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Page 1: Direito Das Pessoas e Bens

ROTEIRO DE CURSO2008.2

3ª edição

DIREITO DAS PESSOAS E DOS BENS

Produzido Por Carlos affonso Pereira de souzaPesquisadores: bruno gazzaneo belsito e Pedro mendonça CavalCante

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SumárioDireito das Pessoas e dos Bens

PROGRAMA DA DISCIPLINA .............................................................................................................................................................3

PARTE I. INTRODUçãO AO DIREITO CIvIL ..........................................................................................................................................4 Aula 1. Apresentação da disciplina – introdução ao Direito Civil ................................................... 4 Aula 2. O papel da pessoa humana no Direito Civil moderno ........................................................ 6

PARTE II: DIREITO DAS PESSOAS ......................................................................................................................................................9 Aula 3. Conceitos Estruturais – A Pessoa Física .............................................................................. 9 Aula 4. Conceitos Estruturais – Direitos da Personalidade ............................................................ 22 Aula 5. Direitos da Personalidade – Direito à Integridade Física ................................................... 34 Aula 6. Direitos da Personalidade – Direito ao nome e à honra .................................................... 42 Aula 7. Direitos da Personalidade – Direito à Privacidade ............................................................ 49 Aula 8. Direitos da Personalidade – Direito à Privacidade e Tecnologia ....................................... 57 Aula 9. Direitos da Personalidade – Direito à Imagem ................................................................. 69 Aula 10. Direito à Imagem e privacidade – análise de casos .......................................................... 96 Aula 11. Conceitos Estruturais – Pessoas jurídicas ...................................................................... 110 Aula 12. Pessoas jurídicas – sociedade, associações e fundações ................................................... 121

PARTE III: DIREITO DOS BENS ...................................................................................................................................................... 127 Aula 13. Conceitos Estruturais – Bens ....................................................................................... 127 Aula 14. Bens principais e acessórios – Benfeitorias .................................................................... 135 Aula 15. Conceitos Estruturais – Bens de família ....................................................................... 144

MéTODO DE AvALIAçãO ............................................................................................................................................................... 155

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PROGRAMA DA DISCIPLINA

Parte I. Introdução ao Direito Civil

Aula 1: Apresentação da Disciplina - Introdução ao Direito CivilAula 2: O papel da pessoa humana no direito civil moderno

Parte II. Direito das pessoas

Aula 3: Conceitos estruturais – a pessoa físicaAula 4: Conceitos estruturais – direitos da personalidadeAula 5: Direitos da personalidade – direito ao próprio corpoAula 6: Direitos da personalidade – direito ao nome e à honraAula 7: Direitos da personalidade – direito à privacidadeAula 8: Direitos da personalidade – direito à privacidade e tecnologiaAula 9: Direitos da personalidade – direito à imagemAula 10: Direito à imagem e à privacidade – análise de casosAula 11: Conceitos estruturais – pessoas jurídicasAula 12: Pessoas jurídicas – sociedades, associações e fundações

Parte III. Direitos dos bens

Aula 13: Conceitos estruturais – bensAula 14: Bens principais e acessórios – benfeitoriasAula 15: Conceitos estruturais – bem de Família

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Parte I. Introdução ao dIreIto CIvIl

AuLA 1. APRESENTAçãO DA DISCIPLINA – INTRODuçãO AO DIREITO CIvIL

EmEntário dE tEmas

Direito Privado – Direito Civil – Direito Civil Constitucional – Apresenta-ção do Código Civil de 2002

LEitura obrigatória

TEPEDINO, Gustavo. “Premissas metodológicas para a constitucionalização do Direito Civil”. In: Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. pp. 7-22.

LEituras compLEmEntarEs

GIORGIANNI, Michele. “O Direito Privado e suas atuais fronteiras”. Revista dos Tribunais n. 747.

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janei-ro: Forense, 2005. pp. 5-27.

1. rotEiro dE auLa

Estudar o Direito Civil hoje significa estudar um campo do Direito que atra-vessa uma de suas maiores transformações. Por um lado, diversas teorias têm sido erigidas sobre a chamada publicização, ou constitucionalização do Direito Civil; por outro, e mais particularmente no Brasil, a recente publicação de um novo Código ainda acarreta, e acarretará por um longo tempo, todo um trabalho de adequação e interpretação do novo texto.

A análise dos dispositivos do Código Civil à luz da Constituição Federal marca os estudos não apenas do Direito Civil, mas de todo o Direito Privado, nos últimos trinta anos. Uma das premissas desse Direito Civil Constitucional é justamente a aplicação dos princípios constitucionais nas relações travadas entre particulares.

Tomando por base o rompimento da summa divisio entre Direito Público e Direito Privado, e a afirmação do texto constitucional como vértice axiológi-co e normativo do ordenamento jurídico, essa perspectiva de análise permite compreender como esses princípios influenciam as atividades dos particulares e podem ser exigidos na prática.

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O Direito Civil Constitucional, ao aplicar os dispositivos constitucionais nas relações privadas, evidencia o fenômeno da perda do papel centralizador no ordenamento jurídico desempenhado pelo Código Civil na teoria jurídica do século XIX.1

Com a intensa produção legislativa que caracterizou o século XX, progressi-vamente o Código Civil foi cedendo espaço para leis esparsas que inicialmente eram editadas de forma extraordinária, sendo sucessivamente substituído o cará-ter de excepcionalidade pela prática reiterada de elaboração de leis especiais, edi-tadas em separado do Código Civil e constituindo verdadeiros micro-sistemas.

A fragmentação extrema do Direito Civil somente pôde ser evitada com a compreensão de que todo o ordenamento jurídico está sujeito aos preceitos constitucionais. A Constituição Federal, com o estabelecimento de princípios que norteiam todo o ordenamento jurídico, reunifica o ordenamento, subme-tendo todas as relações jurídicas ao seu poder normativo.

Nesse sentido, explicita Pietro Perlingieri que “o Código Civil certamen-te perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevân-cia publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo texto constitucional.”2

O reconhecimento, à luz da moderna doutrina constitucional, da normati-vidade dos princípios, confere à Constituição potencial transformador jamais possuído. Sua influência espraia-se por todo o ordenamento jurídico, propondo uma releitura dos institutos e consolidando a própria aplicabilidade da Consti-tuição nas situações cotidianas.

Mas a discussão está longe de ser encerrada. A edição de um novo Código Ci-vil pode fazer você se perguntar sobre a necessidade de se utilizar a Constituição nos estudos de Direito Civil. O recurso à Constituição parecia se fazer necessário quando o Código Civil em vigor no país era o mesmo desde 1916. Com a edi-ção do novo Código, em 2002, pergunta-se: precisamos ainda da Constituição? Os diversos assuntos que serão estudados durante essa disciplina fornecerão a resposta para essa pergunta.

1 o papel centralizador do Código Civil pode ser notado na seguinte passagem de José de alencar, escrita pelo roman-cista (e jurista) sobre a oportunidade de criação de um Código Civil para o brasil: “outorga-se aos povos ou eles conquistam no dia de sua liberdade uma Constituição, escrita ao estrepito da batalha ou às aclamações da praça publica, mas um Código Civil procede uma longa gestação das idéias; ele é o marco de um largo período no progres-so da jurisprudência, e o depositário da experiência e estudo não só de um povo, mas da humanidade culta.” (Es-boços Jurídicos. rio de Janeiro: garnier, 1883. p. 132).

2 Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil. rio de Janeiro: renovar, 1998. p. 6.

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AuLA 2. O PAPEL DA PESSOA huMANA NO DIREITO CIvIL MODERNO

EmEntário dE tEmas

Dignidade da pessoa humana – Autonomia privada

caso gErador

“Lançamento de anão”

LEitura obrigatória

MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp. 81-117.

LEitura compLEmEntar

AZEVEDO, Antonio Junqueira. “Caracterização jurídica da dignidade da pessoa humana”. In: Estudos e pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004. pp. 3-24.

1. rotEiro dE auLa

A proteção da pessoa humana hoje ocupa um papel central nos estudos jurí-dicos. Conforme leciona Pietro Perlingieri, a personalidade humana deve ser tu-telada nas múltiplas situações enfrentadas pela pessoa, resultando que o modelo de direito subjetivo tipificado se mostrará sempre insuficiente.3

Conforme expõe o autor italiano, “[a] esta matéria não se pode aplicar o direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’. Na categoria do ‘ser’ não existe a dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e a titularidade é institucional, orgânica. Onde o objeto da tutela é a pessoa, a perspectiva deve mudar; torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial na-tureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao mesmo tempo o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo da relação.”4

A tutela que demanda a personalidade encontra-se além da summa divisio entre Direito Privado e Direito Público (direitos fundamentais e direitos da per-sonalidade, respectivamente) e da discussão sobre a tipicidade ou atipicidade dos direitos da personalidade. Importa ao Direito que a pessoa humana seja protegida de forma integral.

3 nesse sentido, afirma gustavo tepedi-no que: “com a evolução cada vez mais dinâmica dos fatos sociais, torna-se as-saz difícil estabelecer disciplina legisla-tiva para todas as possíveis situações jurídicas de que seja a pessoa humana titular.” (Temas, cit., p. 36.)

4 Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil. rio de Janeiro: renovar, 1997, p. 155.

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Assim, perde relevância a discussão sobre o enunciado de um único direito subjetivo ou a classificação em inúmeros direitos da personalidade, que será tra-balhada mais à frente. Deve-se, sim, salvaguardar a pessoa em qualquer momen-to da atividade social.

As diretrizes elencadas no artigo 1º, incisos I e III, da Constituição Federal, elegendo a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da República, somadas à adoção do princípio da igualdade substancial (art. 3º, III) e da isonomia formal do art. 5º, acrescido da garantia residual constante do artigo 5º, § 2º, condicionam todo o ordenamento jurídico. Tais diretrizes alcançam tanto a relação do indivíduo frente ao poder público como as relações tipicamente privadas. Na mesma direção está o entendimento de Maria Celina Bodin de Moraes:

A rigor, portanto, o esforço hermenêutico do jurista moderno volta-se para a aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo, mas também na relação interindividual, situada no âmbito dos modelos próprios do direito privado.5

Dessa forma, a tutela da pessoa humana não pode ser restringida por con-cepções estanques de relações jurídicas públicas, de um lado, e relações jurídi-cas privadas, de outro. A pessoa humana requer proteção integral, atendendo à cláusula geral fixada no texto constitucional para a proteção e promoção de sua dignidade.

Contudo, se é certa a necessidade de proteção integral da pessoa humana, resta ainda definir o que vem a ser a chamada “dignidade da pessoa humana”. Para trabalhar com esse conceito, leia o caso gerador abaixo.

2. caso gErador

Leia a notícia abaixo:

Lançamento de AnãoCorreio Brasiliense, 14 de março de 2002A polícia invadiu um concurso de arremesso de anões promovido no bar

Odissey, em Long Island, no Estado de Nova Iorque (EUA). Os clientes haviam pago US$ 10 para participar da bizarra competição, que funcionava como uma prova de arremesso de peso. Um agente da State Liquor Authority, entidade que fiscaliza os bares, informou que havia uma área de arremesso em que foram co-locados dois colchões de ar e que os anões usavam capacete para se proteger. As 200 pessoas que haviam no local, inclusive os anões, foram liberados sem qual-quer punição, mas o dono do bar, Tony Alfanom, foi multado em US$ 600. O arremesso de anões, legalizado em alguns estados norte-americanos, é proibido em Nova York.

5 maria Celina bodin de moraes, “a Ca-minho de um direito Civil Constitucio-nal”, in Revista de Direito Civil nº 65, p. 28. vide, ainda, gustavo tepedino. “Có-digo Civil, os chamados micro-sistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa”, in gustavo tepedi-no (coord.). Problemas de Direito Civil-Constitucional. rio de Janeiro: renovar, 2000; p. 12; luiz edson fachin. Teoria Crítica, cit., p. 33; e tereza negreiros. “dicotomia Público-Privado frente ao Problema da Colisão de Princípios”, in ricardo lobo torres (org.) Teoria dos Direitos Fundamentais. rio de Janeiro: renovar, 1999; p. 363.

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A notícia acima reporta a proibição, nos Estados Unidos, da prática conhe-cida por lançamento de anão (“dwarf tossing”). A sua proibição em território francês gerou, nos anos 1990, um dos mais conhecidos acórdãos do Conselho de Estado daquele país, o chamado caso “Morsang-sur-Orge”.

A Prefeitura de Morsang-sur-Orse decidiu acabar com os espetáculos de lan-çamento de anão naquela cidade. Para tanto, foi movimentada uma força poli-cial para averiguar se nos bares e boates da região a prática estava sendo desen-volvida.

A Prefeitura, como Administração Pública, tem a faculdade de intervir nas relações privadas com o chamado “poder de polícia”. Especialmente no Direito francês, existe uma legislação especial para a utilização do poder de polícia em eventos públicos, visando garantir a segurança dos espectadores e prevenir even-tuais tumultos.

Todavia, o fundamento utilizado pela Prefeitura para comandar as incursões nos bares e boates foi distinto. Alegou-se, à época, que a proibição da atividade estava sendo feita em homenagem ao princípio da indisponibilidade da dignida-de da pessoa humana.

Um dos anões que foi proibido de ser lançado em boates locais ingressou então com uma ação contra a Prefeitura. Alegava o anão que a proibição baixada era ilegal, pois violava a sua liberdade de iniciativa. Por conta de sua baixa esta-tura, argumentou o anão, estava difícil conseguir um emprego na cidade. Dessa forma, ser lançado de um lado para outro na boate era o único emprego que ele havia obtido. E agora o Estado estava lhe retirando o seu próprio sustento.

Na decisão de 27.10.1995, o Conselho de Estado francês pela primeira vez reconheceu a dignidade da pessoa humana como elemento integrante da “ordem pública” e, conseqüentemente, declarou ser a prática do lançamento de anão uma atividade que atenta contra a dignidade da pessoa, não podendo, mesmo voluntariamente, ser exercida pela mesma.

Se você fosse o juiz de um caso idêntico àquele decidido pelo Conselho de Estado francês, qual seria a sua decisão?

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Parte II: dIreIto das Pessoas

AuLA 3. CONCEITOS ESTRuTuRAIS – A PESSOA FíSICA

EmEntário dE tEmas

Pessoa física – Início e fim da personalidade – Incapacidade – Identificação e Registro

LEitura obrigatória

RODRIGUES, Rafael Garcia. “A Pessoa e o Ser Humano no novo Código Civil”, in TEPEDINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. pp. 1-34.

LEituras compLEmEntarEs

NONATO, Orozimbo. “Personalidade”, verb. in Repertório Enciclopédico do Direito Brasileiro, v. 37.

RIZZARDO, Arnaldo. Parte Geral do Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2004. pp. 125-135.

1. rotEiro da auLa

Antes de ingressar no estudo da personalidade, é importante remeter aos conceitos de relação jurídica e de direito subjetivo. A relação jurídica, na con-ceituação de Pontes de Miranda, nada mais é do que “a relação inter-humana, a que a regra jurídica, incidindo sobre os fatos, torna jurídica”. Assim, além da incidência da norma, que torna determinada relação relevante ao direito, temos que, necessariamente, a relação jurídica se desenvolve entre entes capazes de ter direitos e deveres.

Outra consideração a que devemos nos remeter são os conceitos de direito subjetivo e direito objetivo. O direito objetivo, norma agendi, é o direito posto, ou seja, a norma jurídica que vigora em determinado Estado. Já o direito subjetivo, de forma sucinta, é a prerrogativa titularizada por um indivíduo decorrente da regular observância de norma de direito objetivo. É a facultas agendi.

A conexidade desses conceitos com o de personalidade deriva justamente do fato que, em regra, aos entes dotados de personalidade é dado integrar algum dos pólos da relação de direito material, seja o pólo ativo ou o pólo passivo.

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Na tentativa de dirimir o caráter abstrato da matéria, pode-se socorrer com exemplos derivados do Direito das Obrigações. Assim, num contrato de compra e venda figuram, concomitantemente, o vendedor e o comprador. O primeiro, sendo titular de um direito de crédito, é o sujeito ativo da relação; o segundo, comprador do bem, o sujeito passivo, é aquele em virtude do qual pode ser exigida uma ação condizente na entrega do bem. O vendedor é o devedor da relação.

Contudo, a dinâmica da relação obrigacional suscitada não é tão simples. A relação contratual citada, seguindo a lógica das obrigações, possui um caráter sinalagmático, ou seja, há correspondência na exigência de condutas recíprocas para ambas as partes.

Dessa forma, ao vendedor corresponde o direito subjetivo de receber a importância acordada, ao mesmo tempo em que compete ao comprador o dever jurídico de pagar-lhe o preço. Analisando sob outra perspectiva, tem-se que, de forma concomitante, o comprador é titular do direito subjetivo de receber a mercadoria, ao passo que o vendedor está adstrito ao dever jurídico de entregá-la nas condições estabelecidas – dia, hora, quantidade, qualidade, etc.

Nos direitos reais, por outro lado, a definição do sujeito passivo não é tão clara como no exemplo acima apresentado: contra quem se pode exigir uma prestação quando o direito titularizado é o direito, por exemplo, de propriedade sobre um bem? No direito de propriedade, enquanto o sujeito ativo é o titular do domínio, são sujeitos passivos da relação jurídica todas os demais terceiros, exceto o titular do direito real.

personalidade e pessoa natural

O Código Civil regula a personalidade nos artigos 1º a 12. A personalidade, conforme exposto pela doutrina tradicional, traduz-se na capacidade genérica para ser titular de direitos e deveres, sendo adquirida, a partir do que se depre-ende do artigo 2º do Código Civil, do nascimento com vida. Para uma crítica desse conceito de personalidade, remete-se à leitura da aula seguinte, sobre os chamados direitos da personalidade.

De forma clara, na configuração da personalidade do indivíduo não há que se tecerem considerações acerca de elementos próprios de sua capacidade psí-quica, tais como o tirocínio, a maturidade, a livre e consciente capacidade de manifestar sua vontade e de comportar-se de forma condizente com essa ma-nifestação. A personalidade, de forma peremptória, pressupõe apenas o nasci-mento com vida.

Como destaca Caio Mário, a personalidade não depende de consciência ou vontade do indivíduo, pois “a criança, mesmo recém-nascida, o louco, o porta-dor de enfermidade que desliga o indivíduo do ambiente físico ou moral, não obstante a ausência de conhecimento da realidade, ou a falta de reação psíquica, é uma pessoa, e por isso mesmo dotado de personalidade, atributo inseparável

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do homem dentro da ordem jurídica, qualidade que não decorre do preenchi-mento de qualquer requisito psíquico e também dele inseparável.”6

A personalidade, de acordo com a redação do artigo 1º do CC-2002, inicia-se com a vida. Esse é o único pré-requisito, pois o direito brasileiro não conside-ra, conforme a legislação estrangeira prevê em alguns casos, elementos como a viabilidade da vida ou mesmo a “aparência humana”.

Contudo, o feto, enquanto integrante do corpo da mãe, não é uma massa amorfa desconsiderada em sua importância pelo direito. O próprio dispositivo aqui referido, art. 2º, determina que a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro.

Nascituro, é segundo a definição clássica, o ser já concebido e que se encontra no útero materno durante o período gestacional. Não é dotado ainda de personalida-de, a qual somente surgirá no momento de seu nascimento com vida.

Não obstante essa falta de personalidade, o direito civil pátrio protege esse ente ainda em formação. Isso decorre da tradição romanística de nosso Direito, segundo a qual o feto, antes do nascimento, não é ainda uma pessoa, mas, se vem à luz como um ser dotado de direitos, a sua existência, no tocante aos seus interesses, retroage ao momento de sua concepção. Os direitos reconhecidos ao nascituro permanecem então em estado de potencialidade até o advento do nasci-mento, quando só então efetivamente se aperfeiçoam.

A lógica é muito clara: se o feto não nasce, ou se não nasce vivo, a relação de direito não chega a se formar. Nesse caso, nenhum direito será transmitido à mãe por intermédio do natimorto. É como se nunca houvesse ocorrido a con-cepção.

Surge logicamente a necessidade de precisar o momento no qual se reputa, para fins jurídicos, a regular constituição da vida. Quando temos efetivamente esse nascimento com vida tão aludido pelo direito? Segundo a lição de Caio Mário, “[a] vida do novo ser configura-se no momento em que se opera a pri-meira troca oxicarbônica no meio ambiente. Viveu a criança que tiver inalado ar atmosférico, ainda que pereça em seguida. Desde que tenha respirado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota a vida, mesmo que não tenha sido cortado o cordão umbilical, e a sua prova far-se-á por todos os meios, como sejam o choro, os movimentos, e essencialmente os processos técnicos de que se utiliza a medi-cina legal para a verificação do ar nos pulmões”.7

Não há que se falar em pré-condicionamentos de natureza temporal para o regular aperfeiçoamento da personalidade. Tendo nascido vivo, anda que depois pereça, constituiu-se enquanto ser, e, portanto, os direitos que se encontravam em estado potencial se aperfeiçoaram concomitantemente.

Conforme já abordado, todo ser humano é titular em caráter genérico de direitos, bastando para isso o seu nascimento com vida. Não obstante, não é somente ao homem que se confere personalidade, mas o direito igualmente a confere a outras entidades. É o caso de agrupamentos de indivíduos que se as-sociam para a consecução de uma atividade econômica ou social (sociedades e associações), ou que se forma com vistas à destinação de um patrimônio para um

6 Caio mário da silva Pereira. Institui-ções de Direito Civil, v. i. rio de Janeiro: forense, 2005. p. 142.

7 Caio mário da silva Pereira. Institui-ções de Direito Civil, v. i. rio de Janeiro: forense, 2005. p. 146.

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fim determinado (fundações). Qualquer que seja a figura de que se trate, o mais importante é constatar que tais entes são dotados de autonomia e independência em relação àqueles que lhe compõem.

Essa personalidade, que é conferida ao homem e aos entes por ele criados, não se estende a outros seres vivos. Hipóteses há em que a lei trata com especial consideração animais ou mesmo determinados objetos, contudo apenas o faz em atenção ao homem que delas se serve. A vedação à caça ou aos maus tratos, por exemplo, não é reflexo de uma eventual personalidade dos animais ou mesmo de direitos que estes eventualmente titularizem. Corporifica tão-somente a idéia de que, em determinadas situações, o sofrimento e perecimento destes são atenta-tórios ao direito do próprio homem.

Fim da personalidade civil

Essa mesma personalidade, que é adquirida com o nascimento com vida, termina com o advento da morte (CC, art. 6º). Estende-se, então, durante todo o período de vida do indivíduo. Somente com a morte, a aptidão para adquirir direitos que se iniciou com o nascimento irá se expirar, transferindo-se seu pa-trimônio8 aos herdeiros.

O direito atual não prevê hipótese alguma de perda da personalidade em vida, não constituindo exceção a previsão constitucional de cassação de direitos políticos.9 Também não há que se caracterizar como morte a presunção inserida no regramento da ausência, na medida em que esta se opera somente no que toca aos efeitos patrimoniais.

De ordinário, prova-se a morte pela certidão extraída do assento de óbito. Pode, contudo, ser provada por uma sentença declaratória do falecimento, e, nesse caso, o ônus da prova caberá àquele que possui interesse em provar que a pessoa esteja morta.10

comoriência

Reputam-se comorientes aquelas pessoas que falecem na mesma ocasião, de maneira a impossibilitar-se decifrar qual delas pré-morreu à outra. É o que pode ser facilmente visualizado, a título de exemplo, em hipóteses de incêndio, naufrá-gio ou queda de uma aeronave. Logicamente, existe a necessidade de valer-se de todos os recursos periciais possíveis no intento de descobrir o momento das mor-tes, e, nesse particular, o jurista recorre muitas vezes à seara da medicina legal.

É nessa hipótese de falha na apuração da precedência dos óbitos que se ado-tou como regra a simultaneidade das mortes. Segundo determina o art. 8º do CC-2002:

Art. 8º Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se po-dendo averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.

8 Patrimônio na acepção jurídica deve ser concebido como o conjunto de relações jurídicas de que o indivíduo é titular. dessa forma, transcende à simples ótica dos bens materialmente tangíveis.

9 art. 15 C.f “É vedada a cassação de di-reitos políticos, cuja perda ou suspen-são só se dará nos casos de: i- cance-lamento da naturalização por sentença transitada em julgado; ii – incapacida-de civil absoluta; iii – condenação cri-minal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; iv – recusa de cumprir obrigação a todos imposta ou prestação alternativa, nos termos do art. 5º, viii.”

10 a necessidade de prova pode ser exemplificada pelo art. 88 da lei de registros Públicos: “Poderão os Juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desa-parecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadá-ver para exame. Parágrafo único. será também admitida a justificação no caso de desaparecimento em campa-nha, provados a impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do artigo 85 e os fatos que convençam da ocorrência do óbito.”

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Os efeitos dessa presunção processam-se de forma que, entre os comorientes, não há transferência de direitos, ou seja, há uma impossibilidade de que um suceda ao outro. Não obstante, os outros herdeiros de cada um dos comorientes devem ser chamados à sucessão.

A questão é relevante, pois, dependendo da situação, pode implicar em uma série de efeitos do ponto de vista sucessório. O exemplo clássico remonta à situ-ação em que pai e filho são vitimados pelo mesmo acidente. A solução jurídica comportará enunciados inteiramente diferentes dependendo da apuração da or-dem das pré-mortes. Na impossibilidade dessa aferição, vale-se da comoriência.

registro civil de pessoas naturais

O registro civil de pessoas naturais possui suas origens na prática adotada pela Igreja Católica na Idade Média, segundo a qual os padres registravam o batismo, o casamento e o óbito dos fiéis. Justamente por esse motivo, o registro foi deixa-do a cargo da Igreja por um longo tempo.

Atualmente, os fatos atinentes ao estado das pessoas são averbados no Regis-tro Civil. O Registro Civil de Pessoas Naturais congrega duas funções essenciais: (i) por um lado, documenta informações de relevante interesse; e, (ii) por outro, confere publicidade a essas informações.

A par das finalidades já destacadas, existem ainda dois princípios que devem pautar a atividade dos registros públicos: o da fé pública e da continuidade. A fé pública constitui-se de uma presunção de veracidade das informações constantes dos atos registrais. O princípio da continuidade, por sua vez, pressupõe que to-das as informações atinentes ao indivíduo devem constar no registro para que se forme um histórico das situações jurídicas relevantes, sendo facultada a consulta por eventuais interessados.

capacidade

A capacidade, em sentido lato, congrega também a idéia de executoriedade de direitos da pessoa, correspondendo, assim, não só à possibilidade do indivíduo adquiri-los, mas também de os exercer de per se ou mediante a assistência de outrem. Embora sejam conceitos distintos, existe uma complementaridade entre personalidade e capacidade.

A capacidade subdivide-se em dois tipos distintos: a capacidade de direito, oriunda da personalidade, e a capacidade de fato, que é a aptidão para utilizar e exercer direitos por si mesmo. A primeira remete à idéia de capacidade de aquisi­ção, ao passo que a segunda implica numa capacidade de exercício.11

A capacidade de direito surge concomitantemente com a personalidade, isto é, tão logo ocorre o nascimento com vida. A vinculação entre capacidade de direito e personalidade é bem enunciada pela doutrina clássica. Do exposto, pode-se depreender uma conclusão: apenas da capacidade de fato decorre o ple-no exercício de direitos.

11 elucidativa também é a nomencla-tura oriunda da tradição francesa, em que a capacidade de direito correspon-de à capacidade de gozo e a capacidade de fato pressupõe a capacidade de exercício.

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No estudo sobre a personalidade jurídica, devemos ter em mente que capaci­dade é a regra e a incapacidade, a exceção. Ou seja, toda pessoa tem a capacidade de direito ou de aquisição, sendo presumida a capacidade de fato (ou de exercí-cio). Somente através de exceções de natureza legal o indivíduo pode ser privado da capacidade de fato. Assim, não constitui uma faculdade do indivíduo abdicar ou dispor de sua capacidade.

A incapacidade não denota forma alguma de restrição à personalidade ou à capacidade de direito. Os indivíduos por ela atingidos são afetados no exercício pessoal e direto dos direitos, e, portanto, a sua natureza nada mais é do que uma limitação à autonomia de agir no mundo jurídico. Importante ter em mente que essa limitação deve ser sempre interpretada de forma restrita (stricti iuris) e em consonância com a idéia já aqui exposta de que capacidade é a regra e incapaci-dade, a exceção.

Qualquer restrição ao exercício de direitos que resulte de ato jurídico, seja ele inter vivos ou causa mortis, não implica em incapacidade.

Outro preceito de grande importância que deve ser destacado na teoria acer-ca da incapacidade é o de que esta deriva exclusivamente da lei. É o legislador que determina as hipóteses em que o indivíduo será privado de sua capacidade e cabe ao intérprete visualizar essas restrições taxativamente. Esses dispositivos têm caráter de ordem pública.

Igualmente importante é evitar confundir incapacidade com a vedação que a lei impõe a algumas pessoas de pactuarem certos negócios jurídicos. É o caso, por exemplo, das hipóteses em que a lei taxa como defesa a possibilidade do tutor de adquirir bens do pupilo, ou, ainda, dos ascendentes alienarem bens a alguns descendentes sem o expresso consentimento dos demais. A lógica dessas vedações é a preservação da moralidade, e elas somente visam restringir, limita-damente, os atos por ela previstos.

A lógica que orienta a incapacidade é a proteção daqueles cujo discernimento é falho. Somente aqueles eivados de deficiências juridicamente relevantes devem ser alvo do instituto. Os incapazes são submetidos a um regime legal privilegia-do, cujo principal escopo é a preservação de seus interesses.

Atentando à extensão das deficiências, o Direito gradua o nível de incapa-cidade. Dessa forma, sendo o déficit psíquico menos ou mais severo, temos a possibilidade de que aquele por ele atingido seja determinado absoluta ou rela­tivamente incapaz.

Distinção que também deve ser destacada é aquela relativa à graduação da for-ma de proteção, no sentido de que aos relativamente incapazes assume o aspecto da assistência e, em relação aos absolutamente incapazes, o da representação.

distinção entre incapacidade relativa e absoluta

O elenco dos absolutamente incapazes está previsto no artigo 3º do CC-2002, ao passo que os relativamente incapazes encontram-se no artigo 4º do mesmo diploma. Grosso modo, pode-se dizer que a distinção entre incapacidade absoluta

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e relativa é apenas de grau. As incapacidades decorrem ou da idade imatura ou de uma deficiência física e mental determinada. O citado artigo 3º assim dispõe sobre a matéria:

Art. 3º São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:

I – os menores de dezesseis anos; II – os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário

discernimento para a prática desses atos;III – os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

O artigo 4º do CC-2002, por sua vez, considera relativamente incapazes aqueles que:

Art. 4º São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:I – os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência men-

tal, tenham o discernimento reduzido;III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;IV – os pródigos.Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação

especial.

Atentando-se à redação da lei, pode-se observar que aos absolutamente inca-pazes é defesa a prática, de forma autônoma, de quaisquer atos jurídicos. A nor-ma desconsidera a sua vontade, não sendo a mesma qualificada como elemento válido para o aperfeiçoamento de relações jurídicas.

Se, ao arrepio da lei, o absolutamente incapaz pratica um ato jurídico, através de sua própria manifestação de vontade, isto é, não se valendo aqui de repre-sentante legalmente constituído, este ato deve ser reputado nulo. É o definido pelo art. 166, I, do CC-2002, que prescreve ser nulo o negócio jurídico quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz.

Situação distinta é a da capacidade relativa, pois nela a inaptidão físico-psí-quica dos beneficiários é menos pronunciada. O julgamento da realidade nessas pessoas não se opera com perfeição, mas também não deve ser de todo despre-zado. A liberdade para agir no mundo jurídico é restringida, mas não de todo anulada, sendo ainda condicionada, para sua regular validade, a intermediação de um assistente. Esse assistente, pessoa plenamente capaz, é quem aconselhará o relativamente incapaz.

Os atos praticados por relativamente incapaz são passíveis de anulação. Con-tudo, uma vez submetido tal ato à anuência do assistente, ele será convalidado e terá força cogente equivalente aos atos que desde o seu início perfeitamente se constituem.

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incapacidade absoluta

Absolutamente incapazes, como visto, são aqueles que detêm direitos, podem adquiri-los, mas são desabilitados a exercê-los. Sendo apartados de atividades civis, não participam direta e pessoalmente de qualquer negócio jurídico.12 Con-trariando-se essa vedação que a lei os imprime, o ato será nulo de pleno direito.

Os indivíduos que se encontram nessa situação valem-se de representantes que os substituem por completo na prática de todos os atos atinentes à vida civil. A representação pode se dar de duas formas: automaticamente, ou por nomeação ou designação de autoridade judiciária.

A representação processa-se de forma automática quando, em virtude de re-lações de parentesco, ocorrem as hipóteses legais já determinadas. No caso de nomeação, o representante adquire esse status em virtude de ato judicial.

A incapacidade absoluta ou está relacionada à idade ou à enfermidade mental. Os preceitos legais versam exclusivamente sobre essas duas causas.

Incapacidade absoluta dos menores de dezesseis anos – A lei parte do pressuposto de que indivíduos de pouca idade são naturalmente inaptos ao exercício de atos da vida civil. Essa incapacidade é decorrente da falta de discernimento e matu-ridade que o legislador crê que somente o transcurso dos anos é capaz de dotar o indivíduo.

Nesse particular, chama maior atenção que a fixação da idade de 16 anos para o fim da incapacidade absoluta é inovação do CC-2002. No Direito anterior, esse estado alongava-se até os 18 anos.

Os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discer­nimento para a prática desses atos – O inciso II do art. 3º refere-se àqueles que, ao apresentarem problemas psíquicos, ficam impossibilitados de se autogovernar. No entanto, a decretação da incapacidade depende de um processo de interdi-ção, o qual é disciplinado pelos artigos 1.177 e seguintes do CPC, processo esse em que o interditando valer-se-á dos meios legais para impedir tal provimento jurisdicional. No processo de interdição, o juiz valer-se-á dos meios de prova, em particular de laudo pericial médico. A participação do Ministério Público também é necessária.

Também é relevante a questão de saber se são válidos os atos praticados pelo amental anteriormente à sentença que declare a sua interdição. A problemática aqui enunciada remete a dois interesses conflitantes: por um lado, encontra-se o amental, que tendo seu discernimento maculado, pratica atos que lhe são desfa-voráveis e é por conta disso, alvo de uma especial consideração por parte da lei; por outro lado, encontra-se o interesse do terceiro de boa-fé que com ele contra-ta. A possibilidade de anulação do ato jurídico poderá causar o inconveniente da falta de segurança jurídica.

A questão é controvertida tanto em campo doutrinário como jurisprudencial. Autores e juízes demonstram inclinações diversas, e somente a análise da situa-ção casuística representa o fator determinante para a invalidação ou não de atos praticados pelos amentais antes de sua interdição.

12 Caio mário da silva Pereira. Institui-ções de Direito Civil, v. i. rio de Janeiro: forense, 2005. p. 169.

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A boa-fé do contratante que negocia com o amental consubstancia-se numa série de condutas que devem ser necessariamente observadas. Assim, por exem-plo, se o contratante tinha conhecimento do estado de afetação intelectiva da outra parte, se a alienação era evidente, se a apuração da condição de incapa-cidade podia ter sido feita, ou, ainda, se as próprias condições do negócio já induziam que o contratante não estaria procedendo de forma coerente, não há que se falar em boa-fé.

Má-fé e boa-fé, valendo-nos aqui de uma alegoria muito utilizada, não são campos limítrofes, separados por uma tênue fronteira. Não existe uma delimita-ção precisa. Existe, em verdade, uma grande “região cinzenta” que separa a boa-fé da má-fé. Por conseguinte, o fato de um contratante não agir deliberadamente de má-fé não implica na necessária retidão de conduta do mesmo.

A boa-fé perpassa a idéia de não agir em desfavor da parte contrária com o intuito de angariar vantagem, consubstanciando-se muitas vezes num atuar positivo, diligente e que congrega elementos de ordem moral. Não obstante, como se observa, o entendimento no sentido de tornar nulo o ato executado por incapaz já foi diversas vezes afirmado nos tribunais:

Nulidade de ato jurídico praticado por incapaz antes da sentença de interdi-ção. Reconhecimento da incapacidade e da ausência de notoriedade. Proteção do adquirente de boa-fé. Precedentes da Corte.

1. A decretação da nulidade do ato jurídico praticado pelo incapaz não depen-de da sentença de interdição. Reconhecida pelas instâncias ordinárias a existência da incapacidade, impõe-se a decretação da nulidade, protegendo-se o adquirente de boa-fé com a retenção do imóvel até a devolução do preço pago, devidamente corrigido, e a indenização das benfeitorias, na forma de precedente da Corte.

2. Recurso especial conhecido e provido.13

Essa posição fica mais defensável quando se verifica que, na legislação pro-cessualista brasileira, a sentença proferida no processo de interdição tem efeito declaratório. Não se trata de provimento constitutivo, não é o decreto de inter-dição, que cria a incapacidade, mas, sim, o pré-constituído estado de alienação mental.

O desfazimento do negócio, quando determinado, não pode implicar em prejuízo ainda maior para aquele que acreditava dele extrair todos os efeitos esperados. No caso apresentado, apesar do desfazimento do ato de caráter nego-cial, os valores empregados na conservação e aprimoramento do imóvel alienado pelo incapaz devem ser ressarcidos.

Contudo, a invalidação dos atos não é questão absolutamente pacífica. Jul-gados há que, dispondo em sentido oposto, prescrevem que, em homenagem ao contratante de boa-fé, é imperioso não desfazer o ato jurídico celebrado antes da sentença que decrete a incapacidade absoluta. Os autores que defendem a continuidade do negócio, postulando a primazia da boa-fé, asseveram que essa deve restar clara, facilmente perceptível.

13 stJ, resp nº 296895/Pr, min. Carlos alberto direito; j. em 29.06.2004.

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Os que, mesmo por motivo transitório, não puderem exprimir a sua vontade – Não só a vontade deve ser livre em sua construção, fruto da perfeita elaboração intelectiva do agente. Ela deve se pronunciar igualmente sob forma desemba-raçada, deve ser livre em sua exteriorização. Se essa segunda consideração é au-sente na manifestação de vontade, o ato simplesmente carecerá de seu elemento gerador.

incapacidade relativa

Os relativamente incapazes não são de todo privados da capacidade de fato. O diferencial aqui não é a incapacidade de se autodeterminar, pois os relativa-mente incapazes possuem discernimento que não pode ser desconsiderado pelo Direito. É por conta dessa constatação que eles se encontram a meio caminho entre a incapacidade plena e o livre exercício de prerrogativas jurídicas.

Nos atos da vida civil, exige a lei que sejam eles assistidos por quem o Direito Positivo encarrega desse ofício – em razão do laço de parentesco ou em virtude de relação de ordem civil, ou ainda por designação judicial.

Como já ressaltado nas considerações gerais que versam sobre a capacidade, os atos praticados por relativamente incapaz não são nulos de pleno direito, mas apenas anuláveis. Uma vez ratificados pelo assistente do incapaz, nenhum outro vício poderá ser argüido contra eles. São entendimentos que também se encon-tram expressos na lei, nos artigos 171 e 172 do Código Civil:

Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negó-cio jurídico:

I – por incapacidade relativa do agente;II – por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou frau-

de contra credores. (grifo nosso);Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito

de terceiro.

O CC-2002 considera como relativamente incapazes os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos. Aqui se admite que o indivíduo já tenha alcançado de-terminado desenvolvimento intelectual e que, portanto, não há que se desprezar a sua vontade. Seguindo a lógica da incapacidade relativa, para que seus atos sejam reputados válidos, a lei prevê a anuência de seu pai ou tutor. Contudo, quem atua no negócio jurídico é o próprio menor, sendo a sua vontade a real mola propulsora do negócio a ser celebrado.

Ao definir a incapacidade relativa entre dezesseis e dezoito anos, o CC-2002 harmonizou-se com as regras eleitorais e com a maioridade penal. Se o menor púbere realiza ato jurídico sem a assistência de seu representante, esse ato será passível de anulação, tanto pelo menor como por seu assistente legal. Contudo, o Direito pauta-se também pela regra de que a ninguém é dado beneficiar-se de sua própria torpeza, e, dessa forma, aquele que dolosamente age, enganando

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o outro contratante, não pode encontrar acolhida no direito. É o que dispõe o art. 180:

Art. 180. O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquiri-do pela outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior.

Além aqueles de idade superior a dezesseis e inferior a dezoito, o Código alo-ca entre os relativamente incapazes outras figuras. É o caso dos ébrios habituais, dos viciados em tóxicos e daqueles eivados de deficiência mental – deficiências essas que, ao contrário da enunciada no art. 3º, não obsta a prática de atos civis.

A norma volta-se à idéia de que os indivíduos eivados desses impedimentos são alcançados por uma redução do seu discernimento. Contudo, é incumbência da jurisprudência nacional estabelecer o que será, exatamente, este discernimen-to reduzido de que trata a norma.

Pródigo é aquele que, desordenadamente, gasta e destrói o seu patrimônio. A proteção inspira-se no relevante interesse social de proteção de sua família e da própria integridade patrimonial do titular, sendo a incapacidade decretada judicialmente por requisição do cônjuge ou de outro familiar.

A sua interdição e a conseqüente necessidade de assistência não se operam em relação à prática de todos os atos. Concernem apenas àqueles que possam impli-car em redução de seu patrimônio e ao interesse de sua família representado no mesmo. Os demais atos da vida civil poderão ser livremente praticados.

A capacidade dos indígenas, por sua vez, é regulada em legislação especial, qual seja, o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73), o qual erige normas que aten-tam à especial condição das comunidades indígenas aos costumes que lhes são próprios.

antecipação de maioridade

A antecipação de maioridade é tão-somente a aquisição da capacidade civil antes da idade de dezoito anos, legalmente instituída. Em regra, a capacidade de fato só é conferida ao indivíduo a partir do momento em que este adquire dezoi-to anos; contudo, o art. 5º prevê determinadas situações em que há inconveni-ência de obstar a prática pelos menores de dezoito anos de determinadas ações.

Art. 5º A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.

Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:I – pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instru-

mento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz, ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;

II – pelo casamento;III – pelo exercício de emprego público efetivo;

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IV – pela colação de grau em curso de ensino superior;V – pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de

emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha economia própria.

A hipótese do inciso I é a possibilidade de antecipação voluntária de maio-ridade, que deve contar ou com a anuência das figuras paterna e materna ou com sentença judicial. Vale destacar que a exigência da participação de ambos os progenitores nesse ato é obrigatória e decorrente da dicção constitucional que prevê igualdade plena de direitos entre homem e mulher.

Os demais casos de antecipação, inseridos nos incisos II a V, são situações expressamente consideradas por preceito legal, em que o legislador reputa como inconveniente que ao menor seja vetada a capacidade de fato. Em qualquer dos casos previstos nesse artigo, a revogação da capacidade de fato antecipada é im-possível.

QuEstõEs dE concurso

XXXVI Concurso para o Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do Rio de Janeiro. Prova Preliminar – Direito Civil1. Agente incapaz demanda, devidamente representado, a anulação de contrato, alegando que, quando de sua celebração, não estava apto a entendê-lo e querê-lo. A contraparte comprova que o ato não causou prejuízo ao incapaz. Procede o pedido de anulação?

Curso de Preparação à Carreira de Magistratura (EMERJ)Prova Preliminar (outubro/1999)3. Diz o artigo 4º do Código Civil que: “A personalidade civil do homem co-meça do nascimento com vida; mas põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro.”Pergunta: Tendo o legislador determinado que a aptidão genérica para exercer direitos e contrair obrigações somente se inicia após o nascimento com vida, como se explica a possibilidade de um nascituro receber uma doação já que este não possui personalidade jurídica?

Concurso para ingresso no cargo de Advogado de Empresa – BNDES (2002)6. Se o menor tiver idade superior a dezoito anos, os pais podem conceder-lhe a emancipação, dada por escritura pública ou particular, cessam a incapacidade,

(a) pela declaração de ausência dos pais.(b) pela habilitação para dirigir veículos automotores.(c) pela habilitação e conhecimento da língua portuguesa.

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(d) pelo estabelecimento, com recursos próprios, de sociedade civil ou co-mercial.

(e) pelo ingresso em curso superior, através de concurso vestibular.

Exame da Ordem – OAB/SP (concurso nº 126)29. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:

(a) representá-los, até os 18 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento.

(b) conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casar, sendo impossível o suprimento judicial nesse caso.

(c) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha, fazendo uso da própria for-ça, independente de autorização do poder judiciário.

(d) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição, sem prejuízo de sua formação.

Exame da Ordem – OAB/SP (concurso nº 125)21. São absolutamente incapazes os menores de

(a) 16 anos; os ausentes; os que não puderem exprimir sua vontade, em razão de causa permanente.

(b) 18 anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário discernimento para os atos da vida civil; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo.

(c) 16 anos; os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem ne-cessário discernimento para os atos da vida civil; os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.

(d) 16 anos; os ébrios habituais; os pródigos; os toxicômanos.

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AuLA 4. CONCEITOS ESTRuTuRAIS – DIREITOS DA PERSONALIDADE

EmEntário dE tEmas

Direitos da Personalidade – Teorias negativistas do século XIX – Afirmação no século XX – Características dos direitos da personalidade – Classificação – O problema da fonte dos direitos da personalidade – Teoria Monista e Pluralista – (atividade em sala)

atividadE Em saLa

Análise do Capítulo de direitos da personalidade do Código Civil (arts. 12 a 21)

LEitura obrigatória

DONEDA, Danilo. “Os Direitos da Personalidade no novo Código Civil”, in TEPEDINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. pp. 35-58.

LEituras compLEmEntarEs

CAMPOS, Diogo Leite de. “Lições de Direitos da Personalidade”, In Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1991, pp. 129-223.

PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado, tomo VII. Campinas: Booksellers, 2000. pp. 29-40.

TEPEDINO, Gustavo. “A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro”, in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Re-novar, 2004. pp. 23-54.

1. rotEiro dE auLa

Os estudos jurídicos sobre a personalidade e a conseqüente elaboração de uma teoria dos direitos da personalidade remontam ao final do século XIX. Os primeiros tratadistas a se debruçar sobre o tema, todavia, assim o fizeram para refutar a possibilidade de construção de uma teoria jurídica legítima sobre um objeto tão abstrato.

Esse panorama foi gradualmente sendo alterado pela necessidade, cada vez mais evidente – sobretudo na primeira metade do século XX –, de do-

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tar o Direito de mecanismos eficientes para tutelar a dignidade da pessoa humana.

Visando atingir esse objetivo, percebeu-se que seriam ineficazes apenas me-didas de natureza política, econômica ou social. A coerção do ordenamento jurídico precisava ser utilizada para que a pessoa humana fosse protegida con-tra violações à sua dignidade. Sendo assim, os juristas dedicaram-se ao tema, elaborando-se uma teoria jurídica sobre a personalidade, que evoluiu do inicial repúdio à noção de que a personalidade poderia ser objeto de direito, até a sua mais ampla proteção.

O Direito Civil, em especial, recepcionou a matéria em estudo na “parte ge-ral” dos Códigos, tratados e manuais. Buscando suprir a mencionada demanda por uma tutela da pessoa pelo Direito, os civilistas reuniram-se em torno de uma teoria geral dos chamados “direitos da personalidade”, hoje largamente sistema-tizada.

Todavia, cumpre se explicar – ainda que detidamente – a evolução do pen-samento jurídico sobre a tutela da personalidade, iniciando-se pelas teorias que negavam a possibilidade de um estudo jurídico sobre o tema.

teorias negativistas dos direitos da personalidade

Apesar da consagração dos direitos humanos nas Cartas de Direitos do sécu-lo XIX, a dogmática do Direito Civil encontrou dificuldades em reconhecer a existência de direitos atinentes à personalidade humana. Surgiram, assim, ques-tionamentos sobre a natureza e a amplitude desses direitos.

Grande parte das teorias negativistas dos direitos da personalidade sustentava que a personalidade, entendida como a titularidade de direitos, não poderia atuar em uma relação jurídica como sujeito e objeto desses direitos concomitantemen-te. Tratar-se-ia de uma confusão de papéis inadmissível para a teoria civilística.

Conforme entendimento defendido por Jellinek, a vida e a honra de um in-divíduo, por exemplo, não pertenceriam à categoria do ter, mas, sim, à categoria do ser. Dessa forma, não poderiam ser compatibilizadas com a noção de direitos subjetivos, os quais teriam aplicação restrita à seara das relações jurídicas de cunho patrimonial.14

O cerne da discussão sobre a existência dos direitos da personalidade remonta à concepção de alguns autores de que esse instituto, se adotado, terminaria por conferir ao indivíduo um poder absoluto sobre a sua própria pessoa. Em última instância, estar-se-ia legitimando o suicídio.

Não sendo possível, portanto, conceder aos direitos da personalidade o ca-ráter de direitos subjetivos, pois se estaria conferindo à vontade individual a faculdade de dispor sobre características fundamentais do ser humano (como a vida), restava apenas a proteção do ordenamento jurídico contra lesões através do manejo da responsabilidade civil.

A presença preponderante da vontade individual na configuração dos direitos subjetivos pode ser notada na seguinte afirmação de Andreas Von Thur:

14 Apud gustavo tepedino. Temas de Direito Civil. riode Janeiro: renovar, 2001. p. 25.

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El concepto de derecho subjetivo, tal como lo desarrollamos en el §1, no es más que una abstracción de los derechos que tienen por sujeto al ser humano; el señorío de la voluntad, en que esencialmente consiste, es un carácter exclusivo del hombre – si se prescinde de los entes creados por el orden jurídico –, así como constituyen fines esen­cialmente individuales los intereses a cuyo servicio el señorío de la voluntad se destina, esto es, la conservación de la existencia y el logro de los propósitos que el individuo elige libremente.15

Não tardou para que as teorias negativistas começassem a ser contestadas, reconhecendo-se a relevância do estudo da personalidade para o Direito. A partir desse momento, é importante notar que as obras doutrinárias que abordaram o tema analisaram a personalidade através de um prisma essencialmente estrutu-ral, isto é, buscando inserir a personalidade ora na figura do sujeito das relações jurídicas ora na posição de objeto a ser tutelado.

Segundo o ponto de vista estrutural, a pessoa representa nas relações jurídicas subjetivas o sujeito de tais situações. Identificando-se a pessoa com a figura do sujeito de direito – o titular das relações jurídicas –, a personalidade terminaria por se confundir com a própria capacidade jurídica.

Essa concepção de pessoa pode ser percebida em diversos tratados e manuais de Direito Civil do século XIX e, ainda, em obras clássicas do século XX. Nessa direção, manifesta-se Pontes de Miranda:

Rigorosamente, só se devia tratar das pessoas, depois de se tratar dos sujeitos de direito; porque ser pessoa é apenas ter a possibilidade de ser sujeito de direito. Ser sujeito de direito é estar na posição de titular de direito. [...] Se alguém não está em relação de direito não é sujeito de direito: é pessoa; isto é, pode ser sujeito de direito, além daqueles direitos que o ser pessoa produz.16

A partir do enunciado acima, conclui o tratadista que:

A personalidade é a possibilidade de se encaixar em suportes fáticos, que, pela incidência das regras jurídicas, se tornem fatos jurídicos; portanto, a possibilida-de de ser sujeito de direito.17

Adotando conceituação diversa, é possível ainda observar a personalidade como o conjunto de atributos da pessoa humana, sendo assim objeto de tutela pelo ordenamento jurídico. Tomando-se a personalidade como valor, deve-se levar em conta a plêiade de características indispensáveis ao ser humano que emanam da personalidade e demandam, portanto, a devida proteção jurídica.

Nesse sentido, cumpre transcrever a célebre lição de San Tiago Dantas sobre a distinção entre personalidade e capacidade jurídica:

A palavra personalidade está tomada, aí, em dois sentidos diferentes. Quando falamos em direitos da personalidade não estamos identificando aí a personalida-

15 andreas von thur. Derecho Civil, vol. 1. madrid: marcial Pons, 1999. p. 371.

16 f. Pontes de miranda. Tratado de Direito Privado, tomo i. rio de Janeiro: borsoi, 1952. p. 153.

17 Idem, ibidem, p. 153.

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de como a capacidade de ter direitos e obrigações; estamos então considerando a personalidade como um fato natural, como um conjunto de atributos inerentes à condição humana; estamos pensando num homem vivo que é a capacidade jurídica em outras ocasiões identificadas com a personalidade.18

A capacidade jurídica, entendida como a legitimidade para o exercício de direitos, encontra-se disciplinada no Código Civil (artigo 1º) e não se confunde com a personalidade19, cujo início se dá com o nascimento com vida. Sua du-ração coincide com a da vida humana, extingüindo-se com a morte, natural ou presumida (i.e., a ausência).

Pode-se reconhecer, portanto, duas correntes: (i) aquela que identifica a per-sonalidade com o sujeito de direitos e obrigações, compreendendo ser impossível o reconhecimento de direitos da personalidade pela concomitância nas posições de sujeito e objeto das relações jurídicas; e (ii) aquela que, buscando legitimar a existência dos direitos da personalidade, considera que o objeto das relações jurídicas seriam seus atributos essenciais.

o reconhecimento da personalidade como objeto de direito

Há, como visto, quem defina os direitos da personalidade como aqueles ati-nentes à utilização e à disponibilidade de certos atributos inatos ao indivíduo, como projeções biopsíquicas da pessoa humana, constituindo, assim, bens jurí-dicos assegurados e disciplinados pelo ordenamento.20

A doutrina, ao admitir a personalidade como objeto de direito, buscou su-perar o dogma da impossibilidade de serem coincidentes a pessoa e o objeto de uma relação jurídica. Os direitos da personalidade seriam, portanto, direitos cujo objeto são bens jurídicos que se convertem em projeções físicas ou psíquicas da pessoa humana, por determinação legal, que os individualiza para lhes dis-pensar proteção.21 Dessa forma, não se há de confundir o objeto – as projeções que merecem tutela jurídica – com a personalidade.

O reconhecimento das projeções da personalidade como objeto das situações jurídicas mostrou-se, como se verá mais à frente, uma importante tentativa de afirmação dos direitos da personalidade. Todavia, a busca doutrinária por um objeto externo à pessoa para garantir a legitimidade da categoria dos direitos da personalidade denota ainda um apego à forma de configuração dos direitos subjetivos patrimoniais.

Inserida em um substrato que privilegia a concepção de direito subjetivo como um direito essencialmente patrimonial, a teoria dos direitos da personali-dade sempre padeceu da necessidade de se buscar um objeto externo ao sujeito. Essa ótica remonta à estrutura dogmática dos direitos patrimoniais, conforme explicita Alexandre Ferreira de Assumpção Alves:

Os bens externos dão origem a vários direitos de ordem patrimonial, sobre os quais o homem exerce suas faculdades de apropriação, de domínio. Quanto aos

18 san tiago dantas. Programa de Di-reito Civil, v. i. rio de Janeiro: editora rio. p. 192.

19 segundo luiz edson fachin: “o que a capacidade faz, na verdade, é informar a medida da personalbidade e o grau da sanção que se volta contra o não-atendimento a esse requisito.” (Teoria Crítica do Direito Civil. rio de Janeiro: renovar, 2000. p. 32). acrescenta, ain-da, o referido autor que “a capacidade é só uma medida da personalidade” (p. 36).

20 serpa lopes. Curso de Direito Civil. rio de Janeiro: freitas bastos, 1989. p. 205.

21 orlando gomes. Introdução ao Direito Civil. rio de Janeiro: forense, 1997. p. 131.

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internos, estes compõe uma categoria própria de direitos, que são os direitos da personalidade, cujas características específicas os distinguem dos demais.22

As teorias criadas sob o manto do reconhecimento dos atributos, característi-cas ou radiações da personalidade como objeto da relação jurídica subjetiva po-dem ser identificadas pela prática comum de se buscar um bem jurídico que não se identificasse com a pessoa, uma vez que as utilidades sobre as quais recaem os interesses patrimoniais do indivíduo lhe são sempre exteriores.

Todavia, essa estrutura não se enquadra no que tange às relações jurídicas não-patrimoniais. Não cabe ao civilista do século XXI utilizar estruturas per-tencentes a construções doutrinárias pretéritas se as mesmas, além de não se adaptarem com perfeição à situação que se busca tutelar, ainda conferem apenas uma proteção ineficiente.

Ao se buscar um objeto externo ao sujeito para validar a fórmula dos direitos da personalidade, a doutrina terminou por não vislumbrar toda a potencialidade dessa categoria, persistindo em um modelo que apenas contribuiu para operar como fator de limitação de sua efetiva atuação.23

A partir do preceito constitucional que elege a dignidade da pessoa humana como fundamento da República brasileira (art. 1º, III, da CFRB), cabe ao ci-vilista optar por uma nova dogmática dos chamados direitos da personalidade, definindo a sua situação jurídica de forma consoante com a complexidade da realidade social.

Cumpre, portanto, que se reconheça os direitos da personalidade como aque-les direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais a sua dignidade e integridade.24

Afirmada essa trajetória teórica de afirmação dos direitos da personalidade, em seguida serão abordados alguns pontos de relevo na dogmática dos mencio-nados direitos, com destaque para as suas características e classificações, ambas delineadas pela doutrina, bem como o problema da fonte dos direitos da perso-nalidade e o embate entre as teorias monistas e pluralistas.

características dos direitos da personalidade

Os direitos da personalidade possuem algumas características que lhes são conferidas por grande parte dos estudos doutrinários. Embora exista alguma discussão sobre a sua correta enumeração, pode-se reduzir as características dos direitos da personalidade a seis, quais sejam: (i) a generalidade; (ii) a extra-patri-monialidade; (iii) a indisponibilidade; (iv) o caráter absoluto; (v) a imprescitibi-lidade; e (vi) a intransmissibilidade.

Por generalidade entende-se que os direitos da personalidade são natural-mente concedidos a todos pelo simples fato de se estar vivo. Essa relação entre a carcaterísitca da generalidade e a simples existência da pessoa faz com que alguns autores utilizem a expressão “direitos inatos”. Todavia, a terminologia deve ser evitada, uma vez que estabelece uma conotação jusnaturalista para o estudo da

22 alexandre ferreira assumpção alves. A Pessoa Jurídica e os Direitos da Per-sonalidade. rio de Janeiro: renovar, 1998. pp. 58-59.

23 danilo doneda. “os direitos da perso-nalidade no novo Código Civil”, in gus-tavo tepedino. A Parte Geral do Novo Código Civil. rio de Janeiro: renovar, 2003. p. 45.

24 Conforme enunciado por gustavo tepedino, no Temas, cit., p. 24.

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tutela da pessoa humana, o que implica em uma tomada de posição quanto à fonte dos direitos da personalidade.25 Segundo o entendimento jusnaturalista, os mencionados direitos seriam pré-existentes à ordem jurídica, independendo de qualquer conformação legislativa.

Adicionalmente, deve-se esclarecer que, entre o rol de direitos da personali-dade em espécie, usualmente estabelecido pela doutrina, alguns direitos não são adquiridos pelo simples fato de a pessoa existir. Nesse particular, o direito moral do autor, reconhecidamente um direito da personalidade, requer que uma obra do espírito seja efetivamente realizada para que sobre o autor recaia a proteção do direito.

A extrapatrimonialidade dos direitos da personalidade impõe que se faça uma observação preliminar, segundo advertência de Santos Cifuentes: a referida ca-racterística significa apenas que os direitos da personalidade não poderão ser objeto de apreciação pecuniária, mas essa circunstância não implica que os mes-mos sejam incapazes de produzir efeitos econômicos.26 Trata-se de duas situações distintas.

Vale destacar que essa característica não impede que a lesão a direito da per-sonalidade resulte em indenização pecuniária, pois a mesma se insere no campo da responsabilidade civil, buscando apenas garantir o equivalente daqueles bens personalíssimos que constituem o objeto dos direitos da personalidade.27

Assim, mesmo não sendo possível apreciar o valor pecuniário de um direi-to da personalidade, a pessoa poderá se valer de sua utilização para obter um retorno de ordem econômica. Já conectando essa discussão com o problema da indisponibilidade, complementa Gilberto Haddad Jabur que os direitos da personalidade:

[P]or dizerem mais ao conteúdo físico, moral ou espiritual do homem, do que ao seu acervo material, não se imiscuem com o patrimônio, na acepção coloquial deferida ao termo, mas sobre ele exercem influência, porquanto podem, pela limitação de seu exercício (ou limitação parcial e voluntária de vontade), empres-tar utilidade econômica. É o caso da permissão de uso ou venda da imagem e da divulgação de dados íntimos, através ou não de contraprestação pecuniária. Não se trata de consagrar a disposição desses bens, posto intransmissíveis e por isso indisponíveis, mas de temporária autorização, o que amiúde ocorre para a sua utilização e exploração econômica.28

A indisponibilidade trata da impossibilidade do titular dos direitos da per-sonalidade para dispor desses direitos conforme o seu livre alvitre, tornando-os igualmente irrenunciáveis e impenhoráveis. Dessa forma, existe uma relação de complementaridade entre a extrapatrimonialidade – que, como visto, permite que a pessoa autorize a utilização de direito da personalidade em troca de com-pensação financeira – e a indisponibilidade desses direitos.

De fato, a indisponibilidade de que trata a doutrina deve ser relativizada, na medida em que algumas faculdades emanadas dos direitos da personalidade

25 santos Cifuentes utiliza-se da ex-pressão “direitos inatos”, mas adverte que o sentido em que a emprega parte de uma “depuração prévia de idéias advindas das ressonâncias históricas que a palavra produz”. assim, quando o autor refere-se a “direitos inatos”, ele está a se referir a direitos que nascem com o próprio sujeito, a partir do iní-cio de sua respiração vital, “estando indefectivelmente unidos ao homem enquanto subiectum iuris” (Derechos Personalísimos. buenos aires: astrea, 2ª ed., 1995. pp. 175-176).

26 santos Cifuentes. Derechos Personalí-simos, cit., pp. 183-184.

27 Conforme dicção de alexandre fer-reira de assumpção alves. A Pessoa Jurídica, cit., p. 66.

28 gilberto Haddad Jabur. Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada. são Paulo: revista dos tribunais, 2000. pp. 48-49.

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permitem a contraprestação pecuniária. O direito à imagem é o exemplo sempre mencionado nesse sentido.29 Nessas circunstâncias, o direito permanece intacto, apenas sendo cedidas temporariamente algumas de suas potencialidades.30

Seguindo-se a enumeração de suas características, os direitos da personalidade são absolutos na medida em que os mesmos são oponíveis erga omnes, impondo-se a todos os terceiros o dever de respeitá-los. Essa característica pode ser então enunciada como verdadeira decorrência da obrigação geral de abstenção inscrita no princípio neminen laedere.

A utilização do termo “absolutos”, todavia, parece imprecisa na medida em que não se procura defender, com essa característica, o entendimento de que os direitos da personalidade sempre prevalecerão e serão aplicados, mesmo quando em conflito com direitos de outra natureza.31 Como se sabe, diversas são as hipó-teses de colisão entre os direitos da personalidade, demandando-se uma análise no caso concreto com o escopo de se averiguar qual direito prevalecerá e qual terá o seu campo de atuação reduzido nessa específica situação. Por isso, deve-se evitar a utilização do termo “absolutos”, renomeando-se essa característica para uma expressão centrada apenas na possibilidade de oponibilidade dos direitos da personalidade de modo erga omnes.

A imprescritibilidade faz perdurar no decurso do tempo a pretensão relativa à reparação de dano causado a direito da personalidade e a intransmissibilidade, que, por sua vez, impede que os direitos da personalidade venham a ser transfe-ridos com a morte de seu titular. Há de se observar, inclusive, que alguns direitos da personalidade, mais notadamente o direito de imagem, permanecem tutela-dos mesmo após a morte de seu titular, discutindo a doutrina se essa proteção deriva de um direito próprio das pessoas que defendem a imagem do de cujus ou de um prolongamento dos efeitos do direito da pessoa falecida.

classificação dos direitos da personalidade

À parte das características apontadas dos direitos da personalidade, a doutri-na usualmente classifica-os para fins didáticos, ainda que essas classificações não encontrem uma utilidade prática mais evidente do que propiciar a organização temática dos referidos direitos.

Assim, as classificações geralmente expõem a existência de dois grupos dis-tintos de direitos da personalidade: (i) os direitos à integridade física; e (ii) os direitos à integridade moral. Dentre os direitos à integridade física encontrar-se-iam o direito à vida, ao corpo, às partes separadas do corpo e ao cadáver. Na classificação dos direitos à integridade moral estariam subsumidos os direitos à honra, à imagem, à privacidade, ao nome e o direito moral do autor.

Limonge França, por seu turno, critica essa classificação, propondo que se opera a divisão dos direitos da personalidade de acordo com aspectos específicos da personalidade, que, em seu entender, seriam o aspecto físico, o intelectual e o moral. Dessa forma, a classificação dos direitos à integridade física incluiria o direito sobre o corpo (vivo ou morto, próprio ou alheio) e sobre as partes separa-

29 vide, por exemplo, francesco galga-no. Diritto Civile e Commerciale, vol. i. Padova: Cedam, 1990. p. 151.

30 gilberto Haddad Jabur. Liberdade de Pensamento, cit., p. 55.

31 gilberto Haddad Jabur. Liberdade de Pensamento, cit., p. 74.

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das do corpo (vivo ou morto); os direitos à integridade intelectual abrangeriam o direito à liberdade de pensamento, o direito pessoal do autor artístico e cien-tífico, bem como o direito do inventor; por fim, os direitos à integridade moral seriam o direito à liberdade política, civil e religiosa, o direito à honra, ao recato, ao segredo, à imagem e à identidade.32

Como se pode perceber, a questão da classificação dependerá das escolhas de cada autor sobre os critérios para efetuar a classificação, bem como sobre os direitos da personalidade em espécie que constaram como seus elementos.

a controvérsia sobre a fonte dos direitos da personalidade

O conceito jurídico de pessoa e os direitos que lhe são atinentes correspondem a tema largamente explorado pela Filosofia do Direito. Para que se compreenda corretamente a controvérsia sobre a fonte dos direitos da personalidade, cumpre-se tecer breves comentários sobre a localização da questão da tutela da pessoa fren-te à discussão jusfilosófica que contrapõe o direito natural ao direito positivo.

A partir dessas considerações, será possível perceber as virtudes e as vicissitu-des das teorias que procuram determinar a origem dos direitos da personalidade, seja na natureza humana ou na instituição da ordem jurídica.

A grande maioria dos autores brasileiros, ao abordar a questão da fonte dos direitos da personalidade, compartilha da tese de que tais direitos são pré-exis-tentes ao ordenamento jurídico, podendo a sua fonte primeira ser encontrada na própria condição humana do indivíduo.

Os direitos da personalidade, assim, deveriam ser protegidos independente-mente de qualquer positivação normativa. A tutela da pessoa prescindiria e ante-cederia a atividade legislativa.33 Afirma neste ponto a visão jusnaturalista que os referidos direitos seriam atinentes à própria natureza humana, ocupando posição supra-estatal,34 sendo que a positivação viria apenas para garanti-los, dotando-os de coercitividade.35

Todavia, as teorias jusnaturalistas não se justificam mais na atualidade, frente à larga positivação dos direitos da personalidade ocorrida a partir do século XIX e à constatação de que o conceito de natureza humana e direitos inerentes à pes-soa varia de acordo com aspectos de natureza histórica e étnica.

A concepção dos direitos da personalidade como inatos tem a sua formação derivada da necessidade de se proteger o cidadão contra os arbítrios do poder público, sendo, nesse ponto, de grande relevância as teorias jusnaturalistas.

Assim, conforme sustenta De Cupis, a suscetibilidade de ser titular de direitos da personalidade não pode estar menos vinculada ao ordenamento jurídico do que estão os demais direitos e obrigações. Em adição, Pietro Perlingieri afirma que o direito natural (o que deve ser) é sempre condicionado pela experiência do direito positivo (o que é).36

Compreende-se, assim, que o direito positivo é o único fundamento juridica-mente legítimo dos chamados direitos da personalidade, sendo a própria norma uma variável histórica. Segundo Gustavo Tepedino:

32 limonge frança. Manual de Direito Civil. são Paulo: revista dos tribunais, 1972. p. 411.

33 Contrário a tal entendimento, afirma Kelsen que “a pessoa física (natural) como sujeito de deveres e direitos não é o ser humano cuja conduta é o conte-údo desses deveres ou desses direitos, mas que a pessoa física (natural) é apenas a personificação desses deveres e direitos. [...] a pessoa física é a per-sonificação de um conjunto de normas jurídicas que, por constituir deveres e direitos contendo a conduta de um mesmo ser humano, regula a conduta deste ser” (Teoria Geral do Direito e do Estado. são Paulo: martins fontes, 1995. p. 98).

34 afirma Caio mário: “o princípio constitucional da igualdade perante a lei é a definição do conceito geral da personalidade como atributo natural da pessoa humana [...]” (Instituições de Direito Civil, vol. 1. rio de Janeiro: forense, 1997. p. 153).

35 Carlos alberto bittar. Os Direitos da Personalidade. rio de Janeiro: forense, 2000. p. 9. no mesmo sentido, vide fábio maria de mattia. “direitos da Per-sonalidade: aspectos gerais”, in Revista Forense, nº 262, abr.-jun./1978, p. 83.

36 Pietro Perlingieri. La personalità umana nell´ordinamento giuridico. nápoles: Jovene, 1972, p. 131.

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A rigor, poder-se-ia mesmo dizer que, fora de um determinado contexto his-tórico, não existe possibilidade de se estabelecer um bem jurídico superior, já que a sua própria concepção depende de condicionantes multifacetados e complexos atinentes aos valores sociais historicamente consagrados.37

As Constituições de grande parte dos países que hoje compreendem a ur-gência de se proteger a pessoa tutelam os direitos da pessoa humana e criam mecanismos para que os mesmos sejam observados. No Estado de Direito, as aspirações jusnaturalistas são inscritas nas Constituições justamente para evitar abusos por quem possa violar as garantias estabelecidas.

Além do argumento contrário à tese jusnaturalista presente no simples fato de que a positivação dos direitos da personalidade atua de forma a assegurar a sua real eficácia, operando, no Estado de Direito, como a maior garantia que um indivíduo pode encontrar de que a sua personalidade não será violada sem a devida reação jurídica, cumpre acrescentar a dificuldade em se definir o que seja a natureza humana, ou os direitos inatos do homem.

Assim, não parece prudente que se tome qualquer posição sobre os direitos inerentes à pessoa sem que se analisem as condições históricas, étnicas e culturais nas quais se insere o estudioso do Direito.

teorias monista e pluralista dos direitos da personalidade

Ainda no século XIX, quando eram dados os primeiros passos no estudo dos direitos da personalidade, surgiu a controvérsia acerca de como definir esses di-reitos. Formaram-se então duas correntes antagônicas, cujo debate ainda hoje possui reflexos nas obras sobre o tema: de um lado os que acreditam tratar-se a personalidade de um todo indivisível e que, portanto, defendem a existência de um único direito geral da personalidade (teoria monista); de outro, posicionam-se aqueles que acreditam ter a personalidade humana variadas projeções e que é preciso proteger cada uma delas separadamente (teoria atomista ou pluralista).38

A teoria pluralista defende que diversos são os direitos da personalidade, cuja proteção requer uma diversidade de situações juridicamente relevantes. Dá-se, assim, a individuação dos bens de acordo com a individuação das necessidades.

A teoria monista considera a pessoa humana como um valor unitário, sendo que seus interesses de caráter existencial encontram-se intimamente relaciona-dos. Não existiriam, assim, direitos da personalidade, mas apenas um direito geral da personalidade, o qual não se identifica com a soma de suas expressões individuais.

Defendendo a teoria monista, Elimar Szaniawski argumenta que a pessoa humana é una, apesar de inexistente no direito brasileiro uma cláusula geral, no seu entendimento, que propicie a tutela desse direito subjetivo não-patrimonial único.39

A tese pluralista, contudo, pareceu congregar um maior número de adeptos, principalmente porque permite uma tutela concreta desses direitos, ao enunciá-

37 gustavo tepedino. Temas, cit., p. 40.

38 assim como na questão do objeto dos direitos da personalidade, ambas as correntes demonstram ainda estar muito vinculadas à estrutura dos direi-tos subjetivos de caráter patrimonial.

39 elimar szaniawski. Direitos da Perso-nalidade, cit., p. 57.

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los separadamente. Assim é que, aos poucos, foram surgindo artigos nos códi-gos pertinentes em diversos países, fazendo-se referência expressa aos direitos da personalidade em espécie, bem como diversas legislações esparsas visando suprimir a lacuna daqueles códigos que não contemplavam qualquer tratamento aos direitos da personalidade.

É crescente a importância dada à necessidade de se tutelar o maior número de projeções da pessoa humana, em seus aspectos físicos, psíquicos e intelectuais. Entretanto, tais projeções não devem ser vistas como taxativas; ao contrário, é imprescindível que o direito proteja também os direitos da personalidade não especificamente positivados, em atenção ao §2º, do art. 5º, da Constituição Federal.

A personalidade, conforme expõe Pietro Perlingieri, deve ser entendida como um valor que está na “base de uma série aberta de situações existenciais”, ou seja “não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados em seu interesse e naqueles de outras pessoas”.40

Essa questão ganhou relevo com a entrada em vigor do novo Código Civil, que dedica capítulo específico para os direitos da personalidade. Em que pese a positivação por vezes equivocada desses direitos, deve-se ter em mente que o rol de direitos constantes do Código Civil não deverá ser interpretado como sendo um catálogo hermético de possibilidades de proteção da personalidade humana no direito brasileiro.

direitos da personalidade e direitos fundamentais

A tutela dos direitos do homem, surgida nas declarações de direitos da Idade Moderna, refletiu uma tendência protetiva do cidadão frente ao Estado, através da outorga de direitos individuais. Tratava-se de uma tutela de caráter nitida-mente público, restando às relações privadas as disposições do ordenamento ju-rídico de caráter meramente repressivo.

Característica inconteste do liberalismo capitalista, as relações jurídicas pri-vadas sempre estiveram adstritas ao trânsito jurídico de bens e capital, devendo o Direito Privado apenas tutelar as relações de cunho patrimonial através da disciplina das obrigações e contratos, além do instituto da propriedade. Assim, a lesão à integridade das pessoas seria matéria concernente ao Direito Público, que tutelaria tais situações através do Direito Penal.

A partir do momento em que se reconhece a existência de direitos subjetivos da personalidade, a dogmática civilística busca apoio nos direitos subjetivos patrimoniais, estrutura modelar dos direitos subjetivos, para definir os con-tornos e a aplicação da tutela da pessoa humana nas relações travadas entre particulares.

Considera-se, portanto, que, para reger as relações entre particulares, os di-reitos da personalidade operariam de forma a garantir a tutela dos caracteres essenciais da pessoa humana, enquanto, por seu turno, os direitos civis, ou seja,

40 Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil, cit., pp. 155-156.

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aqueles prescritos nas declarações de direito, e pertencentes ao Direito Público, operariam de forma a tutelar a pessoa frente aos desmandos do Estado.41

Em artigo sobre os direitos da personalidade, Orlando Gomes explicita a di-ferença existente entre esses e os direitos “do homem e do cidadão”, da seguinte forma:

Não há confundi-los [os direitos da personalidade] com os direitos do ho-mem e do cidadão, que são realmente direitos subjetivos públicos, cuja proteção se organiza constitucionalmente para preservar o indivíduo do arbítrio do Esta-do. Os direitos de personalidade se reconhecem e se protegem para resguardá-lo de atentados por parte de outros indivíduos, como salientam os Mazeaud e tam-bém, para impedir que os auto-sacrifiquem.42

A distinção entre direitos fundamentais, previstos na Constituição, e os direi-tos da personalidade, adstritos à esfera privada, é também referida por Gilberto Haddad Jabur, ao mencionar que:

[O]s bens personalíssimos neles [direitos fundamentais] são encontrados, mas não são os únicos que estão ali compreendidos. Muitos são fundamentais frente ao Estado, por conveniência política ou legislativa. Mas nem todos os direitos individuais ou fundamentais são, pelas mesmas razões, da personalidade. Porque se é o sujeito, e não o conteúdo ou substância que são similares, a pedra de toque da distinção, compreensível é que algumas prerrogativas asseguradas como fun-damentais (frente ao Estado) não careçam de igual tutela diante do particular. A irredutibilidade dos salários, por exemplo, é direito fundamental, mas não personalíssimo.43

Dessa forma, poderá haver, até mesmo, concomitância no conteúdo dos direitos fundamentais e dos direitos da personalidade, sendo variável apenas a perspectiva de quem analisa determinada relação, se pelo viés do Direito Público ou do Direito Privado. Capelo de Souza, nesse particular, ressalta que os direitos fundamentais possuem sempre um viés mais juspublicístico, enfocando relações de poder que são oponíveis ao Estado.44

Por fim, essa distinção entre direitos fundamentais e direitos da personalidade esvai-se, restando apenas como figura metodológica quando se depara com a diluição das fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado e o estudo da proteção unificada da pessoa humana.

2. atividadE Em saLa

análise do capítulo de direitos da personalidade do código civil (arts. 12 a 21)Com base nas características dos direitos da personalidade, leia o capítulo

dedicado aos mesmos no CC-2002. No seu entendimento, os direitos ali positi-

41 José de oliveira ascensão. “os direi-tos da Personalidade no Código Civil brasileiro”, in Revista Forense, vol. 342, p. 125.

42 orlando gomes. “direitos da Perso-nalidade”, in Revista Forense, nº 216, out.-dez./1966, p. 6.

43 gilberto Haddad Jabur. Liberdade de Pensamento, cit., p. 80.

44 rabindranath Capelo de souza. O Di-reito Geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra editora, 1995. p. 584.

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vados correspondem à totalidade dos direitos da personalidade? Caso contrário, qual direito da personalidade você inseriria nesse capítulo? Qual é a sua opinião sobre a redação desses artigos? Existe algum artigo que lhe chame a atenção em especial? Por quê?

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AuLA 5. DIREITOS DA PERSONALIDADE – DIREITO à INTEGRIDADE FíSICA

EmEntário dE tEmas

Integridade física – Recusa ao tratamento – Recusa à perícia médica – Dispo-sição de partes do corpo.

casos gEradorEs

Caso “GoldenPalace.com” e “Transfusão de sangue para testemunha de Jeová”

LEitura obrigatória

MORAES, Maria Celina Bodin de. “Recusa à realização do exame de DNA na investigação de paternidade e direitos da personalidade”, in Revista Forense, nº 343, pp. 157-168.

LEituras compLEmEntarEs

AIETA, Vânia. “Princípios do Direito à Integridade do Corpo Humano”. In: PEIXINHO, Manoel Messias; GUERRA, Isabella Franco; FILHO, Firly Nascimento (orgs.). Os Princípios da Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001. pp. 289-310.

CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao próprio corpo: intersexualidade, transexua­lidade, transplante. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1986. pp. 170-212.

1. rotEiro dE auLa

O viés mais comum de abordagem do direito à integridade física é sem dúvida alguma próprio dos ramos do direito penal e constitucional. No entanto, é com o CC-2002 que temas ligados à bioética e à integridade corporal da pessoa ga-nham nova projeção, constatando-se isso, entre outros exemplos, pela proteção conferida ao nascituro (art. 2º do CC) e pelo regramento da possibilidade de disposição do próprio corpo (art. 13 do CC).

Outro exemplo desse especial interesse de resguardar a integridade dos indi-víduos, o qual se espraia por todo o ordenamento, é o caso do art. 5º, III, que protege o indivíduo contra toda forma de tortura.45

O conceito de proteção à integridade física engloba não só o direito de garan-tir a idoneidade e imaculabilidade corporal, mas também a possibilidade de o

45 Correlatos a esse podem ser igual-mente citados, ainda dentro do rol de direitos do art. 5º da Cf, os incisos XXXiX, liv, lii e lvii.

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indivíduo dispor de partes de seu próprio corpo, o que pode se dar tanto em vida como post mortem. Contudo, como se depreende da redação do art. 13 do CC, essa possibilidade de disposição está sujeita a certos condicionamentos:

Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou con-trariar os bons costumes.

Parágrafo Único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de trans-plante, na forma estabelecida em lei especial.

No contexto do direito ao corpo, surgem várias problematizacões sobre as quais o direito vem se debruçando. Uma delas é a doação de sangue. Preliminar-mente, é importante frisar que os regramentos aos quais essa matéria encontra-se sujeita pressupõem certas valorações de ordem moral. Isso é verificável, por exemplo, na impossibilidade de cessão onerosa de sangue (bem como de seus subprodutos) e das demais partes do corpo. São condutas que o legislador taxa como moralmente reprováveis e, por conta disso, determina a sua proibição.

Não só a reprovabilidade do intento de buscar remuneração com a negociação de partes do corpo inspira o legislador. De grande importância é também o en-tendimento no sentido de que não se pode causar prejuízo ao indivíduo cedente. Conforme expõe Caio Mário, “embora este se reconstitua na medida das neces-sidades orgânicas, a transfusão está subordinada às condições do doador e de seu estado de higidez, como ainda a indagação de ordem técnico-científicas”.46

A preocupação do ordenamento com o “comércio de sangue” constata-se claramente, em sede constitucional, no art. 199, IV, da Constituição Federal. É o próprio constituinte quem reputa a negociação de partes do corpo como atividade moralmente reprovável, taxando-a de conduta ilegal.

integridade física versus respeito a crenças religiosas

Um tema muito controvertido e que suscita interpretações das mais variadas é a da possibilidade de recusa de um determinado indivíduo em receber sangue alheio, fato esse que pode se processar tanto por motivo de convicção filosófica como religiosa.

Conforme demonstram os casos julgados sobre o assunto, compete muitas vezes ao médico manifestar seu entendimento no sentido da dispensabilidade ou não da transfusão sangüínea. No entanto, esse juízo de necessidade em relação ao tratamento deve se pautar unicamente pelos critérios atinentes à ciência médica, despindo-se o profissional de convicções de outra natureza. O Superior Tribunal de Justiça já julgou precedente onde se levantou essa possibilidade de confusão entre as percepções pessoais do médico e o ordinário exercício de seu ofício:

Declinam-se as razões falta de justa causa para o prosseguimento da ação pe-nal, pois o paciente, médico e seguidor da religião “Testemunhas de Jeová”, não

46 Caio mário da silva Pereira. Institui-ções de Direito Civil, vol. i. rio de Janei-ro: forense, 2005. p. 251.

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foi o causador da morte da vítima, eis que a transfusão de sangue não era a única meida capaz de evitá-la. A menor poderia ter sido transferida para a UTI pelos médicos responsáveis, realizando-se a transfusão, independente da vontade dos pais e do paciente.47

O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na ponderação entre razão de ordem religiosa e razão de saúde pública (preservação da vida), manifestou-se sobre o tema por meio do seguinte acórdão:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. Testemunha de Jeová. Recusa à transfusão de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a agravante, senão seus familiares, que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos responsáveis pelo tratamento da agravante, de inexistir terapia alternativa e haver risco de vida em caso de sua não realização. Recurso desprovido.48

No caso decidido pelo TJRJ, na decisão de primeiro grau sobre a qual ele ver-sava “deferiu-se tutela antecipada, a requerimento do Ministério Público, a fim de que a agravante fosse submetida à transfusão de sangue, eis que corria risco de vida e seus familiares recusavam tal terapia, sob o argumento de convicção religiosa e ser referido tratamento também arriscado”. No acórdão acima trans-crito, objetivava-se que novas transfusões, necessárias à perpetuação da vida da paciente, não fossem obstadas.

Essa decisão ilustra com muita propriedade as divergências suscitadas em torno do tema em destaque. Essa divergência fica clara na discrepância de con-vicções manifestadas nos votos dos julgadores.

O relator do acórdão, em seu voto, assevera que: “Por fim, não obstante o respeito à convicção religiosa de cada um, entre dois bens jurídicos tutelados, prevalece a vida sobre a liberdade, até porque não foi a agravante que manifestou a recusa ao tratamento, mas seus familiares”.

O voto vencido, da lavra do Desembargador Marco Antonio Ibrahim, ao dis-cordar do entendimento vencedor, assim expõe a sua linha de argumentação:

Constitucional. Civil. Transfusão de sangue não autorizada. Direito à pri-vacidade e intimidade. Manifestação expressa de recusa à terapia transfusional. Seja, ou não, por motivo religioso a vontade do paciente deve ser respeitada porque não há conflito real entre o direito à autodeterminação a tratamen-to médico e o direito à vida. Todos os especialistas brasileiros e estrangeiros concordam com a afirmativa de que a transfusão sanguínea não é procedi-mento isento de risco de contaminação mortal do paciente, seja por vírus, seja por infecção bacteriana. Viola a dignidade da pessoa humana obrigar o paciente a receber transfusão sanguínea contra sua vontade, especialmente se existe tratamento alternativo e não há prova cabal de risco à vida do mesmo. Exegese do art. 15 do novo Código Civil que determina que ninguém pode

47 stJ, rHC nº 7785/sP, min. fernando gonçalves, j. em 30.11.1998.

48 tJrJ, agravo de instrumento nº 2004.002.13229, des. Carlos eduardo Passos, j. em 05.10.2004.

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ser constrangido a submeter-se com risco de vida, a tratamento médico ou à intervenção cirúrgica.49

As passagens acima transcritas demonstram como o tema é controvertido, demandando um estudo aprofundado para o seu enquadramento pela doutrina e pelos julgados que posteriormente venham a enfrentá-lo.

recusa ao tratamento médico

Seguindo a mesma lógica descrita nas hipóteses de não-aceitabilidade de transfusão de sangue, o resguardo à integridade física abrange também o direito de recusar tratamento médico ou intervenção cirúrgica. No entanto, essa recusa não pode ser caprichosa, imotivada, mas, em regra, deve assentar-se em motivo de relevância manifesta.

Para Caio Mário, a justificativa para intervenções sobre a integridade física de alguém “reside na existência de risco de vida. Não cabe opor-se a certa tera-pêutica por capricho, ou propósito de auto-extermínio, ou motivos ideológicos. É, contudo, muito relativo o conceito de risco de vida, o que pode levar a que se desrespeite a vontade do paciente, quando a negativa não tem base científica. Reversamente, ainda que o médico entenda inócuo o tratamento, é de se acatar a recusa do paciente, fundada em razões plausíveis. No caso de não ter o doente condições de deliberar validamente, transfere-se para os seus familiares o poder de decisão”.50

O CC-2002 trata do assunto em seu artigo 15, ao dispor que “ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica”. Esse artigo, todavia, não aborda a questão da recusa à realização de perícia médica para fins de prova em juízo.

Dessa forma, por meio do art. 232 do CC, o legislador civilista manifesta-se no sentido de tornar a recusa à perícia um elemento processualmente desfavorá-vel, pois “a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame”.

O direito à integridade física, aqui expresso na inadmissibilidade de coação à perícia médica, constitui um dos aspectos dos direitos da personalidade. Essa recusa não pode significar, no entanto, a possibilidade de que se obstrua o an-damento da justiça e, adicionalmente, pode gerar diversas situações conflituosas com os demais direitos da personalidade.

Em caso julgado pelo TJRJ, pode-se perceber como a recusa à perícia médica traz efeitos nocivos ao recusante no curso de uma ação judicial:

Ação de procedimento comum ordinário. Pó branco da Petrobrás que atingiu localidade da Baixada. Alegação de danos à saúde. Sentença julgando improce-dente o pedido. Recurso de Apelação Cível. MANUTENÇÃO, pois o Autor não demonstrou o aludido dano respiratório sofrido, não compareceu à perícia médica, desistiu expressamente da prova, restando não demonstrado, portanto, o

49 o vogal acrescenta ainda ao final de seu voto: “o direito à vida não se resume ao viver [...] o direito à vida diz respeito ao modo de viver, à dignidade do viver. só mesmo a prepotência dos médicos e a insensibilidade dos juristas pode desprezar a vontade de um ser humano dirigida a seu próprio corpo”.

50 Caio mário da silva Pereira. Institui-ções de Direito Civil, vol. i. rio de Janei-ro: forense, 2005. p. 254.

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prejuízo e o nexo de causalidade. À míngua de provas, outra não poderia deixar de ser a decisão do Juízo Monocrático. DESPROVIMENTO RECURSO.51

A doutrina afirma que, no entanto, esse mencionado art. 232 é de natureza supérflua na dinâmica processual. Ele confere ao julgador somente a possibi-lidade de valer-se de um expediente de ordem ficcional (uma presunção) de forma a não implicar prejuízo àquele interessado na realização do procedimen-to pericial. Para os que assim entendem, esse dispositivo tornou-se inútil no sentido de que a legislação processualista já encampou há muito a idéia de que o juiz é livre e soberano na análise das provas produzidas, conforme inserto no art. 131 do CPC (princípio processual do livre convencimento motivado do juiz).

O exemplo mais citado de recusa à perícia médica é a não-submissão ao exa-me de DNA, que visa à comprovação de paternidade. Nesse sentido, a juris-prudência caminha no sentido de se tornar pacífica, conforme expõe o seguinte julgado do TJRJ:

INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ALIMEN-TOS. AGRAVO RETIDO. IMPROVIMENTO. MÉRITO. NEGATIVA DO RÉU EM SUBMETER-SE AO EXAME DE D.N.A. PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DOS FATOS ALEGADOS NA EXORDIAL. PENSIONA-MENTO IMPOSTO DESDE A CITAÇÃO. 1. Quanto ao agravo retido. O juiz pode “ouvir testemunhas, mesmo arroladas fora do prazo, quando se litigar sobre direito indisponível, como ocorre, p. ex., na investigação de paternidade” (RT 613/162). Conhecimento e improvimento. 2. Quanto ao mérito. O STJ tem se posicionado no sentido de que a parte que se recusa imotivadamente a se submeter a perícia médica, deve ter contra si o peso da presunção daquilo que o exame pericial poderia provar. No caso presente, deve ser reconhecida, ainda, a dificuldade do Autor-Apelante, em comprovar o relacionamento de sua genitora com o Apelado, pois se tratava de uma relação extraconjugal. O Apelado, além de cientificado pessoalmente uma vez para a data do exame, foi, após a baixa dos autos, 22 vezes procurado pelos oficiais da justiça, não sendo encontrado, alegando-se que se encontrava viajando, muito embora pessoas da sua esfera de conhecimento estivessem ciente. Atitudes deste tipo merecem o total repúdio do Poder Judiciário e deveriam merecer, também, dos respectivos advogados, que se calam ante as condutas impertinentes e desrespeitosas dos seus clientes, como se de nada soubessem, certamente, achando que os Juízes e Desembargadores vivem num mundo encantado, de inocência e ingenuidade e que acreditariam, piamen-te, na ausência de má-fé no proceder do Apelado. 3. Reconhecida a paternidade, o dever de alimentar se impõe e desde a estabilização da relação processual, ou seja, desde a citação válida, em virtude da natureza declaratória do decisum que reconhece a paternidade. 4. Recurso conhecido e provido, nos termos do voto do Desembargador Relator.52

51 tJrJ, apelação Cível nº 2005.001.06797, des. otávio rodri-gues; j. em 18/05/2005. em seu voto, explicita ainda o relator: “no mais, o autor não demonstrou o alegado dano respiratório sofrido, deixou de comparecer à perícia médica, apesar de intimado, como se vê de fls. 273 e seguintes e também desistiu expres-samente da prova (fls. 291/292). Com isso, o prejuízo à saúde restou sem de-monstração. À mingua de provas, outra não poderia deixar de ser a decisão do Juízo monocrático.”

52 tJrJ, apelação Cível nº 1997.001.02081, des. ricardo rodri-guez Cardozo; j. em 14/09/2004. vale destacar ainda a seguinte passagem do voto do julgador: “este processo tramita há uma década e, lastimavel-mente, o apelado tudo fez para evitar o exame de dna, utilizando-se da Justiça para procrastinar o feito, com falta de seriedade e respeito. Pena que a juris-prudência não consagre a condução ‘debaixo de vara’ para a hipótese.”

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Não objetivando gerar prejuízo à parte que carece da perícia para provar o seu direito, o legislador autoriza o julgador, na solução do litígio, a valer-se da presunção de que os fatos alegados por aquela são verdadeiros.

disposição de partes do corpo

Com relação à disposição de partes do corpo, faz-se necessário novamente remeter à leitura ao art. 13 do CC-2002 e do art. 9º da Lei nº 9.434/97, a qual dispõe sobre a retirada de órgão e partes do corpo humano da seguinte forma:

Art. 9o. É permitido à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autoriza-ção judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)

§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.

§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da reti-rada.

§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização.

§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológi-ca comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde.

§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplan-te de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.

§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indi-víduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais.

Assim sendo, uma pessoa somente pode dispor de partes do seu corpo quando tal ato não implicar em prejuízo para sua saúde. Adicionalmente, determina de plano o legislador que o transplante não pode ser objeto de negócio oneroso.

O Código Civil atual, em seu artigo 14, também inova em relação à lei pre-térita, ao definir a possibilidade de disposição do próprio corpo. Disposição essa que, quando em vida, não pode representar prejuízo à saúde do doador e,

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quando post mortem, deve atentar à consecução de fins científicos e altruísticos.53 Nesse segundo caso, a gratuidade também é elemento essencial. Essa disposição a respeito do destino do corpo ou de parte dele pode revestir a forma testamen-tária ou de ato entre vivos.

2. caso gErador

2.1. “caso goldenpalace.com”

Leia a notícia abaixo:

01/07/2005 - 14h08 Por US$ 10 mil, americana tatua na testa anúncio de cassino virtual Fonte: Folha OnlineO cassino virtual GoldenPalace.com ficou famoso por comprar alguns itens

bizarros vendidos no site de leilões eBay – uma torrada com a imagem da Virgem Maria (US$ 28 mil), por exemplo. Desta vez, o site “comprou” a testa de uma norte-americana. Por US$ 10 mil, a internauta tatuou as palavras “Golden Pala-ce.com” no inusitado espaço publicitário.

“Ganhamos o privilégio de ter um anúncio permanente tatuado na testa de Karolyne Smith. Com isso, ela se torna a primeira mulher a ter a marca do cassi-no para sempre”, diz um anúncio da companhia.

Smith afirma que adora ser o centro das atenções e não se arrepende do que fez. “Para muitos, pode parecer estúpido. Para mim, no entanto, esses US$ 10 mil representam US$ 1 milhão. Faço isso pelo meu filho, para poder construir um futuro melhor para ele”, disse.

Segundo a nova garota propaganda, esse dinheiro será usado para que seu filho possa estudar em uma escola particular.

(in http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u18624.shtml)

No direito brasileiro, seria legítimo o ato de disposição do próprio corpo no sentido de leiloar um espaço publicitário em sua própria testa? Esse ato de disposição sobre o próprio corpo está amparado pela tutela da autonomia da vontade? Justifique.

2.2. caso “transfusão de sangue para testemunha de Jeová”

Após sofrer um grave acidente, Maria é levada às pressas para o setor de emergência do Hospital Souza Aguiar. Ao dar entrada no hospital, o médio plantonista de imediato diagnostica a necessidade de se realizar uma transfusão de sangue sob pena de a paciente perder a vida.

Ao dar início aos procedimentos para a transfusão, o médico é subitamente interrompido por um tio de Maria, que acabava de chegar ao hospital. Segundo

53 nesse sentido resta clara também a impossibilidade de agir em desconfor-midade com os artigos 1º, iii, e 199, § 4º, da Constituição federal.

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o tio, Maria é uma pessoa muito religiosa e integra o grupo de Testemunhas de Jeová. A transfusão de sangue, para os integrantes dessa crença, seria um ato im-puro, motivo pelo qual o tio de Maria implorou ao médico para que a transfusão não fosse efetuada.

Após ouvir brevemente as explicações do tio de Maria, o médico plantonista resolveu realizar a transfusão de qualquer modo, uma vez que, segundo expôs o mesmo, o seu ofício era salvar vidas, e não zelar pela religiosidade alheia.

Dois meses depois, e já estando em casa se recuperando do acidente, Maria é instruída por seus amigos a ingressar com uma ação de danos morais contra o médico do hospital. Maria alegaria em seu pleito que a sua religiosidade foi afrontada pelo ato do médico e que esse ato violou a sua autonomia privada, sendo lícito a pessoa recusar-se a se submeter a procedimento médico, salvo em caso de ordem pública. Como no caso em tela apenas a vida de Maria estava em jogo, ela poderia muito bem ter optado por manter os seus preceitos religiosos até o fim.

Se você fosse o juiz da ação por danos morais ingressada por Maria, julgaria procedente o seu pleito? E se o médico optasse por atender aos clamores do tio e Maria viesse a falecer? Você julgaria procedente uma eventual ação indenizatória contra o médico ou o hospital movida pela mãe de Maria?

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AuLA 6. DIREITOS DA PERSONALIDADE – DIREITO AO NOME E à hONRA

EmEntário dE tEmas

Natureza e elementos que compõem o nome – Registro e alteração do nome – Conceito de honra – Honra subjetiva e honra objetiva – Crimes contra a hon-ra e responsabilidade civil – Honra da Pessoa Jurídica – Análise das decisões do STJ.

caso gErador

Honra subjetiva e objetiva – Limites da honra da pessoa jurídica

LEitura obrigatória

MORAES, Maria Celina Bodin. “Sobre o nome da pessoa humana”, in Revis­ta da EMERJ nº 12, pp. 48-74.

LEituras compLEmEntarEs

DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Campinas: Romana, 2004. pp. 121-139.

PEREIRA DE SOUZA, Carlos Affonso; SAMPAIO, Patrícia Regina Pi-nheiro. “Atualidades sobre Dano Moral da Pessoa Jurídica”, in Doutrina ADCOAS, nº 6, jul./2000, pp. 42-49.

1. rotEiro dE auLa

nome civil

O nome civil é o principal elemento que designa um indivíduo e o parti-culariza nas relações sociais, individualizando a pessoa e indicando, de certa forma, sua procedência familiar. A relevância do nome reside no fato de que as relações jurídicas estabelecem-se entre pessoas, naturais e jurídicas, cujo exercício dos respectivos direitos exige o conhecimento prévio dos respectivos titulares.54

No Direito Romano, a disciplina do nome civil justificava-se por se tratar de sinal diferenciador entre os indivíduos e subgrupos sociais por eles integrados. Havia o prenomen, que designava a pessoa; o nomen, indicativo da gens; o cog­

54 francisco amaral. Direito Civil – Intro-dução. rio de Janeiro: renovar, 2004. p. 270.

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nomen que apontava a família; e o agnomen, decorrente de um acontecimento pertinente e qualificativo do indivíduo.

Modernamente adotamos o nome composto, onde se destaca o prenome como designação do indivíduo, e o sobrenome, ou nome patronímico, característico de sua família.

No Código Civil, o tratamento da matéria dá-se através do reconhecimento de um direito da personalidade voltado para a proteção do nome. Conforme ex-põe o art. 16: “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobrenome”.

natureza jurídica do nome

No estudo da natureza jurídica do nome, corrente que merece destaque é a da concepção dominial. De tradição francesa, ela postula que o nome nada mais é do que um direito de propriedade. O titular do nome é quem o detém de forma absoluta.

A principal crítica que pode ensejar decorre da observação de que a proprie-dade, ao contrário do nome, é em regra alienável, prescritível, possui conteú-do econômico e exclusividade. O nome, contrario sensu, abarca características completamente díspares. Não é alienável, é imprescritível, é usado por pessoas diferentes, não tendo conteúdo econômico.

Enfocando a crítica acima descrita, surge a corrente que nega esse caráter pa-trimonial do nome. Seus defensores, dentre os quais se destaca Clóvis Beviláqua, afirmam que não se pode alegar a natureza de bem jurídico para o nome.

A tradição civilista pátria tradicionalmente confere ao nome a natureza de direito, sendo o mesmo designativo do indivíduo e fator de identificação. Não se consolidou no direito brasileiro a idéia de patrimonialidade do nome.

O estudo do nome civil possui uma abordagem dúplice: uma dedicada ao viés público e outra, ao viés privado. A partir deles, observa-se que o nome envolve, concomitantemente, um direito subjetivo e um interesse de relevante valor social.

O interesse público revela-se, sobretudo, na necessidade de registro e na imu-tabilidade do nome. O direito subjetivo liga-se, por sua vez, à necessidade de que cada indivíduo seja designado por seu próprio nome. Transcende-se ao interesse público de individualização de cada pessoa e enfoca-se a idéia de que o nome representa o traço distintivo na sociedade. Isso ocorre apesar de não dotado de conteúdo econômico direto.

O interesse social aqui expresso implica necessariamente na configuração de que as normas que tratam do nome revestem-se de natureza de ordem pública. Não pode o titular do nome, pelo seu livre arbítrio, contra elas atentar. A auto-nomia de sua vontade não prevalece para esses fins.

O art. 17 do CC-2002 prevê formas de repressão à divulgação do nome de pessoa que a exponha ao desprezo público. O art. 18, por seu turno, proclama o princípio da necessidade de autorização para a utilização do nome em propa-

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ganda comercial. Assenta-se na mesma idéia de proteger o indivíduo contra o uso irregular do seu nome.

Esse é o entendimento que prosperou na decisão abaixo do TJRJ:

FUNDAÇÃO EDUCACIONAL. USO NÃO AUTORIZADO DE NOME. INTERNET. DANO MORAL. VALOR DA INDENIZAÇÃO. SENTENÇA CONFIRMADA

Constitucional. Civil. Dano moral. Uso indevido de nome de profissional li-gado à área odontológica. O nome integra um dos direitos da personalidade e sua utilização indevida, para fins comerciais, causa dano moral que se comprova in re ipsa. A instituição de ensino não podia, sem autorização do autor, divulgar seu nome como um dos professores da Faculdade de Odontologia, quando o autor jamais teve qualquer vínculo com referida instituição. Recurso desprovido.55

Destaque-se ainda que a interpretação do referido diploma não pode ser es-trita, limitando-se à publicidade comercial, mas também deve abarcar a de natu-reza industrial, artística, eleitoral, entre outras.

A tutela do direito ao nome não engloba só aquele registrado, ou seja, o nome do indivíduo, ela abrange também o pseudônimo, muito comum no meio artís-tico, conforme prescreve o artigo 19 do CC-2002. Nessa direção, vide o seguinte acórdão do STJ:

Direito civil. Uso de pseudônimo. “Tiririca”. Exclusividade. Inadmissibili-dade.

I. – O pseudônimo goza da proteção dispensada ao nome, mas, por não estar configurado como obra, inexistem direitos materiais e morais sobre ele.

II. – O uso contínuo de um nome não dá ao portador o direito ao seu uso exclusivo. Incabível a pretensão do autor de impedir que o réu use o pseudônimo “Tiririca”, até porque já registrado, em seu nome, no INPI.

IV. – Recurso especial não conhecido.56

No âmbito do direito de família destacam-se ainda os artigos 1565 e 1578, que tratam respectivamente do nome no tocante ao casamento e dissolução da sociedade conjugal.

Escolha e alteração do prenome

A escolha do prenome compete aos pais. O art. 52 da Lei de Registros Pú-blicos não se coaduna com o determinado pelo novo Código Civil e pela Cons-tituição Federal, qual seja, a equiparação entre homem e mulher na direção da sociedade conjugal. O referido art. 52 determina que, somente no caso de impossibilidade do registro ser procedido pelo pai, tomará parte a mãe. O CC-2002, no entanto, em seu artigo 1630 e seguintes, atribui a ambos os pais a autoridade parental.57

55 tJrJ, apelação Cível nº 2004.001.31672, rel. des. marco antô-nio ibrahim; j. em 05.04.2005.

56 stJ, resp nº 555.483/sP, min. antonio de Pádua ribeiro; j. em 14/10/2003.

57 nesse sentido também os artigos 226, § 5º, da Cf, e 21 e 47, § 5º, do eCa.

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A lei brasileira veda a possibilidade de atribuição de prenomes que possam vir a expor seus portadores ao ridículo. Possibilita ainda que, na ocorrência de constrangimento, eles sejam alterados. Nesse sentido, manifesta-se o legislador por meio do art. 55 e 56 da Lei de Registros Públicos.

Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conhe-cidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato.

Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes susce-tíveis de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conforma-rem com a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.

Art. 56. O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil, poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela imprensa.

Observe-se que, quando levado esse pleito ao Poder Judiciário, deverá o jul-gador realizar um exercício ponderativo, pois, apesar de num dos lados encon-trar-se junto ao requerente uma grande gama de valores referentes à tutela da sua dignidade, de outro reside o interesse social na preservação do prenome, que, como vimos, distingue um indivíduo perante os demais.

direito à honra

A Constituição Federal prevê em seu artigo 5º, X, a inviolabilidade da honra, da intimidade, da vida privada e da imagem das pessoas, sendo garantida a repa-ração por qualquer dano, seja ele moral ou material.

Ao dissertar sobre a vinculação do direito à honra com a dignidade da pessoa humana, Pontes de Miranda afirma a sua inserção no rol dos direitos da persona-lidade, conforme a definição acima destacada. Segundo o mencionado autor:

A dignidade pessoal, o sentimento e consciência de ser digno, mais a estima

e consideração moral dos outros, dão o conteúdo do que se chama honra. Há direito de personalidade à honra, o que faz as lesões à honra serem atos ilícitos absolutos. O direito à honra é direito absoluto, público, subjetivo.58

Com a sua constitucionalização, a honra, assim como os outros bens protegi-dos pelos direitos da personalidade, expande a sua força normativa, assegurando maior proteção infraconstitucional. Todavia, no que tange especificamente ao direito à honra, o ordenamento brasileiro já o protegia muito antes da promul-gação da Constituição de 1988.

O direito à honra já possuía ampla proteção no direito infraconstitucional, tanto no Código Penal (arts. 138 a 145), através dos crimes de injúria, difamação

58 Pontes de miranda. Tratado de Direito Privado, vol. vii. rio de Janeiro: borsoi, 1955. p. 44.

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e calúnia, quanto em outros diplomas, como o Código Eleitoral (arts. 324 a 326) e a própria Lei de Imprensa.

Pode-se ainda destacar a proteção internacional que se concede ao direito à honra, segundo o regramento dos seguintes dispositivos: Declaração Universal dos Direitos Humanos (art. 12); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políti-cos (art.17); e Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (art. 11).

Usualmente, o direito à honra é dividido em duas espécies: honra sub-jetiva e honra objetiva. Essa classificação doutrinária decorre do aspecto duplo do direito à honra, ou seja, o aspecto subjetivo, que se apresenta na consideração íntima da pessoa, e o aspecto objetivo, que se apresenta pe-rante a sociedade.

Mônica Neves Aguiar da Silva Castro estabelece essa diferenciação, referindo-se primeiro à honra subjetiva, depois à honra objetiva:

Do ponto de vista subjetivo, é a estima que toda pessoa possui de suas qua-lidades e atributos, que se refletem na consciência do indivíduo e na certeza em seu próprio prestígio.

No aspecto objetivo, a honra é a soma daquelas qualidades que os terceiros atribuem a uma pessoa e que são necessárias ao cumprimento dos papéis especí-ficos que ela exerce na sociedade.59

Dessa forma, o direito à honra engloba não só o sentimento pessoal de auto-estima (honra subjetiva) como também o de reputação, isto é, o conceito que a pessoa goza perante a sociedade (honra objetiva).

Importante destacar que o direito à honra é intransmissível, incomunicável e extrapatrimonial, uma vez que trata da defesa da própria integridade da pessoa. Entretanto, não é possível afirmar que esse direito é ilimitado. A legislação prevê limites à honra, como a chamada exceptio veritatis, ou seja, a exceção da verdade, segundo a qual o agente pode provar a veracidade do fato que imputou em certas hipóteses de crimes contra a honra.60

Muito se discute sobre a questão das pessoas jurídicas possuírem ou não di-reito à honra legitimando-as, assim, a ingressarem com ações indenizatórias para buscar reparação pelo prejuízo causado.

A honra subjetiva é um direito específico de cada pessoa física e, portanto, não deve ser estendido às pessoas jurídicas, pois está relacionado com o senti-mento de auto-estima individual. Como a possibilidade de expressar sentimen-tos (dor, vergonha, angústia) inexiste nas pessoas jurídicas, não há o que se falar em honra subjetiva nesse caso.

Já o direito à honra objetiva, na medida em que espelha o conceito detido pela pessoa na sociedade, pode ser mais facilmente incorporado ao patrimônio das pessoas jurídicas. Nesse sentido, afirma Ponte de Miranda:

As pessoas jurídicas também podem ser ofendidas em sua honra, porque é comum às pessoas físicas e às jurídicas o bem da reputação, da boa fama. Ao

59 mônica neves aguiar da silva Castro. Honra, Imagem, Vida Privada e Intimi-dade em Colisão com outros Direitos. rio de Janeiro: renovar, 2002. p. 6.

60 no crime de calúnia é permitido, excetuados os casos do § 3º do artigo 138. no crime de difamação não é aceito, exceto para os casos em que o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções. no crime de injúria a exceção da verdade não é permitida.

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adquirir personalidade, o ser não físico adquire tal direito, que não depende de substrato pessoal físico.61

O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou diversas vezes sobre o as-sunto, terminando por editar a Súmula nº 227, que consolida o entendimento favoravelmente ao dano moral da pessoa jurídica. Conforme expressa a referida súmula: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.”

Todavia, é importante destacar que a questão está longe de ser assentada na doutrina, uma vez que diversos autores contestam a série de decisões do STJ, sob o fundamento de que todo e qualquer dano sofrido pela pessoa jurídica será de natureza exclusivamente material.62

2. caso gErador

A sociedade Refrescos Cariocas Distribuidora Ltda. atua há mais de vinte anos no ramo de distribuição de refrigerantes no Estado do Rio de Janeiro. Há dez anos, a referida sociedade celebrou um contrato de distribuição exclusiva para os produtos da marca de refrigerantes Milenium, produzidos pela Mile-nium Alimentos e Bebidas do Brasil Ltda.

Passados os dez anos, e sendo o contrato por prazo indeterminado, a Mi-lenium envia para a Refrescos Cariocas uma notificação, informando que, no prazo de dois meses a contar da data constante da notificação, a relação contra-tual entre as empresas seria dada por encerrada. Essa decisão, embora prejudicial economicamente à distribuidora, encontra-se em consonância com a dinâmica dos contratos por prazo indeterminado.

A decisão de encerrar o contrato nasceu da apresentação de um relatório realiza-do pela auditoria da Milenium, onde constava a Refrescos Cariocas como sendo a pior distribuidora da rede de refrigerantes Milenium. Segundo apontava o relatório, os armazéns da empresa estavam em péssimas condições, os refrigerantes eram esto-cados de forma rudimentar e havia nas instalações sérios problemas de higiene.

Ao tomar conhecimento desse fato, o Sr. Klaus Smith, um dos diretores da Milenium, em entrevista concedida ao repórter Juca Gonçalves, da revista Lide­rança, voltada para diretores e gerentes de empresas, assim se pronunciou:

Essa questão da gestão de competências é um assunto complicado. Veja o meu caso: tendo que coordenar distribuidores em todo o Brasil, preciso me valer de mecanismos que agreguem valor tanto aos meus clientes como aos membros integrantes da minha rede. Recentemente, em auditoria realizada pelos meus profissionais, descobrimos, por exemplo, que uma de nossas distribuidoras, a Refrescos Cariocas, mantinha os nossos produtos em instalações imundas. Isso é coisa própria de empresa que não sabe trabalhar, de quem é incompetente para sobreviver na selva do mercado. Imediatamente mandei cancelar o contrato. É assim que tem que ser! Li sobre isso na Arte da Guerra.

61 Pontes de miranda. Tratado, cit., p. 45.

62 vide, nesse sentido, gustavo tepedi-no. Temas de Direito Civil. rio de Janei-ro: renovar, 2001. p. 499.

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Na semana seguinte à publicação da entrevista, a Refrescos Cariocas ingres-sou com ação de indenização por danos morais contra o diretor da Milenium. Em sua petição inicial, alegava o advogado que a honra de sua cliente havia sido abalada pelo pronunciamento desdenhoso do diretor.

Em uma outra ação judicial, proposta contra o diretor da Milenium no mes-mo dia, Antônio Carioca, diretor da Refrescos Cariocas, argumentou que, por conta das declarações, ele, pessoa física, teve a sua honra abalada, pois há mais de dez anos trabalha para a Milenium e jamais poderia esperar de seu parceiro comercial de longa data uma postura como essa. Na petição inicial, Antônio juntou aos autos o recibo dos medicamentos que teve que comprar por orienta-ção médica, uma vez que entrou em crise nervosa ao ler a referida entrevista.

Com base no caso acima, responda:

1. Na ação de danos morais proposta pela Refrescos Cariocas, a contesta-ção apresentada pela Milenium defende a tese de que a ação deveria ser julgada extinta pois pessoas jurídicas não poderiam ser vítimas de lesões à personalidade. Argumenta a empresa ré que pessoas jurídicas teriam apenas capacidade, mas não personalidade jurídica, o que as impediria de ser partes legítimas no pólo ativo de ações indenizatórias por dano moral. Você concorda com esse argumento? Desenvolva a sua resposta de modo a fundamentar o entendimento acima ou a rebatê-lo. Utilize jurisprudên-cia em reforço à linha de argumentação desenvolvida.

2. A ação de danos morais proposta por Antônio Carioca deve ser julgada procedente? Justifique com argumentos jurídicos.

3. Suponha agora que, ao invés de uma entrevista com o diretor da Milenium, a revista Liderança tivesse divulgado um ranking das piores distribuidoras de alimentos e bebidas no Estado do Rio de Janeiro. No gráfico que ilus-tra a reportagem, a Refrescos Cariocas figura entre as últimas colocadas. Já no texto da mesma reportagem, o repórter Juca Gonçalves afirma “[...] dentre as últimas colocadas se destaca a empresa Refrescos Cariocas. Por sinal, não sabemos como essas empresas ainda conseguem clientes.”

Ao tomar conhecimento da reportagem, a Refrescos Cariocas indaga a você, na qualidade de advogado especialista em contencioso cível, o que poderia ser feito para buscar indenização pelo prejuízo sofrido: ingressar com uma ação in-denizatória contra o jornalista Juca Gonçalves, contra a Editora Letra Morta, empresa responsável pela publicação da revista Liderança, ou contra Alfredo Dourado, diretor-presidente da Editora Letra Morta? Responda com base na legislação aplicável e mencione o entendimento atual do STJ sobre a questão jurídica envolvida na consulta.

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AuLA 7. DIREITOS DA PERSONALIDADE – DIREITO à PRIvACIDADE

EmEntário dE tEmas

Conceito de Privacidade – Privacidade na Constituição Federal e leis ordiná-rias – Alcance do art. 21 do Código Civil – Questões controvertidas

caso gErador

“O desespero do cartola”

LEitura obrigatória

DONEDA, Danilo. “O Direito à Privacidade nos Bancos de Dados Infor-matizados”. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Problemas de Direito Civil­Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. pp. 111-136.

LEituras compLEmEntarEs

SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à Intimidade e à Vida Privada. Belo Horizonte: Del Rey, 1998. pp. 209-225.

1. rotEiro dE auLa

A privacidade é uma construção cultural moderna.63 Ainda que se possa identificar no decorrer da história um desejo inato e perene do ser humano por um eventual isolamento, a primeira concepção de privacidade, atrelada ao “direito de estar só”, de afastar o conhecimento público dos assuntos pri-vados, apenas surgiu com as revoluções burguesas e a afirmação do estilo de vida oitocentista.

Adicionalmente, a privacidade apenas se fez reconhecer como um direito a ser tutelado a partir de estudo doutrinário que remonta a 1890, tendo sido aco-lhida por parte da jurisprudência apenas nos idos do século XX.

A distinção entre vida privada e vida pública possui um sentido de equilí-brio e complementaridade, exercendo grande influência na história da vida do homem. Essa distinção, todavia, deve ser tomada como um elemento histórico, herdeira dos momentos mais representativos da história do homem, desde a sua concepção rudimentar na Antiguidade Clássica até o seu necessário reconheci-mento em meio ao ritmo acelerado dos últimos séculos.64

63 stefano rodotà. “Privacy: valore e di-ritto”, palestra proferida no liceo isacco newton, em 6 de outubro de 1998. dis-ponível no site http://www.emsf.rai.it, acessado em 30.08.2003.

64 nelson saldanha. O Jardim e a Pra-ça. Porto alegre: sérgio fabris, 1986. p. 26.

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O desenvolvimento da privacidade esteve sempre, durante o século XIX, atre-lado a uma crescente valorização da figura do indivíduo perante a vida pública e ao Estado. Será justamente o individualismo, detectado como uma das mati-zes mais fortes na sociedade norte-americana por Tocqueville, que propiciará a criação de uma tutela jurídica para a privacidade naquele país ao final do século. Trata-se do “direito a estar só” (right to be left alone).

a defesa do “direito a estar só” nos Estados unidos

Nos Estados Unidos, a discussão em torno do direito à privacidade tem ori-gem na publicação em 1890 do artigo da autoria de Samuel Warren e Louis D. Brandeis, intitulado “The Right to Privacy”, o qual buscou alcançar a conceitua-ção de um direito geral de privacidade, sob o ponto de vista do direito a estar só.

Embora o artigo de Brandeis e Warren tenha recebido ampla aprovação pela comunidade acadêmica, em um primeiro momento os tribunais norte-america-nos não reconheceram o direito à privacidade como possível de ser protegido por si só. Nesse sentido, a Corte de Apelação de Nova Iorque decidiu, em 1902, no caso Roberson vs. Rochester Folding Box Company, que o direito à privacidade não possuía proteção no sistema de Common Law. Entendeu a referida Corte que a teoria era por demais ampla para permitir qualquer aplicação prática, su-gerindo que leis fossem editadas com o objetivo de delimitar o conteúdo desse novo direito individual.

Já em 1905, todavia, a Corte de Apelações da Georgia reconheceu pela pri-meira vez a existência do direito à privacidade independentemente de se ter expedido uma lei que o contemplasse expressamente. Esse fato ocorreu na de-cisão do caso Pavesich vs. New England Life Insurance Co., seguindo-se, então, diversas decisões judiciais que terminaram por tutelar o direito do indivíduo a estar só, de ter deixada a sua vida íntima em sossego e à parte de suas atividades públicas.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, por sua vez, já teve oportunidade de decidir vários casos de forma a preservar o direito a estar só.

Em 1960, William L. Prosser, em consonância com a teoria traçada no artigo de Brandeis e Warren relativamente à tutela do direito individual de estar só, pu-blicou um artigo no qual elencou diversos casos nos quais o direito à privacidade já havia sido reconhecido judicialmente.65

Deve-se destacar que a proteção inicialmente conferida pelos Estados Uni-dos à privacidade estava, por força da ideologia vigente à época, excessivamente atrelada aos preceitos de um individualismo que procurava opor o particular às invasões descabidas por parte do Poder Público.

Nessa direção, em A Democracia na América, obra que retrata de forma la-pidar o espírito de um povo, e de uma determinada época, Alexis de Tocque-ville descreveu o individualismo que lhe pareceu presente na sociedade norte-americana como “um sentimento tranqüilo e meditado que torna cada cidadão disposto a isolar-se da massa de seus iguais e retira-se para o círculo da família

65 William Prosser. “Privacy”, in Cali-fornia Law Review, n. 48, 1960, pp. 383-423.

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ou dos amigos; havendo formado essa pequena sociedade a seu gosto, deixa que a sociedade mais ampla cuide de si própria”.66

Essa concepção de vida encontra-se em sintonia com a primeira configuração do direito à privacidade: o direito de estar só, longe da vigilância e da intromis-são públicas. Assim desejava o burguês do século XIX, e encontrou solo fértil para a transformação de um anseio em instituto jurídico na sociedade norte-americana.

Ao menos em teoria, privacidade e individualismo compuseram uma receita que possibilitou ao homem apurar o seu ideal de liberdade, pois “o espaço pri-vado significava espaço para escolhas genuínas, o que é outra maneira de dizer liberdade”.67

A discussão em torno do direito à privacidade terminou por proporcionar a elaboração de diversas leis nos Estados Unidos, podendo-se citar, por exemplo, o Privacy Protection Act, de 1980, o Electronic Communications Privacy Act, de 1986, o Telephone Consumer Privacy Act, de 1991, e o Children’s Online Privacy Protection Act, de 1998.

Ao mesmo tempo, diversas organizações foram criadas com o intuito pre-cípuo de zelar pela privacidade, sobretudo considerando-se o crescimento na utilização dos meios informáticos de tratamento da informação na Internet, podendo-se destacar a Online Privace Alliance, a Electronic Privacy Information Center e outras bastante atuantes no setor de defesa dos direitos individuais, como a Electronic Frontier Foundation e o Center for Democracy and Technology.

a privacidade entre o individual e o coletivo

O dinamismo e a facilidade com que atualmente podem ser angariadas in-formações de caráter pessoal suscitam diversas questões envolvendo a proteção jurídica da privacidade. Todavia, frente aos novos desafios impostos pelos meios de comunicação digitais, sobretudo pela Internet, nota-se que o sentido da pro-teção ao direito da privacidade não pode mais estar adstrito ao simples resguardo do isolamento. A doutrina defendida, com pionerismo, por Brandeis e Warren no sistema da Common Law necessita ser revisitada para que a privacidade seja tutelada da forma devida na Sociedade da Informação.

Nesse sentido, o enquadramento da privacidade como direito da persona-lidade ganha destaque. O direito à privacidade, se apresentado como proteção ao isolamento, pode ser concebido como o mais individualista dos direitos da personalidade, pois justamente tutelaria a alienação de um indivíduo perante a sociedade.

Adicionalmente, deve-se aqui compreender os direitos da personalidade não apenas como instrumentos de poder individual. Essa concepção, não alcança o caráter ético dos direitos da personalidade, pois os considera como os alicerces da primazia do indivíduo sobre uma sociedade opressora composta por terceiros que potencialmente poderão invadir a sua esfera privada, apropriar-se do seu nome, lesionar sua honra, seu corpo, etc.

66 alexis de tocqueville. Democracy in America, v. 2. nova iorque: max lerner, 1966. p. 477.

67 Peter gay. O Século de Schnitzler. são Paulo: Companhia das letras, 2002. p. 291.

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Muito ao reverso, essa ótica dos direitos da personalidade de cunho estrita-mente individualista encontra hoje forte repúdio pela melhor doutrina nacional e estrangeira, a qual busca aclimatar a defesa da personalidade como forma de proteção de interesses partilhados por todas as pessoas, visualizando o homem em sociedade e protegendo minorias. Assim se pronuncia sobre o tema José Oliveira Ascensão:

A entender assim, o direito da personalidade transforma-se no direito dos ego-ísmos privados. Contradiz o que deveria ser a sua base fundamental, que é a con-sideração da pessoa. A pessoa é convivência e sociedade. Nenhuma consideração de intimidade pode ser mais forte que esse traço essencial da personalidade.68

Partindo-se dessa nova feição dos direitos da personalidade e, conseqüente-mente, do direito à privacidade, percebe-se como o mesmo deixa de representar a salvaguarda do isolamento individual para tornar-se instrumento de combate contra políticas de discriminação religiosa, política ou sexual, conferindo à pes-soa o controle sobre as suas informações de caráter privado.

Identificando a defesa do direito à privacidade com o reconhecimento de verdadeiros sujeitos coletivos, manifesta-se Stefano Rodotà:

Tende-se a mudar o sujeito do qual emana a demanda da defesa da priva-cidade e muda mesmo a qualidade desta demanda: vindo em primeiro plano a modalidade do exercício de poder da parte dos detentores públicos e privados das informações, a evolução do direito à privacidade supera o tradicional quadro individualista e dilata-se em uma dimensão coletiva, no momento em que se considera não o interesse do indivíduo como tal, mas como integrante de deter-minado grupo social.69

Pode-se asseverar que a lógica de defesa da privacidade migra, portanto, da esfera do isolamento individual para abranger uma concepção mais ampla do controle da circulação de informações pessoais. Supera-se a definição do direito à privacidade como o direito a estar só em prol de uma concepção do mesmo como o direito de controlar a utilização das informações pessoais.

Trata-se, como lembra José Adércio Leite Sampaio, de um incremento na tutela tradicional do direito à privacidade, essencialmente arraigado ao viés negativo, ou seja, de proibição de condutas que atentem contra o “direito de estar só”, para que seja acrescentada uma proteção positiva, consubstanciada no direito de controle das informações pessoais. Uma vez posta tal configuração do direito de privacidade, pode-se abrir espaço para o reconhecimento da chamada “liberdade informática”70, ou, em sentido mais abrangente, a autodeterminação informativa.71

O direito geral à autodeterminação informativa tem por postulado a faculda-de de o particular determinar e controlar a utilização dos seus dados pessoais72, sendo o mesmo concretizado, por exemplo, através de medidas judiciais como o habeas data, previsto constitucionalmente no Direito brasileiro.

68 José oliveira ascensão. Teoria Geral do Direito Civil. lisboa: faculdade de direito, 1996. p. 121.

69 stefano rodotà. Tecnologie e Diritti. milão: il mulino, 1995. p. 119.

70 sobre a tutela da liberdade informá-tica no brasil e no direito comparado, veja-se o artigo de renato de Castro moreira, “o direito à liberdade infor-mática”, in Revista dos Tribunais, n. 778, agosto/2000.

71 José adércio leite sampaio. Direito à Intimidade e à Vida Privada. belo Hori-belo Hori-zonte: del rey, 1998. p. 497.

72 Cf. J. J. gomes Canotilho. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Coimbra: almedina, 1999. p. 480-481.

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Ao se entrever essa função do direito à privacidade, pode-se perceber como a proteção dos dados pessoais opera de forma a impedir que sua apropriação venha a se dar para fins discriminatórios. Ao se controlar a coleta, o armazena-mento e a utilização de dados, não se busca apenas resguardar o indivíduo cujos dados estão relacionados, mas também o grupo social no qual o mesmo está inserido, notoriamente caso tais dados demonstrem aspectos sensíveis de sua personalidade.

a constitucionalização da privacidade dos dados pessoais

Frente ao célere processo do desenvolvimento das técnicas informáticas de tratamento de dados, a partir dos anos 1970, é possível delinear-se uma preocu-pação por parte de diversos países no sentido de atualizar o texto de suas Cons-tituições de forma a prever, genérica ou especificamente, a tutela da privacidade relativamente aos dados de caráter pessoal.

Neste sentido, a Constituição portuguesa de 1976 prevê em seu artigo 26 o reconhecimento de todos ao direito à identidade pessoal, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade e da vida privada e familiar.

O artigo 35, por seu turno, regulamentou a utilização da informática, con-tendo dispositivos bastante específicos, como o direito de se conhecer toda a informação pessoal constante de registros mecanográficos, sendo reconhecido o direito de tê-los retificados; a proibição do manejo de meios informáticos para que se efetue o tratamento de dados concernentes a convicções filosóficas ou políticas, com a exceção do processamento de dados pelo Estado de forma não identificáveis individualmente; além da proibição de se atribuir um número de identificação único aos cidadãos.

Em 1978, a Espanha igualmente tutelou a proteção da privacidade, dispon-do a Constituição, em seu artigo 105.b, que o acesso dos cidadãos aos arquivos administrativos deveria ser regulamentado por lei.

Segundo reporta José Adércio Leite Sampaio73, diversas Constituições de pa-íses europeus seguiram pelo mesmo caminho, podendo-se mencionar a Consti-tuição dos Países Baixos, de 1983, em seu art. 10; a Constituição da Hungria, de 1989, em seu art. 59.1; e a Constituição da Suécia, de 1990, em seu artigo 3º.

O Brasil, por sua vez, possui no texto constitucional não apenas a proteção da privacidade através de enunciados genéricos de atribuição de direitos, mas também a previsão de sua concretização através de ação própria (o habeas data). Assim, cumpre analisar-se mais detidamente a configuração do direito à privaci-dade na Constituição Federal e demais diplomas legais pátrios.

a tutela do direito à privacidade no brasil

O direito à privacidade é garantido constitucionalmente no Brasil. A Cons-tituição Federal brasileira contempla não apenas o direito à privacidade com

73 José adércio leite sampaio. Direito à Intimidade, cit., p. 480.

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respeito à preservação da vida privada e da intimidade da pessoa, mas também garante a inviolabilidade da correspondência, do domicílio e das comunicações, em consonância com o previsto no artigo 5º, X e XII:

Artigo 5º, X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a ima-gem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”

Artigo 5º, XII: “É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de inves-tigação criminal ou instrução processual penal.”

A Constituição brasileira não esgota na declaração de direitos dos incisos X e XII a proteção concedida ao direito à privacidade, municiando ainda o indiví-duo, através de seu artigo 5º, LXXII, com a possibilidade de recorrer ao Poder Judiciário para que lhe seja garantido o acesso aos seus dados pessoais armazena-dos por entidades públicas.

À luz dos dispositivos constitucionais acima referidos, cumpre destacar o en-tendimento de Tercio Sampaio Ferraz Junior, segundo o qual o sistema insti-tuído pela Constituição para a proteção da privacidade de dados pessoais não visa proteger exatamente um direito de propriedade de certo indivíduo sobre as suas informações, tal qual um direito de propriedade clássico. O viés da tutela constitucional encontrar-se-ia, portanto, no processo de comunicação de tais dados, fornecendo aos interessados meios de impedir a manipulação estratégica de dados (grampeamento e violação de circuitos informáticos), a divulgação de informação inexata (tutela do direto à imagem) ou ainda que fira a privacidade pessoal (coleta e armazenamento de dados pessoais em bancos de dados).74

Existem ainda outras leis que regulamentam a privacidade em áreas espe-cíficas, como, por exemplo, a Lei nº 5.250/67, a chamada Lei de Imprensa, que estabelece penalidades para pessoas que, no exercício da atividade jorna-lística, revelarem fatos que violem a privacidade e a intimidade alheias; e a Lei nº 9.296/96, que estabelece as condições necessárias para a interceptação telefônica.

O Código Civil, por seu turno, contempla o direito à privacidade no art. 21 da seguinte forma:

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.

Pela leitura da redação do art. 21, percebe-se de imediato que o legislador optou por restringir a titularidade do direito à privacidade no Brasil apenas para as pessoas físicas, estando implicitamente excluída a possibilidade de se tutelar a privacidade de pessoas jurídicas.

74 tercio sampaio ferraz Junior. “a li-berdade como autonomia recíproca no acesso à informação”. in: greCo, marco aurélio; martins, ives gandra da silva. Direito e Internet. são Paulo: revista dos tribunais, 2001. p. 247.

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Adicionalmente, o art. 21 refere-se ao fato de que, em atendimento à solici-tação da parte prejudicada, caberá ao Poder Judiciário adotar “as providências necessárias” para garantir a tutela da privacidade. A redação abrangente do dis-positivo, que não se limita apenas a hipóteses de responsabilização civil pelo dano causado, poderá gerar efeitos salutares para o desenvolvimento da proteção à privacidade. Conforme expõe Danilo Doneda, em comentário ao artigo:

Ao clamar pela criatividade do magistrado para que tome as providências adequadas, o Código Civil dá mostras da necessidade de um atuação específica de todo o ordenamento na proteção da privacidade da pessoa humana, que seja uma resposta eficaz aos riscos que hoje corre.75

Deve-se lembrar, ainda, da pouco mencionada Lei nº 9.454, de 07.04.1997, que institui o número único de Registro de Identidade Civil pelo qual cada cida-dão brasileiro, nato ou naturalizado, será identificado em todas as suas relações com a sociedade e com os organismos governamentais e privados. Tal lei, ainda não regulamentada, poderá acarretar sérios entraves para a defesa da privacidade, uma vez que o estabelecimento de um cadastro único facilita o controle social e, unificando as informações de diversos bancos de dados então dispersos, poderá simplificar a construção indevida de perfis individuais.

O direito à privacidade entra em colisão constante com o exercício da liber-dade de manifestação do pensamento e da informação, principalmente no que se refere às publicações que visam à exploração da vida particular de pessoas notórias. Esse tema será abordado em outra aula.

Por ora, tente visualizar quais outros direitos podem entrar em conflito com a proteção da privacidade. Como você resolveria esses conflitos?

caso gErador

“o desespero do cartola”

Recém-chegado de uma conturbada reunião com o atual Ministro dos Es-portes, um famoso cartola de um clube de futebol do Estado do Rio de Janeiro o procurou em seu escritório para formular a seguinte consulta:

O artigo 18 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003, estabelece que “[o]s está-dios com capacidade superior a vinte mil pessoas deverão manter central técnica de informações, com infra-estrutura suficiente para viabilizar o monitoramento por imagem do público presente”.

Alega o cartola que a segurança dos seus torcedores está em primeiro lugar em suas prioridades, mas que o mesmo estava receoso de instalar o referido sistema de monitoramento, pois algum torcedor (adversário) poderia ingressar

75 danilo doneda. “os direitos da perso-nalidade no novo Código Civil”. in: te-Pedino, gustavo (coord.). A Parte Geral do Código Civil. rio de Janeiro: renovar, 2003. pp. 52-53.

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com medida judicial contra o clube sob o fundamento de que a sua privacidade havia sido invadida.

Ponderando o relevo da segurança coletiva nos estádios de futebol e o direito à privacidade do torcedor, elabore resposta à consulta formulada pelo seu cliente.

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AuLA 8. DIREITOS DA PERSONALIDADE – DIREITO à PRIvACIDADE E TECNOLOGIA

EmEntário dE tEmas

Privacidade na Internet – Coleta de dados pessoais e bancos de dados infor-matizados – Cookies – Envio de mensagens eletrônicas não solicitadas (spam) – Correio eletrônico e ambiente de trabalho

casos gEradorEs

“Analisando o e-mail” e “Spyware e Privacidade”

LEitura obrigatória

DRUMMOND, Victor. Internet, Privacidade e Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. pp. 96-129.

LEituras compLEmEntarEs

SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral na Internet. São Paulo: Método, 2001. pp. 184-236.

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As ameaças ao direito à privacidade foram severamente incrementadas na me-dida em que o progresso tecnológico permitiu que novas formas de violação à pri-vacidade alheia fossem desenvolvidas. A rede mundial de computadores, por sua vez, constitui um ambiente favorável para incursões em afronta à privacidade, pois parcela significativa de seus usuários desconhece os meios pelos quais informações pessoais são coletadas através do hábito de navegação por páginas eletrônicas.

Nesse sentido, é importante notar que o tratamento da informação por com-putadores permite não apenas seu célere processamento para fins idôneos, mas também para o cruzamento indevido de dados pessoais e a interceptação de co-municações. Diversas são as formas de invasão à privacidade atualmente discuti-das, podendo-se destacar algumas considerações sobre: (i) a utilização de cookies para o monitoramento e personalização da navegação; (ii) o envio reiterado de mensagens eletrônicas não solicitadas (spams); e (iii) a privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho.

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os cookies e os bancos de dados informatizados

O debate sobre a legalidade da coleta de informações pessoais pelos cookies tem-se mostrado uma das questões mais controvertidas no que tange à tutela dos direitos da personalidade na Sociedade da Informação. Para que se compreenda corretamente a ameaça representada pela sua utilização indiscriminada na rede mundial de computadores, faz-se necessário conjugar conhecimentos tecnológi-cos e jurídicos. A análise da questão exclusivamente através de um desses aspec-tos conduzirá a um entendimento equivocado, não raramente radical, que falha em perceber a complexidade do debate.

Os cookies são pequenos arquivos de texto que são enviados pelo servidor de um site acessado na Internet diretamente para o disco rígido do computador do usuário. O arquivo, uma vez inserido no computador, servirá então como repo-sitório de informações que dizem respeito à pessoa do usuário, bem como aos seus hábitos de navegação na Internet (quais páginas foram visitadas e com que freqüência; quais compras foram efetuadas; anúncios visualizados, etc.).76

Segundo definição de Antonio Jeová Santos, os cookies “[s]ão arquivos de da-dos gerados toda vez que a empresa que cuida da manipulação de dados, recebe instruções que os servidores web enviam aos programas navegadores e que são guardadas em diretório específico do computador do usuário”.77

A tecnologia dos cookies desempenhou uma função de grande relevo para o sucesso da Internet, na medida em que é o cookie que permite ao usuário obter uma navegação mais personalizada pelas páginas eletrônicas da rede. O desen-volvimento dessa tecnologia foi impulsionado pelo desejo de tornar mais agra-dável, e prática, a utilização da Internet.

Dessa forma, não necessariamente o cookie representa uma tecnologia pro-jetada com fins exclusivos de invadir ilicitamente a privacidade dos usuários da rede mundial de computadores, como mencionam, equivocadamente, alguns autores.78 O que deverá ser observado é como essa tecnologia será utilizada, não se condenando previamente um programa de computador, em si, por permitir que o seu uso seja realizado de forma a violar direitos de terceiros.79

Diversas práticas ilícitas, que representam séria ameaça à privacidade, têm acontecido na Internet por intermédio da utilização dos cookies, mas é preciso analisar sempre o interesse por trás da manipulação da tecnologia. Assim será possível perceber se o programa de computador é capaz de promover algum bem-estar de forma lícita, ou se apenas foi desenvolvido para a realização de condutas ilegais.

Uma vez inserido no disco rígido do usuário, o cookie permite que, em retor-nando a uma página previamente visitada, o usuário possa ter acesso a informações que são do seu interesse, uma vez que o arquivo pode armazenar as preferências de navegação da pessoa, definindo um perfil que será utilizado pela empresa que explora o site, tanto para direcionar notícias que possam ser do seu interesse como para oferecer produtos que se enquadrem no seu perfil de consumo. A questão é: como essa empresa teve acesso às informações pessoais do usuário?

76 Para maiores explicações sobre o funcionamento dos cookies, vide as seguintes páginas eletrônicas com dicas sobre informática: http://www.dicas-l.unicamp.br/dicas-l/19970711.shtml (acessada em 30.07.2005); e http://www.geocities.com/CollegePark/9145/cookies.html (aces-sada em 30.07.2005).

77 antonio Jeová santos. Dano Moral na Internet. são Paulo: método, 2001. p. 196.

78 sonia aguiar do amaral vieira. Inviolabilidade da Vida Privada e da Intimidade pelos Meios Eletrônicos. são Paulo: Juarez de oliveira, 2002. p. 95; e antonio Jeová santos. Dano Moral na Internet, cit., pp. 196-197.

79 Conforme tese exposta por lawrence lessig, em seu parecer apresentado no processo judicial movido por A&M Records Inc. contra Napster Inc., por conta de infração a direitos autorais decorrentes da utilização do programa de computador de troca de arquivos na internet, desenvolvido pela ré (http://www.lessig.org/content/testimony/nap/napd3.doc.html, acessada em 30.07.2005).

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O cookie pode coletar tanto as informações que a pessoa voluntariamente fornece, por exemplo quando preenche um cadastro, como organizar um perfil do usuário com base no tipo de páginas eletrônicas visitadas.

Pode o usuário optar por não fornecer os seus dados, ou mesmo impedir que cookies sejam instalados em seu computador, através de medidas técnicas usualmente simples, pois basta configurar o seu programa de navegação (brow­ser) para que o recebimento de cookies seja proibido. Todavia, essas providências geralmente resultam em problemas para se acessar as páginas eletrônicas na rede mundial de computadores.80

O debate sobre a violação da privacidade do usuário deve então ser analisado em três momentos distintos da utilização dos cookies: (i) a coleta, (ii) o armaze-namento e (iii) a utilização dos dados pessoais.

Com relação à coleta dos dados, é importante notar que deve o usuário da Internet estar ciente de que algumas informações pessoais podem ser coletadas quando do acesso a um site na rede mundial de computadores. No Direito brasi-leiro, a questão está regulada no âmbito das relações de consumo. Dentre outras medidas protetoras, o Código de Defesa do Consumidor contempla, em seu ca-pítulo V, seção VI, uma regulamentação especial em relação aos bancos de dados e cadastros formados a partir de informações dos consumidores. Como previsto no artigo 43, muitas obrigações são impostas aos administradores dos bancos de dados, como, por exemplo, revelar a cada consumidor a informação coletada a seu respeito. É a redação do artigo 43 do CDC:

Art. 43. O consumidor, sem prejuízo de disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consu-mo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.

§ 1º Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, ver-dadeiros e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas referentes a período superior a cinco anos.

§ 2º A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo de-verá ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.

§ 3º O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e ca-dastros, poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informa-ções incorretas.

Dessa forma, não é possível, no Direito brasileiro, que informações pessoais sejam coletadas sem o consentimento do consumidor. Todavia, essa prática tem sido descumprida reiteradamente, em ostensiva violação ao comando do CDC.

Victor Drummond, por seu turno, entende que não haveria qualquer in-fração à privacidade na simples coleta de dados dos usuários pelos cookies. Esse entendimento baseia-se na hipótese de que a lesão à privacidade decorre apenas da utilização indevida das informações coletadas:

80 reporta Christiano german uma dificuldade encontrada pelo usuário da rede mundial de computadores quando configura o seu browser para que não seja permitida a colocação de cookies em seu disco rígido: “o prove-dor de acesso brasileiro uol (www.uol.com.br) reage com insistência es-pecialmente desagradável se o usuário não aceita nenhum dos seus cookies em seu computador. nesse tocante, ele praticamente não se distingue dos seus pendants nos estados unidos e na euro-pa. inicialmente, o acesso a homepage sofre um retardamento. depois disso, o usuário precisa rejeitar 14 (quatorze) tentativas de se colocar um cookie. se ele quiser em seguida chamar uma das janelas na oferta do uol, o procedi-mento inicia uma vez mais da estaca zero.” (O Caminho do Brasil rumo à Era da Informação. são Paulo: fundação Konrad adenauer, 2000. p. 87).

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Reputamos como correta a interpretação de que o grande problema dos cookies decorre das utilizações que se faz após a coleta dos dados, sendo que, em geral, a coleta em si, acaba por não representar violação de privacidade.81

A legislação consumerista apresenta algumas ponderações sobre essa linha de argumentação, pois demanda que a pessoa cujos dados são ingressados em banco de dados seja cientificada não apenas do fato, mas também de quais informações foram objeto dessa conduta. Assim, caso a cientificação tenha sido realizada de forma clara, a coleta de dados pessoais torna-se legítima.

Com relação ao armazenamento, é importante notar que o consumidor, por for-ça do art. 43 do CDC, deverá ter acesso aos seus dados constantes do banco de da-dos da empresa que explora o site, sendo-lhe ainda permitido exigir a sua correção, caso encontre alguma inexatidão. O não-cumprimento da requisição encaminhada pelo usuário submete o infrator às disposições do art. 84 do Código de Defesa do Consumidor, podendo o mesmo ser condenado a cumprir a sua obrigação de fazer sob pena de multa, ou mesmo pagar indenização por perdas e danos causados.

Finalmente a utilização das informações armazenadas tem por escopo prote-ger a pessoa cujas informações foram coletadas contra o manuseio indevido de seus dados pessoais. É especialmente relevante nesse contexto a prática dissemi-nada na Internet de venda de cadastros sem que seja feita qualquer notificação do fato ao usuário que forneceu os dados.

Embora os tribunais venham aplicando largamente o CDC no que se refere a diversos assuntos, as exigências específicas do art. 43 não têm sido, ainda, total-mente observadas, especialmente no que diz respeito à revelação ao consumidor dos dados coletados sobre ele.

novas formas de marketing – o spam

Através das informações colhidas de diversas formas, seja através de cookies, conforme visto acima, ou mediante a compra de listas contendo até mesmo milhares de endereços de correios eletrônicos, desenvolveu-se uma forma de ma-rketing direto bastante eficaz, para o fornecedor de produtos e serviços, no que tange ao alcance de sua divulgação. Trata-se dos chamados spams, termo que designa o envio de mensagens eletrônicas não solicitadas.82

Facilitado pelo dinamismo das comunicações realizadas através da Internet, o fluxo de tais mensagens aumenta constantemente em todo o mundo, tornando-se um verdadeiro transtorno para os usuários da Internet. Os spams podem ver-sar sobre qualquer assunto, ainda que mais usualmente essa prática seja utilizada para fins comerciais.

Na ausência de uma legislação específica que coíba a prática de envio reite-rado de mensagens não solicitadas, busca a doutrina nacional responsabilizar o spammer, civil e criminalmente, pela sua atitude. Assim, os mais diversos dispo-sitivos legais são invocados sem que se alcance um entendimento coerente sobre o assunto.

81 victor drummond. Internet, Privaci-dade e Dados Pessoais. rio de Janeiro: lumen Juris, 2003. p. 103.

82 o termo spam foi originalmente cunhado pelo grupo cômico inglês monthy Phyton, que o utilizava em quadro humorístico no qual, para todos os pratos servidos em um restaurante, o garçom mencionava que o prato viria acompanhado com spam. embo-ra nunca se tenha esclarecido o que exatamente seria spam, ele era sem-pre mencionado em todo e qualquer pedido feito pelos clientes. vide http://www.pythonline.com/ (acessado em 30.08.2003).

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Um dos dispositivos mais referidos pela doutrina para buscar-se enquadrar a prática de spam é o art. 39, III, do CDC, que assim está redigido:

Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras prá-ticas abusivas:

[...] III - enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer produto, ou fornecer qualquer serviço.83

Vale destacar que o art. 84 do CDC, que prevê a possibilidade de se obter em juízo uma ordem que obrigue a parte contrária à observância de uma obrigação de fazer ou não fazer, também poderá ser acionado para que se impeça o spam­mer de prosseguir com o envio de mensagens não solicitadas.

No aspecto penal, Amaro Moraes e Silva Neto chega a propor que, em sendo a Internet um serviço de utilidade pública, a prática do envio de spam poderia ser enquadrada no artigo 265 do Código Penal, segundo o qual será aplicada pena de reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, além de multa, a quem atentar contra o funcionamento e a segurança de serviços de utilidade pública.84

De toda sorte, para que se logre êxito em responsabilizar o envio reiterado de mensagens eletrônicas, deverá ser comprovado dano causado. Nesse ponto, interessa pouco o debate travado na doutrina sobre o melhor artigo de lei a ser utilizado para a condenação do spammer. O próprio art. 186 do Código Civil ofereceria base para que se buscasse indenização contra o remetente das mensa-gens, ao dispor que:

Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou impru-dência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

Em se entendendo que o envio de spam representa violação à privacidade, poder-se-ia, inclusive, acionar o dispositivo do art. 12 do Código Civil, que, de forma genérica, garante a tutela dos direitos da personalidade.

Todavia, no que concerne à prova do dano, é importante notar que a sua apresentação poderá ser dificultada pelas circunstâncias do encaminhamento de spam. É comum, nesse sentido, alegar-se que o dano causado pelo spam adviria da perda de tempo resultante da constante exigência de se apagar mensagens não solicitadas da caixa postal eletrônica.

No Brasil, a primeira decisão proferida sobre a matéria esposou o entendi-mento de que com relação ao envio de propaganda não solicitada na Internet “não há o que se falar em violação à intimidade, à vida privada, à honra e à ima-gem de alguém ou prejuízos de ordem material”.85

Sendo assim, é preciso que se dedique maior atenção à questão da prova do prejuízo causado pelo spam, prática reprovável que se institucionalizou na In-ternet, e que demanda a reação do ordenamento jurídico para que essa conduta seja coibida.

83 nessa direção, vide sonia aguiar do amaral vieira. Inviolabilidade, cit., p. 121; e amaro moraes e silva neto. E-mails Indesejados à luz do Direito. são Paulo: quartier latin, 2002. p. 156.

84 amaro moraes e silva neto. Priva-cidade na Internet, cit., p. 97. neste sentido, vale ressaltar, com base nas informações de robert b. gelman e stanton mcCandlish, que o grande fluxo de mensagens não solicitadas não está, de forma alguma, conges-tionando o tráfego de informações na internet, uma vez que a maior parte de tais mensagens são apenas arquivos de texto. todavia, lembram os referidos autores, os spams podem congestionar o servidor de e-mails de uma pessoa, ou mesmo fazer com que o espaço má-ximo reservado para suas mensagens seja ultrapassado (Protecting Yourself Online, cit., p. 123-125).

85 trecho da sentença da juíza rosân-gela leiko Kato, da 6ª vara do Juizado especial Cível de micro empresas, de Campo grande, mato grosso do sul (processo nº 2001.166.0812-9). se-gundo informa victor drummond, a decisão foi confirmada em segunda instância (Internet, Privacidade e Dados Pessoais, cit., p. 115).

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a privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho

Uma terceira situação que demanda a tutela da privacidade em decorrência dos avanços da Sociedade da Informação é a possibilidade de monitoramento da correspondência eletrônica do empregado, pelo empregador, no ambiente de trabalho.

A questão já foi enfrentada em algumas decisões dos tribunais brasileiros, mas ainda não se logrou obter um consenso sobre os limites que separaram a privaci-dade do empregado e o poder de direção do empregador.

Sendo assim, pode-se notar que a questão apresenta duas perspectivas de aná-lise, diametralmente opostas: (i) uma delas defende a possibilidade de se realizar o monitoramento do correio eletrônico dos empregados, baseando-se para tanto no direito de propriedade do empregador sobre a infra-estrutura utilizada pelo empregado, na possibilidade de responsabilização do empregador por atos de seus prepostos, bem como no poder de direção, previsto no art. 2º da CLT; e (ii) uma segunda perspectiva sobre a matéria apóia-se no direito à privacidade do trabalhador para obstar toda e qualquer ingerência do empregador sobre a correspondência eletrônica do empregado.

Cabe de início colocar-se uma ressalva: a maioria dos questionamentos surgi-dos nesse debate está relacionada com a utilização do endereço de correio eletrô-nico que é fornecido pelo empregador ao empregado quando de sua contratação (algo como [email protected]). A utilização do endereço de correio eletrônico particular no ambiente de trabalho, usualmente através de webmail, é questão menos controvertida, levando-se sempre em conta que essa utilização não pode prejudicar o rendimento do empregado em seu ofício, nem compro-meter a segurança do sistema de informática do empregador.

A maior celeuma reside justamente no caso do endereço de correio eletrôni-co fornecido pelo empregador justamente porque qualquer mensagem enviada através desse endereço leva consigo o nome da empresa que o contratou, além de apenas poder ser utilizado pelo mesmo enquanto contratado for.

Essas circunstâncias levam à reflexão sobre o direito de propriedade da infra-estrutura colocada à disposição do empregado. Nesse sentido, questiona-se Vic-tor Drummond sobre a propriedade não apenas dos computadores, mas tam-bém dos correios eletrônicos disponibilizados aos funcionários:

[P]ergunta-se: o que pressupõe o envio de mensagens via correio eletrô-nico? E afirmamos: pressupõe a utilização de um computador, um contrato de acesso a rede de computadores Internet através de um provedor de acesso e todo o aparato técnico, ainda que atualmente de razoável simplicidade, necessário para o funcionamento do sistema de recepção e envio de mensa-gens. Claro que tudo isso tem um custo para manter-se. E todo esse aparato tem um proprietário. No caso das empresas, fazem parte do seu patrimônio ativo e são colocados à disposição dos funcionários. E também aqui se insere o endereço de correio eletrônico. O endereço de correio eletrônico é, por-

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tanto, bem intangível. No presente caso, bem intangível de propriedade da empresa.86

Sendo assim, pela ótica do direito de propriedade, não haveria como se de-fender a privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho, uma vez que o próprio correio eletrônico não pertenceria ao empregado.

Adicionalmente, essa perspectiva vale-se ainda do argumento de que o em-pregador estaria legitimado a monitorar o conteúdo das mensagens eletrônicas de seus funcionários por força da responsabilidade civil que sobre o mesmo recai em decorrência de atos de seus funcionários (art. 932, III, do Código Civil). Dessa forma, o empregador não apenas poderia, como até mesmo deveria, mo-nitorar o correio eletrônico de seus empregados, como uma medida de preven-ção de danos.

Por fim, o empregador também poderia se valer do seu poder de direção, previsto no art. 2º da CLT, para justificar a intervenção sobre a correspondência eletrônica enviada por seus empregados, uma vez que cabe ao mesmo dirigir o negócio, sendo-lhe, por isso, concedida superioridade hierárquica sobre os em-pregados.

O monitoramento do correio eletrônico no ambiente de trabalho já foi re-conhecido pela jurisprudência dos tribunais nacionais, ressaltando-se os argu-mentos supramencionados para se legitimar o controle sobre as mensagens dos empregados. Nessa direção, assim decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região:

Quando o empregado comete um ato de improbidade ou mesmo um delito utilizando-se do e-mail da empresa, esta em regra, responde solidariamente pelo ato praticado por aquele. Sob esse prisma, podemos então constatar o quão grave e delicada é esta questão, que demanda a apreciação jurídica dos profissionais do Direito. Enquadrando tal situação à Consolidação das Leis do Trabalho, verifica-se que tal conduta é absolutamente imprópria, podendo configurar justa causa para a rescisão contratual, dependendo do caso e da gravidade do ato praticado. Considerando que os equipamentos de informática são disponibilizados pela empresas aos seus funcionários com a finalidade única de atender às suas ativida-des laborativas, o controle do e-mail, apresenta-se como a forma mais eficaz, não somente de proteção ao sigilo profissional, como de evitar o mau uso do sistema internet que atenta contra a moral e os bons costumes, podendo causar à empresa prejuízos de larga monta.87

Os argumentos levantados em prol do empregador foram explorados de for-ma sintética pelo voto do revisor do presente acórdão, do qual se extrai a seguin-te passagem:

Se o e-mail é concedido pelo empregador para o exercício das atividades labo-rais, não há como equipará-lo às correspondências postais e telefônicas, objetos

86 victor drummond. Internet, Privaci-dade e Dados Pessoais, cit., pp. 85-86.

87 recurso ordinário nº 054/2002-08-06, rel. márcia Cúrcio, publ. em 19.07.2002.

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da tutela constitucional inscrita no art. 5º, inciso XII, da CF. Tratando-se de fer-ramenta de trabalho, e não de benefício contratual indireto, o acesso ao correio eletrônico não se qualifica como espaço eminentemente privado, insuscetível de controle por parte do empregador, titular do poder diretivo e proprietário dos equipamentos e sistemas operados. Por isso, o rastreamento do sistema de provi-são de acesso à Internet, como forma de identificar o responsável pelo envio de fotos pornográficas a partir dos equipamentos da empresa, não denota quebra de sigilo de correspondência (art. 5º, inciso XII, da CF), igualmente não desqualifi-cando a prova assim obtida (art. 5º, inciso LVI, da CF), nulificando a justa causa aplicada ( CLT, art. 482).88

O direito à privacidade, por seu turno, figura como fundamento das decisões que se pronunciam favoravelmente ao empregado, protegendo a inviolabilidade de sua correspondência eletrônica em detrimento da discricionariedade absoluta do empregador no monitoramento das mensagens enviadas a partir do correio eletrônico da empresa.

Em decisão bastante controvertida, o Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região decidiu que a despedida por justa causa de empregado que enviou men-sagens de teor pornográfico não poderia prosperar, uma vez que não estaria con-figurada a alegada quebra de fidúcia no relacionamento laboral. É importante notar que a referida decisão ainda se manifesta no sentido de que a realização de auditagem na estação de trabalho do empregado violaria direitos da personalida-de. A ementa da decisão está redigida da seguinte forma:

CORREIO ELETRÔNICO – JUSTA CAUSA. É comum as empresas dis-ponibilizarem internet-correio eletrônico aos empregados, que os usam também com fins particulares. Releva aferir se tal uso (não importa o conteúdo) atrapalha o rendimento profissional do empregado ou constrange outras pessoas. O em-pregador deve propiciar ao trabalhador corrigir seu comportamento, aplicando advertências e, no caso de reincidência, suspensão e, finalmente, dispensa por justa causa, de forma gradual. A realização de auditagem na estação de trabalho do autor fere o direito ao sigilo de comunicação (CF-88, art. 5º, XII). O pará-grafo único do art. 1º da Lei 9.296-96 equipara as comunicações em sistema de informática e telemática, via e-mail, às comunicações telefônicas, em relação às quais cabe a quebra do sigilo somente por determinação judicial. Ilegal, pois, a imposição de cláusula autorizadora de realização de auditagem nas estações de trabalho dos usuários. Ainda, se o autor não era o único empregado a enviar e-mails particulares, todavia, os demais não sofrem qualquer penalidade, há nítido ato discriminatório. A inobservação da norma empresarial não caracterizou dano ao empregador, pois não comprovado efetivo prejuízo à ré ou constrangimento a terceiros. O uso, pelo autor, do computador da empresa, para envio de men-sagens particulares, mesmo que pornográficas e sem permissão, não é suficiente a demonstrar ausência de boa-fé na execução do contrato e acarretar quebra de fidúcia.89

88 extraído do voto do revisor douglas alencar rodrigues, in recurso ordi-nário nº 054/2002-08-06, rel. márcia Cúrcio, publ. em 19.07.2002.

89 tribunal regional do trabalho da 9ª região, recurso ordinário nº 05568-2002.

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O Tribunal Regional do Trabalho da 2º Região também teve oportunidade de se manifestar sobre o assunto, decidindo favoravelmente ao empregado, tam-bém com apoio no direito à privacidade. Todavia, deve-se destacar que, no caso concreto, a demissão do empregado por justa causa foi motivada pelo envio de uma mensagem apenas, e cuja remessa se deu na hora do café, o que torna a ca-racterização da abusividade da demissão por justa causa mais evidente e dificulta a formação de um precedente judicial abrangente sobre o assunto. É a decisão:

Justa Causa. “E-mail” caracteriza-se como correspondência pessoal. O fato de ter sido enviado por computador da empresa não lhe retira essa qualidade. Mesmo que o objetivo da empresa seja a fiscalização dos serviços, o poder dire-tivo cede ao direito do obreiro à intimidade (CF, art. 5°, inciso VIII). Um único “e-mail”, enviado para fins particulares, em horário de café, não tipifica justa causa. Recurso provido.90

Cumpre destacar um trecho do voto do relator do acórdão, no qual se rebate, expressamente, o argumento baseado na supremacia do direito de propriedade do empregador sobre o correio eletrônico disponibilizado ao empregado:

De outra parte entendo que houve violação ao direito à intimidade do obreiro. Com efeito, “e-mail” nada mais é que correio eletrônico. Ou seja, correspondên-cia enviada pelo computador. Ainda que se utilize o computador da empresa, o endereço (eletrônico) pertence ao reclamante. Manifesta a violação de correspon-dência, ainda que eletrônica, fere a garantia à intimidade (Constituição Federal, art. 5°, inc. VIII). Por analogia, o caso equivale à escuta de conversa telefônica, conduta essa que é sabidamente reprimida pela jurisprudência.91

O Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, também já se manifestou sobre a possibilidade de monitoramento do e-mail do empregado pelo empregador, confirmando a decisão anteriormente proferida pelo TRT da 10ª Região, citada acima. A ementa do acórdão está assim redigida:

PROVA ILÍCITA. “E-MAIL” CORPORATIVO. JUSTA CAUSA. DIVUL-GAÇÃO DE MATERIALPORNOGRÁFICO.

1. Os sacrossantos direitos do cidadão à privacidade e ao sigilo de corres-pondência, constitucionalmente assegurados, concernem à comunicação estri-tamente pessoal, ainda que virtual (“e-mail” particular). Assim, apenas o e-mail pessoal ou particular do empregado, socorrendo-se de provedor próprio, desfruta da proteção constitucional e legal de inviolabilidade.

2. Solução diversa impõe-se em se tratando do chamado “e-mail” corporati-vo, instrumento de comunicação virtual mediante o qual o empregado louva-se de terminal de computador e de provedor da empresa, bem assim do próprio endereço eletrônico que lhe é disponibilizado igualmente pela empresa. Destina-se este a que nele trafeguem mensagens de cunho estritamente profissional. Em

90 Processo n° 2000034734-0, rel. fer-nando antônio sampaio da silva, j. em 03.08.2000.

91 Idem. Ibidem.

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princípio, é de uso corporativo, salvo consentimento do empregador. Ostenta, pois, natureza jurídica equivalente à de uma ferramenta de trabalho proporcio-nada pelo empregador ao empregado para a consecução do serviço.

3. A estreita e cada vez mais intensa vinculação que passou a existir, de uns tempos a esta parte, entre Internet e/ou correspondência eletrônica e justa causa e/ou crime exige muita parcimônia dos órgãos jurisdicionais na qualificação da ilicitude da prova referente ao desvio de finalidade na utilização dessa tecnologia, tomando-se em conta, inclusive, o princípio da proporcionalidade e, pois, os diversos valores jurídicos tutelados pela lei e pela Constituição Federal. A experi-ência subministrada ao magistrado pela observação do que ordinariamente acon-tece revela que, notadamente o “e-mail” corporativo, não raro sofre acentuado desvio de finalidade, mediante a utilização abusiva ou ilegal, de que é exemplo o envio de fotos pornográficas. Constitui, assim, em última análise, expediente pelo qual o empregado pode provocar expressivo prejuízo ao empregador.

4. Se se cuida de “e-mail” corporativo, declaradamente destinado somente para assuntos e matérias afetas ao serviço, o que está em jogo, antes de tudo, é o exercício do direito de propriedade do empregador sobre o computador capaz de acessar a INTERNET e sobre o próprio provedor. Insta ter presente também a responsabilidade do empregador, perante terceiros, pelos atos de seus emprega-dos em serviço (Código Civil, art. 932, inc. III), bem como que está em xeque o direito à imagem do empregador, igualmente merecedor de tutela constitucional. Sobretudo, imperativo considerar que o empregado, ao receber uma caixa de “e-mail” de seu empregador para uso corporativo, mediante ciência prévia de que nele somente podem transitar mensagens profissionais, não tem razoável expectativa de privacidade quanto a esta, como se vem entendendo no Direito Comparado (EUA e Reino Unido).

5. Pode o empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado no am-biente de trabalho, em “e-mail” corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo. Não é ilícita a prova assim obtida, visando a demonstrar justa causa para a despedida decorrente do envio de material pornográfico a colega de trabalho. Inexistência de afronta ao art. 5º, incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal.

6. Agravo de Instrumento do Reclamante a que se nega provimento.92

Como visto, o TST levou em consideração a maior parte dos argumentos desenvolvidos em prol do controle do e-mail do empregado pelo empregador, com destaque para a possibilidade de responsabilização do mesmo com base no art. 932, III, do Código Civil.

92 tst, rr - 613/2000-013-10-00, rel. min. João oreste dalazen, j. em 18.05.2005.

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2. casos gEradorEs

2.1. “analisando o e-mail”

----- Original Message -----From: Consult&Consult Consultoria e TreinamentoTo: você@seuprovedor.com.brSent: Saturday, September 20, 2003 7:45 AM Prezado Cliente, Sentimos um enorme prazer em informar que recentemente seu e-mail pas-

sou a fazer parte do nosso banco de dados. Pensando sempre na melhoria da sua empresa e no seu desenvolvimento pes-

soal, a Consult&Consult oferece os melhores programas de aperfeiçoamento profissional do mercado, elaborados a partir de vasta experiência no ramo de consultoria.

(OBS.: Seu e-mail foi retirado de sua própria Home Page, já constava em nos-so banco de dados ou foi digitado aleatoriamente. Isto é um e-mail normal como tantos outros que você recebe. Não estamos invadindo sua privacidade, e enviar um e-mail não é crime, desde que não afete a caixa do usuário. Caso não tenha mais interesse em receber nossas mensagens, envie um e-mail para [email protected] com o assunto “REMOVER”).

Atenciosamente,Fulano de TalAnalista de Relacionamento

Considerando que a mensagem acima foi recebida em seu e-mail sem soli-citação prévia, após ler o seu conteúdo, indique as eventuais irregularidades do referido e-mail. Ele pode ser considerado spam? Em caso afirmativo, é possível responsabilizar a empresa que enviou a mensagem. Qual seria o fundamento da pretensa responsabilização?

2.2. “spywares e privacidade”

A MK Informática Ltda. desenvolveu um software, denominado Spy Music BR, para o compartilhamento e troca de arquivos MP3 na Internet. Além de operar as funções tradicionais de um software de compartilhamento de arqui-vos, o programa possui uma função oculta (spyware) através da qual todos os dados envolvendo as músicas que cada usuário baixar são enviados para os ser-vidores da MK. A empresa, de posse desses dados, está montando um grande banco de dados com o gosto musical de seus usuários e já iniciou negociação com uma grande empresa de publicidade na Internet para a venda de seus cadastros.

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Ao saber que diversos softwares de limpeza de spywares, que podem ser ad-quiridos gratuitamente na Internet, têm operado de forma a remover a função oculta do seu software, a MK – como de praxe – formulou consulta ao seu escri-tório questionando a legalidade desses softwares que desabilitam uma função de programa de sua titularidade.

Mais especificamente, a empresa consulta sobre a conveniência de ingressar com ação judicial contra os fabricantes desses softwares que limpam spywares sob o argumento de que os mesmos estariam violando o seu direito autoral sobre o software Spy Music BR, alterando-lhe as funções originais sem prévio consenti-mento.

Como você elaboraria a resposta a ser encaminhada ao seu cliente?

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AuLA 9. DIREITOS DA PERSONALIDADE – DIREITO à IMAGEM

EmEntário dE tEmas

Conceito e abrangência do direito à imagem – Imagem-Retrato e Imagem-Atributo – Responsabilidade civil por dano à imagem – Análise da jurisprudên-cia do Superior Tribunal de Justiça sobre o dano à imagem.

caso gErador

Caso Sylmara Rocha – Liberdade de imprensa e direito à imagem

LEitura obrigatória

SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. “Contornos Atuais do Direito à Ima-gem”, in Revista Forense, nº 367, pp. 45-68 (uma versão reduzida do arti-go encontra-se abaixo, no “roteiro de aula”).

LEituras compLEmEntarEs

SAHM, Regina. Direito à Imagem no Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2002. pp. 157-194.

MORAES, Walter. “Direito à Própria Imagem”. In Revista dos Tribunais, nº 443, set./1972, pp. 64/81; e nº 434, out./1972, pp. 11-28.

1. rotEiro dE auLa

Um dos aspectos mais intrigantes do progresso tecnológico, sobretudo no que tange ao desenvolvimento dos modernos meios de comunicação, é a pre-dominância da visão em face dos demais sentidos do homem. A imagem – seja através de um quadro em exposição, de um retrato no jornal, ou de uma foto para publicidade – nunca esteve em tão incontrolável evidência e banalização.

O poder instantâneo de comunicação da imagem caracteriza de forma irre-preensível esse instante na história da civilização, em que o tempo avança sobre as distâncias espaciais, suprimindo-as em compasso acelerado. Se o passado não pode mais ser alterado, pois se solidificou em história, o presente deve sempre ser sempre “leve”, “fluido”, para que o homem, em estado de constante pressa, possa organizar a sua agenda de atrasos em uma modernidade “líquida”, conforme alcunhada por Zygmunt Bauman.93 93 in A Modernidade Líquida. rio de Ja-

neiro: Jorge zahar, 2001. p. 9.

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A imagem, portanto, cumpre a sua função nesse cenário. Com efeito, a partir do desenvolvimento de novos veículos de comunicação, como a televisão, gran-de parte das informações que chegam aos indivíduos está consubstanciada em imagens. A própria Internet, ao flexibilizar as formas de expressão lingüística, criando abreviações para conversação em tempo real e símbolos para a repre-sentação de sentimentos do interlocutor, por exemplo, também constitui uma mídia que lança mão do poder de transmissão imediata de conteúdo proporcio-nado pela utilização da imagem.94

Há, portanto, uma relação intrínseca entre o progresso tecnológico e a cres-cente veiculação de imagens nos meios de comunicação que permitem tal recur-so, podendo-se localizar no âmago dessa simbiose entre tecnologia e imagem a necessidade de proteção da imagem pessoal.

A fisionomia da pessoa, compreendida como sua identidade física, é freqüen-temente explorada por meio do referido fenômeno de massificação da imagem. Nesse sentido, um semblante notório, ou determinadas qualidades físicas, são difundidas à exaustão pela mídia em uma amplitude e velocidade inéditas. Cum-pre lembrar que, se as novas tecnologias digitais facilitam a captação da imagem, da mesma forma a sua divulgação é mais facilmente implementada.95 Tenha-se em mente, por exemplo, o alcance transnacional da Internet, seja através da di-fusão de imagens em páginas eletrônicas, seja através do envio de e-mails.

Contudo, deve-se atentar para o fato de que a exposição potencializada da imagem não abrange apenas o aspecto fisionômico e sua correspondente repro-dução, expandindo-se o conceito de imagem no sentido de atingir ainda a refe-rência a determinados atributos de uma pessoa em suas relações sociais.

De fato, paralelamente à ostensiva exploração da fisionomia, surge no senso comum a significação de imagem como atributo peculiar de uma pessoa. Assim, através do comportamento reiterado do indivíduo em suas relações, adere ao mesmo um amálgama de características que vêm a compor a exteriorização de sua personalidade no âmbito social. Convencionou-se denominar “imagem” tais atributos da pessoa percebidos em sua conduta particular ou em sua atividade profissional.

Dessa forma, pode-se asseverar que, em meio à sociedade edipiana dos ex-cessos visuais, cumpre ao Direito tutelar a exposição da imagem, coibindo os seus abusos. Todavia, para que se atinja uma proteção eficaz, deve-se analisar a imagem como manifestação da personalidade humana, traçando-se um conceito jurídico que contemple as suas diversas espécies de manifestação em face dos atuais meios de transmissão de dados.

a imagem como exteriorização da personalidade

Como visto acima, a proteção acentuada do direito à imagem constitui de-manda proveniente do desenvolvimento tecnológico. Desde a elaboração de re-tratos através da pintura até a utilização desmesurada de personalidades notórias em comerciais de televisão e a divulgação de fotos pela rede mundial de com-

94 Para uma crítica dos vícios que a lin-guagem produzida pela internet impri-me aos hábitos de escrita e leitura, vide entrevista concedida por Harold bloom à revista Veja, publicada na edição de 31 de janeiro de 2001, p. 14.

95 Cf. luiz alberto david araújo. A Prote-ção Constitucional da Própria Imagem. belo Horizonte: del rey, 1996. p. 52.

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putadores, cumpre ao Direito proteger o aspecto existencial contido na imagem da pessoa.

A definição de um conceito relativo à imagem para fins de sua tutela jurídica, por seu turno, sempre motivou polêmica e discordâncias doutrinárias. Assim, há entendimentos que se fundam no sentido vulgar do vocábulo “imagem”, outros que procuram restringir o campo de proteção da imagem à seara das reprodu-ções gráficas e ainda os que buscam ampliar o espectro conceitual da imagem abordando-a como exteriorização da personalidade humana.

Partindo-se, portanto, do sentido vulgar da expressão, considera-se imagem como sendo a representação através da pintura, escultura, fotografia, filme e ou-tras formas intelectuais de um tema qualquer, inclusive da pessoa humana.96

Nessa direção, interessaria ao Direito a imagem apenas como representação gráfica da figura humana, por meio mecânico de reprodução. A imagem prote-gida juridicamente diria respeito àquela representação gráfica em que a própria pessoa se reconhece e é reconhecida por terceiros.97

Todavia, o entendimento de que a imagem tutelada pelo Direito apenas com-preende a representação gráfica particulariza em excesso o escopo da proteção, deixando a descoberto uma série de hipóteses em que a imagem da pessoa é violada sem que se elabore uma reprodução gráfica da mesma.

Em igual sentido, conforme relata Antonio Chaves, não se pode definir o direito à imagem como sendo aquele direito de impedir que terceiros venham a conhecer a imagem de outrem. Argumenta o tratadista que não se pode evitar que terceiros conheçam a imagem de alguém, mas, sim, e justamente nesse pon-to incide a tutela jurídica, que utilizem a mesma contra a vontade do seu titular, em casos não autorizados por lei.98

Com efeito, o conceito de imagem para o Direito não pode abandonar o substrato semântico do próprio vocábulo. Assim, recorda Walter Moraes que a imagem pode ser tida como toda sorte de representações de uma pessoa.99

A imagem é, então, compreendida pelo autor como sendo toda exteriorização da personalidade humana. Esse entendimento contempla a vinculação necessá-ria entre tutela conferida à imagem e a disciplina relativa aos chamados direitos da personalidade, dentre os quais o direito à imagem se insere. Atento a esse aspecto atinente à imagem como irradiação da pessoa humana, complementa Walter Moraes que a:

[i]magem é forma da pessoa, expressão sensível da individualidade como foi dito, assentada fundamentalmente no corpo físico do homem, segue que é um bem inerente à natureza do homem, naturalmente integrante da personalidade, o que, vale dizer, é um bem essencial da personalidade. Por essencial, a imagem é obviamente inalienável, intransferível, inexpropriável, irrenunciável, porque tudo isso significaria privação de um bem essencial.100

O núcleo do conceito proposto para a imagem, portanto, reside no seu atre-lamento inevitável com a personalidade, operando aquela a necessária mediação

96 antonio Chaves. Tratado de Direito Ci-vil, t. i. são Paulo: revista dos tribunais, 1982. p. 536.

97 antonio Jeová santos. Dano Moral Indenizável. são Paulo: lejus, 2. ed., 1999. p. 382.

98 antonio Chaves. Tratado de Direito Civil, t. i., cit., p. 538.

99 Walter moraes. verbete “direito à própria imagem”, in Enciclopédia Sarai-va de Direito. são Paulo: saraiva, 1977. p. 340.

100 Walter moraes. “direito à Própria imagem i”, in Revista dos Tribunais, nº 443, set./1972, pp. 80-81.

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entre a pessoa e a sociedade, entre a intimidade e a exterioridade. A imagem estabelece a individuação física e moral da pessoa, sem a qual não se pode sequer considerar o estudo da personalidade.

Cumpre somente explicitar, em adição ao conceito acima proposto, que, ao se considerar a imagem como exteriorização da personalidade humana, a mesma é entendida tanto em seu aspecto físico como no moral. Ainda que a imagem esteja “assentada fundamentalmente no corpo físico do homem”, ela não reflete apenas características físicas do sujeito, abrangendo também os atributos sociais da pessoa. Em atenção a esses dois perfis de proteção da imagem, leciona Her-mano Duval que:

Direito à imagem é a projeção da personalidade física (traços fisionômicos, corpo, atitudes, gestos, sorrisos, indumentárias, etc.) ou moral (aura, fama, re-putação, etc.) do indivíduo (homens, mulheres, crianças ou bebê) no mundo exterior.101

Uma vez assentado o conceito de imagem na exteriorização da personalidade, cumpre aprofundar a análise sobre as formas pelas quais referida exteriorização ocorre, abrangendo-se tanto a reprodução da fisionomia e as sensações que a mesma implica em terceiros, bem como o conjunto de características comporta-mentais que particularizam a pessoa em suas relações sociais.

Fisionomia e atributo como perfis da imagem

Não há como se compreender a exteriorização da personalidade consubs-tanciada na imagem sem que se faça menção aos dois perfis através dos quais a mesma se manifesta, demandando o manejo de tutelas jurídicas específicas.

Assim, a fisionomia e a sua reprodução, bem como os atributos compor-tamentais da pessoa, devem ser entendidos como objeto de proteção pelo Direito. Considerando-se, portanto, que a imagem integra a personalidade humana, pode-se concluir pela sua inserção no rol dos chamados direitos da personalidade.

A referida análise dos dois perfis da imagem para fins de sua tutela jurídica possui como fundamento o próprio texto da Constituição Federal de 1988, uma vez que o direito à imagem é contemplado de forma pródiga no capítulo relativo aos “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”.

Dessa forma, tomado pela perspectiva constitucional como um direito fun-damental, o direito à imagem é referido no artigo 5º da Carta Magna, mais especificamente nos incisos V, X e XXVIII, da seguinte forma:

Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabili-dade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

101 Hermano duval. Direito à Imagem. são Paulo: saraiva, 1988. p. 105. À parte da evidente virtude da definição proposta por Hermano duval, consubs-tanciada na percepção dos dois perfis da imagem a serem tutelados, vale reparar que a atitude pessoal, gera-dora de uma determinada “imagem” no meio social, deve ser protegida juridicamente não como projeção da personalidade física, mas como real exteriorização de aspectos morais da pessoa, perceptíveis através do com-portamento. trata-se de atributos so-ciais, não relacionados a características físicas, cujo surgimento é estimulado pela conduta individual.

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[...] V – É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

[...] X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, e a imagem das pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

[...] XXVIII – são assegurados, nos termos da lei:(a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução

da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas.

Segundo o entendimento pioneiro de Luiz Alberto David Araújo, os incisos acima citados contemplam três hipóteses distintas de tutela do direito à imagem. O inciso V refere-se à chamada “imagem-atributo”; o inciso X, à “imagem-retra-to”; e o inciso XXVIII, à proteção da imagem como direito autoral.102

A denominada imagem-retrato refere-se à proteção jurídica dispensada à fi-sionomia da pessoa, bem como à sua reprodução. Trata-se, portanto, da vertente original do direito à imagem, a qual objetiva promover o resguardo da iden-tidade física da pessoa e suas características, sendo também tutelada a correta captação e veiculação da fisionomia.

Segundo Luiz Alberto David Araújo, convencionou-se denominar a fisionomia da pessoa como “imagem estática”, e a sua reprodução, como “imagem dinâmi-ca”. Ambas cuidam tão-somente de dois momentos distintos da proteção jurídica manejada à imagem-retrato, enfocando-se ora o fato da pessoa possuir determi-nada fisionomia, ora a divulgação correta de seus aspectos fisionômicos.103

Cabe ressaltar, ainda, que mesmo certas partes do corpo de uma pessoa po-dem ser objeto de proteção do direito à imagem, na medida em que as mesmas possam gerar o imediato reconhecimento do indivíduo. Em tais casos, os quais envolvem pessoas que alcançaram notoriedade pela exposição de partes espe-cíficas de seus corpos, deve-se atentar para o fato de que apenas será possível invocar-se a defesa do direito à imagem quando a identificação pessoal se fizer exclusivamente pela análise da parte do corpo em destaque.

Relacionada com a proteção da imagem-retrato, note-se que não se resguarda apenas a fisionomia da própria pessoa, mas também a forma de sua utilização por terceiros. Mesmo quando autorizada a veiculação da imagem-retrato, deve-se cuidar para que a mesma não seja inserida em circunstâncias diversas daquelas previamente avençadas.

Adicionalmente, no que tange à reprodução da fisionomia, cumpre lembrar que mesmo a utilização de referências à imagem-retrato de terceiros deve ser analisada com cautela, principalmente quando se lança mão de sósias, ou figuras assemelhadas104, para parodiar, ou simplesmente se valer para fins lucrativos de aspectos físicos alheios.

Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que a exploração não autorizada de referências à fisionomia de terceiros, me-diante a utilização de sósias, é passível de indenização, conforme a ementa assim transcrita:

102 luiz alberto david araújo. A Proteção Constitucional, cit., p. 81 e ss. vide, ain-da, sidney César silva guerra. A Liber-dade de Imprensa e o Direito à Imagem. rio de Janeiro: renovar, 1999. p. 63.

103 luiz alberto david araújo. A Proteção Constitucional, cit., p. 30.

104 Conforme reporta stephen r. bar-nett, já se decidiu nos estados unidos que a simples menção à fisionomia alheia, quando não autorizada, pode gerar o dever de indenização. assim pronunciou-se a Corte federal de ape-lações do nono Circuito no polêmico caso Vanna White vs. Samsung Eletro-nics America, Inc. a autora da ação, modelo que obteve notoriedade como assistente em um programa de tele-visão denominado Wheel of Fortune, processou a empresa de equipamentos eletrônicos por fazer referência à sua imagem em um comercial de vídeo-cassete. o referido comercial apre-sentava uma previsão de como seria o vídeo-cassete no futuro, através de um programa em formato similar àquele em que a autora atuava, valendo-se para tanto de um robô caracterizado como a modelo (“the right of one’s own image: Publicity and Privacy ri-ghts in the united states and spain”, in The American Journal of Comparative Law, vol. 47, 1999, p. 562).

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Responsabilidade Civil – Direitos de Personalidade – Violação – Danos Mo-ral e Patrimonial.

Responsabilidade Civil. Violação de direitos da personalidade. Exploração do nome e por via reflexa, da imagem, de modelo fotográfico renomado, com uso de sósia em revista com fins lucrativos. Artifícios de imitação para tirar proveito do poder atrativo da própria imagem de modelo de fama. Ausência de autorização e da devida remuneração. Quando a violação de direitos de personalidade deixar também conseqüências econômicas é devido o ressarcimento de ordem patrimo-nial cumulativo com a reparação do dano moral.105

A proteção da imagem como direito autoral, por seu turno, conforme pre-vista no artigo 5º, XXVIII, “a”, da Constituição Federal, visa à tutela da pessoa enquanto criadora de uma determinada obra intelectual, especialmente no que tange à sua participação em obras coletivas, englobando, portanto, o chamado “direito de arena”106 nas atividades desportivas.

Já o segundo perfil do direito à imagem não se atém às características físicas da pessoa, mas, sim, aos seus atributos identificáveis através das relações sociais. A denominada imagem-atributo possui por objeto o conjunto de particularida-des comportamentais que distinguem uma pessoa perante terceiros. Tais parti-cularidades podem tanto abonar como desprestigiar a pessoa em referência, não possuindo, assim, qualquer identidade com a honra objetiva do sujeito.

É importante notar que a imagem-atributo nasce do próprio uso vulgar do ter-mo “imagem”, o qual passa a significar não apenas a fisionomia e a sua reprodu-ção, mas também o conjunto de características comportamentais que identificam o sujeito. Nesse sentido, uma pessoa pode ser diligente ou preguiçosa, obediente ou indulgente, altruísta ou egoísta, progressista ou reacionária – todas essas ca-racterísticas aderem à pessoa tal qual um signo que a particulariza no trato com outrem e no desenvolvimento de suas atividades particulares ou profissionais.

Assim, cumpre ressaltar que as particularidades que compõem a imagem-atributo de uma pessoa serão colhidas através da reiterada observação de seu comportamento nas relações sociais. Faz-se necessário, portanto, um mínimo conhecimento da conduta de uma pessoa frente a determinadas situações para que se possa estabelecer particularidades que venham a integrar a sua imagem-atributo.

A jurisprudência já tem utilizado esse conceito, ainda que sem se valer rei-teradamente do termo “imagem-atributo”. Tome-se, por exemplo, o afamado caso em que a apresentadora de programas infantis Xuxa ingressou com medida cautelar intentando a proibição da comercialização de fitas de vídeo do filme Amor, Estranho Amor, no qual a mesma protagoniza cenas de caráter erótico. À parte das considerações relativas ao direito autoral, em que discutiu se a autori-zação para a veiculação da obra no cinema também abrangeria a sua utilização em vídeo-cassete, pretendia a autora fazer cessar a comercialização das referidas fitas porque as cenas do filme atentavam contra a imagem social construída pos-teriormente pela apresentadora como “rainha dos baixinhos”.

105 embargos infringentes nº 136/91, rel. des. elmo arueira, julgado em 18.12.91 e publicado no dJ/rJ de 22.10.92, p. 180.

106 Por direito de arena entende-se o direito de autorizar, ou proibir, a fixa-ção, transmissão ou retransmissão de imagem de espetáculo desportivo, por qualquer meio ou processo. sobre o tema, vide as relevantes considerações de José de oliveira ascensão, ainda que sob a égide a antiga lei de direito autorais (lei nº 5.988/73), no seu Di-reito Autoral. rio de Janeiro: renovar, 1997. pp. 502 e ss. recomenda-se, ainda, a leitura dos comentários de Álvaro melo filho ao artigo 42 da lei nº 9.615/98 (“lei Pelé”), que dispõe sobre a matéria (Lei Pelé – Comentários à Lei nº 9.615/98. brasília: brasília Jurídica, 1998. pp. 128 e ss).

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Tratando nitidamente de uma hipótese de lesão à imagem-atributo, assim des-creve a situação dos autos o Desembargador Thiago Ribas Filho em seu voto:

Após o lançamento da fita [no cinema], ocorrido em 1982, a 2ª Autora [Xuxa] se projetou, nacional e internacionalmente, com programas infantis na televisão, criando uma imagem que muito justamente não quer ver atingida, cuja vulgari-zação atingiria não só ela própria como a das crianças que são o seu público, ao qual se apresenta como símbolo da liberdade infantil, de bons hábitos e costu-mes, e da responsabilidade das pessoas.107

Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já se manifestou favoravelmente à tutela da imagem-atributo quando do julgamento de ação indenizatória movida por empregado que, ao ser despedido, foi objeto de aviso público expedido pelo ex-empregador. Assim está redigida a ementa:

Civil. Responsabilidade civil. Despedida de relações públicas. Comunicação à praça. Ato sem motivo plausível e lesivo à imagem. Fixação do dano moral.

[...] 2. O comunicado à praça de que certo empregado foi demitido e que a empresa não se responsabiliza por seus atos, quando a despedida foi ato roti-neiro e sem motivo extraordinário ou especial constitui ato ilícito porque causa dano à imagem profissional de relações públicas. O dano moral deve ser fixado considerando a necessidade de punir o ofensor e evitar que repita o seu compor-tamento.108

Com efeito, a positivação da imagem-atributo no texto constitucional aponta para a sua intrínseca relação com o direito de resposta.109 Pode-se concluir, por-tanto, que o campo principal de aplicação da tutela relativa à imagem-atributo re-side na veiculação de informações pelos meios de comunicação, sendo assegurado quando de sua violação o respectivo direito de resposta da pessoa ofendida.

Cumpre destacar, ainda, que o reconhecimento da imagem-atributo encon-tra-se em sintonia com a ampliação das hipóteses de proteção à pessoa no Direito Civil, fenômeno representativo de uma mudança do paradigma patrimonialista, predominante no Código Civil de 1916, para a adoção de uma dogmática civi-lista que prioriza o aspecto existencial da pessoa humana. O estudo dos direitos da personalidade ilustra, como nenhuma outra seara do Direito Civil, essa alte-ração na perspectiva do referido ramo jurídico, podendo-se elencar a defesa da imagem-atributo como um dos vetores dessa personalização.

a utilização da imagem na obra publicitária

Para que se ilustre uma hipótese de aplicação prática da teoria relativa ao direito à imagem e seus dois perfis, acima desenvolvida, deve ser feita uma breve análise sobre a utilização da imagem nas obras publicitárias, uma vez que essas obras lançam mão constantemente da fisionomia de pessoas notórias, ou mesmo

107 apelação Cível nº 3819/91, rel. des. thiago ribas filho, julgada em 27.02.92; fls. 802.

108 apelação Cível n.º 596100586, rel. des. araken de assis, julgada em 14.11.1996.

109 Conforme ressaltam oduvaldo don-nini e rogério ferraz donnini. Imprensa Livre, Dano Moral, Dano à Imagem, e sua Quantificação à Luz do Novo Código Civil. são Paulo: método, 2002. p. 71.

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de atributos de pessoas em particular que facilitam a identificação do consumi-dor com o produto ou serviço objeto da publicidade.

O termo “publicidade” encontra na literatura especializada as mais diversas definições, dado que a mesma pode ser analisada através de aspectos artísticos, científicos ou, ainda, como meio de comunicação.110 Para os fins do presen-te estudo, cumpre considerar a elucidativa prescrição da Diretiva nº 84/450 do Conselho da Comunidade Econômica Européia, a qual define publicidade como sendo:

[...] toda forma de comunicação realizada no sentido de uma atividade co-mercial, industrial, artesanal ou liberal com o fim de promover o fornecimento de bens e a prestação de serviços, incluindo os bens imóveis, os direitos e as obrigações.

Nesse sentido, deve-se perceber que a publicidade insere-se, necessariamente, na atividade empresarial, atuando como forma de promoção de um produto ou serviço.111 Em um cenário de economia globalizada, então, faz-se natural a ten-dência à formação de grandes multinacionais voltadas à exploração de publicida-de. As campanhas publicitárias desenvolvidas por essas companhias muitas vezes expandem-se por diversos países, mais notadamente quando tanto a empresa anunciante, que demanda a criação de uma determinada publicidade, como aquela que a desenvolverá (a agência) constituem grupos multinacionais.

Assim, diversas práticas têm sido desenvolvidas, objetivando sempre a am-pliação do alcance promocional do objeto publicitário, de forma a atingir um público cada vez mais influenciável e suscetível ao aperfeiçoamento contínuo de técnicas de convencimento e persuasão.

Tome-se como exemplo a reiterada prática de associar as qualidades de um determinado produto ou serviço à imagem-retrato ou à imagem-atributo de ar-tistas ou demais pessoas de renome em campanhas publicitárias. Esse fenôme-no faz-se sentir não apenas nos países ocidentais, sendo costume também na sociedade japonesa, fortemente influenciada pelo culto aos ídolos televisivos, divulgar-se um produto com a constante ligação à imagem de uma celebridade reconhecida pelo público em geral.112

O mesmo fenômeno também pode ser notado na publicidade que explora a imagem de pessoas notórias no Brasil. Segundo constatação de Carlos Alberto Bittar Filho:

O fenômeno ganha vulto em nossos tempos, em que a vinculação publicitária de pessoas bem-sucedidas em suas atividades representa estímulo ao consumo mediante a atração que exercem junto ao público; assim acontece com grandes estadistas, políticos, artistas, escritores, esportistas. Explora-se, nesse passo, a ân-sia do espectador de se identificar com os seus ídolos, com os seus hábitos, os seus gostos, as suas preferências, levando-o, pois, ao consumo do produto anunciado, direta ou indiretamente, conforme o caso.113

110 Carlos alberto bittar. Direito de Autor na Obra Publicitária. são Paulo: revista dos tribunais, 1981. pp. 72 e ss.

111 segundo lição de luis gustavo gran-dinetti de Carvalho, há que se distin-guir o vocábulo “publicidade” de “pro-paganda”. assevera o referido autor que o fenômeno da publicidade tem por fim o negócio, a compra e venda de produto ou serviço, enquanto a propa-ganda é a simples divulgação de idéias políticas, religiosas, filosóficas, ou seja, sem caráter comercial. a diferença, portanto, residiria no intuito de lucro presente na obra publicitária e ausente na propaganda. (Direito de Informação e Liberdade de Expressão. rio de Janei-ro: renovar, 1999. p. 66-67).

112 Como reporta etienne barral, jor-nalista do semanário japonês Aera: “o alto nível de competição entre as empresas concorrentes nivelou, em um primeiro momento o grau de qualida-de e perfeição dos produtos japoneses. incapazes de investir a longo prazo nas características ‘revolucionárias’ de seu último modelo, pois logo eram alcan-çadas pelas concorrentes, as empresas japonesas baseiam-se, cada vez mais, na imagem artificial da publicidade como argumento de venda. utilizar um ídolo é, muitas vezes, a única ca-racterística particular de um produto.” (Otaku – Os filhos do virtual. são Paulo: senac, 2000. pp. 89-90).

113 Carlos alberto bittar e Carlos alberto bittar filho. Tutela dos Direitos da Per-sonalidade e dos Direitos Autorais nas Atividades Empresariais. são Paulo: re-vista dos tribunais, 2ª ed., 2002. p. 58.

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Note-se que ambos os perfis do direito à imagem podem ser envolvidos em uma campanha publicitária, uma vez que se poderá explorar: (i) a fisionomia de determinada pessoa, com acento em particularidades físicas especiais que atraiam a atenção do consumidor; e/ou (ii) atributos de uma pessoa notória que estejam em consonância com as características do produto ou com o público-alvo da publicidade.

A exemplificação do uso da imagem-retrato no âmbito da publicidade não apresenta maiores dificuldades, uma vez que basta apontar as obras publicitárias que exploram, como visto acima, celebridades para a divulgação de produtos pelo simples fato de as mesmas gozarem de notoriedade. Outras hipóteses pode-riam ser indicadas, como a extensiva utilização de mulheres esculturais (ou, mais notadamente, de partes específicas de seus corpos) para a promoção de produtos cujo público-consumidor seja majoritariamente masculino.

A imagem-atributo, por sua vez, encontra grande utilidade na produção de obras publicitárias, dado que a publicidade visa à persuasão do consumidor atra-vés de uma operação de reconhecimento, gerando, por fim, a necessidade de consumo. Com efeito, a publicidade busca proporcionar esse resultado através da identificação do consumidor com determinadas qualidades do produto ou atributos da pessoa utilizada na obra publicitária.

Assim, introduzir em um comercial de curso de línguas estrangeiras para jovens um ator que possua expressividade junto ao público juvenil cumpre a função de identificação do consumidor com o produto. Da mesma forma, a uti-lização de um jogador de futebol conhecido pelo seu temperamento explosivo, e por vezes agressivo, em um anúncio de inseticida, ressalta a sua ação eficaz e mortífera no combate aos insetos. Trata-se de uma exploração de características da pessoa, não necessariamente físicas, que podem ser notadas através de seu comportamento nas relações sociais.

A conseqüência imediata dessa utilização da imagem de uma pessoa para a promoção de um produto repousa na consideração de que a imagem pode ser utilizada com fins econômicos, produzindo um valor pecuniariamente apreciá-vel. Sendo assim, à parte de todas as considerações sobre a sua proteção como direito da personalidade, há que se analisar os interesses patrimoniais envolvidos em questionamentos relacionados com o direito à imagem.

A utilização da imagem de terceiro para o desenvolvimento de uma obra pu-blicitária, sem a correspondente autorização de seu titular, pode acarretar preju-ízos de natureza patrimonial, devendo a pessoa ser indenizada não apenas pelos danos emergentes, como também pelos lucros cessantes, conforme as particula-ridades da situação.

Veja-se, por exemplo, o caso amplamente narrado por Antonio Chaves114, em que uma modelo contratou com determinada empresa a divulgação de sua imagem em um anúncio a ser publicado em certa revista especificada no contrato. Ao perceber que as fotos produzidas para o referido anúncio passa-ram a ilustrar toda sorte de obras publicitárias da empresa, incluindo cartazes, pôsteres, luminárias, etc., reconheceu o Tribunal de Justiça do Estado de São

114 antonio Chaves. “responsabilidade Civil em matéria de fotografias”, in Revista de Direito Mercantil, nº 75, jul.-set./1989, pp. 17-18.

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Paulo que a modelo deveria ser indenizada pela utilização indevida da sua imagem.

A configuração do prejuízo efetivo na hipótese acima abrange conside-rações sobre as conseqüências econômicas da violação à imagem, dado que a ampla divulgação das fotos contratadas gerou um vínculo no imaginário dos consumidores entre a imagem da modelo e o produto anunciado. Nessa direção, cumpre notar que outras propostas para a realização de obras publi-citárias poderiam ter sido obstadas pelo natural inconveniente de se utilizar a mesma modelo para a promoção concomitante de dois produtos de empresas distintas.

Todavia, as conseqüências derivadas da violação do direito à imagem não se esgotam na perspectiva patrimonial, devendo-se ressaltar a lesão de nature-za moral decorrente da simples utilização não consentida do referido bem da personalidade. Conforme entendimento predominante no Superior Tribunal de Justiça, para a configuração do ato ilícito não se demanda a averiguação das conseqüências derivadas do mesmo (danum in re ipsa), mas vale destacar que tal diligência será imprescindível para o estabelecimento da quantificação do dano a ser indenizado.

A publicidade, dessa forma, constitui campo profícuo para o estudo não ape-nas dos dois perfis do direito à imagem (retrato e atributo), como também das duas formas de reparação cabíveis (patrimonial e moral).

relações do direito à imagem com direitos da personalidade correlatos

Superada a questão relativa à conceituação da imagem e seus dois perfis, cum-pre tecer algumas considerações sobre as relações existentes entre o direito à imagem e demais direitos da personalidade correlatos, como a honra e a priva-cidade.

Se a querela em torno da autonomia do direito à imagem ocupou grande parte dos debates que se travaram na doutrina nacional e estrangeira, atualmente se entende como prevalecente a tese que propugna a autonomia desse direito da personalidade. No Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, fez-se constar no ordenamento jurídico positivo entendimento que há muito já se fazia presente na doutrina e na jurisprudência pátria pela autonomia do direito à imagem. Todavia, existem pontos de contato relevantes com outros direitos da personalidade que podem ser destacados como forma de elucidar as fronteiras do direito à imagem, definindo-se, assim, de forma nítida o seu campo de aplicação.

Adicionalmente, deve-se notar que, ao se introduzir o conceito de imagem-atributo ao lado da tradicional definição de direito à imagem como resguardo da fisionomia e de sua reprodução gráfica, a afirmação da autonomia desse direito bipartido em dois perfis torna-se oportuna para que se diferencie a imagem-atributo da chamada honra objetiva.

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direito à imagem e honra objetiva

Primeiramente, devem-se analisar as relações existentes entre o direito à ima-gem e o direito à honra, considerando-se esse último sob os prismas subjetivo e objetivo, conforme lição clássica de Adriano de Cupis, assim redigida:

A honra significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, como, enfim, o sentimento ou a consciência da própria dignidade pessoal.115

Há, portanto, dois prismas para a análise do direito à honra: (i) o subjetivo, que enfoca o conceito que a pessoa constrói sobre si própria, ou seja, a sua auto-estima; e (ii) o objetivo, relacionado com a consideração que terceiros possuem para com determinada pessoa, resultando, assim, no que se convencionou deno-minar “bom nome”, ou “boa fama”.

Muitos foram os autores que pontificaram, como Ennecerus, na Alemanha, e Coviello, na Itália, o entendimento de que o direito à imagem estaria subsu-mido no espectro do direito à honra. Essa tese logrou congregar inúmeras ade-sões, uma vez que a honra constitui um aspecto moral freqüentemente ofendido quando da violação do direito à imagem.116

O mesmo entendimento é partilhado, no Brasil, por Orlando Gomes. O au-tor, quando da elaboração de seu projeto de Código Civil (Projeto nº 3.771/66), fez inserir, no capítulo dedicado aos direitos da personalidade, mais especifica-mente no artigo 36, § 1º, a vinculação entre a reparação por dano à imagem e a ocorrência de lesão à honra da vítima. Assim está redigido o dispositivo em questão:

Art. 36. Reprodução da imagem – A publicação, exposição ou utilização não autorizada da imagem de uma pessoa podem ser proibidas a seu requerimento, sem prejuízo da indenização a que fizer jus pelos danos sofridos.

§ 1º A proibição só se justifica se da reprodução resultar atentado à honra, à boa-fama ou à respeitabilidade da pessoa.

Comentando o citado dispositivo em estudo sobre o Projeto de sua autoria, Orlando Gomes defende a tese de que, a princípio, não seria necessária autoriza-ção para a divulgação de imagem alheia, sendo a mesma apenas protegida em seu momento patológico e tão-somente quando da lesão à imagem derivar ofensa à honra da vítima, por exemplo. Conforme expõe o autor:

Todo homem tem direito à própria imagem. Mas seria impraticável exigir a sua autorização prévia para a publicação. Além de constituir um estorvo, ne-nhum cabimento teria a exigência, uma vez que, a mais das vezes a reprodução é inofensiva. Inconveniente, portanto, estatuir que a publicação de sua imagem dependeria de sue consentimento. A tutela desse direito há de orientar-se no

115 adriano de Cupis. Os Direitos da Personalidade. lisboa: livraria morais editora, 1961. p. 111.

116 Para alguns autores, como edílson Pereira de farias, a defesa do direito à honra foi o berço do direito à imagem, que posteriormente ganhou autono-mia por suas particularidades (Colisão de Direitos. A honra, a intimidade, a vida privada e a imagem versus a liber-dade de expressão e informação. Porto alegre: sérgio fabris, 2ª ed., 2000. p. 121).

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sentido de reprimir o abuso no seu exercício, permitindo-lhe que impeça a pu-blicação, mas tão-somente se, da reprodução, resultar atentado à sua honra, boa fama e respeitabilidade.117

Deve-se atentar para o fato de que podem ocorrer situações em que a ima-gem da pessoa é violada, seja a imagem-retrato ou a própria imagem-atributo, sem que se produza qualquer lesão à honra ou reputação gozada pelo indivíduo. Honra e imagem são bens jurídicos correlatos, dado que se referem ao aspecto moral da pessoa; contudo, os dois não se confundem.

Com relação à imagem-retrato, imagine-se que um determinado modelo fo-tográfico conceda autorização para que fotos suas sejam publicadas em deter-minada revista. Ao deparar com a publicação das mesmas em outro veículo de comunicação, distinto daquele com o qual se avençou a divulgação das fotos, está caracterizada a violação do direito à imagem. Note-se que a utilização das fotografias para fins distintos daqueles contratados pode, inclusive, abonar a honra do sujeito lesado em seu direito à imagem. Para que isso ocorra, basta que, na utilização não consentida das fotos, seja ressaltada a reputação ilibada daquela pessoa.118

Assim, pode ocorrer violação da imagem pessoal sem que a honra sofra qual-quer prejuízo, gozando ainda o sujeito, muito pelo contrário, até mesmo de li-sonjeiros elogios por parte do terceiro que lhe lesiona o direito da personalidade em comento.

Relativamente à imagem-atributo, tome-se o exemplo de uma pessoa que adota ostensivamente uma conduta contrária ao tabagismo, trabalhando, in-clusive, em programas de conscientização sobre os males causados pelo fumo. Caso a mesma seja surpreendida com a publicação de matéria jornalística que a retrate, equivocadamente, como um fumante compulsivo, está caracterizada a lesão à imagem-atributo.

Nessa hipótese não há, novamente, qualquer ofensa à honra objetiva da pes-soa, pois o ato de fumar, ainda que cresça atualmente a divulgação de suas con-seqüências perniciosas, não implica em desonra para a pessoa. Todavia, há no caso em tela uma ofensa à imagem-atributo, pois a matéria jornalística contraria a conduta adotada pelo sujeito, retratando-o de forma ofensiva ao seu compor-tamento.

Ainda que não analisado sobre esse prisma conceitual quando do seu efeti-vo julgamento pela Corte de Apelações do Primeiro Circuito norte-americana, o caso George Noonan e Marie Noonan vs. The Winston Company e outros constitui um exemplo bastante semelhante à hipótese acima aventada, envolven-do, ainda, a violação da imagem-retrato conjuntamente com a lesão à imagem-atributo.

No caso em tela, George Noonan, um policial da cidade de Boston, que há anos dedicava a sua vida à divulgação dos males causados pelo fumo, teve a sua imagem captada, de forma não autorizada, por um determinado fotógrafo que, posteriormente, cedeu a fotografia para uma agência de publicidade francesa.

117 orlando gomes, Código Civil – Pro-jeto Orlando Gomes. rio de Janeiro: forense, 1985. p. 21. note-se que o autor reviu o seu posicionamento no que tange à necessidade de autoriza-ção para a divulgação de imagem, uma vez que, em breve comentário sobre o tema, constante de edições posteriores do seu Introdução ao Direito Civil, o mesmo já preconizava que a imagem de uma pessoa não pode ser exposta ou reproduzida sem o seu consentimento, salvo nos casos excepcionais, como no-toriedade, interesse ou evento público. entretanto, com relação à possibilidade de indenização pela reprodução in-devida da imagem somente quando decorrer dano à honra da pessoa, o entendimento constante de seu Proje-to permanece reproduzido (Introdução ao Direito Civil. rio de Janeiro: forense, 12ª ed., 1996. p. 156).

118 no mesmo sentido, vide Cláudio luiz bueno de godoy. A Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade. são Paulo: atlas, 2001. p. 45.

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Essa agência utilizou a fotografia, que retrata o policial montado a cavalo, em um comercial de cigarros divulgado em diversas revistas francesas. Ao tomar ciência do ocorrido, o policial moveu uma ação de indenização em face da em-presa para a qual trabalhava o fotógrafo à época, da agência publicitária francesa e da empresa cujo cigarro foi objeto da publicidade.119

Têm-se, na hipótese acima, tanto a violação da imagem-retrato pela utilização não consentida de fotografia que retrata pessoa captada de forma igualmente desautorizada como a lesão à imagem-atributo pela associação que de imediato se operou entre a postura do policial, que sempre se posicionou contra o tabagis-mo, e a marca de cigarros anunciada.

Em síntese, percebe-se que tanto a imagem-retrato como a imagem-atributo distanciam-se do conceito de honra, constituindo o dano à imagem uma vio-lação a um bem da personalidade autônomo. Não há, portanto, que se atrelar necessariamente a responsabilização por dano à imagem com a ofensa à honra. A simples violação da imagem já impõe a devida indenização, sendo a lesão concomitante à honra apenas mais um fator a ser levado em consideração para a análise da extensão e gravidade do dano, bem como para quantificação da indenização cabível.

Infelizmente, o novo Código Civil brasileiro, ao se apoiar no Projeto de Or-lando Gomes, produziu um retrocesso na disciplina do direito à imagem, uma vez que, segundo consta da redação do artigo 20:

Salvo se autorizadas ou necessárias à administração da justiça ou à manuten-ção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição, ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber se lhe atingirem a honra, a boa-fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

O artigo acima reproduzido vincula a tutela do direito à imagem à neces-sidade de lesão à honra ou à utilização comercial da imagem obtida de forma desautorizada. Nesse particular, a doutrina já se manifestou pela total inconveni-ência da redação do art. 20 do Código Civil, que não contempla todo o trabalho doutrinário e jurisprudencial desenvolvido por décadas, no País, em prol da afirmação – hoje reconhecida de forma unânime – do direito à imagem.120

Adicionalmente, a redação do artigo parece conferir maior importância para as situações excepcionais em que a imagem poderá ser utilizada por terceiros (au-torização, administração da justiça e ordem pública) do que afirmar uma tutela positiva do direito à imagem.

A desventura do artigo em que se cuida do direito à imagem no novo Código Civil não obsta, todavia, o entendimento pela autonomia do direito à imagem e a sua reparação sem que seja necessária a violação de outro direito da personalidade.

Dessa forma, outra não pode ser a conclusão do intérprete senão a de que o dispositivo supracitado não possui força para restringir a ampla proteção constitu-

119 apelação nº 97-1132, julgada em 02.02.1998 (inteiro teor disponível no site www.tobacco.org/documents/documents.html, consultado em 03.05.2002).

120 Criticando a redação do mencio-nado art. 20, por não contemplar a autonomia do direito à imagem, vide gilberto Haddad Jabur. Liberdade de Pensamento, cit., pp. 126-127; regi-na sahm. Direito à Imagem no Direito Civil Contemporâneo. são Paulo: atlas, 2002. p. 236; e zulmar antonio fachin. A Proteção Jurídica da Imagem. são Paulo: Celso bastos, 1999. p. 127.

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cionalmente consagrada. Ainda que ausente a ofensa à honra, permanece o direito de exigir a indenização devida pelo dano oriundo da utilização não autorizada da imagem. Caso contrário, estar-se-ia sepultando a autonomia desse direito da perso-nalidade, o que, certamente, não foi o desiderato do legislador quando cuidou de inserir no texto do novo Código Civil um capítulo inteiro dedicado aos direitos da personalidade e dedicar um de seus artigos ao tratamento do direito à imagem.

Não obstante, urge que se afirme a prevalência do tratamento concedido ao direito à imagem pelo texto constitucional – que o positivou a sua autonomia – frente à redação equívoca do art. 20 do Código Civil, para que se evite que um retrocesso de pelo menos trinta anos no desenvolvimento doutrinário e jurispru-dencial do assunto no País.

direito à privacidade

O direito à privacidade também possui relações estreitas com o direito à ima-gem, pois ambos partem do pressuposto de que um bem da personalidade in-dividual deve ser resguardado com relação à intromissão de terceiros, contudo, também nesse caso, os objetos de proteção são distintos.

Ao tratar do direito à privacidade, denominado em sua obra de “direito ao resguardo”121, Adriano de Cupis define “resguardo” como o modo de ser da pes-soa que consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo que se refere a ela somente. Dessa forma, o direito à imagem figuraria como manifestação do direito ao resguardo, pois a utilização indevida da imagem de outrem seria uma invasão na perspectiva da discrição pessoal.122

Existe, efetivamente, um ponto de contato entre os dois direitos, principal-mente no que tange à proteção do direito à imagem nos Estados Unidos, dado que a apropriação de imagem alheia (appropriation) encontra-se, no entendi-mento da doutrina norte-americana, incluída como forma de violação do cha-mado “right to privacy” ou “right to be left alone”.

Todavia, a proteção conferida à imagem afasta-se da atinente à privacidade, pois o direito à imagem possui por escopo preservar especificamente a fisiono-mia da pessoa e a sua reprodução, bem como os atributos que a caracterizam no trato social. Quando se autoriza a divulgação da imagem pessoal para uma fina-lidade e a mesma é utilizada para fim diverso, não há lesão à privacidade, pois a divulgação do espectro pessoal já havia sido consentida. Em tais hipóteses o bem da personalidade lesionado é a imagem da pessoa.

A usurpação da imagem também representaria, por sua vez, uma forma de violar a imagem alheia sem lhe ferir a privacidade, pois, ao se valer da imagem de terceiro como sendo sua, o bem jurídico atacado pelo usurpador é apenas a imagem.123

aspectos da responsabilidade civil por dano à imagem

Superadas as questões de cunho conceitual atinentes ao direito à imagem, e afirmada a sua plena autonomia frente aos demais direitos da personalidade,

121 a edição portuguesa da obra de de Cupis optou por traduzir o original, em italiano, “riservatezza” por “resguardo”, pelo que a seção ii do livro citado de-nomina-se “direito ao resguardo”.

122 adriano de Cupis. Os Direitos da Per-sonalidade, cit., pp. 129-130.

123 luiz alberto david araújo. A Proteção Constitucional, cit., p. 39.

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cumpre analisar alguns aspectos controvertidos sobre a responsabilidade civil decorrente de dano à imagem.

Ressalta Antonio Jeová Santos que o direito à imagem possui um duplo as-pecto, podendo ser enfocado em sua natureza positiva ou negativa. O aspecto positivo está consubstanciado na faculdade de o indivíduo reproduzir ou au-torizar a reprodução de sua própria imagem. O aspecto negativo, por sua vez, corporifica a possibilidade de o indivíduo obstar a reprodução indevida de sua imagem.124

Entretanto, é válido lembrar que nem sempre será possível à pessoa cuja ima-gem é captada ou divulgada impedir a realização de tais atividades. O aspecto negativo do direito à imagem deve ser analisado à luz de determinadas circuns-tâncias que retiram o caráter de ilicitude do ato de captação e divulgação da imagem alheia, sendo vedado ao titular do direito à imagem impedir a sua pro-jeção.

Outrossim, salvo nas hipóteses em que são permitidas a captação e a divul-gação da imagem sem o prévio consentimento de seu titular, haverá ofensa ao direito da personalidade em tela, sendo devida a reparação por danos morais e patrimoniais, conforme o caso.

da violação do direito à imagem podem surgir danos materiais e morais

A violação do direito à imagem ocorre quando os aspectos fisionômicos ou os atributos sociais de uma pessoa são utilizados por terceiros sem que seja concedida a devida autorização. Em tais hipóteses, caso não estejam presentes as causas exclu-dentes da ilicitude da utilização inconsentida da imagem, configura-se de plano a lesão a um direito da personalidade, gerando, assim, a responsabilidade civil por dano moral do agente, podendo ainda advir prejuízos de natureza patrimonial para a vítima, o que demandará, adicionalmente, a indenização por danos materiais.

É importante frisar que da mesma lesão pode advir o dever de reparação pelas duas categorias de dano, sendo ambas autônomas e consideradas de modo sepa-rado para fins de quantificação do prejuízo a ser indenizado.

Quando uma pessoa contrata com terceiros a utilização de sua imagem, ela está dispondo de um direito da personalidade, fazendo valer a peculiaridade do direito à imagem consistente na faculdade de se permitir a sua exposição, me-diante remuneração. Assim, o direito à imagem, diferentemente da maior parte dos direitos da personalidade, pode ser manejado pelo seu titular como forma de auferir vantagens patrimoniais.

Dada a sua singularidade, não é permitido que a imagem de terceiro seja ex-plorada sem o respectivo consentimento do mesmo por dois motivos: (i) porque a imagem é um bem integrante da personalidade, possuindo assim um caráter existencial, ao operar a projeção da fisionomia e dos atributos comportamentais da pessoa no meio social; e (ii) porque, ao lado seu caráter extrapatrimonial, a pessoa pode dispor de sua imagem, autorizando a sua exposição em casos parti-culares, recebendo, em contrapartida, a devida remuneração.

124 antonio Jeová santos, Dano Moral Indenizável, cit., p. 388.

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A partir dos dois motivos acima elencados para a vedação da projeção desauto-rizada da imagem, percebe-se a sua correlação imediata com as duas modalidades de responsabilidade civil. Dessa forma, deve o titular da imagem indevidamente captada ou veiculada ser indenizado por danos morais, uma vez que a imagem é um bem da personalidade, podendo ainda a sua lesão implicar em ofensa a outros direitos da personalidade, como a honra e a privacidade; e por danos patrimo-niais, quando a violação proporcionar prejuízos de ordem pecuniária.

o dano moral por ofensa ao direito à imagem (danun in re ipsa)

A configuração do dano patrimonial originado de lesão do direito à imagem não comporta maiores perplexidades de natureza teórica, uma vez que se com-preende que a veiculação desautorizada da imagem pessoal pode gerar prejuí-zos de ordem pecuniária, cabendo a indenização tanto pelos danos emergentes como pelos lucros cessantes.

Sendo o direito à imagem um direito da personalidade peculiar, por permitir ao seu titular dispor, em certa medida, do mesmo, pode-se facilmente entrever que, quando se capta ou se projeta a imagem pessoal sem que se proceda à reque-rida autorização, a pessoa, em regra, sofre uma perda de natureza patrimonial, pois está deixando de auferir os ganhos pecuniários que a exposição de sua ima-gem lhe renderia, caso a sua autorização fosse solicitada.

Outros danos de natureza patrimonial podem surgir da utilização desauto-rizada da imagem, como a exposição da imagem pessoal que venha a obstar futuras autorizações para a projeção da fisionomia ou a utilização comercial de determinados atributos da pessoa. Trata-se da hipótese, já mencionada, em que a fisionomia de uma modelo resta vinculada ao produto anunciado, sem que se busque o seu consentimento quanto à divulgação em tais circunstâncias.

Já o dano moral decorrente de violação do direito à imagem tem motivado reiteradas discussões em sede doutrinária e jurisprudencial. A principal contro-vérsia diz respeito ao entendimento de que o dano moral decorreria diretamente da lesão ao direito à imagem, gerando o dever de indenizar apenas pela utilização desautorizada da imagem de terceiro.

O entendimento de que o dano moral emergente da infração ao direito à imagem resulta da própria captação ou divulgação não consentida da imagem está lastreado na compreensão de que o direito à imagem é um direito da per-sonalidade autônomo, independendo para a sua violação que seja igualmente perpetrada ofensa a qualquer outro direito da personalidade.

Com efeito, o reconhecimento de que a simples utilização desautorizada da imagem gera o dever de indenizar ratifica o entendimento de que o direito à imagem constitui um direito da personalidade autônomo, não se fazendo neces-sária a análise sobre a possível lesão a outros direitos da personalidade, como a honra ou a privacidade. Conforme assevera Ricardo Luiz Lorenzetti, a divulga-ção de imagem não consentida:

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[...] pode configurar-se um fato antijurídico, ainda que não exista atentado à honra, ou à identidade dinâmica, ou à privacidade, mas em forma autônoma pela utilização não autorizada da imagem.125

Dessa forma, a mera utilização inconsentida da imagem gera o dever de inde-nizar por danos morais, pouco importando que a projeção da imagem tenha se dado de forma não injuriosa, não atentatória à reputação da pessoa. Conforme ressaltado anteriormente, o próprio ato ilícito pode até mesmo abonar a conduta do titular da imagem utilizada, tecendo elogios e louvando o seu bom caráter. Nada disso afasta o dever de indenizar.

Nessa direção já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

Direito à imagem – Indenização – Ato ilícito – Publicação não autorizada de fotos de renomado ator de televisão em catálogo promocional de empresa de ves-tuário – Reparação devida, mormente se houve a intenção de explorar e usufruir vantagem – Irrelevância de que tal divulgação não tenha sido desprestigiosa.126

Uma vez caracterizado o dano moral pela utilização indevida da imagem, a ofensa aos demais direitos da personalidade apenas influi na quantificação do dano a ser indenizado. A averiguação da ofensa à honra, por exemplo, quando da violação do direito à imagem, cumpre o papel de influir em prol da vítima na quantificação da indenização de natureza moral que lhe será devida, oneran-do a carga indenizatória que recai sobre o agente do evento ilícito previamente configurado.

Sobre a inclusão da ofensa a outros direitos da personalidade na quantificação do dano moral por utilização desautorizada da imagem alheia, assevera Antonio Jeová Santos que:

[s]e, de par à violação do direito à imagem, autonomamente considerado, advier lesão à intimidade, à honra ou à identidade pessoal, todas essas circunstân-cias deverão ser sopesadas pelo juiz no momento de estimar o quantum indeniza-tório, devendo aumentá-lo, porque outros bens personalíssimos foram atingidos, além da indevida captação da imagem.127

Tem-se assim que o dano causado à imagem constitui uma hipótese de dano in re ipsa, ou seja, o dano moral ocorre sem que se faça necessária uma incursão pelos prejuízos efetivamente causados pela atividade lesiva.128 A averiguação re-lativa ao resultado da violação do direito à imagem apenas será necessária para a quantificação da verba indenizatória.

Ao comentar a teoria do dano moral in re ipsa, vale transcrever o entendi-mento de Sergio Cavalieri Filho, segundo o qual:

Nesse ponto a razão se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito em si. [...] Em

125 ricardo luiz lorenzetti, Fundamen-tos do Direito Privado, cit., p. 486.

126 apelação Cível nº 91.030.4/2, rel. des. testa marchi, julgado em 11.05.2000; in rt nº 782, dez./2000, pp. 236-238. o mesmo tribunal já adotou entendimento diametralmente contrário, decidindo que a divulgação desautorizada de imagem, que não cause humilhação ou exponha a pes-soa de modo ridículo ou ofensivo, não gera o dever de indenizar por danos morais. da prática pura e simples de ato ilícito não poderia ser presumida a existência de dano moral. (in apelação Cível nº 244.316-1/6-00, rel. des. aldo magalhães, julgado em 01.04.1996; in rt 730, ago. 96, pp. 220-221.

127 antonio Jeová santos, Dano Moral Indenizável, cit., pp. 387-388.

128 nesse sentido, vide Carlos alberto bittar. Reparação Civil por Danos Mo-rais. são Paulo: revista dos tribunais, 2ª ed., 1994. pp. 202-205

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outras palavras, o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das regras de experiência comum; provado que a vítima teve o seu nome aviltado, ou a sua imagem vilipendiada, nada mais ser-lhe-á exigido provar, por isso que o dano moral está in re ipsa; decorre inexoravelmente da gravidade do próprio fato ofensivo, de sorte que, provado o fato, provado está o dano mo-ral.129

A jurisprudência pátria vem, paulatinamente, adotando esse entendimento, ainda que de forma não uniforme. Isto se dá na medida em que diversas decisões têm sido proferidas no sentido de que o dano, na hipótese de lesão à imagem, surge com a sua simples utilização desautorizada. Todavia, nem sempre se expli-cita a que título será realizada a indenização: se por danos materiais ou morais.

O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº 138.883/PE, esposou a tese do dano in re ipsa para indenização de violações à imagem. Segundo consta da redação do acórdão:

Cuidando-se de direito à imagem, o ressarcimento se impõe pela só constata-ção de ter havido a utilização sem a devida autorização. O dano está na utilização indevida para fins lucrativos, não cabendo a demonstração do prejuízo material ou moral. O dano, neste caso, é a própria utilização para que a parte aufira lucro com a imagem não autorizada de outra pessoa. Já o colendo Supremo Tribunal Federal indicou que a “divulgação da imagem da pessoa, sem o seu consentimen-to, para fins de publicidade comercial, implica em locupletamento ilícito à custa de outrem, que impõe a reparação do dano.”130

No julgamento do Recurso Especial nº 23.575/DF, no qual se pleiteavam da-nos materiais e morais em decorrência de acidente de trânsito, o entendimento de que o dano moral se origina da própria lesão terminou por prevalecer, con-forme consta do voto do relator:

A concepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabi-lização do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato da violação (danum in re ipsa). Verificado o evento danoso, surge a necessidade da reparação, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se presentes os pressupostos legais para que haja a responsabilidade civil (nexo de causalidade e culpa).131

Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se pela ocor-rência de dano moral a ser indenizado pelo simples ato de utilização inconsenti-da da imagem. Do julgamento proferido pela Quarta Turma, colhe-se a seguinte ementa:

129 sergio Cavalieri filho. Programa de Responsabilidade Civil, cit., p. 80.

130 recurso especial nº 138.883/Pe, rel. min. Carlos alberto menezes direito, julgado em 04.08.1998, in Revista do Superior Tribunal de Justiça, nº 116, abr./99, pp. 215-220.

131 recurso especial nº 23.575/df, rel. min. César asfor rocha, julgado em 09.06.1997; in rstJ nº 98, out./97, pp. 270/276.

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Direito à imagem – Violação – Ação de reparação de danos morais.Evidenciada a violação do direito à imagem, resulta daí o dever de indenizar

os danos morais sofridos, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo.A pretensão de exame de cláusula contratual e de aspectos fáticos-probatórios

é inviável em sede de recurso especial (súmulas 05 e 07 do STJ).132

Expressando de forma contundente esse entendimento, o Ministro Ruy Ro-sado de Aguiar, em voto proferido no Recurso Especial nº 46.420-0/SP, explicita que naqueles autos:

[a]legou-se a inexistência de prejuízo, indispensável para o reconhecimento da responsabilidade civil das demandadas. Ocorre que o prejuízo está na própria violação, na utilização do bem que integra o patrimônio jurídico personalíssimo do titular. Só aí já está o dano moral. Além disso, também poderia ocorrer o dano patrimonial, pela perda dos lucros que tal utilização poderia acarretar, seja pela utilização feita pelas demandadas, seja por inviabilizar ou dificultar a participa-ção em outras atividades do gênero.133

Dessa forma, o dever de indenizar por danos morais surge com a simples utilização desautorizada da imagem alheia. Os danos patrimoniais decorrentes serão analisados em um segundo momento, sendo a ofensa a demais direitos da personalidade igualmente perquirida para que se determine o valor a ser indeni-zado, também a título de danos morais.

Oportunamente, cumpre destacar que, segundo aponta Maria Celina Bodin de Moraes, a teoria do dano moral in re ipsa, apesar de sua expressiva adoção no Superior Tribunal de Justiça, deve ser aplicada com a cautela. Isso porque a sua adoção irrestrita pode incentivar a propagação de um entendimento subjacente “de que o dano moral sofrido pela vítima seria idêntico a qualquer evento dano-so semelhante sofrido por qualquer vítima”.134

Sendo assim, a teoria do dano in re ipsa pode gerar repercussões prejudi-ciais para a tutela integral da pessoa humana, e particularmente para o direito à imagem, caso se entenda que, se o dano moral deriva da lesão a direito da per-sonalidade, toda lesão semelhante poderá ser reparada de acordo com a mesma quantificação, perdendo-se o lastro com as circunstâncias dos casos concretos e com a individualidade de cada vítima.

a responsabilidade independe do resultado financeiro decorrente da violação

O resultado financeiro obtido pelo agente causador da lesão ao direito à imagem não é relevante para determinar a procedência ou a improcedência da respectiva indenização. Auferindo um lucro retumbante, ou amargando um pre-juízo lastimável, caberá ao titular da imagem indevidamente utilizada pleitear a indenização pelos danos sofridos.

132 agravo regimental no agravo nº 162.918/df, rel. ministro barros monteiro, julgado em 06.06.2000; in Revista de Direito Privado, nº 06, abr.-jun./2001, pp. 257-258.

133 recurso especial nº 46420-0/sP, rel. ministro ruy rosado aguiar, julgado em 12.09.1994; in rstJ, nº 68, abr./95, pp. 358-366.

134 maria Celina bodin de moraes, Da-nos à Pessoa Humana, cit., p. 161.

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Não se requer, assim, que o ofendido demonstre que o agente lucrou efeti-vamente com a divulgação não consentida da sua imagem, podendo o mesmo sofrer até mesmo prejuízo quando da exploração almejada.

Explicita o Ministro Rui Rosado de Aguiar que não se pode confundir o dano experimentado pelo indivíduo lesado com o resultado da lesão em termos econômicos para o infrator. Em julgamento de caso envolvendo a publicação da imagem de jogadores de futebol em álbum de figurinhas sem os respectivos con-sentimentos, cuja relatoria coube ao referido Ministro, assim decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

Direito à Imagem – Ação indenizatória – Imagem indevidamente incluída em publicação – Limitação do valor do dano sofrido pelo titular do direito ao lucro que uma das infratoras possa ter sofrido – Inadmissibilidade.

O valor do dano sofrido pelo titular do direito, cuja imagem foi indevida-mente incluída em publicação, não está limitado ao lucro que uma das infratoras possa ter auferido, pois o dano do lesado não se confunde com o lucro do infra-tor, que inclusive pode ter sofrido prejuízo com o negócio.135

Adicionalmente, cumpre lembrar que, se o resultado econômico da projeção desautorizada da imagem não determina o dever de indenizar, em nada altera a conformação da responsabilidade civil o fato de não possuir a divulgação intuito de lucro. Nesse sentido, assim decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:

Direito de Personalidade – Direito à própria imagem – Violação – Utilização de fotografia em editorial de revista dirigido a determinada classe de consumi-dores sem autorização do fotografado – Inadmissibilidade – Irrelevância de não haver lucro direto nessa divulgação – Indenização devida – Verba a ser arbitrada por perito ligado ao ramo publicitário.136

Da mesma forma, pronunciou-se o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro em processo no qual a defesa apresentada pela ré, acusada de divulgar foto da autora sem o seu consentimento, postulava que a revista em que se deu o ato ilícito não possuía finalidade lucrativa:

Direito de personalidade – Direito à própria imagem – Reprodução desauto-rizada de fotografia em revista – Indenização devida.

A pessoa fotografada tem direito autônomo à indenização, pelo uso incon-sentido da sua imagem, ainda quando a publicação da fotografia tenha sido feita sem finalidade lucrativa.137

Conclui-se, portanto, que o resultado econômico obtido pelo agente do ato ilícito não determina o dever de indenizar o titular a imagem utilizada de forma inconsentida, podendo até mesmo o infrator não visar à obtenção de lucro com a violação do direito da personalidade em tela.

135 recurso especial nº 100.764/rJ, rel. min. ruy rosado de aguiar, julgado em 24.11.1997, in rt nº 752, jul./98, pp. 192-196.

136 apelação Cível nº 91.688-1, rel. des. Jorge tannus, julgada em 18.02.88; in rt 629, mar./88, pp. 106-107.

137 embargos infringentes nº 177/95, rel. des. Wilson marques, julgado em 28.02.1996, in rt, nº 732, out./96, pp. 361-364.

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autorização para a veiculação da imagem

A veiculação da imagem pode ser autorizada pelo seu titular de forma expres-sa ou tácita. Em ambas as hipóteses, o consentimento relativo à disposição do direito da personalidade deve restar extreme de dúvidas quanto a sua existência, validade e amplitude.

A oportunidade em que o consentimento poderá ser proferido pode ocorrer tanto previamente como posteriormente à utilização da imagem em si. Apesar de ser mais usual a obtenção da autorização anteriormente à efetiva captação/divulgação da imagem – o que é recomendável, por um dever de cautela, já que se está dispondo de um direito da personalidade –, a ratificação do ato por parte do titular da imagem é possível se as circunstâncias assim o permitirem.

O consentimento presumido é, sem dúvida, a questão mais controvertida no que tange à autorização para a utilização da imagem por terceiro. Essa forma de consentimento poderá ser obtida através do silêncio do titular do direito à imagem quando lhe for apresentada a oportunidade para manifestar a sua discordância. A análise das circunstâncias pertinentes à hipótese sempre se fará necessária para que se possa evitar que atos ilícitos sejam chancelados pelo Direito, admitindo-se a existência de uma autorização que, na verdade, inexistiu.

Nesse particular, bem decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Ge-rais, no seguinte julgado:

Direito de personalidade – Direito à própria imagem – ViolaçãoNão constitui ofensa ao direito à própria imagem a reprodução de fotografia,

para fins publicitários, havida com o consentimento do interessado, ainda que tácito, podendo ser assim considerado ante o silêncio deste, corroborado por indícios e circunstâncias que autorizem presumir a sua aquiescência.138

Da mesma forma, a pessoa que aparece em público acompanhada de um indivíduo de notoriedade no meio social concede autorização tácita no que con-cerne à exposição de sua imagem. Conforme ressaltado por Antonio Chaves, a notoriedade do acompanhante resulta de imediato na aquiescência das conseqü-ências que advêm de seu amplo reconhecimento popular, tais como a exceção relativa à utilização de sua imagem com finalidade informativa.139

No que concerne à interpretação do consentimento, cumpre destacar que a doutrina e a jurisprudência, em uníssono, proclamam que o consentimento para veiculação da imagem deve sempre ser interpretado de forma restritiva, sendo vedado ampliar o escopo da disposição de um bem pertencente à esfera da personalidade. Conseqüentemente, o consentimento dado para a veiculação da imagem no cinema não pode ser estendido para a sua utilização através de outros meios, como a televisão, por exemplo.140

O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre a questão, em caso no qual uma modelo posou para a elaboração de peças publicitárias de uma empre-

138 tribunal de Justiça de minas gerais, 3ª Câmara Cível, rel. des. tenisson fer-nandes, j. em 04.05.94. vide Revista dos Tribunais, nº 715, maio/1995, pp. 248-253.

139 antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, t. i, cit., p. 541.

140 vide, dentre outros: Caio mário da silva Pereira, Direito Civil – Alguns As-pectos da sua Evolução. rio de Janeiro: forense, 2001. p. 30; e antonio Chaves, Tratado de Direito Civil, t. i, cit., p. 542.

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sa de tecidos, tendo sido as fotos utilizadas, anos depois, em revista especializada em tricô.141

Deve-se atentar ainda para as hipóteses de disposição gratuita do direito à imagem. Nesses casos a jurisprudência deve apreciar as autorizações com rigor para impedir que o produto do trabalho consentido sem repercussão financeira não fique para todo o sempre disponível ao uso de terceiros, podendo o titular da imagem retroceder em sua concessão.

Enfrentando um caso símile à hipótese acima, o Tribunal de Justiça de São Paulo decidiu que:

O direito à imagem é um direito personalíssimo, que permite utilização patri-monial pelo próprio titular ou por terceiro, mediante cessão gratuita ou onerosa do direito à utilização (não do próprio direito à imagem). Mas a cessão gratuita fica sempre sob suspeita, pois, como se sabe, o Direito tem cautela especial em regrar os atos de liberalidade, como se vê, por exemplo, das hipóteses que toleram o arrependimento; que proíbem os contratos preliminares; que admitem a revo-gação; que impõem a interpretação restritiva, etc. E tal cautela mais se justifica quando está em jogo um direito personalíssimo.142

Afora a hipótese de autorização para a divulgação da imagem, existem casos em que a utilização da imagem da pessoa por terceiros será permitida, mesmo sem o seu consentimento. Em tais circunstâncias, a própria conduta prévia do indivíduo cria uma exceção à ilicitude do ato de captação/utilização da imagem. Trata-se dos casos de pessoas que, por ocuparem cargos públicos, possuem a sua esfera de proteção do direito à imagem reduzida, quando atrelada a finalidades informativas, ocorrendo o mesmo com pessoas notórias de toda a sorte. A deci-são sobre a ocorrência ou não de violação de imagem nesses casos dependerá de uma análise mais cuidadosa sobre a colisão entre os direitos de imagem e liber-dade de expressão, tratada no capítulo seguinte.

o direito à imagem do de cujus

A legislação brasileira, assim como a internacional, dispõe sobre a legitimi-dade de parentes e cônjuges para reclamar indenização por ofensa à imagem de pessoa falecida. No centro dessa questão encontra-se a problemática de se reco-nhecer a possibilidade de extensão dos efeitos dos direitos da personalidade para além da própria existência de seu titular.

O debate ganha relevância quando contextualizado em situações nas quais a imagem de pessoa falecida é explorada, por vezes com abuso ou exagero. Diver-sos são os casos em que tais desmedidas chegam a ocorrer no próprio velório, como se passou nas cerimônias fúnebres do general alemão Bismarck e do pintor brasileiro Di Cavalcanti.143

O Código Civil trata dessa legitimação em dois momentos distintos: (i) a primeira vez no parágrafo único do art. 12, cujo caput dispõe sobre a tutela dos

141 recurso extraordinário nº 115.838/sP; rel. min. Carlos madeira, j. em 10.95.1988. vide Revista Trimestral de Jurisprudência, nº 125, pp. 1338-1343.

142 in JtJ-lex nº 147/120.

143 sobre a celeuma instaurada no veló-rio do pintor di Cavalcanti pelo cineasta glauber rocha, que pretendia filmar a cerimônia para a inclusão em docu-mentário que produzia à época sobre a vida do pintor, vide o relato de antonio Chaves (in Tratado de Direito Civil, t. i., cit., p. 550-552).

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direitos da personalidade; e (ii) a segunda no parágrafo único do art. 20, que trata do direito à imagem, conforme já comentado.

O parágrafo único do art. 12 apresenta enunciado mais abrangente, não ape-nas por dispor sobre a legitimidade para reclamar por lesões aos direitos da per-sonalidade de modo geral (e não apenas ao direito à imagem), mas também por constar do rol de legitimados qualquer parente em linha reta, ou colaterais até o quarto grau. Assim está redigido o mencionado dispositivo legal:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalida-de, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau.

Já o parágrafo único do art. 20 está exclusivamente relacionado com a tutela do direito à imagem, sendo apenas legitimados o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se des-tinarem a fins comerciais.

Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.

Em decorrência dessa duplicidade, quase total, entre os dois parágrafos, Ma-ria Helena Diniz propôs, em seus comentários ao texto do Código Civil, que o parágrafo único do art. 20 fosse retirado.144 Todavia, enquanto nenhuma altera-ção legislativa for efetuada, vigoram no País dois regimes distintos no que con-cerne à legitimação para defesa de direitos da personalidade do de cujus, sendo o rol mais restrito com relação ao direito à imagem.

No campo teórico, diverge a doutrina sobre a natureza do direito pleiteado pelos herdeiros do falecido. Sustenta Walter Moraes que o direito à imagem, enquanto direito da personalidade, extingue-se com a morte da pessoa. Aos her-deiros caberia um direito sobre as reproduções, de natureza imaterial. Assim, os parentes e demais pessoas designadas defenderiam não um direito cuja titulari-dade pertencesse ao de cujus, mas, sim, um direito próprio.145

Entendimento semelhante é partilhado por Luiz Alberto David Araújo, se-gundo o qual o direito à imagem surge com o nascimento da pessoa e extingue-se com o seu falecimento. Os herdeiros do de cujus apenas valer-se-iam da imagem da pessoa falecida como suporte para o pleito indenizatório decorrente de lesão a seus próprios direitos da personalidade.146

144 in ricardo fiúza (coord). Novo Códi-go Civil Comentado. são Paulo: saraiva, 2003. p. 33.

145 in “direito à Própria imagem – ii”, Revista dos Tribunais, nº 444, out./72, pp. 26-27. no mesmo sentido, e já analisando a questão à luz do texto do novo Código Civil, vide os comentários de maria Helena diniz. in: fiÚza, ricar-do (coord.). Novo Código Civil Comenta-do, cit., p. 25; e renan lotufo, Código Civil Comentado, vol. i, cit., p. 81.

146 A Proteção Constitucional, cit., pp. 87-88.

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Para outra parcela da doutrina, seria possível aos herdeiros gozar de legitimi-dade para preservar a imagem do de cujus, defendendo não um direito próprio, mas, sim, o próprio direito da pessoa falecida. Há, para esses autores, uma exce-ção ao princípio mors omnia solvit, estendendo a efetividade do direito à imagem para além do término da vida de seu titular.

Dessa forma, ressalta Jacqueline Sarmento Dias que existe a possibilidade de transmissão aos herdeiros do direito à imagem da pessoa falecida.147 Diogo Leite de Campos, por seu turno, defende a hipótese de transmissão do direito à ima-gem aos herdeiros, não atuando os mesmos em interesse próprio, mas, sim, em nome da pessoa falecida. A aquisição do direito post­mortem seria caracterizada, portanto, como uma manifestação da personalidade jurídica do de cujus e dos interesses que lhe estão subjacentes.148

Ao largo dessa discussão teórica, é importante notar que, na positivação da legitimidade dos herdeiros para a defesa da imagem de pessoa falecida, ambos os parágrafos referidos não mencionam a inserção do companheiro, ou compa-nheira, do de cujus no rol dos legitimados para esse fim. A omissão legislativa, nesse particular, deverá ser suprida pela interpretação favorável à inclusão dessas figuras como pessoas legitimadas para requerer a tutela do direito à imagem do companheiro, ou companheira, já falecido.149

a violação da imagem na internet

Uma última consideração deve ser feita sobre a tutela do direito à imagem na Sociedade da Informação, mais especificamente na rede mundial de computa-dores. A Internet possibilita uma ampliação inédita no alcance da comunicação entre pessoas, acelerando o tempo de resposta a mensagens e propiciando que a informação constante de uma página eletrônica seja acessada por pessoas em qualquer lugar do mundo.

Essa peculiaridade da dinâmica de comunicação entre pessoas na Sociedade da Informação apresenta um impasse relevante – e ainda por solucionar – no que toca à proteção da imagem: a insuficiência de meios técnicos para obstar a pro-pagação do dano e prover a vítima com a reparação integral da violação sofrida em seu direito da personalidade.

Cumpre então explicitar em que consiste o impasse acima referido. A melhor forma de se compreender o tema parece ser através da análise de alguns casos concretos que chegaram à imprensa envolvendo a utilização não consentida da imagem alheia na rede mundial de computadores.150

Nessas situações, uma ou mais fotos de uma pessoa foram divulgadas na Internet sem o seu consentimento, estando geralmente associadas a sites de conteú do adulto.

Abstraindo-se as particularidades de cada caso, é importante que se indague qual solução é disponibilizada pelo Direito para que o dano à imagem, se exis-tente em tais circunstâncias, seja reparado.

O manejo da responsabilidade civil no caso em tela não atende ao princípio da ampla reparação da vítima, pois apenas lhe proporcionaria uma indenização

147 O Direito à Imagem, cit., p. 122.

148 “lições de direitos da Personalida-de”, Boletim da Faculdade de Direito. Coimbra: universidade de Coimbra, 1991. p. 191.

149 vide silvio de salvo venosa. Direito Civil, vol. i. são Paulo: atlas, 3ª ed., 2003. p. 154.

150 vejam-se alguns exemplos de notícias publicadas em jornais ou revistas nos últimos anos: “foto de jovem em busca de namorado vira anúncio pornô na Web” (Folha de São Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u11571.shtml, acessada em 30.07.2005); “Pe-sadelo na internet: Jovem posa nua para namorado e vê sua imagem ser explorada pela mídia mundial” (revista IstoÉ, http://www.zaz.com.br/istoe/comport/1999/12/16/009.htm, aces-sada em 30.07.2005); “big brother bai-xa na festa da fgv: fotos de casais em cenas de namoro e sexo são divulgadas pela internet” (jornal Último Segundo, http://ultimosegundo.ig.com.br/useg/brasil/artigo/0,,920373,00.html, aces-sada em 30.07.2005); “ex-ministra da economia aparece num site à procura de um companheiro, nega ter sido ela, mas não retira o anúncio da internet” (revista IstoÉ Gente, http://www.terra.com.br/istoegente/93/reportagem/zelia_cardoso.htm, acessada em 30.07.2005); e “modelos brasileiras são vítimas de sites de garotas de progra-ma” (Folha de São Paulo, http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u11779.shtml, acessada em 30.07.2005).

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pecuniária em face de quem efetivamente divulgou as fotos na rede mundial de computadores. E ainda que a decisão judicial que condene os eventuais respon-sáveis pelo dano os obrigue a cessar a prática lesiva, seja com a interrupção do envio de mensagens eletrônicas ou com a retirada do ar dos sites que divulgam as fotos, o dano à imagem persiste.

Note-se que, uma vez enviada uma mensagem eletrônica, o remetente não possui meios de impedir o seu encaminhamento posterior por parte do des-tinatário inicial para novos destinatários. Assim, o impasse mencionado ante-riormente mostra-se evidente quando, ainda que a vítima obtenha reparação em face do responsável original pela divulgação do material ilícito, o dano à sua imagem continua a ser agravado em cada encaminhamento da mensagem eletrônica lesiva.

Acrescente-se que, em se tratando da rede mundial de computadores, o mate-rial ilícito pode transitar em questão de segundos por diversos países, alcançando o dano proporções cujo tratamento ainda carece de maior discussão de natureza jurídica.

Com essa breve reflexão encerra-se o capítulo sobre a tutela de direito à ima-gem na Sociedade da Informação, expondo-se como a mudança nas práticas de comunicação entre pessoas e na transmissão de dados demandam uma revisão em conceitos já consolidados para a mais ampla proteção da imagem, em ambos os perfis previamente trabalhados.

2. caso gErador

Sylmara Rocha é a nova namoradinha do Brasil. Em apenas dois anos ela largou a vida de modelo-manequim e tornou-se uma das maiores estrelas da te-levisão brasileira. Novelas, mini-séries, entrevistas em talk­shows, propaganda de cremes hidratantes: ela está em todas. Para coroar o seu apogeu no firmamento estrelado da mídia brasileira, Sylmara resolveu, finalmente, aceitar o convite da-quela famosa revista masculina para realizar um ensaio de nu artístico.

O Brasil parou no dia em que as revistas que traziam o ensaio de Sylmara chegaram às bancas. O afluxo de pessoas às bancas de jornal foi estarrecedor. Es-pecialmente se levarmos em conta que a edição da revista tinha até pôster duplo encartado e custava vinte e cinco reais, ou seja, um preço bastante salgado para boa parte da multidão interessada.

No dia seguinte à publicação da revista masculina, qual não foi a surpresa de Sylmara ao saber – para a felicidade de muitos – que o jornal Vingador Popu­lar, conhecido por sua ampla cobertura de crimes atrozes e fofocas envolvendo celebridades, havia publicado uma das fotos constantes do ensaio fotográfico veiculado pela revista masculina. E lá estava ela, vestindo apenas uma gargan-tilha de cristais multicoloridos, tendo ao fundo o cenário paradisíaco de uma praia particular em Pernambuco. Não havia sequer uma menção sobre o motivo de a fotografia constar naquele tão ilustre periódico popular. Ao lado da foto, a

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notícia de um crime bárbaro. Logo abaixo, a programação de filmes para o dia na televisão aberta.

Durante a semana não se falou de outra coisa. O apresentador de um progra-ma vespertino dedicado às senhoras donas-de-casa chegou até mesmo a comen-tar que não haveria problema algum com a publicação das fotos de Sylmara no Vingador Popular. Segundo o apresentador, Sylmara é uma atriz e, conseqüente-mente, figura pública.

Com base no caso acima e após ter lido as reportagens e os dispositivos legais indicados, dê a sua opinião sobre as seguintes questões:

1) Poderia o jornal Vingador Popular publicar a foto da atriz em suas pági-nas? Em caso afirmativo, qual seria o fundamento que legitima essa pu-blicação? Em caso negativo, qual seria o direito da atriz que estaria sendo violado nesse caso?

2) Imagine agora que a foto do ensaio fotográfico de Sylmara tenha sido pu-blicada não no Vingador Popular, mas no famoso jornal francês Le Monde Diplomatique. Essa circunstância altera a resposta que você deu à pergun-ta acima?

3) E se a fotografia de Sylmara fosse usada por uma empresa que elabora ca-lendários para ilustrar as folhinhas do ano de 2006 que serão distribuídas gratuitamente para borracharias espalhadas por todo o Brasil?

4) E se Tonico, estudante do terceiro ano do ensino médio de um renomado colégio da Zona Sul carioca, digitalizar as fotos que compõem o ensaio de Sylmara e colocá-las em seu website na Internet? Ele poderia fazer isso? Em caso contrário, quem seria responsabilizado pela conduta do menor?

5) Imagine, agora, que Sylmara é uma das principais ativistas do movimento internacional “Salvem as baleias!”. No Brasil, a atriz é a garota-propagan-da da campanha, tendo a sua imagem vinculada ao esforço de ecologistas do mundo inteiro em proteger essa espécie animal.

Todavia, uma empresa que industrializa óleo de baleia veio a utilizar uma foto antiga de Sylmara para anunciar os seus produtos. A foto foi licenciada para a empresa pela agência de modelos que lançou Sylmara no mercado anos atrás. Na fotografia, a atriz está em roupas de banho e contempla, da ponta de um píer, a imensidão do mar. Acrescentaram-se à foto os dizeres: “Óleo de Baleia Sham-mu: aproveite o melhor do terror dos mares!”

E agora? Considerando que a agência de modelos efetivamente detinha os direitos de exploração da fotografia, o que pode fazer Sylmara para evitar que prejuízos lhe sejam causados pela veiculação da referida propaganda?

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3. QuEstão dE concurso

X Concurso para Juiz Federal Substituto do TRF 2ª Região (2005)49. De acordo com o Código Civil, é admissível a tutela inibitória contra amea-ça de lesão a direito da personalidade por divulgação de relato inverídico relacio-nado à biografia de pessoa já falecida? Em caso positivo, quem tem legitimação para postular a medida? Em caso negativo, comente a omissão legislativa.

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AuLA 10. DIREITO à IMAGEM E PRIvACIDADE – ANáLISE DE CASOS

EmEntário dE tEmas

Colisão entre privacidade, imagem e liberdade de expressão – Privacidade de pessoas notórias – Interesse público sobre fatos criminosos e seus autores – Ima-gem do retratado em locais públicos – Sátiras e caricaturas

LEitura obrigatória

Texto do material didático e notícias constantes do item “casos geradores”.

LEituras compLEmEntarEs

SAHM, Regina. Direito à Imagem no Direito Civil Contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2002. pp. 157-194.

MORAES, Walter. “Direito à Própria Imagem”. In Revista dos Tribunais, nº 443, set./1972, pp. 64-81; e nº 434, out./1972, pp. 11-28.

1. rotEiro dE auLa

Tendo passado em revista as características gerais dos direitos à privacidade e à imagem, além do impacto trazido pelo desenvolvimento tecnológico, esta aula visa discutir diversos casos em que os dois direitos acima referidos entram em rota de colisão com outros direitos, mais especificamente com a liberdade de expressão.

A positivação constitucional do direito à privacidade e à imagem no art. 5º, X, em termos peremptórios, poderia gerar o entendimento de que a sua tutela seria absoluta. Todavia, tanto a privacidade como a imagem não são direitos ab-solutos, podendo ceder no caso concreto frente a outros princípios constitucio-nais que se provem de maior relevo. A liberdade de expressão e de informação, derivadas da liberdade de pensamento, são os direitos que mais freqüentemente entram em conflito com a privacidade e a imagem individuais, motivo pelo qual o estudo desse conflito específico faz-se pertinente.

a privacidade e a imagem de pessoas notórias

Uma das principais áreas de conflito entre a liberdade de expressão/informa-ção e os direitos à imagem e à privacidade reside na publicação de escritos, pro-dução de filmes ou divulgação de fotografias envolvendo pessoas notórias, sobre

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as quais exista um interesse público ou sobre aquelas que ocupam determinados cargos públicos.

A restrição à imagem e/ou à privacidade fundamenta-se aqui na análise da conduta pretérita da pessoa enfocada, na medida em que a mesma veio a ocupar uma posição no meio social em que notícias e informações sobre ela passam a constituir matéria de relevo para a comunidade.

Sobre a possibilidade de se retratar uma pessoa notória sem que seja necessá-ria a obtenção de seu consentimento, explicita Antonio Jeová Santos que:

Isso não significa que a pessoa notória não deva ter a sua imagem preservada. Apenas existe uma diminuição em seu direito de tutelar a imagem, dada a noto-riedade. Desde que o notável esteja em ambiente onde desenvolve sua atividade e sem nenhum resquício de constrangimento, já que está retratando a pessoa como ela é e na forma como desenvolve sua normal atividade, não há nem necessidade de colher-se autorização, muito menos possibilidade de indenização.151

Todavia, o limite entre a expressão jornalística apoiada no interesse público e a violação do direito à privacidade e à imagem é bastante tênue, conforme retrata o seguinte acórdão do Superior Tribunal de Justiça:

Civil. Direito de imagem. Reprodução indevida. Lei n° 5.988/73 (art. 49, I, f ). Dever de indenizar. Código Civil (art. 159).

A imagem é a projeção dos elementos visíveis que integram a personalidade humana, é a emanação da própria pessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individualizam.

A sua reprodução, conseqüentemente, somente pode ser autorizada pela pes-soa a que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sob pena de acarretar o dever de indenizar que, no caso, surge com a sua própria utilização indevida.152

É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome de direito de privaci-dade, estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de qualquer veiculação atinente à sua imagem; todavia, não se deve exaltar a liberdade de informação a ponto de se consentir que o direito à própria imagem seja postergado, pois a sua exposição deve condicionar-se à existência de evidente interesse jornalístico que, por sua vez, tem como referencial o interesse público, a ser satisfeito, de receber informações, isso quando a imagem divulgada não tiver sido captada em cenário público ou espontaneamente.153

Um caso que ganhou considerável repercussão na mídia foi a ação judicial movida pelas filhas do falecido jogador de futebol Garrincha, por conta do lan-çamento do livro Estrela Solitária – um brasileiro chamado Garrincha, de autoria do escritor Ruy Castro.

A colisão entre liberdade de expressão, privacidade e imagem ficou bem des-crita nos debates travados nos autos, em que se discutiu até que ponto a bio-grafia, ao retratar com riqueza de detalhes o alcoolismo, as desavenças e a vida

151 antonio Jeová santos. Dano Moral Indenizável, p. 393.

152 observa-se como, novamente, o superior tribunal de Justiça adota o entendimento de que o direito à imagem é violado com a simples uti-lização desautorizada desse bem da personalidade, conforme explorado no Capítulo 4.

153 recurso especial n° 58.101/sP, rel. César asfor rocha, julgado em 16.09.1997; in Revista do Superior Tri-bunal de Justiça, n° 104, abr./98, pp. 326-332.

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sexual do jogador, indiscutivelmente uma figura notória, teria violado a sua pri-vacidade e lesionado a sua imagem.

O Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, ao decidir o caso em grau de recur-so, apenas reconheceu o dano patrimonial causado às autoras, pela publicação não consentida do livro, mas negou a existência de dano moral. Nas palavras do relator:

Quanto ao mérito, da leitura do livro não surge nenhuma ofensa à honra ou à imagem de Garrincha. O que ali se descreve é do conhecimento público. Gar-rincha era doente, sofrendo de alcoolismo, e a sua luta contra a enfermidade é narrada em detalhes, não só por meio da pesquisa que o autor despendeu, como, ainda, através de testemunhos.

[...] Os fatos são públicos e notórios e estão estampados no tempo em todos os jornais e revistas de então.

Há um ou outro ponto mais picante sobre a vida sexual do biografado, mas nada que conduza a uma ofensa à sua dignidade ou honra.

E por isso mesmo não há que se falar em dano moral.154

O que se deve ter em mente é que, se é certo que as pessoas públicas possuem uma esfera de proteção à privacidade e à imagem reduzida por conta do interesse geral sobre a sua vida, essa diminuição não implica em aniquilamento da esfera privada. Existem acontecimentos e detalhes sobre a vida de uma pessoa pública que permanecem resguardados pelo direito à privacidade, assim como a sua ima-gem permanece tutelada contra captações e utilizações ilícitas.

O debate sobre os limites da liberdade de expressão e informação quando se trata de analisar a vida privada de pessoas notórias também encontra grande re-percussão no Direito Comparado, podendo-se apontar, por exemplo, o sempre referido caso Mefisto, decidido pela Corte Constitucional Alemã.

No mencionado caso, o filho adotivo do diretor de teatro Gustav Grunder, na época já falecido, buscava obstar a publicação do livro Mefisto, de Klaus Mann, sob a alegação de que o seu pai, representado no romance pelo personagem Hen-drik Hofgen, teria sido retratado de forma depreciativa à sua imagem.

Inicialmente, o Tribunal Estadual de Hamburgo considerou improcedente a ação, tendo sido o romance publicado em 1965 com a seguinte advertência aos leitores: “Todas as pessoas deste livro são tipos, não retratos de personalidade”. Posteriormente, por ordem do Tribunal Superior de Hamburgo, acrescentou-se a advertência no sentido de que, embora constassem do livro referências a pes-soas, os personagens que as representavam haviam sido transformados por conta da “fantasia poética do autor”.155

O mesmo Tribunal reformou depois o seu entendimento, concedendo o pedi-do do autor da ação no sentido de se obstar a publicação do romance. Declaran-do ser evidente a associação entre o personagem degradado e o falecido diretor teatral, afirmou o Tribunal que o direito de liberdade de expressão artística não goza de prevalência sobre os demais direitos, cabendo ao juiz no caso concreto

154 apelação Cível n° 2.270/01, rel. gus-tavo adolpho Kuhl leite, julgado em 17.07.2001.

155 Cf. gilmar ferreira mendes. Direitos Fundamentais, cit., p. 88.

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ponderar entre a liberdade artística e os direitos fundamentais pretensamente violados.

A Corte Constitucional, por fim, quando lhe foi dado julgar o caso, decidiu pela manutenção da proibição do romance, apoiando-se a decisão na dignida-de da pessoa humana, que deveria prevalecer frente à liberdade de expressão artística.

O direito de liberdade de expressão artística não é – conforme decisão da Corte Constitucional – um direito absoluto, estando o mesmo condicionado à observância da tutela da pessoa humana que balizou a elaboração da Lei Funda-mental. Conforme consta da redação do acórdão:

5. Um conflito entre a liberdade artística e o âmbito do direito da personali-dade garantido constitucionalmente deve ser resolvido com fulcro na ordem de valores estabelecida pela Lei Fundamental; nesse sentido, há de ser considerada, particularmente, a garantia da inviolabilidade do princípio da dignidade da pes-soa humana consagrada no art. 1, I.156

Traçadas as linhas gerais do tema, cumpre abordar ainda um tópico que vem ganhando relevo na discussão sobre a colisão entre liberdade de imprensa, priva-cidade e imagem de pessoas notórias. Trata-se da divulgação de matérias jornalís-ticas que violam a privacidade ou a imagem de pessoas envolvidas com a prática de atos criminosos.

o interesse público sobre fatos criminosos e seus autores

O crime é uma questão de interesse público. Ao violar a norma penal, o criminoso também rompe com as regras de convivência na sociedade, fazendo incidir sobre a sua conduta a sanção estatal.

Em decorrência desse interesse público na persecução e punição do crimi-noso, especializou-se na imprensa o ramo da crônica policial, onde se busca acompanhar a dinâmica entre a prática do ato criminoso, sua investigação e o sancionamento da conduta transgressora da norma penal.

Conforme aponta René Ariel Dotti, a crônica policial, divulgada através de jornais, rádio e televisão, principalmente, colhe o seu fundamento no direito ge-ral à informação, mantendo estreita relação com o caráter publicista do processo penal.157

Todavia, o interesse público quanto ao conhecimento dos crimes não isenta a crônica policial de colisões com demais direitos fundamentais. No que tange aos direitos à privacidade e à imagem, a crônica policial apresenta, caso desenvolvida em inobservância aos parâmetros da ética jornalística, diversas possibilidades de conflitos, ocasionados pela eventual deturpação dos fatos, condenando-se o investigado através da imprensa antes mesmo do julgamento, pelo sensaciona-lismo, que explora comercialmente os detalhes sórdidos dos crimes e transforma tragédia em espetáculo.

156 Cf. gilmar ferreira mendes. Direitos Fundamentais, cit., p. 89.

157 rené ariel dotti. Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação. são Paulo: revista dos tribunais, 1980. p. 213.

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As matérias que ilustram as crônicas policiais devem sempre atender aos im-perativos constitucionais referentes à tutela da pessoa humana, sendo contrário ao Direito – além de imoral – divulgar fatos que imputem a uma pessoa deter-minada conduta criminosa sem o cuidado de se apurar a veracidade do que se diz158, ou aproveitar o evento criminoso para explorar a pessoa humana como simples instrumento para obter – às custas da sordidez de muitos – uma maior vendagem do jornal, ou audiência para os programas de rádio e televisivos.

Diversos são os julgados que ilustram a colisão entre liberdade de expressão, privacidade e imagem na crônica policial. A deturpação dos fatos, imputando à pessoa conduta criminosa sem proceder ao devido exame da veracidade do que se publica, geralmente decide a contenda favoravelmente ao indivíduo lesionado em sua privacidade ou imagem. Nesse sentido, veja-se a decisão do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro:

Responsabilidade Civil. Dano Moral. Reportagens jornalísticas que imputam ao autor a acusação de “mutreteiro” e “cabeça” de fraude em concurso públi-co, que derivaria do investigado pelo Ministério Público e por CPI da Câmara Municipal. Acusação não corroborada pelos documentos dos autos, que apenas retratam ser a vítima um dos beneficiários de adulteração de notas no concurso, sem, porém imputar-lhe a condição de responsável pela fraude e muito menos “cabeça” dela.

Abuso do direito de informar e deturpação da notícia que ensejam a repa-ração, com base nos art. 5º, X da CF, por ofenderem a honra e dignidade do demandante.159

Adicionalmente, a liberdade de informação manifestada pelo jornalista que trabalha na cobertura dos eventos criminosos deve ainda atender ao chamado “direito ao esquecimento”, que favorece o condenado, visando a sua melhor ressocialização depois de cumprida a pena que lhe foi imposta. A própria Lei de Imprensa veda, segundo dispõe seu artigo 21, §2º, a divulgação ou transmissão de fato delituoso cujo autor já tenha sido condenado e cumprido a respectiva pena, salvo por motivo de interesse público.

Talvez o caso mais estudado sobre a colisão entre a liberdade de informação e o direito à privacidade e à imagem seja o caso Lebach, decidido pela Corte Cons-titucional Alemã, no qual foi discutido o direito de uma emissora de televisão de exibir um documentário que retratava o assassinato dos soldados de Lebach, em circunstâncias que haviam chocado todo o país.

Em circunstâncias normais, não haveria questionamento à liberdade de ex-pressão jornalística da emissora de televisão, tendo em vista que o assassinato dos soldados havia sido amplamente coberto pela imprensa, acompanhando o público alemão com interesse o julgamento dos criminosos. Sendo assim, os fatos a serem narrados no documentário eram públicos.

Todavia, um dos condenados pelo crime, que estava cumprindo o final de sua pena, ingressou com uma medida liminar buscando suspender a veiculação

158 o emblemático caso da escola base, no qual os diretores de uma escola em são Paulo foram acusados de abusar sexualmente de seus alunos, sofrendo um verdadeiro “linchamento” na im-prensa, apurando-se posteriormente serem as denúncias inverídicas, consti-tui o melhor exemplo para um estudo da ética jornalística no brasil recente. sobre o caso, vide estela Cristina bon-jardim. O Acusado, sua Imagem e a Mídia. são Paulo: max limonad, 2002. pp. 103-110.

159 apelação Cível n° 25.960/01, rel. binato de Castro, julgado em 18.12.2001.

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do documentário, no qual ele era nominalmente citado, alegando que o mesmo lesionava não apenas a sua privacidade e imagem, como também dificultaria a sua ressocialização.

O Tribunal estadual de Mainz e, em seguida, o Tribunal Superior de Koblenz não acolheram o pedido do autor sob o fundamento de que o mesmo, ao se envolver no crime, havia se tornado um personagem da história recente, e que o documentário havia reproduzido com fidelidade os fatos que vieram à tona no decorrer do processo, sem relevantes alterações.160

Sendo assim, o entendimento até então prevalecente indicava que, no con-flito entre a liberdade de imprensa (art. 5, I, da Lei Fundamental alemã) e os direitos fundamentais do criminoso, deveria o primeiro prosperar em nome do interesse público sobre as circunstâncias históricas do crime.

O recurso à Corte Constitucional foi interposto sob o fundamento de ofensa à proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, dando início a inten-so trabalho da Corte, que, para decidir o caso, promoveu consultas a diversas instituições e a profissionais especializados em psicologia social, comunicação e execução penal.161

Por fim, ao decidir o caso favoravelmente ao autor, a Corte Constitucional considerou que a divulgação do documentário no caso concreto violava direitos legítimos do preso. A redação do acórdão é bastante elucidativa:

Para a atual divulgação de notícias sobre crimes graves tem o interesse de informação da opinião pública, em geral, precedência sobre a proteção da perso-nalidade do agente delituoso. Todavia, além de considerar a intangibilidade da esfera íntima, tem-se que levar em conta sempre o princípio da proporcionali-dade. Por isso, nem sempre se afigura legítima a designação do autor do crime ou a divulgação de fotos ou imagens ou outros elementos que permitam a sua identificação.

A proteção da personalidade não autoriza que a Televisão se ocupe, fora do âmbito do noticiário sobre a atualidade, com a pessoa e a esfera íntima do autor de um crime, ainda que sob a forma de documentário.

A divulgação posterior de notícias sobre o fato é, em todo caso, ilegítima, se se mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente se dificultar a sua reintegração na sociedade. É de se presumir que um programa, que identificas o autor de fato delituoso pouco antes da concessão de sue livra-mento condicional ou mesmo após a soltura, ameaça seriamente o seu processo de reintegração social.162

Note-se que o caso Lebach é um exemplo contundente da necessidade de se promover a ponderação entre liberdade de informação, privacidade e imagem, pois, em regra, a veiculação do documentário sobre o assassinato seria uma le-gítima manifestação do direito de liberdade de imprensa. Contudo, tendo em vista as peculiaridades do caso concreto, sobretudo o fato de que o preso estava no final do cumprimento de sua pena, o documentário – que reproduzia o crime

160 gilmar ferreira mendes. Direitos Fundamentais, cit., p. 90.

161 daniel sarmento. A Ponderação, cit., p. 167.

162 Apud gilmar ferreira mendes, Direi-tos Fundamentais, pp. 91-92.

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de forma fiel e sem alterações que lesionassem a imagem dos condenados – teve a sua divulgação proibida por ordem judicial.

Em síntese, pode-se afirmar que a operação desenvolvida pela Corte alemã para solucionar o caso Lebach representa com clareza indiscutível os efeitos da técnica da ponderação, pois a liberdade de imprensa foi apenas afastada no caso concreto, para que o direito à privacidade e à imagem do preso fosse preservado.

a imagem do retratado em eventos públicos

A colisão entre liberdade de expressão/informação e os direitos à privacidade e à imagem também pode ser observada na captação e utilização de imagem de pessoas em eventos de natureza pública. Em tais hipóteses, entende-se que os direitos à privacidade e à imagem cedem espaço para a liberdade do fotógrafo ou cinegrafista, liberando-o do ônus de requerer autorização para a utilização da imagem de cada pessoa captada por sua lente em locais ou eventos públi-cos, cumprindo-se certos requisitos, mais notadamente quando da realização de eventos que congregam um número elevado de pessoas.

Indubitavelmente, a liberdade de expressão artística seria sensivelmente cer-ceada se em tais circunstâncias o fotógrafo ou cinegrafista tivesse que obter o consentimento na divulgação da foto ou filmagem de cada pessoa captada pela objetiva da máquina fotográfica ou pela lente da câmera.

Para que não se configure lesão à privacidade e/ou imagem da pessoa, o pro-pósito da retratação em eventos públicos deve sempre demonstrar que a inten-ção da captação daquela imagem remonta ao evento e não a qualquer pessoa em particular.163 O interesse do autor da obra que se vale da imagem alheia deve ser caracterizar o evento público e não quaisquer atributos das pessoas retratadas.

O caso mais comum refere-se a fotos tiradas em grandes manifestações po-pulares, nas quais possa se distinguir as feições das pessoas que delas participam. Nesses casos, não caberá indenização por dano à imagem ou por alegações de in-vasão de privacidade (baseadas no direito ao anonimato), restando caracterizado que a finalidade da foto não era retratar aquelas pessoas em particular. Deve-se averiguar sempre se as pessoas retratadas são elementos acessórios da fotografia.

Em acórdão que versa sobre caso semelhante, pronunciou-se o Tribunal do Estado do Rio de Janeiro no seguinte sentido:

Direito de personalidade – Direito à própria imagem – Violação – Descarac-terização – Reprodução desautorizada de fotografia para fins publicitários – Hi-pótese em que a imagem não concorre direta e claramente para o êxito da pro-paganda na qual utilizada por identificável a pessoa do retratado, desconhecida, ademais, no meio publicitário – Conjunto fotográfico em que sobressai outro elemento – Indenização não devida.164

A mesma lógica aplica-se às fotografias que são tiradas de jogadores de futebol no momento em que os marcam um gol ou protagonizam episódios

163 nesse sentido, dentre outros, vide Carlos alberto bittar, Os Direitos da Per-sonalidade. rio de Janeiro: forense, 4ª ed., 2000. p. 95.

164 apelação Cível n° 776/86, rel. des. alberto garcia, julgada em 15.09.87; in Revista dos Tribunais, nº 637, nov./88, pp. 158-161.

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singulares no decorrer de suas exibições públicas. Abstraindo-se as conside-rações em torno do direito de arena, por estarem participando de um evento público, assistido por diversas pessoas, seja in loco ou através da transmissão das imagens da partida, não cabe ao jogador reclamar indenização pelo uso inconsentido de sua imagem. O que se busca retratar no caso é o gol, por exemplo, e não o jogador.

Hipótese distinta ocorre quando a retratação lícita de pessoa em evento públi-co é utilizada para finalidades comerciais, e não meramente informativas. Assim, a mesma foto que ilustra um gol pode ser incluída em jornal esportivo, porém jamais utilizada por uma empresa para fins publicitários sem que seja requerida a autorização da pessoa retratada. Nessas circunstâncias, a liberdade de expressão deverá ceder em favor do direito à imagem da pessoa retratada.

Em decisão paradigmática, o antigo Tribunal de Alçada do Estado da Guana-bara reconheceu o direito a indenização por dano à imagem devida ao jogador Jairzinho, uma vez que a empresa Siemens do Brasil S.A. utilizou, em publicida-de de serviços de iluminação, fotografia do jogador ao marcar um gol no estádio do Maracanã, com os seguintes dizeres: “Siemens iluminou o gol da vitória”.165

o problema das sátiras e caricaturas

O humor certamente não figura como um tema corriqueiro em obras jurídi-cas. Todavia, para que se analise a questão da colisão entre liberdade de expres-são, privacidade e imagem, uma breve incursão sobre a problemática das sátiras e caricaturas faz-se necessária, pois, buscando gerar o riso, ou por vezes a reflexão, essas formas de expressão artística podem violar direitos legítimos de terceiros.

O espírito que impulsiona a criação artística é um dos atributos mais fas-cinantes do homem, mas nem por isso é ilimitada a sua manifestação. Ainda que o fim último da produção seja criar uma situação divertida, gerar na pessoa uma sensação de bom-humor, existem restrições de natureza moral e jurídica às sátiras e caricaturas.

Apesar de semelhantes no que tange à finalidade humorística, a sátira e a caricatura são expressões artísticas distintas. A caricatura é o desenho que, pelo traçado diferenciado, acentua ou revela, de forma geralmente exagerada, certos aspectos típicos da pessoa ou do fato retratado, ao passo que a sátira é a obra artística que visa ridicularizar outra obra, pessoa ou fato.

O animus jocandi, em sua expressão mais pura, sempre foi reconhecido como causa de exclusão da responsabilidade derivada de lesões a direitos da persona-lidade, em consonância com o brocardo si quis per jocum percutiat, injuriarum non tenetur.166 Todavia, essa regra deve sempre ser excepcionada quando da lesão a direitos da personalidade.

Para se aferir quando a caricatura e a sátira são ilícitas, deve-se procurar entre-ver o intuito do artista na criação da obra. Para tanto, é imperioso que se distinga o simples gracejo, o animus jocandi, da ironia injuriosa, que de má-fé denigre a imagem alheia ou invade de forma ilícita a privacidade do ofendido.

165 apelação Cível nº 26.108; rel. des. rui domingues, julgada em 27.06.1974; in Revista Forense nº 250, abr.-jun./75, pp. 269-273. À parte de toda a brilhante fundamentação jurídi-ca do acórdão, cumpre trazer à colação passagem do voto do relator que, em tons líricos, narra, da seguinte forma, o papel desempenhado pelo futebol na sociedade brasileira: “a escola de fute-bol criada pelo brasil tem raízes humil-des, vem do povo humilde, assim como a coreografia e cânticos carnavelescos, modelos de organização, de disciplina, de espírito de equipe. os heróis do futebol são admirados e contempla-dos pelas massas e pelos seus repre-sentantes, inclusive pelas mais altas autoridades federais. não há assunto mais sério no brasil”. Por fim, em uma espiral de grandiloqüência, arremata o desembargador: “um grande jogador de futebol como Jairzinho é tão impor-tante para o povo brasileiro como Kant ou Heidegger para um estudante de filosofia na alemanha. tais nomes, tais imagens, não podem ser tomadas em vão, nem a troco de nada.”

166 Cláudio luiz bueno de godoy. Liber-dade de Imprensa, cit., p. 102.

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Cumpre observar que o exagero é um elemento ínsito a esse tipo de manifes-tação artística, que integra a essência mesma da obra, pois muitas das vezes é a retratação exagerada de um atributo que confere o atributo humorístico à obra. O exagero na retratação apenas será indenizável quando exceder o limite do razoável, quando a piada for de extremo mau gosto, causando mais constrangi-mento e revolta do que risadas. O que não se pode admitir é que o humor venha a servir de máscara ou álibi para condutas que sejam deliberadamente ofensivas a outrem.167

Nesse particular, o Projeto de Lei de Imprensa (PL nº 3.232/92) trata da ma-téria de forma pertinente, em seu art. 10º, § 3º, o qual assim dispõe:

não será considerada ofensiva à imagem das pessoas sua reprodução gráfica, parcial ou de corpo inteiro, em desenho convencional, artístico ou caricatural, desde que não expresse nem sugira condição ou situação que caracterize calúnia, difamação ou injúria, nos termos do art. 5º.

Denota-se, portanto, que a resolução de um conflito entre a liberdade de expressão artística e a privacidade ou imagem de uma pessoa retratada, direta ou indiretamente, pela sátira ou caricatura, será resolvido através da ponderação no caso concreto, analisando-se a motivação que ilustra a obra artística.

Ou seja, se a motivação da obra é meramente humorística, mesmo que con-tenha certos exageros naturais dessa forma de expressão, não há que se falar em dano à privacidade ou imagem. O que não pode passar in albis para o Direito é a caricatura ou charge ofensiva, que, para além do humor, ofende o retratado.

Por oportuno, vale destacar que o senso de indignação, de revolta perante uma ofensa, que transforma a sátira ou caricatura em objeto de afronta à pri-vacidade e imagem alheia não deve estar suscetível às variações emocionais de cada um, mas, sim, sujeito ao crivo da razoabilidade média. Com efeito, se existe alguém que poderá confundir humor com zombaria infamante, além do artista, é o próprio retratado.

Logo, para se imputar como ofensiva determinada expressão artística, deve o intérprete recorrer ao senso crítico geral, não aderindo a partidarismos, ou ado-tando tendências que não espelham o geralmente aceito na sociedade.

2. casos gEradorEs

Leia as reportagens abaixo:

“Imprensa Acuada”Dobra número de processos contra imprensa e jornalistaspor Laura Diniz e Márcio ChaerOu a imprensa brasileira piorou brutalmente nos últimos anos, ou então vi-

rou a chamada bola da vez. O fato é que já há mais processos contra os grandes 167 Cláudio luiz bueno de godoy. Liber-dade de Imprensa, cit., p. 103.

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grupos jornalísticos do que jornalistas nas redações. Ou seja: para uma amos-tragem de 2.783 jornalistas há 3.342 ações judiciais, segundo apurou a revista Consultor Jurídico.

A maior parcela dos processos é ajuizada por juízes, promotores, advogados e políticos. Juízes e advogados são também os profissionais que mais ações vencem contra jornais e jornalistas. Os veículos pesquisados são o grupo Globo (emis-soras, jornais e revistas), editoras Abril e Três e os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo.

As empresas jornalísticas são mais acionadas que os seus profissionais. O levantamento, feito pela revista mostra que há predominância absoluta de ações cíveis de natureza indenizatória – uma mudança radical em relação ao período anterior à Constituição de 1988. Apenas 150 ações (4%) são de cunho criminal.

Caso a imprensa fosse condenada em todas as 3.192 ações indenizatórias as empresas e jornalistas teriam que arcar com um prejuízo da ordem de quase R$ 65 milhões, considerado o valor médio de R$ 20 mil por indenização arbitrado pelo Superior Tribunal de Justiça. Por outro lado, embora os jornalistas e as em-presas sejam condenados em apenas 20% dos casos, a Justiça já chegou a arbitrar indenizações superiores a R$ 1 milhão em processos em que não cabem mais recursos.

Pelo levantamento anterior, feito pouco mais de dois anos atrás, o volume de processos contra empresas jornalísticas e profissionais mais que dobrou. Cresceu também o percentual de condenações. E ganha terreno no meio forense a tese de que é cabível impedir a publicação de notícias, em contraste com o que diz a Constituição – que veda a censura prévia.

Segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, o quadro é preocupante e caracteriza uma “verdadeira loteria esportiva”. De acordo com ele, sem a imprensa livre não se pode cogitar a palavra democracia. Marco Aurélio disse que o Superior Tribunal de Justiça tem usado o “bom senso” e fixado valores de cerca de R$ 20 mil.

Marco Aurélio disse ainda, no Seminário Internacional sobre Direito de Aces-so a Informações Públicas, promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que “seria interessante se nós discutíssemos para o País uma nova Lei de Imprensa”. A lei que vigora até hoje foi criada em 1969, durante o regime militar.

A ministra Ellen Gracie, do STF, afirmou que o Judiciário não restringe o li-vre exercício do bom jornalismo. “Apenas manifestações dolosamente aberrantes do dever de bem informar tem merecido o repúdio dos tribunais”, disse.

Para o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, os números não refletem uma tentativa de intimidação da imprensa. “Exatamente porque se estabeleceu um controle de responsabilidade a posteriori, as pessoas têm direito de ir ao Ju-diciário. E as ações do Poder Judiciário não são uma ameaça. Procurar a Justiça é o exercício de um direito de cidadania, um direito constitucional. O que não pode haver é censura prévia.”

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De acordo com o criminalista Luis Guilherme Vieira, a explicação para o pre-domínio de ações por dano moral em relação às penais é “matemática”: processos por crime de imprensa prescrevem em dois anos; ações por dano moral tem um prazo de prescrição bem maior.

Segundo o advogado, “hoje não tem mais efeito constrangedor processar um jornalista na via criminal. Dificilmente um processo, por mais singelo que seja, conseguirá chegar ao final – com sentença transitada em julgado – antes de dois anos.”

Vieira disse que os reparos por dano moral e material foram banalizados. “Todo mundo tem o direito de se achar ofendido e ir à Justiça. Mas a Justiça não tem o direito de ficar reconhecendo bagatelas de pequena importância”, declarou.

Segundo ele, um levantamento mais detalhado provavelmente mostraria que os autores da maioria das ações são os mesmos, ou fazem parte dos mesmos gru-pos políticos.

Para o advogado, a imprensa tem extrapolado os limites éticos, mas sua atu-ação deve ser controlada por órgãos de classe e não por leis ou pela Justiça. “O Judiciário só deve ser procurado em casos excepcionais”, concluiu.

(Reportagem veiculada no website Consultor Jurídico, em 30.09.2003)

“STJ definirá se Maitê Proença será indenizada por danos morais”Está empatado o julgamento na Terceira Turma do STJ (Superior Tribunal de

Justiça) que definirá se a atriz Maitê Proença terá direito a receber de um jornal carioca indenização por dano moral, em razão de o periódico ter publicado uma foto sua, extraída de ensaio fotográfico feito para a revista Playboy.

Maitê Proença fez o ensaio fotográfico para a revista em 1996, estipulando em contrato escrito, as condições em que se daria a cessão de sua imagem, fixando, não só a remuneração, como o tipo de fotos que seriam produzidas, preocupada com a sua imagem e a qualidade do trabalho.

As fotos foram tiradas em julho daquele ano no sul da Itália e publicadas na edição comemorativa do 21º aniversário da revista, em agosto. Apesar das pre-cauções da atriz para restringir e controlar a forma de divulgação de sua imagem, o jornal estampou uma das fotos, extraída do ensaio para a Playboy, em página inteira, sem qualquer autorização.

A atriz considerou que o fato “feriu, de forma odiosa, a sua imagem”, tanto patrimonial quanto moralmente.

A Justiça carioca condenou a empresa jornalística a indenizar a atriz por da-nos materiais, mas não por danos morais. O desembargador que relatou o caso no Tribunal de Justiça disse, em seu voto, que apenas as mulheres feias teriam porque reclamar de se ver em todas as bancas, mas não a mulher bonita.

No STJ, o relator, ministro Carlos Alberto Menezes Direito, entendeu que não cabe ao caso a indenização por dano moral, pois a publicação violenta o direito à imagem, mas não à imagem que possa advir do ato em si (a imagem futura). Para ele, por mais infelizes que tenham sido os termos usados durante o

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julgamento no tribunal de origem, a questão não se põe no campo da estética, esse aspecto não está em discussão.

A ministra Nancy Andrighi, no entanto, concluiu que cabe indenização por dano moral nesse caso e lamentou que, às vésperas de um novo milê-nio, as mulheres tenham de se deparar com argumentos do tipo usado pelo desembargador. Para ela, a atriz foi violentada em seu crédito como pessoa, pois deu o seu direito de imagem a um determinado nível de publicação e poderia querer que apenas determinado grupo da população tivesse acesso a essa imagem.

O entendimento do relator foi acompanhado pelo ministro Pádua Ribeiro, para quem a publicação não atingiu a artista em sua vida privada. O ministro Waldemar Zveiter, por sua vez, votou com a ministra Nancy Andrighi, demons-trando preocupação que o Estado pretenda tutelar o que pode ser aceitável ou não pelo indivíduo em relação à sua imagem.

Diante do empate, o presidente da Turma, ministro Ari Pargendler, último a votar, pediu vista do processo para melhor examinar a questão e, assim, concluir o julgamento.

(Notícia publicada no jornal Folha de São Paulo, em 11.12.2000)

“SBT recorre de condenação por pegadinha no programa do Gugu”O SBT foi condenado, por sentença de primeiro grau, a pagar indenização

por danos morais a Abrão Couri e Silvia Cristina Parisi Couri, por expor os dois a situação “vexatória e humilhante”, numa pegadinha levada ao ar durante 30 segundos no programa Domingo Legal, do apresentador Gugu Liberato em 16 de novembro de 1997.

[...] O valor da indenização – segundo disposição da sentença – será o equi-valente ao preço de um minuto de veiculação publicitária, em rede nacional, no programa na época da exibição, com juros e correção. A emissora deverá pagar ainda as custas do processo e os honorários do advogado dos dois, fixado em 20% do valor da condenação.

A pegadinha envolvia um teste visando a demonstrar a honestidade dos po-bres em contraposição da desonestidade dos ricos. Uma carteira foi deixada na rua com dinheiro e um papel com o nome, endereço e telefone do suposto pro-prietário.

Abrão e Silva apanharam a carteira e ligaram de um telefone público, tentan-do contato com o suposto dono. Eles foram abordados por membros da produ-ção e entregaram a carteira a eles, explicaram a situação e autorizaram o uso das imagens. Entretanto, nas imagens exibidas o casal apenas aparece guardando a carteira, dando ao ato a aparência de desonestidade.

O juiz da 31ª Vara Cível Luiz Fernando Cirillo, prolator da sentença, afirmou que o SBT “promoveu um julgamento dos autores e pronunciou um veredicto de desonestidade, transmitido em rede nacional”.

(Notícia veiculada no website Espaço Vital, em 21.06.2004)

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“Publicar foto de mulher anônima em topless voluntário não obriga jornal a indenizar”

Não cabe indenização por danos morais para mulher anônima e que pratica topless (sem a parte de cima do biquini) voluntariamente em praia pública, num dia feriado e tem a foto, publicada em jornal. A conclusão é da Quarta Tur-ma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou provimento ao recurso de M.A.A.P., de Santa Catarina, contra a Zero Hora Editora Jornalística S/A.

M.A.A.P. entrou na Justiça após a publicação da foto pelo jornal da Editora, alegando que houve danos morais em virtude da publicação em jornal de circula-ção estadual de sua foto em topless, em momento de lazer, na Praia Mole. Segun-do o jornal, o fotógrafo usou do direito de liberdade de imprensa para fazer seu trabalho e registrou a cena publicada, sem fazer chamada sensacionalista, nem fazer uso irregular da foto. “Não houve nenhum destaque e o nome da autora sequer foi referido na reportagem que a fotografia ilustra”, argumentou.

A ação contra a Zero Hora foi julgada improcedente em primeira instância. “A ré exerceu sua liberdade de imprensa que tem amparo constitucional, sem ferir as garantias da autora, que, por sua vez, exerceu sua liberdade pessoal, cons-ciente ou inconscientemente, produzindo notícia, pela prática de topless, em público”, afirmou o juiz.

A apelação, no entanto, foi provida, por maioria, pelo Tribunal de Justiça estadual. “A publicação de imagem de alguém fotografado imprescinde, sempre, de autorização do fotografado. Inexistente essa autorização, a veiculação da ima-gem materializa violação ao direito do respectivo titular, ainda que inexistente qualquer ultraje à moral e aos bons costumes”, afirmou o acórdão. “A ocorrência do dano, em tal hipótese, é presumida, resultando tão somente da vulneração do direito à imagem”, acrescentou o tribunal, ao determinar indenização de 100 salários mínimos para a autora da ação.

A empresa protestou com embargos infringentes para o próprio TJ/SC. Fo-ram acolhidos. “Se a embargada resolveu mostrar sua intimidade às pessoas deve ter maturidade suficiente para suportar as conseqüências de seus atos e não atri-buir à imprensa a responsabilidade pelo ocorrido”, observou o desembargador.

Segundo ele, seria diferente, por exemplo, se uma moça fosse fotografada com a peça superior da roupa de banho fora do lugar, após recuperar-se de uma onda. “Nesse caso, sim, absolutamente inidônea e oportunista a atitude do jornal”, ressaltou. “Mas, a partir do momento em que a embargada não teve objeção alguma de que pessoas pudessem observar sua intimidade, não pode ela vir à Justiça alegar que sua honra foi violada pelo fato de o Diário Catarinense ter publicado uma foto obtida naquele momento numa praia lotada e em pleno feriado”, asseverou.

O recurso para o STJ não foi conhecido, mantendo-se a decisão do TJ/SC. “A própria recorrente optou por revelar sua intimidade, ao expor o peito des-nudo em local público de grande movimento, inexistindo qualquer conteúdo pernicioso na veiculação, que se limitou a registrar sobriamente o evento sem sequer citar o nome da autora”, afirmou o ministro Cesar Asfor Rocha, relator

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do recurso. “Assim, se a demandante expõe sua imagem em cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução sem conteúdo sensacionalista pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra limite na própria exposição re-alizada”, ressaltou. “Portanto, in casu, não há qualquer ofensa moral”, concluiu Cesar Rocha.

(Notícia veiculada no website do Superior Tribunal de Justiça, em 23.03.2004).

Com base na tutela da imagem e da privacidade, e os critérios para solução de conflito entre esses direitos e a liberdade de expressão, analise cada uma das reportagens acima e prepare-se para responder sobre os casos por elas enfocados em sala de aula.

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AuLA 11. CONCEITOS ESTRuTuRAIS – PESSOAS juRíDICAS

EmEntário dE tEmas

Conceito de pessoa jurídica – Capacidade e Representação – Autonomia pa-trimonial – Domicílio – Responsabilidade Civil das pessoas jurídicas – Descon-sideração da personalidade jurídica

caso gErador

“Desconsideração da Personalidade Jurídica”

LEitura obrigatória

PANTOJA, Teresa Cristina. “Anotações sobre Pessoas Jurídicas”. In: TEPE-DINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Reno-var, 2004. pp. 83-122.

LEituras compLEmEntarEs

REQUIÃO, Rubens. “Abuso de direito e fraude através da personalidade ju-rídica – Disregard Doctrine”, in Aspectos Modernos de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1988. pp. 67-85.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 2. São Paulo: Sarai-va, 2004. pp. 3-31.

1. rotEiro dE auLa

As relações jurídicas não se processam exclusivamente entre indivíduos, ou seja, entre pessoas físicas. Pelo contrário, temos que grande parte das relações jurídicas que vivenciamos cotidianamente tem no pólo oposto uma determinada pessoa jurídica. Reconhecendo a sua importância, o Direito cria todo um instru-mental que habilita essa entidade a praticar atos jurídicos.

Assim, a disciplina das pessoas jurídicas regula, no âmbito do Direito Privado, as so-ciedades, as associações, as fundações, os partidos políticos e as organizações religiosas. Destaque-se que esses dois últimos elementos representam inovação proporcionada pela publicação da Lei nº 10.825, de 22.12.2003.

A doutrina geralmente divide as pessoas jurídicas em dois grupos: (i) de um lado, tem-se aquelas que representam a conjugação de esforços de vários indi-

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víduos para a consecução de objetivos comuns. Trata-se de uma comunhão de vontades de várias pessoas que, buscando transcender as impossibilidades que a mera individualidade lhes implica, reúnem-se e formam um ente que lhes é maior, superior em força e, portanto, mais apto a atingir os objetivos intentados; (ii) de outro lado, tem-se a destinação de determinado patrimônio com vistas à consecução de um fim de relevante interesse social. O elemento nuclear aqui não reside mais numa reunião de vontades, mas, sim, na destinação de um determi-nado acervo de bens a um certo propósito.

Pessoa jurídica pode ser conceituada como a reunião de pessoas com o es-copo de alcançar um objetivo comum, que é reconhecida pelo ordenamento jurídico como sujeito de direito. Essas entidades, qualquer que seja a forma que adotem, desde que observadas as prescrições legais, são para certos efeitos civis equiparadas à própria pessoa humana, sendo também dotadas de personalidade, capacidade processual e responsabilidade.

É importante notar que, mesmo quando a pessoa jurídica é formada pela comunhão de vontades de alguns indivíduos, a personalidade do ente e a de seus integrantes não podem ser confundidas. A personalidade da pessoa jurídica transcende à daqueles que lhe formam e, salvo em hipóteses restritas – ligadas à prática de alguma abusividade –, não pode ser desconsiderada de forma a atingir pessoalmente algum dos integrantes.

Nas palavras de Silvio Rodrigues, as “pessoas jurídicas são entidades a que a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com per-sonalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”.168 Uma vez personificado esse ente, sua vontade será díspare da manifestação volitiva de cada um dos membros que o integram. É o que pressupõe o brocardo latino societas distat a singulis.

Como já afirmado, atente-se também que é justamente por resguardar os in-teresses humanos que a lei confere personalidade a essas reuniões de indivíduos. Esse vínculo associativo representa a certeza dos indivíduos perpassarem suas limitações através da criação de uma instituição que com eles não se confunde, mas da qual são partícipes.

Reflexos na dinâmica macro-econômica também não podem deixar de ser percebidos. Hoje, a potência econômica de determinada nação é intimamente conexa com a expressão das pessoas jurídicas que nela atuam. As pessoas jurí-dicas, e nesse particular as sociedades transnacionais – como o próprio nome sugere –, transcendem o próprio Estado e têm por objeto social uma infinidade de atividades.

De acordo com a disposição legal, para regularmente constituir uma pessoa jurídica, é preciso a conjunção simultânea de três elementos: a vontade criadora, a regular observância das condições legais e a liceidade de propósitos do ente que se intenta formar.

Não basta a simples reunião de indivíduos para a formação da persona-lidade jurídica. Além da intenção associativa, é preciso que se estabeleça uma vinculação jurídica específica em consonância com os ditames legais. É

168 silvio rodrigues. Direito Civil, v.i. são Paulo: saraiva, 2004. p. 86.

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justamente ela que possibilita que esse conglomerado de indivíduos adquira organicidade.

natureza jurídica

Várias são as teorias jurídicas que visam delinear a natureza das pessoas jurídi-cas. Dentre essas, as que merecem maior destaque são: i) as teorias negativistas; ii) a teoria da ficção legal; iii) a teoria da pessoa jurídica como realidade objetiva; iv) a teoria da pessoa jurídica como realidade técnica; e v) a teoria instituciona-lista de Hauriou.

i) Teorias Negativistas – Nesse grupo estão incluídas as teorias que “[d]esacre-ditam a existência real da pessoa jurídica, dentre as quais as mais importantes e difundidas foram as lições de Brinz, Von Ihering e Hans Kelsen, para quem o que havia eram apenas centros de competência contidas nas normas”.169

ii) Teoria da ficção legal – O principal expoente dessa corrente foi Savigny, tendo encontrado grande respaldo no século XIX. A personalidade jurídica de-correria de uma ficção da lei, contrapondo-se a personalidade natural, uma vez que essa é uma criação da natureza. A existência de pessoa jurídica não seria real, mas tão-somente uma construção intelectual.

Deve-se ter em mente que na verdade não existe uma única teoria da ficção, mas, sim, uma pluralidade de construções que convergem no mesmo sentido. Pode-se criticar essas teorias na medida em que, ao afirmar que somente o ho-mem é sujeito de direito, elas resultam da própria inexistência da pessoa jurídica e, por conseguinte, dos direitos e deveres que ela em tese titularizaria. O racio-cínio torna-se ainda mais perigoso quando se concebe o Estado como pessoa jurídica. A partir dessa concepção ficcional da pessoa jurídica, os atos estatais também seriam frutos de uma mera ficção jurídica.

iii) Teoria da pessoa jurídica como realidade objetiva – Essa teoria tem origem na Alemanha, destacando-se Gierke e Zitelmann como elaboradores. Ao contrá-rio da teoria antecedente, afirma que a vontade que enseja a constituição do ente caracteriza-o como sujeito de direito real e verdadeiro. Dessa forma, as pessoas jurídicas são uma realidade sociológica, como seres vivos, que surgem por impo-sição de fatores sociais.

iv) Teoria da pessoa jurídica como realidade técnica – Segundo expõe essa te-oria, não se pode afastar a idéia de que as pessoas jurídicas são instituições que de fato existem e que, sendo titulares de direitos e obrigações, integram relações transitando como verdadeiros atores jurídicos. Não se pode, portanto, conceber sua existência como fictícia, mas, sim, como um expediente que, embora real, resulta de elucubração da técnica jurídica.

v) Teoria institucionalista de Hauriou – A pessoa jurídica seria uma estrutura orgânica. Quando a instituição alcança certo grau de concentração e de organi-zação torna-se automaticamente pessoa jurídica.

No direito brasileiro as pessoas jurídicas têm realidade objetiva, pois assim é determinado pelo artigo 45 do CC-2002:

169 gustavo tepedino, Heloisa Helena barboza e maria Celina bodin de mora-es (org.). Código Civil Interpretado con-forme a Constituição da República. rio de Janeiro: renovar, 2004. p. 106.

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Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.

Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pes-soas jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.

pessoas jurídicas de direito privado

O art. 44 do CC-2002 elenca as pessoas jurídicas de direito privado. São elas: (i) as associações; (ii) as sociedades; (iii) as fundações; (iv) as organizações religiosas; e (v) os partidos políticos.

Essa foi matéria sofreu grande reformulação com a edição do novo Código Civil. A parte geral desse diploma só trata das associações e fundações, reservan-do a disciplina das sociedades à parte especial.

As sociedades, como se observará na disciplina do Direito Empresarial, po-dem ser simples ou empresárias. A sua distinção pode ser depreendida no art. 966:

Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.

Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão inte-lectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

Por fim, evitando enveredar por minúcias, o art. 982 do CC-2002 alude às sociedades empresárias como aquelas que, salvo exceções expressas, têm por ob-jeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro. Considera o Código Civil todas as demais, incluindo as cooperativas, como sendo sociedades simples.

Sobre a distinção entre sociedades e associações, explana Sérgio Campinho que

[d]istinguem as sociedades das associações, a finalidade econômica que inspi-ra essa comunhão de esforços pessoais que mantém seus integrantes associados. Nas associações os integrantes não visam à partilha de lucro [...]. Nas sociedades, o ponto central da união de seus integrantes é a exploração de atividade com finalidade econômica, buscando a obtenção e divisão dos ganhos havidos nessa exploração.170

As fundações, por sua vez, caracterizam-se mediante a afetação de patrimônio para determinado fim pré-estabelecido por um instituidor. Não há uma con-

170 sergio Campinho. O Direito da Em-presa à luz do novo Código Civil. rio de Janeiro: renovar, 2002. p. 32.

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jugação de esforços que represente animus associativo e lhes é defeso qualquer outro objeto que não seja a persecução de fins religiosos, morais, culturais ou de assistência (art. 62 do CC-2002).

A Lei nº 10.825/2003 acrescentou os incisos IV e V ao rol de pessoas jurídi-cas de direito privado. O primeiro reflexo da alteração é que as igrejas deixaram de figurar como entidades de classe para se tornarem pessoas jurídicas de direito privado. A teleologia dessa alteração foi a proteção à autonomia das organizações religiosas. Garante-se a liberdade de criação, organização, estruturação interna e funcionamento, vedando-se a ingerência do poder público.

A outra alteração foi relativa aos partidos políticos, que, embora já conside-rados como pessoas jurídicas de direito privado por conta da edição da Lei nº 9.096/95 e pela disposição constante no § 2º do art. 17 da CF, não havia sido encampada pela redação original do CC-2002. Com a edição da Lei nº 10.825, supre-se essa omissão legislativa. O seu funcionamento, contudo, reger-se-á por lei específica.

requisitos para constituição da pessoa jurídica

Para a Constituição de uma pessoa jurídica exigem-se três requisitos básicos:

(i) Vontade humana criadora;(ii) Observância das condições legais para sua formação;(iii) Liceidade de sua finalidade.

A pessoa jurídica é criada por uma pluralidade inicial de membros que se transformam, mediante assentimento de todos, numa unidade autônoma. Esse vínculo de unidade é elemento que caracteriza precisamente o momen-to de constituição da pessoa jurídica. Após esse período inicial de manifes-tação de vontade, a pessoa jurídica passa a existir, mas ainda num estado de latência.

Todavia, não só do agrupamento de indivíduos pode defluir a formação de uma pessoa jurídica. A vontade, sempre a mola-mestra formadora, apresenta-se em certas ocasiões como a destinação de bens de uma pessoa com vistas à conse-cução de uma determinada finalidade. Esse é o caso das fundações.

A observância das determinações legais é outro requisito. Somente com o regular adimplemento dos requisitos estipulados por lei pode a pessoa jurídica operar os efeitos pretendidos. Em certos casos, inclusive, a constituição de algu-mas pessoas jurídicas só pode se processar com autorização estatal. É a lei que regulamenta a inscrição no Registro Público como condição de existência legal da pessoa jurídica.

O fim intentado pelo ente que se quer formar deve ser obrigatoriamente líci-to. Não se pode conferir capacidade a instituição cujo fim atente contra a ordem jurídica.

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nacionalidade das pessoas jurídicas

A nacionalidade interessa sobretudo ao regime das pessoas jurídicas de direito privado, sobretudo por conta da grande dinâmica das relações empresariais e da distribuição espacial das atividades produtivas desempenhadas pelas empresas.

Para os que adotam a teoria da ficção, a pessoa jurídica não tem nacionalida-de. Sendo mera ficção, ela não é nem nacional nem estrangeira. Contudo, para os autores que de fato admitem a sua existência, como aqueles que adotam a teoria da realidade técnica, faz-se necessário analisar a nacionalidade da pessoa jurídica, e, nesse contexto, o eixo de análise está focado no local de constituição da pessoa.

O critério correntemente adotado é o do local da constituição, não se atentan-do, como prescrevem alguns autores, para a nacionalidade dos membros ou para o lugar central da sede de negócios da pessoa. Esse inclusive é o entendimento expressamente manifesto no art. 11º da Lei de Introdução ao Código Civil:

Art. 11° - As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as so-ciedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem.

Capacidade e representação da pessoa jurídica

A personalidade das pessoas jurídicas é adquirida no momento em que é feito o registro de seu ato constitutivo. Logicamente, essa titularidade só abarca aque-les direitos compatíveis com a condição de ente fictício, ou seja, os patrimoniais. Tradicionalmente se concebia que às pessoas jurídicas, em regra, não seria dado conferir direitos personalíssimos, mas o art. 52 do CC-2002 traz um entendi-mento distinto. Segundo o referido artigo:

Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.

No exercício desses direitos, a pessoa jurídica recorre a pessoas físicas que a representam. Esse entendimento, que era manifesto no art. 17 do Código de 1916, não foi expressamente repetido pelo CC-2002. Limita-se o Código, con-tudo, a aludir em seu art. 46, III, que cuida dos requisitos para o registro das pes-soas jurídicas, que o mesmo declare o modo por que se administra e representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente.

As pessoas jurídicas, em especial no âmbito do Direito Societário, possuem uma ampla gama de regras pautando a responsabilidade dos seus administra-dores. De forma sucinta pode-se afirmar que, tendo a pessoa jurídica existência distinta daquela relativa aos membros que a integram, o ato exarado por seu representante a vincula, bastando somente que ele atue dentro dos poderes que o ato constitutivo da sociedade lhe confira.

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pessoas jurídicas de direito público

As pessoas de direito público são aquelas especificadas pelo art. 41 do CC-2002. O seu estudo será melhor detalhado na disciplina do Direito Adminis-trativo. As entidades citadas nesse artigo são tanto as que compõem a admi-nistração direta (União, Estados e Municípios) como algumas que integram a administração indireta (autarquias, fundações públicas, entre outras):

Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:I – a União;II – os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;III – os Municípios; [...]IV – as autarquias, inclusive as associações públicas; (Redação dada pela Lei

nº 11.107, de 2005)V – as demais entidades de caráter público criadas por lei.Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito

público, a que se tenha dado estrutura de direito privado, regem-se, no que cou-ber, quanto ao seu funcionamento, pelas normas deste Código.

A principal distinção existente, pelo menos no âmbito do Direito Civil, re-mete à responsabilidade dessas entidades. A disciplina jurídica, como será estu-dado mais à frente, volta-se no sentido de resguardar a pretensão indenizatória do indivíduo lesado por atos dessas pessoas jurídicas por intermédio da doutrina da responsabilidade objetiva.

responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado

Da mesma forma que as pessoas físicas, a responsabilidade civil das pessoas jurídicas deve ser concebida nos planos contratual e extracontratual. Se a pessoa jurídica age de forma a causar prejuízo, sendo esse resultante de infração a um determinado contrato pactuado, estar-se-á diante da responsabilidade contratu­al. Por outro lado, se não há vínculo contratual entre o causador do dano e o prejudicado, a responsabilidade é extracontratual.

Os elementos clássicos da responsabilidade civil são a conduta culposa do agente, o dano e o nexo de causalidade ligando o dano à prática daquela condu-ta. Na responsabilidade subjetiva, só haverá reparação provando-se a culpa do agente. É a tese encampada no CC-2002 em seu art. 186.

A responsabilidade objetiva, por sua vez, independe da culpa. Seus elementos configuradores são o dano e o nexo causal. É uma concepção mais sofisticada e que reside paralelamente à teoria da responsabilidade subjetiva. O legislador define as hipóteses de cabimento de responsabilidade, aplicando-se ora a teoria subjetiva ora a objetiva. A lei brasileira, sobretudo no que toca ao Código de Defesa do Consumidor, já havia perfilhado uma concepção objetiva da culpa e,

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agora, ela encontra respaldo também no Código Civil, que a prevê nos arts. 927 e 931, entre outros.

Quanto à responsabilidade contratual, na hipótese de inadimplemento, dis-põe o art. 389 que:

Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos, mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabe-lecidos, e honorários de advogado.

Já com relação à responsabilidade extracontratual, Silvio Rodrigues proclama que “até a vigência do Código de 2002, quando pessoa jurídica de finalidade lucrativa causasse dano a outrem por ato de seu representante, surgia uma pre-sunção juris tantum de culpa in eligendo e in vigilando, que precisava ser des-truída pela própria pessoa jurídica, sob pena de ser condenada solidariamente à reparação do prejuízo”.171 O Código de 2002 não repete essa regra, a qual era inscrita no art. 1522 do diploma anterior, de maneira que essa presunção de culpa tornou-se expediente obsoleto.

Para o tratamento da responsabilidade das pessoas jurídicas, faz-se necessário consultar os artigos 927 (responsabilidade objetiva por risco) e 932, III (respon-sabilidade do empregador pelos atos do empregado):

Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo.

Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.

Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:[...] III - o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e pre-

postos, no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda

que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali referidos.

No campo das relações de consumo, a Lei nº 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor), atentando para a desproporção de forças que se opera nessa seara, já previa uma forma de responsabilização por parte dos fornecedores, fundada na teoria da responsabilidade objetiva, isto é, que independe da prova de culpa a ser realizada pelo consumidor lesado.172

desconsideração da personalidade jurídica

A pessoa jurídica surge com o principal escopo de fazer com que o homem tenha o instrumental necessário à superação de suas limitações, sobretudo as de

171 sílvio rodrigues. Direito Civil, v. i. são Paulo: saraiva, 2004. p. 95.

172 sérgio Cavalieri filho, no seu Progra-ma de Responsabilidade Civil, explicita no tocante à responsabilidade nas rela-ções de consumo que: “veremos que a responsabilidade estabelecida no Códi-go de defesa do Consumidor é objetiva, fundada no dever e segurança do forne-cedor em relação aos produtos e servi-ços lançados no mercado de consumo, razão pela qual não seria também demasiado afirmar que, a partir dele,a responsabilidade objetiva, que era ex-ceção em nosso direito, passou a ter um campo de incidência mais vasto do que a própria responsabilidade subjetiva” (são Paulo: malheiros, 2004. p. 40).

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natureza física. Contudo, vezes há em que os indivíduos valem-se desses entes cuja personalidade não se confunde com a das pessoas que lhes administram, para praticar ilegalidades. Em muitos casos, o tamanho da estrutura montada para o desenvolvimento das atividades da pessoa jurídica oculta com facilidade o verdadeiro proprietário dos bens. É justamente essa idéia que vem a inspirar a idéia de desconsideração da personalidade jurídica.

Não se pode consentir que se recorra à personalidade da pessoa jurídica para encobrir a prática de ilícitos. Dessa forma, deve o julgador abstrair a idéia de perso-nalidade jurídica para considerar os seus integrantes como pessoas físicas, respon-sabilizando-as diretamente, com os seus patrimônios, pelos prejuízos causados.

A desconsideração da personalidade jurídica está prevista no CC-2002 em seu art. 50, da seguinte forma:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28, já mencionava a possi-bilidade de desconsideração. Ressalte-se que a técnica legislativa nele empregada é distinta daquela presente no CC-2002, ao dispor no seguinte sentido:

Art. 28 CDC. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da socie-dade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.

Resta claro que o aplicador do Direito, no uso desses dispositivos, deve ser parcimonioso, afinal o princípio que orienta a teoria da personalidade jurídica é justamente a distinção entre a pessoa da sociedade, associação ou fundação daqueles que a gerem ou a compõem. Ou seja, considerarem-se distintos os patrimônios das pessoas jurídicas e os de cada um dos sócios que a compõem, não respondendo pelas obrigações da sociedade o patrimônio do sócio, senão em caráter excepcional. Na lógica da desconsideração, deve-se atentar que a fi-nalidade buscada pela lei é justamente a salvaguarda dos credores lesados, e não o benefício da própria pessoa jurídica.

Extinção da pessoa jurídica

O art. 21 do CC-1916 mencionava as hipóteses de extinção das pessoas ju-rídicas:

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Art. 21. Termina a existência da pessoa judicial:I – pela sua dissolução, deliberada entre os seus membros, salvo o direito da

minoria e de terceiros;II – pela sua dissolução, quando a lei determine;III – pela sua dissolução em virtude de ato do Governo, que lhe casse a auto-

rização para funcionar, quando a pessoa jurídica incorra em atos opostos aos seus fins ou nocivos ao bem público.

De acordo com a ordem dos incisos, tem-se respectivamente as hipóteses de dissolução: autêntica, quando decorrente de expressa manifestação dos mem-bros; legal, quando a lei assim determina; e administrativa, quando o fim da personalidade deriva de ato administrativo.

Sendo pessoa jurídica com fins lucrativos, no caso de dissolução, o seu pa-trimônio é distribuído entre os seus integrantes. Por outro lado, tratando-se de uma associação que visa a fins pios, religiosos ou culturais, a questão da distri-buição do capital remanescente engloba alguns outros fatores.

Primeiramente, deve-se buscar auxílio no que dispõem os estatutos. Caso esses sejam silentes, deve-se inquirir se os sócios realizaram alguma deliberação discutindo a destinação do capital. Se ainda assim não se apresentar solução, deve-se recorrer ao art. 61 do Código Civil, que afirma a necessidade de devolver o patrimônio a um estabelecimento público congênere ou de fins semelhantes. Inexistindo instituições com esse caráter, deve o patrimônio ser revertido à fa-zenda pública.

2. caso gErador

No dia 11 de junho de 1996 houve uma explosão no Osasco Plaza Shopping, centro comercial localizado na cidade de mesmo nome, no Estado de São Paulo. O movimento de consumidores no shopping no momento da explosão era inten-so, uma vez que se tratava da véspera do Dia dos Namorados. A explosão ocor-reu no horário de almoço, nas proximidades da praça de alimentação. Segundo laudo técnico, a explosão ocorreu em decorrência de acúmulo de gás em espaço livre entre o piso e o solo. Como conseqüência do acidente, 40 pessoas foram mortas e mais de 300 ficaram feridas.

Foram propostas diversas ações indenizatórias contra a empresa que admi-nistra o shopping. Ao ser constatado que a mesma não mais possuía capital para ressarcir as vítimas do acidente, questionou-se a possibilidade de ser aplicada a desconsideração da personalidade jurídica, atingindo diretamente o patrimônio dos sócios da referida sociedade.

É possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica da em-presa que explora a administração do shopping center em ações indenizatórias propostas por pessoas que sofreram danos por conta do acidente narrado? Justi-fique com base na legislação.

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3. QuEstão dE concurso

Prova para ingresso no cargo de Procurador do Estado do Rio de Janeiro (13º concurso)1ª Questão: (25 pontos)Compare a disciplina da desconsideração da personalidade jurídica no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil.

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AuLA 12. PESSOAS juRíDICAS – SOCIEDADE, ASSOCIAçõES E FuNDAçõES

EmEntário dE tEmas

Sociedades – Associações – Fundações

LEitura obrigatória

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005. pp. 343-365.

LEituras compLEmEntarEs

CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à Luz do Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp. 33-58.

1. rotEiro dE auLa

O artigo 53 do Código Civil afirma que associações são entidades criadas vi-sando à consecução de fins não-lucrativos. As sociedades, por sua vez, diferem-se das associações na medida em que objetivam o lucro.

Um aspecto inicial de que não se pode abstrair-se é a idéia de que as associa-ções e as sociedades civis possuem seu campo de ação limitado exclusivamente à órbita civil, distinguindo-se assim das modalidades delineadas pelo direito em-presarial (cuja previsão encontra-se a partir do art. 966 do CC-2002).

Destaque-se que o parágrafo único do art. 53 corrobora a idéia de que a pes-soa jurídica difere, em sua personalidade, da de seus componentes, pois expressa que entre eles não defluem obrigações.

Sob a égide do CC-1916, havia dúvida acerca do que caracterizaria o termo “associação sem fins econômicos”. Dessa forma, é necessário destacar que a não-existência de fins econômicos refere-se a não-persecução de lucro. Lucro esse que, sendo auferido pelo exercício do objeto social, é revertido em prol daqueles que a compõem.

Todavia, nem sempre o fato da associação lidar ordinariamente com valores pecuniários implica na idéia de que ela visa obter lucro. Esse é o caso por exem-plo de um clube recreativo que cobra uma mensalidade de seus membros. Os valores visam somente à conservação e ao aumento de capital da própria entida-de. Aqueles que a integram beneficiar-se-ão apenas de forma indireta, como na fruição de melhores dependências, mas não há que se falar em quantias que lhes sejam devidas.

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Preenchidos certos requisitos, as pessoas jurídicas de direito privado podem ser declaradas de utilidade pública. Essa declaração deverá ocorrer por decreto do Poder Executivo, quando o seu escopo prestar-se à perpetuação de bens pú-blicos para a coletividade e não sendo remunerados os cargos de diretoria. Em que pese a maior proteção do Estado, essas entidades continuam sendo pessoas jurídicas de direito privado.

associações

O CC-2002 regula as associações nos artigos 53 a 61. O tratamento das associações passa ainda pelo preceito constitucional relativo à liberdade de asso-ciação, constante do art. 5º, XVII.

Todas as atividades lícitas podem ser buscadas pelas associações, como as pias, religiosas, esportivas, literárias. Verifica-se assim que desempenham relevante pa-pel social. Constitui portanto ilicitude quando a entidade forma-se sob a moda-lidade de associação e opera com desvio de finalidade em suas ações.

O art. 54 do CC-2002 trata dos requisitos obrigatórios para a regular consti-tuição de uma associação. São requisitos mínimos que devem constar no estatuto da associação: (i) a denominação, os fins e a sede da associação; (ii) os requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; (iii) os direitos e deveres dos associados; (iv) as fontes de recursos para sua manutenção; (v) o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; (vi) as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução; e (vii) a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.

Nesse particular, explicita Venosa que

[é] importante que o estatuto estabeleça a proveniência dos fundos, que po-dem derivar de contribuições iniciais e periódicas dos próprios associados ou de doações de terceiros. Nada impede que a associação exerça alguma atividade que lhe forneça meios financeiros, sem que com isso se descaracterizem suas finalidades. O exame será muito mais do caso concreto. Assim, por exemplo, uma agremiação esportiva ou social pode cobrar por serviços de locação de suas dependências para eventos; pode vender lembranças e uniformes; pode cobrar pelos serviços de fisioterapia; exames médicos, etc. O que importa verificar é se não existe desvio de finalidade.173

Os estatutos constituem a lei orgânica das associações, contendo normas de caráter cogente para os seus fundadores e todos aqueles que futuramente deci-dam participar dela. Justamente, a affectio societatis manifesta-se pela adesão à associação e aos regulamentos que a compõem.

O art. 55 do CC-2002 estipula que não há necessidade de tratamento igual a todos os associados. Existe assim a possibilidade de se instituírem categorias com vantagens especiais.174 Ainda sobre a distinção entre associados, o art. 56 alude a duas categorias distintas de associados: os com ou sem participação em

173 silvio venosa. Direito Civil, v. i. são Paulo: atlas, 2004. p. 292.

174 “art. 55. os associados devem ter iguais direitos, mas o estatuto poderá instituir categorias com vantagens especiais.”

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quota ou fração ideal do patrimônio da entidade (sócios patrimoniais e sócios meramente contributivos).

Mesmo na primeira hipótese de vínculo associativo, a transferência a ou-trem dessa parcela patrimonial, por negócio inter vivos ou mortis causa, não tem de per si o poder de converter o sucessor em sócio. Deverão ser observadas as disposições estatutárias da associação, não lhe sendo vetado obstar que esse ter-ceiro estranho ao corpo social passe a integrá-lo. A idéia fundamental é que a sociedade faça um juízo de oportunidade e conveniência quanto à admissão de novos sócios. Isso se corrobora com a idéia de que em regra a condição de sócio é intransmissível, salvo permissão do estatuto (art. 56).

No caso de dissolução da associação, o restante do patrimônio líquido, depois de deduzidas as quotas dos associados, será, na forma do art. 61, destinada a enti-dades de fins não-econômicos. Elas podem ser designadas no estatuto ou, no caso de omissão deste, por deliberação dos associados. Em qualquer caso, o destinatá-rio será instituição municipal, estadual ou federal cujos fins são semelhantes.

Fundações

A fundação é uma universalidade de bens – universitas bonorum – a que a lei atribui personalidade jurídica. Segundo expõe Silvio Rodrigues:

se o direito tem por escopo proteger os interesses humanos, é de certo modo ilógico imaginar a atribuição de personalidade a um acervo de bens. Todavia, a objeção pode ser contornada se considerarmos que, embora a fundação consista num patrimônio, a sua instituição almeja atingir a satisfação de algum interesse humano.175

Diferentemente das sociedades e associações que se assentam na idéia de uma coletividade de pessoas unidas por um fim comum, o núcleo das fundações resta num determinado acervo de bens. O ponto nuclear, portanto, não é mais affectio societatis de alguns indivíduos, mas a reserva de determinado patrimônio para o atingimento de determinados objetivos. O art. 62 inaugura o capítulo próprio das fundações:

Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se des-tina, e declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.

Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins religio-sos, morais, culturais ou de assistência.

No iter constitutivo de uma fundação, é preciso destacar dois momentos distintos: por um lado, existe um ato de fundação propriamente dito, que deriva da emanação de vontade, e, por outro, o ato de dotação de um patrimônio que lhe dará vida.

175 silvio rodrigues. Direito Civil, v. i. são Paulo: saraiva, 2004. p. 99.

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direito das Pessoas e dos bens

Como dita o art. 62, o ato de dotação compreende a reserva de bens livres, a indicação dos fins e a maneira pela qual o acervo será administrado, podendo ser feito tanto por escritura pública como por testamento.

Os bens indicados nessa dotação devem estar livres e desembaraçados, pois qual-quer ônus que recaia sobre eles poderia obstar a formação da entidade, atentando, concomitantemente, contra o relevante interesse social que ela visa alcançar.

A doutrina distingue duas modalidades de instituição: a direta e a fiduciária. De acordo com a primeira, o instituidor delineia, através da manifestação de sua vontade, um número maior de contornos que a fundação deve abarcar. Nela, é o próprio instituidor que projeta e regulamenta a fundação. No caso da formação fiduciária, a responsabilidade pela organização da fundação é delegada a outrem. O instituidor tão-somente afeta os bens àquele objetivo, mas não interfere dire-tamente na sua concretização.

A lei confere ainda especial proteção aos bens dotados que não formam mon-tante suficiente para a constituição da fundação. Sob essa constatação, existiria perspectiva quase certa de se frustrar o intento do instituidor. Sobre o tema, prescreve o art. 63 do CC-2002 que, nessas circunstâncias, os bens destinados à fundação serão, se de outro modo não dispuser o instituidor, incorporados em outra fundação que se proponha a fim igual ou semelhante.

Dispositivo que não encontra paralelo no CC-1916 é o art. 64. Ele confere nova dimensão ao princípio da irrevogabilidade de declaração de vontade do instituidor, na medida em que nem mesmo aquele que realiza a dotação tem a faculdade de revogá-la. O intento do legislador é coibir que a constituição de uma fundação torne-se subterfúgio para o aperfeiçoamento de um fim jurídico ou moralmente escuso.

Dado o relevante fim social em jogo, os artigos 65 e 66 do CC-2002 men-cionam algumas atribuições conferidas ao Ministério Público com respeito às fundações. Os artigos 1199 e seguintes do CPC tratam também da fiscalização e organização das fundações, especificando algumas funções reservadas ao Mi-nistério Público.

O art. 69 do CC-2002, por fim, prevê os casos em que se deve processar a dis-solução das fundações. A extinção pode ser requerida por qualquer interessado ou pelo Ministério Público, sendo a mesma decretada por sentença. O patrimô-nio deverá ser incorporado em outra fundação de fins semelhantes determinada no estatuto ou ato constitutivo. Na omissão destes, o patrimônio será destinado à outra fundação designada pelo juiz.

sociedades

O traço distintivo da sociedade perante as associações é a busca do lucro no desenvolvimento de suas atividades. Em função do seu objeto ou da forma socie-tária adotada, as sociedades podem ser ou empresárias ou simples.

Nas sociedades empresárias, o elemento essencial para a sua caracteri-zação é o caráter profissional de sua gerência, que se expressa no exercício

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direito das Pessoas e dos bens

de modo habitual da atividade econômica e no intento de obter lucrativi-dade.

Recorrendo a elementos constantes da redação do art. 966, a sociedade em-presária é aquela que explora habitualmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. A busca pelo lucro e a idéia de profissionalismo são, como visto, traços caracterizadores fundamentais.

As sociedades simples, por sua vez, não são aquelas destituídas do escopo de angariar lucro, uma vez que essa é característica própria de todas as sociedades. A sociedade simples, portanto, também executa atividade econômica, e seus in-tegrantes partilham os resultados auferidos.

Essa sociedade tem as suas atividades econômicas especificadas na legislação. É o ordenamento jurídico positivo quem lhe reserva o objeto social e confere a qualificação como sociedade simples. Trata-se, portanto, de uma opção legisla-tiva.

Sendo assim, serão sociedades simples todas aquelas que adotarem: (i) forma de cooperativa; (ii) exercerem objeto atinente à atividade própria de empresário rural; ou ainda (iii) executarem atividades definidas por lei como não-empresa-riais, como as localizadas no parágrafo único do art. 966 do CC-2002.

QuEstõEs dE concurso

Exame da Ordem – OAB/SP nº 12621. Relativamente às associações civis, é INCORRETO afirmar:

a) As associações civis constituem um conjunto de pessoas que colimam fins ou interesses não-econômicos, que podem ser alterados, pois seus mem-bros deliberam livremente, já que seus órgãos são dirigentes.

b) O ato constitutivo da associação consiste num conjunto de cláusulas contratuais vinculantes, que unem seus fundadores e os novos associados que, quando nela ingressarem, deverão submeter-se aos seus comandos.

c) A associação deverá ser constituída, por escrito, mediante redação de um estatuto, lançado no registro competente, contendo declaração unânime da vontade dos associados de se congregar para formar uma coletividade, não podendo adotar qualquer das formas empresárias, visto que lhe falta o intuito especulativo.

d) A associação é um contrato pelo qual um certo número de pessoas, ao se congregarem, coloca em comum serviços, atividades e conhecimentos em prol de um mesmo ideal, objetivando um fim não-econômico ou econô-mico, com ou sem capital, com ou sem intuitos lucrativos.

Exame da Ordem – OAB/SP nº 12523. No que diz respeito às pessoas jurídicas, é INCORRETO afirmar:

a) As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis pelos atos de seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, res-

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salvado o direito regressivo contra os causadores do dano, se houver, por parte destes, culpa ou dolo.

b) Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito público com a inscrição do ato constitutivo no registro pertinente, decaindo em cinco anos o direito do particular interessado de pleitear a anulação de seus atos constitutivos.

c) São pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público.

d) Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos nos li-mites de seus poderes definidos no ato constitutivo.

Exame da Ordem – OAB/SP nº 12321. Alberto instituiu uma fundação por escritura particular, com finalidade edu-cacional e com dotação de bens livres, tendo registrado o instrumento no Cartório de Títulos e Documentos, deixando de mencionar a maneira de administrá-la.

a) A fundação não está corretamente instituída; todavia, o registro supre a irregularidade, uma vez que a finalidade é válida, sendo possível estipular, a posteriori, o modo de administrá-la.

b) A fundação está corretamente instituída, com registro e finalidade perfei-tos, podendo estabelecer-se, a posteriori, o modo de administrá-la.

c) A fundação está corretamente instituída, porque, nela, o essencial é a finalidade e a dotação de bens livres.

d) A instituição fundacional é nula, integralmente, assim como nulo é o seu registro.

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direito das Pessoas e dos bens

Parte III: dIreIto dos Bens

AuLA 13. CONCEITOS ESTRuTuRAIS – BENS

EmEnta

Conceito de Bens – Classificação dos bens – Bens corpóreos e incorpóreos – Bens móveis e imóveis – Bens fungíveis e infungíveis – Bens consumíveis e não-consumíveis – Bens divisíveis e indivisíveis – Bens disponíveis e indisponíveis – Bens públicos e particulares – Bens de produção

casos gEradorEs

“Roubo de Terras” e “Apreensão de Caça-Níqueis”

LEitura obrigatória

CALIXTO, Marcelo Junqueira. “Dos Bens”. In: TEPEDINO, Gustavo (org.). Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. pp. 149-176.

LEituras compLEmEntarEs

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005. pp. 413-453.

AMARAL, Francisco. Direito Civil – Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. pp. 297-327.

1. rotEiro dE auLa

A presente aula visa estabelecer um dos conceitos-chave do Direito Civil: o estudo dos bens. A disciplina relativa aos bens confunde-se com uma série de classificações, dando a impressão de que conhecer a matéria significa ape-nas decorar todas as classificações apresentadas pelos livros. Como você verá, aprender a classificar os bens é um exercício de primeira importância no Direito Civil moderno, pois é justamente a classificação que determinará, em diversas hipóteses, a natureza de um contrato ou a possibilidade de um bem ser objeto de penhora.

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Mas o que é um “bem”? Para Caio Mário, bem é tudo aquilo que agrada ao homem, podendo ser inseridos nessa categoria os seguintes elementos: a alegria de viver o espetáculo do pôr-do-sol176, o dinheiro, a herança de um parente, entre outros. Mas será que não existe uma diferença entre aplaudir o pôr-do-sol e receber uma herança? A primeira distinção que pode se fazer é com base no critério da patrimonialidade. Todavia, é importante lembrar que a patrimoniali-dade não é requisito necessário para a caracterização de um bem jurídico, pois o Direito também reconhece bens que não podem ser apreciados economicamen-te, como o direito ao nome e o estado de filiação.

Segundo expõe Caio Mário, “[o]s bens, especialmente considerados, distin-guem-se das coisas, em razão da materialidade destas: as coisas são materiais ou concretas, enquanto que se reserva para designar os imateriais ou abstratos o nome de bens, em sentido estrito”. Nesse sentido, entende o autor que a diferen-ciação entre bem e coisa refere-se à materialidade do objeto de análise.

Os entendimentos sobre o tema variam inclusive na legislação estrangeira. O Código Civil português determina que “coisa” é tudo aquilo que pode ser objeto de relações jurídicas177. Os italianos, por sua vez, também consideram “coisa” um termo mais amplo do que “bem”.

O Código Civil de 1916 não adotou nenhum desses entendimentos, usando os termos “bem” e “coisa” indistintamente178. Essa imprecisão terminológica foi encerrada no Código Civil de 2002, unificando a linguagem. O Código refere-se apenas a “bens”, englobando tanto os bens materiais como os imateriais, não sendo necessário fazer-se a distinção entre “bem” e “coisa”.

bens corpóreos e incorpóreos

Divisão vinda do Direito Romano, as “coisas corpóreas” (“res corporales”) são os bens materiais, tangíveis, “que podem ser tocados” (“quae tangi possunt”). Bens incorpóreos são os chamados bens imateriais, ou seja, que não podem ser tocados.179

Todavia, deve-se ressaltar que o critério de diferenciação não pode ser em si a tangibilidade, uma vez que a corporalidade (meio físico) por vezes só pode ser estabelecida por via indireta. O interesse prático dessa distinção reside no fato de que os bens corpóreos podem ser objeto de compra e venda, enquanto os incorpóreos só podem ser objeto de cessão lato sensu, como os direitos autorais sobre obra artística.

bens imóveis

Para o Direito Civil clássico, a principal classificação de bens é aquela que os divide em bens móveis e imóveis. Diversas são as conseqüências dessa classifica-ção, pois o tratamento concedido a um bem, dependo se for móvel ou imóvel, varia desde o seu registro, além de alcançar a transmissão da propriedade, a dis-ciplina das garantias reais, etc.

176 Caio mário da silva Pereira. Institui-ções de Direito Civil, vol. 1. rio de Janei-ro: forense, 2004. p. 400.

177 Código Civil Português, art. 202.

178 Código Civil brasileiro (1916), art. 54: “as coisas simples ou compostas, materiais ou imateriais, são singulares e coletivas [...]”.

179 José Cretella Júnior. Curso de Direito Romano. rio de Janeiro: forense, 1995. p. 110.

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A importância concedida ao bem imóvel, em especial, deriva de sua tradição em ser associado à riqueza. O Direito Romano já fazia essa distinção para privi-legiar os bens imóveis, ou seja, a terra e os instrumentos diretamente necessários para sua exploração, como escravos e animais (res mancipi).

A trajetória brasileira também seguiu (e ainda segue) a prevalência dos bens imóveis como sinônimo de riqueza. Esse contexto apenas recentemente começou a ser modificado, principalmente com a crescente importância atualmente dedi-cada ao regime da propriedade intelectual (direitos autorais, marcas e patentes).

Entretanto, a tradição agrária não foi eliminada no Direito brasileiro, fa-zendo-se presente no tratamento concedido aos bens imóveis. Essa constatação passa pela formalidade para a transmissão da propriedade imobiliária e torna-se mais evidente na necessidade apresentada pelo mercado de fiadores possuírem bens imóveis.

Os bens imóveis são divididos em quatro categorias:

(i) por natureza: trata-se do solo e tudo o que lhe é aderente sem a interven-ção humana. Dessa forma, árvores, arbustos e plantas são imóveis por estarem presas ao solo pela raiz, mesmo se tiverem sido plantadas;

(ii) por acessão física: tudo o que o homem incorpora permanentemente ao solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e as construções que não podem ser retiradas sem sua destruição, modificação, fratura ou dano. Os pavilhões para exposição que são posteriormente destruídos são imóveis por acessão. São excluídas desse regime as construções como barracas de feiras, tendas de circo e parques de diversão itinerantes.

(iii) por acessão intelectual: são bens móveis que se tornam imobilizados pela vontade humana, como “máquinas instaladas numa indústria, um qua-dro pendurado na parede de uma residência, um trampolim beirando uma piscina”.180 Trata-se de uma ficção legal, que permite ao proprietário, em virtude do destino que ele atribua ao objeto, a mudança de sua natu-reza. O Código Civil de 2002 alterou este instituto, hoje regulado pelos princípios relativos às pertenças, que em regra não seguem o destino do bem a que se acham vinculados (art. 94 do Código de 2002).181

(iv) por determinação legal: são os bens que a lei trata como imóveis, como direitos reais sobre imóveis, o direito à sucessão aberta, entre outros. Casa de madeiras que podem ser transportadas de um lugar a outro sem serem destruídas não perdem a classificação de imóveis, nem materiais que são separados de um imóvel para depois serem reempregados.

bens móveis

São bens móveis aqueles suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção por força alheia, sem alteração da substância ou de sua destinação econômico-social, ou aqueles a que a lei confira expressamente esse regime de aplicação. Dessa forma, pode-se falar em duas categorias de bens móveis:

180 silvio rodrigues. Direito Civil, vol. i. são Paulo: saraiva, 2003. p. 124.

181 marcelo Calixto. “dos bens”. in: te-Pedino, gustavo (org.) Parte Geral do Novo Código Civil. rio de Janeiro: reno-var, 2002. p. 158.

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(i) por natureza: todas os bens suscetíveis de deslocamento sem alteração de substância ou de destinação econômico-social. Aqui temos as exceções dos bens imóveis por acessão; e

(ii) por determinação legal: são bens com o gás, a energia elétrica e outras formas de energia, os direitos reais sobre móveis, os direitos pessoais de caráter patrimonial e suas respectivas ações. Todos eles tornam-se móveis porque assim dispôs o legislador. Navios e aeronaves, embora sobre eles recaia a hipoteca, são bens móveis. Além destes, os direitos autorais tam-bém são reputados bens móveis.

bens fungíveis e infungíveis

Bens fungíveis são os que podem ser substituídos por outros da mesma espé-cie, qualidade e quantidade. Os bens infungíveis, por seu turno, são os que não podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e quantidade.

Os bens fungíveis atendem ao princípio de que o gênero nunca perece (genera nunquam pereunt). O dinheiro é o exemplo sempre citado. Uma dívida contra-ída por conta de um empréstimo de R$ 10 (dez reais) não obriga o devedor a devolver a mesma nota de R$ 10 (dez reais) que foi utilizada para a realização do empréstimo, mas qualquer outra nota de R$ 10 (dez reais), ou duas notas de R$ 5 (cinco reais), ou dez notas de R$ 1 (um real), e assim por diante.

A fungibilidade é própria dos bens móveis, pois os imóveis são únicos e, por esse motivo, infungíveis. Só pode haver um bem imóvel em um dado endereço. Já os bens móveis não sofrem da mesma restrição.

A vontade das partes pode transformar um bem fungível em infungível. Por exemplo, um livro, após ser autografado por seu autor, passa a ser único.

bens consumíveis e não-consumíveis

Caso fosse adotado um rigor científico extremo, nenhum bem seria em si consumível, pois, segundo as leis da natureza, “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”.

Entretanto, ao Direito interessa a escala humana, e um bem é consumível se o seu uso implica na destruição imediata de sua própria substância (consumibilida-de natural), ou se o mesmo é destinado à alienação (consumibilidade jurídica).

É acertada a decisão do legislador de separar o conceito de fungibilidade do de consumibilidade. Não existe correlação absoluta entre as duas idéias. Um livreiro pode oferecer manuscritos de um autor à venda, e esses são consumíveis, embora infungíveis.

bens divisíveis e indivisíveis

A divisibilidade é própria do bem. Diz-se divisível o bem que, “sem modi-ficação da substância ou considerável desvalorização, pode dividir-se em partes

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homogêneas e distintas”.182 Já os bens indivisíveis são aqueles que não podem ser partidos sem alteração de sua substância ou sacrifício do seu valor. Trata-se de um critério com bases utilitaristas, voltado para a manutenção do valor eco-nômico do bem.

A indivisibilidade pode ser criada pela vontade humana, como, por exemplo, uma dívida que só pode ser paga integralmente.

bens singulares e coletivos

O novo Código Civil mantém essa distinção, embora só conceitue os bens singulares (art. 89), que, reunidos, são considerados de per si, independentemen-te dos demais.

Os bens coletivos, ou universais, são tratados como agregados em um todo. Na universalidade de fato há uma pluralidade de bens autônomos a que se dá uma destinação unitária, como no caso de uma biblioteca. Na universalidade de direito há o complexo de relações jurídicas dotadas de valor econômico, como no patrimônio e na herança.

Essa classificação será de grande importância para o estudo de temas ligados à prática contratual e ao Direito Empresarial, como o estabelecimento empresarial (fundo comercial) e a concorrência desleal.

bens disponíveis e indisponíveis

Bens disponíveis são aqueles que podem ser objeto de negócios jurídicos. Para os romanos, esses eram os res in commercium, em contraposição aos res extra commercium.

Os bens indisponíveis podem ser divididos em três categorias: os naturalmen­te indisponíveis, como o ar atmosférico, o mar, que não podem ser subordinados à dominação humana; bens legalmente indisponíveis, como bens públicos de uso comum, como a honra e a vida; e os bens inalienáveis pela vontade humana, sub-metidos a uma cláusula de inalienabilidade.

bens públicos e particulares

Considerando os bens em relação ao seu titular, podem os mesmos ser de na-tureza pública ou privada. Esta distinção encontra embasamento no texto cons-titucional, definindo o art. 20 da Constituição Federal os chamados “bens da União”.

Os bens públicos são divididos em: bens de uso comum, como ruas, estradas e praças; bens de uso especial, destinados ao serviço ou ao estabelecimento de algum dos entes da Administração Pública, como edifícios de repartições públicas; e bens dominicais, que integram o patrimônio de pessoas jurídicas de direito pú-blico como objeto de direito pessoal e real dessas entidades.

182 orlando gomes. Introdução ao Direi-to Civil. rio de Janeiro: forense, 1999. p. 225.

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direito das Pessoas e dos bens

É vedada a alienação de bens de uso comum e de uso especial. Somente os bens dominicais podem ser objeto de negócios jurídicos, ainda assim sendo ne-cessária a respectiva autorização legislativa.

2. casos gEradorEs

2.1. “roubo de terras”

Muito se fala na imprensa sobre “roubo de terras”: De tais conversas extraem-se provas cabais de que o empresário está envolvido

com o roubo de terras públicas do DF.(www2.correioweb.com.br/cw/ EDICAO_20021012/col_cor_121002.htm)

Os fatos são: A matéria que [a revista] publicou sobre o maior roubo de terras públicas da Amazônia tinha 4 páginas.

(www.carosamigos.terra.com.br/novas_corpo_ci.asp?not=602)

“Não ao roubo de terras”. Os manifestantes carregavam cartazes com os dizeres: “Coexistência sem muros”, “Paz, liberdade e segurança para os dois povos”.

(www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2003/07/030716_guilacb.shtml)

Mas será correta essa designação? O caso abaixo explora os efeitos práticos de se aplicar a correta classificação dos bens.

O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro recebeu da Delegacia de Polícia de Petrópolis inquérito policial que indicava fortes indícios de roubo de terras por um grupo armado. O grupo invadiu o terreno de uma fazenda pro-dutora de hortaliças e afugentou os trabalhadores mediante uso de machados e facas. Os ladrões recusam-se a sair do terreno, alegando que este agora lhes per-tence. Os empregados da fazenda não conseguem voltar ao trabalho.

O Promotor de Justiça da Comarca de Petrópolis, ao receber o inquérito, imediatamente ofereceu denúncia contra todos os integrantes da quadrilha por roubo, art. 157 do Código Penal, o qual está assim redigido:

RouboArt. 157 – Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante

grave ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à impossibilidade de resistência:

Pena – reclusão, de quatro a dez anos, e multa.

A classificação dos bens foi corretamente empregada no caso concreto? A sua aplicação no caso poderia conduzir a um resultado distinto?

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2.2. “apreensão de caça-níqueis”

A empresa FunTime Jogos e Diversões Eletrônicas Ltda. importa máquinas caça-níqueis da Bolívia e contrata a sua disponibilização em bares e boates na cidade do Rio de Janeiro. Depois de dez anos no mercado, ela começa a sofrer prejuízos com constantes ações da polícia, geralmente culminando na apreensão de suas máquinas. Cada máquina que é apreendida pela polícia representa um significativo prejuízo para a empresa, uma vez que o estabelecimento objeto da operação policial geralmente decide romper o contrato com a FunTime para evitar maiores transtornos com as autoridades policiais.

Preocupados com essa situação, os advogados da FunTime resolvem ingressar em juízo com uma medida ousada: impetrar mandado de segurança em face do Exmo. Sr. Secretário de Estado e de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro para buscar decisão que impeça a polícia de apreender as suas máquinas. Liminarmente, os advogados pediram a suspensão de toda e qualquer ação da polícia no sentido de apreender as referidas máquinas.

Como principal argumento, alegam os advogados que as máquinas caça-ní-queis são “bens de produção” e, portanto, não poderiam ser apreendidas deli-beradamente pelas autoridades policiais, pois elas incorporam o acervo de bens indispensáveis para o funcionamento da empresa.

No seu entendimento, a liminar requerida pela FunTime deverá ser conce-dida? Justifique.

3. QuEstõEs dE concurso

Concurso para ingresso na carreira de Advogado Geral da União (1998)51. Os frutos armazenados em depósito para expedição ou vendas são os:

a) percipiendosb) estantesc) consumidosd) percebidose) pendentes

Concurso para o cargo de Advogado Júnior – BR Distribuidora (maio/2004)37. O Direito Civil não conhece a categoria de imóvel por:

a) naturezab) fungibilidadec) determinação legald) acessão físicae) acessão intelectual

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direito das Pessoas e dos bens

AuLA 14. BENS PRINCIPAIS E ACESSóRIOS – BENFEITORIAS

EmEntário dE tEmas

Bens principais e acessórios – Benfeitorias necessárias – Benfeitorias úteis – Benfeitorias voluptuárias – Paradigma da Essencialidade

caso gErador

Benfeitorias – Indenização e Retenção

LEitura obrigatória

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp. 385-392 e 413-428.

LEituras compLEmEntarEs

AZEVEDO, Antonio Junqueira. “Bens Acessórios”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004. pp. 80-92.

RIZZARDO, Arnaldo. Parte Geral do Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002. pp. 296-306.

1. rotEiro dE auLa

A presente aula continua o estudo dos bens, analisando agora os bens reci-procamente considerados, com especial atenção para as chamadas benfeitorias e sua correspondente classificação. Os bens reciprocamente considerados são tradicionalmente divididos em principais e acessórios. A benfeitoria, por sua vez é um bem acessório.

Muito se discute sobre a natureza de uma benfeitoria, se ela é necessária, útil ou voluptuária. Essa definição terá repercussões práticas importantes na relação contratual, sobretudo em contratos de locação de imóveis.

A principal contribuição que o regime das benfeitorias concedeu ao estudo do Direito Civil moderno é, sem dúvida, a abertura de um campo fértil para a análise das relações jurídicas com base na utilidade dos bens para as pessoas. Com base em ampla jurisprudência, hoje é buscada a construção de uma teoria sobre a aplicação do regime de classificação das benfeitorias (necessárias, úteis e voluptuárias) não apenas para os bens, mas para todo e qualquer contrato.

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direito das Pessoas e dos bens

Esse é o chamado paradigma da essencialidade, que busca aplicar essa classifi-cação na interpretação e aplicação de cláusulas contratuais, privilegiando dispo-sições que asseguram condições necessárias para a vida do homem. Quando se fala que uma benfeitoria é necessária, está-se querendo dizer que ela é necessária à conservação do bem principal, como um imóvel, por exemplo. Ao classificar um certo contrato como necessário, está-se a exigir o seu cumprimento de forma prioritária, pois assim demanda uma pessoa humana.

bens principais e acessórios

Em um mundo complexo, as relações não podem ser analisadas individual-mente. Há mesmo quem diga que, especificamente na seara contratual, vivemos um momento de hipercomplexidade. No caso dos bens, podemos encontrar a mesma situação, particularmente no que concerne à relação entre bens princi-pais e acessórios.

O Código Civil aborda o estudo dos bens reciprocamente considerados em capítulo próprio, do art. 92 ao art. 97. O bem principal, na dicção do art. 92, é aquele que “existe sobre si, abstrata ou concretamente”. Adverte San Tiago Dantas que o verbo “existir” da definição deveria ser melhor expli-cado. No seu exemplo, a existência de uma roda de um carro é independen-te, pois ela ocupa espaço no mundo físico e é identificada como uma roda, entretanto ela só cumpre sua função econômica se estiver inserida dentro de um carro.

Já o bem acessório, segundo Caio Mário, “pela sua própria existência subor-dinada, não tem, nesta qualidade, uma valoração autônoma, mas liga-se-lhe o objetivo de complementar, como subsidiário, a finalidade econômica da coisa principal”.183

No tratamento dos bens reciprocamente considerados, duas são as regras principais: (i) o bem acessório segue o destino do bem principal (“accessorium sequitur principale”); e (ii) o bem acessório, formando um todo com o bem prin-cipal, integra o direito que sobre o mesmo exerce o titular.

Dá-se à primeira regra o nome de princípio da gravitação jurídica. O Código Civil atual retirou esse princípio de seu texto, uma vez que a lei permite que as partes convencionem de modo contrário, desvinculando o destino do bem aces-sório daquele reservado ao bem principal.

Todavia, o próprio Código Civil dispõe em diversos momentos no sentido de vincular o acessório ao principal: (i) a posse do imóvel presume a dos móveis que nele estiverem (art. 1.209); (ii) a obrigação de dar coisa certa abrange seus acessórios, ainda que não mencionados, exceto se o contrário resultar do título ou das circunstâncias do caso (art. 233); (iii) a nulidade da obrigação principal importa a da cláusula penal (art. 922); e (iv) na disposição de um crédito são abrangidos todos os seus acessórios (art. 287).

Bens acessórios podem ser: 183 Caio mário da silva Pereira. Institui-ções de Direito Civil, vol. i. rio de Janei-ro: forense, 2004. p. 435.

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direito das Pessoas e dos bens

Naturais – quando aderem espontaneamente ao principal sem a intervenção humana, como nos frutos das árvores, as crias de animais (não inseminados através de ação humana);

Industriais – quando surgem do esforço humano, como as casas em relação ao terreno onde se encontram; e

Civis – quando resultam de uma relação abstrata de direito, não de uma vin-culação material como nos demais bens acessórios. É o caso dos juros em relação ao principal, os ônus reais em relação à coisa gravada, ou seja, direitos relaciona-dos a relações jurídicas principais.

Além dessa classificação em bens acessórios naturais, industriais e civis, os bens acessórios podem ainda ser classificados em frutos, produtos e benfeitorias. Existe ainda a categoria das chamadas pertenças, inovação do Código Civil de 2002.

Frutos

Os frutos são as utilidades que a coisa periodicamente produz, sem desfalques da sua substância. A palavra “periodicamente” é de grande relevância, pois pela periodicidade é que os frutos podem ser diferenciados dos produtos. Os produ-tos, ao serem retirados, fazem a coisa perder substância. Por exemplo, a retirada de carvão de uma mina é a retirada de um produto. A mina perde substância e em algum momento ficará sem carvão, uma vez que o mesmo não se renova. Com a retirada de frutos, contudo, o bem não perde substância, possibilitando a sua retirada periodicamente.

Os frutos são classificados quanto a seu estado. Os frutos são pendentes, en-quanto unidos à coisa que os produziu; percebidos ou colhidos, uma vez que são separados do bem principal; estantes, se depois de separados permanecem arma-zenados ou acondicionados para posterior alienação; percipiendos, os que deviam ser, mas não foram percebidos; e, por fim, consumidos, aqueles que não existem mais por terem sido utilizados.

Para que se tenha uma idéia da importância da classificação dos bens acessó-rios e, mais especificamente, dos frutos, veja a decisão abaixo:

CIVIL E CONSUMIDOR. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. PRO-MESSA DE COMPRA E VENDA DE UNIDADE AUTÔNOMA. DESCUM-PRIMENTO DO PRAZO DE ENTREGA. RESCISÃO DO CONTRATO COM PERDAS E DANOS. Ação de rescisão de promessa de compra-e-venda de unidade autônoma c/c perdas e danos, fundada no descumprimento de cláu-sula do pacto que fixa prazo para entrega da coisa pelo incorporador. Alegação de força maior consubstanciada na demora da obtenção de financiamento junto ao agente financeiro inimputável aos autores, já que se insere no risco do em-preendimento e não pode ser considerado fato imprevisível. Devolução inte-gral do desembolso. Tese incabível de pré-fixação das perdas para a hipótese de

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inadimplemento, com cláusula penal meramente moratória. Renúncia clausular imposta ao consumidor à disputa de outras verbas que se afigura abusiva, já que o coloca em desvantagem frente ao fornecedor do produto. Exegese do art. 51, IV, da Lei 8.078/90. Perdas in re ipsa, consubstanciadas nos frutos civis que retiraria da coisa, no valor de um aluguel mensal, quantum a ser encontrado em liquidação por arbitramento. Incidência correta de juros legais de 6% (seis por cento) ao ano até a entrada em vigor do novo Código Civil, e de 1% (um por cento) ao mês a partir daí, por força do art. 406 c/c § 1º, do art. 161, do CTN. Sentença que caminhou nessas direções, incensurável, improvimento recurso que pretendia revertê-la. Unânime.

(TJRJ – Apelação Cível nº 2005.001.00313, Des. Murilo Andrade de Car-valho; j. em 26/04/2005)

A distinção feita entre os diversos tipos de frutos não é meramente teórica, uma vez que o possuidor de boa-fé, por exemplo, faz jus aos frutos percebi-dos, mas não aos pendentes, nem aos colhidos antes do prazo. O possuidor de má-fé, por sua vez, não tem direito aos frutos, devendo restituir aqueles já percebidos.

Os frutos, como vemos sendo comercializados na Bolsa de Mercadorias e Fu-turos, podem até mesmo não existir fisicamente. Isso não impede que transações sejam feitas com base neles, conforme expõe o acórdão abaixo:

Venda de safra futura. Bens móveis por antecipação. A venda de frutos, de molde a manifestar o intuito de separação do objeto da venda em relação ao solo a que adere, impõe a consideração de que tais coisas tenham sido, pela mani-festação de vontade das partes contratantes, antecipadamente mobilizadas. Se, no momento do ajuizamento do feito, já havia sido realizada a colheita, tem-se como acertada a decisão que nega aos frutos a natureza de pendentes. Agravo a que se nega provimento.

(STJ, AgRg no Ag 174406 / SP, Min. Eduardo Ribeiro, j. em 25/08/1998)

Vale lembrar que, assim como os bens acessórios genericamente falando, também os frutos podem ser naturais, industriais e civis.

produtos

Em oposição à definição encontrada para os frutos, os produtos são as uti-lidades retiradas de um bem que importam em redução de sua substância. Os produtos não são renováveis, pois a sua extração leva inexoravelmente ao es-gotamento do bem de onde ele se deriva. O principal exemplo de produto é o mineral que se extrai de uma mina.

Pode-se dizer que os produtos são retirados periodicamente, mas esta perio-dicidade é passageira. Os frutos podem ser retirados, a princípio, infinitamente; os produtos, não.

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pertenças

O novo Código Civil dispôs no art. 93 sobre as pertenças. Diferentemente dos bens acessórios lato sensu, as pertenças são partes constitutivas da própria coisa e estão em conexão íntima com ela, mas podem ser separadas sem ter seu valor econômico destruído. As pertenças podem estar ligadas à utilização do bem para destinação de forma duradoura ao serviço, uso ou aformoseamento do bem principal.

Diferentemente dos bens acessórios, as pertenças não seguem, em via de re-gra, o destino do bem principal, mas podem seguir por interesse das partes e por determinação legal, ou ainda por força das circunstâncias do caso. Sendo assim, a elas não se aplica o princípio da gravitação jurídica.184

Segundo Silvio Venosa, as pertenças têm como características:

i) um vínculo intencional, material ou ideal, estabelecido por quem faz uso da coisa, colocado a serviço da utilidade do principal; ii) um destino duradouro e permanentemente ligado à coisa principal e não apenas transitório; e iii) uma destinação concreta, de modo que a coisa fique efetivamente a serviço da outra. Sendo assim, a pertença forma, juntamente com a coisa, unidade econômico-social.185

Mesmo antes da entrada em vigor do novo Código Civil, a doutrina já reco-nhecia a existência das pertenças. O novo Código apenas inovou em conferir ao instituto um tratamento expresso em seu texto.

benfeitorias

Benfeitorias são o resultado de despesas e obras com a conservação, melho-ramento ou aformoseamento de um bem principal. A sua classificação segue portanto o intuito de sua realização: para conservar, acrescer uma utilidade ou para simplesmente tornar mais confortável ou luxuoso o bem principal.

Na prática, é sempre preciso perguntar: em que consiste a conservação de um bem imóvel? Deve-se pensar que conservar um bem é mantê-lo exatamente da mesma forma em que ele foi entregue ou seria apenas impedir a sua ruína? Essa é apenas uma das diversas questões que movimentam os tribunais na questão das benfeitorias. A necessidade acaba sendo apreciada casuisticamente pelo juiz, com base nos fatos narrados e nas circunstâncias das pessoas e bens envolvidos na ação. Os juízes deverão também observar os usos e costumes do local. Em um país de dimensões continentais como o Brasil. o conceito de benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias pode variar.

Além do espaço, o tempo também interfere no conceito de benfeitoria. Con-forme explicita Arnoldo Wald, “uma garagem, que era considerada benfeitoria voluptuária há quarenta anos atrás pode, hoje, ser classificada como benfeitoria útil”.186

184 marcelo Calixto, “dos bens”. in: te-Pedino, gustavo (org.). Parte Geral do Novo Código Civil. rio de Janeiro: reno-var, 2002. p. 173.

185 silvio de salvo venosa. Direito Civil, vol. i. são Paulo: atlas, 2002. p. 311.

186 arnoldo Wald. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. i. são Paulo: revista dos tribunais, 1992. p. 178.

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As benfeitorias podem ser:Necessárias, quando têm por fim conservar a coisa ou evitar que se deteriore.

Estas devem ser indenizadas pelo proprietário independentemente da boa ou má-fé do possuidor que as realize. Entretanto o direito de retenção só assiste ao possuidor de boa-fé (art. 1.220 do CC).

A conservação do bem e a necessidade de se realizar uma benfeitoria foram determinantes para a decisão do acórdão cuja ementa abaixo se transcreve:

Reintegração de posse. Comodato. Sentença de procedência. Pretenção de posse ad usucapionem, comprometida pela condição de locatários com que ace-naram os réus, jamais demonstrada, todavia, como lhes cumpria fazer. O co-modatário que, notificado, não demite de sai posse do bem, comete esbulho. Benfeitorias. O comodatário só tem direito à indenização pelas benfeitorias ex-traordinárias e urgentes que se viu obrigado a fazer, no intuito de conservação do bem emprestado, não assim por outras, úteis ou necessárias que sejam, como se recolhe do artigo 1.254, do Código Civil de 1.916 (584, do atual), sobremodo porque tem ciência de que as erige em prédio alheio. Prova pericial desnecessária. Apelação não provida.

(TJRJ, Apelação Cível 2005.001.09845, Des. Mauricio Caldas Lopes, j. em 17/05/2005)

Úteis, quando aumentam e facilitam o uso da coisa. As benfeitorias úteis apenas melhoram a qualidade e a capacidade de utilização dos bens. Devem ser indenizadas ao possuidor de boa-fé, ao qual também assiste o direito de eventual retenção.

Voluptuárias, quando as benfeitorias são de mero deleite ou recreio, não au-mentando o uso habitual da coisa, ainda que a tornem mais agradável ou sejam de elevado valor. Pode haver indenização destas benfeitorias se for impossível seu levantamento sem prejuízo ao imóvel.

POSSE DE BOA FÉ. BENFEITORIA NECESSÁRIA. DIREITO DE RETENÇÃO. INDENIZACAO POR BENFEITORIAS. O possuidor de boa fé tem o direito de indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis, com o respectivo poder de retenção, e o de ressarcimento das voluptuárias, se não puder levantá-las sem detrimento do imóvel.

(TJRJ, Apelação Cível nº 2003.001.07773, Des. Milton Fernandes; j. em 06/05/2003)

O contrato de locação de imóvel urbano apresenta algumas especificidades. Nele pode ser inserida cláusula expressa de isenção de indenização de benfeito-rias úteis e necessárias que o locador tiver realizado com autorização do proprie-tário (arts. 35 e 36 da Lei nº 8.245/91). A Lei de Locação de Imóveis Urbanos é especial em relação ao Código Civil e ao Código do Consumidor, logo esta derrogaria a aplicação destes dois textos normativos.

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Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, conforme se nota no acórdão abaixo:

LOCAÇÃO - RETENÇÃO POR BENFEITORIAS - CODIGO DO CONSUMIDOR – LEI 8.070/90 - INAPLICABILIDADE.

1. NÃO É NULA CLAUSULA CONTRATUAL DE RENÚNCIA AO DI-REITO DE RETENÇÃO OU INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS.

2. NÃO SE APLICA ÀS LOCAÇÕES PREDIAIS URBANAS REGULA-DAS PELA LEI 8.245/91, O CÓDIGO DO CONSUMIDOR.

3. RECURSO NÃO CONHECIDO.(STJ, REsp 38.274/SP; Min. Edson Vidigal; j. em 09/11/1994)

Contudo, o STJ posteriormente reviu o seu posicionamento, em diversas outras decisões (vide, nesse sentido, REsp nº 90.366/MG, Min. Luiz Vicente Cernicchiaro, j. em 11/06/1996).

paradigma da essencialidade

A distinção entre benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias é feita com base na sua relação com o bem principal. A necessidade, utilidade e mero afor-moseamento em questão são pautados por critérios de natureza patrimonial.

Alguns autores têm buscado ampliar o regime concedido às benfeitorias para conceber a relação de necessidade que possa vir a existir entre a pessoa humana e um bem ou prestação jurídica.

A releitura das categorias visa torná-las mais aptas a concretizar os valores constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, o res-peito à terceira idade, etc. Atualmente as benfeitorias são conceituadas com base na utilidade que é proporcionada a um outro bem.

Essa apropriação da classificação das benfeitorias para as demais relações ju-rídicas, buscando trazer as necessidades da pessoa para o debate, é denominada paradigma da essencialidade. A partir de sua concepção, podem-se dividir não apenas os bens, mas também as prestações relativas a um contrato, em: existen­cialmente essenciais, úteis e supérfluas.

Desta forma, os pincéis de um pintor são bens existencialmente essenciais, da mesma forma que seria um piano para um pianista. São bens necessários para o sustento de seus proprietários, imprescindíveis para sua vida digna. Essa consta-tação acarretaria a sua impenhorabilidade.

No próprio Código de Processo Civil pode-se encontrar um delineamento da matéria, cuja aplicação é objeto de diversas decisões judiciais, nos artigos 648 e 649, que assim dispõem:

Art. 648. Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenho-ráveis ou inalienáveis.

Art. 649. São absolutamente impenhoráveis:

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I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;

II – as provisões de alimento e de combustível, necessárias à manutenção do devedor e de sua família durante 1 (um) mês;

III – o anel nupcial e os retratos de família;IV – os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários pú-

blicos, o soldo e os salários, salvo para pagamento de prestação alimentícia;V – os equipamentos dos militares;Vl – os livros, as máquinas, os utensílios e os instrumentos, necessários ou

úteis ao exercício de qualquer profissão;Vll – as pensões, as tenças ou os montepios, percebidos dos cofres públicos,

ou de institutos de previdência, bem como os provenientes de liberalidade de terceiro, quando destinados ao sustento do devedor ou da sua família;

Vlll – os materiais necessários para obras em andamento, salvo se estas forem penhoradas;

IX – o seguro de vida;X – o imóvel rural, até um modulo, desde que este seja o único de que dispo-

nha o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário.

O regime adotado por esse novo paradigma encontra atualmente maiores desafios nas discussões sobre o bem de família. Mas o debate não deve ficar restrito ao bem de família, pois a concepção acima referida afeta toda e qualquer relação que envolva bens jurídicos, demandando do intérprete uma renovada ordenação de valores e ins-trumentos para a prática do Direito. O bem de família é caracterizado em função da sua destinação propriamente existencial. A necessidade humana de moradia justifica a imposição de um regime jurídico específico para tal espécie de bem.

2. caso gErador

benfeitorias – indenização e retenção

John Smith é um importante executivo de uma empresa petrolífera que está prestes a abrir uma filial no Rio de Janeiro. Para auxiliar na abertura de seu es-critório carioca, a empresa mandou John para o Brasil com a missão de ficar na cidade por pelo menos três anos. A própria empresa tratou de alugar para John uma bela casa no Itanhangá.

Todavia, a estada de John na cidade não começou bem. Logo na primeira semana, ao retornar de Macaé, o helicóptero de John sofreu um acidente grave. O executivo teve sorte de escapar com vida, mas sofreu sérias lesões em ambas as pernas, o que demandaria, pelo menos, uma semana que internação e mais dois anos de exercícios especiais e fisioterapia.

Após a semana no hospital, alguns assuntos começaram a preocupar John, sobretudo a disposição da casa que foi alugada. Como John não gostaria de

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sair da casa, já que havia se ligado emocionalmente à mesma, ele solicitou ao seu estagiário que fizesse o orçamento com várias empresas de construção para a elaboração de duas obras na casa: (i) a remoção da escada da frente, que leva ao portão principal da casa, por um mini-elevador; e (ii) a construção de uma piscina para que John possa fazer os seus exercícios de recuperação.

Depois de pesquisar os orçamentos, John optou por fazer a obra da escada com a empresa que lhe ofereceu o menor preço. Já no caso da piscina, o orça-mento escolhido por John foi o segundo mais caro. O motivo para escolher esse orçamento foi a qualidade reconhecida da empresa na construção de piscinas para residências.

Precisa John pedir indenização ao seu locador para a realização das obras? Ao término do contrato de locação, será John indenizado pelas obras realizadas? Caso o locador não concorde em indenizar John, poderá ele exercer direito de retenção? O fato de John ter sofrido um acidente muda em qualquer aspecto as respostas que você daria para as questões acima?

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AuLA 15. CONCEITOS ESTRuTuRAIS – BENS DE FAMíLIA

EmEntário dE tEmas

Conceito – Requisitos – Inalienabilidade e impenhorabilidade – Análise da Lei nº 8.009 – Análise de jurisprudência

casos gEradorEs

“Home Theater é bem de família?” e “Devedor solteiro, solitário e fiador”

LEitura obrigatória

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. pp. 429-448.

LEitura compLEmEntar

AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de Família. São Paulo: Revista dos Tribu-nais, 2004. pp. 164-222.

1. rotEiro dE auLa

O bem de família constitui uma exceção ao princípio de que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas. O referido instituto foi criado em atenção à família e aos relevantes valores sociais que a circunscrevem. Trata-se de uma por-ção de bens que a lei resguarda com as características de impenhorabilidade (e eventualmente de inalienabilidade) em benefício da constituição e permanência de uma moradia para o corpo familiar.187 No Código Civil, a disciplina do bem de família encontra-se no livro dedicado ao direito de família.

As origens do instituto remontam ao Homestead Act do Direito americano, cujo objetivo era a fixação de famílias em terras desabitadas. No Direito brasilei-ro, o bem de família ainda atende a uma necessidade semelhante àquela do ins-tituto norte-americano, ou seja, a proteção da moradia para a entidade familiar, todavia diversas peculiaridades podem ser apontadas no Direito brasileiro que particularizam o seu tratamento na legislação nacional.

187 silvio de salvo venosa. Direito Civil, vol. i. são Paulo: atlas, 2002. p. 355.

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bem de família voluntário e legal

No Direito anterior, não só o Código Civil disciplinava o bem de família, mas também a legislação processual e demais leis materiais. A previsão legal basilar encontrava-se nos arts. 70 a 73 do revogado Código Civil de 1916. Assim estava redigido o antigo art. 70 do CC-1916:

Art. 70. É permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicílio desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas, salvo as que provie-rem de impostos relativos ao mesmo prédio.

Parágrafo único. Essa isenção durará enquanto viverem os cônjuges e até que os filhos completem sua maioridade.

Ainda de acordo com o art. 233 do antigo Código Civil, o chefe de famí-lia era o marido, entendimento esse que é hoje incompatível com a disciplina constitucional. Na falta daquele, o entendimento era no sentido de que essa prerrogativa competiria à mulher. O CC-2002, estando em consonância com a Constituição, prevê que a legitimidade para instituir o bem competirá a ambos os cônjuges.

Dessa forma, rompendo com o tratamento concedido ao instituto no CC-1916, assim dispõe o atual Código Civil sobre a matéria:

Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família, desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. (grifado)

Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.

O bem de família tem por objeto um imóvel no qual a família fixa sua resi-dência e que ficará a salvo de eventuais credores. O Código Civil, como forma de conferir a mais ampla proteção aos valores relacionados à matéria, estende a tutela do bem de família às pertenças e acessórios que guarnecem o imóvel.188

Importante no estudo do referido tema é a Lei nº 8.009/90, uma vez que se pode mesmo afirmar que, no Brasil, existem duas disciplinas do bem de família: a do Código Civil (segunda a qual deve o proprietário requerer a sua instituição) e a da Lei n 8.009 (que se processa pela simples previsão legal).

O artigo 1º da Lei nº 8.009/90 tem a seguinte redação:

Artigo 1º - O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais

188 “art. 1.712. o bem de família con-sistirá em prédio residencial urbano ou rural, com suas pertenças e acessórios, destinando-se em ambos os casos a domicílio familiar, e poderá abranger valores mobiliários, cuja renda será aplicada na conservação do imóvel e no sustento da família.”

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ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei. (grifado)

Parágrafo único - A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e to-dos os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa, desde que quitados.

A previsão do artigo 1º precisa ainda ser conjugada com o disposto no art. 5º da mesma Lei, segundo o qual:

Artigo 5º - Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, consi-dera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para moradia permanente. (grifado)

Parágrafo único - Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis e na forma do artigo 70 do Código Civil.

Detalhe que merece menção é o de que, segundo a Constituição de 1988, não há que proceder com distinções entre a família legítima e a ilegítima para a configuração do instituto. A lei fala tão-somente em “entidade familiar”.

Por conta da Lei nº 8.009/90, o bem de família conforme disposto no Có-digo Civil deixou de ter maior utilidade prática (trata-se do chamado bem de família voluntário). No regime do Código Civil, o interessado vale-se de ato jurídico solene e registra o imóvel como bem de família, ensejando assim a ca-racterística de impenhorável.

De acordo com a Lei nº 8.009/90, o tratamento do bem de família é bastante distinto: o imóvel residencial, desde que servindo de moradia à família, já se en-contra abarcado por essa proteção, não sendo mais necessário que se recorra ao oneroso registro para produzir efeitos legais. Adicionalmente, a Lei nº 8.009/90 amplia o alcance da impenhorabilidade desses imóveis, não impondo as restri-ções do antigo art. 70 do CC-1916.

É importante apenas não confundir o conceito de impenhorabilidade com o de inalienabilidade, uma vez que este último remete à impossibilidade por parte do proprietário de alienar o imóvel caracterizado como bem de família.

Fraude contra credores

Uma das maiores preocupações que cercam o instituto do bem de família é o eventual estímulo à prática de fraude contra credores, na medida em que o bem de família encontra-se a salvo da persecução destes.

Se por um lado é certo que a lei não compactua com procedimentos de na-tureza manifestadamente ilícita, a elucubração jurídica daqueles que objetivam valer-se de meios fraudulentos pode se revestir dos mais variados meandros que

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o formalismo jurídico possibilita. Ainda que, com relação à forma, certos atos jurídicos sejam válidos e perfeitamente exeqüíveis, deve-se perquirir se o escopo que os motiva não é o de implicar prejuízo a outrem.

A possibilidade de converter um imóvel em bem de família está condicionada à não-perpetuação de prejuízo a credores existentes à época do ato. Nessa lógica, só pode o bem de família ser criado quando seu proprietário encontre-se em es-tado de solvência. Uma vez estabelecido como tal, não responde o bem afetado por dívidas posteriores.

Essa especial preocupação do legislador de evitar a fraude contra credores pode ser notada, por exemplo, no art. 4º da Lei nº 8.009/90:

Artigo 4º – Não se beneficiará do disposto nesta Lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência fa-miliar, desfazendo-se ou não da moradia antiga.

§ 1º – Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, libe-rando a mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese.

Ainda, ao assim proceder, o agente de má-fé poderá ter outros intentos frus-trados, pois em geral, não possuindo nada além daquele imóvel qualificado como bem de família, as dificuldades para a obtenção de crédito serão certas, prejudicando assim outras relações negociais.

impenhorabilidade e inalienabilidade

Impenhorabilidade e inalienabilidade são características expressas na lei. A inalienabilidade, entretanto, não é peremptória, podendo ser afastada desde que anuem os interessados.

Já a impenhorabilidade, isto é, a não-executoriedade por dívidas, constitui o próprio núcleo do instituto do bem de família, embora existam certas exceções de ordem legal, como a existência de débitos de natureza tributária relativos ao imóvel. Outra exceção é a constatação de fraude contra credores que visa obstar a satisfação de crédito anterior à instituição do bem de família.

O artigo 2º da Lei nº 8.009/90 estipula certos elementos que ficam de fora da proteção auferida pelo bem de família. É o caso dos veículos de transporte, das obras de arte e dos adornos suntuosos.189

As exceções ao bem de família legal vêm tratadas pelo art. 3º da referida lei, o qual trata das exceções à impenhorabilidade. Elas são as seguintes:

Artigo 3º - A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de exe-cução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

I - em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respec-tivas contribuições previdenciárias;

189 lei nº 8.009/90, art 2º. excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos. Parágrafo único - no caso de imóvel locado, a impenhorabilidade aplica-se aos bens móveis quitados que guarneçam a residência e que sejam de propriedade do locatário, observado o disposto neste artigo.

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II - pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à constru-ção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III - pelo credor de pensão alimentícia;IV - para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições

devidas em função do imóvel familiar;V - para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real

pelo casal ou pela entidade familiar;VI - por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sen-

tença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

A última dessas hipóteses supra liga-se à idéia de que a impenhorabilidade im-plicaria em dificuldades à obtenção de fiadores na locação. Essa consideração, no entanto, merece uma análise mais apurada, na medida em que a jurisprudência recentemente conferiu nova orientação a essa norma.

bem de família e contrato de fiança

O Supremo Tribunal Federal recentemente proferiu uma decisão bastante controvertida sobre a hipótese de proteção de um bem pelo regime do bem de família, estando o mesmo vinculado a um contrato de fiança. Trata-se do Recur-so Extraordinário 352.940-4/SP.

Algumas considerações são pertinentes para compreender a alteração dessa linha jurisprudencial. Inicialmente devemos atentar aos dispositivos legais que abordam a questão.

(i) A Lei 8.009/90, em seu art. 3º, VII, conforme acrescentado pela Lei nº 8.245/91 (Lei de Locações), assim dispõe:

Artigo 3º - A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.

(ii) A Constituição Federal, em seu art. 6º, com redação dada pela Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, determina que o direito a moradia é um dos direitos sociais garantidos pelo texto constitucional:

Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.

A Constituição Federal é dotada de primazia axiológica em relação à legis-lação ordinária. Em outras palavras, na Constituição estão insertos valores que

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devem guiar a interpretação e a aplicação de todas as demais normas infracons-titucionais. É justamente essa a perspectiva que fundamenta a decisão proferida pelo Ministro Carlos Velloso na decisão do citado Recurso Extraordinário, onde o artigo da Lei nº 8.009/90 foi reconhecido como sendo incompatível com a nova redação do art. 6º da Constituição Federal.

Assim está redigida a ementa do julgado:

CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHO-RABILIDADE.

Lei n. 8.009/90, artigos 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o in-ciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”: sua não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido.

Em sua decisão, o relator explicitou as bases constitucionais para defender a não-aplicação do disposto expressamente na Lei nº 8.009/90, afirmando que “tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo – inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000”. Ainda segundo o relator:

[e]ssa não recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C.F., o direito à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família – Lei 8.009/90, art. 1º – encontra justificativa, foi dito linha atrás, no constituir o direito à mo-radia um direito fundamental que deve ser protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição.

duração e dissolução

Questão que merece realce é a da duração do bem de família. O antigo Códi-go Civil determinava que duraria a proteção enquanto fossem vivos os cônjuges e até que os filhos completassem a maioridade.

De acordo com o Código Civil de 2002, existe a possibilidade de descons-tituição voluntária do bem de família. Deixando de ser domicílio da família, qualquer interessado poderá requerer a extinção do benefício. Ainda, em seu art. 1721, dispõe o CC-2002 que a dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família.

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objeto do bem de família

As menções ao objeto do bem de família que vêm sendo feitas na legislação pátria não são plenamente coincidentes. No art. 70 do CC-1916 falava-se em “prédio destinado ao domicílio da família”; o art. 1º da Lei nº 8.009/90, por sua vez, fala em “imóvel residencial”; o CC-2002 fala em imóvel urbano ou rural em seu art. 1712, sendo esse inegavelmente de maior abrangência.

(i) Na Lei nº 8.009/90, a configuração do objeto passa pelas seguintes cons-tatações:

O art. 4º, § 4º, no tocante aos imóveis rurais190, restringe a impenhorabilida-de à sede de moradia, com os bens móveis inseridos nela. Destaque-se a possibi-lidade da pequena propriedade rural também ficar abrangida pela proteção em tela (art. 5º, XXVI, da CF).

O art. 1º da Lei também afirma que são excluídos de penhorabilidade as plantações, benfeitorias e equipamentos de uso profissional e móveis, desde que quitados. O art. 2º enumera elementos que estão excluídos dessa proteção.

(ii) No Código Civil, a configuração do objeto passa pelas seguintes consi-derações:

Distintamente do que ocorre com a Lei nº 8.009/90, o regime do CC-2002 demanda que o interessado proceda à instituição voluntária do imóvel como sendo bem de família.

Coexistem no CC-2002 o art. 1712, que determina que o bem de família será prédio residencial urbano ou rural, abrangendo-se suas pertenças e acessó-rios, e o art. 1711, que limita o valor da instituição a um terço do patrimônio líquido à época da instituição.

A abrangência que pode ser observada no art. 1712 vem dirimir certos ques-tionamentos doutrinários. Sua razão de ser é a idéia de que nada vale o resguardo ao direito à moradia sem que concomitantemente haja previsão de uma forma de se garantir a conservação da mesma.

O objeto do bem de família não possui hoje limite máximo a partir do qual não haveria proteção.191 O art. 1711, por sua vez, não convenciona limite fixo, mas apenas pré-fixa em um terço o limite do patrimônio líquido que poderá ser alvo dessa afetação.

processo de constituição

Para constituir um bem de família, no regime do CC-2002, devem ser observadas as prescrições dos artigos 260 a 265 da Lei nº 6.015/73 (Lei dos Registros Públicos).

Art. 260. A instituição do bem de família far-se-á por escritura pública, decla-rando o instituidor que determinado prédio se destina a domicílio de sua família e ficará isento de execução por dívida.

190 lei nº 8.009/90, art. 4º, § 4º – “quan-do a residência familiar constituir-se em imóvel rural, a impenhorabilidade restringir-se-á à sede de moradia, com os respectivos bens móveis, e, nos ca-sos do artigo 5º, inciso XXvi, da Cons-tituição, à área limitada como pequena propriedade rural.”

191 em sentido contrário, o decreto-lei nº 3.200/41, com a redação da lei nº 5.653/71, estipulava valor de até 500 vezes o maior salário mínimo vigente. a lei nº 6.742/79, por sua vez, elimi-nou qualquer limite de valor aos bens de família.

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O art. 260 afirma a necessidade de se valer de escritura pública. Os arts. 261 e 262 ainda instituem a necessidade de se valer de publicações, objetivando essa publicidade dar conhecimento a credores que possam vir a serem prejudicados.

Art. 261. Para a inscrição do bem de família, o instituidor apresentará ao ofi-cial do registro a escritura pública de instituição, para que mande publicá-la na imprensa local e, à falta, na da Capital do Estado ou do Território.

Art. 262. Se não ocorrer razão para dúvida, o oficial fará a publicação, em forma de edital, do qual constará:

I – o resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do instituidor, data do instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e característicos do pré-dio;

II – o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta (30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito e perante o oficial.

Art. 263. Findo o prazo do nº II do artigo anterior, sem que tenha havido reclamação, o oficial transcreverá a escritura, integralmente, no livro nº 3 e fará a inscrição na competente matrícula, arquivando um exemplar do jornal em que a publicação houver sido feita e restituindo o instrumento ao apresentante, com a nota da inscrição.

A constituição de bem de família, segundo expresso pelas disposições do RGI, são em verdade atos próprios da Administração. Apesar de ser levado ao Judiciário, como facilmente se observa, não existe um litígio, mas, sim, uma ju-risdição voluntária, onde, para que determinado ato seja regularmente validado, há necessidade de ingerência do Poder Judiciário. A decisão judicial, aqui, não operará efeito substitutivo de vontade das partes, tal qual ocorre na composição de litígios.

Por fim, destaque-se que as demais normas procedimentais de constituição do bem de família encontram-se nos artigos 264 e 265 da Lei de Registros Públicos.192

bem imóvel do devedor solteiro e solitário

Por fim, ponto que merece destaque, em especial devido também à recente jurisprudência, é a possibilidade do bem de família servir para a garantia do imóvel do devedor solteiro e solitário.

O bem de família, segundo a letra da lei, é voltado para a proteção da família. Essa conclusão é derivada da redação expressa do art. 1º da Lei nº 8.009/90. Contudo, nos últimos anos, vem aparecendo na jurisprudência, com certa no-toriedade, a tese de que a interpretação teleológica do art. 1º, ou seja, a inter-pretação que busca o real fim que a lei objetiva, não se limita ao resguardo da família.

Esse foi o entendimento constante de recente decisão do STJ, no ERESP nº 182223/SP. Em sua decisão, o relator afirma que, em relação ao bem de família,

192 “art. 264. se for apresentada recla-mação, dela fornecerá o oficial, ao ins-tituidor, cópia autêntica e lhe restituirá a escritura, com a declaração de haver sido suspenso o registro, cancelando a prenotação.§ 1° o instituidor poderá requerer ao Juiz que ordene o registro, sem embar-go da reclamação.§ 2º se o Juiz determinar que proceda ao registro, ressalvará ao reclamante o direito de recorrer à ação competente para anular a instituição ou de fazer execução sobre o prédio instituído, na hipótese de tratar-se de dívida anterior e cuja solução se tornou inexeqüível em virtude do ato da instituição.§ 3° o despacho do Juiz será irrecorrível e, se deferir o pedido será transcrito integralmente, juntamente com o instrumento.art. 265. quando o bem de família for instituído juntamente com a trans-missão da propriedade (decreto-lei n. 3.200, de 19 de abril de 1941, art. 8°, § 5º), a inscrição far-se-á imediatamente após o registro da transmissão ou, se for o caso, com a matrícula.”

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seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da pessoa hu-mana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito contido no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário.

O bem de família, instituto de natureza garantista, deve ser compreendido como forma de assegurar a todos os indivíduos o direito à moradia. Embora sua orientação inicial versasse genuinamente sobre a família, o âmbito de sua pro-teção vem sendo expandido em algumas decisões. O argumento, assim, é o de que a mens legis é a de não privar o devedor, e não só a sua família, de um local para morar.

Esse entendimento, no entanto, não é pacífico, existindo diversos julgados que se manifestam pela proteção exclusiva da família como sendo o objetivo da Lei nº 8.009/90. Nesse sentido, já se pronunciou o TJRJ:

EMBARGOS DO DEVEDOR. BEM DE FAMÍLIA. MULHER SEPA-RADA JUDICIALMENTE. LEI Nº 8009, DE 1990. INAPLICABILIDADE. Execução. Embargos do Devedor. Alegação de impenhorabilidade de bem imóvel residencial, com fulcro na Lei 8009/90. A lei referida destina-se a proteger não o devedor, mas a sua família. Assim a impenhorabilidade nela prevista, abran-ge o imóvel residencial que sirva ao casal ou entidade familiar não alcançando devedores solitários, tais como solteiros, separados ou divorciados. No caso, a devedora-apelante é separada, não comprovando que resida com membros da família. Sentença mantida. Recurso improvido.

(Apelação Cível n° 2002.001.16619)

Todavia, o mesmo Tribunal já teve oportunidade de se manifestar favoravel-mente à proteção do imóvel do devedor solteiro em outros julgados. Em decisão recente, o Desembargador Celso Lins e Silva asseverou que

a intenção do legislador é clara em proteger não apenas a família, mas tam-bém o direito à moradia. Interpretar de forma diversa, isto é, no sentido de que a proteção se limita aos casados, conviventes ou companheiros, é discriminar aquele que optou por viver sozinho ou que ate então não encontrou a pessoa ideal. Inegavelmente, estar-se-ia violando o texto constitucional, por tratar desi-gualmente o solteiro, o celibatário.

Como observado, as opiniões ainda são divergentes sobre o tema, embora possa ser vislumbrada uma crescente recepção ao alargamento da proteção do bem de família ao imóvel do devedor solteiro e solitário.

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2. casos gEradorEs

2.1. “Home theater é bem de família?”

A Família Borgia, passando por dificuldades financeiras, vê-se frente ao in-tento de um de seus credores de penhorar seus bens. Na ação ajuizada, além do imóvel onde residia o casal Borgia e seus dois filhos, postulava-se concomitan-temente a penhora dos bens móveis constantes na referida residência. A funda-mentação residia na suntuosidade manifestadamente expressa no art. 1º da Lei 8.009/90.

Na contestação apresentada pelo advogado dos Borgia, foi alegado, com base no mesmo art. 1º, que o intento do legislador era resguardar não só a habitação, mas também os elementos que a guarnecessem, desde que essenciais. Alegou, por fim, que, além da residência, todos os bens lá constantes eram indispensá-veis, excluindo-se assim de forma determinante a possibilidade de penhorá-los.

Observando que o litígio só poderia ser resolvido através da análise casuística dos bens, o juiz, na audiência de instrução e julgamento, requereu do autor da ação a relação dos bens e o respectivo valor a eles imputado.

Na produção de provas, o credor apresentou a relação demandada pelo ma-gistrado. Nela se destacava a existência de um televisor importado, digital, tela de plasma, acrescido de um Home Theater. Valor: R$ 12.000 (doze mil) reais. Era o único televisor da família.

No julgamento do REsp nº 50.313-2/SP, o relator afirmou que:

O certo é que reiterados julgados da Corte, inclusive da Terceira Turma, as-sentaram que os equipamentos e bens móveis que guarnecem a casa não respon-dem por dívidas de qualquer natureza,e, salvo exceções, não poderão eles ser objeto de expropriação judicial. Dentre eles encontram-se, o fogão, geladeira, cama do casal e televisão a cores, tal como no caso versante, que não se tem como adorno suntuoso, indispensáveis à utilidade familiar.

Na qualidade de julgador do caso da família Borgia, você acolheria ou não a alegação de penhorabilidade do autor?

2.2. “devedor solteiro, solitário e fiador”

João é advogado-júnior em um grande escritório de advocacia. Atarefado com os prazos de suas publicações, quase não tem tempo de se dedicar à família. Desde que foi efetivado, João só fala com a mãe nos finais de semana, quando passa na casa de Dona Nair para buscar umas camisas passadas.

Com o dinheiro economizado nos últimos três anos de escritório, João con-seguiu comprar um apartamento em um bairro de classe média de sua cidade. Ele mora sozinho, já que quase não possui vida social. João é, portanto, solteiro e solitário.

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Para completar o seu infortúnio, João concordou em ser fiador no contrato de locação de Mathias, seu amigo de faculdade. Qual não foi a surpresa de João quando recebeu em casa uma notificação extrajudicial de Alberto, credor de Mathias, alegando que o seu amigo estava inadimplente havia cinco meses e que, para quitar as dívidas, Alberto solicitava providências da parte de João.

Como argumento de defesa em eventual ação judicial movida por Alberto, João está considerando a hipótese de protestar pela proteção do bem de família para o seu imóvel. Ao conversar com colegas do escritório, João recebeu as se-guintes informações:

a) Clarissa, a estagiária, não acha uma boa idéia João tentar proteger o seu imóvel pelo instituto do bem de família, uma vez que ele não é casado nem vive em união estável com ninguém. Segundo Clarissa, para se constituir uma família no Direito brasileiro, são necessárias pelo menos duas pessoas. Sendo assim, quem não é casado ou não vive em regime de união estável não pode ser considerado como família, o que impossibilitaria a proteção com base no mencionado instituto;

b) Cléber, o consultor, também não concorda com o argumento de João. Segundo o consultor, imóveis dados como fiança em contratos de lo-cação não têm direito a invocar a proteção do bem de família. Trata-se de disposição expressa da Lei nº 8.009/90. Dessa forma, pleitear algo que a lei diz justamente o contrário seria perda de tempo;

c) Caio, o advogado do contencioso, também não concorda com o argu-mento de João. Segundo o mesmo, como João mora sozinho, ele não poderá invocar a proteção do bem de família. O advogado até sugeriu que João, para ter sucesso em sua argumentação, convide o irmão Alfre-do, que acaba de chegar do interior de Minas, para morar no seu apar-tamento. Segundo Caio, quando a lei fala em proteção da família, ela não menciona proteção de “casais”, pelo que dois irmãos morando sob o mesmo teto seriam considerados como uma “família” para os fins da lei.

Você concorda com as opiniões recebidas por João? Se você fosse consultado por João, qual seria a sua resposta? Justifique.

3. QuEstão dE concurso

Exame da Ordem – OAB/SP nº 12429. O bem de família regulado pelo Código Civil de 2002:

a) revogou o bem de família criado pela Lei nº 8.009/90 (residencial).b) não revogou o bem de família criado pela Lei nº 8.009/90, regulando o

bem de família independentemente da vontade (involuntário).c) não revogou o bem de família criado pela Lei nº 8.009/90, regulando o

bem de família voluntário móvel.

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MéTODO DE AvALIAçãO

A avaliação de desempenho do aluno na disciplina Direito das Pessoas e dos Bens será realizada através do somatório de três notas, correspondentes às se-guintes atividades: (i) uma prova escrita, realizada no meio do semestre letivo; (ii) uma prova escrita, realizada na última aula do curso; (iii) uma nota de participação.

À primeira prova escrita será conferida nota de 0 (zero) a 10 (dez). A segunda prova escrita, por sua, vez, valerá 9 (nove) pontos. O último 1 (um) ponto rema-nescente da segunda prova corresponde à nota de participação.

A nota de participação, por sua vez, é composta de duas avaliações. A primei-ra metade da nota de participação (0,5 ponto) corresponde à efetiva participação do aluno durante o curso. A outra metade da nota de participação (0,5 ponto) é calculada através da participação do aluno na WikiDireito, com a inserção de novos conteúdos ou a alteração de conteúdos previamente inseridos por tercei-ros, e de eventuais respostas dadas pelo aluno quando perguntado em sala sobre o texto de leitura obrigatória da respectiva aula.

A média do aluno será obtida mediante a soma da nota da primeira prova com aquela obtida na segunda prova, acrescentando à última a complementação consistente na nota de participação, sendo o resultado posteriormente dividido por dois.

Média Final = Primeira prova (10) + Segunda prova (9,0) + Participação (1,0)2

O aluno que obtiver nota inferior a 7 (sete) e superior ou igual a 4 (quatro) pontos deverá fazer uma prova final. O aluno que obtiver nota inferior a 4 (qua-tro) pontos estará automaticamente reprovado na disciplina, ficando em depen-dência para o próximo semestre.

Para os alunos que fizerem a Prova Final, a média de aprovação a ser alcança-da é 6 (seis) pontos, a qual será obtida conforme fórmula constante no Manual do Aluno / Manual do Professor.

nota dE participação

A nota de participação divide-se em duas avaliações distintas, conforme já mencionado. A primeira avaliação que compõe a nota total de 1 (hum) ponto é a efetiva participação do aluno na disciplina.

A “efetiva participação” aqui avaliada não corresponde à quantidade de in-tervenções feitas pelo aluno em sala de aula, mas, sim, à qualidade de eventuais intervenções, o interesse demonstrado pela matéria, o questionamento dos co-nhecimentos apresentados pelo professor e a presença constante em sala de aula.

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Esses são os principais fatores que determinam essa primeira metade da nota de participação.

O aluno que atender integralmente a esses requisitos terá 0,5 ponto na nota de participação.

A segunda metade da nota de participação consiste na participação do aluno na WikiDireito e/ou na(s) resposta(s) apresentada(s) pelo aluno quando indaga-do pelo professor sobre o texto de leitura obrigatória para a aula. Toda aula terá pelo menos um texto de leitura obrigatória. É certo que os sentidos são traiçoei-ros, já dizia Descartes, mas o texto de leitura obrigatória é exatamente tudo isso que o nome indica: a sua leitura é obrigatória.

Dessa forma, o professor poderá perguntar para o aluno durante a aula al-guma questão relacionada ao texto. O professor deverá considerar que o aluno leu o texto, uma vez que a sua leitura está indicada no material didático. Essa medida visa solucionar o recurso por vezes utilizado de apenas ler o texto cor-respondente à certa aula depois de a mesma ser lecionada pelo professor. Pode parecer para o aluno que assim procedendo ele terá uma compreensão melhor do texto. Todavia, no método participativo, um aluno que não leu o texto perti-nente à aula é um aluno que poderá ter dificuldades em participar efetivamente, seja perguntando ou simplesmente compreendendo o conteúdo da aula.

Adicionalmente, é importante lembrar que a aula lecionada pelo professor representa a leitura feita pelo mesmo do texto recomendado. Ainda que a leitura do professor esteja apoiada em estudos mais aprofundados, nada impede que o aluno, ao tomar contato com o texto antes da aula, perceba outros pontos, tenha outras dúvidas ou perplexidades que o próprio professor não teve quando tomou contato com o texto. O intercâmbio de experiências de leitura é uma das carac-terísticas mais importantes dessa disciplina, pois auxilia o professor a identificar e suprimir as eventuais dificuldades de leitura encontradas pelos alunos. Sendo assim, o aluno que não lê o texto antes da realização da aula fica – voluntaria-mente – alijado dessa particularidade do estudo jurídico. E, em nota de teor mais prático, ainda corre o risco de perder 0,5 na avaliação.

Ao desempenho do aluno na(s) resposta(s) da(s) questão(ões) formuladas e/ou sua participação na WikiDireito será conferido até 0,5 ponto, compondo assim até 1 (hum) ponto na nota de participação. Essa nota de participação complementa o grau obtido na segunda prova, conforme visto no item anterior. O somatório das notas obtidas na segunda prova e na participação pode alcançar o total de 10 (dez) pontos.

prova Escrita

Duas provas escritas serão realizadas durante o semestre. A primeira valerá 10 (dez) pontos e a segunda, 9 (nove) pontos.

O aluno poderá consultar a legislação pertinente para elaborar as suas res-postas. Salvo alguma necessidade especial, a Constituição Federal e o Código

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Civil, com sua legislação complementar, deverão ser suficientes para que o aluno possa realizar a prova. Salvo orientação distinta por parte do professor, não será permitida a consulta à legislação comentada durante a prova. A mesma proibição vale para os códigos anotados cujas anotações transcendam a simples remissão a outros dispositivos legais, como ocorre na obra Código Civil e Legislação em Vigor, elaborado por Theotonio Negrão.

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SéRGIO vIEIRA BRANCO JÚNIORProfessor de direito da graduação e da pós-graduação na fgv direito rio. líder de Projetos do Centro de tecnologia e sociedade da fgv direito rio. doutorando e mestre em direito Civil pela universidade do estado do rio de Janeiro – uerJ. autor do livro “direitos autorais na internet e o uso de obras alheias”. ex-Procu-rador-Chefe do instituto nacional de tecnologia da informação – iti. ex-profes-sor de direitos autorais da uerJ. especialista em Propriedade intelectual pela Pontifícia universidade Católica do rio de Janeiro – PuC-rio. ex-Coordenador de desenvolvimento acadêmico do Programa de Pós-graduação da fgv direito rio. trabalhou por mais de 5 anos em escritório no rio de Janeiro. graduado em direito pela universidade do estado do rio de Janeiro – uerJ.

LIGIA FABRIS CAMPOSCoordenadora do núcleo de Práticas Jurídicas da fgv direito rio. mestre em di-reito pela Pontifícia universidade Católica do rio de Janeiro – PuC-rio. graduada em direito pela Pontifícia universidade Católica do rio de Janeiro – PuC-rio.

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FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGv DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Fernando PenteadoviCe-diretor administrativo

Luís Fernando SchuartzviCe-diretor aCadÊmiCo

Sérgio GuerraviCe-diretor de PÓs-graduaçÃo

Luiz Roberto AyoubProfessor Coordenador do Programa de CaPaCitaçÃo em Poder JudiCiÁrio

Ronaldo LemosCoordenador do Centro de teCnologia e soCiedade

Evandro Menezes de CarvalhoCoordenador aCadÊmiCo da graduaçÃo

Rogério BarcelosCoordenador de ensino da graduaçÃo

Tânia RangelCoordenadora de material didÁtiCo

Ana Maria BarrosCoordenadora de atividades ComPlementares

vivian Barros MartinsCoordenadora de trabalHo de ConClusÃo de Curso

Lígia Fabris e Thiago Bottino do AmaralCoordenadores do nÚCleo de PrÁtiCas JurÍdiCas

Wania TorresCoordenadora de seCretaria de graduaçÃo

Diogo PinheiroCoordenador de finanças

Milena BrantCoordenadora de marKeting estratÉgiCo e PlaneJamento