direito a o trabalh o · 2020. 4. 15. · internacional do trabalho armou-se (desde 1919) como...

3
Direito ao Trabalho Hermes Augusto Costa Publicado em 2019-04-01 Enquanto atividade associada à produção de bens, prestação de serviços e desempenho de tarefas, o trabalho constitui um valor central das sociedades, tanto em termos económicos, como identitários, simbólicos ou psicológicos. Nos países do Norte – em resultado das transformações associadas à Revolução Industrial – ao direito ao trabalho juntar-se-ia um direito do trabalho agregador de direitos: redução do horário de trabalho; proteção contra despedimentos; melhoria de condições de trabalho; aumentos de salários; férias; subsídios; repouso; igualdade de género, etc. Por sua vez, no plano internacional (sobretudo europeu), a Organização Internacional do Trabalho armou-se (desde 1919) como “guardiã” de uma agenda para o mundo do trabalho, onde o “trabalho digno” ocupa um lugar central. Com o acentuar da crise económica e austeridade social dos últimos anos – e tendo ainda o Norte como referência (em particular a periferia da zona euro) –, o “fator trabalho” conheceu evidentes sinais de retrocesso, testemunhado pelo recurso a modalidades de trabalho precário: o trabalho a tempo parcial, o trabalho temporário, a contratação a termo, a precariedade induzida pelo Estado, etc. E o que dizer do direito ao trabalho no Sul global? Alguma vez “contou” verdadeiramente para as estatísticas dos países do Norte? Ante a ausência de processos de regulação laboral internacional capazes de garantir padrões laborais mínimos, uniformes e emancipatórios, tanto dentro do Norte como do Sul, e sobretudo entre o Norte e o Sul, como perspetivar o direito ao trabalho a partir das epistemologias do Sul? Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm] Dicionário Alice PT EN ES Destaque Semanal Pan-Africanism Pan-Africanism refers to the conviction that all Africans and descendants of Africans in the diaspora share a common history, common interests and, ultimately, a common fate which thus(...) Jihan El-Tahri

Upload: others

Post on 19-Nov-2020

2 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: Direito a o Trabalh o · 2020. 4. 15. · Internacional do Trabalho armou-se (desde 1919) como “guardiã” de uma agenda para o mundo do trabalho, onde o “trabalho digno” ocupa

  

Direito ao TrabalhoHermes Augusto Costa

Publicado em 2019-04-01

Enquanto atividade associada à produção de bens, prestação de serviços e desempenho de tarefas, o trabalhoconstitui um valor central das sociedades, tanto em termos económicos, como identitários, simbólicos oupsicológicos. Nos países do Norte – em resultado das transformações associadas à Revolução Industrial – aodireito ao trabalho juntar-se-ia um direito do trabalho agregador de direitos: redução do horário de trabalho;proteção contra despedimentos; melhoria de condições de trabalho; aumentos de salários; férias; subsídios;repouso; igualdade de género, etc. Por sua vez, no plano internacional (sobretudo europeu), a OrganizaçãoInternacional do Trabalho a�rmou-se (desde 1919) como “guardiã” de uma agenda para o mundo do trabalho,onde o “trabalho digno” ocupa um lugar central. Com o acentuar da crise económica e austeridade social dos últimos anos – e tendo ainda o Norte comoreferência (em particular a periferia da zona euro) –, o “fator trabalho” conheceu evidentes sinais de retrocesso,testemunhado pelo recurso a modalidades de trabalho precário: o trabalho a tempo parcial, o trabalhotemporário, a contratação a termo, a precariedade induzida pelo Estado, etc. E o que dizer do direito ao trabalho no Sul global? Alguma vez “contou” verdadeiramente para as estatísticas dospaíses do Norte? Ante a ausência de processos de regulação laboral internacional capazes de garantir padrõeslaborais mínimos, uniformes e emancipatórios, tanto dentro do Norte como do Sul, e sobretudo entre o Norte eo Sul, como perspetivar o direito ao trabalho a partir das epistemologias do Sul? 

Mário Vitória (2015) Num cruzamento é sempre necessária uma passadeira [tinta da china e acrílico s/papel, 50x65cm]

Dicionário Alice

PT EN ES

Destaque Semanal

Pan-AfricanismPan-Africanism refers to the conviction that allAfricans and descendants of Africans in the diasporashare a common history, common interests and,ultimately, a common fate which thus(...)

Jihan El-Tahri

Page 2: Direito a o Trabalh o · 2020. 4. 15. · Internacional do Trabalho armou-se (desde 1919) como “guardiã” de uma agenda para o mundo do trabalho, onde o “trabalho digno” ocupa

Uma resposta, mesmo que parcial, a estas interrogações suscita uma re�exão em torno de três pontos. Taispontos convocam-nos tanto para formas de trabalho praticadas no Sul global, com para franjas subalternas dosmercados de trabalho do Norte. Primeiro: Ainda que uma postura anti-capitalista (um dos princípios em que assentam as epistemologias do Sul)constitua uma matriz fundadora das principais organizações que historicamente defenderam os interesses domundo do trabalho (os sindicatos), a soma de esforços conducente a essa postura acabou por revelar-seduplamente seletiva. Por um lado, porque tais organizações acabaram por proteger sobretudo os interesses dequem podia aceder a um mercado formal de trabalho. Por outro lado, porque ainda que a norma a seguir(porventura de modo mais eloquente nos países do Norte) seja a valorização do trabalho formal, isso nãosigni�ca que se coloque uma esponja sobre muitos milhões de cidadãos que, no Sul global, têm no trabalhoinformal a sua única fonte de subsistência. Daí a necessidade de um esforço redobrado de atenção, como o queé dedicado por organizações como a Self Employed Women’s Association em Gujarat (na Índia). Segundo: Enquanto “passaporte teórico” para uma inclusão sociopro�ssional de cidadãos, o direito ao trabalhodeve ser sinónimo de liberdade e autonomia. Daí ser tão crucial defender o direito ao trabalho de adultosquanto garantir o direito ao não trabalho de crianças. O facto de o combate ao trabalho infantil não constituirpropriamente uma prioridade nos países do Norte (por já ter sido debelado na maioria deles), não pode serpretexto para que esse combate no Sul se deixe de fazer com intensidade, muito em especial por parte dasorganizações de direitos humanos. Ou não fossem as múltiplas formas de trabalho infantil (nas minas, nasfábricas, ou em resultado de exploração sexual, etc.) a expressão mais acabada da negação do direito aotrabalho. O facto de não existirem quadros legais e práticas culturais uniformes que garantam um tratamentoigualitário aos direitos das crianças no Norte e no Sul não pode ser motivo para que os países do Norte fechemos olhos a uma realidade que porventura já não consideram sua. Terceiro. Os movimentos de populações do Sul para o Norte são também uma ilustração do tratamentodiferenciado para todos aqueles que, fugindo de guerras, da fome ou de catástrofes, anseiam por direito aotrabalho no Norte. Em países como a Alemanha, França, Reino Unido ou Estados Unidos da América, entreoutros, a criação de sinergias entre organizações sindicais e organizações comunitárias a�gura-se crucial parapressionar governos e opinião pública sobre a necessidade de elevar os patamares de dignidade no acesso aotrabalho de comunidades imigrantes. Tantas vezes afetados pela escassez de recursos económicos, sociais,culturais ou políticos, os trabalhadores imigrantes, porque “sem papéis”, veem o seu “direito” ao trabalho serpreenchido em atividades como serviços de limpeza, lavadores de carros ou vendedores de rua. Estas e muitasoutras atividades mostram como o direito ao trabalho em países do Norte por parte de cidadãos do Sul seprocessa pela “porta pequena”. Por vezes mesmo sobrepostas, as três formas de trabalho – informal, infantil e imigrante – são apenas umapequena amostra do que pode distinguir o direito ao trabalho no Sul e no Norte, ou mesmo dentro do Nortemais desenvolvido face ao Norte menos desenvolvido. E ao mesmo tempo permitem ilustrar que não pode sermais importante recuperar o retrocesso civilizacional no Norte (i.e., a perda de direitos outrora conquistados) doque construir avanços civilizacionais no Sul (ou sobre o Sul que habita no Norte), em nome de princípios dedignidade humana que, enquanto pedra angular do direito ao trabalho, são recorrentemente silenciados. Odireito ao trabalho signi�ca, pois, também lutar contra essa produção de não existência que recai sobre o Sulglobal.  Referências e sugestões adicionais de leitura:Adler, Lee H.; Tapia, Maite; Turner, Lowell (eds.) (2014), Mobilizing against inequality. Unions, immigrant workers,and the crisis of capitalism. Ithaca: Cornell University Press.Chabanet, Didier; Royall Frédéric (eds.) (2014), From silence to protest. International perspectives on weaklyresourced groups. Farnham: Ashgate.Mosoetsa, Sarah; Williams, Michelle (2012), Labour in the global south: Challenges and alternatives for workers.Geneva: International Labour Of�ce.  Hermes Augusto Costa é Sociólogo, Professor da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra einvestigador do Centro de Estudos Sociais. Tem investigado e publicado em múltiplas vertentes do mundo do

Page 3: Direito a o Trabalh o · 2020. 4. 15. · Internacional do Trabalho armou-se (desde 1919) como “guardiã” de uma agenda para o mundo do trabalho, onde o “trabalho digno” ocupa

trabalho e das relações laborais. É cocoordenador do Doutoramento em Sociologia: Relações de Trabalho,Desigualdades Sociais e Sindicalismo. Como citarCosta, Hermes Augusto (2019), "Direito ao Trabalho", Dicionário Alice. Consultado a 27.05.19, emhttps://alice.ces.uc.pt/dictionary/?id=23838&pag=23918&id_lingua=1&entry=24261. ISBN: 978-989-8847-08-9