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  • 7/29/2019 Direco nica

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    Jos de Almada Negreiros

    Direco nica

    Conferncia realizada em 9 de Junho de 1932 em Lisboa,no Teatro Almeida Garrett,

    actual D. Maria II, escrita em Abril desse ano

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    A

    Jos Lus Durn de Cottes

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    Minhas Senhoras e meus Senhores:

    Direco nica so as duas palavras postas ao lado uma da outra para indicar o

    nico caminho por onde deve seguir toda a gente.

    E, para que no haja confuses possveis, encontramos pelas esquinas e

    encruzilhadas uns discos pintados de encarnado, servindo de fundo e chamariz a umas

    letras brancas que dizem claramente, para quem quer que seja, e at para os cegos e para

    os analfabetos: direco proibida.

    Ora, as direces proibidas no nos interessam absolutamente nada.

    No quer isto dizer que vamos desprezar esses discos das direces proibidas e

    desobedecer s suas ordens dadas to visvel e intimativamente para todos sem excepo.

    No senhor, no nada disso.

    Pelo contrrio: at lhes agradecemos de todo o corao a esses avisos to bem

    postos a nos seus lugares, que ningum pode vir depois com desculpas de no ter sido

    avisado a tempo.

    A ns no nos interessam as direces proibidas pela simples razo de que s nosimporta a direco nica.

    Temos todo o nosso tempo muito certinho muito bem contado, e o justo para

    podermos seguir em linha recta pela direco nica.

    Se nos enganssemos e fssemos por qualquer descuido ou capricho nosso por

    alguma das muitssimas direces proibidas que nos aparecem a cada passo, a cada

    esquina, a cada momento, em todas as encruzilhadas, arriscvamo-nos a no chegar a

    horas ao fim da nossa viagem, que como quem diz, ao fim destas linhas que V. Ex. as to

    amveis, esto escutando com tanta ateno.

    Mundus a Domino constitutus est.

    Mundo autem condito, homo factus

    est.

    Viro Admus, mulieri Eva nomen

    fuit.

    Sulpcio Severo

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    A direco nica no assim uma coisa to recente como toda a gente o pode

    imaginar primeira vista. Muitssimo antes de haver automveis, carruagens e carroas,

    muitssimo antes mesmo de ter sido inventada a prpria roda, j havia no mundo a

    direco nica.

    Ela data j daquele dia memorvel em que Deus, depois de ter criado o Mundo, deu

    a alternativa ao Homem.

    Mas entre Deus e o Homem h uma diferena dos diabos.

    Entregou Deus ao Homem o nosso planeta inteirinho, com todas as suas

    maravilhas, com todo o esplendor de todas as suas mltiplas fortunas, e ao confiar-lhe

    desta maneira todas as riquezas da terra, disse-lhe:

    - Toma para ti, tudo isto tem uma direco nica.

    E levou ao mximo a sua lealdade de Deus para com o Homem, avisando-o como

    bom e verdadeiro amigo, de que havia tambm direces proibidas e, por conseguinte,

    que tivesse muito cuidadinho com elas.

    Mas contemos exactamente como as coisas se passaram:

    Comecemos exactamente pelo princpio. Pois ao princpio no havia nada. Mas

    mesmo o que se chama nada. E sete dias depois j estava feito tudo. Mas mesmo o que se

    chama tudo.

    E tudo isto que levou sete dias a fazer foi tudo feito expressamente para umapessoa s.

    Foi esta, minhas senhoras e meus senhores, a primeira vez que uma pessoa se viu

    sozinha neste mundo.

    Era um homem. Um pobre homem.

    Fazia d v-lo ali sozinho, metido no meio de todas as riquezas do mundo. Tudo

    aquilo s para ele e para mais ningum. Pois se havia s ele em todo o mundo!

    H-de haver muita gente a quem faa inveja uma situao to desafogada como

    esta, contudo foi esta a primeira desgraa humana que houve no Mundo. Todas asriquezas da Terra no eram o bastante para que ele no casse na tristeza do isolamento,

    na angstia da solido, nesse infernoverdadeiro ao ar livre.

    Mas Deus reparou logo nessa sua falta e emendou a mo.

    Logo que apanhou o homem a dormir, viu que lhe tinha posto uma costela a mais.

    E que no lhe fazia mesmo falta nenhuma como se provou logo a seguir. E vai Deus

    tirou-lha.

    Neste momento o homem acordou e pronto, j estava acompanhado!

    J eram duas as pessoas que havia em todo o mundo!

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    No eram completamente iguais uma outra. Havia umas pequenas diferenas.

    Enfim, h palavras para dizer exactamente essas diferenas: homem e mulher.

    Duas pessoas, duas!

    Feitas ambas para se pertencerem uma outra, para que no se aborrecessem para

    a sozinhos, para que no andasse cada um perdido no mundo sem saber o que fazer com

    todas as riquezas da Terra.

    E ento Deus disse com os seus botes.

    No h dvida! Eu no tinha criado o mundo para uma pessoa s. Tinha-me

    esquecido disso mesmo. Os seres isolados no participam da vida. So seres isolados. Fora

    do conjunto. Longe de tudo. A parte da prpria vida.

    E j estamos no dia oito do mundo. E quando em todo o mundo no h seno duas

    pessoas, a que estas so precisamente um homem e uma mulher, no h perigo de haver

    engano: foram feitos um para o outro.

    Mas Deus, que v muito mais longe que as pessoas, no havia maneira de se

    esquecer daquele horroroso espectculo que oferece uma pessoa quando est sozinha

    neste mundo, e ento tomou as suas precaues para que aquilo no se tornasse a repetir.

    E fez ento a mulher para que fossem duas pessoas e uma nica combinao entre elas.

    Pensava, claro; tambm nos outros homens e nas outras mulheres que viessem

    depois destes dois. E as suas contas estavam lindamente feitas:Uma mulher e um homem so duas pessoas, mas s so dois quando no tm nada

    que ver um com o outro. Por conseguinte mais verdadeiro dizer que os dois so uma

    coisa s, nica, um par.

    Foi esta a condio que Deus ps a todos os que entrassem no Paraso Terrestre

    para gozarem todas as riquezas da Terra: que viessem aos pares, que fossem sempre

    juntinhos os dois, como os pombinhos, como as cegonhas, como os elefantes, como os

    cavalos, como os burros, ambos ao mesmo tempo por toda a parte, sem ter cada um nada

    que pensar em si-prprio, sendo-lhes apenas consentido pensarem nos dois ao mesmotempo. Numa palavra: a direco nica.

    A direco nica era os dois ao mesmo tempo. E as direces proibidas cada um

    para seu lado.

    E repetimos: queria Deus com estas advertncias fazer todo o possvel para apagar

    de vez na face da terra aquele espectculo horroroso de ver uma pessoa isolada no meio

    do mundo. Cortou-lhe o corao aquilo e agora tomava as suas medidas para que no

    tornasse a repetir-seper omnia secula seculorum. men.

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    Mas como dizemos, tomava apenas as suas medidas, as suas, e eles que fizessem

    como lhes parecesse melhor.

    E assim foi que Deus fez o homem e a mulher semelhantes um ao outro, mas de

    caracteres opostos, antagnicos; de naturezas independentssimas cada um deles,

    acrrimos disputadores da igualdade no par, inimigos do sexo alheio mas irresistivelmente

    atrados um pelo outro, inseparveis de verdade, e condenados para sempre fatalidade da

    sua nica unidade comum.

    Por outras palavras, fez Deus do homem e da mulher dois animais selvagens que

    no podem ser domados isoladamente. Fez o isolamento ainda pior -do que era, tornou a

    solido ainda mais amarga do que devia ser e indicou a direco nica da colaborao

    entre ambos: 1+1=1.

    Mas por causa das dvidas, e no estando completamente seguro dos resultados por

    causa deles, no fossem eles estragar-lhe a sua obra, (Deus sabe muito bem e que faz),

    arranjou as coisas de tal maneira que a Humanidade se multiplicasse e continuasse pelos

    sculos ainda mesmo naqueles casos em que no fosse possvel o entendimento entre a

    mulher e o homem.

    Isto , a direco nica haveria de ser eternamente a mesma, ainda que em toda a

    Histria da Humanidade no se fizessem seno disparates.

    Tudo o que se est contando passou-se nos primeiros dias do mundo sombra deuma rvore. E daqui vem porem agora todas as culpas rvore. Chamam-lhe a rvore do

    bem e do mal. Pois sim, agora chamem-lhe nomes! desta maldita mania que temos de

    pr sempre a culpa aos outros. E quando, como nesse dia no h mais ningum a quem se

    possa pr as culpas, pomo-Ias ao que est mais mo, rvore!

    Mas a verdade do que se passou a seguinte:

    O par... Ah! agora me lembro de como se chamavam os dois: Ado e Eva!

    Pois este par andou por toda a terra, pelas cinco partes do mundo, o qual por esse

    tempo era todo conhecido e no tinha ainda nenhum pedao por descobrir; conheceu egozou todas as maravilhas, todas as fortunas,

    todas as riquezas, todas as infinitas felicidades que Deus deitou ao Mundo, at que

    um dia, dia maldito na Histria do nosso planeta, depois de j terem feito o que lhes

    estava permitido fazer, j no tinham mais novidades do que aquelas que eram as

    proibidas.

    Oh curiosidade! Oh apetite!

    E claro est tambm fizeram o que era proibido.

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    Dizem que foi ela quem comeou, mas fosse qual fosse, isso secundrio, o

    importante que acabaram os dois.

    E ento foi o diabo!

    Desde esse momento escangalhou-se tudo. Tudo! E foi-se por gua abaixo a

    primeira colaborao que se fazia no mundo.

    Cada um para seu lado, cada um no seu isolamento, cada qual na sua solido.

    Exactamente como se em vez de um houvesse dois mundos iguais e uma pessoa s para

    cada mundo.

    Era o castigo de Deus. Cumpria-se pontualmente naquele instante em que eles

    saram da direco nica e meteram por outras proibidas.

    Desde esse mesmo instante todas as coisas deste mundo perderam o seu nico

    sentido e ficaram com vrios, um nico bom e todos os outros maus, dificlimo de

    distinguir os maus do bom, parecidssimos todos, uma trapalhada.

    Foi este o pecado mais original que se fez no mundo at hoje. To original que

    aqueles que no puseram para a nem prego nem estopa tambm pagam as mesmssimas

    favas que os verdadeiros culpados.

    E agora sim que no mania pormos as culpas aos outros. Foi por culpa deles! por

    culpa desses dois curiosos de direces proibidas! por causa dessa senhora e desse

    cavalheiro! por culpa desses dois caloiros da humanidade, nunca mais ningum soube nomundo at hoje como se fazem as coisas espontaneamente.

    E porque j no sabemos fazer as coisas ao natural, no temos mais remdio agora

    do que aprendermos a faz-las com tcnica.

    O que V. Ex.as acabam de ouvir nem mais nem menos do que a maneira como

    comea a Histria do Mundo. Estamos seguros de que absolutamente nenhum dos

    mortais ignora estas coisas. Por isso mesmo as escolhemos. Para que a novidade no fique

    pela anedota mas sim no seu verdadeiro e nico sentido.

    To-pouco aqui cabem as opinies. A maneira como comeou o mundo e ahumanidade uma, e no chegam at l as opinies particulares de quem quer que seja,

    inclusive as dos sbios.

    A maioria das pessoas julga que a novidade est no material que se emprega para o

    que seja, quando afinal o material empregado no serve seno de veculo para pr a claro

    o sentido nico e puro dessa novidade.

    Por isso escolhemos esta histria conhecida de todos. E tambm porque ela no

    consente nenhuma espcie de divergncia nos comentrios. De modo que estamos

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    obrigados, quer o queiramos ou no, e encontrar aqui o seu verdadeiro e nico sentido

    que est arrecadado na Histria, ou seja, neste caso, a prpria experincia da Humanidade.

    Pedimos a V. Ex.as a fineza de repararem em que a Histria da Humanidade comea

    exactamente por um fracasso, o fracasso da primeira colaborao entre pessoas.

    Ao primeiro homem e primeira mulher no lhes bastou terem por sua conta todo

    o Paraso Terrestre, completo. Ainda quiseram mais do que ter tudo. Ah! no h dvida

    nenhuma de que ambos eram muito humanos!

    Por outro lado, ele tinha l as suas ideias, suas dele, e ela tinha as dela, suas dela.

    Pagavam-se na mesma moeda.

    Mas ideias que eram de ambos ao mesmo tempo, essas que eram as nicas dos dois,

    essas que eram a prpria direco nica, foram-se pelas direces particulares, pelas

    direces proibidas. Palavra de honra que at parece que eram portugueses!

    E os seus filhos l saram tambm aos pais.

    Caim e Abel no querem nada a meias. Ou tudo para Caim, ou tudo para Abel.

    E, continuem reparando V. Ex.as o fracasso da colaborao entre pessoas prossegue

    na Histria da Humanidade, de pais para filhos, hereditrio o fracasso, e vai de mal para

    pior, porque Caim j no pode aguentar tamanho desentendimento com o mano e tem de

    matar Abel.

    E se o no mata, seria Abel quem mataria Caim. O essencial era que desaparecesseum deles. No importa qual dos dois. O insuportvel que haja dois. Dois estorvam-se

    um ao outro, necessrio que fique s um. No importa qual deles.

    A humanidade no compreende isto de que cada um seja como , a no ser o

    prprio que assim o pensa, mas este quer por fora que todos sejam como ele.

    E aqui temos uma famlia desgraada: o pai e a me no se entendem, os filhos

    saem aos pais, e com esta desgraada famlia comeou a Humanidade.

    Comeou e continuou e ainda c estamos na mesma, graas a todas civilizaes que

    nos fizeram andar vestidos cada uma da sua maneira e graas a Deus tambm.E agora vamos l a saber uma coisa:

    O que diriam V. Ex.as se lhes dissssemos que esta famlia nunca existiu?

    E sabeis porque no existiu? Porque um smbolo.

    Como quereis que a humanidade tenha podido guardar at os nomes prprios do

    primeiro homem e da primeira mulher que viram este mundo? No vedes que isto tudo

    feito com a imaginao e a tradio oral? metade sonhado e metade vivido! Isto , um

    smbolo. Uma criao da Arte. Poesia pura. Verdade por cima da realidade. Tragdia

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    autntica. A tragdia do Mundo. A prpria tragdia em pessoa. A prpria tragdia

    humana:

    A impossibilidade de pr a vontade de cada um onde h outras, onde esto todas as

    vontades do Mundo.

    Ado e Eva, e Abel e Caim, ainda no morreram, esto ainda aqui neste mundo, so

    os nossos nomes prprios, minhas senhoras e meus senhores.

    Na humanidade h pelo menos todas as maneiras de ser, de modo que o

    humanamente lgico deixar viver todas as maneiras de ser.

    Respeitemos a prpria realidade. No raciocinemos contra o prprio raciocnio:

    A individualidade um fenmeno espontneo, sem interveno do Homem, o

    prprio papel da natureza.

    Ao passo que o do Homem o que vem precisamente depois do da natureza e

    consiste em fazer relacionar-se entre si tudo o que de verdade independente e oposto.

    Isto , como se houvesse dois mundos metidos um no outro e ocupando o mesmo

    espao do que um nico: no primeiro mundo, o da natureza, a vida natural; e no

    segundo mundo, o da humanidade, a vida social.

    E tanto no mundo natural como no social a vida unnime, feita de todas as coisas

    e no sobeja nenhuma. E fora dessa unanimidade no h vida possvel; no h seno,

    isolamento, solido, pior do que a prpria morte, e morte antes de morte, e morte emvida.

    No nossa pretenso assustar V. Ex.as com palavras to antipticas a pensamentos

    to desusados como estes sobre a morte, a desgraa, a tragdia, o isolamento, a solido; j

    sabemos de antemo que V. Ex.as no querem saber de desgraas a que do o cavaquinho

    pelas tardes bem passadas, pelas boas piadas, pelas pessoas divertidas, ou por qualquer

    outra morfina que sem ser a autntica morfina tenha o mesmo efeito que a morfina; ns j

    sabamos isto tudo, mas, francamente, um espectculo que no nos agrada, que no vai

    com o nosso feitio, esse de entrarmos ns tambm para a bicha das pessoas que esto espera de que lhes chegue a vez de irem buscar mais lenha para se queimarem.

    Fomos instados pelas mais cavalheirescas pessoas da nossa terra para que

    trouxssemos aqui nossa gente alegria a rodos, coragem aos potes, tanksde felicidade,

    transatlnticos de entusiasmo, e a nossa resposta foi esta:

    Alegria sim. Faremos todo o possvel. Mas que no confundam a alegria com o riso.

    O riso a expresso das caveiras. E a alegria para os vivos, a coisa mais sria da vida!

    Alegria saber muito bem por onde se vai, ter a certeza de que o caminho o

    bom, que a direco a nica.

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    Rogamos portanto, a V. Ex.as que no vejam na palavra tragdia nada de trgico,

    desanimador, irremedivel, fatal, pelo contrrio, na prpria tragdia que est toda a

    claridade do Mundo.

    Hoje, neste admirvel sculo XX, herana legtima de todos os mais sculos da

    Histria, j no ficou por nenhuma parte nenhum mistrio com o qual se possa ainda

    meter medo do papo aos mais meninos. Hoje a claridade tal que cada palavra retoma o

    seu sentido nico, cada valor da terra regressa ntegro de todas as espcies da fantasia

    sua prpria essncia, tudo o que falso dura apenas a prpria falsidade, tudo o que

    provisrio serve apenas para isso mesmo, o que natural natural, o que sobrenatural

    sobrenatural, as coisas so o que so, tudo do seu verdadeiro tamanho, a prpria Terra

    descobriu por fim os seus prprios limites, e a tragdia parece-nos maior do que nunca

    porque o de verdade, porque a claridade jamais foi tamanha como hoje e mostra-nos

    completamente nua, sem disfarce, sem hipocrisias, sem mistrio e grande tragdia que

    afoga a humanidade.

    Hoje, neste admirvel sculo XX, trgico e alegre, a claridade tanta que podemos

    ver a imensidade da nossa prpria tragdia em toda a sua extenso e domnios, e ainda nos

    fica muita para tapar com ela de uma vez para sempre todas as direces proibidas, e

    depois sobra ainda o bastante para irmos abrindo o novo caminho da direco nica.

    Avisa-se o pblico de que esto espalhados por a uns restos podres que ficaram deontem, podres e fedorentos, intrujando os nossos sentidos porque sombra tm a

    fosforescncia dos fogos-ftuos, mas que so fogos-ftuos, no mistrio nenhum, e ao

    vir a claridade foi-se-lhes logo aquela luzinha mentirosa. Juramos que esto podres. De

    resto, cheiram que tresandam!

    Referimo-nos lealmente neste momento e alguns sbios (assim lhes chamam ainda

    os da sua laia) a que vm a pblico com uma autoridade, que ningum sabe como a tm

    nem quem lha deu, e dizem frases importantes e definitivas como estas:

    O individualismo morreu.Estamos na poca colectivista.

    Ora muito bem. Analisemos: Se eles dissessem: O indivduo no existe isso j era

    outro cantar, e estava certo, diziam uma grande verdade. Mas dizer: o individualismo

    morreu aceitar como definitivo, para sempre, esse facto. Ou ento, para fazer valer

    melhor apenas o que eles querem como seja, isto , a vitria do colectivismo.

    Ora, isto falso. Nem o individualismo morreu nem o colectivismo ganhou. Nem o

    individualismo pode morrer nunca nem o colectivismo pode jamais sair vencedor por

    esmagamento do individualismo.

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    Aqueles que to falsamente se julgam iluminados para cantar em pblico o

    colectivismo como nica soluo, das duas uma: ou no sabem o que dizem ou ento

    sabem-no muito bem. Se no o sabem so mopes, e se o sabem so de recear.

    Como se houvesse hoje alguma soluo separada de qualquer outra! Tudo so

    problemas determinados, cada problema tem a sua soluo, mas a nica, essa que o

    mundo inteiro unanimemente busca hoje nas cinco partes, a de cada problema

    relacionada com as de todos e a de qualquer outro.

    supinamente cmodo resolver uma complicao como o fazem os simplistas,

    excluindo todas as outras complicaes que no sejam aquela. Mas isso do que ns j

    estamos fartos. a isso mesmo o que se chama uma direco proibida. E a direco nica

    precisamente levar o que est por resolver. O indivduo, a famlia e a colectividade, no

    so trs caminhos diferentes, so um nico sentido, a direco nica. Se uma pessoa se

    mete apenas por uma dessas trs direces: O individualismo, a famlia ou o colectivismo,

    pode quando muito ser prestvel a qualquer das trs mas ficar exactamente na terceira

    parte do seu prprio caminho neste mundo. Isolar o que seja do prprio conjunto a que

    pertence tudo fazer disso mesmo uma direco proibida.

    No se pode separar absolutamente nada do que quer que seja. Todas as coisas se

    relacionam entre si. A prpria claridade s claridade porque existe de verdade a tragdia.

    Seno no fazia falta nenhuma a claridade e estaramos todos no Paraso Terrestre.Mas vm os simplistas, todos arranhados de cincia, e querem logo a todo o custo

    que a direco nica caiba por fora pelo cu de uma agulha. Ora a direco nica porque

    para todos. E a nica coisa que comum a toda a humanidade a prpria vida, o

    prprio mundo, no cabe pelo cu de uma agulha.

    No aleijemos a pobre humanidade mais do que ela j est com tantas sacudidelas

    da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para

    cima. Do individualismo para o colectivismo e do colectivismo para o individualismo.

    No sejamos to crianas que queiramos levantar ao ar e esfera pretendendo agarr-laapenas pelo hemisfrio da direita ou apenas pelo da esquerda, ou apenas pelo hemisfrio

    superior, porque a nica maneira de agarr-la bem to-pouco pr-lhe as mos por baixo,

    nem ainda abraando-a com os dois braos e os dedos metidos uns nos outros para no

    deixar escapar as mos e com o prprio peito do lado de c e ajudar tambm; a nica

    maneira de equilibrar a esfera no ar deix-la estar no ar como a ps Deus Nosso Senhor,

    s voltas roda do sol, como a lua roda de ns e assegurada contra todos os riscos dos

    disparates da humanidade.

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    No temos mais remdio do que ir aprender tecnicamente como funcionam estas

    coisas to naturais!

    O Mundo da Natureza o modelo dos modelos de todas as maquinarias, porque

    no havemos ento de acertar tambm o mundo social no seu prprio funcionamento

    como todas as outras mquinas do mundo?

    Actualmente comemora-se no mundo inteiro o centenrio da morte de um homem,

    o qual todos os povos das cinco partes so unnimes em considerar o mais universal dos

    Europeus. Chamava-se Goethe.

    Fixem bem V. Ex.as estes dois ttulos mximos de Goethe: Europeu e Universal.

    As suas duas obras principais, se que alguma pode ser a preferida ou separada da

    prpria vida do autor, so o Werther e o Fausto.

    Goethe um gnio. Ningum se arrisca a perder uma reputao de crtico ao

    afirm-lo. Est assente que o .

    E ento vejamos a obra mais conhecida do gnio no Werther e no Fausto.

    Goethe no conhece seno o indivduo. Para ele o indivduo o prprio espelho da

    humanidade inteira.

    Ao terminar o Werther faz suicidar-se o indivduo e ponto final.

    Depois vem o Fausto. Como natural, Fausto segue o caminho oposto ao do

    suicida. Canta a coragem de viver, canta a aco, sempre a aco, sempre a coragem deviver. o primeiro Fausto.

    Trinta e sete anos depois outra vez o Fausto, outra vez a aco, outra vez a coragem

    de viver.

    Fausto uma obra genial.

    Mas afinal talvez Werther tivesse tido mais razo em suicidar-se do que Fausto em

    teimar ir tanto para diante.

    Em resumo, dois desgraados: Werther e Fausto. E um gnio: Goethe.

    Bem feitas as contas sero trs os desgraados. Mas um deles, o autor, falou pelostrs, falou por toda a gente. No seu sculo to grande, to elevado, to luminoso, to

    invejvel, o indivduo era afinal to desgraado como em qualquer outra idade da Histria

    menos esclarecida do que aquela.

    O gnio no-lo revela na sua obra e com a sua prpria vida.

    Mas no se espantam V. Ex.as com estas coisas. Isto j no nenhuma novidade

    para ns. a eterna tragdia dos filhos de Ado e Eva. Desde o princpio do mundo que

    estamos todos condenados maior das desgraas humanas: o nosso prprio isolamento, a

    nossa prpria solido. Seja qual for o sculo em que fale o gnio, todos os gnios

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    coincidem no mesmo. E quanto mais a Terra se vai enchendo de gente, quanto mais a

    Humanidade se multiplica, maior se vai tornando ainda a solido de cada um dos seus

    indivduos.

    E hoje? Vejam a com os seus olhos: coitadinho do Charlot que no pra de

    vagabundear!

    Goethe, apesar da fama do seu nome em vida, apesar da sua vida de grande senhor;

    Goethe a quem o prprio Napoleo disse: vous tes un homme, monsieur Goethe!apesar da sua

    prpria natureza dotadssima, privilegiada, excepcional, robustssima, completa, genial;

    apesar de tudo, a sua vida um desastre. Um desastre completo, levado at ao fim.

    Goethe morreu velho. Um desastre herico levado dignamente at ltima, e com aquela

    verticalidade exclusiva do prprio Goethe.

    Ao filho de Goethe chamavam-lhe o filho da criada. O filho do gnio o filho da

    criada. Nunca ningum lhe chamou o filho do gnio!

    O gnio continuava efectivamente sozinho.

    E j no a primeira vez que o homem est sozinho no mundo.

    Por esse tempo nascia na Europa o Romantismo e era como uma libertao de

    todos os indivduos, de todos aqueles que tinham legitimamente a sua vida para viv-la, a

    hora dos Prometeus desencadeados.

    E curioso, isto s o podemos ver ns hoje, depois de passado um sculo, oRomantismo nascia na Europa ao mesmo tempo que na mesma Europa Goethe acabava

    de pr nessa mesma esquina do Romantismo o disco encarnado com as letras em branco:

    direco proibida.

    Era o mesmssimo beco sem sada onde Werther se tinha suicidado e donde Fausto

    no tinha podido sair, onde o ideal e a aco individuais estavam sepultadas para sempre.

    Nenhum outro homem mais prximo de ns foi mais justo e mais preciso do que

    Goethe pondo toda a claridade no caos da nossa prpria tragdia humana de isolados, de

    sozinhos. o verdadeiro gnio. Aquele que viu mais e melhor. E ento todos umaquiseram ver tambm, todos quiseram ver com os prprios olhos como o gnio, a

    entraram todos um por um, naquela direco proibida que j tinha sido tapada para

    sempre pelo prprio Goethe. E todos ficaram romnticos. Uns passaram a chamar-se

    Werther e outros Fausto. Uns suicidaram-se e aqueles que no se mataram ficaram sem

    uma gota de esperana. Sinceros todos.

    Goethe no tinha deixado ali por onde sair o indivduo. Ele tinha, na verdade,

    falado de uma maneira diferente daquela que o ouviram.

  • 7/29/2019 Direco nica

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    E depois ainda veio Nietzsche e quis tambm ele sozinho chegar at ao Homem! e

    mais para l tambm at ao Super-Homem, mas quem sabe? se calhar capaz de l ter

    chegado. Ns que j nunca mais soubemos nada dele. O pobre Nietzsche, de repente,

    ps-se a falar sozinho com a sua loucura.

    No vos assustais com esta Humanidade onde aqueles que no so annimos, e

    precisamente os mais conhecidos, so suicidas, desesperados, sozinhos ou loucos?!

    No! no vos assusteis, porque temos que ir ainda mais para diante. E se a alegria

    o que vs lealmente quereis e pedis, tende confiana que por aqui o caminho e j l

    chegaremos se Deus Nosso Senhor quiser.

    Falmos j muito de Goethe. Mas ele disse tantas coisas que sabe de cada um de

    ns, que no demais toda a nossa curiosidade a seu respeito.

    E na verdade, o seu gnio no se limitou a pr direces proibidas pelas esquinas e

    encruzilhadas. Alm disso, e aqui precisamente que ele foi o gnio, tambm marcou e

    magistralmente a direco nica.

    Permitam V. Ex.as uma pequena observao antes de seguirmos o nosso

    pensamento deste momento.

    A direco nica no uma soluo, infinitamente melhor do que uma soluo,

    uma direco, e a nica.

    Quanto mais aflita est a Humanidade mais se desespera procura de solues. Atse podia inventar este rifo: buscas soluo ests cheiinho de aflio.

    Ora aqui no nenhuma agncia de empregar a amigos e parentes e trata-se nem

    mais nem menos do que colocar a toda a gente, seja quem for, nos seus devidos postos

    neste mundo. Por isso mesmo a direco nica, porque para todos, o que , alis,

    como Deus manda.

    A diferena entre soluo e direco ser esta: a soluo sempre um remdio

    passageiro para disfarar a desgraa, ao passo que a direco a prpria dignidade posta

    nas mos do desgraado para que deixe de o ser, e a direco nica a garantia perptuadessa dignidade.

    E foi o que fez Goethe: Descobriu a direco nica. Artista, na verdadeira acepo

    da palavra; Artista aquele que precede a prpria cincia. Por isso Goethe afastou-se de

    quantas realidades irrealizveis onde costumam habitar instaladas as gentes. E impassvel,

    desde cima, assistiu ao desenrolar da tragdia. E viu o mundo inteiro por cima de todas as

    cabeas, e viu a Europa toda e com cada um dos seus pedaos, e viu cada indivduo da

    Humanidade como um pequenino astro tonto que nem sabe sequer ir na parbola da sua

    prpria trajectria, e viu que de todos os seres deste mundo o nico que errava o seu fim

  • 7/29/2019 Direco nica

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    era o Homem, o dono da Terra! e viu que era na Humanidade que estavam os nicos

    seres deste mundo que no cumpriam com o seu prprio destino, e finalmente viu! Viu

    com os seus prprios olhos o que ningum tinha visto antes dele. Viu pela humanidade

    inteira, viu por toda a Europa e viu por cada indivduo. E compreendeu o mundo, e

    concebeu uma Europa, e para todos os indivduos da Terra abriu de par em par a direco

    nica.

    Goethe, o gnio, universal, europeu e alemo.

    Goethe, o indivduo Goethe, tambm pertence a essas trs unidades, humana,

    europeia e alem, as quais trs so uma nica, a dele.

    Ns os Portugueses pertencemos Humanidade, Europa e a Portugal. No

    somos trs coisas distintas, seno uma nica, inteira, e nossa.

    Cada indivduo no pode chegar at si mesmo seno atravs dessas trs unidades a

    que pertence: o mundo, aquela das cinco partes do mundo onde est a sua terra, e a sua

    terra.

    A terra de cada indivduo no est limitada pelas legtimas fronteiras fsicas e

    polticas do seu prprio territrio, alm disso um pedao determinado de uma quinta

    parte do mundo inteiro.

    E o indivduo est to longe de si mesmo que para chegar at si tem primeiro que

    dar a sua volta ao mundo, completa, at ao ponto de partida.E todo aquele que queira encontrar dentro de si mesmo a sua prpria

    personalidade, ficar romanticamente sozinho no meio das multides, na mais terrvel

    solido de todos os tempos, uma solido onde o prprio deserto est cheio de arranha-

    cus e as ruas inundadas de gente!

    O indivduo nunca pertenceu a si mesmo. Pertence em absoluto sua colectividade.

    E a sua colectividade a sua prpria Terra e mais aquela das cinco partes do mundo onde

    est a sua terra e mais o mundo inteiro tambm.

    Mas que no se julgue por estas palavras que o indivduo h-de servir apenas deinstrumento sua prpria colectividade. No! nem vice-versa to-pouco. um jogo

    simultneo da colectividade para os seus indivduos e de cada indivduo para a sua

    colectividade.

    E se hoje o indivduo no existe, isto , se no tem nem pode ter aco prpria, no

    tal, de maneira nenhuma, porque a colectividade lhe tenha usurpado tambm o seu

    lugar, apenas porque ningum est capacitado da obedincia que deve a si prprio,

    apenas por ignorncia do que, justamente, ningum devia ignorar: o seu prprio destino

    neste mundo.

  • 7/29/2019 Direco nica

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    O destino no coisa que se saiba pelas sinas, nem obra do acaso, nem artes para

    adivinhos ou leitores de palmas de mo, nem nada que se modifique com caprichos da

    fatalidade. O destino de cada indivduo neste mundo est por cima do seu prprio caso

    pessoal.

    O nico procedimento para conhecer o destino de cada qual este: Vai-se buscar

    uma esfera terrestre. Faz-se dar voltas ao mundo, e quando passe diante de ns aquela das

    cinco partes em que se divide a geografia, e que nos parece a mais bonita, procura-se a

    com o dedo aquela terra que conhecemos como ningum e onde entendemos tudo o que

    l se diz e pronto, deixa-se ficar o dedo a. o dedo do Destino, e ns julgamos que

    com o nosso dedo que indicamos no mapa.

    E h seis milhes e meio de indivduos que puseram o dedo no mesmo stio. Seis

    milhes e meio de pessoas cujo destino o mesmo.

    E no mapa, exactamente nesse stio, est escrito: Portugal.

    E por cima de Portugal h um grande E, a primeira letra de uma palavra que

    comea em Portugal e que vai subindo para o Norte sempre em grandes letras, seis

    grandes letras, seis grandes letras que iluminam as cinco partes do mundo, seis grandes

    letras que juntam os povos mais independentes do mundo, at onde acaba a Rssia, que

    debaixo das seis grandes letras da Europa, aquela terra dos indivduos que ficam mais

    longe de Portugal.E aqui o destino nico de seis milhes e meio de indivduos neste mundo, aqui na

    Europa, aqui na Pennsula Ibrica, aqui no sul e aqui no Ocidente da principal das cinco

    partes da Terra.

    A Europa a me de numerosos filhos. E Goethe, o europeu, quem nos abre os

    olhos, para que tenhamos a conscincia uns dos outros, para que tenhamos vergonha de

    nos caluniarmos e de nos odiarmos.

    Para fazer uma Europa, necessrio uma Alemanha, um Portugal, uma Frana, uma

    Espanha, uma Inglaterra, uma Sua, uma Itlia e o resto. Ser necessrio tambm umasia, duas Amricas, uma frica, uma Austrlia, negros, vermelhos e amarelos para fazer,

    um dia, o mundo.

    Goethe, poderoso alemo, no pretende que a Europa seja alem, nem que a Frana

    ou a China o venham a ser alguma vez. Para que a Europa seja verdadeiramente ela

    mesma, necessrio que a Alemanha seja o mais alem possvel, a Frana o mais francesa

    que possa, a Espanha o mais espanhola, Portugal o mais portugus, Inglaterra a mais

    inglesa, e qualquer outra terra o mais ela prpria porque apenas nos seus superlativos, nos

    seus mximos, nos seus cmulos vivel o acordo, a colaborao entre os povos

  • 7/29/2019 Direco nica

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    independentes e bem contornados pelas fronteiras invulnerveis. (Goethe, Andres

    Suares.)

    A colectividade , qualitativa e quantitativamente, o conjunto de todos os indivduos

    que a formam. Mas que no nos sirva de atrapalhao tanta gente junta. Pelo contrrio: j

    c estamos, finalmente, no nosso caminho.

    A colectividade, apesar de ser o conjunto de todos os seus indivduos, funciona

    exactamente como um indivduo a mais. Assim como se no mundo houvesse toda a gente

    que existe e mais uma pessoa: esta pessoa seria exactamente todos num s. A

    colectividade tambm um indivduo, um indivduo como qualquer outro, mas o

    indivduo colectivo, na verdade colectivo e indivduo. Com a vantagem sobre qualquer

    outro de no estar sujeito, como ns, s vacilaes de um organismo mortal. A

    colectividade o indivduo imortal. Feito da mesma massa humana que qualquer de ns,

    os indivduos mortais.

    J c temos, por conseguinte, o modelo invarivel para os nossos actos individuais:

    a colectividade.

    Seno reparem V. Ex.

    as

    em como feito o nosso prprio corpo:Est formado por vrios rgos, distintos uns dos outros, e nenhum deles com vida

    prpria, ou melhor, dependente cada um deles da vida total e unnime do nosso

    organismo individual, isto , da unidade da qual faz apenas parte.

    Pois o indivduo no mundo exactamente como um dos nossos rgos no nosso

    prprio corpo. Ns no temos vida prpria. Dependemos da vida total e unnime do

    organismo colectivo, e de cuja unidade fazemos apenas parte; o que no pouco nem

    muito, seno o justo para cada um de ns.

    O indivduo e a colectividade so as duas nicas expresses humanas do mundosocial como o homem e a mulher so as duas nicas expresses humanas do mundo

    natural.

    E assim como a mulher e o homem esto condenados fatalidade da sua nica

    unidade comum, tambm acontece o mesmo, paralelamente, no mundo social com a

    colectividade e o indivduo.

    So unicamente quatro as expresses da humanidade: o homem, a mulher, a

    colectividade e o indivduo. Cada uma delas separadamente o prprio isolamento, a

  • 7/29/2019 Direco nica

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    autntica solido, a direco proibida. E todas as quatro juntas so exactamente a direco

    nica.

    Agora, neste momento, entramos decididamente no mundo social: a colectividade e

    o indivduo.

    Este assunto de uma actualidade desesperadora. Ou melhor, sejamos ainda mais

    claros, o nico assunto que preocupa o mundo inteiro.

    Artistas e cientistas, trabalhadores e desempregados, temos todos os olhos fixos

    nessas duas palavras que fazem estremecer hoje o mundo de alto a baixo: colectividade,

    indivduo.

    O indivduo no existe. um resto que ficou ainda de ontem. J no h nada mais

    do que o espao que ele ontem ocupava no seu lugar. E a colectividade? Tambm. um

    resto que ficou ainda de ontem. J no existe nada mais do que o lugar que ela ontem

    ocupava.

    No s o indivduo que no existe, hoje tambm no existe a colectividade. So

    apenas dois restos que ficaram de ontem.

    No existe nenhum deles por causa do outro. So inseparveis de verdade.

    Acabou-se o mundo antigo. Fica para a Histria. Hoje nasce o mundo outra vez,

    desde o princpio. No h absolutamente nada. Temos de fazer tudo outra vez: a

    colectividade e o indivduo. Esses dois valores iguais, recprocos, que dependem um dooutro a que isoladamente se suicidam por suas prprias mos.

    E esta, minhas senhoras e meus senhores, a grande tragdia da unidade: No h

    indivduos porque no existe a colectividade e no h colectividade porque no existem os

    indivduos.

    O mundo inteiro est sozinho. Cada pessoa vive isolada no meio das multides. As

    multides so formadas por indivduos, por numerosssimos indivduos isolados uns dos

    outros.

    As palavras caem perdidas no cho.Sozinhos todos. Ningum se entende. A humanidade inteira est reduzida solido

    de cada um dos seus indivduos.

    O mundo inteiro est dividido em tantos mundozinhos individuais, pequenssimos,

    microscpicos, quantos sos os seus habitantes.

    Mas aquele mundo da colaborao de todos, o nico mundo real afinal de contas,

    esse, j no existe. Veio cada qual roubar-lhe o seu pedacito e o mundo ficou feito em

    migalhas, reduzido a gros de areia, p, nada!

  • 7/29/2019 Direco nica

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    Vs, indivduos das cidades, e dos campos, vs, indivduos de todas as partes e que

    fazeis parte de todas as multides, respondei todos um por um:

    Com quem comunicas tu?

    No to perguntamos com quem tratas todos os dias, nem com quem falas, nem

    com quem vives, nem com quem dormes. Perguntamos-te unicamente com quem to

    entendes?

    Com ningum!

    Ests to sozinho no meio de toda a gente ou ainda mais do que se no houvesse

    no mundo mais ningum do que tu.

    E ainda no sabes de memria tudo quanto possa dizer-to toda a gente? Ainda no

    sabes de cor as vrias opinies do mundo inteiro?

    Ainda no sabes de cor a salteado todas as notcias de todos os jornais que se

    publicam diariamente, pela manh, tarde e noite, nas cinco partes da terra?

    Ainda no sabes de memria todas as novidades da ltima hora que nos traz a cada

    instante a rdio de todos os lados do mundo?

    E as que dir amanh, a depois de amanh, a daqui a um ano a sempre, sempre a

    mesma notcia para quem ainda no a saiba, sempre a mesma cantilena a buzinar-nos os

    ouvidos:

    S. O. S. perdidos, desencontrados, sozinhos! S. O. S. estamos todosdesencontrados, estamos todos sozinhos, perdidos todos! S. O. S. sozinhos! S. O. S.

    desencontrados! S. O. S. perdidos! S. O. S. ss! S. O. S. ss! S. O. S.

    S. O. S. o sinal internacional de telegrafia a pedir socorro.

    Est formado pelas trs iniciais da frase inglesa: Save Our Soules, que quer dizer

    em portugus: Salvai Nossas Almas.

    Estas trs letras S. O. S. so as mesmas com que se escreve em portugus o plural

    de indivduo isolado: Ss.

    Ns, que somos portugueses, somos por isso mesmo aqueles que menos podemosalegar a ignorncia dos valores recprocos da colectividade e o indivduo.

    Na Histria de Portugal, a primeira e a segunda dinastias so em todo o mundo um

    modelo exemplar da formao a funcionamento da colectividade. Na primeira dinastia

    funda-se a fixa-se a colectividade portuguesa. So estes os primeiros passos do indivduo:

    Tornar fixa na terra a sua prpria colectividade.

    Nessa dinastia temos como expresso mxima do indivduo da colectividade a El-

    Rei Dom Dinis, o primeiro portugus que j pode comear a cuidar em conjunto das

    nossas coisas colectivas. E o facto de fixar os quilmetros de areias com o pinhal de Leiria

  • 7/29/2019 Direco nica

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    o smbolo da vontade e constncia de uma colectividade que quer manter invarivel

    atravs dos sculos o seu prprio e nico perfil geogrfico.

    Smbolo imponente da realidade feita pelo povo que chega at aos dias de hoje, o

    decano das gentes da Europa nas suas fronteiras primitivas.

    Na segunda dinastia, a colectividade portuguesa para o mundo inteiro a prpria

    maravilha da mquina social. Cada indivduo da nossa terra tem o seu lugar determinado

    na nossa colectividade. E um deles chamar-se- Vasco da Gama, a ainda antes mesmo de

    ter realmente chegado a este mundo, j estava destinado pelos interesses comuns da

    colectividade portuguesa, para vir a ser o maior marinheiro do mundo!

    E no era outra diferente desta a razo por que houve gente tambm na Grcia

    Antiga. Era a de que havia uma Grcia Antiga. Era a de que havia uma Grcia, uma

    colectividade que criava os seus prprios indivduos.

    Felizes os tempos em que em Portugal cada portugus podia ter o seu prprio valor,

    porque a colectividade portuguesa tambm tinha o seu, a estava altura de si-mesma, e

    no se prejudicava a si-prpria nem aos seus indivduos!

    Felizes os tempos em que Portugal tinha a direco nica a era esta a nica maneira

    como cabiam aqui todos os mais diferentes dos Portugueses!

    Hoje o mundo do seu verdadeiro tamanho. Nem uma polegada a menos nem uma

    iluso a mais.Das cinco partes da Terra todos regressam aos territrios das suas prprias

    colectividades. O mundo est o mesmo por toda a parte. A realidade sempre a mesma

    em todos os lados do mundo. impossvel fugir da realidade. E quer queiramos ou no,

    hoje temos de ser todos profetas na nossa prpria terra.

    Acabaram-se as iniciativas particulares. Acabaram-se os caprichos dos viajantes

    isolados. Acabaram-se os gnios que cantavam chorando a solido dos indivduos. Hoje

    pedimos todos uma, a colectividade que nos represente, a colectividade a que temos

    direito, que ela mesma a nossa colectividade, o nosso prprio a nico direito vida.Queremos a colectividade portuguesa altura de si-prpria, vista de todos os lados

    da terra. Que cada portugus, dentro ou fora da nossa terra, seja o perfeito indivduo da

    nossa prpria colectividade.

    Estamos todos incondicionalmente ao lado da colectividade portuguesa passo a

    passo, egoistamente, como quem sabe exactamente o stio onde est a sua prpria vida de

    indivduo portugus.

    Exactamente neste momento terminaram as nossas palavras da direco nica.

    Fizemos todo o nosso possvel para que elas fossem a prpria alegria, a coisa mais sria da

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    vida. Se na verdade no o conseguimos, pedimos perdo a V. Ex.as por lhes termos feito

    perder esta meia hora do vosso tempo. Na certeza porm, de que o nosso desejo de

    colaborar na obra comum da direco nica leal, to leal que estamos seguros de no

    termos emitido nenhuma opinio pessoal nem nossa nem de outrem, a que apenas nos

    servimos dos prprios exemplos da Bblia, da Histria, dos gnios a dos clssicos para

    com estes factos conhecidos, aceites a consagrados estabelecer a ligao entre as distncias

    mais diferentes a longnquas da Humanidade, e podermos dizer com elas que a direco

    efectivamente nica para todos aqueles que a possam ver a tambm para os que no a

    virem nunca.

    Lisboa, Abril 1932.

    Jos de Almada Negreiros

    DIRECO NICA

    Conferncia realizada em Lisboa no Teatro Nacional de Almeida Garrett, a convite

    de Amlia Rey-Colao, repetida em Coimbra no Salo Nobre da Associao Acadmica, aconvite da revista Presena e editada pelas Oficinas Grficas UP de Lisboa

    Julho de 1932

    Fontes:

    Jos de Almada Negreiros, Direco nica, Lisboa, UP, 1932;

    Jos de Almada Negreiros, Obras Completas, 6: Textos de Interveno, Lisboa,Estampa,1972, pgs. 73 a 100;

    Jos Augusto Frana,Almada, o Portugus sem Mestre, Lisboa, Estudios Cr, [1974]