dinamica partidaria no brasil

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A DINÂMICA PARTIDÁRIA NO BRASIL 1 Márcio Nuno Rabat [email protected] Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados As discussões sobre reforma política – no Congresso Nacional e não só – giraram, ao longo de mais de duas décadas, ao redor da necessidade de se formar e consolidar, no Brasil, um sistema de partidos consistente. À percepção, bastante difundida, de que o país não dispunha de um sistema partidário “normal”, juntavam-se as idéias: a) de que a existência desse sistema (e dos partidos correspondentes) constitui o elemento central de um regime representativo funcional (ou, nas versões mais valorativas, de “uma democracia madura”); b) de que a legislação é um instrumento importante – talvez o mais importante - para que um sistema desse tipo seja alcançado (e a legislação eleitoral e partidária brasileira estaria demonstrando ser ineficaz para tal fim). Percebe-se, recentemente, que essa perspectiva, embora ainda ocupe um lugar central, tem perdido o relativo monopólio que detinha nas discussões sobre a reforma política. E novos temas – menos ligados à questão partidária - começam a ganhar peso nessa seara. Talvez a mudança reflita uma novidade da política eleitoral brasileira: embora de maneira ainda pouco perceptível, o sistema partidário existente começa a ganhar forma definida e, na medida em que se difunde a percepção dessa novidade, as atenções passam para outros problemas (até porque, simultaneamente, se percebe que muitas das questões que supostamente seriam resolvidas com a tal consolidação do sistema partidário, na verdade, são questões que transcendem essa esfera). Mas o que seria aquele sistema partidário desejado e – suponho – em vias de ser alcançado? A resposta é constrangedoramente simples. Um sistema partidário consolidado é, aqui, aquele que supostamente existe nos países que têm sistemas partidários consolidados. Suas características principais são exatamente as que o distinguem do nosso: as posições dos partidos no tabuleiro político eleitoral são claras, eles se relacionam com bases sociais bem delimitadas, o vínculo dos políticos com os partidos a que estão filiados é firme e tende a estender-se no tempo, etc. Além de certa idealização do que acontece com os partidos nos “países de referência”, esse esquema tende ainda a ser acompanhado pela noção de que outras “vantagens” desses países (como renda per capita e padrão de consumo elevados, índices sociais favoráveis em saúde, educação, etc) se explicam pela existência de um sistema de representação política adequado. E como se explica que o sistema vigente entre nós comece a dar sinais de consolidação? Algumas respostas possíveis: ou a legislação eleitoral e partidária brasileira era desde o início compatível com a consolidação do sistema partidário; ou foi realizada a reforma política e, por algum passe de mágica, passou relativamente 1 Texto elaborado por solicitação do Grupo de Análise de Conjuntura do Núcleo de Pesquisa em Sociologia Política da Universidade Federal do Paraná e terminado em março de 2007.

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Dinamica Partidaria No Brasil

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  • A DINMICA PARTIDRIA NO BRASIL1

    Mrcio Nuno [email protected]

    Consultor Legislativo da Cmara dos Deputados

    As discusses sobre reforma poltica no Congresso Nacional e no s giraram, ao longo de mais de duas dcadas, ao redor da necessidade de se formar econsolidar, no Brasil, um sistema de partidos consistente. percepo, bastantedifundida, de que o pas no dispunha de um sistema partidrio normal, juntavam-seas idias: a) de que a existncia desse sistema (e dos partidos correspondentes)constitui o elemento central de um regime representativo funcional (ou, nas versesmais valorativas, de uma democracia madura); b) de que a legislao uminstrumento importante talvez o mais importante - para que um sistema desse tiposeja alcanado (e a legislao eleitoral e partidria brasileira estaria demonstrando serineficaz para tal fim).

    Percebe-se, recentemente, que essa perspectiva, embora ainda ocupe um lugarcentral, tem perdido o relativo monoplio que detinha nas discusses sobre a reformapoltica. E novos temas menos ligados questo partidria - comeam a ganhar pesonessa seara. Talvez a mudana reflita uma novidade da poltica eleitoral brasileira:embora de maneira ainda pouco perceptvel, o sistema partidrio existente comea aganhar forma definida e, na medida em que se difunde a percepo dessa novidade, asatenes passam para outros problemas (at porque, simultaneamente, se percebeque muitas das questes que supostamente seriam resolvidas com a tal consolidaodo sistema partidrio, na verdade, so questes que transcendem essa esfera).

    Mas o que seria aquele sistema partidrio desejado e suponho em vias deser alcanado? A resposta constrangedoramente simples. Um sistema partidrioconsolidado , aqui, aquele que supostamente existe nos pases que tm sistemaspartidrios consolidados. Suas caractersticas principais so exatamente as que odistinguem do nosso: as posies dos partidos no tabuleiro poltico eleitoral so claras,eles se relacionam com bases sociais bem delimitadas, o vnculo dos polticos com ospartidos a que esto filiados firme e tende a estender-se no tempo, etc. Alm de certaidealizao do que acontece com os partidos nos pases de referncia, esse esquematende ainda a ser acompanhado pela noo de que outras vantagens desses pases(como renda per capita e padro de consumo elevados, ndices sociais favorveis emsade, educao, etc) se explicam pela existncia de um sistema de representaopoltica adequado.

    E como se explica que o sistema vigente entre ns comece a dar sinais deconsolidao? Algumas respostas possveis: ou a legislao eleitoral e partidriabrasileira era desde o incio compatvel com a consolidao do sistema partidrio; oufoi realizada a reforma poltica e, por algum passe de mgica, passou relativamente

    1 Texto elaborado por solicitao do Grupo de Anlise de Conjuntura do Ncleo de Pesquisa emSociologia Poltica da Universidade Federal do Paran e terminado em maro de 2007.

  • despercebida; ou, na verdade, a legislao eleitoral e partidria no to relevante noprocesso de consolidao do sistema partidrio. Sustento que, em boa medida, as trsrespostas so verdadeiras.

    A legislao eleitoral e partidria brasileira atual fruto, em seus aspectosfundamentais, de um brilhante processo de engenharia institucional, que sedesenvolveu em nosso pas, grosso modo, da dcada de 1920 de 1940. Essalegislao mostrou, entre 1945 e 1964, potencial para servir de pano de fundo aoprocesso de consolidao de um sistema partidrio nos moldes dominantes nos pasescapitalistas centrais e volta a mostr-lo agora. Ademais, ao longo da dcada de 1990,foram introduzidas inovaes relevantes na legislao eleitoral e partidria, cujainterpretao judicial ainda no est assente e cujos efeitos ainda no se completaram. o caso, em particular, da Lei dos Partidos Polticos, de 1995, e da Lei das Eleies,de 1997. Esses so aspectos legais importantes envolvidos na consolidao dosistema partidrio brasileiro, que merecem, por certo, investigao cuidadosa.

    No entanto, os partidos e sistemas partidrios no decorrem da lei, mas deprocessos sociais e polticos espontneos e pelo menos nos pases em que primeirosurgiram inesperados. Em clara conexo com a extenso do direito de sufrgio, osurgimento dos partidos eleitorais de massa estruturaram o regime representativocontemporneo, em particular a partir do crescimento dos partidos polticos de basesindical e trabalhista, que foram os principais responsveis pela introduo da clivagemdecisiva que organiza com maior ou menor clareza, a depender do caso - a grandemaioria dos sistemas partidrios consolidados. De certa maneira, o que se chamacontemporaneamente de democracia corresponde a um regime poltico em que, semque normalmente seja colocada em causa a dominao do capital (e isso por definio,pois que falamos de pases capitalistas), a esfera poltica admite espao para querepresentantes de outros interesses e, em particular, do outro plo da contradiocentral que caracteriza essas sociedades (o plo trabalho) se faam presentes eparticipem de alguns dos processos decisrios mais importantes que nela transcorrem.

    No Brasil, o processo no tem sido diferente. Semelhantemente ao queaconteceu com o PTB, no perodo 1945-1964, tem cabido ao PT, desde 1982, o papelde vetor decisivo da consolidao, entre ns, de um sistema partidrio de feiesnormais. E, por isso, as semelhanas e diferenas entre os processos de implantaonacional dos dois partidos, cada um em seu momento, podem ser exploradas para oentendimento da dinmica partidria no pas.

    As duas agremiaes iniciaram suas trajetrias eleitorais como representantespotenciais de um setor pondervel da sociedade brasileira, mas numa situao defranca desvantagem, em termos de nmero de votos efetivamente recebidos, frenteaos partidos eleitoralmente mais fortes (PSD e UDN, em 1945; PDS e PMDB, em1982). Reproduziu-se, aqui, um fenmeno comum, registrado, por exemplo, na Frana,em 1871, quando da chamada repblica dos duques2. Ao se ampliar subitamente odireito de sufrgio (ou o direito de associao para apresentar candidatos em pleitos 2 Maurice Duverger. Os Partidos Polticos. Rio de Janeiro: Zahar; Braslia: UnB, 1980, p. 23.

  • eleitorais), os setores sociais que, por razes que no tm a ver prioritariamente com aorganizao partidria, dispem de recursos (inclusive nomes conhecidos) capazes deatrair votos, tendem a obter a maior parte deles, enquanto outros setores e umexemplo fundamental o dos trabalhadores sindicalizados precisam de tempo paraorganizar-se como mquina partidria, exatamente para suprir a falta daqueles outrosrecursos teis em uma disputa eleitoral.

    Ora, na fase dos duques, subsiste uma espcie de espao vazio no quadropartidrio. A preexistncia desse espao vazio explica, em parte, a expanso rpida econtnua do PT, ao longo de cerca de vinte anos, at alcanar a atual posio entre aslegendas eleitoralmente mais fortes (talvez no por acaso, um tempo semelhante aoque o antigo PTB levou para se tornar um partido com o mesmo peso no tabuleiroeleitoral que seus dois principais adversrios). J a necessidade estrutural que ospartidos dos no-duques sentem de uma organizao partidria mais consistenteexplica, talvez, que o PT, mesmo aps eleger o presidente da Repblica, seja ainda umpartido que comea e termina a legislatura sem que se alterem significativamente onmero e os nomes de seus representantes na Cmara dos Deputados. Impressionaque tal fenmeno, to incomum na tradio partidria brasileira recente, tenharecebido pouca ateno.

    Alguns aspectos comuns da trajetria de disseminao do PTB e do PT peloterritrio nacional reportam-se a caractersticas da legislao eleitoral que adotamos. Aeleio de deputados federais e de deputados estaduais em circunscries de muitodistintas magnitudes (atualmente, nas eleies para a Cmara dos Deputados, de oitoa setenta vagas) leva a que, em circunscries menores, para eleger um nicodeputado federal, o partido ou coligao necessite de mais de dez por cento dos votos,enquanto, na maior circunscrio, menos de dois por cento dos votos suficiente. Comisso, um partido pequeno, em crescimento, tende a eleger deputados, primeiro, nasmaiores circunscries, alcanando aos poucos as menores no necessariamente(acentue-se) porque obtenha mais votos nos estados mais populosos, mas porqueneles possvel eleger deputados com menos votos (proporcionalmente ao nmero deeleitores).

    Isso aconteceu com o PTB, no perodo findo em 1964 e voltou a acontecercom o PT, no perodo iniciado em 1982. Assim, nas primeiras eleies para a Cmarados Deputados, o PT no elegeu candidatos no Acre, em Rondnia e no Amap, trsdos quatro estados em que o partido obteve, proporcionalmente, maiores votaes(atrs, apenas, de So Paulo). Embora a dificuldade para penetrar em circunscriescom menor nmero de vagas tenha dificultado o crescimento inicial do partido nessesestados, o fato de que, ultrapassada aquela barreira, os trs se incluam entre aquelesem que o PT obtm melhores resultados eleitorais indica que as boas votaes de1982 no foram acasos.

    O que se est afirmando, em resumo, que parece existir uma espcie deroteiro previamente definido para a consolidao do sistema partidrio brasileiro. Nele,conjuga-se 1) a alta probabilidade de que um partido de representao das camadas

  • trabalhadoras organizadas (ou em processo de organizao) encontre espao paracrescer at adquirir o tamanho que lhe cabe em um sistema partidrio normal com 2)a trajetria de crescimento que as prprias regras eleitorais brasileiras impem a essepartido, pelo menos no plano das eleies proporcionais: a ocupao progressiva dascasas legislativas se d das circunscries de maior para as de menor magnitude.

    Entretanto, as semelhanas formais nos processos de conformao dossistemas partidrios no pr-64 e no ps-82 podem esconder diferenas importantes decontedo. Termino, por isso, com uma breve elucubrao exemplificativa do tipo deabordagem que permitiria um conhecimento mais agudo das disputas partidrias noBrasil.

    A partir de algumas idias expostas, h uns vinte anos, por Dcio Saes3, acercado contedo de classe do Estado brasileiro ps-64, podemos sugerir que: 1) de 1945 a1964, o sistema partidrio se moveu dentro de quadro marcado por uma grande derrotado capital bancrio, decorrente do processo de transformao poltica aberto pelomovimento insurrecional de 1930, derrota que se refletiu em prolongada limitaolegal dos juros e ausncia de poltica antiinflacionria, enquanto 2) o sistema partidrioatual se move dentro de quadro marcado, desde 1964, pela retomada da hegemoniado capital bancrio, retomada que se reflete, h uns quarenta anos, em medidasdiretamente destinadas a provocar a elevao da taxa de juros, na poltica deestmulo ao endividamento externo e numa orientao persistentemente monetaristae antiinflacionria.

    O PTB se inseria, desde 1945, na vanguarda da aliana partidria herdeira dovarguismo e, portanto, da hegemonia implantada no pas a partir de 1930; e as forassociais e polticas, ligadas ao capital bancrio, que o derrotaram em 1964, exprimiam-se, no plano eleitoral, por agremiaes que se localizavam no outro lado do espectropartidrio, em particular pela UDN. A posio do PT no atual espectro partidrio vem sedefinindo (cada vez mais claramente, medida que o sistema se consolida) tambm nolado oposto ao dos partidos mais diretamente herdeiros da UDN (ou seja, o PSDB e oPFL); no entanto, ele se formou e cresceu sob a hegemonia do capital bancrio enela vem estando enredado desde seu surgimento. Como essa mistura de fatores vaiinfluir na poltica brasileira dos prximos anos? Ser a eleio de um presidente daRepblica petista indcio do enfraquecimento da hegemonia do capital bancrio? Ou ahegemonia do capital bancrio se exerce indiscriminadamente atravs de qualquer dospartidos que ocupam posio de destaque no sistema partidrio que se formou a partirda consolidao de seu domnio ao longo do regime de 1964?

    Questes desse tipo tm sido pouco comuns nas pesquisas sobre partidospolticos, mas, sem elas, no se entende o sistema partidrio em profundidade e asanlises de conjuntura beiram perigosamente o terreno das trivialidades.

    3 Dcio Saes. O Estado Brasileiro Ps-64 e a Organizao da Hegemonia no Seio do Bloco no Poder. In:Snia Larangeiro (org). Classes e Movimentos Sociais na Amrica Latina. So Paulo: Hucitec, 1990.