sobre seu conteúdo e eficácia.Palavras-chave: Direito à moradia, Direitos Fundamentais, eficácia dos direi-tos fundamentais, conteúdo essencial dos direitos fundamentais.

O presente trabalho foi originalmente publicado na coletânea Arquivos de Direitos Humanos, vol. IV, pelaEditora Renovar, Rio de Janeiro, 2002, obra coordenada pelos Professores Ricardo Lobo Torres e CelsoAlbuquerque Mello.

Page 78: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

328 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

ABSTRACT

The author analyses the dwelling right insertion into the scope of fundamentalrights, commenting on its content and efficacy.Key words: Dwelling right, fundamental rights, fundamental right efficacy, es-sential content of fundamental rights.

NOTAS INTRODUTÓRIAS

Com a recente inclusão do direito à moradia no rol dos direitos funda-mentais sociais expressamente enunciados no artigo 6º da ConstituiçãoFederal de 1988, e não obstante a constatação de que a nossa ordem jurídi-ca, em certa medida, já reconhecia e protegia a moradia mesmo no planoconstitucional (aspecto que será objeto de oportuno exame), não há comonegar que a questão da moradia, agora inequivocamente (pelo menos, nonosso entender) guindada à condição de direito fundamental, assume –pela ótica da ordem jurídica - feições novas, reclamando, talvez mais doque nunca, especial atenção por parte dos que se ocupam do tema, sejapela razão apontada, seja, entre outros motivos, pelo incremento galopanteda exclusão social no nosso país e pelo conseqüente agravamento do anti-go, mas lamentavelmente cada vez mais atual problema do acesso a umamoradia digna para largas parcelas da nossa população.

A partir do exposto e passando desde logo a anunciar os objetivos espe-cíficos deste trabalho, buscaremos, num primeiro momento, traçar um bre-ve perfil do direito à moradia a partir da sua condição de direito fundamen-tal expressamente consagrado na nossa ordem jurídico-constitucional, si-tuando o direito à moradia no contexto da teoria geral dos direitos funda-mentais. A seguir, após tecermos algumas considerações a respeito do quese poderia designar de crise do Estado democrático de Direito e dos direi-tos fundamentais, passaremos a nos ocupar com a evolução, fundamenta-ção e objeto do direito à moradia. No último segmento, à luz das premissase pressupostos teoréticos lançados, empreenderemos a tentativa de identi-ficar e analisar, à luz de alguns exemplos, pelo menos parte das possíveisaplicações concretas do direito à moradia, na condição de direito funda-mental da pessoa humana, pela ótica de sua eficácia e efetividade. Porderradeiro, convém consignar que renunciamos, desde logo, a qualquerpretensão de completude, já em face da miríade de aspectos e questiona-

Page 79: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 329

mentos que o tema suscita, mas também pelos limites impostos pelas dimen-sões deste texto. Assim, enfatizamos apenas o nosso propósito de contribuir,de alguma forma, para a discussão não apenas do conteúdo, significado eeficácia, do direito fundamental à moradia, mas, acima de tudo, das alter-nativas que a ordem jurídica oferece para a superação dos graves e angus-tiantes problemas que a realidade nos impõe.

DIREITOS FUNDAMENTAIS: ALGUMASPREMISSAS DE CUNHO TERMINOLÓGICO ECONCEITUAL

Para efeito deste ensaio e cientes de que não se deve hipostasiar arelevância do problema, partiremos aqui da constatação de que é possíveltraçar uma distinção entre direitos humanos e fundamentais, que, paraalém da dimensão meramente semântica, tenha condições de alcançaralguma relevância de ordem prática.

A propósito, convém registrar, desde logo, que o próprio Constituinte de1988 consagrou expressamente esta distinção terminológica, o que já bas-taria para que se a devesse levar a sério.1 Tal distinção – em que peseoutros possíveis fundamentos – já encontra sua razão de ser na existênciade diversos planos ou esferas de positivação, notadamente na constatação– chancelada por expressiva doutrina – de que o termo “direitos funda-mentais’ aplica-se para aqueles direitos da pessoa reconhecidos e positiva-dos na esfera do direito constitucional de determinado Estado,2 ao passoque a expressão “direitos humanos guarda relação com os documentos dedireito internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se atri-buem ao ser humano como tal (hoje já reconhecendo-se a pessoa comosujeito de direito internacional), independentemente de sua vinculaçãocom determinada ordem constitucional, e que, portanto, aspiram à valida-de universal, revelando um inequívoco caráter supranacional.3

1 Basta referir, neste contexto, o art. 4º, inciso II, dispondo sobre o princípio da “prevalência dos direitoshumanos” no âmbito das relações entre o Brasil e os demais Estados, assim como o Título II da nossaConstituição, portando a epígrafe “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.

2 Assim, por exemplo, CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 3ª ed.Coimbra: Almedina, 1999, p. 369.

3 Neste sentido, por todos, MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Ed.,1992, v. 4, p. 51-52.

Page 80: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

330 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

O que importa, ao fim e ao cabo - e abstraindo da correção do critériodistintivo mencionado - é a constatação de que a opção pela terminolo-gia direitos fundamentais visa, acima de tudo, destacar a relevância dasposições jurídicas como tais consideradas para a ordem constitucional einternacional, de tal sorte que também os assim designados direitos hu-manos (plano internacional) sempre compartilharão da nota característi-ca da fundamentalidade, vista aqui pelo prisma substancial, isto é, daimportância e essencialidade das posições jurídicas para a pessoa huma-na, fundamento de sua especial proteção pela ordem jurídica internacio-nal e/ou interna.4

Por outro lado, é certo que, como regra geral – excepcionando-se aquiuma possível fundamentalidade formal dos direitos assegurados no âmbitoeuropeu (pelo menos, os constantes da Convenção Européia de DireitosHumanos)5 – , ainda vale a observação de que, em princípio, apenas osdireitos constitucionalmente reconhecidos e protegidos, caracterizam-sepor uma dupla fundamentalidade material e formal, esta, por sua vez, sem-pre dependente das peculiaridades de cada ordem constitucional. No casoda Constituição Brasileira, a fundamentalidade formal, desdobra-se em trêselementos, já largamente reconhecidos: a) como parte integrante da Cons-tituição escrita, os direitos fundamentais (e, portanto, também o direito àmoradia) situam-se no ápice do ordenamento jurídico, cuidando-se, pois,de normas de superior hierarquia; b) ainda na condição de normas funda-

4 Por esta razão, justifica-se a tendência relativamente recente, entre nós, no que diz com a utilização, peladoutrina, da expressão Direitos Humanos Fundamentais, abrangendo as esferas nacional e internacionalde positivação. Neste sentido, v., entre outros, FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos HumanosFundamentais. São Paulo: Saraiva, 1996, assim como MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais.São Paulo: Atlas, 1997.

5 Como suporte desta afirmação, poder-se-á levar em consideração a existência tanto de instâncias supranacionaisreconhecidas e efetivas na proteção dos direitos fundamentais consagrados na Convenção Européia,quanto a igualmente reconhecida vinculatividade da Convenção em relação aos Estados signatários. Este,aliás, apenas um dos diversos elementos que têm levado boa parte da doutrina a sugerir ou mesmo aclamara existência até de um direito constitucional europeu e mesmo internacional em matéria (não exclusiva,mas principalmente) de direitos humanos. Sobre este ponto, no que diz com a experiência européia, v.,entre outros, PIRES, Francisco Lucas. Introdução ao Direito Constitucional Europeu. Coimbra: Almedina,1997. Referindo-se ao plano internacional, lembrem-se – dentre outros no âmbito da doutrina pátria quejá vem se ocupando do tema - as relevantes contribuições de MELLO, Celso D. Albuquerque. DireitoConstitucional Internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 1994, assim como PIOVESAN, Flávia. Direitos Huma-nos e o Direito Constitucional Internacional. São Paulo: Max Limonad, 1996. Mais recentemente, comentandoa nova Carta de Direitos Fundamentais da União Européia, apontou-se para a dupla dimensão formal ematerial das posições jurídicas ali consagradas, notadamente quando a Carta alcançar sua plenavinculatividade. Neste sentido, o ponto de vista de CANOTILHO, José Joaquim Gomes. “CompreensãoJurídico-Política da Carta”. In: RIQUITO, Ana Luísa et al. Carta de Direitos Fundamentais da UniãoEuropéia. Coimbra: Coimbra Ed., 2001, p. 11.

Page 81: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 331

mentais insculpidas no corpo da Constituição, encontram-se submetidasaos limites formais (procedimento agravado para a modificação dos precei-tos constitucionais) e materiais (as assim designadas “cláusulas pétreas”)da reforma constitucional; c) por derradeiro, nos termos do que dispõe oartigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição, as normas definidoras de direitos egarantias fundamentais são imediatamente aplicáveis e vinculam direta-mente as entidades estatais e os particulares.6

Apesar da distinção apontada, calcada basicamente naquilo que PérezLuño denominou de critério da “concreção positiva7 , verifica-se não haverincompatibilidade (pelo menos não com base no critério adotado) entre am-bas as categorias (direitos humanos e fundamentais), do que dá conta justa-mente a incorporação ao direito interno, inclusive com hierarquia constitu-cional, em muitos casos, dos tratados internacionais em matéria de direitoshumanos ou mesmo a tendência revelada por expressivo número de consti-tuições modernas, seja no sentido de agasalhar em seu texto expressamenteos direitos que vem sendo reconhecidos no plano internacional, seja pelaprevisão de uma cláusula geral de abertura aos direitos garantidos no direitointernacional convencional.8 O direito à moradia é justamente uma provainquestionável deste processo, já que se cuida, também entre nós, simulta-neamente de direito humano (reconhecido e protegido na esfera internacio-nal) e fundamental (constitucionalmente assegurado). Como isto acaba porgerar importantes conseqüências até mesmo na esfera da eficácia e efetivida-de, ainda teremos oportunidade de verificar neste estudo.

O CONTEXTO: GLOBALIZAÇÃO, EXCLUSÃO SOCIALE A CRISE DO ESTADO DEMOCRÁTICO (E SOCIAL)DE DIREITO E DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Ainda que se pudesse reduzir a presente abordagem à esfera estrita-mente dogmática (jurídico-positiva) – o que, por si só (especialmente em

6 O fato de os três pilares da fundamentalidade formal terem sido amplamente reconhecidos (até mesmo porconsagrados expressamente pelo Constituinte), não significa, por óbvio, que não se faça presente acirradacontrovérsia a respeito de aspectos relevantes vinculados aos mesmos, tal como revela a discussão em tornoda aplicabilidade imediata das normas definidoras de direitos sociais na sua dimensão prestacional, avinculação direta dos particulares e o alcance das assim denominadas “cláusulas pétreas” (que, paraalguns, não abrangem os direitos sociais), apenas para mencionar alguns dos pontos mais polemizados.

7 Cf. PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los Derechos Fundamentales. 6a ed. Madrid: Tecnos, 1995, p. 46-47.8 Neste sentido já nos havíamos posicionado no nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 2ª ed. Porto Alegre: Livraria

do Advogado, 2001, p. 35, onde, de resto, a questão terminológica e conceitual restou bem mais desenvolvida.

Page 82: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

332 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

se cuidando de uma perspectiva dogmática assumidamente não isenta decompromisso com a dimensão axiológica e principiológica dos direitos fun-damentais e do Direito), não seria um defeito, mas sim, uma perspectivaindispensável de análise - julgamos oportuno tecer algumas considera-ções, ainda que sumárias, a respeito do contexto no qual se insere a pro-blemática jurídica da eficácia e efetividade dos direitos fundamentais,com especial atenção para os direitos sociais. Tal já restaria justificado,em se considerando que um dos principais argumentos contrários ao re-conhecimento de direitos subjetivos a prestações sociais (aspecto que aquinão iremos desenvolver) encontra seu fundamento na dependência des-tes direitos da realidade sócio-econômica e, acima de tudo, da semprelimitada capacidade prestacional do poder público.

Sem que se vá, por ora, adentrar o mérito da discussão em torno dapossível eficácia jurídica e social dos direitos fundamentais sociais, limi-tar-nos-emos, neste segmento, a apontar alguns efeitos da globalizaçãoeconômica sobre o Estado democrático (e social) de Direito e, de modoparticular, sobre os direitos fundamentais, cientes, todavia, de que a glo-balização (e suas diversas formas de manifestação) é apenas um dos ele-mentos (embora de longe um dos mais significativos) que marcam o con-texto no qual hoje se insere a problemática dos direitos fundamentais,ombreando em importância talvez apenas com os crescentes níveis deexclusão social (por sua vez também creditada - em boa parte - aos efeitosnegativos da globalização), tudo contribuindo para uma ampla crise doEstado, do Direito e dos Direitos Fundamentais.

Já por estas razões cumpre que se tome a sério a advertência que nosfaz Gomes Canotilho ao referir que “o Direito Constitucional, a Consti-tuição, o Sistema de Poderes e o sistema jurídico dos direitos fundamen-tais já não são o que eram”,9 o que nos remete a uma série de questiona-mentos, inclusive sobre o papel a ser desempenhado hoje pelo Estado,pela Constituição e pelos direitos fundamentais. Dada a amplitude e re-levância destas questões, contentar-nos-emos aqui em apontar alguns dosefeitos da globalização sobre o Estado democrático e social de Direito, natentativa de identificar e situar minimamente, neste contexto, a cada vezmais aguda crise de efetividade e identidade da Constituição e dos direi-tos fundamentais. Por outro lado, mesmo que não se possa refutar a exis-tência da referida crise, não há como negligenciar que a nossa Constitui-

9 Cf. CANOTILHO, J. J. Gomes. Sobre o Tom e o Dom dos Direitos Fundamentais. Revista Consulex 45: 38, set.de 2000.

Page 83: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 333

ção – ainda que não sejam poucos a investir furiosamente contra isto –consagrou (pelo menos na esfera jurídico-positiva) um Estado democráti-co (necessariamente comprometido com a justiça social) de Direito10 eum significativo elenco de direitos fundamentais de todas as dimensões(ou gerações), que abrange um extenso rol de direitos sociais.

Na medida em que – por conta da política e da economia do “Estadomínimo” propalado pelo assim designado “consenso neoliberal”11 - aumen-ta o enfraquecimento do Estado democrático de Direito (necessariamenteum Estado “amigo” dos direitos fundamentais) e que esta fragilização doEstado e do Direito tem sido acompanhada por um incremento assustadordos níveis de poder social e econômico exercidos pelos grandes atores docenário econômico, que justamente buscam desvencilhar-se das amarrasdo poder estatal, coloca-se a indagação a respeito de quem poderá, comefetividade, proteger o cidadão e – no plano internacional – as sociedadeseconomicamente menos desenvolvidas. Neste sentido, insere-se a agudaobservação de Ferrajoli, alertando para a crise vivenciada pelos sistemasdemocráticos, identificando o surgimento daquilo que denomina de “em-presas-partido” e “empresas-governo”, já que as privatizações e a crescentedesregulamentação têm tido como seqüela um aumento da confusão entreos interesses do governo e os interesses privados dos agentes econômicos,por sua vez, cada vez mais entrincheirados no próprio Estado (governo), eque estão capitaneando o processo de flexibilização e, por vezes, de quaseaniquilamento de boa parte das conquistas sociais.12

Colocada em risco a democracia e enfraquecido o papel do Estado nasua condição de promover e assegurar os direitos fundamentais e as insti-tuições democráticas13 , a própria noção de cidadania como direito a ter

10 Aqui – ainda que se reconheça a existência de argumentos significativos apontando para outra classificaçãodo que a adotada pelos ilustres autores – vale lembrar a lição de STRECK, Lênio Luiz & MORAIS, JoséLuís Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 83 eseguintes, destacando a dimensão necessariamente comprometida com a justiça social do Estado demo-crático de Direito.

11 Sobre a crise da democracia e as suas relações com o “consenso de Washington”, v. especialmente SANTOS,Boaventura Souza. Reinventar a Democracia: entre o Pré-Contratualismo e o Pós-Contratualismo. Coimbra:Oficina do Centro de Estudos Sociais, 1998, p. 17-19.

12 Cf. FERRAJOLI, Luigi. El Estado Constitucional de Derecho Hoy: el Modelo y su Divergência de laRealidad. IN: IBAÑEZ, Perfecto Andrés (org.). Corrupción y Estado de Derecho. Madrid: Trotta, s/d , p. 16e seguintes.

13 Cumpre registrar, neste sentido, a advertência de FARIA, José Eduardo. “Democracia e Governabilidade: osDireitos Humanos à Luz da Globalização Econômica”. In: FARIA, José Eduardo, (Org.). Direito e GlobalizaçãoEconômica: Implicações e Perspectivas. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 127 e seguintes, em instigante ensaiosobre o tema.

Page 84: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

334 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

direitos14 encontra-se sob grave ameaça, implantando-se, em maior oumenor grau, aquilo que Boaventura Santos denominou de “fascismo soci-etal”.15 Para além disso, o incremento assustador dos índices de exclusãosocial – em boa parte tributável aos efeitos negativos da globalização eco-nômica – igualmente constitui fator de risco para a democracia. Comobem lembrou Friedrich Müller, em instigante palestra proferida em PortoAlegre, exclusão social e democracia (esta considerada na sua dimensãomaterial) são categorias incompatíveis entre si: a primeira leva inexora-velmente à ausência da segunda.16

Neste mesmo contexto, há que deixar registrada a observação de JoséEduardo Faria, para quem os segmentos excluídos da população, vítimasdas mais diversas formas de violência física, simbólica ou moral – resultan-tes da opressão socioeconômica – acabam não aparecendo como portadoresde direitos subjetivos públicos, não podendo, portanto, nem mesmo ser con-siderados como verdadeiros “sujeitos de direito”, já que excluídos, em mai-or ou menor grau, do âmbito de proteção dos direitos e garantias funda-mentais.17 Assim, percebe-se que a redução do Estado, que, de há muito –especialmente sob a forma de Estado democrático (e social) de Direito –transitou do papel de “vilão” (no sentido de principal inimigo da liberdadeindividual) para uma função de protetor dos direitos dos cidadãos,18 nem

14 Cf. a noção cunhada por Hannah Arendt, recolhida e divulgada, entre nós, por LAFER, Celso. A Reconstru-ção dos Direitos Humanos. São Paulo: Companhia das Letras, 1991, especialmente p. 146 e seguintes.

15 Cf. SANTOS, Boaventura Souza, op. cit., p. 23 e seguintes, dentre as diversas manifestações desta nova eperversa forma de fascismo, típica dos países tidos como periféricos ou em desenvolvimento, assumeespecial relevância a crescente segregação social dos excluídos (fascismo do “apartheid social”), de talsorte que a “cartografia urbana” passa a ser caracterizada por uma divisão em zonas ‘civilizadas”, onde aspessoas –ainda – vivem sob o signo do contrato social, com a manutenção do modelo democrático e daordem jurídica estatal, e em “zonas selvagens”, caracterizadas por uma espécie de retorno ao estado denatureza hobbesiano, no qual o Estado, a pretexto de manutenção da ordem e proteção das “zonascivilizadas”, passa a atuar de forma predatória e opressiva, além de subverter-se virtualmente a ordemjurídica democrática, o que, por sua vez, leva à afirmação – também a expressão cunhada por BoaventuraSantos - do fenômeno do“fascismo do Estado paralelo”.

16 Com efeito, para MÜLLER, Friedrich. Que Grau de Exclusão Social ainda pode ser tolerado por um SistemaDemocrático?. Revista da Procuradoria-Geral do Município de Porto Alegre. Porto Alegre: Unidade Editorialda Secretaria Municipal da Cultura. Edição Especial – Outubro 2000, especialmente p. 45 e seguintes,desenvolve a idéia de que a exclusão social acelerada e aprofundada pela globalização econômica, revela-se incompatível com um sistema democrático que efetivamente venha a merecer esta designação.

17 Cf. FARIA, José Eduardo, Democracia e Governabilidade..., cit., p. 145-146.18 Neste sentido, BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 8ª ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 344

e seguintes, que, ao retratar a evolução do Estado liberal de matriz burguesa para o assim denominadoEstado Social, destaca que com este modelo de Estado “o Estado-inimigo cedeu lugar ao Estado-amigo, oEstado-medo ao Estado-confiança, o Estado-hostilidade ao Estado-segurança...”.

Page 85: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 335

sempre significa um aumento da liberdade e fortalecimento da democra-cia. Com efeito, no âmbito da globalização econômica e da afirmação doideário neoliberal, verifica-se que a diminuição do Estado, caracterizadaprincipalmente pela desnacionalização, desestatização, desregulação e re-dução gradativa da intervenção estatal no domínio econômico e social,tem ocasionado, paralelamente ao enfraquecimento da soberania externae interna dos Estados nacionais (ainda que com intensidade variável emais acentuada na esfera dos países periféricos), um fortalecimento do po-der econômico, notadamente na dimensão supranacional.19

Que os fenômenos ligeiramente enunciados têm contribuído, entreoutros, para uma crise da sociedade, do Estado, do Direito e da cidada-nia, já constitui lugar comum. Que daí tenha resultado também umaampla crise na esfera dos direitos fundamentais, igualmente parece dis-pensar maiores comentários e tem sido largamente alardeado. Sem que sepretenda aqui aprofundar a discussão, nem mesmo rastrear todas as cau-sas e “sintomas” desta crise, verifica-se, contudo, que o aumento da opres-são socioeconômica, vinculado a menor ou maior intensidade do “fascis-mo societal” em um determinado Estado, tem gerado reflexos imediatosno âmbito dos direitos fundamentais, inclusive nos países tidos como de-senvolvidos. Dentre estes reflexos, cumpre destacar: a) a intensificaçãodo processo de exclusão da cidadania, notadamente no seio das classesmais desfavorecidas, fenômeno este ligado diretamente ao aumento dosníveis de desemprego e subemprego20 ; b) redução e até mesmo supressãode direitos sociais prestacionais básicos (saúde, educação, previdência eassistência social), assim como o corte ou, pelo menos, a “flexibilização”dos direitos dos trabalhadores;21 c) ausência ou precariedade dos instru-

19 Cf. a lição, entre outros, de GORENDER, Jacob. Estratégias dos Estados Nacionais diante do Processo deGlobalização. In: GADELHA, Regina M. F. (Org.). Globalização, Metropolização e Políticas Neoliberais. SãoPaulo: EDUC, 1997, p. 80 e seguintes, que, no entanto, sustenta a manutenção do papel de destaque doEstado nacional, muito embora com contornos diversos e mais atenuados.

20 A este respeito, v. também FARIA, José Eduardo, Democracia e Governabilidade..., cit., p. 143 e seguintes.21 É em face da erosão crescente dos direitos sociais,e econômicos e culturais, agregada ao aumento da pobreza e

dos níveis de desemprego estrutural, que Boaventura Souza SANTOS fala na transição – para os integrantesdas classes despossuídas – de um “estatuto da cidadania” para um estatuto de “lumpencidadania’, isto é, parauma “cidadania de trapos”, em se fazendo uma tradução literal do alemão (op. cit., p. 19). A respeito destefenômeno v. ainda – dentre outros – AZEVEDO, Plauto Faraco de. Direito, Justiça Social e Neoliberalismo. SãoPaulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1999, especialmente p. 96 e seguintes (versando a respeito das conseqüên-cias da globalização e do ideário neoliberal em geral), assim como, mais recentemente, SARMENTO, Daniel.“Direitos Sociais e Globalização: Limites Ético-Jurídicos ao Realinhamento Constitucional”. Revista deDireito Administrativo nº 223: 154-155, 2001, destacando que, no âmbito do quadro de desemprego, diminui e,por vezes, desaparece o poder de barganha dos trabalhadores e de seus sindicatos, contribuindo para oprocesso de flexibilização dos direitos trabalhistas.

Page 86: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

336 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

mentos jurídicos e de instâncias oficiais ou inoficiais capazes de controlaro processo, resolvendo litígios dele oriundos, e manter o equilíbrio social,agravando o problema da falta de efetividade dos direitos fundamentais eda própria ordem jurídica estatal.22

Esta assim denominada crise dos direitos fundamentais, ao menos nasua feição atual, a despeito de ser aparentemente mais aguda no âmbitodos direitos sociais (em função da redução da capacidade prestacional dosEstados, para citar o aspecto mais candente) é, contudo, comum a todos osdireitos fundamentais, de todas as dimensões (ou gerações, se assim prefe-rirmos), além de não poder ser atribuída – o que parece elementar, masconvém seja frisado – apenas ao fenômeno da globalização econômica oumesmo ao crescimento da pobreza. Basta, para ilustrar tal assertiva, apontarpara o impacto da tecnologia sobre a intimidade das pessoas, no âmbito dasociedade informatizada, bem como sobre o meio ambiente, assim como noque diz com o desenvolvimento da ciência genética, demonstrando queaté mesmo o progresso científico pode, em princípio, colocar também emrisco direitos fundamentais da pessoa humana.

Para além disso, cumpre sinalar que a crise de efetividade que atingeos direitos sociais, diretamente vinculada à exclusão social e falta decapacidade prestacional dos Estados, acaba contribuindo como elementoimpulsionador e como agravante da crise dos demais direitos, do que dãoconta – e bastariam tais exemplos para comprovar a assertiva – os cres-centes níveis de violência social, acarretando um incremento assustadordos atos de agressão a bens fundamentais (como tais assegurados pelodireito positivo), como é o caso da vida, integridade física, liberdade se-xual, patrimônio, apenas para citar as hipóteses onde se registram maiornúmero de violações.

Oportuno que se consigne, ainda, que a crise dos direitos fundamen-tais não se restringe mais a uma crise de efetividade, mas alcança inclu-sive a esfera do próprio reconhecimento e da confiança no papel exercido

22 Neste sentido, v. também FARIA, José Eduardo. “Direitos Humanos e Globalização Econômica: Notas parauma Discussão”. O Mundo da Saúde 22: 74, 1998, alertando para a perda de uma parte significativa dajurisdição por parte do direito positivo e das instituições oficiais, em face do policentrismo que caracterizaa economia globalizada, gerando, para além disso, um avanço de formas inoficiais ou não-oficiais deresolução dos conflitos, de tal sorte que se coloca a indagação de como os direitos fundamentais podem serassegurados de forma eficiente pelo poder público quando este é relativizado pelo fenômeno da globalização,no âmbito do qual a política (ao menos tendencialmente, poderíamos acrescentar) perde para o mercadoseu papel de instância privilegiada de deliberação e decisão.

Page 87: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 337

pelos direitos fundamentais numa sociedade genuinamente democrática.Sem que se possa aqui desenvolver este aspecto, constata-se, com efeito,uma crescente descrença nos direitos fundamentais. Estes, ao menos apartir da compreensível ótica da massa de excluídos , ou passam a serencarados como verdadeiros ‘privilégios’ de certos grupos (basta apontarpara a oposição entre os “sem-terra” e os “com terra’, os “sem-teto” e os“com teto”, bem como os “com-saúde” e os “com-educação” e os que aosmesmos não têm acesso). Da mesma forma, chama a atenção o quantotêm crescido as manifestações, nos mais variados segmentos da popula-ção, em prol da pena de morte, da desconsideração pelos mais elementa-res garantias da ampla defesa e do devido processo legal, do apoio à redu-ção da idade penal para os adolescentes, tudo revelando que cada vezmenos se toma a sério os direitos fundamentais.23 Que tal fenômeno – enisso provavelmente reside a maior ameaça – abre as portas para a mani-pulação e toda a sorte de medidas arbitrárias e erosivas do Estado demo-crático de Direito, ainda que sob o pretexto de serem indispensáveis paraa segurança social, parece evidente e reclama medidas urgentes.

Esquematicamente esboçado o contorno, não há, portanto, como negli-genciar o quanto o direito à moradia encontra-se inserido neste contexto epelo mesmo é agudamente influenciado. Que a discussão em torno da suaeficácia jurídica e social não pode passar ao largo das questões enunciados,notadamente no que diz com a capacidade de implementação por parte dopoder público e os limites da atuação judicial no que diz com a efetivaçãodeste direito, ainda será objeto de referência. Em verdade, uma breve visi-ta à periferia das grandes cidades brasileiras, já bastaria para revelar – demodo bem mais contundente do que uma pletora de dados estatísticos - oquanto também o direito à moradia (e a referência aos “sem-teto” nãoconstitui mero acaso) já “nasce” – em se considerando a sua incorporaçãoexpressa ao texto constitucional – marcado pela crise de efetividade, iden-tidade e confiança que assola os direitos fundamentais.

23 Apenas para citar exemplo recente ilustrando este fenômeno, chama-se a atenção para as diversas manifestaçõesveiculadas em importante jornal local (Zero Hora), oriundas de cidadãos de todas as classes sociais, idades eramos de atividade, apoiando publicamente a execução sumária, possivelmente (segundo apontam os noticiári-os) por integrantes da Brigada Militar, de supostos autores do homicídio de uma policial militar, ou, pelo menos,de notícias censurando o fato de os suspeitos da execução estarem sendo investigados e processados.

Page 88: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

338 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

MORADIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DAPESSOA HUMANA

Algumas notas a respeito da evolução doreconhecimento de um direito (fundamental) àmoradia no plano internacional e constitucional

Se partirmos do critério do reconhecimento expresso pela ordem jurí-dica positiva de um direito fundamental à moradia, deixando, portanto,de lado manifestações no plano da legislação infraconstitucional e atémesmo outros direitos fundamentais conexos, especialmente a função so-cial da propriedade, já consagrada pelas primeiras Constituições do Esta-do social de Direito ou dos Estados socialistas (já bastaria lembrar aquiasConstituições do México e da Alemanha [Constituição de Weimar],respectivamente, de 1917 e 1919), verifica-se ter sido na DeclaraçãoUniversal dos Direitos Humanos da ONU (1948), onde, pela primeiravez, restou consignado o reconhecimento, pela ordem internacional, dosassim denominados direitos econômicos, sociais e culturais, dentre os quaiso direito à moradia. Com efeito, de acordo com o artigo XXV (1) daDeclaração:

“todos têm direito ao repouso e ao lazer, bem como a umpadrão de vida capaz de assegurar a si e a sua famíliasaúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habi-tação, cuidados médicos, e serviços sociais indispensáveis,o direito à segurança em caso de desemprego, doença,invalidez, viuvez, velhice, ou outros casos de perda dos meiosde subsistência em circunstâncias fora de seu controle.”

A partir do citado dispositivo, já no âmbito do direito internacionalconvencional, o direito à moradia passou a ser objeto de reconhecimentoexpresso em diversos tratados e documentos internacionais, destacando-se, seja pela sua precedência cronológica, seja pela sua relevância, o Pac-to Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, de 1966,também ratificado e incorporado ao direito interno brasileiro, onde, noartigo 11, consta que “os Estados signatários do presente pacto reconhe-cem o direito de toda pessoa a um nível de vida adequado para si próprio

Page 89: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 339

e para sua família, inclusive alimentação, vestimenta e moradia adequa-das, assim como a uma contínua melhoria de suas condições de vida.”

Para além de outros tratados internacionais, de cunho universal (istoé, não regional), onde houve menção expressa a um direito à moradia24 ,verifica-se que no plano das convenções de caráter regional, houve mai-or timidez ou cautela, já que nem a Convenção Européia dos DireitosHumanos (1950) nem a Carta Social Européia (1961) reconhecem ex-pressamente um direito à moradia, não obstante a referência, nos artigos16 e 19 da Carta Social, à moradia no âmbito da proteção dos trabalhado-res estrangeiros (imigrantes) e do direito da família à proteção social elegal. Também a Carta da Comunidade Européia sobre Direitos Funda-mentais Sociais (1989) refere apenas a necessidade de medidas positivaspara a proteção e integração de pessoas portadoras de deficiência, inclu-indo a moradia. Todavia, importa referir – em que pese a negativa, emprincípio, de uma obrigação dos Estados de assegurarem uma moradia aoscidadãos - o reconhecimento da função social da propriedade e até mes-mo de certas dimensões (no caso, de caráter eminentemente defensivo)de um direito à moradia pela Comissão Européia de Direitos Humanos edos Tribunais Europeus (Tribunal de Justiça das Comunidades Européiase Tribunal Europeu de Direitos Humanos) em alguns de seus julgadosenvolvendo despejos e desapossamentos.25

Por derradeiro, a nova Carta de Direitos Fundamentais da União Eu-ropéia, aprovada no Conselho Europeu de Nice, França, em 07 de dezem-bro de 2000, mas ainda destituída da força vinculativa dos demais trata-dos referidos, contém referência expressa à dimensão social dos direitos

24 Aqui lembramos, entre outros instrumentos internacionais, a Convenção Internacional sobre a eliminação detodas as formas de discriminação racial (1969), cujo art. 5º assegura, sem discriminação por motivos deraça, cor, nacionalidade ou origem étnica, entre outros direitos, o direito à moradia. Em termos semelhan-tes, também as Convenções Internacionais sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contraa mulher (1979), a Convenção Internacional sobre os direitos das crianças (1989), bem como a Convençãosobre a proteção dos direitos dos trabalhadores migrantes (1990), contém dispositivos reconhecendo umdireito à moradia, com alguma variação no que diz com dimensões específicas deste direito.

25 Assim, por exemplo, costuma ser referido uma disputa envolvendo o Chipre e a Turquia (1976), versando sobrea evicção de cipriotas gregos, imputada à Turquia, ocasião na qual a Comissão Européia teve as evicçõescomo constituindo uma violação do direito à proteção da moradia. No caso Mellacher e outros contra aÁustria (1989), julgado pela Corte Européia de Direitos Humanos, foi reconhecida a possibilidade decontrole da legislação nacional a respeito de locações, inclusive estabelecendo restrições aos direitos doproprietário (cf. referências feitas por SACHAR, Rajindar, The Right to Adequate Housing: The Realization ofEconomic, Social and Cultural Rights, relatório apresentado em junho de 1993, à Comissão de DireitosHumanos da ONU, acessado pela Internet pelo seguinte endereço: http://www.undp.org/um/habitat/rights/s2-93-15.html, p. 22-23)

Page 90: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

340 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

fundamentais, prevendo o direito de acesso às prestações de segurançasocial e assistência social, inclusive no que diz com um auxílio para ahabitação, com o objetivo de assegurar uma existência condigna aos ne-cessitados (art. 34), além da previsão de um direito à proteção da saúde(art. 35), apenas para citar os exemplos mais relevantes.26

De modo geral, todavia, convém sinalar, há quem registre uma ten-dência à exclusão de um direito geral à moradia (não restrito a certasparcelas da sociedade ou grupos de pessoas, tais como deficientes, crian-ças, refugiados, etc) na esfera dos documentos regionais, como tambémdão conta os exemplos da Carta Africana dos Direitos do Homem e dosPovos e o Protocolo Adicional da Convenção Americana de DireitosHumanos (Protocolo de São Salvador).27

Ainda no plano internacional, pela sua relevância especial para o re-conhecimento e proteção do direito à moradia, inclusive pela sua influ-ência no que diz com a fundamentação de uma inserção deste direito nanossa própria ordem jurídica, na condição de direito fundamental social,cumpre citar os documentos oriundos de duas grandes conferências pro-movidas pela ONU sobre a problemática dos assentamentos humanos,respectivamente em 1976 (Declaração de Vancouver sobre Assentamen-tos Humanos - Habitat I) e em 1996, em Istambul, Turquia, da qual re-sultou a assim designada Agenda Habitat II, tido como o mais completodocumento na matéria, do qual também o Brasil é signatário.

Já por ocasião da Declaração de Vancouver (1976) restou asseguradoque a moradia adequada constitui um direito básico da pessoa humana.Por ocasião da Agenda Habitat II (Declaração de Istambul, de 1996),além de reafirmado o reconhecimento do direito à moradia como direitofundamental de realização progressiva, com remissão expressa aos pactosinternacionais anteriores (art. 13), houve minuciosa previsão quanto aoconteúdo e extensão do direito à moradia (art. 43) bem como das respon-sabilidades gerais e específicas dos Estados signatários para a sua realiza-ção, que voltarão a ser objeto de referência.

26 Para um primeiro contato com o texto da nova Carta Européia, sugere-se a leitura de recente obra coletivada autoria de RIQUITO, Ana Luísa et. al. Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia. Coimbra:Coimbra Ed., 2001, já citada.

27 Cf. LECKIE, Scott. “The Right to Housing”. In: EIDE, Asbjorn, KRAUSE, Catarina & ROSAS, Allan (Ed.).Economic, Social and Cultural Rights. Dordrecht-Boston-London: Martinus Nijhoff Publishers, 1995, p. 109e 116-120.

Page 91: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 341

Traçado este breve panorama no que diz com o reconhecimento eproteção na esfera do direito internacional geral e convencional, e dei-xando de lado os relevantes aspectos ligados à sua força vinculante, efi-cácia e efetividade, voltamo-nos agora para o direito constitucional es-trangeiro, limitando-nos, quanto a este ponto, a consignar a notícia deque atualmente bem mais de cinqüenta Constituições reconhecem ex-pressamente um direito fundamental à moradia28 , revelando aqui umatendência aparentemente mais progressista e afinada com os paradigmasinternacionais colocados pela ONU, do que a manifestada no plano dosdocumentos regionais, tal como já referido, muito embora também aqui(no que diz com o direito constitucional) possam ser apontados algunsretrocessos, especialmente quando se tomar como parâmetro não apenasa mera previsão formal no texto das Constituições, mas sim, o nível deefetividade do direito à moradia, assim como dos direitos sociais em ge-ral, circunstância que dispensa, por ora, maiores comentários.

No direito constitucional pátrio, em que pese ter sido o direito à mo-radia incorporado ao texto da nossa Constituição vigente (art. 6º) – nacondição de direito fundamental social expresso - apenas com a ediçãoda Emenda Constitucional nº 26, de 2000, constata-se que, consoante járeferido no voto da Deputada Federal Almerinda Carvalho, relatora doPEC nº 60/98, na Constituição de 1988 já havia menção expressa à mora-dia em outros dispositivos,29 seja quando dispôs sobre a competência co-mum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para“promover programas de construção de moradia e a melhoria da condi-ções habitacionais e de saneamento básico” (art. 24, inc. IX), seja quan-do no artigo 7º, inciso IV, definiu o salário mínimo como aquele capaz deatender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família,dentre outros elementos, com moradia. Da mesma forma, a vinculaçãosocial da propriedade (art. 5º, XXIII, e artigos 170, inciso III e 182, pará-grafo 2º), bem como a previsão constitucional do usucapião especial ur-bano (art. 183) e rural (art. 191), ambos condicionando, dentre outrosrequisitos, a declaração de domínio à utilização do imóvel para moradia,apontam para a previsão ao menos implícita de um direito fundamental àmoradia já antes da recente consagração via emenda constitucional.

28 Id., ibid., p. 109 e seguintes, muito embora os dados não estejam atualizados, considerando a data dapublicação do trabalho (1995).

29 Referência ao voto da relatora do Projeto de Emenda Constitucional, citado na pesquisa feita por SALTZ,Alexandre. O Novo Direito Social à Moradia na Constituição de 1988: Significado, Conteúdo, Eficácia e Efetividade,trabalho de conclusão (não publicado) da disciplina “Constituição e Direitos Fundamentais”, que integraa estrutura curricular do Mestrado em direito da PUC/RS, ministrada pelo autor do presente ensaio.

Page 92: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

342 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Para além disso, sempre haveria como reconhecer um direito funda-mental à moradia como decorrência do princípio da dignidade da pessoahumana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), já que este reclama,na sua dimensão positiva, a satisfação das necessidades existenciais básicaspara uma vida com dignidade, podendo servir até mesmo como fundamen-to direto e autônomo para o reconhecimento de direitos fundamentais nãoexpressamente positivados, mas inequivocamente destinados à proteção dadignidade.30 Neste contexto, vale lembrar exemplo garimpado do direitocomparado, designadamente da jurisprudência francesa, de onde extraí-mos importante aresto do Conselho Constitucional (Decisão nº 94-359, de19.01.95), reconhecendo que a possibilidade de toda pessoa dispor de umalojamento decente constitui um valor de matriz constitucional, direta-mente fundado na dignidade da pessoa humana, isto mesmo sem que hou-vesse previsão expressa na ordem constitucional.31

Por outro lado, por força do art. 5º, parágrafo 2º, da nossa Constituição,tendo em conta ser o Brasil signatário dos principais tratados internacio-nais em matéria de direitos humanos, notadamente (e isto por si só já bas-taria) do Pacto Internacional dos Direitos Sociais, Econômicos e Culturaisde 1966, já formalmente incorporado ao direito interno, e partindo-se dapremissa largamente difundida pela melhor doutrina (embora ainda nãoincontroversa e, de resto, repudiada pelo nosso Supremo Tribunal Federal)da hierarquia constitucional destes tratados,32 poder-se-á sustentar que odireito à moradia já era até mesmo expressamente consagrado na nossaordem interna, pelo menos na condição de materialmente fundamental.

De qualquer modo, com a recente inclusão no rol dos direitos funda-

30 Sobre este ponto, remetemos ao nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na ConstituiçãoFederal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 97 e seguintes. No âmbito da jurisprudênciapátria, já se registravam decisões anteriores a Emende nº 26, reconhecendo, de certa forma, um direitoimplícito à moradia (habitação) com base no estreito vínculo com a dignidade da pessoa. Apenas a títuloexemplificativo, vai aqui referida a ementa do Acórdão proferido em 19.08.99 pelo Superior Tribunal deJustiça no Resp. nº 213422, tendo como Relator o Ministro José Delgado.

31 Cf. Decisão nº 94-359, de 19.01.95, onde, todavia – para ser preciso - não se encontra uma referência expressae direta a um direito fundamental à moradia, mas sim, o reconhecimento de que a possibilidade de disporde um alojamento decente constitui um objetivo de valor constitucional, fundado na dignidade da pessoahumana (“la possibilite pour toute personne de disposer d’un logement décent est u n objectif de valeurconstitutionnelle”).

32 Cf., paradigmaticamente, entre outros, PIOVESAN, Flávia. Direitos Humanos e o Direito Constitucional Inter-nacional, cit., especialmente p. 73 e seguintes, assim como, mais recentemente, MELLO, Celso Albuquerque.“O § 2º do art. 5º da Constituição Federal”. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos DireitosFundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 1 e seguintes.

Page 93: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 343

mentais sociais, a possível controvérsia quanto ao reconhecimento ine-quívoco no plano constitucional de um direito à moradia resta superada.Se o direito à moradia, pelos motivos já apontados, não chega a ser propri-amente um “novo direito” na nossa ordem jurídico-constitucional, porcerto a sua expressa positivação lhe imprime uma especial significação,além de colocar novas dimensões e perspectivas no que diz com a suaeficácia e efetividade, pressupondo-se, à evidência, uma concepção deConstituição que, mesmo reconhecendo – com Luís Roberto Barroso –que o direito (e também o direito constitucional) não deve normatizar oinalcançável33 – nem por isso deixa de outorgar aos preceitos constituci-onais, notadamente os definidores de direitos e garantias fundamentais,de acordo com suas peculiaridades, sua máxima força normativa.

Fundamentação e conteúdo do direito à moradia

Fundamentação: direito à moradia, vida e dignidade da pessoaAinda que estejamos convictos de que nem todos os direitos e garan-

tias fundamentais expressamente anunciados no elenco do Título II denossa Constituição encontram seu fundamento direto no princípio da dig-nidade da pessoa humana e que, de qualquer modo, diversa a intensida-de deste vínculo entre dignidade e direitos fundamentais, já que distintoo âmbito de proteção de cada direito em espécie, não poderíamos, poroutro lado, deixar de reconhecer que é na dignidade da pessoa humanaque reside o fundamento primeiro e principal e, de modo particular, oalicerce de um conceito material dos direitos fundamentais.34

Que também os direitos fundamentais sociais, econômicos e culturais,seja na condição de direitos de defesa (negativos), seja na sua dimensãoprestacional (isto é, atuando como direitos positivos), constituem – pelo me-nos em boa parte - exigência e concretização da dignidade da pessoa huma-na, nos parece inquestionável. Com efeito, o reconhecimento jurídico-cons-

33 Cf. BARROSO, Luís Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. 3ª ed. Rio de Janeiro:Renovar, 1996, p. 47, em magnífico e referencial estudo sobre o tema.

34 V. por todos, ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2ªed. Coimbra: Almedina, 2001, p. 79 e seguintes. Confira-se também o nosso Dignidade da Pessoa Humana eDireitos Fundamentais na Constituição de 1988, cit., p. 81-82.

Page 94: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

344 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

titucional da liberdade de greve e de associação e organização sindical, jor-nada de trabalho razoável, direito ao repouso, bem como as proibições dediscriminação nas relações trabalhistas (apenas para citarmos os exemplosmais comuns) foi o resultado das reivindicações das classes trabalhadoras emface do alto grau de opressão e degradação que caracterizava, de modo geral,as relações entre capital e trabalho, não raras vezes resultando em condiçõesde vida e trabalho manifestamente indignas, situação que, de resto, aindanão foi superada em expressivo número de Estados. Em verdade, cuida-se -em boa parte - de direitos fundamentais de liberdade e igualdade outorgadosao trabalhadores com o intuito de assegurar-lhes um espaço de autonomiapessoal não mais em face do Estado, mas especialmente dos assim denomina-dos poderes sociais35 . Os direitos fundamentais sociais de cunho prestacio-nal, encontram-se, por sua vez, a serviço da igualdade e da liberdade mate-rial, objetivando, em última análise, a proteção da pessoa contra as necessi-dades de ordem material e a garantia de uma existência com dignidade.36

Neste contexto, vale reiterar aqui a lembrança de que o ponto de cone-xão entre a pobreza, a exclusão social e os direitos sociais, reside justamen-te no respeito pela e proteção da dignidade da pessoa humana, já que, deacordo com Rosenfeld, “onde homens e mulheres estiverem condenados aviver na pobreza, os direitos humanos estarão sendo violados”37 . Importa

35 Sobre o conceito e a classificação dos direitos fundamentais sociais, v. o nosso Os Direitos Fundamentais Sociaisna Constituição de 1988. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Direito Público em Tempos de Crise – Estudos emHomenagem a Ruy Ruben Ruschel. Porto Alegre: Sagra-Luzzatto, 1997, especialmente p. 140 e seguintes.

36 Cf. dentre outros, HÖFLING, Wolfram. “Anmerkungen zu Art. 1 Abs. 3 Grundgesetz”. In: SACHS, Michael(Org.). Grundgesetz-Kommentar. München: C.H. Beck, 1996, p. 109-110. assim como MAUNZ, Theodor &ZIPPELIUS, Reinhold. Deutsches Staatsrecht. 29ª ed. München: C.H. Beck, 1994, p. 182. Na França, aíntima ligação entre os direitos sociais e a dignidade da pessoa encontra-se referida por PAVIA, Marie-Luce. “Le Principe de Dignité de la Personne Humaine: um Nouveau Principe Constitutionnel”. In:CABRILLAC, Rémy, ROCHE-FRISON, Marie-Aenne & REVET, Thierry. Droits et Libertés Fondamenteaux.4ª ed. Paris: Dalloz, 1997, p. 109-110, valendo-se do exemplo de um direito fundamental à moradia, a partirdo reconhecimento da moradia como objetivo e valor de matriz constitucional pelo Conselho Constituci-onal. Também na Bélgica, sustenta-se que o direito a uma existência com dignidade implica o reconheci-mento de um direito aos meios de subsistência mínimos, especialmente no âmbito da assistência social.Neste sentido, v. DELPÉRÉE, Francis. “O Direito à Dignidade Humana”. In: BARROS, Sérgio R. &ZILVETI, Fernando A. (Coord.). Direito Constitucional. Estudos em Homenagem a Manoel Gonçalves FerreiraFilho. São Paulo: Dialética, 1999, p. 156 e seguintes. Assim também, JORGE MIRANDA, Manual de DireitoConstitucional, cit., v. 4, p. 186 (ao menos é o que se infere da referência a diversos direitos sociais). Entrenós, e mais recentemente, NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. “O Direito Brasileiro e o Princípio daDignidade da Pessoa Humana”. Revista de Direito Administrativo 219: 247, 2000, advoga, com amparo nadignidade da pessoa humana, um direito a uma existência material mínima.

37 Apud CORDEN, Anne & DUFFY, Katherin. “Human Dignity and Social Exclusion”. In: SYKES, Rob &ALCOCK, Pete (Org.). Developments in European Social Policy – Convergence and Diversity. Bristol: ThePolicy Press, 1998, p. 110.

Page 95: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 345

reste aqui consignado, que a intensidade da vinculação entre a dignidadeda pessoa humana e os direitos sociais é diretamente proporcional em rela-ção à importância destes para a efetiva fruição de uma vida com dignidade,o que, por sua vez, não afasta a constatação elementar de que as condiçõesde vida e os requisitos para uma vida com dignidade constituam dadosvariáveis de acordo com cada sociedade e em cada época.38

Tendo em conta que no caso do direito à moradia a íntima e indissociávelvinculação com a dignidade da pessoa humana resulta inequívoca, pelo menosno âmbito daquilo que se tem designado de um direito às condições materiaismínimas para uma existência digna, parece-nos dispensável, dadas as propor-ções deste estudo, avançar ainda mais na sua fundamentação. Aliás, provavel-mente é ao direito à moradia - bem mais do que ao direito de propriedade - quemelhor se ajusta a conhecida frase de Hegel, ao sustentar - numa traduçãolivre - que a propriedade constitui (também) o espaço de liberdade da pessoa(Sphäre ihrer Freiheit)39 . Com efeito, sem um lugar adequado para proteger-se asi próprio e a sua família contra as intempéries, sem um local para gozar de suaintimidade e privacidade, enfim, de um espaço essencial para viver com ummínimo de saúde e bem estar, certamente a pessoa não terá assegurada a suadignidade, aliás, por vezes não terá sequer assegurado o direito à própria exis-tência física, e, portanto, o seu direito à vida.

Não é por outra razão que o direito à moradia tem sido, também entre nós– e de modo incensurável - incluído no elenco dos assim designados direitosde subsistência, como expressão mínima do próprio direito à vida40 . Nestaquadra, o direito à moradia, de acordo com a lição de José Reinaldo de LimaLopes, inclui o direito de ocupar um lugar no espaço, assim como o direito àscondições que tornam este espaço um local de moradia, de tal sorte quemorar, na acepção do ilustre doutrinador, constitui um existencial humano.41

38 Cf. a oportuna menção de MODERNE, Frank. “La Dignité de la Personne Comme Principe Constitutionneldans les Constitutions Portugaise et Française”. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas Constitucionais– nos 20 anos da Constituição de 1976. Coimbra: Coimbra Ed., 1997, v. 1, p. 220.

39 Cf. HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. Grundlinien der Philosophie des Rechts. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, v. 7, p. 102.40 Cf. CUNHA, Sérgio Sérvulo da. “Direito à Moradia”. Revista de Informação Legislativa 127: 49, 1995. Também

VIANA, Rui Geraldo Camargo. “O Direito à Moradia”. Revista de Direito Privado, abril/junho 2000, p. 9,destaca a vinculação do direito à moradia com o direito à vida e uma existência digna. Registre-se, aindaquanto a este ponto, que também pelo prisma do direito internacional, o que decorre inclusive de previsãoexpressa do Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, o direito à moradia, assimcomo o direito à alimentação, integra o direito à um adequado padrão de vida. Neste sentido, dentretantos, CRAVEN, Matthew. The International Covenant on Economic, Social and Cultural Rights – A Perspectiveon its Development. Oxford: Clarendon Press, 1995, p. 330.

41 Cf. LOPES, José Reinaldo de Lima. “Cidadania e Propriedade: Perspectiva Histórica do Direito à Moradia”.Revista de Direito Alternativo, 1993, p. 121, igualmente, em importante ensaio, sinalando a direta conexão dodireito à moradia com o direito à vida (p. 133).

Page 96: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

346 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Mesmo dentre os que, pelo menos em princípio e estribados em rele-vantes argumentos, questionam a própria fundamentalidade dos direitossociais (e aqui – em face dos estreitos limites deste estudo – não preten-demos adentrar o mérito desta relevante e estimulante discussão) há quemadmita o caráter fundamental de um direito à moradia, designadamentenaquilo em que integra um direito às condições mínimas para uma exis-tência humana digna, destacando-se, entre nós, o valoroso magistério deRicardo Lobo Torres.42

De qualquer modo, a despeito de seguirmos sustentando que, na or-dem constitucional pátria, todos os direitos sociais – pelo menos os elen-cados no Título II da nossa Carta Magna – são fundamentais43 , tambémestamos convictos que a intensidade da vinculação com o direito à vida euma vida com dignidade assume papel de destaque no âmbito dos proble-mas ligados à eficácia, efetividade e proteção destes direitos fundamen-tais – o que, por seu turno, nos remete invariavelmente a uma necessáriahierarquização (ou ponderação, se assim preferirmos) de bens e interesses- aspecto com o qual voltaremos a nos ocupar também neste estudo.

Conteúdo do direito à moradiaVoltando-nos agora mais especificamente para a questão do conteúdo

do direito fundamental à moradia, deparamos-nos possivelmente com umdos mais angustiantes e complexos problemas que o tema suscita e que,

42 Cf. TORRES, Ricardo Lobo. “O Mínimo Existencial e os Direitos Fundamentais”. Revista de Direito Adminis-trativo 177: 29, 1989, que, em paradigmático e pioneiro estudo sobre o mínimo existencial, destaca que estecarece de um conteúdo específico, já que pode abranger qualquer direito, ainda que não originariamentefundamental, desde que considerado em sua dimensão essencial e inalienável. Não obstante nesteprimeiro estudo o ilustre doutrinador Fluminense não tenha feito menção expressa ao direito à moradiacomo exemplo de direito fundamental, tal veio a ocorrer, recentemente, em outro texto de crucialrelevância para a discussão da problemática dos direitos fundamentais, admitindo,que no concernente aosindigentes e às pessoas sem-teto à moradia é direito fundamental, integrando-se ao mínimo existencial etornando obrigatória até mesmo a sua prestação pelo Estado (cf. TORRES, Ricardo Lobo. “A CidadaniaMultidimensional na Era dos Direitos”. In: TORRES, Ricardo Lobo. (Org.). Teoria dos Direitos Fundamen-tais. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 289).

43 Em síntese, fundamos nosso entendimento na circunstância de que todos as posições jurídicas elencadas noTítulo II (dos Direitos e Garantias Fundamentais) são fundamentais num sentido formal (e de acordo comeste critério o atributo da fundamentalidade parece inquestionável) e material, ainda que em virtude deuma necessária presunção de sua fundamentalidade material, mesmo que esta – e isto se admite em diversoscasos – possa ser questionada, notadamente pelo critério de sua indispensabilidade para a dignidade dapessoa. De qualquer modo, não havendo como aprofundar aqui a discussão, remetemos ao nosso A Eficácia dosDireitos Fundamentais, cit., e, para uma visão da respeitável posição divergente, à fecunda obra do Prof.RICARDO LOBO TORRES, já referida, dentre outras que aqui poderiam ser citadas.

Page 97: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 347

de certa forma, é comum aos assim designados direitos sociais, notada-mente quando examinados pelo prisma da sua condição de direitos aprestações, já que da definição de qual o seu conteúdo (ou objeto, seassim preferimos), decorrem importantes conseqüências até mesmo noque diz com a alocação de recursos materiais e humanos para a sua efeti-va realização.

Iniciando a abordagem do ponto de vista terminológico, andou bem onosso legislador constitucional44 ao referir o direito à moradia de formagenérica, desacompanhado de qualquer adjetivo. Com efeito, tendo emconta a previsão, na esfera dos tratados internacionais, de um direito àmoradia adequada (como ocorre no Pacto Internacional de 1966) oumesmo de um direito a uma moradia decente, como dispõe a Constitui-ção da Bélgica, não nos parece, especialmente á luz da nossa atual CartaMagna, que um direito à moradia possa, em qualquer hipótese, ser inter-pretado como um direito a uma moradia não adequada ou, pior ainda,não decente. Uma moradia minimamentecompatível com as exigênciasda dignidade da pessoa humana, à evidência, sempre deverá ser adequa-da e decente. De qualquer modo, cuidando-se certamente de aspecto demenor relevância, convém levar em consideração que a adjetivação temo mérito inquestionável de afastar interpretações demasiadamente restri-tivas, que possam vir a reduzir excessivamente o objeto do direito à mora-dia ou (o que dá no mesmo) deixá-lo na completa dependência do legis-lador infraconstitucional.

Na definição do conteúdo do direito à moradia, cumpre, ainda emcaráter preliminar, distingui-lo do direito de propriedade (e do direito àpropriedade). Muito embora a evidência de que a propriedade possa ser-vir também de moradia ao seu titular e que, para além disso, a moradiaacaba, por disposição constitucional expressa – e em determinadas cir-cunstâncias - assumindo a condição de pressuposto para a aquisição dodomínio (como no caso do usucapião especial constitucional), atuando,ainda, como elemento indicativo da aplicação da função social da propri-edade, o direito à moradia – convém frisá-lo - é direito fundamental au-tônomo, com âmbito de proteção e objeto próprios.

Ademais, em se tomando como referencial o critério da fundamentali-dade substancial (material) e, nesta quadra, a conexão com o direito a

44 Aqui acompanha-se a distinção que já havia sido traçada por Carl Schmitt, entre Poder Constituinte(Verfassungsgeber) e Legislador Constituinte (Verfassungsgesetzgeber)

Page 98: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

348 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

uma existência digna, o direito à moradia poderá assumir, em diversas situ-ações, posição preferencial em relação ao direito de propriedade, no míni-mo para justificar uma série de restrições a este direito, que, de resto – e deacordo com previsão constitucional expressa – encontra-se limitado pelasua função social, de tal sorte que, já há algum tempo – expressiva doutrinasustenta que apenas a propriedade socialmente útil (isto é, que cumpre suafunção social) é constitucionalmente tutelada.45 Aliás, basta aqui lembrara evidência de que mesmo sem a propriedade sobre um bem imóvel a pes-soa, por si só, não estará necessariamente privada de uma vida digna, oque, por outro lado, inevitavelmente ocorrerá em não dispondo de umamoradia com padrões compatíveis com uma vida saudável. Por outro lado,já se apontou – com acuidade e sensibilidade – para uma noção de propri-edade conectada com as exigências de uma vida digna, isto é, de umapropriedade tutelada na medida em que cumpre precisamente uma funçãoexistencial e não meramente patrimonial.46 Tal enfoque, em verdade, aca-ba por remeter-nos à discussão em torno da própria fundamentalidade dodireito de propriedade, que, visto sob prisma eminentemente patrimonial,poderia ser – como há quem sugira - considerado fundamental em sentidoapenas formal,47 temática esta que, a despeito de sua relevância, desbordapor completo dos limites estreitos deste texto.

Considerando o silêncio da nossa Constituição no que diz com a de-

45 Entre nós, vale lembrar a lição do saudoso Professor e Desembargador Gaúcho RUY RUBEN RUSCHEL(Direito Público em Tempos de Crise..., cit., p. 145-155), alertando para a necessidade de uma releitura (à luzda Constituição e do princípio da função social da posse da propriedade) do art. 524 do Código Civil e daprópria definição de posse, sustentando a necessidade do uso e gozo do bem secundum beneficiumsocietatis. Também adotando esta linha de entendimento, convém lembrar, entre outros, os preciososensinamentos de FACHIN, Luiz Edson. “Novas Limitações ao Direito de Propriedade: do Espaço Privadoà Função Social”. Revista de Direito da Universidade de Santa Catarina 11: 33-46, 1999; TEPEDINO, Gustavo.Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, assim como ARONNE, Ricardo. Por uma NovaHermenêutica dos Direitos Reais Limitados: das Raízes aos Fundamentos Contemporâneos. Rio de Janeiro:Renovar, 2001, todos convergindo no sentido de uma necessária interpretação dos institutos jurídicossobre a posse e propriedade à luz da Constituição, da dignidade da pessoa e dos direitos fundamentais.

46 Neste sentido, merece destaque a recente e notável contribuição de FACHIN, Luiz Edson. Estatuto Jurídicodo Patrimônio Mínimo. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

47 A respeito de uma possível distinção entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais, v. a interessantecontribuição de FERRAJOLI, Luigi. Derechos y Garantias. La Ley del más Débil. Madrid: Ed. Trotta, 1999, p.45-50. Desde logo, para não quedarmos omissos, destacamos que - compreendida pela perspectiva de seuconteúdo socialmente útil e de sua possível dimensão existencial - a propriedade constitui direito fundamen-tal na sua dupla vertente formal e material, não apresentando necessariamente caráter exclusivamentepatrimonial. De qualquer modo, dada a ausência de hierarquia formal entre as normas constitucionais etendo em conta a conhecida e prestigiada tese (basta aqui lembrar a abalizada lição de JORGE MIRANDA,Manual de Direito Constitucional, cit., v. 2, de que em favor das normas constitucionais em sentido formal militauma presunção de sejam materialmente constitucionais), eventual decisão em prol da relativização dapropriedade, deverá ocorrer mediante uma cuidadosa ponderação de bens e levar em conta a maior ou menorconexão da propriedade com outros valores essenciais, notadamente, com a dignidade da pessoa humana.

Page 99: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 349

finição mínima de um conteúdo para o direito à moradia, assumem lugarde destaque as disposições contidas nos diversos tratados e documentosinternacionais firmados pelo Brasil e já incorporados ao direito interno.Estes, naquilo em que versam sobre direitos fundamentais da pessoa hu-mana, possuem hierarquia constitucional, na condição de direitos funda-mentais em sentido material, integrando aquilo que se costuma tambémdenominar – com inspiração na tradição jurídico-constitucional francesa- de bloco de constitucionalidade. Assim, em face da sua íntima conexãocom a dignidade da pessoa humana, verifica-se, desde logo, que, na in-terpretação do conteúdo de um direito à moradia, há que considerar osparâmetros mínimos indispensáveis para uma vida saudável, nos termosdas exigências postas pela Organização Mundial da Saúde, no sentido deum completo bem-estar físico, mental e social, já que uma vida com dig-nidade em hipótese alguma poderá ser menos do que uma vida com saú-de, à evidência não restrita a mera existência e sobrevivência física.48

É precisamente esta diretriz que parece ter norteado a determinação doconteúdo do direito à moradia no plano de sua proteção internacional, e quedeverá também iluminar as autoridades legislativas, executivas e judiciáriasnacionais. Se a nossa própria Constituição foi omissa neste passo, nada impe-de - pelo contrário, tudo impõe (inclusive a nossa Carta Magna) -, que sefaça o uso da normativa internacional também nesta esfera. Justamente nes-te contexto, buscando estabelecer padrões internacionais, a Comissão da ONUpara Direitos Econômicos, Sociais e Culturais identificou uma série de ele-mentos básicos a serem atendidos em termos de um direito à moradia:49

a) Segurança jurídica para a posse, independentemente de suanatureza e origem.

b) Disponibilidade de infra-estrutura básica para a garantia da saú-de, segurança, conforto e nutrição dos titulares do direito (acesso

48 Tal entendimento mostra-se coerente com a conceituação da dignidade da pessoa humana por nós apresen-tada em trabalho anterior, sustentando que a dignidade da pessoa humana é a qualidade intrínseca edistintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estadoe da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais queassegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham alhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover suaparticipação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com osdemais seres humanos.” (Cf. o nosso Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais...., cit., p. 60).

49 Tal como disposto no parágrafo 8º do Comentário-Geral nº 4 a respeito de um direito à moradia adequadaeditado pela Comissão de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU. A síntese ora efetuada foiextraída do relatório elaborado por SACHAR, Rajindar, op. cit., p. 17-18.

Page 100: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

350 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

à água potável, energia para o preparo da alimentação, ilumina-ção, saneamento básico, etc).

c) As despesas com a manutenção da moradia não podem compro-meter a satisfação de outras necessidades básicas.

d) A moradia deve oferecer condições efetivas de habitabilidade,notadamente assegurando a segurança física aos seus ocupantes.

e) Acesso em condições razoáveis à moradia, especialmente paraos portadores de deficiência.

f) Localização que permita o acesso ao emprego, serviços de saúde,educação e outras serviços sociais essenciais.

g) A moradia e o modo de sua construção devem respeitar e ex-pressar a identidade e diversidade cultural da população.

Tais diretrizes, importa frisar, revelam de modo emblemático aquilo que jáhavia sido anunciado, no sentido de que um direito à moradia digna nãopode ser interpretado como sendo apenas um “teto sobre a cabeça” ou “espa-ço físico” para viver, pressupondo a observância de critérios qualitativos míni-mos50 . Que a implementação dos padrões estabelecidos pela ordem jurídicainternacional reclama, por outro lado, uma exegese afinada com as peculia-ridades de cada País e região (já que é na realidade concreta de quem morae onde mora que se pode aferir a compatibilidade da moradia com uma exis-tência digna), por sua vez, constitui premissa igualmente já destacada. Tam-bém por esta razão, a despeito da necessidade de padrões mínimos referenci-ais de caráter até mesmo supranacional, é no contexto regional e local que sepoderá melhor avaliar a manifestação concreta destes critérios e as condi-ções para o seu atendimento, o que evidencia o acerto do nosso legislador,quando da edição da Lei nº 10.257/2001, não apenas no que diz com a termi-nologia adotada (Estatuto da Cidade), mas especialmente ao optar pelo esta-belecimento de algumas diretrizes e regras de âmbito nacional, privilegian-do, contudo, a esfera regional e, particularmente, a local.

Para além da existência de uma gama de diretrizes internacionalmen-te estabelecidas, caberá aos órgãos estatais, notadamente – mas não ex-clusivamente – ao Legislador, a tarefa de estabelecer os contornos mais

50 A respeito destes critérios qualitativos, destacando, em síntese, os elementos já referidos, v. também asponderações de MATTHEW CRAVEN, op. cit., p. 344 e seguintes.

Page 101: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 351

precisos de um direito à moradia e dos meios para a sua implementação,sempre lembrando sua vinculação aos tratados internacionais sobre o tema,e, acima de tudo (e sem que se possa questionar seriamente tal ponto)aos demais preceitos da nossa Constituição, especialmente no que dizcom o direito a uma vida com dignidade.

O direito à moradia: complexo de direitos (e deveres)51 decunho negativo e positivo

Como bem evidencia o elenco de diretrizes estabelecido pela Comissãode Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, ao direito à moradiatambém se aplica a noção, hoje já largamente difundida e que aqui vaiadotada como pressuposto teorético deste estudo, no sentido de que texto(dispositivo), norma e direitos constituem dimensões conexas mas não seconfundem, de tal sorte que determinado dispositivo da Constituição po-derá conter mais de uma norma e, por sua vez, estas poderão assegurarposições jurídicas (direitos e deveres) de diversa natureza, podendo haveraté mesmo norma sem texto que lhe seja diretamente correspondente52 .

Assim, sem que aqui se vá aprofundar este aspecto, importa ter pre-sente que também o direito à moradia abrange um complexo de posiçõesjurídicas, isto é, de direitos e de deveres que, seguindo a prestigiadafórmula de Alexy, assumem a condição negativa (defensiva) e positiva(prestacional).53 Em outras palavras, sustentaremos aqui o ponto de vista

51 No presente trabalho não cuidaremos da dimensão específica dos assim denominados deveres fundamentais,mas, por outro lado, não poderíamos deixar de referir a existência, paralela e conexa ao reconhecimento dedireitos fundamentais, de um complexo de deveres por parte dos destinatários e dos próprios titulares dosdireitos. A respeito da teoria geral dos deveres fundamentais, v. em língua portuguesa, especialmenteNABAIS, José Casalta. O Dever Fundamental de Pagar Impostos. Coimbra: Almedina, 1998, p. 18-181.

52 Neste sentido, ALEXY, Robert. Teoria de los Derechos Fundamentales. Madrid: CEC, 1997, p. 47 e seguintes(especialmente p. 62 e seguintes). Entre nós, notadamente no que diz com a distinção entre texto e norma,vale lembrar o contributo de GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo:Malheiros, 1997, p. 164 e seguintes. Mais recentemente e no mesmo sentido, com referência expressa aopensamento de Eros Grau, v. também STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Porto Alegre:Livraria do Advogado, 1999, p. 16, nota de rodapé n 2.

53 Sobre a classificação adotada, v. especialmente a fundamentação de ROBERT ALEXY, op. cit., p. 419 eseguintes, posição da qual comungamos e que nos parece plenamente conciliável com o direito constitu-cional positivo pátrio. Para tanto, remetemos ao nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 156 eseguintes. Enunciando – e fundamentando com consistência – uma concepção alternativa (mais atreladaà tradicional classificação de Jellinek, atualmente sustentada, entre outros, por Vieira de Andrade e,entre nós, por Edilsom Pereira de Farias) v. a bela contribuição de MELLO, Cláudio Ari. “Os DireitosSociais e a Teoria Discursiva do Direito”. Revista de Direito Administrativo 224: 242, 2001.

Page 102: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

352 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

de que o direito à moradia exerce simultaneamente a função de direitode defesa e direito a prestações, incluindo tanto prestações de cunhonormativo, quanto material (fático) e, nesta dupla perspectiva, vinculaas entidades estatais e, em princípio, também os particulares, na condi-ção de destinatários deste direito, muito embora se possa controverter arespeito do modo e intensidade desta vinculação e das conseqüênciasjurídicas possíveis de serem extraídas a partir de cada manifestação dodireito à moradia, questões sobre as quais voltaremos a nos manifestar,mesmo que sumariamente.

Importa consignar, ainda, que não desconhecemos a relativamenterecente e, entre nós, cada vez mais prestigiada tese de Holmes e Suns-tein, sustentando que todos os direitos são também sempre positivos, in-diciando uma superação da já clássica distinção traçada entre direitosnegativos (ou direitos de defesa) e direitos positivos (direitos a presta-ções).54 Mesmo assim, se de fato parece inglória a tentativa de sustentaruma dicotomia entre os direitos negativos e positivos, calcada estrita-mente no critério da sua relevância econômica55 , seguimos convictos deque a relação entre os direitos de cunho defensivo (negativos) e os decaráter prestacional (positivo), pode – a despeito da por nós também re-conhecida indivisibilidade dos direitos fundamentais, de todas as gera-ções (ou dimensões) – ser traduzida como revelando uma espécie de du-alismo relativo, caracterizada essencialmente por uma diferença de obje-to e função entre ambos os grupos de direitos fundamentais.56

Com efeito, ninguém irá questionar seriamente (tomando apenas esteaspecto para ilustrar o ponto) a impossibilidade de qualquer Juiz – umavez presentes os pressupostos para tanto – deixar de conceder uma ordemde habeas corpus ou recusar-se a assegurar o direitos à vida, propriedadee privacidade contra uma violação, pelo simples fato de não haver uma

54 Cf. HOLMES, Stephen & SUNSTEIN, Cass. The Cost of Rights – Why Liberty Depends on Taxes. New York:W.W. Norton & Company, 1999, especialmente p. 35-48, partindo da premissa de que mesmo para agarantia (efetivação) das liberdades e dos direitos de propriedade e vida, torna-se indispensável a alocaçãode 0recursos para disponibilizar todo um aparato estatal (Juízes, policiais, etc) que possam assegurar queos direitos reconhecidos pela Constituição sejam tornados efetivos, de tal sorte que também os direitostido como negativos implicam custos.

55 Nesta direção a advertência de AMARAL, Gustavo, Direito, Escassez & Escolha. Rio de Janeiro: Renovar,2001, p. 71.

56 Consoante já havíamos anunciado em estudo anterior, a relação entre os direitos negativos (de defesa) eprestacionais não obedece a uma dialética do antagonismo, mas sim, a uma dialética da recíprocacomplementação. Neste sentido, v. o nosso Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988, cit., p. 151.

Page 103: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 353

estrutura adequada disponível ou com base no argumento de que o Esta-do não dispõe de recursos suficientes para garantir estes direitos. Não sãopoucos os que, todavia, se voltam contra o reconhecimento, pelo PoderJudiciário e na ausência de lei, de direitos subjetivos a prestações mate-riais contra o Estado.57 Assim, sem que aqui se vá adentrar o mérito destadiscussão, verifica-se, desde logo, que a distinção traçada entre direitosde defesa e direitos a prestações (em suma, entre uma dimensão negativae positiva dos direitos fundamentais) segue tendo relevância prática.

A título de maior clareza, dentre outras questões que a concepção deHolmes e Sunstein coloca em relevo, não há como desconsiderar a cir-cunstância de que a realização de todos os direitos fundamentais (isto é,a sua efetividade ou eficácia social), não se encontra na dependênciaapenas de uma decisão judicial, do reconhecimento de sua eficácia jurí-dica ou mesmo de sua condição defensiva ou prestacional. Para alémdisso, tal entendimento demonstra inequivocamente a íntima e indisso-ciável vinculação entre os diversos direitos fundamentais e que os direi-tos sociais, designadamente os de cunho prestacional, foram objeto degradativo reconhecimento pela ordem jurídica justamente para viabilizara implementação da igualdade e liberdade material (em suma, para asse-gurar a efetiva fruição das liberdades fundamentais e de uma vida comdignidade para todos), assumindo a feição – tal qual consignou JorgeMiranda – de direitos à libertação da opressão social e da necessidade.58

Independentemente de toda uma gama de aspectos que aqui poderi-am ser versados, importa que firmemos a nossa posição no sentido de queos direitos fundamentais podem exercer – inclusive simultaneamente -uma função defensiva ou prestacional. Assim, por exemplo, o direito àsaúde será direito negativo quando se cuida de afastar (direito de defe-sa) eventuais condutas que venham a violar a saúde das pessoas, mas serádireito a prestações (isto é, direito positivo) quando se estiver a conside-rar um direito de acesso aos serviços e bens na área da saúde. O mesmo,

57 Aqui convém relembrar a distinção largamente aceita entre eficácia jurídica (como possibilidade de a normagerar os efeitos que lhe são próprios) e eficácia social (ou efetividade) como sendo a concreta realização noplano dos fatos destes efeitos jurídicos.

58 Cf. MIRANDA, Jorge. “Os Direitos Fundamentais – sua Dimensão Individual e Social”. Cadernos de DireitoConstitucional e Ciência Política 1: 201, 1992. Aproximando-se deste conceito, não obstante situado em outrocontexto – encontramos a definição de WOLKMER, Antonio Carlos. “Direitos Políticos, Cidadania eTeoria das Necessidades”. Revista de Informação Legislativa 122: 278, 1994, que vincula os direitos sociais ànecessidade de se assegurar as condições materiais mínimas para a sobrevivência e, para além disso, paraa garantia de uma existência com dignidade.

Page 104: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

354 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

sem dúvida, como se verá com mais clareza logo adiante, ocorre com odireito à moradia e outros direitos fundamentais. Isto, contudo, não alte-ra o fato (nem as conseqüências que disso se pode e deve extrair) de quena sua condição de direito de defesa o direito à saúde (ou mesmo osdireitos à educação e moradia) é direito negativo e que na sua condição(isto é, quando este for o seu objeto) de direito a prestações, o direito àsaúde será direito de cunho positivo.59 Não esqueçamos a noção já refe-rida, de que num mesmo enunciado semântico (texto) podemos encon-trar mais de uma norma assegurando direitos fundamentais distintos. Tam-bém neste contexto, convém não olvidar que, em matéria de direitosfundamentais como direitos subjetivos, em verdade o que temos é umcomplexo não homogêneo de posições jurídico-subjetivas fundamentais.60

Fechado o parênteses, e partindo-se, desde logo, da premissa de quetambém o direito à moradia pode assumir a condição de direito de defesa(direito negativo) e direito a prestações (direito positivo), bem como parauma melhor compreensão do que representa este complexo de posiçõesjurídicas vinculadas ao direito à moradia, igualmente vale lançar um olharsobre a perspectiva internacional. Com efeito, também quanto a este as-pecto, as normas jurídicas internacionais (mesmo para os que preferemadotar a por nós repudiada posição do Supremo Tribunal Federal) possu-em - ainda que seja com hierarquia de lei ordinária – vinculatividade nodireito interno, oferecendo importante referencial para a interpretação econcretização do direito (melhor seria falar dos direitos) à moradia noplano nacional.

Apenas para ilustrar a questão, vale lembrar que, além da obrigaçãodos Estados no sentido de reconhecer, respeitar e proteger o direito àmoradia (elementos que sinalizam prioritariamente – mas não exclusiva-mente - uma perspectiva negativa), de acordo com o artigo 2.1 do PactoInternacional dos Direitos econômicos, sociais e culturais (1966), os Es-tados signatários estão obrigados a, desde logo, implementar medidas,utilizando-se do máximo dos recursos disponíveis, com o intento de al-cançar de modo progressivo a plena realização dos direitos reconhecidos

59 Assim, neste sentido, efetivamente haverá de se reconhecer, com Holmes e Sunstein, que todos os direitosfundamentais também apresentam uma faceta positiva. Especificamente versando sobre a dimensão negativae positiva do direito à saúde, v. SARLET, Ingo Wolfgang. “Algumas Considerações em Torno da Eficácia eEfetividade do Direito à Saúde na Constituição de 1988”. Revista Interesse Público 12: 91-107, 2001.

60 Sobre o tema, vale conferir sobretudo a lição de ROBERT ALEXY, op. cit., p. 173-245.

Page 105: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 355

no Pacto, mediante todos os meios apropriados, incluindo especialmentemedidas de ordem legislativa, do que por si só já transparece a referidadimensão positiva (prestacional) do direito à moradia. Para além disso,na esteira do que vem entendendo o Comitê da ONU, a adoção de medi-das legislativas, por si só não esgota as obrigações dos Estados signatáriosdo Pacto, impondo-se também o desenvolvimento de políticas concretase a fixação de prioridades, a partir da relevância dos diversos direitosfundamentais sociais. Por outro lado, em que pese a exigência de umaimplementação gradativa, já que inexigível uma solução imediata para oproblema da efetivação dos direitos sociais, devem ser destinados recur-sos materiais pelo menos para a sua realização num patamar mínimo.61

Sem que se vá aqui examinar de modo mais detalhado cada obrigaçãoa ser assumida pelos Estados na esfera internacional, o que se verifica,desde logo, é que tais compromissos apenas enrobustecem a constataçãode que o direito à moradia apresenta uma face defensiva e prestacional,implicando um feixe complexo, conexo e diversificado de posições jurídi-cas fundamentais, com notas distintas até mesmo no âmbito interno daclassificação em direitos negativos e prestacionais. É este precisamente omote do próximo segmento, quando analisaremos, ainda que de modoresumido, algumas das principais manifestações do direito à moradia, noque diz com a sua já anunciada dupla função defensiva e prestacional,pelo prisma da sua possível eficácia e efetividade.

Algumas manifestações concretas de uma eficáciae efetividade possíveis do direito à moradia na suadupla perspectiva defensiva e prestacional

Significado e alcance da norma contida no art. 5º, § 1º, daConstituição Federal: o princípio da máxima eficácia eefetividade das normas definidoras de direitos e garantiasfundamentais

Pela sua crucial relevância para um adequado manejo das questões

61 Para uma visão panorâmica sobre as diversas obrigações gerais e específicas atribuídas aos Estados pelo Comitêda ONU, no âmbito da proteção internacional dos direitos econômicos, sociais e culturais, com ênfase nodireito à moradia, v. o relatório de SACHAR, Rajindar, op. cit., especialmente p. 10-16.

Page 106: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

356 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

ligadas à eficácia e efetividade62 do direito fundamental à moradia, nãohá como deixar, ainda que sumariamente, de abordar o problema do al-cance e significado da norma contida no art. 5º, § 1º, da nossa Constitui-ção, cujo texto dispõe que “as normas definidoras dos direitos e garantiasfundamentais têm aplicação imediata”. A previsão desta norma no títulodos direitos fundamentais tem sido atribuída à influência exercida poroutras ordens constitucionais sobre o nosso Constituinte63 , bem como aoanteprojeto elaborado pela “Comissão Afonso Arinos”, que, no seu art.10, continha preceito semelhante, ao dispor que “os direitos e garantiasdesta Constituição têm aplicação imediata.” Constata-se, desde logo, quea doutrina pátria (a exemplo do que ocorre no direito comparado) aindanão alcançou um estágio de consensualidade no que concerne ao alcan-ce e significado do preceito em exame, que passou a integrar a pauta dostemas mais polêmicos de nosso direito constitucional.

Como questão preliminar a ser superada, impõe-se o exame da abran-gência material da norma, isto é, se aplicável a todos os direitos funda-mentais (inclusive os situados fora do catálogo), ou se restrita aos direitosindividuais e coletivos do art. 5º da nossa Constituição. Em que pese alocalização topográfica do dispositivo, que poderia sugerir uma exegeserestritiva, o fato é que, mesmo sob o ponto de vista da mera literalidade(o preceito referido é claro ao mencionar “as normas definidoras dos di-reitos e garantias fundamentais”), não há como sustentar uma reduçãodo âmbito de aplicação da norma a qualquer das categorias específicasde direitos fundamentais consagradas na nossa Constituição, nem mesmoaos assim denominados direitos individuais e coletivos.

Mesmo que não nos queiramos contentar com este argumento, enten-demos que uma interpretação teleológica e sistemática acabará por con-duzir aos mesmos resultados. Em primeiro lugar, o nosso Constituinte – aocontrário da Constituição Portuguesa – não traçou nenhuma distinçãoexpressa entre os direitos de liberdade e os direitos sociais de cunho pres-

62 Para efeito deste ensaio, adotamos a já clássica distinção – entre nós consagrada por José Afonso da Silva -entre eficácia jurídica (ou simplesmente eficácia), considerada esta como a possibilidade de na normajurídica gerar os efeitos que lhe são próprios, e a efetividade (ou eficácia social) como sendo a realizaçãoconcreta destes efeitos no plano dos fatos. Para um maior desenvolvimento deste ponto, v. SILVA, JoséAfonso da. Aplicabilidade das Normas Constitucionais. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1982.

63 Esta a lição, dentre outros, de RUSCHEL, Ruy Ruben. “A Eficácia dos Direitos Sociais”. Revista da Associaçãodos Juízes do Rio Grande do Sul 58: 294-295,1993. Neste contexto, vale citar o art. 18/1 da ConstituiçãoPortuguesa de 1976, o art. 332 da Constituição do Uruguai, o art. 1º, inc. III, da Lei Fundamental daAlemanha e o art. 53.1 da Constituição Espanhola de 1978.

Page 107: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 357

tacional. Convém lembrar, que mesmo no capítulo dos direitos sociaisencontramos – como já demonstrado – direitos de natureza defensiva(negativa), não se justificando que pelo menos estes, assim como ocorrecom os direitos políticos, venham a ser excluídos do âmbito de aplicaçãoda norma.64

Do exposto – ainda que não tenhamos esgotado o tema – entendemosque há como sustentar, a exemplo do que tem ocorrido na doutrina,65 aaplicabilidade imediata (por força do art. 5º, § 1º, da Constituição Fede-ral) de todas as normas de direitos fundamentais constantes do Catálogo(arts. 5º a 17), bem como dos localizados em outras partes do texto cons-titucional e nos tratados internacionais. Aliás, a extensão do regime ma-terial da aplicabilidade imediata aos direitos fora do catálogo não encon-tra qualquer óbice no texto de nossa Lei Fundamental, harmonizando,para além disso, com a concepção materialmente aberta dos direitos fun-damentais consagrada, entre nós, no art. 5º, § 2º, da nossa Carta Magna.

Superado este aspecto, cumpre enfrentar o tormentoso problema dosignificado do art. 5º, § 1º, para as diversas categorias de direitos funda-mentais, registrando-se que as diferentes concepções encontradas osci-lam entre os que, adotando posição extremamente tímida, sustentam quea norma em exame não pode atentar contra a natureza das coisas,66 de talsorte que boa parte dos direitos fundamentais alcança sua eficácia ape-nas nos termos e na medida da lei, e os que, situados em outro extremo,advogam o ponto de vista segundo o qual até mesmo normas de cunhonitidamente programático podem ensejar, em virtude de sua imediataaplicabilidade, o gozo de direito subjetivo individual, independentemen-te de concretização legislativa.67

64 Apenas para adiantar a questão, vale frisar que, ao sustentarmos a aplicabilidade imediata de todas as normasde direitos fundamentais, estamos nos referindo à possibilidade de todas as normas encontrarem – namedida de sua eficácia – alguma aplicação direta, sem necessidade de intermediação legislativa. Convémlembrar, neste sentido, o fato de que expressiva doutrina reconhece que mesmo normas de cunhoinequivocamente programático podem gerar a inconstitucionalidade de normas em sentido contrário ouservirem de parâmetro para a interpretação conforme a Constituição. Bastariam, portanto, estes singelosexemplos, para demonstrar que inexiste norma constitucional destituída de aplicabilidade direta.

65 Neste sentido, por exemplo, PIOVESAN, Flávia. Proteção Judicial contra Omissões Legislativas. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 1995, p. 90.

66 Esta a posição de FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. “A Aplicação Imediata das Normas Definidoras deDireitos e Garantias Fundamentais”. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo 29: 35, 1988, umdos mais ilustres representantes desta corrente.

67 Neste sentido posicionam-se, entre outros, GRAU, Eros Roberto, op. cit., p. 322 e seguintes, e RUSCHEL, RuyRuben, op. cit., p. 294 e seguintes.

Page 108: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

358 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Como ponto de partida para a formulação de uma posição pessoal,cumpre observar que, mesmo os defensores mais ardorosos de uma inter-pretação restritiva da norma contida no art. 5º, § 1º, da Constituição,reconhecem que o Constituinte pretendeu, com sua expressa previsão notexto, evitar um esvaziamento dos direitos fundamentais, impedindo queos mesmos “permaneçam letra morta na Constituição.”68 Soma-se a estaconstatação o fato de que, de acordo com a melhor doutrina, inexistenorma constitucional destituída de eficácia e aplicabilidade, sendo possí-vel falar de uma graduação da carga eficacial das normas (de todas) daConstituição,69 o que, de outra parte, não afasta a existência de distin-ções entre as normas constitucionais no que diz com a forma de sua posi-tivação no texto constitucional, assim como uma diversidade de efeitosjurídicos decorrentes deste fenômeno, razão pela qual foram formuladasdiversas teorias propondo uma classificação das normas constitucionaisde acordo com o critério de sua eficácia e aplicabilidade.

Assim, cumpre reconhecer que, mesmo no âmbito das normas defini-doras de direitos e garantias fundamentais, encontram-se algumas nor-mas que a doutrina majoritária entre nós convencionou denominar denormas de eficácia limitada, as quais não teriam condições de gerar aplenitude se seus efeitos sem a intervenção do Legislador.70 Bastaria, nes-te contexto, atentar para os exemplos do art. 5º, inc. XXXII, da Consti-tuição Federal (“O Estado promoverá, na forma da lei, a proteção doconsumidor”) e do art. 7º, inc. XI, (participação dos empregados nos re-sultados ou lucros da empresa). Aliás, mesmo para os autores considera-dos mais ousados e avançados na matéria, não haveria como – sem umaatuação do Legislador - conceder ao indivíduo um direito subjetivo indi-vidual à fruição da participação nos lucros ou resultado da empresa.71

Consoante já frisado alhures, os direitos fundamentais podem cumprir,também em nossa ordem constitucional (pressupondo-se que se cuida dedimensões conexas e não reciprocamente excludentes), a função de di-

68 Assim, por exemplo, leciona FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves, A Aplicação Imediata..., cit., p. 38.69 Esta a lição de DINIZ, Maria Helena. Norma Constitucional e seus Efeitos. São Paulo: Saraiva, 1989, p. 104.70 Neste sentido, v. TEIXEIRA, João Horácio Meirelles. Curso de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Forense

Universitária, 1991, p. 317 e seguintes; SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 73 e 86 e seguintes; assim como,mais recentemente, em excelente estudo sobre as normas programáticas, FERRARI, Regina Maria MacedoNery. Normas Constitucionais Programáticas – Normatividade, Operatividade e Efetividade. São Paulo: Ed.Revista dos Tribunais, 2001, especialmente p. 101 e seguintes.

71 Este o entendimento, por exemplo, de BARROSO, Luís Roberto, op. cit., p. 107-108.

Page 109: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 359

reitos de defesa e de direitos a prestações, distinção que conduz à exis-tência de algumas diferenças essenciais entre ambas as categorias de di-reitos fundamentais, especialmente entre os direitos de defesa e os direi-tos sociais de cunho prestacional. Estes, por seu turno, assumem habitual-mente a feição, no que diz com a sua técnica de positivação e eficácia, denormas carentes de concretização legislativa, o que, de outra parte, nãolhes retira pelo menos um certo grau de eficácia direta e aplicabilidadeimediata. Assim, verifica-se que a norma contida no art. 5º, § 1º, aindaque aplicável a todos os direitos fundamentais, não o poderá ser da mes-ma forma, aspecto que será oportunamente retomado.

Com base no exposto, e partindo da premissa que não há como tomar asério os direitos fundamentais se não se levar a sério o disposto no art. 5º, §1º, da nossa Lei Fundamental, constata-se, desde logo, a necessidade denão subestimarmos (nem superestimarmos) o significado e alcance destanorma. Que este preceito se aplica tão-somente aos direitos fundamentais(sem exceção), e não a todas as normas da Constituição, constitui, por sisó, conclusão que assume particular relevância. Com efeito, em hipótesealguma o significado do art. 5º, § 1º, poderá ser reduzido ao que se atribuiao princípio da constitucionalidade, sob pena de equiparação entre as nor-mas de direitos fundamentais e as demais normas constitucionais,72 o que,além disso, implicaria um esvaziamento significativo da fundamentalidadena sua perspectiva formal e, num certo sentido, também material.

Neste contexto, sustentou-se corretamente que a norma contida noart. 5º, § 1º, impõe aos órgãos estatais a tarefa de maximizar a eficácia dosdireitos fundamentais.73 Além disso, há que dar razão aos que ressaltam ocaráter dirigente desta norma, no sentido de que esta, além do objetivode “assegurar a força vinculante dos direitos e garantias de cunho funda-mental, tem por finalidade tornar tais direitos prerrogativas diretamenteaplicáveis pelos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, (...) investeos poderes públicos na atribuição constitucional de promover as condi-ções para que os direitos e garantias fundamentais sejam reais e efeti-vos.”74 Deste sentido, aproxima-se a lição de Eros Roberto Grau, ao sus-

72 Cf., entre outros, PATTO, Pedro Maria Godinho Vaz. “A Vinculação das Entidades Públicas pelos Direitos,Liberdades e Garantias”. Documentação e Direito Comparado 33/34: 480,1988.

73 Esta a lição de PIOVESAN, Flávia. “Constituição e Transformação Social: a Eficácia das Normas Constitu-cionais Programáticas e a Concretização dos Direitos e Garantias Fundamentais”. Revista da Procuradoria-Geral do Estado de São Paulo 37: 73,1992.

74 Assim também PIOVESAN, Flávia. Proteção Judicial contra Omissões Legislativas..., cit., p. 92.

Page 110: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

360 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

tentar que o Poder Judiciário, em face do dever de respeito e aplicaçãoimediata dos direitos fundamentais ao caso concreto, encontra-se inves-tido do poder-dever de aplicar imediatamente estas normas, asseguran-do-lhes sua plena eficácia.75

De tudo o que até agora foi exposto e levando-se em conta tanto aspossíveis distinções entre os direitos fundamentais na sua dimensão defen-siva (negativa) e prestacional (positiva), assim como a evidência de quemesmo no âmbito dos direitos fundamentais poderemos encontrar (como,de resto, ocorre no nosso direito constitucional positivo) normas de cunhoeminentemente programático (ou impositivo, como sustenta Gomes Cano-tilho),76 somos levados a crer que a melhor exegese da norma contida noart. 5º, § 1º, de nossa Constituição, é a que parte da premissa de que secuida de norma de natureza principiológica, que, por esta razão, pode serconsiderada como uma espécie de mandado de otimização (maximização),isto é, que estabelece para os órgãos estatais a tarefa de reconhecerem, àluz do caso concreto, a maior eficácia possível a todas as normas definidorasde direitos e garantias fundamentais, entendimento sustentado, entre ou-tros, por Gomes Canotillho e entre nós adotado por Flávia Piovesan, comojá ressaltado.77 Percebe-se, portanto, que o postulado da aplicabilidadeimediata não poderá resolver-se, a exemplo do que ocorre com as regrasjurídicas (e nisto reside uma das diferenças essenciais entre estas e as nor-mas-princípio), de acordo com a lógica do tudo ou nada, razão pela qual oseu alcance (isto é, o “quantum” em aplicabilidade e eficácia) dependerádo exame da hipótese em concreto.78

Para além disso (e justamente por este motivo), cremos ser possívelatribuir ao preceito em exame o efeito de gerar uma presunção em favorda aplicabilidade imediata e plena eficácia (e efetividade) das normasdefinidoras de direitos e garantias fundamentais, de tal sorte que eventu-

75 Cf. GRAU, Eros Roberto. op. cit., p. 312 e seguintes.76 Basta, novamente, referir o exemplo da “proteção do consumidor na forma da lei”, cujo conteúdo programático

resta inequívoco, ainda que se trate de dispositivo constante no rol dos direitos individuais e coletivos.77 Outra não é a lição, na Alemanha, de HESSE, Konrad, “Bestand und Bedeutung der Grundrechte in der

Bundesrepublik Deurschland”. In: Europäische Grundrechte Zeitschrift 1978, p. 433), para quem o art. 1º, inc.III, da Lei Fundamental embasa tanto o entendimento de que os direitos fundamentais não se encontramà disposição dos órgãos estatais, quanto impõe a estes a obrigação positiva de fazer tudo o que for necessárioà realização dos direitos fundamentais.

78 A respeito da distinção entre princípios e regras constitucionais v., por todos, especialmente ALEXY,Robert.op. cit., p. 81 e seguintes.

Page 111: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 361

al recusa na outorga da plenitude eficacial (que não implica a negativade eficácia – e, portanto de efeitos - e aplicabilidade) a determinadanorma de direito fundamental, em virtude da ausência de ato concretiza-dor, deverá ser necessariamente fundamentada, à luz do caso concreto eda norma em exame.79 Cuida-se, em verdade, de operação eminente-mente hermenêutica, já que, em última análise, caberá ao intérprete atarefa, considerando os limites mínimos do texto e da razoabilidade, afe-rir qual a eficácia possível a ser imprimida às normas constitucionais. Decomo se poderá imprimir operatividade ao princípio (fundamental) daimediata aplicabilidade e plena eficácia (jurídica e social) das normasdefinidoras de direitos e garantias fundamentais, notadamente no queconcerne às dimensões negativa e positiva do direito à moradia, é tarefaa que nos dedicaremos, ainda que sumariamente, no item que segue.

Importante é que tenhamos presente que também para o art. 5º, § 1º,da nossa Constituição e o direito fundamental à moradia, vale a adver-tência de Laurence Tribe, no sentido de que as cláusulas constitucionaisnão devem ser tratadas como um espelho, no qual todos enxergam o quedesejam ver.80 Como o direito à moradia poderá ter sua eficácia e efetivi-dade maximizada, irá depender de qual a manifestação deste direito, emsuma, de qual seja o tipo de direito à moradia (negativo ou positivo) queestiver em causa e, acima de tudo, de uma exegese prudente e constitu-cionalmente adequada.

O direito à moradia na condição de direito de defesa

No âmbito da assim denominada dimensão negativa ou daquilo quepara muitos é tida como a função defensiva dos direitos fundamentais, ve-rifica-se que a moradia, como bem jurídico fundamental, encontra-se, emprincípio, protegida contra toda e qualquer sorte de agressões de terceiros.O Estado, assim como os particulares, tem o dever jurídico de respeitar e denão afetar a moradia das pessoas, de tal sorte que toda e qualquer medidavioladora do direito à moradia é passível de ser impugnada em Juízo, seja

79 Neste sentido, v. PATTO, Pedro M.G.V., op. cit., p. 484 e seguintes, assim como DÜRIG, Günter. “Anmerkungenzu Art. 1 Abs. 1 bis 3 GG”. In: MAUNZ/DÜRIG/HERZOG/SCHOLZ, Grundgesetz-Kommentar. München:C.H. Beck, 1994, v. 1, p. 43.

80 Cf. TRIBE, Laurence & DORF, Michael. On Reading the Constitution. Cambridge: Harvard University Press,1991, p. 7.

Page 112: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

362 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

na esfera do controle difuso e incidental, seja por meio do controle abstratoe concentrado de constitucionalidade, ou mesmo por intermédio dos ins-trumentos processuais específicos disponibilizados pela ordem jurídica. Éprecisamente esta a dimensão – a função defensiva do direito à moradia –a que se referem as diretrizes internacionais acima mencionadas, quandoutilizam os termos “respeitar” e “proteger”.81

No que diz com o significado do art. 5, § 1º, da Constituição Federal,para os direitos de defesa (negativos), estes, por reclamarem (em princí-pio) uma atitude de abstenção por parte dos destinatários, virtualmentenão costumam ter sua plenitude eficacial e, portanto, sua imediata apli-cabilidade questionada seriamente. Na medida em que se dirigem a umcomportamento em geral omissivo, exigindo o respeito e a não ingerênciana esfera da autonomia pessoal ou no âmbito de proteção do direito fun-damental, não se verifica, em regra, a dependência da realização destesdireitos de prestações fáticas ou normativas por parte dodestinatário.82 Além disso, a aplicabilidade imediata e plena eficácia des-tes direitos encontram explicação na circunstância de que as normas queos consagram receberam do Constituinte, de modo geral, a suficientenormatividade e independem de concretização legislativa, consoante,aliás, já se sustentava no bojo da clássica teoria das normas auto-execu-táveis.83 Justamente na esfera dos direitos de defesa, é possível afirmarque a norma contida no art. 5º, § 1º, da nossa Carta Magna, tem porobjetivo precípuo oportunizar a aplicação imediata, sem qualquer inter-mediação concretizadora, assegurando a plena justiciabilidade destes di-reitos, no sentido de sua exigibilidade integral em Juízo.84

Nesta linha de entendimento, vale a pena consignar o ensina-mento de Vieira de Andrade, para quem, em se cuidando de direitos,

81 Fica o registro de que o dever de proteção do Estado, para além da imposição de um dever de respeito e não-violação (dimensão negativa propriamente dita) abrange a necessidade de praticar atos concretos nosentido de alcançar uma proteção minimamente eficaz do direito à moradia, que, por sua vez, pode ocorrerpela edição de atos normativos ou mesmo outros atos concretos destinados a salvaguardar a moradia(direitos a prestações normativas e fáticas), aspecto este que será considerado logo a seguir e que diz coma dimensão prestacional (positiva).

82 Esta a lição de BARROSO, Luís Roberto. op. cit., p. 105, ressaltando que estes direitos , de matriz liberal-burguesa, têm a seu favor a própria lei da inércia.

83 V. o entendimento de BARBOSA, Rui. Comentários à Constituição Federal Brasileira (coligidos e ordenados porHomero Pires). São Paulo: Saraiva, v. 2, 1934, p. 483 e seguintes.

84 Cf. a lição de MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional..., cit., v. 4, p. 277, quando refere a imediatainvocabilidade das normas exeqüíveis por si mesmas.

Page 113: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 363

liberdades e garantias (direitos de defesa, em última análise) e em ocor-rendo a falta ou insuficiência de lei, “o princípio da aplicabilidade diretavale como indicador de exeqüibilidade imediata das normas constitucio-nais, presumindo-se sua perfeição, isto é, a sua auto-suficiência baseadano caráter líquido e certo do seu conteúdo de sentido. Vão, pois, aqui,incluídos o dever dos Juízes e dos demais operadores jurídicos de aplica-rem os preceitos constitucionais e aautorização de para esse fim os con-cretizarem por via interpretativa.”85 Ainda que existam, na esfera dosdireitos de defesa, normas vagas e abertas, estas podem ter seu conteúdodefinido pelo recurso às regras hermenêuticas, não havendo, portanto,necessidade de remeter esta função para o legislador.86

As diretrizes fixadas, evidentemente alcançam boa parcela dos direi-tos sociais consagrados na nossa Constituição, notadamente todos os queexercem uma função precipuamente defensiva (diretos negativos, por-tanto), ou mesmo quando se cuidar de direitos que em princípio são tidoscomo prestacionais, mas que igualmente revelam uma dimensão negati-va, o que restará amplamente demonstrado logo a seguir à luz do exemplodo direito à moradia aqui versado. Quanto a estes direitos sociais (isto é,a dimensão negativa dos direitos sociais), já se sustentou, entre nós, quedesencadeiam sua plenitude eficacial, gerando para seu titular um direi-to subjetivo, isto é, situações prontamente desfrutáveis, dependentes apenasde uma abstenção.87 Sintetizando, podemos afirmar que, em se tratandode direitos de defesa, a lei não se revela absolutamente indispensável àfruição do direito. Reitere-se, neste contexto, que inexiste qualquer ra-zão para não fazer prevalecer o postulado contido no art. 5º, § 1º, daConstituição, já que não se aplicam a estas hipóteses (dos direitos dedefesa) os argumentos usualmente esgrimidos contra a aplicabilidadeimediata dos direitos a prestações, especialmente os da ausência ou insu-ficiência de recursos ou mesmo a ausência de legitimação dos tribunaispara a definição do conteúdo e do alcance da prestação.88

Os direitos de defesa constituem, em princípio, direito subjetivo in-

85 Cf. VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. op. cit., p. 256-257.86 Id., ibid., p. 257.87 É o que advoga BARROSO,Luís Roberto. op. cit., p. 106, referindo-se ao direito de greve (art. 9º, da CF).88 Tal entendimento segue sustentável, ainda que se reconheça, na esteira de Holmes e Sunstein, que todos os

direitos possuem uma dimensão positiva, já que, consoante já referido, na dimensão negativa (ou seja,quando os direitos fundamentais estiverem sendo considerados como direitos de defesa) inexistem obstá-culos ao reconhecimento imediato de posições subjetivas pelos órgãos do Poder Judiciário.

Page 114: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

364 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

dividual, enquadrando-se, de acordo com a concepção desenvolvidapor Celso Antônio Bandeira de Mello naquelas situações em que a nor-ma constitucional outorga ao particular uma situação subjetiva ativa(um poder jurídico), cujo desfrute imediato independe de qualquer pres-tação alheia, bastando, para tanto (como também refere Luís R. Barro-so), uma atitude abstencionista por parte do destinatário da norma.89

Por evidente que, para além de uma posição jurídico-subjetiva (que,consoante bem demonstrou Alexy pode manifestar-se de formas dife-renciadas)90 , as normas constitucionais definidoras de direitos de defe-sa podem gerar uma série de outros efeitos, inclusive na esfera jurídico-objetiva, efeitos que, de resto, são comuns a todas as normas de direitosfundamentais.91

Mesmo diante do exposto, não há como sustentar que o direito àmoradia, assim como ocorre com os demais direitos fundamentais, possaser considerado, em princípio (e mesmo na sua dimensão negativa),como sendo um direito absoluto, no sentido de completamente imune arestrições.92 Tal aspecto assume especial relevância quando se verifica,por exemplo (tomando por referência ingerências oriundas dos órgãosestatais), a necessidade de o poder público promover desapropriações,ainda que com inequívoca finalidade social e coletiva, que acabamgerando, além da perda do domínio para os expropriados, o desapossa-mento e perda da moradia, neste caso, passível de compensação quan-do efetivamente assegurada a justa e necessária indenização prevista

89 Cf. MELLO, Celso Antonio Bandeira de. “Eficácia das Normas Constitucionais sobre Justiça Social”. Revistade Direito Público 57/58: 242,1981.

90 Para ALEXY, Robert. op. cit., p. 173 e seguintes, os direitos fundamentais defensivos, na qualidade de direitossubjetivos, agrupam-se em três categorias: a) direitos ao não-impedimento de ações por parte do titular dodireito; b) direitos à não-afetação de propriedades ou situações do titular do direito; c) direitos à não-eliminação de posições jurídicas.

91 É neste contexto, entre outros aspectos que poderiam ser citados, que a doutrina e jurisprudência germânicaspassaram a reconhecer uma assim designada (e a terminologia não restou imune a críticas) eficáciairradiante dos direitos fundamentais, considerados também como elementos integrantes de uma ordem devalores objetiva, sobre o restante do ordenamento jurídico. Para uma compreensão da dimensão jurídico-objetiva dos direitos fundamentais, v. dentre outros, HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts derBundesrepublik Deutschland. Heidelberg: C.F. Müller, 1995, p. 133 e seguintes (existe tradução de LuísAfonso Heck para a língua portuguesa: HESSE, Konrad. Elementos de Direito Constitucional da Alemanha.Porto Alegre: Sérgio Fabris Editora).

92 Com efeito, o fato de estarmos diante de normas de eficácia plena, capazes de gerarem todos os seus efeitos,inclusive na esfera subjetiva, não afasta a potencial restringibilidade destes efeitos, notadamente no quediz com o exercício dos direitos subjetivos, de tal sorte que a possibilidade de sofrer restrições não seconstitui, em absoluto, um “privilégio” das assim denominadas normas de eficácia contida, consagradas nodireito pátrio pela obra de José Afonso da Silva.

Page 115: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 365

na Constituição. Também a desocupação de área de proteção ambien-tal, estribada portanto, em outro valor constitucional fundamental, po-derá levar a desapossamentos e afetar o direito à moradia não apenas deuma pessoa ou família, mas de uma coletividade inteira, sem que taisobjetivos possam ser alcançados de modo arbitrário e de tal sorte a im-por um sacrifício do direito à moradia dos atingidos pelas medidas. Étambém por esta razão que a normativa internacional (de modo especi-al a Agenda Habitat) e as diretrizes fixadas pelos organismos de contro-le, impõe aos Estados a garantia de uma segurança jurídica efetiva daposse utilizada para moradia, seja pela edição de legislação regulamen-tando os desapossamentos,seja pela observância do devido processo le-gal e assegurando uma proteção adequada contra medidas arbitrárias,entre outros aspectos a serem considerados.93

Nas relações entre particulares, onde o direito à moradia, notada-mente (mas não exclusivamente) na sua dimensão defensiva, tambémalcança eficácia e vinculatividade,94 igualmente são comuns as situa-ções de conflito entre o direito à moradia e outros bens fundamentaissalvaguardados pela Constituição, destacando-se o direito de proprie-dade (como pode ocorrer numa ação movida pelo locador proprietáriocontra o inquilino). Da mesma forma, verifica-se a ocorrência de con-flitos (ou colisões, se preferimos) entre o direito à moradia de pessoassituadas em pólos opostos da demanda, por vezes ambos igualmente ca-rentes de recursos, do que dão conta os casos – cada vez menos raros -de ações de reintegração de posse intentadas por pessoas que tiveramseu casebre edificado em “área verde” ocupado (até mesmo quando seencontravam no trabalho) por terceiros, ainda que igualmente ou atémesmo mais humildes e carentes.

93 Cf. aponta CRAVEN, Matthew, op. cit., p. 335 e seguintes, consignando que o direito à moradia inclui odireito a não ser privado arbitrariamente da moradia

94 Aqui iremos desconsiderar a discussão a respeito de uma eficácia imediata (direta)ou mediata (indire-ta) do direito à moradia e dos direitos fundamentais em geral no âmbito das relações entre particu-lares, partindo do pressuposto de que tal eficácia ocorre, implicando uma vinculação não apenas dolegislador e do Poder Judiciário na esfera cível (do direito privado), mas também uma eficácia queopera em relação aos atos dos particulares. A respeito desta temática, remetemos ao nosso “DireitosFundamentais e Direito Privado: Algumas Considerações em Torno da Vinculação dos Particularesaos Direitos Fundamentais”. In: __. (Org.). A Constituição Concretizada: Construindo Pontes com oPúblico e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 107-164. De qualquer modo, em faceda amplitude e complexidade do problema da eficácia do direito à moradia na órbita jurídico-privada,aqui não faremos mais do que algumas referências, imprescindível a realização de estudo de maiorenvergadura.

Page 116: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

366 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Sem que se vá aqui aprofundar o ponto, importa frisar que, mesmoonde se cuida de uma relação onde podem estar em causa direitos funda-mentais de titulares diversos, circunstancialmente em rota de colisão,impõe-se a difícil tarefa de, considerando o dever de proteção de todos osdireitos fundamentais de todas as pessoas, analisar a viabilidade de umarestrição, que, em qualquer caso, deverá observar, no âmbito de umanecessária interpretação tópico-sistemática,95 entre outros aspectos, a pre-servação do núcleo

essencial de cada direito e os critérios impostos pelo princípio da pro-porcionalidade, que,por sua vez, sempre acaba por implicar uma pondera-ção de bens ou interesses.96 Em síntese, também aqui não há como fugirde uma hierarquização97 dos valores em pauta, tarefa no contexto daqual o princípio da dignidade da pessoa humana (cuja conexão com odireito à moradia já restou amplamente demonstrada) assume particularrelevância como critério de solução, privilegiando-se – na esteira da opor-tuna lição de Juarez Freitas – a opção (e, portanto, também a interpreta-ção) mais favorável à dignidade da pessoa98 .

95 A respeito da necessária hierarquização no âmbito de uma igualmente impositiva interpretação tópico-sistemática, v. os preciosos contributos de FREITAS, Juarez. Interpretação Sistemática do Direito. São Paulo:Malheiros, 1995, p. 49 e seguintes, assim como, mais recentemente, PASQUALINI, Alexandre. Hermenêuticae Sistema Jurídico. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 89 e seguintes.

96 Sobre a temática específica das restrições (e, de modo geral, dos limites) dos direitos fundamentais (abran-gendo a colisão de direitos e a problemática da ponderação de interesses) v., representando a doutrinaalienígena, a lição de ALEXY, Robert. op. cit., p. 267 e seguintes. Entre nós, já se registra a produção defarta e qualificada literatura a respeito, destacando-se, dentre outros trabalhos e restringindo-nos aqui àprincipal produção monográfica, as obras de STUMM, Raquel Denise. Princípio da Proporcionalidade noDireito Constitucional Brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1995; BARROS, Suzana de Toledo. OPrincípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais.Brasília: Brasília Jurídica, 1996; FARIAS, Edilsom Pereira de. Colisão de Direitos. A Honra, a Intimidade, aVida Privada e a Imagem versus a Liberdade de Expressão e Informação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1996;SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000;MENDES, Gilmar Ferreira, COELHO, Inocêncio Mártires & BRANCO, Paulo Gustavo Gonet.Hermenêutica Constitucional e Direitos Fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000; STEINMETZ, WilsonAntonio. Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade. Porto Alegre: Livraria do Advoga-do, 2001, e, mais recentemente, SCHÄFFER, Jairo. Direitos Fundamentais. Proteção e Restrições. PortoAlegre: Livraria do Advogado, 2001.

97 Aqui vale registrar que no âmbito daquilo que a doutrina majoritária, especialmente na esteira de RobertAlexy, convencionou designar de ponderação de bens (ou interesses), sempre ocorre – como bem demons-trou Juarez Freitas – uma hierarquização de valores, princípios ou normas (note-se, que, ao contrário deAlexy, o notável jurista gaúcho adota uma outra abordagem do sistema jurídico, como englobando as trêscategorias já referidas).

98 Cf. FREITAS, Juarez. “Tendências Atuais e Perspectivas da Hermenêutica Constitucional”. Revista daAssociação dos Juízes do Rio Grande do Sul – AJURIS 76: 406, 1999.

Page 117: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 367

É nesta perspectiva também que se verifica, desde logo e indepen-dentemente da possibilidade de se assegurar um direito à prestações, oquanto em eficácia e efetividade pode ser atribuído ao direito à mora-dia, já na sua dimensão defensiva, o que, por si só, já bastaria parademonstrar a sua normatividade e relevância prática. Para além da jáapontada necessidade de edição de medidas legislativas objetivandouma efetiva proteção da moradia, Juízes e Tribunais encontram-se igual-mente vinculados diretamente pelo direito à moradia, devendo zelar,no caso concreto, pela sua máxima eficácia e efetividade, tanto quandointerpretarem o direito ordinário em conformidade com as normas dedireitos fundamentais, seja quando estiverem atuando estritamente nocontrole da constitucionalidade de eventuais restrições impostas ao di-reito à moradia, pelo poder público, ou no âmbito das relações entreparticulares, especialmente quando estiverem em causa situações ca-racterizadas por uma colisão (e aqui adotamos a terminologia mais cor-rente) de direitos, nas quais o direito à moradia acaba sendo oposto adireito de terceiro.

Não se poderá, portanto, olvidar nem minimizar a necessidade de umainterpretação conforme a Constituição e os direitos fundamentais, já exis-tindo significativa jurisprudência – até mesmo (consoante já frisado) an-tes da incorporação expressa do direito à moradia ao texto constitucional– a considerar, no caso concreto, a necessidade de proteção da moradiaem face de outros interesses. Bastaria aqui, a título meramente ilustrati-vo, referir o exemplo da impenhorabilidade do imóvel que serve de mora-dia para o fiador e sua família, ainda que a penhora, nestas circunstânci-as, tenha sido viabilizada pelo legislador ordinário. Neste sentido, dentreoutras tantas decisões que poderiam ser colacionadas, aproveitamos paracitar Acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, da lavra doDesembargador Adão Sérgio do Nascimento Cassiano, onde restou con-signado que o fiador não pode perder a sua moradia em face de direitospatrimoniais do credor, notadamente quando existem outros meios paraque este assegure o seu crédito.99

Ainda no contexto da sua condição de direito de defesa, impõe-se

99 Cf. decisão no Agravo de Instrumento nº 70000649350, do dia 28.03.2000, 1ª Câmara Especial Cível do TJRS.Nesta mesma linha, inclusive reproduzindo trecho da decisão proferida no Agravo de Instrumento citado,situa-se o Acórdão em sede de Embargos Infringentes (Embargos nº 70.003.0178.78, 8º Grupo Cível),relatado pelo Des. Paulo Monte Lopes e julgado no dia 09.11.2001.

Page 118: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

368 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

referência à proteção do direito à moradia contra um retrocesso, isto é,contra uma supressão ou esvaziamento por parte, principalmente, do le-gislador.100 Tomando o assim denominado princípio da proibição de retro-cesso (que, em princípio, não tem o condão de afastar necessárias e legí-timas restrições e adaptações no âmbito da indispensável liberdade deconformação da qual dispõe o legislador numa ordem democrática) numsentido mais amplo do que o convencional, poder-se-á sustentar (emborase cuide de aspecto reconhecidamente controverso) que o direito à mo-radia (notadamente pela sua estreita vinculação com o direito à vida e adignidade da pessoa) não mais poderá ser suprimido dotexto da Consti-tuição por meio de emenda constitucional, passando a integrar o elencodos limites materiais (ainda que na condição de limite implícito) da nos-sa Constituição, nem ser objeto de restrição – igualmente no bojo de umareforma constitucional - que venha a atingir o núcleo essencial (no míni-mo o conteúdo existencial) do direito à moradia, que, de resto – conso-ante já demonstrado – encontra proteção também em face de eventuaismedidas restritivas impostas pelo poder público e no âmbito das relaçõesentre particulares.101

Para além disso (e este o sentido estrito da proibição de retrocesso),encontra-se vedada a possibilidade de o legislador infraconstitucionaldesconstituir pura e simplesmente o grau de concretização que ele pró-prio conferiu às normas constitucionais, notadamente quando se cuidade normas que, em maior ou menor escala, acabam por depender destas

100 Neste contexto, já se fala na existência de um princípio de vedação do retrocesso em matéria de direitosfundamentais, temática que, embora ainda não esteja suficientemente difundida e versada entre nós, temencontrado crescente acolhida no âmbito da doutrina mais afinada com a concepção do Estado democrá-tico de Direito consagrado pela nossa ordem constitucional. Dentre a literatura pátria, versando especi-ficamente a respeito da proibição de retrocesso, v. o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 373e seguintes, assim como o igualmente da nossa lavra “O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocessoe a Garantia Fundamental da Propriedade”. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS 17: 111-132, 1999(embora aqui priorizando a perspectiva alemã). Também entre nós, confira-se, ainda, o contributo deSTRECK, Lenio Luís Hermenêutica Jurídica e (m) Crise..., cit., p. 31 e seguintes. No âmbito da literaturaestrangeira, v. especialmente a posição favorável (mas prudente) de CANOTILHO, Joaquim José Gomes.Direito Constitucional e Teoria da Constituição..., cit., p. 326 e seguintes, afirmando, em síntese e, no nossosentir, com inteira razão, que “a liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidadetêm como limite o núcleo essencial já realizado.”

101 A respeito dos limites materiais à reforma constitucional e mesmo enfrentando o tema específico e contro-verso (dada a existência de posições antagônicas) dos direitos sociais na sua condição de ‘cláusulaspétreas”, existe farta e boa doutrina nacional. Neste sentido, remetemos para a leitura, para além do nossoa Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p. 353 e seguintes, onde desenvolvemos o ponto, às recentes eimportantes contribuições de COSTA E SILVA, Gustavo Just da. Os Limites da Reforma Constitucional. Riode Janeiro: Renovar, 2000, assim como VIEIRA, Oscar Vilhena. A Constituição e sua Reserva de Justiça – UmEnsaio sobre os Limites Materiais ao Poder de Reforma. São Paulo: Malheiros, 1999.

Page 119: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 369

normas infraconstitucionais para alcançarem sua plena eficácia e efetivi-dade, em outras palavras, para serem aplicadas e cumpridas pelos órgãosestatais e particulares.102 Assim, parece razoável sustentar que o legisla-dor complementar pátrio não poderia revogar integralmente ou em as-pectos essenciais – sem oferecer qualquer alternativa compensatória si-milar – o novo “Estatuto da Cidade” (Lei nº 10.257/2001), editado maisde década após a promulgação da Constituição, já que se cuida inequi-vocamente de instrumento essencial para uma maior eficácia e efetivida-de do direito à moradia na ordem jurídica brasileira. Certo é que mesmonão se estando a tratar aqui de uma alteração da própria Constituição(num sentido formal) ainda assim estaríamos diante da hipótese de umverdadeiro golpe contra a nossa Lei Fundamental, de tal sorte que, emconfigurada esta hipótese, sempre se poderá impugnar, via judicial, estetipo de procedimento, invocando a sua inconstitucionalidade, cuidando-se – como bem o ressalta Gomes Canotilho – em importante conseqüên-cia jurídico-subjetiva dos direitos sociais na sua dimensão prestacional.103

A partir do exposto, verifica-se que a vedação (ainda que necessaria-mente não absoluta) de um retrocesso também na esfera legislativa, reve-la de modo emblemático que mesmo os direitos sociais a prestações típi-cos apresentam uma dimensão de natureza negativa (defensiva)104 que -caso bem manejada – assume papel de destaque na sua proteção. Ao fime ao cabo, a temática da proibição de retrocesso insere-se no contexto dapossibilidade – amplamente reconhecida também entre nós – de quequalquer pessoa titular de um direito fundamental social (ainda que não

102 Na doutrina alienígena, notadamente de matriz germânica, o reconhecimento de uma proibição de retroces-so social alcançou relevância como modo de fundamentar constitucionalmente a proteção dos direitossociais assegurados na legislação infraconstitucional, especialmente em face da ausência de previsãoexpressa da figura dos direitos adquiridos e pelo fato de que na Alemanha (assim como em outrasConstituições da Europa) praticamente não foram previstos direitos fundamentais sociais no plano dodireito constitucional positivo. Importa, ainda, repisar – para espancar eventuais incompreensões – quecomungamos do entendimento de que mesmo as normas tidas como de eficácia limitada (mas sempre comeficácia) são – nos limites da sua possível eficácia – imediatamente (isto é, diretamente) aplicáveis.

103 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Coimbra: Coimbra Ed.,1982, p. 374. Registre-se, por conveniente, que muito embora o próprio autor tenha revisto e até mesmoconsiderado como superadas boa parte das suas idéias expostas na obra ora citada (recomenda-se aqui aleitura do prefácio da segunda edição, veiculada no ano de 2001), no que diz com a proibição de retrocessoe suas conseqüências, de modo geral foram mantidos os elementos nucleares da concepção original, do quedá conta a versão mais recente da sua Teoria da Constituição, já citada mais acima.

104 Neste sentido já se haviam posicionado CANOTILHO, José Joaquim Gomes & MOREIRA, Vital. Funda-mentos da Constituição. Coimbra: Coimbra Ed., 1991, p. 131, afirmando que os direitos a prestações sociaisassumem, neste contexto, a condição de típicos direitos de defesa.

Page 120: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

370 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

regulamentado em lei) dispõe no sentido de impugnar medidas que coli-dam frontalmente com o direito assegurado pela Constituição ou quevenham a frustrar a sua implementação, em suma, que se enquadramnaquilo que significativa doutrina tem denominado (sem que se vá aquienfrentar o mérito da questão terminológica) de direitos subjetivos emsentido negativo.105

Dimensão prestacional (positiva) do direito à moradia

Voltando-nos agora, ainda que de forma necessariamente sumária, aoproblema da eficácia e efetividade do direito à moradia na sua dimensãoprestacional, não há dúvida de que a pergunta mais angustiante e prova-velmente a que coloca as maiores dificuldades para uma adequada res-posta, diz com a possibilidade de o titular do direito à moradia (em prin-cípio, qualquer pessoa, em homenagem ao princípio da universalidadedos direitos fundamentais), com base nas normas constitucionais que lheasseguram este direito, exigir do poder público (e eventualmente até mesmode um particular) alguma prestação material que venha a lhe asseguraruma moradia compatível com as exigências de uma vida digna. Em sínte-se, coloca-se a questão de se o poder público pode (e deve) ser compelidoa disponibilizar, no todo ou em parte, uma moradia para os que demons-trarem a sua falta e a impossibilidade de aquisição ou acesso por seuspróprios meios.

Apenas este aspecto da problemática, pela miríade de questões cone-xas (jurídicas e metajurídicas) que suscita, já reclamaria bem mais doque um singelo artigo para o seu adequado enfrentamento, além de evi-denciar de modo particularmente contundente a afirmativa e o questio-namento recentemente formulados de modo sugestivo entre nós, no sen-tido de que “direitos não nascem em árvores”.106 Por outro lado, verifica-

105 Cf., dentre tantos, MEIRELLES TEIXEIRA, João Horácio, op. cit., p. 343 e seguintes; RUSSOMANO,Rosah. (“Das Normas Constitucionais Programáticas”. In: BONAVIDES, Paulo et al. As Tendências Atuaisdo Direito Público. Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 281 e seguintes); SILVA, José Afonso da. op. cit., p. 147e 156 e seguintes; e, mais recentemente, na esteira de BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. op. cit.,p. 243; BARROSO,Luís Roberto. op. cit., p. 243, todos sustentando, em síntese, o direito de o indivíduoopor-se judicialmente ao cumprimento de regras ou à sujeição de atos que o venham atingir pessoalmentee que sejam contrários ao sentido do preceito constitucional.

106 Este justamente (Direitos não nascem em Árvores) o instigante título ostentado pela bela dissertação deMestrado defendida recentemente na UERJ, sob o competente orientação de RICARDO LOBO TOR-RES, pelo hoje já mestre e professor FLÁVIO GALDINO, em janeiro de 2001, ainda não publicada.

Page 121: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 371

se, desde logo, que este não é sequer o único problema vinculado àdimensão prestacional do direito à moradia. Tal constatação, contudo,não obstante acabe gerando ainda mais frentes a serem exploradas e ou-tros problemas a serem resolvidos, demonstra, de modo contundente, quemesmo na sua condição de direito a prestações, o direito a moradia abrangeum leque multifacetado de opções e possibilidades, inclusive no que dizcom a viabilidade de sua efetivação.

Neste contexto e antes de seguirmos, convém lembrar que é justa-mente na sua dimensão prestacional (e em função desta) que os direitossociais – e o direito à moradia em especial – têm sido enquadrados nacategoria das normas constitucionais programáticas (ou impositivas deprogramas, fins e tarefas, como sugere Canotilho), posição esta que aindaparece refletir a posição dominante, notadamente no direito comparadoe internacional. Tal entendimento – apenas a título ilustrativo – restouconsignado, reiteradamente, pelo Tribunal Constitucional de Portugal,sustentando, na esteira do magistério de Gomes Canotilho e Vieira deAndrade, que o direito à habitação, compreendido como direito a teruma moradia condigna, constitui um direito a prestações, cujo conteúdonão pode ser determinado ao nível das opções constitucionais e pressupõeuma tarefa de concretização e de mediação do legislador ordinário, nãoconferindo ao cidadão um direito imediato a uma prestação efetiva, jáque não é diretamente aplicável, nem exeqüível por si mesmo.107

Sem que aqui se possa e pretenda adentrar a instigante discussão emtorno das assim denominadas normas constitucionais programáticas (oude cunho programático),108 não há como desconsiderar que o direito àmoradia inequivocamente também (mas não só) assume, no que diz coma sua perspectiva prestacional, a condição de norma programática, im-pondo ao poder público a tarefa de atuar positivamente na promoção,proteção, enfim, na concretização das metas constitucionalmente esta-belecidas, no sentido de assegurar uma moradia compatível com as exi-gências da dignidade da pessoa humana para a população. Por outro lado,também é certo (pelo menos para expressiva doutrina) que os direitossociais prestacionais – em que pese sua dimensão programática – nem por

107 Cf. Acórdão nº 29/2000, 1ª Secção, relatado pelo Conselheiro Artur Maurício, reproduzindo, neste ponto, oque já havia sido decidido no Acórdão nº 131/1992, tido como o “leading case” do Tribunal Constitucionalnesta matéria (direito à moradia como direito a prestações).

108 Especificamente a respeito deste tema, lembramos a já referida e recente obra de REGINA FERRARI, op. cit.

Page 122: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

372 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

isso perdem em fundamentalidade.109 Da mesma forma, importa repisarque mesmo as normas constitucionais programáticas não são destituídasde eficácia (ainda que eventualmente mais reduzida) além de serem –na medida da sua eficácia – diretamente aplicáveis, não sendo, de resto,poucos e inexpressivos os efeitos jurídicos que delas se pode extrair inde-pendentemente de uma intermediação do legislador.110

Retomando aqui a noção de que existe todo um leque de possibilida-des, também no que diz com a eficácia e efetividade dos direitos sociaisprestacionais, bem como em se partindo da premissa de que objeto dosdireitos a prestações pode assumir a feição tanto de prestações fáticas(materiais) quanto normativas e que uma das principais – se não a prin-cipal – manifestação do dever de proteção do Estado (que, ao menossegundo expressiva doutrina, resulta num correspondente direito à pro-teção que tem como titular o particular)111 para com os direitos funda-mentais consiste na edição de medidas legislativas com o objetivo desalvaguardar, de forma efetiva, o direito fundamental ou viabilizar a sua-implementação, em se cuidando de um direito a prestações materiais,verifica-se que também no concernente ao direito à moradia tais premis-sas encontram possível aplicação.

Assim, por exemplo, registra-se (inclusive no âmbito do direito interna-cional) a necessidade de uma legislação versando sobre o regime das loca-ções residenciais que, sem desguarnecer os direitos do proprietário, impe-ça, de outra parte, abusos praticados em relação ao locatário, especialmen-te em situação de necessidade e manifesta hipossuficiência, seja pela previ-são da impossibilidade de uma retomada imotivada, seja pelo controle dospreços dos alugueres e de seus reajustes, ou mesmo pela imposição de pra-

109 Para tanto, v. , entre outros, CANOTILHO, Joaquim José. Direito Constitucional e Teoria da Constituição...,cit.,p. 444, discorrendo sobre os diversos modos de positivação dos direitos fundamentais econômicos, sociaise culturais.

110 Sobre os diversos efeitos jurídicos das normas habitualmente designadas de eficácia limitada (de cunhoprogramático e/ou impositivo de legislação e ações concretas do poder público) v. o nosso A Eficácia dosDireitos Fundamentais, cit., p. 268 e seguintes. Consigne-se, ainda neste contexto, que quando versamossobre a dimensão negativa do direito à moradia, já se fez referência a uma série de efeitos importantesinerentes ao direito à moradia, plenamente compatíveis mesmo com sua perspectiva programática.

111 Cf., paradigmaticamente, ALEXY, Robert. op. cit., p. 435 e seguintes, não obstante seja objeto de amplacontrovérsia a possibilidade de subjetivação nesta esfera, isto é, de se reconhecer uma dimensão jurídico-subjetiva dos direitos à proteção. Como contraponto (muito embora haja apenas parcial divergência), valemencionar as ponderações de HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland,cit., p. 156.

Page 123: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 373

zos razoáveis para a desocupação, dentre outros aspectos que poderiam sermencionados e sem que se vá aqui adentrar o mérito da correção das op-ções legislativas atualmente vigentes entre nós nesta seara.

Já na esfera de um direito à moradia como direito de acesso a umahabitação, igualmente existe um leque amplo de possibilidades, comodemonstra a criação de linhas de financiamento específicas facilitando aaquisição ou construção de residências especialmente para pessoas debaixo poder aquisitivo, o estabelecimento de um sistema de mutirões, oumesmo a criação de uma rubrica específica na esfera da assistência social(como ocorre em diversos países industrializados) destinada a cobrir – emcaráter temporário e em montante variável de acordo com as circunstân-cias do caso concreto – despesas com habitação (pagamento de alugue-res), nesta hipótese com a vantagem de que com isto estarão sendo esti-mulados investimentos na construção de habitações, por sua vez refletin-do no incremento dos níveis de emprego e fomento da economia.112

No caso brasileiro, a facilitação da aquisição da propriedade pelo usu-capião, especialmente a partir da Constituição de 1988, mediante a provada posse exercida de forma mansa e pacífica, por um período de cincoanos, desde que demonstrada a utilização (dentre outros requisitos) doimóvel para moradia própria e da família, revela – como já lembrado alhures- que a moradia atua como fundamento da aquisição da propriedade emface de outros particulares (no caso, aquele em nome de quem está regis-trado o imóvel),revelando que, de certo modo, poder-se-á até mesmo (enos parece razoável este ponto de vista) sustentar uma eficácia nas rela-ções entre particulares da dimensão prestacional do direito à moradia.

Com a recente edição do assim designado “Estatuto da Cidade” (Leinº 10.257/2001), o legislador pátrio certamente deu mais um passo deci-sivo para uma mais efetiva implementação do direito à moradia. Apenaspara ilustrar tal assertiva, cremos que basta aqui a referência ao institutodo usucapião coletivo (facilitando sobremaneira a regularização dos as-sentamentos habitacionais urbanos irregulares e a outorga do título de

112 Ainda neste contexto, vale colacionar a solução adotada na Bélgica, onde o legislador previu a possibilidade,limitada no tempo e não sem uma devida compensação, de requisitar – com o objetivo de uma colocaçãoprovisória de pessoas desabrigadas – imóveis que se encontram vazios. A respeito deste ponto, bem comosobre a problemática em geral do direito à moradia na Bélgica, v. o contributo de FIERENS, Jacques. “LeDroit à un Logement Décent”. In: ERGEC, Rusen (Dir.). Les Droits Économiques, Sociaux et Culturels dansla Constitution. Bruxelas: Bruylant, 1995, especialmente p. 247 e seguintes.

Page 124: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

374 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

propriedade aos moradores), assim como aos institutos da concessão dedireito real de uso e do uso especial para fins de moradia.113

Ainda que se tenha de reconhecer que na sua condição de direito aprestações normativas (principal manifestação do dever de proteção do Es-tado e dos correspondentes direitos à proteção) não se poderá sustentar –mesmo à luz do princípio contido no artigo 5, parágrafo 1, da nossa Consti-tuição, um direito subjetivo à edição de uma ato normativo (ou seja, de umdireito subjetivo à legislação),114 os exemplos pinçados revelam – para alémde todas as potencialidades normativas já referidas quando da análise dadimensão negativa – que muito já se fez e mais ainda se poderá fazer pormeio de uma atuação estatal (e não estritamente no campo normativo)sinceramente empenhada na tarefa de proteger e implementar o direito àmoradia, ainda que não se esteja aqui a falar propriamente num direitosubjetivo de acesso a uma moradia, no sentido de um direito à prestaçõesfáticas. Este é precisamente o próximo ponto a ser versado.

Tomando-se agora o direito a moradia na sua condição de um direitoa prestações materiais (fáticas) que viabilizem o acesso efetivo a umamoradia digna e desde logo cientes de que também (e compreensivel-mente) os tratados internacionais que versam sobre o tema não impõemaos Estados a obrigação de disponibilizar a todos uma moradia, apenas(como de resto já frisado) determinando que sejam empreendidos esfor-ços concretos e efetivos neste sentido, não há, todavia, como deixar deconsiderar, mesmo que sem o desenvolvimento desejável, a eventual pos-sibilidade de se admitir, diretamente com base na previsão constitucionale mesmo sem uma opção legislativa neste sentido (que, ademais, nãoteria o condão de afastar todos os obstáculos, especialmente no que dizcom a carência de recursos), um direito subjetivo a prestações fáticas,que possa ser objeto de reconhecimento pelos órgãos do Poder Judiciário

Não havendo como adentrar – em face dos estreitos limites deste estudo– os mais diferenciados aspectos que o problema suscita, sendo também invi-ável considerar mesmo as principais concepções e argumentos desenvolvidos

113 Note-se que boa parte dos institutos previstos no Estatuto da Cidade já encontravam previsão expressa nonosso ordenamento, esperando-se que a regulamentação da nova Lei e os ajustes indispensáveis para suaadequada e eficiente aplicação, seja pelo Legislador, seja pelo Executivo e pelo Judiciário, venham acorresponder às suas evidentes potencialidades.

114 Para além de um quase inevitavelmente frágil sistema de controle de constitucionalidade por omissão,sempre haverá como explorar os limites estabelecidos pela já referida dimensão negativa dos direitossociais, especialmente no que diz com uma proibição de retrocesso.

Page 125: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 375

a respeito na doutrina e na jurisprudência, partiremos, de imediato, paraaquilo que consideramos representar uma solução que harmoniza com o espí-rito da norma contida no art. 5º, par. 1º, da nossa Carta Magna. Tendo emconta que não se poderá desconsiderar as distinções entre os direitos dedefesa e os direitos sociais prestacionais, de modo especial o fato de que estesestão condicionados, no que diz com a sua realização, pela disponibilidadede recursos e pela capacidade de deles dispor (princípio da reserva do possí-vel, este, por sua vez, diretamente conectado com o problema da maior oumenor escassez de recursos115 ), bem como pelo princípio democrático da re-serva parlamentar em matéria orçamentária, o que também afeta o princípioda separação de poderes, entendemos que a proposta de solução deverá pas-sar necessariamente (também aqui) pela ponderação dos princípios inciden-tes na espécie, no âmbito de uma interpretação sistemático-hierarquizadora,tal como nos propõe o ilustre jurista e professor Juarez Freitas, em sua magní-fica obra sobre a hermenêutica jurídica, já referida.116

É neste sentido que nos valemos das lições do conhecido jusfilósofogermânico Robert Alexy, para quem, em síntese, se poderá reconhecerum direito subjetivo originário a prestações nas seguintes circunstâncias:a) quando imprescindíveis ao princípio da liberdade fática; b) quando oprincípio da separação de poderes (incluindo a competência orçamentá-ria do legislador), bem como outros princípios materiais (especialmenteconcernentes a direitos fundamentais de terceiros), forem atingidos deforma relativamente diminuta. Para Alexy, tais condições se encontramsatisfeitas sobretudo na esfera dos direitos sociais que correspondem a umpadrão mínimo, como é o caso do direito às condições existenciais míni-mas, direito à formação escolar e profissional, uma moradia simples (grifonosso) e um padrão mínimo de atendimento na área da saúde.117

A solução preconizada por Alexy, convém registrar, afina com a naturezaprincipiológica da norma contida no art. 5º, § 1º, da nossa Constituição, jáque esta, impondo a otimização (maximização) da eficácia de todos os direi-tos fundamentais, não poderia admitir nem uma realização plena dos (e de

115 Discutindo com oportunidade, atualidade e profundidade a questão da escassez de recursos e o papel doDireito e dos Tribunais nesta seara, v., entre nós, AMARAL, Gustavo. op. cit., especialmente p. 133 eseguintes, sem que aqui estejamos esquecendo da circunstância, já referida no presente trabalho, de queos direitos negativos apresentam, num certo sentido, uma dimensão positiva (prestacional), já que noplano da sua efetivação igualmente assume relevo o problema da reserva do possível.

116 V. FREITAS, Juarez. A Interpretação Sistemática do Direito..., cit., 1995.117 Cf. ALEXY Robert. op. cit., p. 494 e seguintes.

Page 126: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

376 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

todos) direitos sociais prestacionais, pena de sacrifício de outros princípiosou direitos fundamentais colidentes, nem a negação absoluta de direitos sub-jetivos a prestações, pena de sacrifício de outros bens igualmente fundamen-tais. Tomando como exemplo o direito à saúde, perceber-se-á, desde logo,que ao Estado não se impõe apenas o direito de respeitar a vida humana, oque poderá até mesmo implicar a vedação da pena de morte, mas também odever de proteger ativamente a vida humana (e a vida com dignidade), jáque esta constitui a razão de ser da própria comunidade e do Estado, além deser o pressuposto para a fruição de qualquer direito fundamental. Negar aoparticular o acesso ao atendimento médico-hospitalar gratuito, ou mesmo ofornecimento de medicamentos essenciais, certamente não nos parece a so-lução mais adequada (ainda que invocáveis o princípio da reserva do possí-vel e/ou da reserva parlamentar em matéria orçamentária). O mesmo racio-cínio, assim nos parece, poderá ser aplicado no que diz com outros direitossociais prestacionais básicos, tais como educação, assistência social e para ascondições materiais mínimas para uma existência digna, no âmbito das quaisseguramente ocupa lugar de destaque a moradia.

Neste contexto, cumpre registrar que o reconhecimento de direitos sub-jetivos a prestações não se deverá restringir às hipóteses nas quais a própriavida humana estiver correndo o risco de ser sacrificada, não obstante sejaeste o exemplo mais pungente a ser referido. O princípio da dignidade dapessoa humana assume, também no que diz com este aspecto, importantefunção demarcatória, podendo servir de parâmetro para avaliar qual o pa-drão mínimo em direitos sociais (mesmo como direitos subjetivos individu-ais) a ser reconhecido.118 Negar-se, por exemplo, o acesso ao ensino funda-mental obrigatório e gratuito (ainda mais em face da norma contida no art.208, § 1º, da CF, de acordo com a qual se cuida de direito público subjeti-vo) importa igualmente em grave violação aoprincípio da dignidade dapessoa humana, na medida em que este implica para a pessoa humana acapacidade de compreensão do mundo e a liberdade (real) de autodeter-minar-se e formatar a existência, o que certamente não será possível em semantendo a pessoa sob o véu da ignorância119 .

118 Sobre o conteúdo mínimo dos direitos sociais e sua conexão com a dignidade da pessoa humana, v. o recentee excelente aporte de BARCELLOS, Ana Paula, A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais. O Princípioda Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, especialmente p. 247 e seguintes. Nãoobstante não tenha havido uma abordagem específica do direito à moradia, as considerações colacionadas,assim como os exemplos pinçados, fornecem referencial argumentativo também para o direito à moradia.

119 V. a este respeito o nosso A Eficácia dos Direitos Fundamentais..., cit., p. 319, obra na qual analisamos com maiorprofundidade estes e outros exemplos, bem como as principais concepções a respeito do reconhecimento dedireitos subjetivos a prestações (v. p. 272-321).

Page 127: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 377

Com base no exposto, verifica-se que o problema apenas poderá serequacionado à luz das circunstâncias do caso concreto e do direito fun-damental específico em pauta, sendo indispensável a ponderação (hierar-quização) dos bens e valores em conflito. Assim, em todas as situações emque o argumento da reserva de competência do legislador (assim como aseparação de poderes e as demais objeções habituais aos direitos sociais aprestações como direitos subjetivos) implicar grave agressão (ou mesmo osacrifício) do valor maior da vida e da dignidade da pessoa humana, ounas hipóteses em que, da análise dos bens constitucionais colidentes, re-sultar a prevalência do direito social prestacional, poder-se-á sustentar,na esteira de Alexy e de Gomes Canotilho, que, na esfera de um padrãomínimo existencial, haverá, em princípio, a possibilidade de reconhecerum direito subjetivo definitivo a prestações, admitindo-se, onde tal míni-mo for ultrapassado, tão-somente um direito subjetivo “prima facie”, jáque – nesta seara – não há como resolver a problemática em termos deuma lógica do tudo ou nada.120 Esta solução impõe-se até mesmo emhomenagem à natureza eminentemente principiológica da norma conti-da no artigo 5º, parágrafo 1º, da Constituição Federal, e, de modo geral,das próprias normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais.

Nesta mesma linha de entendimento, percebe-se, ainda, que – especial-mente na esfera dos direitos subjetivos a prestações – necessária uma relati-vização da noção de direito subjetivo, constatando-se uma inevitável dife-

120 Sobre a noção de um direito subjetivo a prestações v. especialmente (além da obra de Alexy já referida) a magistralformulação de CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Tomemos a Sério os Direitos Sociais, Económicos e Culturais.Coimbra: Coimbra Ed., 1988, p. 25 e seguintes, que, além de direitos subjetivos definitivos e direitos subjetivos“prima facie”, admite a existência de uma terceira categoria de direitos subjetivos a prestações, sustentando (naesteira de Alexy) que há posições jurídico-prestacionais embasadas em normas impositivas de tarefas e finsestatais que geram apenas um dever não-relacional do Estado, que pode ser caracterizado como um deverobjetivo “prima facie”, garantido por normas não vinculantes, como ocorre, por exemplo, com o direito aotrabalho e o correspondente dever do Estado de promover uma política de pleno emprego, sem que se possaadmitir um direito do particular a um emprego. Neste contexto – muito embora não atribuindo aos direitossociais, de modo geral, o qualificativo de fundamentais – também TORRES, Ricardo Lobo. A CidadaniaMultidimensional....,cit., p 292 e seguintes, admite que, na esfera do mínimo existencial para uma vida comdignidade (situação que o autor reporta ao status positivus libertatis), os direitos a prestações podem assumir acondição de direitos subjetivos, de tal sorte que, no que nos parece essencial, tal entendimento acaba por sersubstancialmente convergente com o que estamos a sustentar. Mesmo no plano da proteção internacional,cumpre registrar que a despeito do reconhecimento de que não se pode impor aos Estados que disponibilizemuma moradia digna a todos os que dela necessitarem, cuidando-se de um direito de implementação progressiva,a Comissão da ONU responsável pela controle e fiscalização do cumprimento do Pacto Internacional de DireitosEconômicos, Sociais e Culturais exige que os Estados utilizem o máximo de recursos possíveis, não aceitando amera evasiva de que os recursos inexistem, especialmente no que diz com a necessidade de adoção de programasviáveis de baixo custo para atendimento de padrões mínimos em matéria de direitos sociais (v., neste sentido, ojá citado relatório de SACHAR, Rajindar. op. cit., p. 12).

Page 128: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

378 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

renciação no que diz com a força jurídica das diversas posições jurídico-prestacionais fundamentais em sua dimensão subjetiva. Por outro lado, nãohá como desconsiderar a natureza excepcional dos direitos fundamentais ori-ginários a prestações na condição de direitos subjetivos definitivos, isto é,dotados de plena vinculatividade e que implicam a possibilidade de impor aoEstado (a ao particular, quando for o destinatário), inclusive mediante recur-so à via judicial, a realização de determinada prestação assegurada por nor-ma de direito fundamental, sem que com isto se esteja colocando em chequea fundamentalidade formal e material dos direitos sociais na sua dimensãoprestacional. Que na hipótese do direito à moradia, impõe-se particular pru-dência assim como uma análise mais detida e aprofundada de todos os aspec-tos e repercussões que o problema coloca, nunca é demais seja frisado.

Por derradeiro, convém lembrar que, no concernente ao modo de oEstado assegurar, no caso concreto, o acesso à moradia (e isto mesmo noâmbito de um “mínimo” para uma vida digna), igualmente existe umelenco de alternativas que não pode ser prévia e definitivamente estabe-lecido, cuidando-se, em suma, de questão necessariamente aberta aodebate e carente de desenvolvimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O necessário resgate da dimensão utópica epromocional dos direitos fundamentais e dadignidade da pessoa como pressuposto para aviabilidade do direito à moradia

À guisa de conclusão, cumpre assinalar, aproximando as noções de efi-cácia jurídica e efetividade (eficácia social), que nem a previsão de direi-tos sociais fundamentais na Constituição (o que, portanto, vale igualmentepara o direito à moradia) nem mesmo a sua positivação na esfera infracons-titucional poderão, por si só, produzir o padrão desejável de justiça social,já que fórmulas exclusivamente jurídicas não fornecem o instrumental su-ficiente para a sua concretização. No que diz com este aspecto, importaconsignar a oportuna lição de Dieter Grimm, ilustre publicista e antigo Juizdo Tribunal Federal Constitucional da Alemanha, para quem a efetividade

Page 129: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 379

dos direitos fundamentais em geral (e não apenas dos direitos sociais) nãose alcança com a mera vigência da norma e, portanto, não se resolve exclu-sivamente no âmbito do sistema jurídico, transformando-se em problemade uma verdadeira política dos direitos fundamentais.121

Importante, portanto, é ter sempre em mente que uma Constituição deum Estado democrático (e social) de Direito não poderá jamais negligenciaro patamar de desenvolvimento social, econômico e cultural da comunidade,sob pena de comprometer seriamente sua força normativa e suas possibilida-des de atingir uma plena efetividade.122 Neste contexto, cumpre retomar atemática da crise dos direitos fundamentais. Com efeito, especialmente noâmbito dos direitos sociais prestacionais, onde a referida crise se manifestacom particular agudeza, tal como já demonstrado, verifica-se que o impactonegativo sobre a capacidade prestacional do Estado se encontra diretamentevinculado ao grau de importância do limite fático da reserva do possível e doprincípio da reserva parlamentar em matéria orçamentária, os quais, por suavez, atuam diretamente sobre a problemática da eficácia e efetividade dosdireitos sociais, como de resto (e neste ponto oportuna a lembrança de Hol-mes e Sunstein) de todos os direitos fundamentais.

Em verdade, quanto mais diminuta a disponibilidade de recursos, maisse impõe uma deliberação democrática e responsável a respeito de suadestinação, especialmente de forma a que sejam atendidas satisfatoria-mente todas as rubricas do orçamento público, destacando-se aquelasque dizem com a realização dos direitos fundamentais e da própria justiçasocial.123 Na mesma proporção, deverá crescer o índice de sensibilidade

121 Cf. GRIMM, Dieter. “Grundrechte und Soziale Wirklichkeit”. In: HASSEMER, W., HOFFMANN-RIEM, W. &LIMBACH, J. (Org.). Grundrechte und Soziale Wirklichkeit. Baden-Baden: Nomos, 1982, p. 72. No mesmosentido, há que registrar, entre nós, a oportuna e lúcida exortação de CLÉVE, Clémerson Merlin. Temasde Direito Constitucional (e de Teoria do Direito). São Paulo: Acadêmica, 1993, p. 127, apontando para anecessidade de uma política da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais.

122 Neste sentido, as ponderações de MÜLLER, Joerg-Paul. Soziale Grundrechte in der Verfassung?. Basel-Frank-furt: Helbig & Lichtenhahn, 1981, p. 52.

123 Aliás, a deliberação democrática e a participação popular efetiva nos processos de tomada de decisões no que dizcom as opções tomadas no âmbito da realização dos direitos sociais, assume lugar de destaque no contexto doque se convencionou designar de um “status activus processualis” (Peter Häberle) dos direitos fundamentais,bem como na necessidade de se aperfeiçoar os mecanismos de participação democrática da população, como bemdemonstram os diversos institutos consagrados pela nossa Constituição Federal de 1988 e uma série de medidaslegislativas e experiências praticadas já no nosso país. Sobre o tema, especialmente no contexto dos direitossociais, v., entre outros, KRELL, Andreas. “Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na Base dos DireitosFundamentais Sociais”. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). A Constituição Concretizada: Construindo Pontes como Público e o Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000, p. 25-60, onde, de resto, encontra-se atual análisedo problema do papel do Poder Judiciário na esfera da efetivação dos direitos sociais.

Page 130: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

380 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

por parte daqueles aos quais foi delegada a difícil missão de zelar pelocumprimento da Constituição, de tal sorte que - em se tratando do reco-nhecimento de um direito subjetivo a determinada prestação social - as-sume lugar de destaque o princípio da proporcionalidade, que servirá deparâmetro no indispensável processo de ponderação de bens que se impõequando da decisão acerca da concessão, ou não, de um direito subjetivoindividual ou mesmo da declaração de inconstitucionalidade de umamedida restritiva dos direitos sociais.

Por outro lado, entendemos que não há como sustentar o argumentode que, em face dos efeitos da crise já referidos, inexiste alternativaplausível se não a de uma supressão pura e simples dos direitos sociaisconsagrados na Constituição, a pretexto de serem em grande parte res-ponsáveis pela “ingovernabilidade” do nosso país. Da mesma forma, nãodevem - especialmente o Juiz e os demais operadores do Direito - sim-plesmente capitular diante das “forças reais de poder” (Lassale) ou emface da alegação de que inviável (em qualquer circunstância) o reco-nhecimento de um direito subjetivo a prestações, socorrendo-se doslimites fáticos da reserva do possível e argumentando que inexiste do-tação orçamentária, pena de esvaziamento completo da eficácia dosdireitos sociais. O que se verifica, em verdade, é que o aumento daopressão sócio-econômica e a elevação dos níveis de desigualdade fáti-ca fazem com que o reconhecimento e efetivação dos direitos sociais,ainda que em patamar mínimo, voltado à manutenção de um nível exis-tencial digno, transformem-se em meta indispensável a qualquer or-dem estatal que tenha a pretensão de ostentar o título de legítima e,por via de conseqüência, genuinamente democrática.

Aparentemente de forma paradoxal, constata-se que o processo deglobalização acabou trazendo avanços significativos na esfera dos di-reitos fundamentais, não sendo por acaso que hoje se sustenta o fe-nômeno da universalidade dos direitos fundamentais e a formação –consoante já assinalado alhures - de um verdadeiro direito constituci-onal internacional nesta seara, fenômeno vinculado ao impulso daDeclaração Universal da ONU, de 1948, bem como ao expressivo nú-mero de convenções internacionais na esfera dos Direitos Humanos,acompanhada da sua recepção pelo direito constitucional dos Esta-dos. De outra parte, verifica-se que a globalização, especialmente noque diz com o avanço das comunicações, tem permitido uma veicula-

Page 131: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 381

ção universal, ainda que mínima, da agenda da defesa da dignidadehumana e dos direitos fundamentais, facilitando o fluxo de informa-ções, a denúncia de violações e dificultando a censura sobre os meiosde comunicação.124 Assim, como se pode concluir a partir da lição dogrande jurista brasileiro Paulo Bonavides, a globalização, aqui consi-derada por um ângulo positivo, como veículo para a afirmação da uni-versalização do reconhecimento da dignidade da pessoa humana edos direitos fundamentais, acaba contribuindo decisivamente para queestes efetivamente venham a integrar uma espécie de patrimônio cul-tural (e jurídico) comum da humanidade. 125

Nesta quadra da exposição, convém relembrar que os direitos funda-mentais (e, portanto, também o direito à moradia) a despeito de sua di-mensão jurídico-normativa, essencialmente vinculada ao fato de serempostulados de “dever ser”, possuem o que Pérez Luño denominou de “ir-renunciável dimensão utópica”, visto que contêm um projeto emancipa-tório real e concreto.126 Entre nós, reconhecendo igualmente uma pers-pectiva utópica e promocional dos direitos fundamentais, José EduardoFaria, partindo da concepção de utopia como “horizonte de sentido”, sus-tenta que a luta pela universalização e efetivação dos direitos fundamen-tais implica a formulação, implementação e execução de programas eman-cipatórios, que, por sua vez, pressupõe uma extensão da cidadania doplano meramente político-institucional para os planos econômico, social,cultural e familiar, assegurando-se o direito dos indivíduos de influir nosdestinos da coletividade.127 Mesmo na sua inafastável (mas não exclusi-va) dimensão programática (considerando-se aqui os direitos fundamen-tais na sua condição de normas impositivas de programas e tarefas na

124 Esta a lição de LOPES, José Reinaldo Lima. “Direitos Humanos, Pobreza e Globalização”. Revista da AMB 2:49-50,1997.

125 Cf. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, cit., p. 524 e seguintes, salientando que no âmbitodesta globalização dos direitos fundamentais, assumem relevo os direitos de “quarta geração”, notadamenteo direito à democracia (direta), o direito à informação e o direito ao pluralismo, pois deles “depende aconcretização da sociedade aberta do futuro, em sua dimensão de máxima universalidade.”

126 Cf. PÉREZ LUÑO, Antonio-Enrique. “Derechos Humanos y Constitucionalismo em la Actualidad”. In: __.(Org.). Derechos Humanos y Constitucionalismo ante el Tercer Milenio. Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 15,ressaltando que “faltos de su dimensión utópica, los derechos humanos perderían su función legitimadoradel Derecho; pero fora de la experiencia y de la historia perderían sus proprios rasgos de humanidad.”

127 V. FARIA, José Eduardo. “Democracia e Governabilidade: os Direitos Humanos à luz da GlobalizaçãoEconômica”, cit., p. 154 e seguintes.

Page 132: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

382 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

esfera das políticas sociais),128 os direitos sociais não precisam necessaria-mente constituir um instrumento de manipulação ou uma mera ilusão,tal qual sustentou, entre nós, Marcelo Neves,129 mas exercem – de acor-do com a lição de Andreas Krell, uma função sugestiva, apelativa, edu-cativa e conscientizadora que não pode ser desconsiderada.130

Considerando apenas as possibilidades apontadas ao longo do pre-sente texto (e já bastaria aqui a praticamente incontroversa eficáciada dimensão negativa do direito à moradia e dos direitos sociais emgeral), constata-se que também o direito à moradia não precisa (nemdeve) ser interpretado como uma promessa de que todos passarão ater, desde logo e por decreto normativo, plena condição de fruir destedireito, sem que com esta afirmação se esteja (muito antes pelo con-trário) a repudiar a sua possível eficácia e efetividade. Ainda que seimponha o reconhecimento de que se está a vivenciar um verdadeiromal-estar cívico e político que afeta a credibilidade da Constituição edo Direito, tal qual nos lembra Gomes Canotilho131 , não há como des-considerar, por outro lado, que sentir-se mal (caso ainda tenhamosesta salutar capacidade) pode significar o primeiro passo para umatomada de consciência e a busca de soluções, também na seara daeficácia e efetividade da Constituição e dos direitos fundamentais detodas as dimensões.

Por derradeiro, cremos ser possível afirmar que os direitos funda-mentais sociais, mais do que nunca, não constituem mero capricho,privilégio ou liberalidade, mas sim, premente necessidade, já que asua supressão ou desconsideração fere de morte os mais elementaresvalores da vida e da dignidade da pessoa, em todas as suas manifesta-

128 Impõe que se deixe aqui consignado, que o reconhecimento da dimensão programática dos direitos sociais nãoimpede, consoante restou demonstrado ao longo da exposição, que estejamos a tratar de preceitos destituídosnormatividade, nem mesmo que os direitos sociais, seja na condição de direitos de defesa ou direitos aprestações, não possam alcançar eficácia e efetividade. O problema, em verdade, não está e, não se admitir ocunho programático que os direitos sociais também possuem, mas sim, em negar às normas programáticas umaeficácia, aplicabilidade e efetividade possíveis. Este, contudo, tema que aqui não mais pode ser desenvolvido.

129 Cf. NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: Acadêmica, 1994, p. 37 e seguintes. Comisto, todavia, não estamos a desconsiderar o fato (bem demonstrado pelo ilustre autor) de que a positivaçãode um extenso catálogo de direitos fundamentais, notadamente na esfera dos direitos sociais, não tenhaservido – em algumas hipóteses - como instrumentos de manipulação da sociedade.

130 Cf. KRELL, Andreas. Controle Judicial dos Serviços Públicos Básicos na Base dos Direitos Fundamentais Sociais, cit.,p.31.

131 Cf. CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Sobre o Tom e o Dom dos Direitos Fundamentais... , cit., p. 38.

Page 133: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 383

ções. A eficácia (jurídica e social) do direito à moradia e dos direitosfundamentais sociais deverá, portanto, ser objeto de permanente eresponsável otimização pelo Estado e pela sociedade, na medida emque levar a sério os direitos (e princípios) fundamentais corresponde,em última análise, a ter como objetivo permanente a concretização doprincípio da dignidade da pessoa humana, por sua vez, a mais sublimeexpressão da própria idéia de Justiça. Caso contrário, não haveremosde escapar – tal como com lucidez adverte Paulo Bonavides - de umalamentável, mas cada vez menos contornável e controlável, transfor-mação de muitos Estados democráticos de Direito em verdadeiros “es-tados neocoloniais”.132

132 Cf. BONAVIDES, Paulo. Do País Constitucional ao País Neocolonial. A Derrubada da Constituição e a Recolonizaçãopelo Golpe de Estado Institucional. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 19 e seguintes.

Page 134: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

384 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Page 135: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 385Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.385-402

O Direito Urbanístico sob a ótica doestatuto da cidade: democratizando

o espaço local

Urban law in view of the CityStatute: democratizing local space

JULIO CESAR MAHFUS1

VIVIANA CREMONESE2

1 Mestre em Des. Regional, Especialista em Direito Imobiliário, Advogado, Professor dos Cursos de Direito daULBRA e da UNISC.

2 Bacharela em Direito pela ULBRA – Cachoeira do Sul

RESUMO

O presente artigo tem por escopo analisar o espaço urbano atual sob duasóticas: O Estatuto da Cidade e a Democracia Participativa, como pressupos-tos legitimadores do desenvolvimento.Em países subdesenvolvidos e em desenvolvimento, o espaço urbano é marca-do por um déficit habitacional, inexistindo ou carecendo de infra-estrutura,desordenando quantitativa e qualitativamente o solo urbano.A definição da função social da propriedade urbana é um poderoso instrumentodos municípios para a promoção do desenvolvimento urbano. Poderá ser utiliza-do, por exemplo, para evitar a ocupação de áreas não suficientemente equipa-das, ou a retenção especulativa de imóveis vagos ou subutilizados, para preservaro patrimônio cultural ou ambiental, para exigir a urbanização ou ocupação com-pulsórias de imóveis ociosos, para captar recursos financeiros destinados ao de-senvolvimento urbano e para exigir a reparação de impactos ambientais.Palavras-chave: Urbanismo, Estatuto da Cidade, democracia, desenvolvimento

Page 136: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

386 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

ABSTRACT

The scope of present article is to analyze the current urban space from twopoints of view: the City Statute and the Participative Democracy as develop-ment legitimating presuppositions. The urban space in underdeveloped anddeveloping countries presents a housing deficit, with no or scarce substructure,quantitatively and qualitatively disordering the urban soil. The definition of ur-ban property social function is a powerful instrument for towns to promoteurban development. It can be used to avoid occupation of insufficiently equippedareas, for instance, or the speculative retention of vacant or underutilized realestates, to preserve cultural or environmental patrimony, to require the compul-sory urbanization or occupation of idle real estates, to attract financial re-sources for urban development and to require environmental impact repair.Key words: Urbanism, City Statute, democracy, development.

INTRODUÇÃO

O Direito Urbanístico, enquanto instrumento de análise, ganhou es-paço a partir do momento em que entrou em vigor o Estatuto da Cidade.Mais que uma lei regulamentadora da Constituição Federal, ele tem porescopo primordial democratizar o espaço urbano e incluir os excluídos nocontexto urbano. Operacionaliza-se isso através de um novo conceito defunção social da cidade.

Importa, inicialmente, conhecer a distinção entre direito individual ea função social realizadas pelo texto constitucional, como expõe Grau:

(...) fundamentos distintos justificam propriedade dotada defunção individual e propriedade dotada de função social. En-contra justificação, a primeira na garantia, que se reclama, deque possa o indivíduo prover a sua subsistência e de sua famí-lia, daí porque concorre para essa justificação a sua origem,acatada quando a ordem jurídica assegura o direito de heran-ça. Já a propriedade dotada de função social, é justificadapelos seus fins, seus serviços, sua função.(1990, p.247)

A Constituição Federal de 1988, em seus arts. 182 e 183, estabeleceudiretrizes gerais de uma política urbana; no entanto, estes preceitos cons-

Page 137: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 387

titucionais necessitavam de regulamentação, o que se efetivou frente aoEstatuto da Cidade, Lei Federal 10. 257/01, trazendo, pois, à tona a idéiade cidades sustentáveis, democráticas e planejadas ( Flores e Santos,2002, p.11).

Desse modo, o referido diploma surgiu num momento em que os muni-cípios enfrentavam problemas insustentáveis diante da falta de regramentoe planejamento urbano. Para tanto, veio regular o uso da propriedade urba-na, em benefício do coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos.

O objetivo do Estatuto é fazer com que a cidade como um todo atinjasua função social, não se restringindo apenas à propriedade. Assim, setodas as propriedades urbanas obrassem de forma a atingir seus objetivos,de bem-estar de população, a cidade estará atingindo sua função social.

Para a realização do presente trabalho, considerado tema atual e derelevante valor para o meio jurídico, foi analisada a propriedade e o prin-cípio da função social no decorrer dos tempos, além da evolução positiva-da do assunto. Assim, houve uma análise histórico-crítica da função so-cial da propriedade urbana, bem como da cidade, verificando-se a regu-lamentação e os reflexos que o Estatuto da Cidade trouxe ao assunto,para compor as premissas de um Estado Democrático de Direito preocu-pado em tutelar os direitos dos fracos e mais numerosos.

Assim, a nova lei trouxe aplicabilidade às regras constitucionais, es-clarecendo a função social da propriedade urbana e sua forma de atuaçãoem cada situação fática, além de criar e regulamentar institutos políticose jurídicos a fim de tornar efetivo o desenvolvimento urbano no Brasil.

Uma vinculação importante que traz o referido estatuto social é aefetiva participação da sociedade na execução do plano diretor. Estemomento muito especial, dá um caráter significativo de democracia, oque é deveras importante a fim de tornar o espaço urbano mais plural

Logo, acredita-se que não há de questionar-se a relevância do presen-te assunto, de maneira a trazer interesse não apenas aos articuladores doDireito, mas a toda a sociedade, a quem o Estatuto da Cidade confere o“poder” de mudança a atual situação caótica em que se encontram ascidades, principalmente as médio e grande porte, do país.

Page 138: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

388 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

A FUNÇÃO SOCIAL DA CIDADE

O Estado Democrático de Direito brasileiro está desempenhando compouca eficiência sua função de mediador do desenvolvimento nacional,não atuando como garantidor da função social da propriedade urbana e dacidade. Assim, enquanto instituição jurídica e política, deve dar efetivida-de e proteção ao princípio da função social, in casu, urbana e da cidade,consagrada na Carta Magna, abandonando a neutralidade e a apoliticida-de e, assumindo suas funções próprias, transformando as estruturas sociais erealizando o também princípio constitucional “da igualdade”.

Mukai(1988), antes do advento do Estatuto da Cidade e da própriaConstituição Federal de 1988, asseverava que a cidade deveria cumprira sua função social e caberia ao Estado a intervenção na propriedadeprivada a fim de regular o processo de urbanização.

O Estado Contemporâneo pode ser caracterizado como intervencio-nista na ordem econômica, social e política nacional, visando evitar asaturação e tensão das redes de mobilização e existência social. Esse mo-delo de autoridade pública, ou seja, intervencionista, embora, segundoLeal (1998, p. 109), tímida e de maneira bastante insuficiente, “serve àdignidade humana e à consecução dos direitos fundamentais”.

A cidade , como ensina Leal:

(...)não é uma criação meramente material, de cimento, fer-ro e asfalto, mas uma expressão da civilização que abarcadesde os aspectos do êxodo rural aos da mais requintada so-fisticação cultural que os centros adensados e de recursos con-centrados a propiciar. Assim, o problema da racionalização eorganização dos espaços físicos e demográficos das cidades,bem como a própria concepção de propriedade urbana, me-recem maior relevo e atenção dos poderes estatais, até por-que, se tivermos alcance visual para perceber os problemasadvindos do crescimento desmesurado das cidades, veremosque a urbanização acelerada causa impactos polivalentes, taiscomo: aumento da demanda de serviços públicos urbanos,elevação das aspirações, aumento dos custos dos serviços ur-banos, proliferação de áreas de favelização, redução da ren-da per capita urbana, deterioração ecológica, aumento da

Page 139: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 389

taxa de desemprego, aumento da marginalidade social e agra-vamento da criminalidade. (1998, p.114)

Diante desse contexto, as cidades, sobretudo as de maior tamanho,de modo geral, ocupando vasto espaço, são entremeadas de vazios. Hánelas, características de uma urbanização corporativa, onde ocorre espe-culação fundiária e imobiliária, extroversão e periferização da população,gerando, diante das dimensões da pobreza, um modelo específico deno-minado centro-periferia.

O capitalismo monopolista “agrava a diferenciação quanto à dotaçãode recursos, uma vez que parcelas cada vez maiores da receita pública sedirigem à “cidade econômica” em detrimento da “cidade social” “ (San-tos, 1998, p. 96). Frente isso, as diferenças entre os lugares urbanos seampliam cada vez mais onde o planejamento urbano é regido por especu-lação em detrimento do bem-estar coletivo. A urbanização do TerceiroMundo é considerada como variável dependente e resultante de sua in-corporação no mercado mundial. Portanto, a análise da urbanização nãodeve ser feita separadamente das forças econômicas internacionais, nemdo papel do Estado. Deve ocorrer uma adaptação mais exata das tecnolo-gias, assim como a reformulação do papel do Estado, sendo problemasimportantes a se considerar.

Não podemos considerar uma concepção de cidade sem levarmos emconta as instituições oriundas das relações de classe. Neste sentido Lefe-bvre (2001), aduz que o espaço urbano é uma conquista da burguesia, emdetrimento ao proletariado que fica a margem do processo.

Assim, de comum acordo com outras áreas do saber, deve ser buscadoum caminho que conduza a organização do espaço nos países subdesenvol-vidos, capaz de promover a justa distribuição do povo entre as diferentesregiões do país, o que supõe, ao mesmo tempo uma melhor distribuição dopoder e da riqueza entre as nações. Além disso, é indispensável a participa-ção popular, na forma de “gestão democrática”, conforme os arts. 43/45 doEstatuto da Cidade, assegurando um melhor desenvolvimento urbano.

Para tanto, expõe Mahfus:

Possibilitar a participação democrática dos atores sociaiscom a criação de espaços públicos que privilegiem o debateé de vital importância. Não se apregoa o fim da democra-

Page 140: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

390 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

cia representativa e a sua transformação em democraciadireta, mas sim a utilização do município como foro privi-legiado para uma simbiose entre a democracia participativae a democracia formal. (2002, p. 82)

Destarte, Grau (1998) afirma que a Administração Pública, se apre-senta enquanto expressão do Estado agindo de maneira concreta para asatisfação de seus fins de conservação, de bem-estar individual e coletivodos cidadãos e do progresso social. No entanto, também revela um aspec-to instrumental da democracia, atendida como forma de governo queconta, necessariamente com procedimentos e mecanismos viabilizadoresda constante participação e interlocução dos cidadãos.

Logo, defende a corrente municipalista, que ao valorizar-se o poderlocal (municipal), dando a este maior autonomia política e administrati-va, haverá maiores condições de enfrentar os problemas que exsurgem docontexto social da Nação brasileira. Vale ressaltar que a autonomia dopoder público municipal encontra respaldo no art. 35 da Carta Magnabrasileira. Assim, “o avanço na condição jurídico-política do municípiooportuniza a este, ser um centro de irradiação de desenvolvimento regio-nal” (Mahfus, 2002, p.80).

Neste sentido, como já afirmamos anteriormente:

Se o poder público municipal efetivar mecanismos que pos-sibilitem uma nova dinâmica de interlocução entre os cida-dãos e os agentes públicos, combinando com isso a própriaautonomia municipal, é certo que teremos uma expectati-va bastante animadora de realização de políticas que con-templem a maioria dos cidadãos. (Mahfus,2002, p.82-83)

A cidade deve dar acesso, para o cumprimento de suas funções soci-ais, para todos aqueles que vivem nela, assegurando-lhes o direito à mo-radia, aos equipamentos e serviços urbanos, transporte público, sanea-mento básico, saúde, educação, cultura, lazer, enfim, aos direitos urbanosque são inerentes às condições de vida na cidade. Cabe ressaltar que oinstrumento básico para a realização da função social, seja da proprieda-de urbana ou da cidade, é o plano diretor.

Assim, as cidades tem por função a previsão de condições gerais para

Page 141: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 391

o desempenho das atividades econômicas de produção, comércio e servi-ços, além das atividades sociais, culturais e de lazer, todas essas neces-sárias para o exercício da cidadania.

Fundamental é que os Municípios para darem efetividade à funçãosocial da propriedade urbana e da cidade, estejam preparados e mobiliza-dos a promover o adequado ordenamento territorial do seu espaço, medi-ante planejamento e controle do uso, já que isso é de sua competênciaexclusiva e não suplementar. Por isso, a execução da política urbana de-pende enormemente do governo local, que será implementada com basenos instrumentos definidos pelo Estatuto da Cidade.

Contudo, os problemas enfrentados nas cidades (de médio e grandeporte principalmente), não devem ficar reduzidos apenas ao estudo demaneira isolada e; do mesmo modo, a solução desses problemas não de-vem ser analisados unicamente por planejadores administrativos locais,pois tais problemas estão estreitamente ligados por forças econômicas in-ternacionais e precisam das decisões do Estado Maior.

Ainda observa-se em análise as palavras de Fernandes que:

Somente uma compreensão mais ampla do papel do Direi-to no processo de urbanização poderia contribuir para apromoção das reformas urbana e jurídica há tanto espera-das, e tão necessário no Brasil, de tal forma que haja umamaior integração entre as ordens formal e informal, as ci-dades “legal” e “ilegal”. Da mesma forma, o conhecimentoadequado da realidade urbana e a condição para amaterialização plena do “direito à cidade”, é que é certa-mente um dos principais estágios no sentido da consolida-ção dos direitos da cidadania, políticos e socio-econômi-cos, no Brasil. (1998, p.11)

O artigo 182, § 2° da CF/88 subordinou o cumprimento da funçãosocial da propriedade urbana às exigências da ordenação da cidade, bemcomo o fez o art. 39 da Lei 10.257/01, estabelecendo diretrizes a seremobservadas no gerenciamento dos espaços privados localizados na zonaurbana, ou seja, aqueles que venham ao encontro dos princípios e garan-tias fundamentais da cidadania brasileira, priorizadas sobre os interessesprivados ou setoriais por ventura existentes. Essas garantias serão efica-

Page 142: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

392 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

zes, com políticas que ensejam o desenvolvimento urbano em todos ossegmentos, assegurando, o máximo possível, o bem-estar da coletividadede acordo com a região em que estejam localizadas.

Por fim, devem ser encontradas condições adequadas para as relaçõessociais na cidade, tanto econômicas quanto políticas, para que esta cum-pra sua função social, de maneira que as áreas urbanas sejam adequada-mente aproveitadas, atendendo ao máximo o interesse da coletividade.E, para isso deve-se se fazer uso dos institutos jurídicos disciplinados peloEstatuto da Cidade, lei esta que pode ser considerada uma verdadeirarevolução social na propriedade urbana, conseqüência do processo detransformações que converteu o Brasil rural em um país urbano.

A Constituição Federal de 1988, no âmbito do desenvolvimento urba-no, flexibilizou a ação executiva e legislativa quando comparada às Cons-tituições anteriores. Assim, à União foi atribuída a competência de legis-lar, instituindo normas gerais de direito urbanístico, diretrizes para o de-senvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico, transpor-tes urbanos e desapropriação, além, é claro, das competências executivasprevistas no art. 23, CF/88. Quanto aos Estados, foi dada a competêncialegislativa plena e suplementar, conforme o caso, para atender as peculi-aridades em matéria de direito urbanístico, ou seja, a proteção do patri-mônio histórico, cultural, turístico, paisagístico e florestal; protegendo omeio ambiente e realizando um controle efetivo da poluição.

Referente aos municípios, a estes compete legislar e prestar os serviçospúblicos de interesse local, suplementar a legislação federal e estadual, noque couber, e promover adequado ordenamento territorial, mediante pla-nejamento e controle do uso, parcelamento e ocupação do solo urbano.

Oportuno citar Motta (CEPAM):

Paralelamente, a Constituição Federal, no art. 23, atribuiutambém ao município a competência para proteger docu-mentos, obras e outros bens de valor histórico, artístico oucultural; proteger o meio ambiente e combater a poluição;preservar as florestas, a fauna e a flora; fomentar a produ-ção agropecuária e organizar o abastecimento alimentar;promover programas de construção de moradias e amelhoria das condições habitacionais e d saneamento bá-sico; combater as causas de pobreza e os fatores de

Page 143: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 393

marginalização, promovendo a integração social dos seto-res desfavorecidos, entre outras atribuições. (2001, p. 18)

O Capítulo II - DA POLÍTICA URBANA (art. 182 e 183, CF/88),integrante do Título VII - DA ORDEM ECONÔMICA E FINANCEI-RA, representa importante ordenamento constitucional sobre desenvol-vimento urbano, quais sejam: a) a formulação de lei federal dispondosobre diretrizes gerais de desenvolvimento urbano, e objetivando umapolítica de ordenação da função social da cidade garantindo o bem-estarde seus habitantes (art. 182, caput); b) explicitação do princípio constitu-cional da função social da propriedade, cujo cumprimento far-se-á combase no plano diretor (art. 182, § 2°), e elaboração de lei federal queregulamente a faculdade conferida ao Poder Público municipal de pro-mover o adequado aproveitamento do solo urbano não edificado, subuti-lizado ou não utilizado (art. 182, §4°, I, II, III).

Portanto, conforme o disposto no art. 182, CF/88, a lei federal devedispor sobre diretrizes gerais da política urbana, que será executada peloPoder Público municipal, explicitando os temas de exclusiva competên-cia federal - regulamentação da propriedade e de sua função social.

O ESTATUTO DA CIDADE

Assim, em 10.07. 2001, foi promulgada a Lei 10.257, autodenominadaEstatuto da Cidade, estabelecendo princípios e normas de Política Urba-na para todo o território nacional. Apresenta-se, dessa maneira, comouma lei federal de caráter nacional, a fixar normas de Direito Urbanísticoa todo o território.

É importante, nesse momento, tratar sobre Urbanismo e Direito Urba-nístico, pois com as transformações das relações sociais, inclusive com aexpansão das cidades, muitas vezes em virtude da migração rural para aárea urbana, surgem preocupações com os aspectos urbanos, dando ense-jo ao surgimento do Direito Urbanístico.

Cumpre observar o que relata Alfonsin sobre a conceituação da regu-larização fundiária urbana:

(...) é o processo de intervenção pública, sob os aspectos

Page 144: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

394 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

jurídico, físico e social, que objetiva legalizar a permanên-cia de populações moradoras de áreas urbanas ocupadasem desconformidade com a lei para fins de habitação, im-plicando acessoriamente melhorias no ambiente urbano doassentamento, no resgate da cidadania e da qualidade devida da população beneficiária. (1997, p. 24)

A desproporção entre o crescimento da população urbana com relaçãoaos habitantes da área rural, em um verdadeiro processo de urbanização,leva a ocorrência de uma intensa concentração urbana, implicando aocorrência de problemas urbanos que necessitam ser alterados pela urba-nificação, num processo de correção urbana, ou seja, ordenando espaçoshabitáveis; assim, surgiu o urbanismo como instrumento técnico e cientí-fico. O urbanismo, além de visar corrigir distorções urbanas, medianteregulamentos sanitários e instrumentos urbanísticos, procura organizar eplanejar a ocupação de espaços urbanos, tendo em vista o bem-estar dacoletividade, permitindo uma integração harmônica das funções da cida-de, consistentes na habitação, trabalho, recreação e circulação.

Macruz e Macruz (CEPAM) ensinam:

Em razão do exercício da atividade urbanística, geram-seconflitos na medida em que os interesses particulares sãoatingidos pela atuação do Poder Público. Há um confrontoentre o direito coletivo à cidade que cumpra com as fun-ções sociais e o direito individual da propriedade. Ambossão direitos consagrados constitucionalmente, e seus con-tornos devem estar delineados em lei, assim como normaslegais, de maneira inafastável, devem regular e fundamen-tar a atividade urbanística que intervém no domínio priva-do. Essas regras urbanísticas compõem o Direito Urba-nístico... (2001, p. 50)

Assim, o Direito Urbanístico, segundo Hely Lopes Meirelles, é “umramo do Direito Público destinado ao estudo e formulação dos princípiose normas que devem reger os espaços habitáveis, no seu conjunto cidade-campo”( 1997, p.371).

O Direito Urbanístico é de fundamental importância no que diz res-peito à ordenação do território municipal, com especial enfoque na zona

Page 145: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 395

urbana. É através desse ramo do direito que o Poder Público pode atuarsobre as relações urbanas, melhorando a condição de vida dos seus habi-tantes. Portanto, a falta de legislação urbanística, ou mesmo a falta dehomogeneidade da mesma, resulta na inobservância dos direitos funda-mentais, individuais e coletivos, no que diz respeito à qualidade de vida.

Cabe ressaltar que o Brasil nas últimas três décadas passou por intensoe anárquico processo de urbanização, e a sociedade brasileira apresentaum perfil urbano, sendo que no último censo realizado 85% da populaçãovive em cidades.

Importante é a análise de Pessoa:

O que se percebe, contudo, com raras exceções, é que overtiginoso processo de urbanização tem gerado enormesproblemas sociais, que se vêm agravando nos últimos tem-pos por falta de uma política urbana consistente, que deveenvolver esforços conjugados da sociedade civil brasileira edas três esferas de governo, União, Estados e municípios,mas principalmente destes últimos. De fato, embora os mu-nicípios seja o lugar por excelência das “políticas urbanas”, odrama das cidades exige a coordenação de ações nas trêsesferas de governo, visto que diversos problemas sociais quedegradam a vida nas cidades dependem da implementaçãode políticas regionais e nacionais, como, por exemplo, políti-ca de emprego, de fixação do homem no campo, de segu-rança pública e de habitação. (2001, p. 54)

As cidades brasileiras possuem uma organização caótica, principal-mente as médias e as grandes, onde o ambiente urbano encontra-se de-gradado, deteriorado e desumanizado, comprometendo a cidadania e aqualidade de vida da população.

Ainda, citando Pessoa, alguns problemas são nitidamente visíveis:

Alguns problemas saltam aos olhos: “inchamento das ci-dades”; “favelização das periferias”; ocupação caótica, nãoplanejada e antidemocrática dos espaços urbanos; especu-lação imobiliária; verticalização das cidades, com o au-mento crescente do número de edifícios de apartamento;

Page 146: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

396 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

deterioração da paisagem urbana; deterioração do meioambiente; trânsito caótico de veículos; carência de habita-ção; falta de saneamento básico; falta de espaços de lazer,principalmente para as populações de baixa renda;loteamentos irregulares; inadequada utilização do solo, etc.(2001, p. 54)

A partir desse contexto, o Estatuto da Cidade vêm para fixar diretri-zes, princípios, regras e instrumentos jurídicos de política urbana, tendopor objetivo a organização dos espaços habitáveis como pressuposto essen-cial de uma convivência democrática.

Assim, o citado Estatuto visa equilibrar socialmente as discrepânciasexistentes no uso da propriedade urbana, visando que esta cumpra suafunção social, harmonizando o convívio em sociedade, pois como destaca aConstituição Cidadã o interesse dos demais impera sobre a individualidade

Vejamos, na seqüência, princípios e instrumentos trazidos pelo Estatu-to da Cidade para uma nova política urbana.

A Lei 10.257/01, num primeiro momento, fixa princípios informadorespara uma política urbana nacional, bem como versa o seu art. 2°, que elaseja “ordenada ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade eda propriedade urbana”.

Segundo Pessoa são eles, dessa forma, descritos:

Direito às cidades sustentáveis. (...) Deve ser entendidocomo direito à terra urbana, à moradia, ao saneamentoambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aosserviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para presentes efuturas gerações (...).

Gestão democrática das cidades. (...) de grande importân-cia para um Estado democrático de Direito fundado na ci-dadania (CF, art. 1°). Diz respeito à “participação da po-pulação e de associações representativas dos vários segmen-tos da comunidade na formulação, execução e acompanha-mento de planos, programas e projetos de desenvolvimentourbano (art. 2°, II). (...) Doravante, a realização de deba-tes, audiências e consultas públicas em torno das propostas

Page 147: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 397

de leis orçamentárias será condição sine qua non para suaaprovação pela Câmara Municipal. A participação demo-crática deverá também ser assegurada na elaboração doPlano-Diretor dos municípios.

Planejamento urbano. (...) No planejamento deve-se terclareza do que seja possível, desejável e prioritário para acidade. Instrumento por excelência deste planejamento é oPlano-Diretor, aprovado por lei municipal e sintonizadocom a legislação orçamentária do município (art. 40) (...).

Ordenação do uso do solo urbano. A normatização e ocontrole do uso do solo urbano é outro princípio funda-mental da política urbana definida pelo EC (art. 2°, VI).Tal normatização faz-se premente no sentido de se evita-rem alguns males e distorções, tais como: a utilização ina-dequada dos imóveis urbanos; a proximidade de usos in-compatíveis ou inconvenientes; o parcelamento do solo, aedificação ou o uso excessivos ou inadequados em relaçãoà infra-estrutura urbana; a instalação de empreendimen-tos ou atividades que possam funcionar como pólos gera-dores de tráfego, sem a previsão de infra-estrutura corres-pondente; a retenção especulativa de imóvel urbano; a de-terioração das áreas urbanizáveis; a poluição e a degrada-ção ambiental.

Justa distribuição dos ônus e benefícios. O processo deurbanização deve dar-se de forma socialmente justa, comuma eqüitativa distribuição de seus ônus e benefícios (art.2°, IX). É justa a recuperação dos investimentos do PoderPúblico de que tenha resultado a valorização de imóveisurbanos (inc, XI). Neste sentido, os proprietários de imó-veis devem satisfazer os gastos da urbanização, dentro doslimites do benefício dela decorrente para eles, como com-pensação pela valorização de terrenos ou melhoria dascondições de edificabilidade de seus lotes. Volta a ressurgiro instituto da contribuição de melhoria. (2001, p. 54/ 55)

Destarte, o Estatuto da Cidade estabeleceu normas de ordem públicae interesse social, que regulam o uso da propriedade urbana em prol de

Page 148: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

398 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

bem estar coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos e do meioambiente.

O art. 4° da Lei 10.254/01 prevê diversos instrumentos a serem utiliza-dos pelas unidades federadas, mas, sobretudo, pelos municípios para arealização de uma política urbana. Dessa maneira, consoante o artigosupra citado são eles assim descritos sob um panorama geral: “(...) I -planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território; II - planeja-mento de regiões metropolitanas; III - planejamento municipal, em especial:plano-diretor; disciplina do parcelamento, do uso e da ocupação do solo; zone-amento ambiental, gestão orçamentária participativa; leis orçamentárias; IV -institutos tributários e financeiros: IPTU; contribuição de melhoria; incentivosfiscais; V - institutos jurídicos e políticos: desapropriação; servidão administra-tiva; limitações administrativas; tombamento; instituição de zonas especiais deinteresse social; concessão de direito real de uso; parcelamento, edificação ouutilização compulsórios; usucapião especial de imóvel urbano; assistência téc-nica e jurídica gratuita para as comunidades menos favorecidas; referendo eplebiscito popular; VI - Estudo de prévio impacto ambiental (EIA) e Estudoprévio de impacto de vizinhança (EIV)”.

Nesse contexto sobre os instrumentos da política urbana, o Capítulo II(Dos Instrumentos da Política Urbana) do Estatuto da Cidade é o disci-plinador de tais instrumentos, valendo ainda citar Flores e Santos:

(...) Artigos foram reservados para tratar dos instrumen-tos jurídicos do parcelamento, edificação ou utilização com-pulsórios, do IPTU progressivo no tempo, da desapropria-ção com pagamento em títulos, da usucapião especial deimóvel urbano, da concessão de uso especial para fins demoradia e, por fim, do direito de superfície. O direito depreempção e a outorga onerosa do direito de construir tam-bém merecem realce na recente legislação. Não descui-dou, o Estatuto da Cidade, de consignar expressamente apossibilidade de os Municípios, através de lei específica,procederem a operações urbanas consorciadas. Para ter-minar esse capítulo tratou o legislador do instituto da trans-ferência do direito de construir a elaboração de estudo deimpacto de vizinhança (EIV). (2002, p. 142)

Continuando, o Capítulo III (Do Plano Diretor) trata do plano diretor,

Page 149: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 399

e como dispõe o art. 40 do estudado Estatuto é “instrumento básico dapolítica de desenvolvimento e expansão urbana”, determinando, pois, quetodos os instrumentos da política urbana passem obrigatoriamente peloplano diretor da cidade.

Desse modo, este é o instrumento que fixa metas, programas e projetospara o adequado planejamento do Município. No entanto, Mukai acredi-ta que o plano diretor deveria ser criado com objetivos discricionários enão com metas fixas como está sendo realizado. Assim, versa o autor:

(...) deveria conter normas disposições e diretrizes bastan-te gerais, fixando não uma, mas várias alternativas, comoas normas discricionárias, que deixam ao administradormargens de liberdade de escolha a seguir para, em seudescortínio, atender da melhor forma o bem comum, ouem função do Texto Constitucional, que dispõe que a pro-priedade urbana cumpre a sua função social quando atendeas normas fundamentais do plano diretor (art. 182, § 2°),concretizando, efetivamente, no plano jurídico-positivo, esseprincípio tantas vezes repetido em todas as nossas últimasConstituições. (2001, p.33)

No Quarto Capítulo (Da Gestão Democrática da Cidade), o Estatutoda Cidade invoca a participação da sociedade civil através da Gestão De-mocrática da Cidade, onde os cidadãos devem acompanhar, fiscalizar eatuarem de forma efetiva nas decisões e empreendimentos da sua cidade.

A Lei 10.257/01 disciplina a Gestão Democrática sob três aspectosconstitucionais como mostra Mukai:

Em primeiro lugar, o artigo inaugural da Constituição da Re-pública diz que a República Federativa do Brasil constitui-seem Estado Democrático de Direito. Em segundo lugar, nãonos esqueçamos de que o parágrafo único do art. 1° da mes-ma Constituição afirma que “todo o poder emana do povo,que o exerce por meio de representantes eleitos ou direta-mente”, nos termos da Constituição. Em terceiro lugar, ob-servamos que o art. 29 da Carta dispõe que os municípios,em suas Leis Orgânicas, deverão observar, dentre outros pre-

Page 150: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

400 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

ceitos, o previsto no seu inciso XII - cooperação das associa-ções representativas no planejamento municipal. (2001, p.51)

Logo, a questão da participação popular tratada no Estatuto da Cida-de é plenamente justificável constitucionalmente.

Por fim, no Capítulo V, trata a estudada Lei Federal das DisposiçõesGerais, onde o art. 46 cria o Consórcio imobiliário, que consiste na viabi-lização de planos de urbanização ou edificação, onde o proprietário, apósser notificado compulsoriamente (parcelar, edificar, ou utilizar o imóvel)transfere seu imóvel para o Poder Público Municipal, e após a realizaçãodas obras, recebe como pagamento unidades imobiliárias, devidamenteurbanizadas ou edificadas.

Além disso, nesse Capítulo é possível a utilização da Ação Civil Públi-ca para coibir as ações que atentem contra a ordem urbanística. Assim, éa tentativa encontrada para responsabilizar o agente público diante daomissão, além da responsabilização dos prefeitos por ato de improbidadeadministrativa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Estatuto da Cidade tramitou por doze anos no Congresso até sersancionado pelo presidente Fernando Henrique. Mesmo assim, a demoranão garantiu seu reconhecimento, entre peritos em legislação e urbanis-tas, como instrumento eficaz de regularização de áreas urbanas. No en-tanto, acredita-se ser imensurável e de grande relevância para o progres-so urbano a referida Lei em estudo, pois se mostra suficiente para resolverproblemas no âmbito das cidades, sendo necessárias, para tanto, medidaspolíticas, administrativas jurídicas e tributárias para maximizar a eficáciado Estatuto, visando um desenvolvimento, primeiramente local, para, após,refletir de maneira global em todo Estado nacional.

Os instrumentos da política urbana, trazidos pelo Estatuto da Cidade,consubstanciam-se em verdadeiras ferramentas para o Poder PúblicoMunicipal enfrentar a falta de planejamento urbano, objetivando ameni-zar as desigualdades territoriais.

Indispensável, como já dito alhures, é que, o tema tratado no trabalho em

Page 151: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 401

questão, não é passível de esgotamento, merecendo pela sua abrangência,complexidade e importância um estudo mais detalhado, a fim de que possaelucidar as questões de grande importância para os operadores do direito.

Para tanto, bom seria que os administradores municipais dirigissemmais atenção para os problemas de regularização fundiária nas cidades,tentando, é claro, a longo prazo reverter essa situação caótica de aglome-rações clandestinas e favelas sem condições de habitação, com a efetivaaplicação do Estatuto da Cidade. Mas para isso, se faz necessário a coope-ração de entidades representativas da sociedade civil no planejamentomunicipal, através da participação popular, seja em ONGs ou Conselhose Associações Civis, na gestão local, destinando-se a regular a vida emsociedade, ordenando os interesses coletivos.

REFERÊNCIAS

ALFONSIN, Betânia de Moraes. Direito à Moradia: Instrumentos e Experiências deRegularização Fundiária nas Cidades Brasileiras. Rio de Janeiro: Observatório depolíticas Urbanas: IPPUR: Fase, 1997. 282 p.

FERNANDES, Edésio (Org.). Direito Urbanístico. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. 248 p.

GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Revistados Tribunais, 1990.

_____. O Direito Posto e o Direito Pressuposto. São Paulo: Malheiros, 1998.

LEAL, Rogério Gesta. A Função Social da Propriedade e da Cidade no Brasil: AspectosJurídicos e Políticos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 174 p.

MACRUZ, J. C., MACRUZ, J. C. Competência Constitucional do Município em Urba-nismo. In: MOREIRA, Mariana (Coord.). Estatuto da Cidade. FUNDAÇÃOPREFEITO FARIA LIMA - CEPAM. São Paulo, 2001.482 p.

MAHFUS, Julio Cesar. Democracia Participativa: Um Balizamento entre a DemocraciaRepresentativa e a Democracia Direta no Contexto Brasileiro. Santa Cruz do Sul,2002. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional -Mestrado - Universidade de Santa Cruz do Sul).

MOTTA, Diana Meirelles da. Propostas de Legislação Federal sobre Política Urbana e oDesafio da Gestão das Cidades. In: MOREIRA, Mariana (Coord.). Estatuto da Cida-de. FUNDAÇÃO PREFEITO FARIA LIMA - CEPAM. São Paulo, 2001.482 p.

Page 152: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

402 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

MUKAI, Toshio. O Estatuto da Cidade: Anotações à Lei N. 10.257, de 10 -7-2001. SãoPaulo: Saraiva, 2001

__________. Planejamento Municipal: O Plano Direitor e o Estatuto da Cidade.Revista IOB, São Paulo,n.º01, p.4-19, Janeiro de 2002.

__________. Direito e Legislação Urbanística no Brasil. São Paulo: Saraiva, 1988, 307 p.

PESSOA, Robertônio. Estatuto da Cidade. Revista Jurídica Consulex, n. 110, p.54-55,agosto. 2001.

SANTOS, Milton. A Urbanização Brasileira. 4a ed. São Paulo: Hucitec, 1998. 157 p.

_______. Ensaios sobre a Urbanização Latino-americana. São Paulo: Hucitec, 1982.194 p.

Page 153: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 403Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.403-406

A criminalidade dos colarinhos

Collar criminality

LUIZ LUISI

Professor Titular do Curso de Mestrado em Direito-ULBRA/Canoas, professor livre-docente e do Cursode Especialização em Direito Penal, da Faculdade de Direito/UFRGS.

RESUMO

O autor faz uma breve análise dos crimes de colarinho branco, a partir de umavisão garantista.Palavras-chave: Direito Penal, White collar, criminalidade, garantismo.

ABSTRACT

Considering the principle of maximum certainty, the author makes a brief analysisof white collar crimes.Key words: Criminal law, white collar criminality, principle of maximumcertainty.

Uma corrente da criminologia, a chamada criminologia radical, assu-mindo uma postura na sua essência político-jurídica, tem entendido quea criminalidade tem suas raízes nas iniqüidades sociais. Estas seriam asgeradoras da delinqüência. Não se pode negar que muitos crimes têm nasua origem as injustiças de uma sociedade que distribui de forma desi-gual os bens necessários à todos para uma vida humana digna. Todavia nomundo contemporâneo, perigosas e “modernas” modalidades delituosastem sua causa na ânsia de riqueza e de bem estar. É o que ocorre com acriminalidade econômica, lesando o patrimônio de milhares de poupado-

Page 154: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

404 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

res, que, com sacrifício, conseguiram amealhar algumas economias. É ocaso da delinqüência ecológica, principalmente das grandes indústrias,que poluem a atmosfera, os mares, os rios, pondo em perigo a saúde demilhares de pessoas, e nas suas nuanças mais graves ameaça a própriasobrevivência da espécie humana. Os agentes desses delitos não são “osmarginalizados”, mas pessoas de recursos, bem postas na vida, e que comessas reprováveis condutas visam aumentar suas fortunas.

Estes novos tipos de crime tem ensejado interessantes estudos de cri-minólogos de vários países. Estes trabalhos dizem respeito ao que se con-vencionou chamar de criminalidade dos colarinhos.

O primeiro desses estudiosos, a definir certos delinqüentes usando a figu-ra do colarinho foi o criminalista norteamericano Edwin Sutherland. A ele sedeve ter batizado a delinqüência de pessoas de expressiva condição financei-ra e prestígio social como a criminalidade do colarinho branco. Estes delitosocorrem no contexto das atividades econômicas, e estão intimamente ligadasao processo de produção e comercialização de bens e serviços.

A clássica obra de Sutherland, intitulada WHITE COLLAR CRIME,data de 1949. A primeira versão omite o nome das empresas e empresári-os, autores dos crimes nela noticiados. A editora Dryden Press recusou-sea correr o risco de vir a suportar, se publicados os nomes, prováveis epesadas indenizações. Mas havia o propósito de uma nova e integral edi-ção em 1953, quando, o término de prazo prescricional viabilizaria a pu-blicação do inteiro texto do livro. Todavia o clima político nos EstadosUnidos em 1953, dominado pelo Maccartismo, não era propício para apublicação projetada. E somente em 1983 o texto integral da obra deSutherland foi editado pela Yale University Press.

Os crimes do colarinho branco estão presentes nas legislações penaiscontemporâneas. No Brasil, são muitas as leis que os prevêem, em dezenasde tipos. Dentre outras são de lembra-se as Leis nº 7.942, (crimes contra aordem financeira nacional), de 11.06.1988; nº 8137, (crimes contra a or-dem tributária e contra a ordem econômica), de 27.12.1990; nº 8.078, (Có-digo do Consumidor), de 11.09.1991. Também figuram no Código Penal,em cuja parte especial foram inseridos recentemente, como nos artigos 168A (apropriação indébita previdenciária), prevista nas Lei nº 9.983/2000. E,ainda, artigo 359 A, B, C, D, E, F, G e H, previstos na Lei nº 10.028/2000.

É de se ressaltar que a criminalidade dos colarinhos não é exclusivida-de dos chamados Estados Capitalistas. Um penalista russo, Kolakowski,

Page 155: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 405

denominou de crimes do colarinho vermelho, certo tipo de delinqüênciamuito comum nos países onde se implantou de fato o socialismo. Trata-seda criminalidade de burocratas corruptos, e que gerou uma desconfiançageral no sistema e na possibilidade de se chegar a um Estado fundado nadistribuição justa da riqueza.

A difusão deste tipo de criminalidade não passou despercebida ao legis-lador soviético. Quando da reforma penal formalizada no Código Penal de1960, foi inserido em seu texto o capítulo dos “Delitos contra a PropriedadeSocialista”, até então inexistente no direito penal russo. Dentre os delitosprevistos no capítulo mencionado merece especial menção o do artigo 93bis, ou seja, “A apropriação de bens estatais ou sociais em quantidade espe-cialmente grande”, que tem como uma de suas sanções a pena de morte.

Abstraindo a legalidade do delito, ou seja, a necessidade de sua pre-visão em lei, e, pois, em uma visão discutível e sem rigor técnico, algunscriminalistas têm falado de uma terceira modalidade de criminalidadedos colarinhos. FERRANDO MANTOVANI denominou-a de delinqüên-cia do colarinho azul. Trata-se de fatos que não são sob o aspecto técnicojurídico fatos criminosos, por não estarem legalmente previstos. Todavia alesão causada por esses fatos à valores fundamentais das comunidades,dão aos mesmos uma profunda conotação anti-social, e provocam umageneralizada reprovação. Exemplo desses fatos são os altos proventos vo-tados pelos Parlamentos em benefício dos próprios legisladores, em paísesonde os salários em geral, e a renda per capita, são manisfestamente bai-xos. O referido Mestre de Florença dá como espécie da criminalidade docolarinho azul “certos comportamentos corporativos, sentidos e censura-dos pela maior parte dos cidadãos como anti-sociais e desestabilizantes,realizados não raramente sob o escudo formal de mal entendidas liberda-des sindicais e de direitos dos marginalizados, tais como o grevismo indis-criminado e selvagem, a danificação das instalações, etc.”.

Estes crimes, como é sabido, gozam de uma alta taxa de imunidade,pois seus autores são por vezes dificilmente identificáveis, e quando pro-cessados são raramente condenados por terem a disposição defesas técni-cas altamente capazes. E em razão do poder financeiro, prestígio e rela-ções, podem, (nem sempre), interferir e pressionar as autoridades polici-ais, e mesmo judiciárias. Todavia em alguns países, é o caso da Itália, atendência vem mudando, e o número de delinqüentes do colarinho pro-cessados e condenados tem aumentado ao ponto de renomados advoga-dos criminais terem acusado excessos de presunções contra os agentes do

Page 156: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

406 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

mundo econômico, a ponto de dificultar a defesa, e levar a decisões porvezes flagrantemente injustas. É o caso da famosa operação “mani puliti”,ocorrida na Itália, onde foram decretadas algumas centenas de prisõespreventivas, mas um número inexpressivo de condenações.

Em verdade, nessas modalidades de delinqüência, como deve ocorrercom as demais, o caminho correto de sua repressão deve ter por parâme-tro a lei interpretada de modo adequado. E esta há de ser aplicada semclemência e favores, mas, também, sem excesso, não se violentando osprincípios fundamentais do direito penal garantista, e tendo presente aclássica lição dos romanos: SUMMUM JUS, SUMMA INJURIA.

Page 157: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 407

Observância e aplicação dos tratadosinternacionais na Convenção de Viena

sobre o Direito dos Tratados de 1969

International treaty observance andapplication in 1969 Viena

Convention on the Law of Treaties

VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI

Mestre em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Estadual Paulista (UNESP) –Campus de Franca. Professor de Direito Internacional Público e Direitos Humanos no Instituto de Ensino Jurídico

Professor Luiz Flávio Gomes (IELF), em São Paulo. Professor de Direito Internacional Público nas FaculdadesIntegradas Antônio Eufrásio de Toledo, em Presidente Prudente-SP. Advogado no Estado de São Paulo.

RESUMO

Este trabalho se propôs analisar o problema da observância (cumprimento) eaplicação dos tratados internacionais na Convenção de Viena sobre o Direitodos Tratados, de 1969.Palavras-chave: Direito internacional, tratados internacionais, interpretaçãodos tratados.

RESUMO

The purpose of this work is to analyze the problem of observance (accomplish-ment) and application of international treaties in 1969 Vienna Convention onthe Law of Treaties.Key words: International law, international treaties, treaty interpretation.

Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.407-424

Page 158: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

408 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

INTRODUÇÃO

Este trabalho se propôs analisar o problema da observância (cumpri-mento) e aplicação dos tratados internacionais na Convenção de Vienasobre o Direito dos Tratados, de 1969. E esta matéria é tratada nos artigos26 a 30 da referida Convenção, que estudaremos a seguir.

Para tanto, em primeiro lugar, estudaremos, brevemente, o processo deformação e entrada em vigor dos tratados, para, num momento posterior,desvendar o modo pelo qual a Convenção de Viena sobre o Direito dosTratados, de 1969, trata do problema da observância e aplicação dos tra-tados internacionais concluidos entre Estados.

BREVES NOTAS SOBRE O PROCESSO DEFORMAÇÃO E ENTRADA EM VIGOR DOSTRATADOS

A Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, chama-da por muitos de “Código dos Tratados”, teve como uma de suas primeiraspreocupações a de definir precisamente o que se entende por tratado in-ternacional. Assim foi que a Convenção, em seu art. 2.º, definiu o tratadocomo sendo um “acordo internacional celebrado por escrito entre Esta-dos e regido pelo direito internacional, quer conste de um instrumentoúnico, quer de dois ou mais instrumentos conexos, qualquer que seja suadenominação particular” (art. 2.º, § 1.º, a).1

Trata-se, portanto, de um acordo formal concluído entre os sujeitos dedireito internacional público, regido pelo direito das gentes, visando a pro-duzir imprescindivelmente efeitos jurídicos para as partes contratantes.2

Ou, na definição de BEVILÁQUA: “Tratado internacional é um ato jurídi-co, em que dois ou mais Estados concordam sobre a criação, modificaçãoou extinção de algum direito”, completando que a “definição acima ex-posta abrange todos os atos jurídicos bilaterais ou multilaterais do direitopúblico internacional, que, realmente, podem ser designados pela de-

1 Para o estudo da matéria vide VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI, Tratados internacionais: com comentários à Convençãode Viena de 1969, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2000, pp. 21 e ss.

2 Cf. JOSÉ FRANCISCO REZEK. Direito internacional público: curso elementar, 6.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 14.

Page 159: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 409

nominação geral de tratados, mas que recebem, na prática e nos livros dedoutrina, qualificações diversas”.3

Os tratados e convenções internacionais são atos, em princípio, sole-nes, cuja conclusão requer a observância de uma série de formalidadesrigorosamente distintas e sucessivas. São quatro as fases pela qual têm depassar os tratados solenes, até sua conclusão: a) a das negociações preli-minares; b) a da assinatura ou adoção, pelo Executivo; c) a da aprovaçãoparlamentar (referendum) por parte de cada Estado interessado em se tor-nar parte no tratado; e, por fim, d) a da ratificação ou adesão do textoconvencional, concluída com a troca dos instrumentos que a consubstan-ciam. Esta última formalidade, como explica MAROTTA RANGEL, tem afinalidade de vincular juridicamente os signatários, de tal sorte que, apartir dela, deve o tratado internacional ser observado estritamente, noslimites de seus termos, pelas partes contratantes.4

Antes da ratificação, todos os direitos e obrigações expressos no atointernacional, ficam restritos às relações mútuas dos contratantes, nãotendo se incorporado, ainda, no ordenamento jurídico interno dessesmesmos Estados.5

No Brasil, após a sua ratificação, o tratado, ainda, é promulgado pordecreto do Presidente da República, e publicado no Diário Oficial da União.São etapas complementares adotadas pelo Estado brasileiro para que ostratados possam ter aplicabilidade e executoriedade internas.

Para MIRTÔ FRAGA, o tratado internacional, regularmente concluído, “éuma fonte de direito, expressamente prevista na Constituição, produzida coma colaboração externa, ao lado de outras, emanadas, apenas, de órgãos inter-nos. A sua promulgação é conseqüência desse fato constatado e, ao contráriodo que se pensa, não é, apenas, prática que se estabeleceu, mas exigênciaconstitucional implícita. Não tem o efeito de transformá-lo em direito inter-no, mas tão-só o de conferir-lhe força executória. Ao aplicar a norma con-vencional, o Poder Judiciário aplica o próprio tratado (Direito Internacional)e não o direito nacional (o produzido, apenas, pelos órgãos internos) em que,supostamente se tenha transformado por via do decreto de promulgação”.6

3 CLÓVIS BEVILÁQUA. Direito público internacional, Tomo II, 2.ª ed. Rio: Freitas Bastos, 1939, p. 13.4 VICENTE MAROTTA RANGEL. “Integração das convenções de Genebra no direito brasileiro”. In: Revista do Instituto

de Pesquisas e Estudos Jurídico-Econômico-Sociais, ano II, n.º 3. Bauru: Instituição Toledo de Ensino, jan./mar.1967, pp. 201-202.

5 Cf. VICENTE MAROTTA RANGEL. Idem, p. 202.6 MIRTÔ FRAGA. O conflito entre tratado internacional e norma de direito interno: estudo analítico da situação do tratado

na ordem jurídica brasileira. Rio: Forense, 1998, p. 127.

Page 160: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

410 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

A Convenção de Viena tomou, também, a providência de regulamen-tar os requisitos para a conclusão e entrada em vigor dos tratados. Assim,para que um tratado seja considerado válido, requer-se que as partescontratantes (Estados ou organizações internacionais) tenham capacida-de para tal, que os seus agentes signatários estejam legalmente habilitados(por meio de carta de plenos-poderes, assinada pelo Chefe do Executivo ereferendada pelo Ministro das Relações Exteriores), que haja mútuo con-sentimento (que se revela no livre direito de opção do Estado, manifestadoem documentação expressa), e que o seu objeto seja lícito e possível (por-que a promessa de uma prestação de caráter absoluto, amoral ou irreali-zável, é incapaz de formar um vínculo jurídico).7

Segundo a Convenção (art. 6.º), todos os Estados têm capacidadepara celebrar tratados, devendo eles porém, na realização de negociaçõesjunto ao governo de país estrangeiro, atuar através de seus representan-tes, devidamente autorizados a praticar atos internacionais em seu nome(plenipotenciários – detentores dos plenos poderes), à exceção daquelaspessoas que em virtude do cargo que ocupam estão dispensadas de talautorização (v.g., os Chefes de Estado, os Chefes de Governo e o Ministrodas Relações Exteriores).

Os Chefes de Estado (ou de Governo, dependendo do sistema adota-do em cada Estado) têm, em razão do cargo que exercem, capacidadeoriginária, que prescinde lhes seja exigida qualquer credencial. Os Minis-tros das Relações Exteriores (ou dos negócios estrangeiros como denomi-nados em alguns Estados, ou ainda os Foreign Secretary ou Secretary ofState) e os Chefes de Missão Diplomática, por sua vez, têm capacidadederivada para a celebração de tratados, com os mesmos poderes dos Che-fes de Estado ou de Governo, uma vez investidos em seus respectivoscargos. São plenipotenciários ou mandatários que, em virtude de suasfunções, estão dispensados da apresentação da carta de plenos poderes.Mas esta isenção limita-se aos tratados celebrados entre o Estado que oacolhe e o que ele representa e, de acordo com o que dispõe a Convençãode Viena (art. 7.º , n.º 2, b), vai tão-somente até a adoção do seu texto.8

O próprio conceito de “plenos poderes” dado pelo art. 2.º, § 1.º, c, da

7 Cf. HILDEBRANDO ACCIOLY. Tratado de direito internacional público, Tomo II. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,1934, pp. 402-407.

8 Cf. MARIA DE ASSIS CALSING. O tratado internacional e sua aplicação no Brasil. Dissertação de mestrado em Direito.Brasília: Universidade de Brasília, 1984, p. 25.

Page 161: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 411

Convenção de Viena já induz essa idéia. Para o referido dispositivo os ple-nos poderes consubstanciam-se em um documento expedido pela autorida-de competente de um Estado e pelo qual são designadas uma ou váriaspessoas para representá-lo na negociação, adoção ou autenticação do textode um tratado, para manifestar o consentimento do Estado em obrigar-sepelo mesmo ou para praticar qualquer outro ato a ele relativo. Mas caso opoder conferido a um representante, para manifestar o consentimento deum Estado em obrigar-se por um determinado tratado, tiver sido objeto derestrição especifica, o fato de o representante não respeitar a restrição nãopode ser invocado como meio para invalidar o consentimento expresso, amenos que tal restrição tenha sido notificada aos outros Estados negocia-dores antes da manifestação do consentimento, segundo se depreende daregra expressa no art. 47 da Convenção de Viena de 1969.

Para outros plenipotenciários que não os elencados acima, a carta deplenos poderes, expedida pela autoridade competente do Estado, é exigi-da. Em caso de a representação do Estado se dar por uma delegação oupor um grupo de pessoas, é importante frisar que só será detentor dosplenos poderes o chefe da delegação ou comissão, incumbindo somente aele, e a mais ninguém, a prática de atos que manifestem a vontade doEstado que representa, no cenário internacional.

Como explica MARIA DE ASSIS CALSING, nos dias atuais “a carta de ple-nos poderes perdeu muito de sua importância, uma vez que, pela rapidezdas comunicações entre o plenipotenciário e seu governo, é quase impos-sível a existência de fraudes”.9

No caso brasileiro, a competência do Chefe do Poder Executivo paracelebração de tratados é privativa, o que permite haja delegação, por si-nal, muito comum nos atos internacionais, uma vez que o Presidente daRepública tem outras funções além da de celebrar tratados. A Constitui-ção brasileira de 1988 diz competir privativamente ao Presidente da Re-pública “manter relações com Estados estrangeiros e acreditar seus repre-sentantes diplomáticos” (art. 84, VII). Esta competência normalmente édelegada ao Ministro das Relações Exteriores (Ministro dos Negócios Es-trangeiros ou Assuntos Estrangeiros) ou aos Chefes de Missão Diplomáti-ca. Todo funcionário de carreira, entretanto, acreditado ou credenciadopelo País estrangeiro, pode ser agente plenipotenciário. Nesse sentido é

9 MARIA DE ASSIS CALSING. Idem, p. 26.

Page 162: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

412 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

que o Decreto n.º 99.578, de 10 de outubro de 1990, que regula a organi-zação e funcionamento do Ministério das Relações Exteriores, diz incum-bir ao Itamaraty “negociar e celebrar, com a cooperação de outros órgãosinteressados, tratados, acordos e demais atos internacionais” (art. 2.º,VI), sendo verdadeiro “auxiliar” do Presidente da República.

Esta capacidade para concluir tratados, denominada jus tractuum ou“treaty-making power”, vem sendo, entretanto, como ensina JOÃO GRAN-DINO RODAS, compartilhada por um número crescente de entidades, nãomais se restringindo, hodiernamente, tão-somente aos Estados. E isto por-que, ao lado dos Estados soberanos, que mesmo diminutos ou exíguos,sempre foram considerados como possuidores de tal capacidade, existemas organizações internacionais intergovernamentais, também hábeis paraa conclusão de tratados. Para GRANDINO RODAS, “geralmente tal podervem expresso no tratado constituidor, podendo ser também inferido naprática firmada pelos mesmos, no exercício de suas funções. Desde quetenham sua capacidade reconhecida por algum Estado, poderão um mo-vimento de libertação nacional, uma autoridade insurreta ou um governono exílio, celebrar tratados bilaterais com o mesmo”.10

Aliás, na atualidade, não se tem a menor dúvida disso, tanto que aConvenção de Viena sobre o Direito dos Tratados entre Estados e Orga-nizações Internacionais ou entre Organizações Internacionais, de 1986,trata de forma específica o problema. Não têm, contudo, a capacidade ouo poder para celebrar tratados, os Estados Federados, por carecerem depersonalidade jurídica internacional, bem como, pelo mesmo motivo, asempresas privadas, inobstante sua eventual multinacionalidade.

OBSERVÂNCIA DOS TRATADOS NA CONVENÇÃODE VIENA DE 1969

Entre as normas de direito internacional geral – geral porque impõemdeveres e atribuem direitos a todos os Estados –, está aquela usualmentedesignada pela fórmula pacta sunt servanda, que autoriza os sujeitos dacomunidade jurídica internacional a regular, através de tratados interna-cionais, a sua conduta recíproca.11

10 Cf. JOÃO GRANDINO RODAS. Tratados internacionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 12.11 Cf. HANS KELSEN. Teoria pura do direito, 6.ª ed. Coimbra: Armênio Amado Editora, 1984, p. 431.

Page 163: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 413

A Convenção de Viena de 1969, no seu art. 26, dispõe justamentesobre essa regra do pacta sunt servanda, segundo a qual “todo tratado emvigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé”. Esta norma,descrita pela Comissão de Direito Internacional da ONU como um “prin-cípio fundamental do direito dos tratados” é, aliás, considerada por mui-tos como sendo um dos princípios mais importantes existentes no direitointernacional público.12

Como destaca CARLOS EDUADRO CAPUTO BASTOS, “ainda que a Convençãode Viena sobre o Direito dos Tratados não esteja em vigor no nosso ordena-mento jurídico, há que se considerar que o seu artigo 26, que estabelece que‘todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé’, é,indiscutivelmente, ponto de referência para qualquer eventual litígio, pois,sendo ou não regra de direito positivo internacional, subjaz a cláusula ‘PactaSunt Servanda’ como o grande princípio reitor na interpretação e na aplicaçãodos entendimentos havidos no campo das relações internacionais”.13

Em suma, o que se extrai do enunciado do art. 26 da Convenção deViena é que a obrigação de respeitar os tratados é um princípio necessáriodo direito internacional; necessário porque sem eles a segurança das rela-ções entre os povos e a paz internacional seriam impossíveis. Além do mais,a referência feita à boa-fé bem demonstra a necessidade de uma convivên-cia harmoniosa entre os Estados, o que não seria possível sem o cumprimen-to das normas nascidas do seio da comunidade internacional. Em suma, oque o art. 26 da Convenção de Viena de 1969 fez, foi consagrar de maneiraexpressa o próprio fundamento jurídico dos tratados internacionais, segundoo qual a obrigação de respeitá-los repousa na consciência e nos sentimentosde justiça internacionais. Sendo os tratados a fonte mais importante dodireito internacional contemporâneo, o seu respeito por parte dos Estadosconfigura a base necessária para a pacificação mundial e para a conseqüen-te organização política e internacional do planeta.14

Na medida em que “todo tratado em vigor obriga as partes e deve sercumprido por elas de boa-fé”, seu eventual descumprimento acarreta aresponsabilidade do Estado no âmbito internacional. Talvez por isso é queaté mesmo em países de regime totalitário existem regras constitucionais

12 Cf. ILC Report (1966), reproduzido em 61 Am. J. Int’l L. 248, p. 334 (1967).13 CARLOS EDUADRO CAPUTO BASTOS. “Hierarquia constitucional dos tratados”, in Advogado: desafios e perspectivas

no contexto das relações internacionais, vol. II. Brasília: Conselho Federal da OAB, 2000, p. 58.14 Cf. JOÃO PENTEADO ERSKINE STEVENSON. Fundamentos jurídicos dos tratados internacionais: ensaio de direito público

internacional. São Paulo: [s.n.], 1939, pp. 97-101.

Page 164: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

414 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

a disciplinar o princípio em apreço. Assim é que o art. 29 da Lei funda-mental da Ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, determinavafossem “as relações da URSS com outros Estados”, apoiadas “na obser-vância (…) do honesto cumprimento dos compromissos provenientes dosprincípios e normas universalmente reconhecidas do direito internacio-nal e dos tratados internacionais concluídos pela URSS”.

Nessa esteira é que o art. 27 da Convenção dispõe que “uma parte nãopode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadim-plemento de um tratado”.15 É dizer, no que tange ao direito internacionalpositivo, a obrigação de cumprir os tratados de boa-fé vige apesar de qual-quer disposição a contrario sensu do direito interno.16

Não se pode, pois, concordar com a afirmação de CELSO RIBEIRO BASTOS,para quem “o direito internacional positivo não prevê norma assecuratóriada supremacia do tratado sobre as normas de direito interno dos Estadosenvolvidos”, sendo que tudo “o que existe nesse sentido são proposiçõesdoutrinárias, uma vez que cada País, no âmbito de seu território, dita asregras de composição entre o direito internacional e as suas normas inter-nas”.17 Uma das normas de direito internacional positivo assecuratórias doprimado do direito internacional sobre o direito interno estatal, é justa-mente a do art. 27 da Convenção de Viena de 1969, em comento.

Frise-se que o referido dispositivo, resultado de emenda do Paquistão,não encontrou oposição por parte dos países defensores da soberania esta-tal.18 Sem embargo de algumas abstenções, nenhum País, entretanto, vo-tou contra a regra enunciada.

A solução a ser adotada em caso de descumprimento do texto conven-cional deve ser encontrada no próprio corpo do tratado, que deve preverinstrumentos de resolução de eventuais controvérsias que possam surgir

15 Para CLÓVIS BEVILÁQUA: “A validade dos tratados independe das mudanças constitucionais, que sofram os Estadoscontratantes” (Direito público internacional: a synthese dos princípios e a contribuição do Brasil, Tomo II, cit., p. 23).

16 THOMAS BUERGENTHAL (et al.). Manual de derecho internacional público. México: Fondo de Cultura Económica,1994, p. 87. Para este autor: “Además de la base convencional anterior, la falta de valor del derecho internopara excusar el cumplimiento de normas internacionales es un principio indisputable y esencial delderecho internacional” (Idem, ibidem).

17 Cf. CELSO RIBEIRO BASTOS e IVES GANDRA MARTINS. Comentários à Constituição do Brasil: promulgada em 5 deoutubro de 1988, 4.º vol. São Paulo: Saraiva, 1995, p. 98.

18 Para PEDRO BAPTISTA MARTINS: “A filosofia de HEGEL tem exercido uma influência profundamente nefasta nodesenvolvimento do direito público moderno, pois que, divinizando o Estado, ela criou o fetichismo dasoberania que tem oferecido (…) as mais sérias resistências à evolução do direito internacional” (Daunidade do direito e da supremacia do direito internacional. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 15).

Page 165: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 415

entre as partes. Sem embargo disso há uma forte tendência atual em oEstado vítima do não-cumprimento do tratado recorrer a represálias oucontramedidas contra o suposto Estado infrator do compromisso internaci-onal. É bastante tênue, entretanto, a linha que separa uma resposta justae equilibrada por parte do Estado vítima da violação do tratado de umvisível ilícito internacional.19

No presente domínio da proteção internacional dos direitos humanos,como em outros campos do direito internacional, “os Estados contraem obri-gações internacionais no livre e pleno exercício de sua soberania, e uma vezque o tenham feito não podem invocar dificuldades de ordem interna ouconstitucional de modo a tentar justificar o não-cumprimento destas obriga-ções”.20 Seria mesmo estranho pudessem os Estados invocar violação de suasoberania, depois de submetido o tratado, por eles mesmos, e com plena liber-dade, ao crivo do Poder Legislativo, representativo que é da vontade popular.

Consagrou-se, assim, por esta regra, segundo abalizada lição de JEAN

HOSTERT, “a supremacia do Direito internacional sobre o direito interno,nas relações entre partes contratantes”.21 Apesar de não ter obrigado osEstados a adequar suas normas de direito interno às obrigações internaci-onalmente assumidas, o certo é que, para executá-las de boa-fé, comomanda o art. 26 da Convenção, deve o Estado-parte dar primazia aostratados sobre as suas disposições de direito interno.22

Todos os poderes do Estado – não somente o Executivo e o Legislati-vo, mas também o Judiciário – devem respeito e obediência ao direitointernacional. A sua não-observância acarreta a responsabilidade in-ternacional do Estado, quase sempre esquecida pelo juízes e tribunaisnacionais. Exemplo corriqueiro disso, materializando a prática de ilícitointernacional, traduz-se naquela situação em que, por meio de medidaslegislativas internas se pretende derrogar tratados internacionais, prá-tica corrente naqueles países que igualam hierarquicamente o tratadoà lei.23 E não raro se vêem decisões de tribunais superiores induzindo a

19 Cf. RICARDO SEITENFUS & DEISY VENTURA. Introdução ao direito internacional público. Porto Alegre: Livraria doAdvogado, 1999, pp. 50-51.

20 ANTÔNIO AUGUSTO CANÇADO TRINDADE. A proteção internacional dos direitos humanos: fundamentos jurídicos einstrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991, p. 47.

21 JEAN HOSTERT. “Droit international et droit interne dans la Convention de Vienne sur le Droit des Traités du 23 mai1969”, in Annuaire Français de Droit International, Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1969, p. 117.

22 Cf. JEAN HOSTERT. “Droit international et droit interne…”, cit., p. 117.23 No Brasil, o entendimento de que o tratado eqüivale, hierarquicamente, à lei ordinária federal, é ainda

mantido pelo Supremo Tribunal Federal. Vide, nesse sentido, o criticado Acórdão n.º 80.004-SE, do STF,de 01.06.1977, rel. do Ac. Min. CUNHA PEIXOTO, publicado na RTJ 83/809-848.

Page 166: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

416 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

pensar que, no âmbito interno, legislar contrariamente ao conteúdo deum tratado anteriormente assumido, deixando de fazer fé à palavra,seria legítimo desde que se tenham recursos suficientes e se esteja dis-posto a indenizar os prejuízos causados pelo Estado no âmbito internaci-onal.24 O raciocínio expressa um paralogismo que se apoia numa falsa eerrônea idéia. A ordem internacional sempre prima sobre a interna, etanto isso é verdade que, quando o legislador nacional produz normasque contradizem disposições de um compromisso internacional já assu-mido e, após isso, o Poder Judiciário não é capaz de superar a contradi-ção, harmonizando aqueles preceitos, esta atitude final encontra repa-ro na ordem jurídica internacional, mediante a responsabilização e con-seqüente condenação do Estado infrator. Se por erro ou por falta deafinidade no tratado com as normas internacionais os juízes internosnão restabelecem a antiga ordem jurídica, quem dará a última palavraserá sempre o direito internacional, que, através do instituto da respon-sabilidade, condenará o Estado infrator, reconstituindo o direito viola-do.25 Trata-se de preceito que fora mencionado na decisão de 8 de maiode 1902 do Tribunal Arbitral El Salvador/Estados Unidos (R.S.A: XV,477), e que vem sendo, desde então, reiterado pela jurisprudência nasinstâncias internacionais.

Nas palavras de JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES:

A imposição de sanções pelo descumprimento de normasinternacionais, assim, pode ser feita pelo Estado vítima dainfração, mediante a adoção de medidas de coerção míni-ma ou máxima, dependendo da resistência do infrator e dabase de poder do Estado afetado pela infração. A autotutelaconstitui, ainda, a forma pela qual o Direito Internacionaltem sua eficácia assegurada, não obstante a participaçãoda comunidade internacional organizada tenha, cada vezmais, se mostrado ativa e eficaz para impor normas cogentesde Direito Internacional, dentre as quais destacam-se asque determinam o respeito aos Direitos Humanos. (…) AConvenção de Viena sobre Tratados, que retrata costume

24 Vide, a respeito da consagração desse entendimento, a sentença n.º 25, de 20 de junho de 1990, da SupremaCorte de Justiça da República uruguaia, que trata da aplicação, no âmbito interno, das normas do Direitodo Trabalho consagradas em tratados internacionais ratificados pelo Uruguai.

25 Cf. por tudo, HEBER ARBUET VIGNALI e JEAN MICHEL ARRIGHI, “Os vínculos entre o direito internacional públicoe os sistemas internos”, in Revista de Informação Legislativa, ano 29, n.º 115, Brasília, jul./set. 1992, p. 417.

Page 167: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 417

internacional de aceitação geral e, por isso, respeitada atépor Estados que, a exemplo do Brasil, ainda não a ratifi-caram, consagra norma segundo a qual o Estado não podeinvocar norma interna para deixar de cumprir um tratadointernacional.26

O fiel cumprimento dos compromissos assumidos internacionalmente,em termos técnico-jurídicos, frise-se, deve ser um fim, sem embargo de,infelizmente, por ingerências políticas, estar sendo um meio à obtençãode determinadas finalidades por parte dos Estados contratantes.27

APLICAÇÃO DOS TRATADOS NA CONVENÇÃODE VIENA DE 1969

De regra, os tratados são irretroativos. A não ser que uma intenção dife-rente se evidencie do tratado, ou seja estabelecida de outra forma, suas dis-posições não obrigam uma parte em relação a um ato ou fato anterior ou auma situação que deixou de existir antes da entrada em vigor do tratado, emrelação a essa parte. É o que dispõe o art. 28 da Convenção de Viena de 1969.

Feitas as mesmas ressalvas de não existir intenção diferente evidenci-ada no tratado, ou de não ser esta estabelecida por outra forma, um trata-do internacional obriga cada um dos Estados-partes em relação a todo oseu território. Trata-se da regra da aplicação territorial dos tratados ins-culpida no art. 29 da Convenção de Viena de 1969. Como nos lembraTHOMAS BUERGENTHAL, alguns tratados, entretanto, “contienen cláusulasaplicables a Estados-federales, cuyo propósito es permitir a dichos Estadoslimitar sus obligaciones en virtud de un tratado a aquellos temas que seencuentren dentro del ámbito de su competencia federal”, o que é per-mitido segundo o citado art. 29, por estar evidenciada no tratado a exis-tência de intenção diferente no que toca ao âmbito de aplicação territo-rial dos mesmos.28

26 JOSÉ CARLOS DE MAGALHÃES. O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional: uma análise crítica. Porto Alegre:Livraria do Advogado Editora, 2000, pp. 16-17.

27 Cf. MARIÂNGELA ARIOSI. Conflitos entre tratados internacionais e leis internas: o judiciário brasileiro e a nova ordeminternacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 187.

28 Cf. THOMAS BUERGENTHAL (et al.). Manual de derecho internacional público, cit., p. 87.

Page 168: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

418 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Sem embargo, não estando evidenciada no tratado esta intenção, ne-nhum Estado, ainda que se trate de Estado-federal, pode desconhecer oâmbito de aplicação territorial de um compromisso internacional. É possível,contudo, que se formule uma reserva neste sentido faltando uma disposiçãoexpressa sobre a limitação de obrigações em dado âmbito territorial.29

APLICAÇÃO DE TRATADOS SUCESSIVOS SOBREA MESMA MATÉRIA

A última regra de aplicação de tratados consta do art. 30 da Convençãoe diz respeito à aplicação de tratados sucessivos sobre o mesmo assunto.

Assunto dos mais complexos do direito dos tratados, quiçá o mais con-fuso, a aplicação de tratados sucessivos sobre a mesma matéria tem sidopouco estudada pelos internacionalistas que dela se ocupam, sendo quevários deles, quando o fazem, cuidam do problema, geralmente, dentre osmodos de extinção de tratados.

O tema foi intensamente debatido pela Comissão de Direito Internaci-onal da ONU de 1953 a 1966, sob cinco ângulos distintos, acabando por seradotado o art. 30 da Convenção de 1969, regra esta que foi repetida notambém art. 30 da Convenção sobre o Direito dos Tratados entre Estados eOrganizações Internacionais ou entre organizações Internacionais, de 1986.

O art. 30 e parágrafos da Convenção de Viena de 1969, trata da apli-cação de tratados sucessivos sobre o mesmo assunto nos seguintes termos:

“Artigo 30. Aplicação de Tratados Sucessivos sobre o MesmoAssunto. 1. Sem prejuízo das disposições do artigo 103 daCarta das Nações Unidas [verbis: “Em caso de conflito en-tre as obrigações contraídas pelos Membros das Nações Uni-das em virtude da presente Carta e suas obrigações contraí-das em virtude de qualquer outro acordo internacional, pre-valecerão as obrigações importas pela presente Carta”], osdireitos e obrigações dos Estados partes em tratados sucessi-vos sobre o mesmo assunto serão determinados de conformi-dade com os parágrafos seguintes.

29 THOMAS BUERGENTHAL (et al.). Idem, p. 88.

Page 169: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 419

2. Quando um tratado estipular que está subordinado aum tratado anterior ou posterior ou que não deve ser con-siderado incompatível com esse outro tratado, as disposi-ções deste último prevalecerão.

3. Quando todas as partes no tratado anterior são igual-mente partes no tratado posterior, sem que o tratado ante-rior tenha cessado de vigorar ou sem que a sua aplicaçãotenha sido suspensa nos termos do artigo 59, o tratadoanterior só se aplica na medida em que as suas disposiçõessejam compatíveis com as do tratado posterior.

4. Quando as partes no tratado posterior não incluem to-das as partes no tratado anterior:

a) nas relações entre os Estados partes nos dois tratados,aplica-se o disposto no parágrafo 3;

b) nas relações entre um Estado parte nos dois tratados eum Estado parte apenas em um desses tratados, o tratadoem que os dois Estados são partes rege os seus direitos eobrigações recíprocos.

5. O parágrafo 4 aplica-se sem prejuízo do artigo 41, oude qualquer questão relativa à extinção ou suspensão daexecução de um tratado nos termos do artigo 60 ou dequalquer questão de responsabilidade que possa surgir paraum Estado da conclusão ou da aplicação de um tratadocujas disposições sejam incompatíveis com suas obrigaçõesem relação a outro Estado nos termos de outro tratado.”

A primeira regra a analisar diz respeito ao 103 da Carta das NaçõesUnidas referido pelo caput do art. 30 da Convenção de Viena de 1969.Este último dispositivo, como se percebe, ao dizer que os direitos e obriga-ções dos Estados partes em tratados sucessivos sobre o mesmo assuntoserão determinados de conformidade com os parágrafos seguintes, faz,antes, uma ressalva ao art. 103 da Carta da ONU cuja regra estabeleceque em caso de conflito entre as obrigações contraídas por qualquerMembro das Nações Unidas em virtude da presente Carta e suas obriga-ções contraídas em virtude de qualquer outro acordo internacional, pre-

Page 170: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

420 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

valecerão as obrigações importas pela referida Carta. Com a formulaçãode tal ressalva, a Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados pas-sou a reconhecer, pois, a superioridade hierárquica da Carta das NaçõesUnidas em relação a outros compromissos internacionais, alçando-a mes-mo à categoria de higher law ou lei suprema.

Ao lado da Carta das nações Unidas, Convenção de Viena de 1969também erigiu as normas de jus cogens a um patamar superior ao dos demaistratados internacionais, estabelecendo no seu art. 53 ser nulo o tratado queconflite que uma norma imperativa de direito internacional geral.30

No mesmo sentido, a lição de HILDEBRANDO ACCIOLY e G. E. DO NASCI-MENTO E SILVA, mas com uma advertência:

O jus cogens e a Carta das Nações Unidas são hierarqui-camente superiores aos demais tratados, mas por motivosdiferentes. É errado considerar todos os artigos da Cartacomo sendo de jus cogens, visto que alguns podem sermodificados pela vontade das partes.31

Assim, salvo os casos de conflito temporal envolvendo tratados inter-nacionais e preceitos da Carta das Nações Unidas, bem como aquelesenvolvendo normas imperativas de direito internacional geral (jus cogens),todos os demais problemas deverão encontrar solução na norma do art. 30da Convenção de Viena de 1969. É bom que se frise, neste ponto, antesde se comentar as regras de aplicação de tratados sucessivos sobre a mes-ma matéria, que tais conflitos só terão existência quando em jogo umtratado multilateral. A rigor não há conflito temporal envolvendo trata-dos bilaterais “mesmo quando os seus dispositivos parecem ser incompatí-veis: trata-se de uma questão de interpretação em que a boa-fé deveprevalecer. A dificuldade aumenta se um tratado bilateral entra em con-flito com outro multilateral, ou no caso de dois tratados multilaterais,onde a complexidade aumenta”.32

30 Para um estudo moderno das normas e os conflitos referentes ao jus cogens na Convenção de 1969, vide, JETE

JANE FIORATI, Jus cogens: as normas imperativas de direito internacional público como modalidade extintiva dostratados internacionais, Dissertação de Mestrado em Direito, Franca: Universidade Estadual Paulista/Faculdade de História, Direito e Serviço Social, 1992.

31 Cf. HILDEBRANDO ACCIOLY e G. E. DO NASCIMENTO E SILVA. Manual de direito internacional público, 13.ª ed. São Paulo:Saraiva, 1998, p. 35.

32 HILDEBRANDO ACCIOLY e G. E. DO NASCIMENTO E SILVA. Idem, p. 35.

Page 171: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 421

Várias regras têm sido utilizadas ao longo do tempo na resolução deconflitos temporais de leis ou mesmo naqueles que envolvam tratadosinternacionais. Assim é que, algumas teses como as da lex posterior de-rogat priori ou da lex specialis derogat legi generali já vêm se mantendo hábastante tempo, influenciando a interpretação relativa ao conflito deleis no tempo. A convenção de Viena de 1969 não se prendeu, percebe-se, de modo muito firme a essas disposições, estabelecendo regras pró-prias para o problema da aplicação de tratados sucessivos sobre a mesmamatéria.

A primeira delas, constante do § 2.º do seu art. 30, diz respeito àvinculação expressa de um tratado internacional a outro anterior ou pos-terior. Segundo este dispositivo, quando um tratado estipular que estásubordinado a outro tratado anterior ou posterior ou que não deve serconsiderado incompatível com esse tratado, as disposições deste últimotratado é que deverão prevalecer.

A regra seguinte, constante do § 3.º, resolve o problema de tratadossucessivos sobre a mesma matéria e com partes idênticas às do compro-misso anterior com a aplicação da regra lex posterior derogat priori. Se-gundo o referido dispositivo, quando todas as partes no tratado anteriorsão igualmente partes no tratado posterior, sem que o tratado anteriortenha cessado de vigorar ou sem que a sua aplicação tenha sido suspen-sa nos termos do art. 59, o tratado anterior só se aplica na medida emque as suas disposições sejam compatíveis com as do tratado posterior.Em caso de incompatibilidade prevalece, então, o tratado posterior.33

Quando as partes no tratado posterior não incluem todas as partes notratado anterior, isso é, quando as partes no tratado anterior não estãotodas no tratado posterior, a regra a ser aplicada será a seguinte: a) nasrelações entre os Estados partes nos dois tratados, aplica-se o disposto noparágrafo 3.º já analisado acima; b) nas relações entre um Estado partenos dois tratados e um Estado parte apenas em um desses tratados, seja noanterior ou no posterior, o tratado em que os dois Estados são partes regeos seus direitos e obrigações recíprocos (§ 4.º).

33 Nas palavras de HILDEBRANDO ACCIOLY e G. E. DO NASCIMENTO E SILVA: “Seja como for, ocorrendo incompatibilidadeentre os textos de dois tratados, a solução não consiste em considerar um deles como nulo, visto queatravés de uma interpretação judiciosa e de boa-fé é possível na maioria dos casos demonstrar que os doistextos podem ser mantidos” (idem, ibidem).

Page 172: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

422 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

CONCLUSÃO

O que se pode concluir, do que acima foi exposto, é que a Convençãode Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, andou bem em positivar aregra pacta sunt servanda, reconhecida mundialmente, bem como a regrada primazia do direito internacional sobre o direito interno dos Estados.

De outra banda, quanto à aplicação dos tratados, a Convenção deViena de 1969 trouxe regras nítidas sobre a irretroatividade dos tratadose aplicação sucessiva dos tratados sobre o mesmo assunto.

Foi a Convenção de 1969, acima de tudo, didática na determinaçãode tais regras e na estipulação da maneira de sua utilização.

REFERÊNCIAS

ACCIOLY, Hildebrando. Tratado de direito internacional público, Tomo II. Rio de Janeiro:Imprensa Nacional, 1934.

NASCIMENTO E SILVA, G. E. & ACCIOLY, Hildebrando. Manual de direito internacionalpúblico, 13.ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998.

ANDRADE, Agenor Pereira de. Manual de direito internacional público, 2.ª ed. São Paulo:Sugestões Literárias, 1980.

ARAÚJO, Luis Ivani de Amorim. Curso de direito internacional público, 9.ª ed. Rio deJaneiro: Forense, 1997.

ARIOSI, Mariângela. Conflitos entre tratados internacionais e leis internas: o judiciáriobrasileiro e a nova ordem internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000.

BASTOS, Carlos Eduardo Caputo. “Hierarquia constitucional dos tratados”. In: Advoga-do: desafios e perspectivas no contexto das relações internacionais, vol. II. Brasília:Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (Comissão de RelaçõesInternacionais), 2000.

BASTOS, Celso Ribeiro & MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil:promulgada em 5 de outubro de 1988, 4.º vol. São Paulo: Saraiva, 1995.

BEVILÁQUA, Clóvis. Direito público internacional: a synthese dos princípios e a contribuiçãodo Brasil, Tomo II, 2.ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1939.

BUERGENTHAL, Thomas, GROS ESPIELL, Héctor, GROSSMAN, Claudio & MAIER, Harold G.

Page 173: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 423

Manual de derecho internacional público. México: Fondo de Cultura Económica,1994.

CALSING, Maria de Assis. O tratado internacional e sua aplicação no Brasil. Dissertação demestrado em Direito. Brasília: Universidade de Brasília, 1984.

CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. A proteção internacional dos direitos humanos:fundamentos jurídicos e instrumentos básicos. São Paulo: Saraiva, 1991.

DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Curso de direito internacional público. Rio de Janeiro:Forense, 2002.

FIORATI, Jete Jane. Jus cogens: as normas imperativas de direito internacional público comomodalidade extintiva dos tratados internacionais. Dissertação de Mestrado em Di-reito. Franca: Universidade Estadual Paulista/Faculdade de História, Direito eServiço Social, 1992.

FRAGA, Mirtô. O conflito entre tratado internacional e norma de direito interno: estudoanalítico da situação do tratado na ordem jurídica brasileira. Rio de Janeiro: Forense,1998.

HOSTERT, Jean. “Droit international et droit interne dans la Convention de Vienne surle Droit des Traités du 23 mai 1969”. In: Annuaire Français de Droit International,n.º XV, pp. 92-121. Paris: Centre National de la Recherche Scientifique, 1969.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito, 6.ª ed. Trad. JOÃO BAPTISTA MACHADO. Coimbra:Armênio Amado Editora, 1984.

MAGALHÃES, José Carlos de. O Supremo Tribunal Federal e o direito internacional: umaanálise crítica. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2000.

MARTINS, Pedro Baptista. Da unidade do direito e da supremacia do direito internacional,atualizada por LUÍS IVANI DE AMORIM ARAÚJO. Rio de Janeiro: Forense, 1998.

MAZZUOLI, Valerio de Oliveira. Direito internacional: tratados e direitos humanos funda-mentais na ordem jurídica brasileira. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2001.

________ . Tratados internacionais: com comentários à Convenção de Viena de 1969. SãoPaulo: Juarez de Oliveira, 2001.

RANGEL, Vicente Marotta. “Integração das convenções de Genebra no direito brasilei-ro”. In: Revista do Instituto de Pesquisas e Estudos Jurídico-Econômico-Sociais, AnoII, n.º 3. Bauru: Instituição Toledo de Ensino, jan./mar. 1967.

REZEK, José Francisco. Direito dos tratados. Rio de Janeiro: Forense, 1984.

________ . Direito internacional público: curso elementar, 6.ª ed. São Paulo: Saraiva,1996.

Page 174: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

424 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

RODAS, João Grandino. Tratados internacionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribu-nais, 1991.

SEITENFUS, Ricardo & VENTURA, Deisy. Introdução ao direito internacional público.Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999.

STEVENSON, João Penteado Erskine. Fundamentos jurídicos dos tratados internacio-nais: ensaio de direito público internacional. São Paulo: [s.n.], 1939.

VIGNALI, Heber Arbuet & ARRIGHI, Jean Michel. “Os vínculos entre o direito internaci-onal público e os sistemas internos”. In: Revista de Informação Legislativa, ano 29,n.º 115, pp. 413-420. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técni-cas, jul./set. 1992.

Page 175: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 425

Do abuso do direito de demandar

The abuse of the right to suit

ROSANNE GAY CUNHA

A autora é Mestra em Direito pela PUCRS e Professora de Direito Processual Civil na ULBRA.

RESUMO

Analisando-se o direito de demandar, a partir da teoria do abuso do direito,procura-se analisar as alternativas processuais para adequação deste direito àproporcionalidade e razoabilidade.Palavras-chave: Direito processual civil, direito de demandar, ampla defesa,tutelas inibitórias.

RESUMO

By analyzing the right to suit in view of the right abuse theory, the author analysesthe procedural alternatives to adjust this right to proportionality and reasonableness.Key words: Civil procedural law, right to suit, right to counsel, preventive judi-cial protection.

INTRODUÇÃO

Ao iniciarmos a pesquisa sobre o abuso do direito de demandar, cons-tatamos que poucos doutrinadores pátrios se preocuparam com a matéria.Além disso, as obras existentes remontam à época do anterior Código deProcesso Civil (CPC), de 1939, que fazia menção expressa aos atos prati-cados com má-fé processual. Vale salientar que o acervo existente é de

Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.425-436

Page 176: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

426 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

comentários, especialmente ao art. 3º, do CPC da época, e destacar aspoucas obras específicas, mas de conteúdo altamente qualificado, que setornaram ponto de partida e referência do presente estudo.

Não obstante esse quadro de escassez, a processualística contemporâ-nea tem se debruçado, cada vez mais, sobre o tema desafiador da atuali-dade, a efetividade dos direitos. Com essa nova (ou velha?) demanda,surge a necessidade de se repensar o paradigma processual. Isto deve serfeito notadamente sobre a resposta que o sistema processual civil brasilei-ro confere àquele que se utiliza do processo, com má-fé, agindo contra aJurisdição e contra a administração da Justiça, antes de fazê-lo somentecontra os interesses da parte contrária.

Finda a vigência do CPC de 1939, com a superveniência do CPC de1973, que alterou a matéria, a promulgação de uma nova ConstituiçãoFederal (CF), a de 1988, informando expressamente princípios definido-res da finalidade social do processo, bem como as constantes reformasque o sistema processual civil vem sofrendo, na atualidade, são fatos queoperaram alterações acerca da matéria. Não obstante tais alterações, osprocessualistas nacionais não outorgaram à matéria a importância dis-pensada pelos doutrinadores do início do século passado. Pretende-se,assim, abordar o tema sob um novo ângulo, na esfera constitucional, demodo a saber se o disposto no Código de Processo Civil está em conformi-dade com a Constituição, não só com os princípios específicos aplicáveis àmatéria, mas também com as normas programáticas por ela estabelecidas.

A grande questão que merece análise em relação ao direito de de-mandar (direitos de ação e de defesa), que é garantia constitucional, é seseria possível limitá-lo, em nome de uma teoria do abuso do direito e daefetividade da prestação jurisdicional, sem comprometer a segurança ju-rídica, igualmente garantida pela Constituição?

O DIREITO DE DEMANDAR E A CONSTITUIÇÃO

O princípio da dignidade da pessoa humana é o princípio fundamen-tal situado no topo do ordenamento jurídico. É ele o núcleo essencial dosistema de direitos fundamentais e o “fio condutor” que confere sentido aesse sistema.

Page 177: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 427

A Justiça, por sua vez, é o ideal perseguido pelas pessoas, e seu alcan-ce diz respeito imediato à dignidade da pessoa humana. O preâmbulo daConstituição Federal brasileira trata de apontar esse valor, porquanto nãose concebe um ordenamento jurídico que não tenha como norte a Justi-ça, assim como não se concebe dignidade sem Justiça.

A Justiça, no entanto, somente atingirá o seu escopo com uma tutelajudicial efetiva. Essa tutela deverá ser digna, isto é, deverá alcançar aosjurisdicionados não apenas o acesso aos tribunais, mas também o acesso auma ordem jurídica justa, adequada e tempestiva. Somente dessa formaa Justiça poderá ser realizada atendendo às diretrizes do princípio da dig-nidade da pessoa humana.

Não resta dúvida de que, face à proibição da autotutela, e ao monopó-lio estatal da jurisdição, surge para os cidadãos um autêntico direito sub-jetivo a que o poder público se organize para garantir os imperativos dejustiça, já que às pessoas é proibido satisfazer, por seus próprios meios, osdireitos e interesses que constituem seu patrimônio jurídico.

O direito de acesso à Justiça somente pode ser limitado, sem maioresprejuízos, em razão de outro direito ou outra liberdade, constitucional-mente protegidos. As limitações devem ser baseadas em uma causa legal,que não seja contrária ao conteúdo essencial do direito de acesso à Justi-ça e que seja interpretada e aplicada da maneira mais favorável para aefetividade do direito.

A aplicação do princípio da proporcionalidade surge como técnica derelativização dos direitos em conflito, pois a tutela de um encontra limitena tutela do outro.

A doutrina brasileira tem imprimido especial atenção ao problema so-cial do Direito. Isto tem gerado preocupação ética com a atuação dosindivíduos, pensando-se em uma ‘responsabilidade social’, quer dizer, quea conduta dos sujeitos para com o Direito deve atender à finalidade soci-al. Essa tendência ampliou o espectro da boa-fé no Direito.

O CPC de 1973 prevê, expressamente, o princípio da boa-fé objetiva(art. 14, II). O enunciado de que as partes e seus procuradores devemproceder com boa-fé se manifesta como cláusula geral, representando gra-maticalmente o princípio normativo da boa-fé objetiva.

Já que as partes têm o dever de litigar honestamente, então os direitos

Page 178: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

428 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

de ação e de defesa estão protegidos pelo ordenamento jurídico pátrio, se,e somente se, estiverem sendo exercidos com lealdade e boa-fé. Esse é olimite que, segundo entendemos, é dado pelo ordenamento jurídico para oexercício desses direitos, numa interpretação sistemática. Não se retira odireito de pleitear em juízo, ou de se defender em uma demanda, masapenas se estabelece que tais direitos serão tutelados, ou estarão protegi-dos, somente enquanto exercidos de boa-fé. Se a parte litiga de má-fé, asua garantia deixa de estar abrigada pelo ordenamento jurídico e passa asofrer sanção pelo ato abusivo gerado e pelo dano processual causado.

A limitação está, pois, no resguardo do núcleo essencial. Caso ocorra,pelas relações que os indivíduos mantêm entre si e com a coletividade, umconflito positivo de normas constitucionais, a ensejar a necessidade de res-trição ao direito, a solução será a ponderação. O critério orientador derestrição das normas é o princípio da proporcionalidade. Surge como formade relativizar tais direitos, em nome de princípios fundamentais, como o daJustiça e da dignidade da pessoa, hierarquizando os valores em jogo. Aintenção é atingir o objetivo maior, que é o da coexistência destas normasno sistema jurídico. A tutela de um encontra limite na tutela do outro.

A proporcionalidade, como técnica de controle do excesso, traduz umarelação adequada entre fim e meio, de modo que serve para evitar abusoe auxilia na interpretação para a solução das antinomias. Verifica, afinal,a compatibilidade entre os atos e a norma hierárquica superior.

A TEORIA DO ABUSO DO DIREITO

A noção de relatividade dos direitos subjetivos somente teve espaçocom a Revolução industrial. Antes dela, a doutrina jurídica tinha umaconcepção individualista que se instalou com o liberalismo burguês doséculo XIX. Por esta concepção individualista, pensava-se que os direitossubjetivos eram absolutos, de modo que teriam como limite apenas o quefosse expressamente estabelecido ou estivesse implícito nos poderes cor-respondentes. Nesse contexto, não tardou a surgirem teorias demarcandoo uso normal do direito subjetivo, como a Teoria do Abuso do Direito.Desde então os direitos subjetivos têm sido concebidos como relativos,isto é, o seu exercício não se limita apenas pelo interesse de seu titular,mas, sim, pela finalidade do próprio direito.

Page 179: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 429

Uma concepção contemporânea, entretanto, permite-nos afirmar queo sujeito que abusa do exercício de seu direito, isto é, que abusa do direi-to de ação ou de reação que lhe é conferido, só aparentemente exerceesse direito. Isso porque, ultrapassando o limite do exercício razoável, oque há é violação do seu fundamento, do seu sentido. Com efeito, o direi-to subjetivo, em uma interpretação sistemática do instituto, não pode serconcebido, ao fim e ao cabo, como pura categoria formal e abstrata emtermos absolutos, limitado apenas por sua estrutura formal. A qualidadedo comportamento do sujeito que exerce esse direito subjetivo não pres-cinde de uma análise de seu conteúdo material, de seu fundamento axi-ológico, porque, segundo sustenta Fernando Augusto da Cunha de SÁ(1997, p. 456), “... forma ou estrutura e valor constituem e integram umaúnica intenção normativa”. Uma correta compreensão do direito subjetivodeve conter uma concretização material, uma humanização da forma. Aadmissibilidade de uma teoria do abuso do direito, portanto, é imanenteao próprio direito subjetivo.

Se a norma é a expressão da vontade da comunidade jurídica, umimperativo, e se o correspondente do imperativo é o dever, abuso do direi-to é, então, o uso de um direito subjetivo que transcende seus limitesimanentes, isto é, o exercício além das fronteiras estruturais e materiaisque são traçadas para esse direito.

Se esse exercício abusivo, entretanto, causar dano a outrem, por atu-ação dolosa ou culposa, havendo um nexo de causalidade entre o dano eo ato abusivo, advirá o dever de reparação. É que o exercício de umdireito, por si só, não acarreta responsabilidade, enquanto não causardano a outrem. Somente na hipótese de dano é que poderemos falar emdever de reparação. O abuso do direito não existe exclusivamente quan-do ocasiona danos. É por isso, aliás, que a aceitação do abuso inicialmen-te foi ligada à admissão de uma responsabilidade civil objetiva ou pelorisco, como uma manifestação dessa teoria do risco. O dano é conseqüên-cia do ato abusivo, mas não sua essência.

O abuso do direito é algo maior do que a admissão de uma responsabi-lidade. Transcende ao problema da responsabilidade civil. Saber se umato é, ou não, abusivo tem importância para efeito de saber se a tutelajurisdicional que o repulsa é, ou não, eficaz em seu intento.

Page 180: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

430 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

A TUTELA JURISDICIONAL CONTRA O ABUSODO DIREITO DE DEMANDAR

A defesa privada teve de ser abolida em prol de uma convivênciasocial harmoniosa. A exigência de submissão das pessoas ao Estado, paraque este examine a sua pretensão, fez surgir uma segunda relação, quetem como sujeitos não só os titulares da relação jurídica de direito mate-rial, mas agora, também, o Estado-juiz.

Ocorre que a relação jurídica de direito processual não gera direitos eobrigações recíprocas para as partes, de modo que um possa cobrar do outrouma prestação positiva ou negativa. O que há é um dever das partes paracom o Estado, um ‘atuar com probidade’ que é devido ao Estado. Essa idéiarestou consolidada, inclusive, nas reformas que vêm sendo levadas a efeitono Código de Processo Civil pátrio. A afirmação de que o dever de probida-de das partes se dá para com o Estado não significa excluir o dever que tema parte de indenizar a outra, em caso de dano processual. As partes subme-tem-se à autoridade do magistrado que tem o poder-dever da prestaçãojurisdicional. Os direitos das partes, portanto, são exercidos perante o Esta-do-juiz, e o seu exercício abusivo se dá contra a própria jurisdição.

Por essa razão, é equivocada a idéia de que a reversão da multa pelalitigância de má-fé (art. 18 do CPC) deve se dar em favor da parte adver-sária, bem como a multa pela prática de ato atentatório à dignidade daJustiça (art. 601, CPC). O correto é que a multa seja paga ao Estado,porquanto o abuso é exercido contra a própria jurisdição. Em favor daparte ex adversa, deve reverter apenas a indenização pelo dano eventual-mente sofrido com a conduta abusiva. Isto se verifica porque a indeniza-ção a todo aquele que sofrer um dano é inerente ao sistema, por força denorma de natureza material.

Há outro fator que demonstra que o abuso do exercício de demandaré exercido contra a jurisdição, ou seja, contra o Estado. Trata-se do fatode o juiz poder condenar o litigante de má-fé, ex officio1 . Se a matéria nãofosse de interesse público, somente por provocação da parte é que a con-duta poderia ser reprimida, já que ao juiz não é dado tornar a demanda

1 O CPC originalmente não permitia a condenação de ofício do litigante de má-fé. Foi com a Lei n.º 8.952, de13-12-1994, que a alteração foi introduzida. Antes tal possibilidade era rechaçada, apenas porque, segun-do a doutrina, e em especial conforme Pontes de MIRANDA (2001, p. 381), “... não se pode pensar em decisãode ofício se não há regra jurídica a respeito”.

Page 181: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 431

mais litigiosa do que lhe é apresentada. Quer dizer, o juiz deve julgar combase nos limites impostos pelas partes.

Outra questão que se impõe é saber se a disciplina dispensada peloCódigo de Processo Civil ao exercício abusivo do direito de demandar éadequada às necessidades da sociedade contemporânea.

A vedação da autotutela faz nascer para o Estado o poder-dever-fun-ção de prestação da jurisdição. Já que o cidadão não pode, salvo casosexcepcionalmente previstos, fazer Justiça pelas próprias mãos, devendorecorrer ao Judiciário para atingir tal escopo, fica o Estado obrigado àprestação jurisdicional.

Para Luiz Guilherme MARINONI (1998, p. 400), “A tutela jurisdicionalé aquela que, no plano do processo, tem o compromisso de realizar plenamentea tutela que decorre do direito material, ou seja, a própria tutela material”.Vê-se, pois, que não é qualquer prestação jurisdicional que cumpre opostulado do acesso à Justiça, mas sim a atividade jurisdicional digna.

A construção de um procedimento eficaz, que atenda às necessidadesdo direito material, enseja uma reflexão sobre a modalidade de cogniçãoadequada à situação material. Nem sempre o direito material, para sersatisfeito, necessita da cognição exauriente e plena. Há casos em que umconhecimento sumário é suficiente para a satisfação do direito material.

Não condiz com a necessária adequação da tutela jurisdicional, por-tanto, impor, àquele que pede a tutela, um procedimento plenário e com-pleto, quando uma análise sumária já o satisfaz. Igualmente, não se podeforçar uma cognição fundada na aparência, quando o que se pede emjuízo é uma declaração com base em prova exauriente.

É Ovídio Araújo Baptista da Silva (1997), entretanto, que alerta so-bre a necessidade de se aglutinar cognição e execução em um mesmoprocesso, como forma de tornar o processo civil mais efetivo na tutela dosdireitos. E isso somente será possível se repensarmos o conceito de jurisdi-ção, a fim de nele incluir também os efeitos executivo e mandamental.

Essa ligação que a doutrina da primeira metade do século passado fazentre o ato abusivo e dano leva inexoravelmente ao reconhecimento deque, como todo dano deve ser ressarcido, a tutela que se deve alcançarpara as hipóteses de ato ilícito ou abusivo é a tutela ressarcitória.

Page 182: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

432 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

A idéia de que a única tutela contra o ato abusivo é a ressarcitóriatambém tem origem no liberalismo. Luiz Guilherme MARINONI (2001,p. 13), com muita propriedade, salienta: “... o direito liberal não se preocu-pava com as diferenças entre os bens e as pessoas. Se as pessoas são iguais -independentemente das suas diferenças concretas – e se os bens não merecemtratamento diversificado, basta o ressarcimento em pecúnia, inexistindo razãopara a tutela específica”.

O princípio da neutralidade do juiz, que exige o respeito e a aplicaçãomecânica da previsão legal – de que vimos falando ao longo do presentetrabalho –, é o que faz com que não se proteja nenhuma posição social emespecial, mas apenas se mantenha o funcionamento do mercado. Dessaforma, garante-se o statu quo através de um Estado neutro, desinteressa-do e ausente, conforme lembra Ovídio Araújo Baptista da SILVA (1997,p. 203). Por isso, consolida-se a idéia de que a tutela reparatória é a únicatutela possível contra o ato ilícito.

Em face das novas situações carentes de tutela, surgidas na sociedadedemocrática e pluralista do final do século passado, é necessário fazer adistinção entre ilícito e dano. Com isso, fica autorizada a elaboração detutelas diferenciadas, visando a impedir o ilícito, ou a removê-lo, ao invésde apenas ressarcir o dano porventura ocorrido pela sua prática.

Não é demais lembrar que o direito de demandar, temática de nossoestudo, inclui-se no rol dos chamados direitos não-patrimoniais, cujo va-lor não pode ser precisado em pecúnia, a demonstrar que a tutela ressar-citória em pecúnia é inadequada à espécie.

Da mesma forma, diz-se que a classificação trinária não é adequada àefetividade da tutela do ato ilícito ou abusivo em particular, e dos direitosnão-patrimoniais em geral. A necessidade, portanto, de uma outra classifi-cação de sentenças tem interesse prático. Precisamos encontrar uma formade tutela jurisdicional que preste, efetivamente, satisfatividade final e de-finitiva a direitos não-patrimoniais, eliminando a exigência irracional de olitigante conformar-se com a tutela condenatória, e, depois, vitorioso, per-correr o árduo caminho do procedimento executivo autônomo.

Com efeito, através da sentença executiva lato sensu, o juiz poderá deter-minar medidas de execução na própria sentença, sem enviar o jurisdicionadopara a ação de execução. Essa espécie de sentença pode agir com eficácia natutela para a remoção do ilícito (tutela reintegratória). De outro lado, tam-

Page 183: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 433

bém é de suma importância a sentença mandamental, porquanto ligada di-retamente à multa, que é medida coercitiva eficaz na tutela dos direitos.

Tema que tem adquirido relevância em doutrina, na atualidade, é a“tutela inibitória”, espécie de tutela específica que visa a prevenir o ilíci-to e o abuso e que, por isso mesmo, está voltada para o futuro, e não parao passado. Projeta-se para a frente, com nítida função preventiva, massempre tendo em vista o plano de direito material.

Segundo a doutrina, a tutela inibitória visa a prevenir não só a práticado ilícito, mas a sua continuidade ou repetição, razão pela qual não étutela contra o dano, mas, sim, contra o próprio ilícito, independente-mente de já ter ocorrido o dano, ou não. O dano é mera conseqüênciaeventual do ilícito, que poderá ensejar o ressarcimento.

Desta forma, o dano não diz respeito ao ilícito, restando claro que atutela ressarcitória não é a única tutela contra o ilícito, mas que tambémé possível uma tutela puramente preventiva.

O dolo e a culpa não caracterizam a tutela inibitória. Conforme LuizGuilherme MARINONI (1998, p. 39), “A tutela inibitória não pune quempode praticar o ilícito, mas apenas impede que o ilícito seja praticado”. Porisso, tanto o dano, quanto o dolo ou a culpa são irrelevantes para a de-manda preventiva.

Uma das formas de realização da tutela inibitória é através da comina-ção de multa, para o caso do descumprimento de uma determinada nor-ma de conduta.

É da Constituição Federal do Brasil que se extrai essa forma de tutela,sendo desnecessária qualquer previsão infraconstitucional. Com efeito, oart. 5º, inc. XXXV, da CF, expressa que “A lei não excluirá da apreciação doPoder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (grifou-se), correspondendo,pois, à necessidade da prestação de uma tutela efetiva, corolário do prin-cípio do acesso à Justiça.

Está comprovado com a prática judiciária, especialmente se voltarmosos olhos para a experiência do Direito Francês, que a multa (astreinte) éum mecanismo de coerção patrimonial que induz o sujeito ao cumpri-mento de sua obrigação. A astreinte é, pois, no dizer de Marcelo LimaGUERRA (1998, p. 108), “... uma medida coercitiva de caráter patrimonial,consistente numa condenação em uma quantia determinada por cada dia (ou

Page 184: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

434 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

outra unidade de tempo) de atraso do devedor em cumprir a obrigação consa-grada no título executivo, ou por cada violação do que, aí, lhe é imposto”.(Grifos do autor).

Para a tutela inibitória, a importância desse meio de induzir o sujeito acumprir uma obrigação que lhe é imposta, e não a simplesmente reparareventuais prejuízos resultantes do inadimplemento, é justamente o seucaráter coercitivo, totalmente independente da indenização dos prejuí-zos. Esta tanto pode ser concedida na ausência destes, como poderá cu-mular-se com eles. Isso demonstra exatamente a sua função inibidora doilícito, e ocasionalmente do próprio dano, tendo, no entanto, apenas oilícito como objeto de sua atuação.

Outra discussão atual é a aplicação dos meios coercitivos de repressãoao Contempt of court que, segundo Marcelo Lima GUERRA (1998, p. 72),significa “... desprezo à corte, ou ainda, desacato ao tribunal, conduta queconstitui ofensa punível de diversas maneiras”. Na verdade, contempt of courté uma ação ou omissão que despreza a autoridade do Judiciário ou preju-dica as partes litigantes, criando obstáculos para o funcionamento do tri-bunal.

No Brasil, o parágrafo 5º do art. 461 do CPC autoriza o juiz a adotarmedidas coercitivas inominadas que julgar adequadas, para garantir aprestação efetiva de tutela. Estas bem podem ser as medidas utilizadas emcaso de contempt of court.

Das medidas antes mencionadas, a divergência ocorre em relação àpossibilidade da prisão como medida coercitiva. Já no CPC de 1939, adoutrina defendia a possibilidade de prisão civil, por inadimplemento deobrigação pecuniária. Pontes de MIRANDA (2001, p. 253) alerta no sen-tido de que o texto constitucional, então vigente, não vedava essa possi-bilidade.

A prisão civil, como medida coercitiva, também não encontra óbice naConstituição da República atual. Esta proíbe apenas a prisão por dívida, enão a prisão por descumprimento de ordem judicial. Está fora da vedação,portanto, a prisão para garantir a efetividade da tutela jurisdicional. OPleno do STF recentemente (07-02-2002), ao apreciar o HC nº 81319,reiterou o entendimento de que o depositário infiel será preso por não pa-gamento de dívida ou quando vende o bem que deu em garantia ao credor.

Entendemos, no entanto, que a prisão somente poderá ser utilizada como

Page 185: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 435

medida coercitiva, se houver expressa previsão legal para tanto (lege feren-da). Não se pode inferir que o art. 461 do CPC autoriza a sua utilização, porser regra infraconstitucional em confronto com princípios constitucionais.

O sistema pátrio possibilita, através do art. 461, § 5º, do CPC, as me-didas coercitivas típicas, como de multa diária, busca e apreensão, remo-ção de pessoas e coisas, desfazimento de obras, impedimento de atividadenociva, requisição de força policial, etc. Além disso, refere-se a qualqueroutra medida que julgar adequada para garantir a efetividade da tutela.O rol elencado no artigo é, pois, exemplificativo2 .

A adoção de uma medida coercitiva, entretanto, sempre que esta conflitecom o direito de liberdade da pessoa, deverá ter a sua necessidade e adequa-ção submetida a uma análise, conforme o princípio da proporcionalidade.

A implementação da tutela inibitória atuaria como forma de limitaçãodo direito de demandar, e não como proibição de demandar, como podeparecer à primeira vista.

A Constituição Federal tem como “fio condutor” o princípio da digni-dade da pessoa humana e garante o direito à tutela judicial efetiva, quandohouver “... lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, XXV), de modo a evitar aviolação do direito.

O art. 461 do CPC e o art. 84 da Lei nº 8.078/90 – Código de Defesado Consumidor –, no dizer de Luiz Guilherme MARINONI (1998, p.257) “... uma vez lidos à luz da teoria da tutela inibitória, abrem oportunidadepara procedimentos capazes de tutelar de forma adequada e efetiva os direitos,notadamente os de conteúdo não patrimonial”.

É preciso, pois, uma mudança de paradigma, isto é, que se alcance aosjurisdicionados uma tutela preventiva, no caso de abuso do direito dedemandar, a fim de evitar a sua ocorrência, a sua continuação ou reitera-ção. Não há como agir contra esta espécie de abuso de forma apenasreparatória, em virtude de sua natureza não-patrimonial.

2 Entendimento também expressado por Luiz Guilherme MARINONI (2001, p. 48): “As chamadas ‘medidasnecessárias’, previstas nos parágrafos (...) são meramente exemplificativas, sendo possível ao juiz determinar outras,desde que adequadas em face dos princípios da efetividade e da necessidade, para a tutela do direito afirmado”.

Page 186: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

436 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

CONCLUSÃO

O direito de demandar, como corolário do direito de acesso a umaordem jurídica digna, não pode ser exercido de forma absoluta, mas deveser limitado a um exercício proporcional e razoável, em conformidadecom a Constituição.

Os litigantes devem pautar suas condutas, portanto, pela probidade,lealdade e boa-fé objetiva. O exercício do direito de demandar que violeessa finalidade do processo é um ato abusivo, porquanto, embora possapreencher a forma (estrutura) do direito, há uma violação ao seu funda-mento axiológico. Desse modo, mesmo que haja a aparência de exercícioregular do direito, há um desvirtuamento da intenção normativa, levadaa efeito pela violação do valor que fundamenta o direito em tela.

Não obstante a natureza não-patrimonial do direito de demandar, osistema processual civil brasileiro alcança aos jurisdicionados uma tutelaapenas ressarcitória, para o caso de seu exercício abusivo.

E se o direito de demandar não pode ser aferido pecuniariamente,uma tutela ressarcitória não atua com efetividade para reprimir o seuexercício abusivo. É necessário, pois, uma mudança de paradigma. É pre-ciso que se alcance aos jurisdicionados uma tutela preventiva, chamadainibitória, também prevista pelo ordenamento jurídico (art. 5º, XXXV, daConstituição Federal de 1988 e art. 461 do Código de Processo Civil bra-sileiro). Essa espécie de tutela atua para evitar o abuso, impedir que estecontinue, ou, ainda, para impedir que ele torne a ocorrer.

REFERÊNCIAS

GUERRA, Marcelo L. Execução Indireta. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998.

MARINONI, L. Guilherme. Tutela Inibitória (individual e coletiva). São Paulo: Revistados Tribunais, 1998.

_______________. Tutela Específica. 2ª ed., São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.

MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I (Arts. 1º a 45).5a ed., São Paulo: Forense, 2001.

SÁ, Fernando A. C. de. Abuso do Direito. Coimbra: Almedina, 1997.

SILVA, Ovídio A. B. da. Jurisdição e Execução na tradição romano-canônica. 2ª ed., SãoPaulo: Revista dos Tribunais, 1997.

Page 187: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 437Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.437-458

Valores eticos en la actividadperiodística

Ethical values in journalistic activity

XABIER ETXEBERRIA

Professor de Ética e Derechos Humanos na Universidad de Deusto (Bilbao-España)Diretor do Aula de Etica e Membro do Instituto de Derechos Humanos da mesma Universidade. Membro do

Steering Committee da Red Europea de Etica (com sede na Universidade de Lovaina) e Presidente do Comité deÉtica de hospitais en Bilbao. Forma parte do projeto «El diálogo intercultural sobre la democracia y los derechos

humanos”, dentro do projeto “Europa Múndi”, da UNESCO.Autor de “Derechos humanos y cristianismo”, “Etica de la diferencia”, “Perspectiva de la tolerancia”, todos publicados

pela Universidade de Deusto.

RESUMO

O autor analisa os valores éticos envolvidos na atividade jornalística, discutindoa questão da informação, da verdade, da imparcialidade e da própria propa-ganda veiculada.Palavras chave: Jornalismo, limites do direito de informação e publicidade,informação.

ABSTRACT

The author analyses the ethical values involved in journalistic activity, discussingthe matters of information, truth, impartiality and the very advertisement puton the media.Key words: Journalism, information and publicity right limitation, information.

Palestra realizada em Santa Cruz (Bolivia), em outrubro de 2001, no Foro Internacional «Ética y Comunicación»e, até o presente momento, nunca publicada. Agradecemos a gentil oferta do professor para inclusão nestapublicação.

Page 188: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

438 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

I

“Valor” es una categoría que, de manera firme, entra en la éticatardía y polémicamente, por su notable ambigüedad. En principio, con-sideramos valioso aquello que satisface nuestras necesidades y dese-os1 . Lo que vale es así algo atractivo que tratamos de alcanzar, poseer,utilizar –según los casos-, para que esa satisfacción se realice. El valores, de ese modo, medio para ciertos fines, dándose en él una complejasíntesis entre lo subjetivo (algo es valioso porque lo valoramos) y loobjetivo (lo valoramos porque es valioso para ciertas necesidades ofines). Pero pronto nos damos cuenta de que nosotros podemos poseercosas valiosas para otros, tanto más valiosas cuanto más las desean: loposeído tiene entonces un valor especial, el valor mercantil, pues pue-de ser convertido en mercancía que cabe intercambiar y vender. Estalógica hace aparecer al dinero, como instrumento de medición que“todo lo iguala” (Aristóteles), y que se convierte de esa manera envalor generalista. Pues bien, el término “valor” va a entrar en el cam-po moral precedido de su uso en el campo económico, y ésta va a ser laprimera fuente de ambigüedad2 . Valor es aquí lo que se ambiciona yporque se ambiciona, lo que puede además acumularse, medirse, com-prarse (piénsese en los “valores bursátiles”). Algo que, intuitivamen-te, no parece armonizarse muy bien con la ética.

Si he hecho esta introducción aparentemente extraña al tema quenos ocupa es porque no podemos ignorar que esta aproximación económi-ca a los valores está íntimamente relacionada con los medios de comuni-cación. Éstos aparecen como medios de comunicación “de masas” preci-

1 Tanto en vistas a precisar y jerarquizar los valores como en vistas a concretar aquellos bienes que deben serdistribuidos a todos en justicia, es conveniente, aunque no fácil, distinguir entre necesidades básicasobjetivas (limitadas) y deseos subjetivos potencialmente ilimitados. No entro aquí en esta cuestiónporque, aunque importante, me llevaría por derroteros que me distanciarían del objetivo de estas líneas.Sí quiero, con todo, hacer una observación que se entenderá mejor tras la lectura de este escrito: lainformación que ofrecen los medios de comunicación puede considerarse vía para la realización de lanecesidad/bien básico de la participación ciudadana, aunque cabe enmarcarla en tales dinámicas desensacionalismo y remisión a cuestiones de la privacidad (prensa del “corazón”, escándalos, crímenes...)que acaba sirviendo a los deseos insaciables.

2 La segunda va a ser su fácil deriva hacia el subjetivismo relativista y el positivismo: será valor todo lo que lagente considere valioso y por el mero hecho de que lo considera valioso; deriva, por cierto, que no deja detener conexión con el enfoque económico-mercantil de los valores.

3 Esto es algo evidente en las agencias de prensa. Cuando Louis Havas crea en 1834 la primera de ellas, es porquedescubre que la información es una mercancía que se puede vender bien, que tiene valor de mercado.

Page 189: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 439

samente con la confluencia de la reivindicación de la libertad de expre-sión y opinión (política, en especial) que buscan expandirse entre losciudadanos, de la reivindicación de la libertad de empresa orientada allucro, que encuentra una mercancía nueva –la noticia- que es apreciadacomo valor que se puede vender3 , y de los avances técnicos que van ahacer posible la difusión generalizada de esa nueva mercancía. Es decir,confluye algo que remite a un valor moral -la libertad-, con algo que semuestra valor económico -la noticia como mercancía-, con algo que apa-rece como valor estrictamente instrumental: unas nuevas tecnologías, deprensa primero y audiovisuales después, que, por cierto, acabarán mos-trándose no tan neutras, pues, ante la televisión especial, parece poderdecirse, haciendo eco a McLuhan, que “la tecnología es el mensaje” eincluso “el masaje”.

El que los medios de comunicación tengan una conexión interna, ya des-de su nacimiento, con el valor mercantil, va a tener serias consecuencias:

- sólo será factible y viable en ellos lo que tenga ese valor, lo quese pueda vender porque apetece consumir;

- para ampliar las ventas (abaratándolas) y los ingresos, aparece-rá, junto a la venta directa del producto a los receptores, otromodo de venta indirecta –de espacios en el producto-: lapublicidad, que a su modo entra en la información;

- es el mercado, en forma de ventas, cuotas de audiencia ycaptación de publicidad, el que decide si la oferta es mercancíavaliosa;

- acomodar la mercancía a una potencial demanda masiva va asuponer: 1) derivar de la relevancia inicial de medios de opinióna la relevancia de medios de información; 2) presentar lo másobjetiva e imparcialmente posible las informaciones; 3) ofrecera la vez entretenimiento; 4) tratar que la información –noticiasy opinión- sea también entretenimiento (sensacionalismo,espectacularización);

- la información como mercancía es sólo valiosa en la medida enque no la poseen los demás: hay que conseguirla los primeros(velocidad, competencia firme o monopolio), sabiendo que sedevalúa en cuanto se difunde (fugacidad).

Page 190: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

440 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

La escueta enumeración de estas consecuencias pone ya de relieve laambigüedad de las mismas, la peligrosidad incluso de muchas de ellas,desde el enfoque moral. Por eso, desde este enfoque cabe plantearse unapropuesta radical: ¿por qué no renunciar a la información como mercan-cía en manos de las empresas privadas y convertirla en servicio públicoque se ofrece a todos, igualitariamente, desde el Estado? Al margen deque incluso en ese caso la información conserva algunas de las caracte-rísticas ambiguas de valor mercantil, hay que tener muy presente que laexperiencia muestra que el remedio puede ser peor que la enfermedad,por los recortes que supone para la libertad de iniciativa y por las manipu-laciones y derivas totalitarias que tienden a aparecer incluso en los Esta-dos democráticos (información como servicio al poder político, más queservicio al público). Esto no quiere decir que el Estado deba desenten-derse de los media y limitarse a garantizar “en negativo” la libertad deprensa. Deberá tomar medidas protectoras en “positivo” –se hablará lue-go de ello-, e incluso serán posibles ciertas iniciativas directas, pero sinque pretenda ser la alternativa. Desechada esta propuesta radical, el acer-camiento ético al hecho de que la información se muestra como valormercantil debe, pues, recorrer otras vías.

En primer lugar, hay que comenzar reconociendo que “valor” no esuna categoría estrictamente moral –como lo es por ejemplo “virtud”-, porlo que, para que tenga condición de tal habrá que trabajarla específica-mente. En los media en concreto, habrá que reconocer que se da un valormercantil que hay que reacomodar moralmente, sabiendo que, de todosmodos, marcará determinadas limitaciones internas a esta pretensión,algunas de las cuales se mencionarán luego.

En segundo lugar, avanzando ya en esa reacomodación, hay que des-tacar críticamente el hecho de que el valor mercantil tiende a resaltar losubjetivo en detrimento de lo objetivo: algo –la información, el entrete-nimiento- es valioso porque es valorado, con lo que se cae en el relativis-mo que empuja a ofrecer lo que los receptores piden –o a inducir a quepidan lo que se puede ofrecer-. Frente a ello, como exigencia ética, y sinolvidar la dimensión subjetiva, hay que plantear la relevancia del poloobjetivo de los valores. En este caso, ofrecer aquella información o diver-sión que no sólo es valorada sino que es valorable por el servicio quepresta a la plenitud humana y a la convivencia. Es entonces cuando lainformación y diversión –incluso con su valor mercantil- es un instru-mento al servicio de valores morales (como, por ejemplo, la justicia), se

Page 191: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 441

realiza a su vez adecuadamente gracias a que se remite a valores morales(como la autonomía), se “contamina” ella misma de moralidad.

En tercer lugar, para avanzar hacia la reasunción ética de las ambi-guas consecuencias que según indiqué se derivan de la consideración dela información como valor mercantil, puede sernos útil un planteamientode Max Scheler en torno a los valores. Para este autor no hay valorespropiamente morales: el “valor moral” está en la intención con que se tratade realizar los valores extramorales y en la adecuada preferencia de losmismos cuando entran en confrontación. Aquí estoy defendiendo implí-citamente que sí cabe hablar de valores con contenido explícitamentemoral, pero la sugerencia de Scheler sigue siendo importante: la valoraci-ón moral, confrontada a las ambiguas consecuencias de que hablamos, serealiza cuando: jerarquiza, discierne y replantea en nuevos contextos loimplicado en esas consecuencias.

- Hay, pues, que jerarquizar. El valor mercantil de la informacióndebe estar subordinado a valores superiores que resaltaremos enseguida, lo que supone, como mínimo, que sólo es aceptablecuando se realiza de tal modo que no ignora, ni obstaculiza, nideforma, ni intrumentaliza esos valores superiores, y, comosituación ideal, cuando se realiza de tal modo que los potencia.

- Hay que ejercer un trabajo de discernimiento que se transmitea los receptores en forma de adecuadas distinciones (en algunoscasos en forma de separaciones claras, en otros en forma de re-laciones e implicaciones dilucidadas): entre información denoticias y de publicidad, entre noticia y opinión, entreinformación y entretenimiento, entre interés público e interésde los consumidores. Este discernimiento es decisivo para evitarmanipulaciones, para generar niveles entre los que hay que haceruna segunda jerarquización (por ejemplo, la noticia no puedeestar al servicio del entretenimiento), y, de nuevo, para servir alos valores superiores.

- Hay que replantear en nuevos contextos. Por ejemplo, y especi-almente, la objetividad e imparcialidad de que se hablaba. Pa-rece que frente a la inicial prensa de opinión militante, destina-da por su naturaleza a una franja limitada de lectores, se optópor la noticia objetiva e imparcial –y por las opiniones plurales-como estrategia con la que potencialmente se puede llegar a

Page 192: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

442 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

todos. Pues bien, desde la sensibilidad moral se descubrirá queobjetividad e imparcialidad, como condiciones de posibilidadde la verdad y la veracidad, son dimensiones decisivas de unenfoque moral de la información, por lo que hay que cultivarlasen cuanto tales. Se retoma aquí la otra sugerencia de Schelerde que no sólo hay que preferir adecuadamente, sino que hayque preferir con adecuada intención: en este caso la de servir ala verdad, que debe prevalecer sobre la de servir al lucro. Estenuevo enfoque garantizará la objetividad más allá de su utilidadmercantil.

En lo que sigue voy a desarrollar todas estas reasunciones morales delvalor mercantil de la información que he ido apuntando. Antes, con todo,una observación. En los actuales media confluyen mensajes de diversotipo: información y opinión sobre la actualidad, entretenimiento, conoci-miento, publicidad... Aquí voy a privilegiar lo primero, porque entiendoque es lo que los define. Esto es, me remitiré a los valores morales de losmedia desde la referencia al flujo informativo de los mismos, aunque soyconsciente de la relevancia de los otros flujos y de que en muchas ocasi-ones condicionan decididamente a la información tanto por su intensi-dad como por su modo de presencia4 .

II

Una forma sugerente de acercarse a la información como valor nomercantil primario respecto a su valor mercantil, que nos abre además alos valores morales que le dan consistencia, nos la proporciona la aplica-ción a la actividad mediática de la categoría de MacIntyre de práctica.

4 Los espacios de entretenimiento y publicidad son especialmente relevantes para ofrecer, normalmente demodo indirecto, ideales de vida y orientaciones para la acción. Piénsese, por ejemplo, en la publicidad. Enprincipio no deben realizarse aquellos deseos subjetivos que obstaculizan la realización de las necesidadesbásicas de todos. El ideal de consumo adherido a los deseos ilimitados está concentrando los recursosdisponibles en una cuarta parte de la humanidad, quedando al menos otra cuarta parte en condiciones deabsoluta carencia respeto a sus necesidades básicas. Pues bien, la publicidad de los medios de comunicaciónes un agente fundamental de la estimulación de esos deseos, con lo que de ese modo no sólo potencia unacierta manera más que discutible de entender la vida, sino que apoya objetivamente una injusticia (no sepuede generalizar el consumo tipo occidental porque el ecosistema no lo permite; sólo es viable si está alalcance de una minoría).

5 En Tras la virtud, Barcelona, Crítica, 1987, 233.

Page 193: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 443

“Práctica” es, para este autor, “cualquier forma coherente y completa deactividad humana cooperativa, establecida socialmente, mediante la cualse realizan los bienes inherentes a la misma mientras se intenta librar losmodelos de excelencia que le son apropiados a esa forma de actividad”5 .Apliquemos este concepto al periodismo.

Lo que se resalta en especial es que debe ser visto como una actividadhumana con bienes inherentes a ella, que han sido establecidos socialmen-te. MacIntyre distingue a este respecto entre bienes internos a las prácti-cas y bienes externos. Estos últimos se consiguen a través de ellas, pero noson inherentes a ellas. Se trata en especial del poder, del dinero y de lafama. Los ejecutores de las prácticas, en este caso los profesionales y em-presarios de los media, compiten por ellos de una manera muy especial,pues se los reparten de tal modo que cuanto más tienen unos menos tie-nen otros. Valorar la información como mercancía es situar al periodismoorientado hacia esos bienes externos.

Los bienes internos, en cambio, son aquellos que constituyen la finali-dad de la práctica. Así, el bien interno de la actividad médica es curar,no ganar dinero o ser famoso. Cuando los protagonistas de la actividad“compiten” por estos bienes, suman entre ellos la excelencia que se gene-ra (entre los médicos, en sanación). ¿Cuál puede ser el bien interno de lapráctica mediática? Si observamos cómo ha sido establecida socialmentecomo servicio a la sociedad a partir del siglo XVIII, creo que debe con-cretarse del siguiente modo: orientar a los ciudadanos, a través de ade-cuadas ofertas de información y opinión, para que puedan participar acti-vamente en el “arte de vivir juntos” desde los supuestos democráticos.

La moralidad de las prácticas, continúa MacIntyre, se juega en buenamedida en la relación que mantienen bienes internos y externos y encómo se realizan los bienes internos. Para ello, por un lado, los bienesexternos deben estar subordinados a los internos, y, por otro lado, éstosdeben realizarse según los modelos de excelencia que les son propios.Esta propuesta reafirma así, desde otro enfoque, la jerarquización queantes indicamos, pero se pide además que la práctica se oriente hacia laexcelencia que le es propia.

Ahondemos en esto último volviendo a la categoría de los valores.Desde ésta podemos decir: puesto que lo que define a la actividad medi-ática es la información, lo que la realiza adecuadamente desde el puntode vista moral es su conexión con los valores que le son propios, inheren-

Page 194: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

444 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

tes, que podrán ser calificados en sentido amplio como valores morales.¿Cuáles son éstos? El valor inherente a la naturaleza de la información esel de la verdad y la veracidad: tanto una mentira como una intención deengaño son, por definición, la negación de la información. El valor deci-sivo adherido a la información como su condición de posibilidad es el dela libertad de los profesionales: sin ella es inviable la búsqueda de la ver-dad y la expresión de opiniones. El valor inherente a la construcción de lanoticia y a su difusión es el de la dignidad de las personas, tanto las notici-ables por los media como las receptoras, dignidad que debe traducirse enun respeto que se expresa como mínimo en negativo –“no dañar”- peroque está abierto también a dimensiones importantes en positivo que indi-caremos en su momento –justicia en sentido pleno-. En las realidadesconcretas de la actividad mediática, estos tres valores fundamentalespueden entrar en relaciones conflictivas que hay que gestionar desde laresponsabilidad de los profesionales, situada y abierta a las consecuencias,que se constituye así en el cuarto referente moral en el que se articulanexistencialmente los valores citados.

Aquí, por limitaciones de espacio y para ceñirme a lo que podemosllamar más estrictamente valores, me limitaré a explorar los tres primerosreferentes. Antes, con todo, de entrar en ello, volvamos brevemente a lacategoría de “práctica” con una última observación. Las prácticas, se nosdice, implican una relación entre los que participan en ellas y, además, serealizan plenamente en instituciones específicas que, por un lado, ampli-fican sus potencialidades y, por otro, generan posibilidades de corrupciónde poder de diverso tipo, a las que hay que resistirse. La práctica periodís-tica supone, en efecto, una inherente relación con los diversos colegas yse inserta en lo que podemos llamar sistema mediático, que, entre otrascosas, garantiza la gestión y la tecnología necesarias, pero que está deci-didamente marcado por la dinámica empresarial capitalista. Esta es unacircunstancia que deberá ser tenida muy en cuenta a la hora de desarro-llar los valores referenciales que he mencionado.

III

Pasemos ahora al valor de la verdad y la veracidad como inherentes a lanaturaleza de la información. Antes, con todo, una consideración válidapara todo lo que sigue. Los valores tienen inicialmente una perspectiva

Page 195: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 445

teleológica: son objetivos que anhelamos y perseguimos, a veces en vistasa otros objetivos o fines. Esto es algo que pasa también con los valoresmorales. Sólo que en éstos hay dos circunstancias destacables. Por unlado, no son puros medios (como puede ser la imprenta), son en todocaso, por utilizar una terminología de Aristóteles, fines que al mismo ti-empo son medios: merecen ser perseguidos por ellos mismos, aunque a suvez nos abran a otros fines. Y, por otro lado, no tienen sólo la perspectivateleológica, la que los presenta como objetivos deseables. Tienen tambi-én la perspectiva deontológica, en el sentido de que engendran deberes yse proponen como instancias críticas respecto a lo dado6 . De hecho, en loque sigue tendré sobre todo presente esta cara de deber de los valorescitados. Comencemos, pues, por el valor de la verdad.

Globalmente hablando, cabría decir que este valor, traducido en princi-pio, puede formularse del siguiente modo: lo que el periodista difunde comoinformación debe estar dirigido por la intención de verdad (veracidad) yexpresarse como verdad (conformidad con la realidad). El fraude moralmás básico es por eso el del engaño y la mentira, que están impulsados porla intención de manipulación y dominio. Esto último muestra la conexiónentre el valor de verdad y el de respeto al otro: si la misión de la prensa esinformar al ciudadano para ofrecerle orientación para sus decisiones y suparticipación social, el primer deber implicado en ello es el de respetar laverdad, no sólo porque la mentira contradice lo que es la información, sinoporque el ciudadano tiene derecho a conocer esa verdad.

“Respetar” la verdad supone, de todos modos, “buscarla”. Los códigosdeontológicos fluctúan entre ambos verbos. Creo que hay que sintetizar-los. Respetar la verdad remite a reflejarla en lo que se dice, como siestuviera ahí y se la pudiera captar sin dificultad. Pero los periodistassaben que, con frecuencia, la verdad es expresamente ocultada por lospoderes económicos, políticos o culturales y que, por eso, hay que “bus-carla” removiendo, con los riesgos correspondientes, múltiples obstácu-los. La intuición más válida del llamado “periodismo de investigación”está ahí, aunque a veces se deje llevar por el valor mercantil de lo quedescubre.

Incluso cuando parece que la verdad está ahí –por ejemplo, una ca-

6 Lo que es visto como valioso, se nos muestra por otro lado como exigencia de ser alcanzado o realizado. Enrealidad, los deberes más claros se derivan del valor de la dignidad de los seres humanos, que se traduceinmediatamente en deber de respeto de la misma. Los valores morales en los medios de comunicación seconvierten en deberes por su conexión con este valor de la dignidad.

Page 196: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

446 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

tástrofe- y que de lo que se trata es de reflejarla, de difundir lo que se vede modo manifiesto, se impone esta labor de búsqueda: de las causas, delas conexiones, del contexto, etc. en torno a los cuales aparece en segui-da mucho que desvelar. Esto es, ofrecer la verdad de un hecho no esofrecer su epidermis, o alguna parcialidad, es ofrecer la totalidad delmismo en su marco de sentido e inteligibilidad.

De cara a esto último hay una seria dificultad. Precisamente desde elvalor como mercancía, la noticia periodística tiende a la fugacidad. Enfunción de otra novedad que aparece y de la audiencia, los media soncapaces de hacer cualquier interrupción de emisión de mensajes en tor-no a algo. Autores como Ferry nos recuerdan en cambio que una exigen-cia básica de éticas como la discursiva es que se dé continuidad a lo quese dice hasta que lo implicado en ello esté adecuadamente resuelto. Poreso, sin ignorar ciertos condicionantes comerciales, pero sin someterse aellos dócilmente, los periodistas deben tratar de cerrar adecuadamentelo que abordan, porque lo contrario supone parcializar la verdad (y serinfiel a las personas noticiables y a los receptores)7 .

Si volvemos ahora al “respeto” a la verdad, vemos que una expresióndecisiva de ese respeto es la objetividad y una condición decisiva delmismo la imparcialidad. Algunos insisten en que es posible dicha objeti-vidad (reflejar los hechos como son) y que el periodista debe ser fiel aella. Otros entienden que la objetividad es un mito, un ideal irrealizable,porque en toda información hay implicada una selección, perspectiva,tratamiento específico, enmarque, etc.; elementos todos ellos con cargasubjetiva inevitable. ¿Hay que renunciar entonces a la referencia a laobjetividad y contentarse con sustitutos como la honestidad? Daniel Cor-nu8 nos ofrece a este respecto una serie de aclaraciones que consideroespecialmente pertinentes para mantener la referencia a la objetividad y

7 Hay que reconocer las dificultades de esta tarea, dados los efectos de aceleración e inmediatez que parecenconsustanciales a los media, que traen unas consecuencias que D. Müller, inspirado en el filósofo Virilio,sintetiza del siguiente modo: 1) si por un lado los medios de comunicación contribuyen a la formación delespacio público, por otro lo problematizan, al dificultar, desde la velocidad y “presentismo” la comunicacióncon la tradición cultural y con la acción de los actores responsables; 2) tal velocidad pone igualmente enpeligro el necesario momento de reflexión e interpretación, el momento de la complejidad; 3) la inmediatez,el tiempo real, del que hacen gala los media, nos hace caer en la trampa de que se da una comunicacióndirecta que no necesita mediaciones personales, sociales y culturales; 4) la sucesión de presentes que sedevoran, por último, debilita la perspectiva histórica, dificulta situar los acontecimientos interpretados enla densidad de una memoria y un proyecto. Ver “L’éthique, prise de vitesse par le cours du monde?, LeSupplément 190 (1994) 51-69.

8 En su obra Journalisme et vérité, Genève, Labor et Fides, 1994.

Page 197: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 447

la imparcialidad, pero de modo no ingenuo, y que reasumo a mi modo:

- En primer lugar, tanto en emisores como en receptores, hay queser conscientes de que no se trata de presentar la verdad, sinode ofrecer aproximaciones provisionales a ella, llamadas acorregirse y a enriquecerse.

- En segundo lugar, hay que reconocer que junto con laobservación afinada que pretende captar el hecho tal como es,hay siempre interpretación9 . Pero ésta, tanto en su versión cau-sal, como axiológica, como comprehensiva, debe estar tambiénguiada por la intención de objetividad. Es decir, la interpretaciónadecuada no nos despega de la imposible objetividad desnuda,nos acerca a la objetividad encarnada que además se desprendede todo dogmatismo desde su inevitable apertura a unapluralidad que, de todos modos, debe estar fundamentada.

- En tercer lugar, es importante remitirse a la validación de loque se propone en los medios de comunicación a través del de-bate y el diálogo, tanto entre colegas de los media como con susreceptores. La búsqueda de la verdad, en este sentido, desbordaal periodista individual. El tema delicado está aquí en que estosdebates deben estar al servicio de la verdad, no convertirse enespectáculo en el que lo que interesa es la “diversión” que latrifulca provocada por los propios media aporta a los espectado-res. De nuevo aquí, el valor mercantil puede jugar una malapasada y desvirtuar la orientación hacia la verdad de los deba-tes mediáticos.

- Por último, hay que tener un sentido afinado de la imparcialidad.Ésta no es la neutralidad aséptica propia del que renuncia atoda subjetividad y toma de posición. De hecho todo periodistatiene sus propias vivencias, convicciones y opciones que estánfuertemente relacionadas con lo que hace y que es iluso igno-rar: aquí sí que se trata de no engañar siendo honestos y veraces.Pero también imparciales, en el sentido de ofrecer una

9 Es, por ejemplo, ilusorio pensar que la información “en tiempo real” como la que ofrece la televisión es puraobjetividad: está la perspectiva del cámara, la selección, el tiempo que se dedica, el contexto mediático enque se sitúa la emisión, etc. Incluso la falta de contextualización en la sociedad que produce el acontecimientofilmado, algo que se da con frecuencia, supone la falta de objetividad propia de quien ofrece la epidermis,ocultando o despistando respecto a lo que hay debajo.

Page 198: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

448 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

observación y atención justa y ajustada a todos los sujetos enjuego en la información, y de tratar idénticamente casosidénticos, sin que tomas previas de partido generen preferenciaso selecciones injustas. En este sentido, la imparcialidad se nosmuestra conexionada con el respeto debido a los otros y distan-ciada de la mera “neutralidad” que puede ser de hecho injusta.

Conexionada con esta búsqueda de una verdad que nunca es plena,que se va haciendo camino, aparece la cuestión de la pluralidad informa-tiva ya citada, que normalmente se asegura a través de la pluralidad deenfoque de los medios de información. En este sentido el enemigo de laverdad es el monopolio, ya sea político o económico. En su momento hahabido más riesgos de monopolización por parte del poder político. Hoy elriesgo viene más bien de las grandes concentraciones de empresas medi-áticas. Se ha dicho, ante este riesgo, que una de las tareas que competea los Estados en este terreno es la de su intervención a fin de organizar lascondiciones de concurrencia que garanticen el pluralismo informativo.Hasta ahora esto parecía posible intraestatalmente. Ahora ha surgido unproblema: también las empresas mediáticas se hacen transnacionales, sinque hayamos encontrado un poder político transnacional que pueda con-trolar democráticamente su tendencia a la generación de(cuasi)monopolios. Es un tema sobre el que habrá que reflexionar en nu-estro contexto globalizado para tratar de avanzar medidas adecuadas.

Tras todas estas precisiones en torno a la verdad nos quedan todavíados cuestiones importantes sin resolver, pero que nos van a conducir demodo directo a los otros valores citados en su momento. Según lo avanza-do, todo lo que se diga debe ser acorde con la verdad, pero ¿qué verdadeshay que decir, qué opiniones hay que transmitir? ¿Se tiene derecho adecir cualquier cosa con tal de que sea verdad o de que caiga dentro dela libertad de opinión? Entramos aquí en terreno delicado que, de todosmodos, nos muestra que la referencia a la verdad no es absoluta sinocondicionada.

Respecto a qué debe decirse en los media está, por supuesto, la cuesti-ón previa de qué puede decirse. Es ya lugar común indicar que los perio-distas están sujetos a una triple referencia, a la hora de seleccionar lo quecabe decir. Por un lado, al criterio de lo que es merecedor de ser destaca-do de cara a los objetivos internos al propio periodismo y pensando en losreceptores; éste debería ser el criterio decisivo, que nos remite al valor

Page 199: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 449

del respeto a las personas. Pero, por otro lado, está evidentemente el cri-terio de rentabilidad económica que, por todo lo dicho, no se puede ig-norar, aunque deba quedar subordinado al anterior. Pero además está elcriterio de la orientación ideológica que tiene el medio en que se ofrecela información, a la que lo dicho no puede contradecir: referencia legíti-ma, con tal de que se haga en los marcos del pluralismo mediático, de latransparencia y coherencia y de la democracia. El periodista, en su traba-jo cotidiano, al tener que aceptar estos tres criterios, está a partir de aquíempujado a una especie de negociación latente y a veces explícita quedesde el punto de vista moral le pide que haga una articulación jerarqui-zada de dichos criterios y que a veces le puede llevar a serios dilemaspersonales.

Salvados estos obstáculos, ¿puede el periodista decir lo que quieredecir con tal de que sea verdad? La verdad no aparece en este momentocomo un valor absoluto e independiente. De acuerdo con la finalidadínsita al periodismo, lo que se diga, además de responder a la verdad,debe responder al respeto debido al otro y a la responsabilidad social. Dehecho el respeto a la dignidad de las personas es el valor decisivo desde elque discernir lo que debe decirse y cómo debe decirse, aunque la con-creción del mismo en cada circunstancia y su conexión tanto con la liber-tad del periodista como con el interés público no es nada fácil y pide loque éticamente podemos llamar ejercicio de la sabiduría práctica. Peroesto nos introduce de lleno en los otros dos valores que se citaron antes yque paso a abordar.

IV

La actividad mediática está íntimamente relacionada con el valor dela libertad. Ésta no sólo es el valor decisivo para el pensamiento modernoque identifica al ser humano con su autonomía, es además un valor muyespecial, en la medida en que es también el espacio necesario para larealización de los otros valores morales, que sólo podrán alcanzarse o sólomerecerán el nombre de tales, si se generan en un clima de libertad.

El periodismo, en concreto, nace como una encarnación específica dela libertad de expresión y opinión. En este sentido está ligado a las liber-tades individuales, como se muestra claramente en la “Declaración fran-

Page 200: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

450 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

cesa de los derechos del hombre y del ciudadano”, redactada precisa-mente en los albores de esta actividad10 . Una libertad así planteada seconexiona directamente no con un deber en el periodista, sino con underecho que los diversos poderes (especialmente el empresarial y el polí-tico, pero también otros como el religioso) deben respetar e incluso prote-ger. El periodista realiza este valor de la libertad cuando está libre depresiones externas a los media y cuando está también libre de presionesinternas a ellos11 . Lo único que se plantea desde aquí es regular la libertaddel profesional periodista con la del profesional empresario de los mediosde comunicación, a través de la transparencia en la contratación y lacoherencia en el ejercicio de la actividad de ambos.

Pero el tema de la libertad de los periodistas es más complejo. Cuandose aclara el sentido de la actividad periodística, no se concibe a éstameramente como una expresión más de la libertad de opinión (como pu-ede ser dialogar con el vecino, pero incluso escribir un libro), se la acabaconcibiendo como el espacio privilegiado del derecho a la información, elespacio privilegiado desde el que realizar lo que la Declaración Universalde Derechos Humanos, completando a la de la Revolución francesa, lla-ma “el derecho a recibir informaciones y opiniones”12 . El acto periodísticode informar, dirán autores como Habermas, no remite a relaciones inter-personales, es un acto social que debe colocarse en lo que él llama “espa-cio público”, situado entre la esfera estrictamente política del Estado ylas necesidades de la sociedad civil, el espacio precisamente del debatepúblico y la participación13 . Contextualizada de este modo la actividadperiodística, la libertad del periodista se convierte en libertad al serviciode un derecho a la información que apunta fundamentalmente a los ciu-dadanos, que es derecho de los ciudadanos a estar informados y poder

10 En su artículo 11 se dice: “La libre comunicación de los pensamientos y de las opiniones es uno de los derechosmás preciados del hombre; todo ciudadano puede, por tanto, hablar, escribir e imprimir libremente, salvola responsabilidad que el abuso de esta libertad produzca en los casos determinados por la ley”

11 Inicialmente, todos imaginamos estas presiones internas como provenientes del poder empresarial de losmedios de comunicación. Pero hay también otras presiones más sutiles, a las que el periodista puede cedersin darse cuenta, sin buscar un punto de equilibrio adecuado: por ejemplo, aquellas que derivan de laférrea ley de la audiencia, o del sometimiento a la ley de la novedad última que ahoga la anterior.

12 “Todo individuo tiene derecho a la libertad de opinión y expresión; este derecho incluye el de no sermolestado a causa de sus opiniones, el de investigar y recibir información y opiniones, y el de difundirlas,sin limitación de fronteras, por cualquier medio de expresión” (art. 19).

13 En torno a estas cuestiones puede consultarse su libro Historia y crítica de la opinión pública, México, GustavoGili.

Page 201: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 451

desde ahí participar consciente y críticamente en su sociedad. La liber-tad del periodista se muestra entonces como condición de posibilidad alservicio de este derecho y de la búsqueda de la verdad que supone. Sulibertad se hace una especie de deber hacia el receptor, condicionándoseel contenido y la bondad de su ejercicio desde ese deber. Daniel Cornu,en la obra antes citada, establece a este respecto una distinción que pu-ede ser iluminadora: para entender adecuadamente la libertad del perio-dista, dice, hay que verla por un lado como libertad pública, definida máspor su función hacia los ciudadanos que como derecho personal o privile-gio, y por otro lado como libertad interna en los medios en los que trabaja(especialmente frente al poder empresarial); esta última debe ser con-cebida como condición de ejercicio de la primera14 .

No hay que ignorar el hecho de que ésta es una distinción delicada,que cabe ser manipulada por los diversos poderes que quieren sojuzgar alos medios de comunicación, los cuales pueden aducir que recortan cier-tas libertades de los profesionales porque no son expresión de las exigen-cias de esta libertad pública. Ante ello hay que defender que la distinci-ón debe operar fundamentalmente como una distinción para el periodista,aunque sujeta en sus concreciones al debate y la crítica públicos. El pro-fesional de los media debe saber que su profesión no le empuja a decir loque quiera, cuando quiera y como quiera, sino que le empuja a hacerselecciones de actualidad, hacer un tratamiento u otro de las mismas,emitir opiniones y críticas, etc. en función del derecho a la informaciónde los ciudadanos, que apunta a su vez a que sea posible la participaciónde éstos y se realice la justicia. Dicho de otro modo, no le empuja aalimentar noticias y comentarios desde la esfera privada y para la esferaprivada de los receptores, sino a ofrecer informaciones que pueden con-cernir a la sociedad civil y su dinámica creativa. Con todo, las autorida-des públicas –el sistema judicial en concreto- sólo deben intervenir cu-ando la libertad del periodista vulnera claramente los derechos funda-mentales de las personas a las que afecta su iniciativa, de acuerdo a loque las leyes democráticas deben marcar al respecto. Esto es, no debenconvertirse en intérpretes afinados últimos –y jueces- de lo que significala libertad pública en el periodista.

14 J.M. Ferry va en la misma línea cuando dice: “Ciertamente, no hay libertad de comunicación sin libertad deprensa. Pero puede haber libertad de prensa sin libertad de comunicación”, en “Réflexions sur le nouvelespace public”, en Le Supplément190 (1994) 15.

Page 202: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

452 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

De nuevo aquí vemos que el valor de la libertad en la informacióntampoco se nos impone de modo incondicionado. Hay que hacerlo en elmarco de lo que hemos definido como libertad pública y dentro del límitedel respeto debido a la dignidad de las personas a las que afecta. Peroesto nos conduce al tercer valor que se resaltó en su momento.

V

Todo ser humano, sentenció Kant, por el mero hecho de ser humano,es sujeto de dignidad y en condición de tal merece respeto, que seconcreta en que nunca puede ser tratado como puro medio. Con elloeste autor sintetizaba magníficamente el valor fundamental del quederivan los deberes a la vez más elementales e importantes. Aplicado alcampo informativo: los “objetos” sobre los que se informa son “sujetos”,personas, son víctimas, testigos, responsables institucionales, protago-nistas de progresos en diversos campos, etc. Como tales no pueden sertratados como puros medios al servicio de intereses económicos, políti-cos o ideológicos de los diversos componentes del sistema mediático.Igualmente, los receptores de los media son personas, que, por tanto, nopueden ser manipuladas en función de dichos intereses. Veamos lo queesto puede suponer.

En primer lugar, la lectura más básica, más elementalmente obligato-ria, que hay que hacer de este principio moral es una lectura “en negati-vo”. Los profesionales de la información no pueden tomar iniciativas quedañen directamente a la dignidad humana: difamando, entrando en lavida privada de las personas, etc. Hay en este sentido lo que tradicional-mente se reconoce como derecho al honor y a la intimidad que debe serrespetado. Aun conscientes de que a veces se muestra en tensión con elinterés público, que pide que ciertas cuestiones que inicialmente se nosmuestran propias de la vida privada de ciertas personas con importantesresponsabilidades institucionales, deban ser conocidas porque tienen re-percusiones sobre su vida pública. Pero estos casos son los menos. En estesentido hay que denunciar más bien la fuerte tendencia existente en losmedios y derivada del interés mercantil, a introducirse en la vida privadade las personas, tanto de los “famosos”, como del “ciudadano corriente” –en forma de realities show y similares-. Evidentemente, aquí es importan-te distinguir entre si hay consentimiento de los afectados o no. Pero in-

Page 203: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 453

cluso cuando se da ese consentimiento hay que plantearse dos cuestio-nes. La primera es relativa a la calidad del mismo: los profesionales pue-den abusar de la fascinación que produce aparecer en los medios parautilizar a ciertas personas, especialmente de las capas más populares. Lasegunda tiene que ver con lo que se dijo antes: al fomentar esa tendenciaa introducir la vida privada en los medios para que a su vez éstos devuel-van cosas que sólo interesan a la vida privada de los receptores, los medi-os de comunicación se desvían de su razón más auténtica de ser, que essituarse en lo que Habermas llama el espacio público. Si esa desviaciónacaba siendo grande, acaba siendo dominante, si los medios de comuni-cación se aprovechan abusivamente de nuestras inclinaciones morbosasal voyeurismo, puede hablarse de una traición hacia lo que les define y asu vocación de servicio público.

No quiere decirse, con esto, que sería bueno que los medios con au-téntica vocación informativa se limitaran a noticias, comentarios y opini-ones respecto a lo que tiene que ver con el mundo institucional en susdiversas manifestaciones o con el mundo de los temas emergentes y deba-tibles en una sociedad. Caben también, en la lógica interna de lo que esinformación ciudadana, noticias relativas a “hechos diversos”, en la me-dida en que esos hechos, por su selección y tratamiento, son reveladoresde estados, anhelos, problemas de la sociedad. No se trata, si se quiere,de ser informadores puritanos, pero sí debe quedar claro, por un lado, queno se hacen manipulaciones indebidas de las personas y por otro que lodominante en el flujo informativo es lo que tiene que ver con la potenci-ación de la sociedad civil.

En lo que respecta a la manipulación de los receptores, es ya un deba-te clásico discutir sobre el alcance del poder de los medios de comunica-ción para configurarnos a su antojo. Aquí menciono solamente esta polé-mica. Autores como Adorno llegaron a proponer lo que se conoce expre-sivamente con el nombre de “teoría de la jeringuilla hipodérmica”, en elsentido de que hablaron de unos medios de comunicación que “inyecta-ban” ideas, actitudes y modelos de comportamiento a individuos pasivos,atomizados y manipulables, con el grave riesgo de que se crearan de he-cho, bajo la apariencia democrática, sociedades totalitarias. A esta teoríade los “efectos potentes” se le opuso pronto la teoría de los “efectos li-mitados” que, especialmente en Estados Unidos, acudió a la investigaci-ón empírica para mostrar que hay en el público receptor un grado impor-tante de independencia frente a los media y sus mensajes, por lo que más

Page 204: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

454 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

que hablar de efectos de éstos convendría hablar de diversos “usos y gra-tificaciones” en la relación emisores-receptores.

Esto es, sin ignorar la importante influencia que ejercen los mediahay que matizarla desde la capacidad de iniciativa de los receptoresen su propia recepción, en forma de recodificación, filtrado y críticade lo que reciben. En este sentido no puede ignorarse que el receptortiene su propia responsabilidad moral en estos temas: por el tipo demedios que potencia con sus opciones de lectura y audiencia, por lacapacidad crítica que alimenta, etc. También a los receptores les tocaexigir y utilizar los medios de comunicación no como objeto de consu-mo privado sino como referencias para la formación pública. Los re-ceptores no pueden ignorar que se genera una especie de círculo deinteralimentación entre medios de comunicación, publicidad y públi-co en el que los primeros ofrecen a los últimos lo que éstos quieren yla publicidad apoya, ésta pide a los medios que ofrezcan lo que elpúblico quiere, y éste quiere lo que los medios, financiados por lapublicidad, le incitan a querer.

Hoy, en cualquier caso, se tiende a decir que la influencia de losmedia, y desde ahí sus tentaciones de manipulación directa –ideológicay política- o indirecta –desde el afán exclusivo de acumular valor mer-cantil-, proviene sobre todo del hecho de que, con sus selecciones ytratamientos, imponen a la sociedad los hechos que socialmente exis-ten y los temas sobre los que se debate. Imponen la “agenda”, limitandocon ello estructuralmente las posibilidades de comunicación. En estesentido es especialmente peligrosa la concentración mediática existen-te. Estados Unidos, la Unión Europea y Japón acaparan el 90% de laproducción de bienes y servicios de información. Desde este gravísimodesequilibrio Norte-Sur, puede ya sospecharse la intensidad y modo depresencia que el Sur tendrá en los medios de comunicación del Norte yque el Norte tendrá en los medios de comunicación del Sur. A nivel dediversión no es menos unilateralmente significativo el hecho de que laindustria mundial de la diversión esté prácticamente monopolizada porEstados Unidos. No es de extrañar que se diga que el sistema mundialde comunicación puede ser visto como una de las herencias más ancla-das del colonialismo.

Desde esta capacidad de imponer la agenda, la “responsabilidad porlos efectos” se traslada a la “responsabilidad por las propuestas”, que de-ben inducir a los profesionales de los media a preguntas como éstas: ¿qué

Page 205: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 455

acontecimientos, qué colectivos humanos quedan fuera y por qué?, ¿quégrado de injusticia hay en ello?, ¿qué queda dentro y por qué?, ¿es adecu-ado su grado de relevancia?, ¿qué presentación de realidad se produce yqué valores se resaltan?, etc.

Estas últimas preguntas nos introducen en la versión “en positivo”del respeto debido a las personas como sujetos de dignidad. No setrata sólo de no dañar directamente al otro, se trata de ser vehículoadecuado del conjunto de sus derechos, a partir de lo que son losmedios de comunicación. Concretando un poco, creo que toca a estosmedios ser a su modo vehículo del derecho a la participación políticade los ciudadanos y del derecho a una justicia distributiva correcta.Participación y justicia que deben ser vistos también como valoresadheridos a la tarea informativa.

Comencemos por el tema de la participación, y con unas conside-raciones iniciales que la enlazan con algunas de las cuestiones que seacaban de tratar. Una primera cuestión extraña es que la participaci-ón pide diálogo y que los medios de “comunicación”, a pesar de lla-marse así, son básicamente medios unidireccionales, de informaciónde unos emisores a unos receptores. Esto chirría de algún modo con elvalor decisivo de la autonomía, ligado a la libertad. En la experienciamediática al profesional se le supone autonomía, al receptor en cam-bio, parece que dependencia. Si describimos este fenómeno con lascategorías habituales en las éticas profesionales diríamos que parecetratarse aquí de que el profesional, desde su autonomía, hace activi-dad de beneficencia con un paternalismo benevolente hacia un clien-te más bien pasivo, el receptor. Si esto fuera así, evidentemente esrechazable. Puede, con todo, destacarse un correctivo: el receptor esun adulto que, además de realizar una recepción crítica y por tanto almenos parcialmente activa, tiene diversos márgenes de autonomía fren-te al emisor, comenzando por el de abrirse o no a la emisión propuesta.En cualquier caso, la solución no acaba de ser satisfactoria, frente alideal de dos autonomías que dialogan en condiciones de igualdad yguiadas sólo por la ley del mejor argumento, como propone la éticadiscursiva. Por eso se han ido introduciendo iniciativas diversas: pre-sencia de los receptores, en forma de cartas al director o llamadastelefónicas en los debates, estudios sociológicos de audiencia, institu-cionalización de la figura del defensor del lector o audiovidente, etc.Está además el derecho de respuesta que tienen aquellas personasafectadas por informaciones en las que no se reconocen, que, por su-

Page 206: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

456 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

puesto, es de justicia. Hay que reconocer, con todo, que se trata sólode medidas de maquillaje y quizá de marketing. Probablemente hayque aceptar también que el sistema mediático es de tal naturalezaque no puede contemplar el dar de verdad la palabra a los receptores.Si es así, tendrá que ser consciente de sus límites y de sus tentacionesmonopolizadoras, para no caer en ellas.

Si hay un límite en la comunicación emisor-receptor, la fuerza delemisor mediático está en que puede constituirse en la mejor fuente deaportación a los ciudadanos de aquellas noticias y opiniones que seprecisan para participar de verdad en la vida política y social. Losmedia, por supuesto, no pueden sustituir el procedimentalismo demo-crático, pero pueden ayudar a darle alma, a que no sea una meramecánica del juego entre mayorías y minorías: aportando las informa-ciones de la realidad que son necesarias para ello, adecuadamentecontextualizadas, ofreciendo espacios de opinión y debate que madu-ren las opciones, motivando la organización ciudadana, haciéndoseeco de las causas justas, etc.

Evidentemente, la primera condición para ello es que exista la po-sibilidad de un acceso generalizado y en igualdad de condiciones bá-sicas a los medios de comunicación. Y con ello entramos ya en el valorde la justicia. Esto pide, para empezar que el bien de la educaciónbásica digna con la que poder ser receptor crítico y dinámico de todoslos medios y en todas sus expresiones, esté garantizada a todos15 . Yaquí interviene de nuevo el Estado, como garante de esta igualdad deoportunidades. Al hacer políticas públicas que aseguran la igualdadde acceso a los medios de comunicación, el Estado se convierte en elgarante del derecho de los ciudadanos a estar adecuadamente infor-mado. ¿Debe ir más lejos en la protección de este derecho? Ya se avan-zó que le toca también velar no sólo para que la recepción sea genera-lizada y madura, sino para que la recepción sea convenientemente

15 La televisión, apoyada económicamente en la publicidad y/o los presupuestos del Estado, está ofreciendodiversas cadenas de acceso general a la población y relativamente económico. Esta generalización se datodavía más en la radio, con más fácil cobertura y mucho más económica de cara a la adquisición delaparato receptor. Esto significa que son medios especialmente relevantes cuando se piensa en las mayorías:un porcentaje importante, sobre todo entre los más pobres, sólo acude a ellos. Por eso deben ser cuidadoscon esmero, de acuerdo a los criterios que se han ido avanzando, aunque con frecuencia sean los medios(especialmente en el caso de la televisión) que más los incumplen. Por otro lado, fomentar y posibilitartambién el acceso de todos a la prensa escrita, con sus ventajas específicas que no han sido anuladas porlos medios más modernos, es una tarea necesaria.

Page 207: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 457

plural. ¿Puede pasar a más y tener sus propios medios de comunicaci-ón que completen y corrijan lo que ofrecen los medios privados? Ensituaciones democráticas, como las que aquí se contemplan, se aceptaque puedan hacerlo con tal de que sea clara su perspectiva de servi-cio público frente a la de negocio, no sean monopolistas, reflejen in-ternamente el pluralismo social y acepten un control democrático. Dehecho los Estados tienden a tener algunos medios en el ámbito de laradio y la televisión. La experiencia dice, con todo, que no es nadafácil tenerlos en esas condiciones, que los medios públicos tienden aservir al partido político en el poder, por lo que siempre hay que estaren alerta crítica. Aunque no hay que ignorar que en la medida en quese acercan a las condiciones citadas, pueden aportar un importanteservicio.

Si por un lado se hace justicia con los receptores a través de políti-cas públicas que garantizan su igualdad de oportunidades ante losmedia, a través de la educación y la suficiencia económica, por otrolado se hace también justicia cuando dichos medios se convierten enel portavoz de las víctimas de las diversas injusticias, cuando se lesofrece acceso a esos medios, generando de este modo una concienciasocial, una opinión pública, proclive a convertirse en presión políticapara que se tomen las medidas adecuadas con las que superar las in-justicias descritas y denunciadas. Es cierto que el periodista en sí, demodo directo, no es un militante de las causas de la paz y la justicia,no es un organizador de la lucha contra la injusticia, en sí es un infor-mador y generador de debate público y debe mantenerse fiel a ello.Ahora bien, si cumple adecuadamente ese objetivo, si se acerca a larealidad más significativa para todos los humanos intentando descri-birla en su marco de significado pleno (con una adecuada articulaci-ón entre descripción e interpretación, tal como se dijo), se toparáinevitablemente con la “noticia” de la injusticia. Si convoca a testigosde las diversas realidades, deberá convocar a testigos y víctimas –personales y colectivas- de la injusticia, y deberá hacerlo en proporci-ón a la extensión y relevancia de la misma.

Los grandes valores aquí descritos nos muestran, por un lado, todolo que de apreciable tienen los medios de comunicación cuando seinspiran en ellos. Por otro lado, desde su derivación hacia el deber,nos sugieren los grandes principios con los que orientarnos emisores yreceptores. Sabemos que luego se precisan orientaciones y normas más

Page 208: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

458 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

concretas, que los diversos códigos deontológicos de la profesión in-tentan dar. Como sabemos que, en la práctica concreta, será decisivaesa “sabiduría ética” que contextualiza los principios en las situacio-nes y se abre honestamente a las consecuencias. Sobre todo esto ha-bría que hablar para completar el panorama moral de los medios decomunicación. Aquí nos hemos ceñido al primer nivel, al que, aun-que parezca poco concreto, moviliza y fundamenta todos los demás, alque debe calar en las convicciones. Desvelar su relevancia y alcanceha sido nuestra intención.

Page 209: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 459Direito e Democracia Canoas vol.4, n.2 2º sem. 2003 p.459-463

Documento histórico

Declaração dos direitos da mulhere da cidadã

OLYMPE DE GOUGES

(Setembro de 1791)

Este documento foi proposto à Assembléia Nacional daFrança, durante a Revolução Francesa(1789-1799). MarieGouze (1748-1793), a autora, adotou o nome de Olympede Gouges para assinar seus planfletos e petições em umagrande variedade de frentes de luta, incluindo a escravi-dão, em relação à qual propunha a abolição. Em 1791,propõe uma Declaração de Direitos da Mulher e da Cida-dã, em contraposição à leitura masculina daquela aprova-da pela Assembléia Nacional. Girondina, ela se opõe aber-tamente a Robespierre e acaba por ser guilhotinada em1793, condenada como contra-revoluionária e denunciadacomo uma mulher “desnaturada”.

PREÂMBULO

Mães, filhas, irmãs, mulheres representantes da nação reivindicamconstituir-se em uma assembléia nacional. Considerando que a ignorân-cia, o menosprezo e a ofensa aos direitos da mulher são as únicas causasdas desgraças públicas e da corrupção no governo, resolvem expor emuma declaração solene, os direitos naturais, inalienáveis e sagrados damulher. Assim, que esta declaração possa lembrar sempre, a todos os mem-bros do corpo social seus direitos e seus deveres; que, para gozar de con-fiança, ao ser comparado com o fim de toda e qualquer instituição políti-ca, os atos de poder de homens e de mulheres devem ser inteiramenterespeitados; e, que, para serem fundamentadas, doravante, em princípios

Page 210: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

460 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

simples e incontestáveis, as reivindicações das cidadãs devem sempre res-peitar a constituição, os bons costumes e o bem estar geral.

Em conseqüência, o sexo que é superior em beleza, como em coragem,em meio aos sofrimentos maternais, reconhece e declara, em presença, esob os auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos da mulher e dacidadã:

Artigo 1º

A mulher nasce livre e tem os mesmos direitos do homem. As dis-tinções sociais só podem ser baseadas no interesse comum.

Artigo 2º

O objeto de toda associação política é a conservação dos direitosimprescritíveis da mulher e do homem: Esses direitos são a liber-dade, a propriedade, a segurança e, sobretudo, a resistência àopressão.

Artigo 3º

O princípio de toda soberania reside essencialmente na nação, queé a união da mulher e do homem: nenhum organismo, nenhumindivíduo, pode exercer autoridade que não provenha expressa-mente deles.

Artigo 4º

A liberdade e a justiça consistem em restituir tudo aquilo que per-tence a outros, assim, o único limite ao exercício dos direitosnaturais da mulher, isto é, a perpétua tirania do homem, deveser reformado pelas leis da natureza e da razão.

Artigo 5º

As leis da natureza e da razão proíbem todas as ações nocivas àsociedade: tudo aquilo que não é proibido pelas leis sábias edivinas não podem ser impedidos e ninguém pode ser constran-gido a fazer aquilo que elas não ordenam.

Artigo 6º

A lei deve ser a expressão da vontade geral: todas as cidadãs e

Page 211: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 461

cidadãos devem concorrer pessoalmente ou com seus represen-tantes para sua formação; ela deve ser igual para todos. Todas ascidadãs e cidadãos, sendo iguais aos olhos da lei, devem serigualmente admitidos a todas as dignidades, postos e empregospúblicos, segundo as suas capacidades e sem outra distinção anão ser suas virtudes e seus talentos.

Artigo 7º

Dela não se exclui nenhuma mulher: esta é acusada, presa e deti-da nos casos estabelecidos pela lei. As mulheres obedecem, comoos homens, a esta lei rigorosa.

Artigo 8º

A lei só deve estabelecer penas estritamente e evidentemente ne-cessárias e ninguém pode ser punido senão em virtude de umalei estabelecida e promulgada anteriormente ao delito e legal-mente aplicada às mulheres.

Artigo 9º

Sobre qualquer mulher declarada culpada a lei exerce todo o seurigor.

Artigo 10

Ninguém deve ser molestado por suas opiniões, mesmo de princí-pio; a mulher tem o direito de subir ao patíbulo, deve ter tam-bém o de subir ao pódio desde que as suas manifestações nãoperturbem a ordem pública estabelecida pela lei.

Artigo 11

A livre comunicação de pensamentos e de opiniões é um dos direitosmais preciosos da mulher, já que essa liberdade assegura a legiti-midade dos pais em relação aos filhos. Toda cidadã pode entãodizer livremente: “Sou a mãe de um filho seu”, sem que um precon-ceito bárbaro a force a esconder a verdade; sob pena de responderpelo abuso dessa liberdade nos casos estabelecidos pela lei.

Artigo 12

É necessário garantir principalmente os direitos da mulher e da

Page 212: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

462 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

cidadã; essa garantia deve ser instituída em favor de todos enão só daqueles às quais é assegurada.

Artigo 13

Para a manutenção da força pública e para as despesas de adminis-tração, as contribuições da mulher e do homem serão iguais; elaparticipa de todos os trabalhos ingratos, de todas as fadigas, deveentão participar também da distribuição dos postos, dos empre-gos, dos cargos, das dignidades e da indústria.

Artigo 14

As cidadãs e os cidadãos têm o direito de constatar por si própriosou por seus representantes a necessidade da contribuição públi-ca. As cidadãs só podem aderir a ela com a aceitação de umadivisão igual, não só nos bens, mas também na administraçãopública, e determinar a quantia, o tributável, a cobrança e aduração do imposto.

Artigo 15

O conjunto de mulheres igualadas aos homens para a taxação temo mesmo direito de pedir contas da sua administração a todoagente público.

Artigo 16

Toda sociedade em que a garantia dos direitos não é assegurada,nem a separação dos poderes determinada, não tem Constitui-ção; a Constituição é nula se a maioria dos indivíduos que com-põem a nação não cooperou na sua redação.

Artigo 17

As propriedades são de todos os sexos juntos ou separados; paracada um deles elas têm direito inviolável e sagrado; ninguémpode ser privado delas como verdadeiro patrimônio da natureza,a não ser quando a necessidade pública, legalmente constatadao exija de modo evidente e com a condição de uma justa epreliminar indenização.

Page 213: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 463

CONCLUSÃO

Mulher, desperta. A força da razão se faz escutar em todo o Universo.Reconhece teus direitos. O poderoso império da natureza não está maisenvolto de preconceitos, de fanatismos, de superstições e de mentiras. Abandeira da verdade dissipou todas as nuvens da ignorância e da usurpa-ção. O homem escravo multiplicou suas forças e teve necessidade derecorrer às tuas, para romper os seus ferros. Tornando-se livre, tornou-seinjusto em relação à sua companheira.

FORMULÁRIO PARA UM CONTRATO SOCIALENTRE HOMEM E MULHER

Nós, __________ e ________ movidos por nosso próprio desejo, uni-mo-nos por toda nossa vida e pela duração de nossas inclinações mútuas sob asseguintes condições: Pretendemos e queremos fazer nossa uma propriedadecomum saudável, reservando o direito de dividi-la em favor de nossos filhos edaqueles por quem tenhamos um amor especial, mutuamente reconhecendoque nossos bens pertencem diretamente a nossos filhos, de não importa queleito eles provenham (legítimos ou não)e que todos, sem distinção, têm o direitode ter o nome dos pais e das mães que os reconhecerem, e nós impomos a nósmesmos a obrigação de subscrever a lei que pune qualquer rejeição de filhos doseu próprio sangue (recusando o reconhecimento do filho ilegítimo). Da mes-ma forma nós nos obrigamos, em caso de separação, a dividir nossa fortuna,igualmente, e de separar a porção que a lei designa para nossos filhos. Em casode união perfeita, aquele que morrer primeiro deixa metade de sua propriedadeem favor dos filhos; e se não tiver filhos, o sobrevivente herdará, por direito, amenos que o que morreu tenha disposto sobre sua metade da propriedadecomum em favor de alguém que julgar apropriado. (Ela, então, deve defenderseu contrato contra as inevitáveis objeções dos “hipócritas, pretensos modestos,do clero e todo e qualquer infernal grupo”.

Page 214: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

464 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Page 215: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 465

Normas Editoriais

I. APRESENTAÇÃO DOS ORIGINAIS

1. Os artigos devem ser apresentados em disquete, preferencial-mente em Windows Word 6.0 ou superior, acompanhados deuma cópia impressa.

2. O texto dos artigos deverá ter de 10 a 20 laudas, em média.

3. Um resumo de seis a dez linhas, em língua inglesa e em línguaportuguesa, deverá introduzir o artigo, juntamente com pala-vras-chave indicativas de seu conteúdo.

4. A apresentação do artigo deverá conter: identificação, com tí-tulo; subtítulo ( se houver); nome do(s) autor(es); maiortitulação acadêmica ou outra, cargo atual e instituição ondeexerce as funções; telefone e endereço; e-mail, se for o caso.

5. As citações, referências bibliográficas e notas de rodapé deve-rão seguir, obrigatoriamente, as normas da ABNT. As citações,no texto, deverão ser feitas em língua portuguesa, reservando-se as citações em língua estrangeira para as notas de rodapé, sefor o caso. Excepcionalmente, a critério do Conselho Editorial edos editores, serão aceitos artigos em espanhol ou citações, notexto, nesta língua, por ser ela comum aos países do Mercosul.

6. Artigos em outra língua estrangeira poderão ser aceitos, a juízodo Conselho Editorial e dos editores, se o autor for estrangeiro esua contribuição de indiscutível valor científico.

Page 216: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

466 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

II. PUBLICAÇÃO

1. Os trabalhos remetidos para publicação serão submetidos à apre-ciação do Conselho Editorial ou de outros consultores por estedesignados, de acordo com as especificidades do tema.

2. O Conselho Editorial não se responsabiliza pela devolução dosoriginais.

3. Havendo necessidade de alterações quanto ao conteúdo do tex-to, será sugerido ao autor que as faça, para posterior publicação.Adeqüação lingüística e copidescagem ficam a cargo dos edito-res, ressalvada a alteração de conteúdo.

4. Os autores, cujos trabalhos forem publicados, receberão doisexemplares da Revista e cinco separatas.

5. Os trabalhos devem ser encaminhados para:

Prof. Dr. Plauto Faraco de Azevedo, EditorRevista Direito e DemocraciaUniversidade Luterana do BrasilCurso de DireitoRua Miguel Tostes, 101 - Prédio 1, sala 2992420-280 - Canoas/RS - BrasilE-mail: [email protected]

[email protected]

Page 217: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

vol.4, n.2, 2003 Direito e Democracia 467

Page 218: direito e democracia v4, n2 - ULBRA · Valério de Oliveira Mazzuoli trata do direito dos tratados, à luz da Convenção de Viena de 1969, examinando a problemática atinente aos

468 Direito e Democracia vol.4, n.2, 2003

Impresso na Gráfica da ULBRA