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Dilemas do governo e o equívoco da agenda privatizante

O CONSELHO Federal de Medici-na (CFM) está indignado frente ao anúncio da presidenta Dilma de que o governo trará 6 mil médicos de Cuba, e outros tantos de Portugal e Espanha, para atuarem em muni-cípios carentes de profi ssionais da saúde. Por que aqui a grita se res-tringe aos médicos cubanos? Deta-lhe: 40% dos médicos do Reino Uni-do são estrangeiros.

Também em Portugal e Espanha há, como em qualquer país, médicos de nível técnico sofrível. A Espanha dispõe do 7º melhor sistema de saú-de do mundo, e Portugal, o 12º. Em terras lusitanas, 10% dos médicos são estrangeiros, inclusive cubanos, importados desde 2009. Submetidos a exames, a maioria obteve aprova-ção, o que levou o governo portu-guês a renovar a parceria em 2012.

Ninguém é contra o CFM subme-ter médicos cubanos a exames (Re-valida), como deve ocorrer com os brasileiros, muitos formados por fa-culdades particulares que funcio-nam como verdadeiras máquinas de caça-níqueis.

O CFM reclama da suposta vali-dação automática dos diplomas dos médicos cubanos. Em nenhum mo-mento isso foi defendido pelo gover-no. O ministro Padilha, da Saúde, deixou claro que pretende seguir cri-térios de qualidade e responsabilida-de profi ssionais.

A opinião do CFM importa me-nos que a dos habitantes do interior e das periferias de nosso país que tanto necessitam de cuidados mé-dicos. Estudos do próprio CFM, em parceria com o Conselho Regional de Medicina de São Paulo, sobre a “demografi a médica no Brasil”, de-monstram que, em 2011, o Brasil dispunha de 1,8 médico para cada 1.000 habitantes.

Temos de esperar até 2021 para que o índice chegue a 2,5/1.000. Se-gundo projeções, só em 2050 tere-mos 4,3/1.000. Hoje, Cuba dispõe de 6,4 médicos por cada 1.000 habi-tantes. Em 2005, a Argentina conta-va com mais de 3/1.000, índice que o Brasil só alcançará em 2031.

Dos 372 mil médicos registrados no Brasil em 2011, 209 mil se con-centravam nas regiões Sul e Sudes-te, e pouco mais de 15 mil na região Norte.

O governo federal se empenha em melhorar essa distribuição de pro-fi ssionais da saúde através do Pro-grama de Valorização do Profi ssio-nal de Atenção Básica (Provab), ofe-recendo salário inicial de R$ 8 mil e pontos de progressão na carreira, para incentivá-los a prestar serviços de atenção primária à população de 1.407 municípios brasileiros. Mais de 4 mil médicos já aderiram.

O senador Cristovam Buarque propõe que médicos formados em universidades públicas, pagas com o seu, o meu, o nosso dinheiro, tra-balhem dois anos em áreas carentes para que seus registros profi ssionais sejam reconhecidos.

Se a medicina cubana é de má qualidade, como se explica a saúde daquela população apresentar, se-gundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), índices bem melho-res que os do Brasil e comparáveis aos dos EUA?

O Brasil, antes de reclamar de me-didas que benefi ciam a população mais pobre, deveria se olhar no es-pelho. No ranking da OMS (dados de 2011), o melhor sistema de saú-de do mundo é o da França. Os EUA ocupam o 37º lugar. Cuba, o 39º. O Brasil, o 125º lugar!

Se não chegam médicos cubanos, o que dizer à população desassisti-

da de nossas periferias e do interior? Que suporte as dores? Que morra de enfermidades facilmente tratáveis? Que peça a Deus o milagre da cura?

Cuba, especialista em medicina preventiva, exporta médicos para 70 países. Graças a essa solidariedade, a população do Haiti teve amenizado o sofrimento causado pelo terremoto de 2010. Enquanto o Brasil enviou tropas, Cuba remeteu médicos trei-nados para atuar em condições pre-cárias e situações de emergência.

Médico cubano não virá para o Brasil para emitir laudos de resso-nância magnética ou atuar em me-dicina nuclear. Virá tratar de vermi-nose e malária, diarreia e desidrata-ção, reduzindo as mortalidades in-fantil e materna, aplicando vacinas, ensinando medidas preventivas, co-mo cuidados de higiene.

O prestigioso New England Jour-nal of Medicine, na edição de 24 de janeiro deste ano, elogiou a medici-na cubana, que alcança as maiores taxas de vacinação do mundo, “por-que o sistema não foi projetado pa-ra a escolha do consumidor ou ini-ciativas individuais”. Em outras pa-lavras, não é o mercado que manda, é o direito do cidadão.

Por que o CFM nunca recla-mou do excelente serviço prestado no Brasil pela Pastoral da Crian-ça, embora ela disponha de poucos recursos e improvise a formação de mães que atendem à infância? A resposta é simples: é bom para uma medicina cada vez mais mer-cantilizada, voltada mais ao lucro que à saúde, contar com o trabalho altruísta da Pastoral da Criança. O temor é encarar a competência de médicos estrangeiros.

Quem dera que, um dia, o Bra-sil possa expor em suas cidades es-te outdoor que vi nas ruas de Ha-vana: “A cada ano, 80 mil crianças do mundo morrem de doenças fa-cilmente tratáveis. Nenhuma delas é cubana”.

Frei Betto é escritor, autor de O que a vida me ensinou, que a editora Saraiva

faz chegar esta semana às livrarias.

Frei Betto

Médicos cubanos no Brasil?

crônica Luiz Ricardo Leitão

JÁ DENUNCIAMOS em editorial an-terior que está se fortalecendo no go-verno Dilma uma agenda liberalizan-te, que não acumula forças para os interesses históricos da classe traba-lhadora.

Na verdade, trata-se de um con-junto de medidas que contemplam desde o conservadorismo da políti-ca econômica, passando pelo fi m da aposentadoria integral do funciona-lismo público até a concessão dos portos, aeroportos e rodovias para os setores privados.

As duas últimas semanas foram marcadas pelos leilões do petróleo e pela aprovação da MP dos Portos. O problema não é simplesmente o fato de que estas medidas benefi ciam os capitalistas. A questão central é que elas aprofundam a desnacionalização da economia brasileira, comprome-tem a soberania nacional e não con-tribuem para viabilizarmos um pro-jeto nacional de desenvolvimento.

Na verdade são medidas privati-zantes que o povo brasileiro rejei-ta. Aliás, a presidenta Dilma foi elei-ta pelo voto popular contra esta mes-ma agenda privatizante. Mas então

por que ganham cada vez mais espa-ço estas iniciativas privatizantes den-tro do governo?

É fato que até o presente momen-to a crise econômica está impondo uma queda nas taxas de crescimento economia brasileira. Isso coloca Dil-ma num dilema onde o governo faz um conjunto de apostas e opções pa-ra retomar o crescimento da econo-mia brasileira.

As diversas frações de classe inci-dem sobre o governo e avançam para concretizar seus interesses de acordo com sua força e infl uência na socie-dade. O dispositivo midiático conser-vador que representa os interesses da burguesia interna e do capital estran-geiro insiste que a melhor saída para retomar o crescimento econômico é abrir mais espaço na economia para o capital privado. Acumular capital em setores da economia ainda sob o controle do Estado. Essa solução não é nova e remonta à desastrosa expe-riência dos anos FHC.

Esta perniciosa agenda ganha es-paço, pois o governo Dilma é despro-vido de uma estratégia de desenvol-vimento nacional. Signifi ca a dimi-

nuição da capacidade do Estado de planejar a economia. Apostar no “es-pírito animal”, como recomenda o li-beral Adam Smith, de uma burguesia sem projeto de nação é colocar os ru-mos da nação à deriva.

A estratégia privatista da burgue-sia passa primeiro por ocupar mais

espaços no governo e nos setores da economia que estão sob controle do Estado. Num segundo momento, atacarão com mais intensidade as conquistas que o povo brasileiro te-ve durante os dez anos de governo de coalizão.

Estamos, portanto, diante da pos-sibilidade de inviabilizar a constru-ção de uma agenda pós-neoliberal. Devemos levar em consideração que o Brasil enquanto maior economia da América Latina tem uma responsabi-lidade enorme dentro de um conjun-to de governos que foram eleitos con-tra a agenda neoliberal.

Portanto, as medidas tomadas na nossa economia certamente infl uen-ciam nos rumos das demais econo-mias latino-americanas e podem contribuir para o reposicionamento das forças neoliberais no continente.

As recentes medidas privatizantes não somente prejudicam a economia brasileira como têm um impacto con-siderável na luta ideológica. As forças populares estão perdendo o deba-te sobre os rumos da política econô-mica com a construção midiática do “fantasma da infl ação”.

A Petrobrás sofreu uma massa-cre dos velhos jornalões até o go-verno anunciar e concretizar os lei-lões do petróleo. Mais vez ressurge o convescote do “custo brasil” para justifi car as concessões de portos, aeroportos e ferrovias para o setor privado.

Somente um movimento de mas-sas pode deslocar o centro da política dos corredores da institucionalidade e dos lobbies para as ruas.

Recentemente o presidente do PT, Rui Falcão, sinalizou a necessi-dade de alterar a correlação de for-ças na sociedade brasileira. Para is-so colocou a necessidade de viabili-zarmos a reforma política, a refor-ma tributária e regulação da mídia. Corretíssimo.

É necessário potencializar a orga-nização popular para defendermos as conquistas que tivemos nos governos Lula e Dilma e apresentarmos um projeto nacional de desenvolvimento como alternativa à crise econômica.

Avançar nas reformas estruturais e na integração latino-americana será imprescindível para avançarmos na construção de uma nação soberana.

de 23 a 29 de maio de 20132editorial

Notícias sobre a Corte

Avançar nas reformas estruturais e na integração latino-americana será imprescindível para avançarmos na construção de uma nação soberana

Será que o fabricante terá tempo de inventar uma nova droga antes da desintoxicação coletiva?

“A cada ano, 80 mil crianças do mundo morrem de doenças facilmente tratáveis. Nenhuma delas é cubana”

opinião

“ERA NO TEMPO DO REI...” Assim começam as Memórias de um sargento de milícias, publicadas por Manuel Antônio de Almeida nas páginas do Correio Mercantil entre 1854 e 1855. Irreverente e sem falsos moralismos, a obra narra as peripé-cias do jovem Leonardo no Rio de D. João VI, ao início do sé-culo 19. Embora escrito no Romantismo, o texto nada possui de meloso ou idealizado, a começar pelo próprio protagonista, “fi lho de uma pisadela e um beliscão”, a quem mestre Antonio Cândido considerou um protótipo do “malandro” nacional e o primeiro anti-herói de nossas letras.

O saudoso Carlos Nelson Coutinho anotou certa feita que o frescor do folhetim se deve ao fato de a trama manter-se fi el às expectativas de progresso provocadas pela mudança da famí-lia real para o Brasil, em 1808, e pelas promessas de um novo tempo anunciadas pela ambígua Independência em 1822. Mas o mérito maior do autor consiste em identifi car, precocemen-te, alguns traços inconfundíveis de uma sociedade ainda em formação, rechaçando a opção conservadora que a burguesia agromercantil impunha ao país.

Não é difícil imaginar o cenário da Corte no século 19, com centenas de parasitas vivendo à custa das benesses imperiais e alguns apaniguados dos monarcas enchendo a burra de di-nheiro com os privilégios concedidos pelo poder. Enquanto is-so, sonhando em subir na vida, muitos “plebeus” como Leo-nardo faziam malabarismos para driblar a concorrência e be-liscar um naco do quinhão imperial...

Foi-se o século e o cenário pouco mudou, sobretudo aqui no Rio, agora a orgulhosa “capital da República”. O poder saíra do Paço para o Palácio do Catete, mas o roteiro de Bruzundanga era quase o mesmo: novas crises econômicas, velhas rixas en-tre as elites e o povo sempre excluído da vida pública nacional, não obstante eventuais gestas de resistência, como as Revoltas de Canudos e do Contestado.

Os cronistas, porém, eram outros, e o genial Lima Barreto descrevia assim a classe dominante da época: “Os proprietá-rios dos latifúndios vivem nas cidades, gastando à larga, levan-do vida de nababos e com fumaça de aristocratas”. Pois bem, caro leitor, já chegamos a 2013 e, pelo visto, o roteiro pouco se alterou. Houve por certo alguma evolução na semântica do ca-pital: a empresa agromercantil agora se chama “agronegócio” e as negociatas com o Estado recebem o brejeiro apelido de “PPP”. Chique, não?

Por sua vez, cá na Cidade Maravilhosa, a vida palaciana se-gue a todo vapor, travestida com ‘novas’ personagens no Pa-lácio das Laranjeiras... Na versão atual, a coisa (não) funciona assim: os apaniguados do governador e do alcaide continuam a usufruir de todas as regalias palacianas – basta citar o caso do Sr. Eike Batista X, dono de empresas cada vez mais desvalori-zadas na Bolsa, mas cujo prestígio com os padrinhos (Cabral e Lulinha Paz & Amor) continua em alta (já abocanhou o Ma-racanã e devasta o Norte fl uminense com o Porto do Açu). As empreiteiras também fazem a festa, elegendo os síndicos para depois sugar bilhões do Tesouro estadual.

Tudo como dantes no quartel dos dominantes. Mas e o povo, a quantas anda? Bem, satisfeito não está, espremido nos ôni-bus, no metrô ou nos trens da Supervia. Para anestesiá-lo, a Corte conta com a indústria do espetáculo, eventos colossais e os bobos digitais. Eles exaltam a Cidade Maravilhosa, o pseu-dopolo cultural do país. Há quem compre essa panaceia, mas o prazo de validade está chegando ao fi m. Será que o fabrican-te terá tempo de inventar uma nova droga antes da desintoxi-cação coletiva?

Luiz Ricardo Leitão é escritor e professor associado da UERJ.

Doutor em Estudos Literários pela Universidad de La Habana, é autor de Lima Barreto: o rebelde imprescindível e Noel Rosa:

Poeta da Vila, Cronista do Brasil.

Gama

Editor-chefe: Nilton Viana • Editores: Aldo Gama, Marcelo Netto, Renato Godoy de Toledo • Subeditor: Eduardo Sales de Lima • Repórteres: Marcio Zonta, Michelle Amaral, Patricia Benvenuti • Correspondentes nacionais: Daniel Israel (Rio de Janeiro – RJ), Maíra Gomes (Belo Horizonte – MG), Pedro Carrano (Curitiba – PR), Pedro Rafael Ferreira (Brasília – DF), Vivian

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de 23 a 29 de maio de 2013

Enquanto isto, o Brasil continua como um dos países mais atrasados da América Latina na discussão sobre o marco regulatório. No mês passado, o secretário-executi-vo do Ministério das Comunicações confessou que a pre-sidenta Dilma não considera este tema prioritário. O go-verno já havia arquivado um projeto de regulação elabo-rado pelo ex-ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação (Secom) do presidente Lula, e desistiu até de fazer uma “consulta” à sociedade sobre o tema. Com a decisão do Uruguai, a América Latina avança na demo-cratização da mídia; já o Brasil está parado.

Daí a iniciativa do Fórum Nacional pela Democrati-zação da Comunicação (FNDC), que congrega os prin-cipais movimentos sociais brasileiros, de intensifi car a luta pela regulação democrática da mídia, através da co-leta de 1,5 milhão de assinaturas para o projeto de lei de iniciativa popular sobre o tema. Sem forte pressão popu-lar, o Brasil continuará sendo a vanguarda do atraso nes-ta questão estratégica.

Ley de Medios avança no UruguaiNOS PRÓXIMOS DIAS, o governo do Uruguai deve en-viar ao Congresso Nacional o seu projeto de nova lei dos meios de comunicação. A proposta, elaborada pelo Minis-tério da Educação e Cultura e pelo Ministério da Indús-tria, tem cerca de 200 artigos e visa democratizar a radio-difusão no país. Ela regula as concessões de rádio e televi-são, restringe os monopólios privados neste setor estraté-gico e garante maior pluralidade na mídia.

A decisão de enviar ao parlamento uma nova “Ley de Medios” partiu diretamente do presidente José Mujica, que desta forma cumpre um compromisso assumido na sua campanha eleitoral. No início de maio, o Movimento de Participação Popular, ao qual pertence o presidente e que compõem a Frente Ampla que governa o Uruguai, reafi rmou em congresso a disposição de “trabalhar pa-ra impulsionar a lei que assegura a democratização dos meios massivos de comunicação”. O projeto passou por vários ajustes nos últimos meses e agora irá a votação no Congresso Nacional.

instantâneo

Altamiro Borges

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TODOS OS ANOS, a ONU consagra o 22 de maio como o dia internacional da Biodiversidade. O objetivo é de que a humanidade inteira saiba do que se trata e possa cuidar me-lhor do futuro do nosso planeta.

Ha apenas alguns dias, concluiu-se em Boon, na Alema-nha, um encontro a mais dos muitos sobre a convenção do clima. Essa reunião congregou representantes de diversos países para preparar o acordo de governantes que se reuni-rão no próximo ano sobre esse assunto.

A meta é que eles se comprometam a reduzir as emissões de poluentes na atmosfera e assim diminuir o aquecimen-to global. Conforme parece, esse compromisso engaja os go-vernos a partir de 2020 e não se sabe ainda se a redução prevista será de 12% ou um pouco mais. Para quem sabe da realidade do mundo, esse acordo parece tímido e acanhado, mas já será uma grande vitória devido à prioridade dos go-vernos que visam sempre o crescimento econômico e a ma-nutenção do sistema atual que domina o mundo.

Atualmente, toda pessoa esclarecida sabe que, segundo dados da ONU, desde 1970 até agora, a biodiversidade da terra foi destruída em mais de 30%. Estão em risco de ex-tinção 22% das espécies de mamiferos, 23% dos anfi bios e 25% dos répteis. Essa realidade está ligada à destruição anual das fl orestas que continua sem solução.

No Brasil, o novo Código Florestal parece mais preocu-pado em garantir o lucro do agronegócio e a expansão das fronteiras agrícolas do que em proteger e preservar a natu-reza e as fl orestas ainda existentes no país.

Um dos motivos da perda da biodiversidade é o aqueci-mento global, produzido pelo modo como a sociedade ex-plora a terra, a água e toda a natureza.

Ricardo Abramovay, professor da Universidade de São Paulo, afi rmou: “durante o século 20, a extração de recur-sos da superfície terrestre cresceu oito vezes e alcançou um total de 60 bilhões de toneladas anuais, a partir somente do peso físico de quatro elementos: materiais de construção, minerais, combustiveis fósseis e biomassa.”

Em sua história, o planeta Terra ja passou por várias cri-ses e fases de transformações. No entanto, nessa crise atual há um elemento novo: essas mudanças que afetam a vida no planeta estão sendo produzidas pela própria humanida-de. E dessa vez, se permitimos que esse caminho de destrui-ção prossiga, não haverá uma arca de Noé como em fi lmes de fi cção científi ca que sempre preveem uma salvação para os nossos heróis.

Por isso, a ONU chama a atenção de todos para o tema da biodiversidade e sobre o estado atual da Terra. Essa aten-ção da ONU à Terra se vincula a um movimento mundial que elaborou a Carta da Terra, documento coletivo que ser-virá para a ONU como uma carta universal sobre os direitos da Terra e da natureza.

Direitos no sentido de necessidades urgentes e direitos de cuidado que a Terra precisa para continuar cumprindo sua função de nos acolher, nos alimentar e nos dar os elementos indispensáveis para uma vida digna e feliz.

Atualmente, a ONU reconhece que as culturas indígenas são as que mais contribuem para que olhemos a terra de um modo mais respeitoso e dialogante.

Nas últimas décadas, a partir dos trabalhos do cientista James Lovelook, a própria ciência começou a ver a Terra como organismo vivo e inteligente que reage ao ambiente e cria condições próprias para a vida. Nós, humanos, fazemos parte dessa comunidade da vida.

No domingo passado, as Igrejas mais antigas celebraram a festa de Pentecostes, encerramento das festas pascais e agradecimento pelo fato de que o Espirito de Deus se espa-lha por todo o universo e se manifesta em toda a natureza. Um dos refrões mais comuns usados nessa celebração é a palavra do salmo 104: “Tu envias teu Espirito, Senhor, e re-novas a face de toda a terra.”

De fato, para quem crê que Deus é amor, a terra e todos os seres vivos são sinais e sacramentos de sua presença.

Em uma sociedade que vê tudo como mercadoria e per-deu a consciência da dignidade da terra, é importante que a espiritualidade resgate essa dimensão ecológica da comu-nhão universal e que nos une à Terra e a todo o universo.

O cuidado diário com a biodiversidade é uma forma detestemunhar que reconhecemos essa presença divina nouniverso.

Marcelo Barros é monge beneditino e autor de vários livros, en-tre os quais, O Espírito vem pelas Águas. (Ed. Rede-Loyola, 2003)

Marcelo Barros

A Terra e a biodiversidade

O cuidado diário com a biodiversidade é uma forma de testemunhar que reconhecemos essa presença divina no universo

com novelas, com o Fantástico e centenas de programas policiais como Cidade Alerta que se cria o consenso e se paralisa qualquer reação. Vamos todos de teleférico no Alemão! Viva a polícia. Ela só reprime baderneiros que teimam em protestar contra os leilões, contra o que eles chamam de “privatização dos portos e aeroportos” e os que sempre pensam em greve.

Salve Jorge acabou. Novela que agradou a milhões! Vi-mos uma comunidade feliz, com uma polícia maravilho-sa que salva o povo. E uma delegada da PF simpaticíssi-ma. Salve Jorge!

E viva aquele tiroteio no Fantástico do começo des-te mês.

A exibição da operação policial no Fantástico levou milhões à aprovação da morte daquele trafi cante. Refor-çou o que foi enaltecido na novela Salve Jorge: a ação da repressão, seja ela do Exército, da UPP, da Polícia Civil, Militar ou Federal.

E agora vem outra novela. Qual será a mensagem des-ta vez? A quem interessa o tráfi co? Quem ganha com as drogas? Quem faz entrar a droga no país? Como se lava dinheiro da corrupção, do tráfi co? Nada disso interessa.

Morro do Alemão e turistasAGORA VIROU MODA. Os jornais do dia 20 deste mês anunciam: “Alemão passa Cristo e Pão de Açúcar em número de turistas”. Lá são 7 mil visitantes por dia con-tra 5 mil no Cristo. Todo mundo quer ver as ruelas e as lajes, onde, na noite de quarta, 8 de maio, a novela Sal-ve Jorge mostrou uma ação policial com o objetivo de “salvar a vida” de um mordomo bonzinho, que havia si-do sequestrado. Policiais dispararam um monte de ti-ros, com sucesso, dentro da comunidade. No dia se-guinte, o morro acordou em festa, como se nada tives-se acontecido. Ou seja, reforçou a legitimidade da ação violenta da polícia nas favelas do Rio. É a continuida-de das cenas da caça ao “Matemático” do Fantástico, no dia 4 do mesmo mês.

A fi nalidade de Salve Jorge e do Fantástico é a mesma: aprovar a ação repressiva e gerar no povo um sentimen-to de impotência que leva à paralisia. “Não há o que fa-zer. A polícia pode tudo, ela está certa, ela garante a or-dem e a tranquilidade”. E com isso se justifi ca a ação po-licial na pré-inauguração do Maracanã, na invasão da al-deia dos índios em volta do mesmo Maracanã, e na re-moção de moradores de centenas de favelas do Rio. É

Vito Giannotti

Justiça do Paraná reconhece direito à moradia por usucapião

O Tribunal de Justiça do Paraná publi-cou decisão inédita com relação à função social da propriedade urbana. Por dois votos a um, os desembargadores do TJ confi rmaram a sentença de procedência do pedido de usucapião de cerca de 30 fa-mílias de catadores de material reciclável que ocupam terreno de uma massa falida no bairro Boqueirão, em Curitiba, desde 1999. A decisão diz respeito à ação de reintegração de posse proposta pela massa falida da empresa Tecnicom LTDA, em 2004, depois de avisada pela prefeitura sobre a ocupação da área. Desde o decreto de falência da empresa, em 1997, o imóvel estava inutilizado, não edifi cado e sem qualquer manutenção por parte da massa falida. A situação caracterizou-se como descumprimento da função social da pro-priedade do terreno.

Novo leilão de aeroportos já movimenta 20 companhias

Enquanto o governo cede na mode-lagem de outros leilões de infraestru-tura para atrair mais concorrência, em aeroportos o interesse da iniciativa privada se mostra mais presente. Dos onze grupos que disputaram o último leilão do setor, ocorrido em 2012, to-dos têm empresas representantes den-tre as interessadas na nova rodada de licitação. Pelo menos 20 companhias estudam os ativos e conversam nos bastidores para a disputa de Galeão (RJ) e Confi ns (MG), agendada para setembro.

Acesso à internet mais que dobra no Brasil de 2005 a 2011

Quase metade da população brasileira com 10 anos ou mais de idade (46,5%) acessava a internet em 2011. Segundo

estudo do IBGE, o índice é mais do que o dobro do percentual registrado em 2005, quando aproximadamente 21% da população haviam acessado a internet. No mesmo período, a população nessa faixa etária cresceu 9,7%.

Presos de Guantánamo chegam aos 100 dias de greve de fome

Quase 130 dos 166 detentos (78,3%) da Prisão de Guantánamo, na Base Na-val dos Estados Unidos em Cuba, che-garam, dia 17 de maio, aos 100 dias sem ingerir alimentos. Os presos acusam os funcionários do presídio estadunidense de abusos e maus-tratos, o que teria motivado a greve de fome. Embora os advogados de defesa sustentem que seja esse o número de detentos, as autorida-des da prisão contestam, dizendo que o total de presos sem comer seria 100, o que ainda representa a maioria.

fatos em focoda Redação

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brasilde 23 a 29 de maio de 20136

da Redação

Nota Técnica sobre a Mesa Nacional da Construção

O Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) acaba de lançar Nota Técni-ca, que faz uma análise sobre a Mesa Nacional da Construção Civil – instru-mento de diálogo tripartite, criado com o objetivo de melhorar as condições de trabalho no setor da construção civil. A técnica do Dieese Cristiane Garrido ana-lisa o tamanho da indústria da constru-ção, a complexidade da cadeia, o atraso histórico das relações de trabalho e a ausência de ação propositiva do Estado no enfrentamento das questões centrais que têm impacto sobre o setor – infor-malidade, rotatividade, terceirização, saúde e segurança. Para acabar com os problemas que os operários das obras de hidrelétricas enfrentavam, trabalhado-res, governo e empresários fi zeram uma experiência de diálogo social que reuniu os diversos atores envolvidos na busca de um acordo nacional.

Lei garante estabilidade a gestantes com aviso prévio

A norma foi sancionada pela presiden-ta Dilma Rousseff e publicada no Diário Ofi cial da União dia 17 de maio. A esta-bilidade será garantida também em ca-sos de aviso prévio indenizado, quando a funcionária recebe o salário referente ao período, mas não é obrigada a compare-cer ao serviço.

Peões conquistam aumento real pela 12ª vez consecutiva em SP

O Sindicato dos Trabalhadores na Construção Civil de São Paulo (Sin-tracon-SP) fechou mais um acordo salarial, que vai benefi ciar cerca de 370 mil trabalhadores na capital paulista. O reajuste geral para os salários foi de 8,99%, a partir de 1º de maio, data-base da categoria. Ou seja, aumento real de 1,7%. O Piso dos trabalhadores qualifi -cados foi reajustado em 11,11%, subindo de R$ 1.168,20 para R$ 1.298,00; o dos qualifi cados em montagens industriais, reajustado em 8,93%, subiu de R$ 1.427,80 para R$ 1.555,10. Os trabalha-dores não qualifi cados, categoria que inclui servente, contínuo, vigia, auxi-liares de trabalhadores qualifi cados e demais trabalhadores cujas funções não demandem formação profi ssional terão de 8,99% – passando de R$ 979,00, pa-ra R$ 1.067,00.

Apoio ao projeto que fecha hipermercados aos domingos

O Sindicato dos Comerciários de São Paulo está apoiando proposta do vereador Alfredinho (PT), que prevê o fechamento aos domingos e feriados dos hipermercados e supermercados que possuem mais de 50 funcionários. A entidade acredita que essa é uma forma de defender a criação de mais empregos, uma vez que o pequeno varejista e os comerciantes de bairro empregam muito mais funcionários que as grandes redes.

Trabalhadores da alimentação intensifi cam greves

A Federação dos Trabalhadores na Alimentação do Estado de São Paulo (Fetiasp) realizou dia 14 de maio, em Limeira, a Conferência Estadual do gru-po da Alimentação. Vários sindicatos do setor estão em negociação coletiva da categoria, que tem data-base em maio. Os trabalhadores estão em greve em du-as cidades do interior. A primeira parali-sação está ocorrendo na Dori Alimentos, líder em guloseimas, que tem 1.350 fun-cionários e fi ca em Marília. A greve co-meçou dia 16. Em Martinópolis, os 130 operários da Usina de Açúcar e Álcool Atena também estão de braços cruzados desde as 6 horas do dia 16. Além da pau-ta geral, os operários reivindicam cesta básica, ônibus em melhores condições e redução do preço do marmitex servido pela usina, que é de R$ 3,25.

Países do Mercosul debatem trabalho

Representantes dos governos, dos trabalhadores e dos empregadores dos países que compõem o Mercosul (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) parti-ciparam de um ciclo de reuniões dos Órgãos Sociolaborais do bloco, que se encerrou dia 17 de maio, em Montevi-déu, no Uruguai. Foram destaques no encontro os avanços na prestação de serviços públicos de emprego a busca por alternativas que facilitem a livre cir-culação de trabalhadores entre os países membros.

Lula inaugura universidade criada por sindicalistas

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva participou dia 16 de maio, com a presidenta argentina Cristina Kirchner, da inauguração da Universidade Metro-politana para a Educação e o Trabalho (Umet). A universidade foi criada pelo Sindicato de trabalhadores em prédios e condomínios da Argentina. A univer-sidade começou a funcionar em abril, oferecendo aulas em quatro cursos: Polí-ticas Públicas e Governo, Turismo e Es-portes, Tecnologias Aplicadas e Desen-volvimento e Gestão das Organizações.

espaço sindical

José Coutinho Júniorde São Paulo (SP)

O PODER Judiciário tem sido um dos principais opositores do processo de reforma agrária no Brasil. Além de au-torizar ações violentas de despejo con-tra camponeses acampados e evitar ao máximo a condenação de latifundiários que cometeram crimes contra os traba-lhadores rurais, o Judiciário é um dos grandes responsáveis por áreas já de-sapropriadas que ainda não se torna-ram assentamentos por causa de trâmi-tes na justiça.

Estudo do Instituto Nacional de Colo-nização e Reforma Agrária (Incra) apon-ta que 531 áreas têm processos de desa-propriação que tramitam no Judiciário. Do total, 237 estão paradas há anos nos tribunais por “óbice judicial”, uma ação jurídica utilizada para suspender o pro-cesso de desapropriação.

No caso das áreas de assentamentos, essa mesma ação geralmente é perpetra-da pelos proprietários, ao questionarem o laudo de improdutividade de suas ter-ras, realizado pelo Incra, e alegando que o valor recebido pela desapropriação é insufi ciente.

Segundo o presidente do Incra, Carlos Guedes de Guedes, em declaração ao jor-nal O Globo, os entraves judiciais dessas áreas custam ao órgão federal pelo me-nos R$ 485,5 milhões, mais da metade do orçamento anual do Instituto, de R$ 720 milhões. A meta do Incra para este ano é assentar 30 mil famílias, total que poderia ser benefi ciado com os imóveis que estão parados nos tribunais.

Tais impasses fazem com que as áreas fi quem com a situação jurídica indefi ni-da por anos. Para Nilcio Costa, militante e advogado do MST, se não fossem esses empecilhos, as desapropriações das áre-as seriam rápidas.

“Sem obstáculos, ao receber a petição, o juiz deve imediatamente dar posse ao Incra. Em um ano, deveria ser possível desapropriar uma área. Na prática, ob-

viamente isso não ocorre. Há casos de áreas com mais de 10 anos no Judiciá-rio”, destaca.

Segundo Joaquim da Silva, da direção estadual do MST em Sorocaba, o Incra pouco faz para pressionar o Judiciário e agilizar a situação dessas áreas. “Na nos-sa avaliação, quem deveria ter essa arti-culação com a Justiça é o Incra, já que ele é parte interessada. Mas vemos também muito corpo mole por parte dos respon-sáveis da instituição”.

AcampamentosEnquanto os impasses no Judiciário

continuam, mais de 150 mil famílias vi-vem em condições precárias nos acam-pamentos. Um exemplo é o acampamen-to Santa Maria da Conquista, em Soroca-ba, que tem seis anos.

“Cinquenta famílias acampam em frente à fazenda. Já tivemos oito despe-jos na beira da estrada. Tem uma área da companhia de luz que é bem em frente à fazenda. Então quando somos despe-jados da estrada, vamos para essa área, e quando tem um despejo da companhia voltamos para a estrada, e por aí vai”, diz Joaquim.

A área de 700 hectares já foi desapro-priada e paga pelo governo federal, mas se encontra desde 2007 na 2ª Vara de Sorocaba. O proprietário contesta o lau-do de improdutividade do Incra, sendo que a vistoria do instituto demonstrou que as terras estavam abandonadas há nove anos.

Uma reunião de conciliação irá ocor-rer no dia 5 de junho para tentar resolver a situação do acampamento. Além dessa área, o MST reivindica mais duas áreas

na região, a da fazenda Sapituva e a Li-giane, que desde de 2003 se encontram igualmente travadas no Judiciário.

Joaquim conta que as famílias vivem num clima de tensão com a lentidão. Os sem-terra acampados, que poderiam es-tar produzindo no assentamento, vivem de trabalhos temporários e com cestas básicas distribuídas pela Companhia Na-cional de Abastecimento (Conab).

“É uma agonia muito forte, primei-ro porque moramos debaixo de uma re-de de alta tensão, que passa pela beira da estrada, de 40 mil volts. É um risco gran-de que corremos. Estamos há anos nes-sa situação de pressionar por meio de lu-tas, sermos despejados e refazer o acam-pamento”, conta Joaquim.

Essas áreas são apenas exemplos de di-versas situações semelhantes que acon-tecem por todo o país, tendo como prin-cipal responsável a forma como o Poder Judiciário trata com a Reforma Agrária.

“Todos os processos de vistoria do In-cra são questionados. E os juízes têm si-do excessivamente cuidadosos em aten-der os interesses e as ações dos proprie-tários”, afi rma Nilcio.

O Judiciário contra a reforma agráriaQUESTÃO FUNDIÁRIA A meta do Incra para este ano é assentar 30 mil famílias; Justiça impede a desapropriação de 237 áreas para a reforma agrária

Daniel Santini e Verena Glassde São Paulo (SP)

O DELEGADO Alcídio de Souza Araú-jo, da Superintendência da Polícia Fe-deral de Mato Grosso do Sul, respon-derá a inquérito interno pela apreen-são irregular de equipamentos do jor-nalista Ruy Sposati no dia 18 de maio durante ação de desocupação de indí-genas Terena em uma fazenda em Si-drolândia, no Mato Grosso do Sul. Sem apresentar ordem judicial ou dar expli-cações, o policial determinou a apreen-são de um computador, um gravador e lentes para câmara fotográfi ca, todos retirados da mochila do profi ssional. O jornalista fazia a cobertura para a pági-na do Conselho Indigenista Missioná-rio (Cimi), organização que acompanha questões indígenas.

A Repórter Brasil tentou ouvir o dele-gado, mas ele informou que não poderia dar entrevistas sem autorização do supe-rintendente Edgar Paulo Marcon. O su-perintendente, por sua vez, por meio da assessoria de imprensa, informou que ele responde a inquérito sobre o caso e não está autorizado a se pronunciar enquan-to não apresentar relatório justifi cando o procedimento.

Além de responder a inquérito na Polí-cia Federal, o delegado pode ter proble-mas em outras esferas. De acordo com o advogado do Cimi, Adelar Cupsinski, a entidade está entrando com represen-tações contra Araújo no Ministério da Justiça, no Ministério Publico Federal (MPF) e na Ouvidoria da Polícia Fede-ral. “As representações são por abuso de autoridade, uma vez que o delegado não tinha ordem de busca e apreensão e fe-riu explicitamente o direito constitucio-nal do exercício de profi ssão do jornalis-ta Ruy. Mas também estamos pedindo a abertura de investigações criminais, uma vez que a retenção ilegal do equipamen-to do repórter pode confi gurar vários ou-tros crimes previstos no código penal. Num segundo momento, entraremos também com um processo por danos morais e materiais”, afi rma Cupsinski.

No MPF, quem acompanha a ques-tão envolvendo os Terena é o procura-dor Emerson Kalif Siqueira. A reporta-gem tentou contato no dia 20 de maio, sem sucesso.

Direito à informaçãoA apreensão de equipamentos do jor-

nalista também provocou reações entre organizações que defendem o trabalho da imprensa. A Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e o Sindicato dos Jor-

nalistas Profi ssionais de Mato Grosso do Sul acompanham a questão. O presiden-te da Fenaj, Celso Schröder, vê com pre-ocupação ações contra jornalistas não só no estado, mas em todo o país.

“Pessoas incomodadas com ativida-de jornalística movem-se no sentido de inibi-la, impedi-la. Essas ações têm ele-mentos cerceadores e acontecem em vá-rios níveis no Estado Brasileiro. No Ju-diciário, jornalistas enfrentam ações pa-ra tirar blogs do ar sem praticamente nenhuma possibilidade de defesa. No Executivo, há ações de agentes de esta-do como polícias federais e policiais mi-litares. Em alguns casos existe uma in-compreensão, uma confusão; em outros há má fé. É uma vertente com viés auto-ritário”, afi rma.

“A ideia de impedir que a informação circule a partir de uma ação de autorida-de é perigosa e precisamos reagir a isso. No Brasil está aumentando o número de mortes e violência contra jornalistas. E, enquanto em outros países a violência está relacionada à cobertura de guerra ou policial, no Brasil ela aparece na área política. Quando o trabalho do jornalista é considerado impertinente, a autorida-de o inibe. Isso é uma ameaça ao Estado de Direito. Se olharmos países como Mé-xico, Colômbia e Honduras, Estados pa-ralelos se estabeleceram a partir da im-pressão que a imprensa precisava ser ca-lada, que aquilo que se produzia não era do interesse de determinados setores”, completa, para fi nalizar:

“Não combatemos mau jornalismo com não jornalismo. Bom jornalismo é aquele livre. Tem que ser regrado, sub-metido a princípios republicanos, legais, porque ninguém está acima da lei, mas em que os jornalistas tenham liberdade para trabalhar”. (Repórter Brasil)

“Pessoas incomodadas com atividade jornalística movem-se no sentido de inibi-la, impedi-la

Delegado apreende equipamentos de jornalistaREPRESSÃO Delegado Alcídio de Souza responderá por inquérito na PF por apreender equipamentos de jornalista do Cimi

MÍDIA

“Todos os processos de vistoria do Incra são questionados. E os juízes têm sido excessivamente cuidadosos em atender os interesses e as ações dos proprietários”

Elza Fiúza/ABr

O presidente do Incra, Carlos Guedes de Guedes

Page 7: Dilemas do governo e o equívoco da agenda privatizante · Que peça a Deus o milagre da cura? Cuba, especialista em medicina preventiva, exporta médicos para 70 países. Graças

brasil 7de 23 a 29 de maio de 2013

Mayra Castrode São Paulo (SP)

O PARTO NORMAL é menos arrisca-do para a mãe e o bebê do que uma ce-sárea, recomendada só quando há com-plicações. Essa é a avaliação do Minis-tério da Saúde. No entanto, o Brasil é o país campeão em realização de cesáreas no mundo.

Dados da Organização Mundial da Saúde recomendam que apenas 15% dos partos sejam realizados por cesáre-as. Mas, no país, esse percentual chega a quase 50%, e em cidades como São Pau-lo, o percentual supera os 80%, entre as classes mais altas.

A desumanização da saúde públi-ca e a desinformação são os respon-sáveis por esse quadro. A mulher dei-xou de ser a protagonista do parto, sen-do pouco encorajada a enfrentar tudo como um processo natural, para o qual ela está fi sicamente preparada. O par-to de uma gestação de baixo risco pode ser encarado como algo natural como a própria concepção.

Cultura do medoNo entanto, a cultura do medo da dor

e os mitos fi zeram da cesárea um bem de consumo disponível a quem pode pagar. Como explica Érica de Paula, parteira e co-produtora do documentário Renas-

cimento do Parto, “a assistência obsté-trica brasileira, extremamente tecnocra-ta e intervencionista, tira das mulheres a oportunidade de vivenciar o parto e o nascimento como um evento único, má-gico e transformador”.

Para se contrapor a essa concepção, criou-se então termo parto humanizado, que Ana Cristina Duarte, parteira e inte-grante do Grupo de Apoio à Maternidade Ativa (Gama), defi ne como “aquele que é feito com foco basicamente nas necessi-dades da mãe e do bebê, com o uso de evidências científi cas e sem procedimen-tos de rotina, só os necessários, quando necessários”.

A falta de opção ao parto humanizado, sem intervenções desnecessárias que co-loquem a mulher no papel de protago-nista, respeitando seu tempo e o do be-be é cada vez menor. Os relatórios sobre a violência obstetra no Brasil são respon-sáveis por denunciar um sistema violen-to que desumaniza o parto e transforma a saúde das mulheres em mercadoria.

Mais lucrativoÉ mais rentável aos médicos e hospi-

tais que o trabalho de parto dure o míni-mo possível, para que sejam realizados o maior número de partos, sem qualida-de no atendimento durante e depois do nascimento.

Segundo Érica de Paula, a cesariana permite mais controle da agenda e exige menos do profi ssional. “O hospital tam-bém lucra muito mais com um processo cirúrgico complexo e com as possíveis intercorrências relacionadas à cesariana do que com um parto natural”, afi rma.

AlternativaComo alternativa a esse sistema foram

cridas, no fi nal dos anos de 1990, as Ca-sas de Parto. Lugares exclusivos à reali-zação de partos naturais e humanizados sem intervenções médicas desnecessá-rias, que colocam as mulheres como pro-tagonistas do processo.

Dessa forma não há a necessidade da presença de médicos, já que o parto é encarado como algo natural e fi siológi-co. Em São Paulo a Casa do Parto de Sa-popemba é a única mantida pelo Siste-

ma Único de Saúde (SUS). As Casas tra-balham em parcerias com os hospitais esó recorrem à intervenção em casos deintercorrências graves. Segundo a pro-fessora do curso de obstetrícia da Uni-versidade de São Paulo e fundadora daCasa de Parto de Sapopemba, Ruth Hi-tomi Osava, essas instituições foramfundadas em consequência a uma resis-tência nos hospitais públicos, em espe-cial os hospitais universitários a cederao intervencionismo colocado pelo mo-delo atual de parto.

Ruth Hitomi Osava, ainda lembra que os procedimentos cirúrgicos são neces-sários, mas que a opção deve ser dada à mãe a todo o momento e que seja ela sempre a decidir como será seu parto.

ExperiênciaLayla Lima, estudante, teve seu par-

to na Casa. Ela conta que durante todo o pré natal foi incentivada a fazer a cesá-rea, quase sem opção de escolha. Depois de uma pesquisa feita por conta própria, conheceu a Casa do Parto de Sapopemba e o parto humanizado. Optou por esse ti-po de procedimento.

“Pesquisando sobre qual era o proce-dimento que um hospital particular teria com um parto normal, observei que um parto normal, não é necessariamente um parto natural, pois eles (médicos e enfer-meiras) intervinham de todas as manei-ras imagináveis. O parto se torna só mais um procedimento cirúrgico sob o domí-nio do médico”.

Sobre o atendimento na casa de par-to, ela conta: “Foi dos mais acolhedo-res possíveis. Uma palavra que defi niria toda aquela equipe, sem exceção, é amor. É um espaço muitíssimo especial”.

ProibiçãoA proibição por parte do Conselho

Regional de Medicina de São Paulo pa-ra que os médicos não trabalhem nessetipo de instituição criou uma descren-ça ao modelo das casas de parto. Issodifi culta a divulgação da Casa da Sapo-pemba, que trabalha hoje abaixo da suacapacidade.

Vivian Virissimodo Rio de Janeiro (RJ)

ALÉM DE NÃO resolver o problema dos estupros, a proibição da circulação de vans na zona sul do Rio de Janeiro (RJ) é uma medida que afeta a segurança das mulheres. Esta é a opinião da feminis-ta Eleutéria Amora da Silva, da Casa da Mulher Trabalhadora (Camtra).

Sem consulta pública, essa foi a única providência da gestão de Eduardo Paes (PMDB) diante dos recentes casos de es-tupro. “Se a proibição de vans resolvesse o problema, agora teríamos que proibir os micro-ônibus”, argumenta Eleutéria.

Ela se refere aos três casos que ocorre-ram nos últimos meses. O primeiro acon-teceu no dia 30 de março, quando uma turista dos Estados Unidos, de 19 anos, foi atacada por três homens em uma van que passava por Copacabana. Ela foi es-tuprada 8 vezes.

Outro aconteceu no dia 3 de maio em um micro-ônibus da linha 369 (Bangu-Largo da Carioca) que transitava na Ave-

nida Brasil. A mulher de 30 anos foi vio-lentada em plena luz do dia, às 15h30 de uma sexta-feira. Em outro mais antigo, do dia 15 de fevereiro, uma menina de doze anos foi vítima de um estupro den-tro de um ônibus da linha 162 (Glória-Leblon) na Rua Jardim Botânico.

Segundo o Instituto de Segurança Pú-blica do Rio de Janeiro (ISP-RJ), só em março 497 mulheres denunciaram estu-pros no estado. De janeiro a março de 2013, as estatísticas apontam 1.503 ca-

sos. Em 2012, 16 foram estupradas por dia. Além de violações em ônibus e vans, as denúncias contra o pastor Marcos Pe-reira, acusado de seis estupros, também aumentam o clima de insegurança.

Mudanças estruturais“Se realmente quisesse ampliar a se-

gurança das mulheres, a prefeitura de-veria tomar atitudes estruturais, com investimento em iluminação, seguran-ça e transporte público de qualidade”, argumenta Eleutéria. Sem regularizar o transporte complementar em toda a ci-dade, a vida das trabalhadoras fi ca ain-da mais difícil.

Segundo ela, as mulheres que se deslo-cam para o trabalho no início da manhã, às 6h, e aquelas que retornam só depois das 22h, são as vítimas mais vulneráveis para estupradores.

“Os ônibus circulam raramente em certos lugares e, para piorar a situação,

Vagões femininos, solução superfi cial

Outro caso de estupro ocorrido em um banheiro da estação do metrô da Central do Brasil também revela que as mulheres não estão seguras nem mesmo neste local iluminado. No dia 4 de janeiro, uma mulher de 30 anos foi atacada no banheiro exclusivo para funcionários.

O crime ocorreu mesmo com poli-ciais militares que fazem a segurança do Metrô Rio. Assédios e constrangi-mentos são comuns nestes espaços, lembra Eleutéria. “As mulheres gri-tam e chegam a abandonar o trem e o metrô em função do assédio”.

Para ela, a política de reservar um vagão feminino segrega as mulheres do convívio e resolve superfi cialmen-te o problema.

“Em primeiro lugar, o grande nú-mero de trabalhadoras não caberia em só um vagão. Em segundo, colo-car as mulheres em um lugar para afastar os homens aparenta dar o di-reito a eles de fazerem o que quise-rem nos vagões coletivos e em outros espaços”, explica. (VV)

497mulheres denunciaram estupros

em março de 2013

Proibição de vans na zona sul do Rio piora segurança das mulheresRIO DE JANEIRO Sem transporte complementar, trabalhadoras do Rio fi cam ainda mais vulneráveis à espera de ônibus que não circulam 24 horas, em ruas precariamente iluminadas

“Os ônibus circulam raramente em certos lugares e, para piorar a situação, a iluminação fi ca cada vez mais precarizada”

nos locais mais afastados do centro a ilu-minação fi ca cada vez mais precarizada”, denuncia Eleutéria.

A Coordenação Especial de Transporte Complementar estima que circulam pe-la cidade 6 mil vans e a maioria não pos-sui permissão.

Casa de parto, alternativa humanizadaSAÚDE Em São Paulo a Casa do Parto de Sapopemba – única mantida pelo SUS – é um destes lugares exclusivos à realização de partos naturais e humanizados sem intervenções médicas desnecessárias

Há nesse momento a necessida-de de se colocar em pauta o proje-to apresentado pela Vereadora do PT em São Paulo Juliane Cardo-so para a liberação de fundos para a construção e manutenção de no-vas Casas de Parto na cidade.

“O hospital também lucra muito mais com um processo cirúrgico complexo e com as possíveis intercorrências relacionadas à cesariana do que com um parto natural”

VIOLÊNCIA

A mulher deixou de ser a protagonista do parto, sendo pouco encorajada a enfrentar tudo como um processo natural

Mulher espera por ônibus em ponto na cidade do Rio de Janeiro

Fachada da Casa de Parto de Sapopemba

Pedro Jackson

Adam Jones-Global Photo Archive/CC

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brasilde 23 a 29 de maio de 20138

Pedro Carranode Curitiba (PR)

EM ENTREVISTA ao Brasil de Fato, o professor do departamento de Econo-mia da UFPR, Francisco Paulo Cipolla, analisa a atual crise do capitalismo, so-bretudo nos centros EUA e Europa, com características particulares em re-lação a outros movimentos de crise do capital. Uma dessas diferenças é o fato de que há no capitalismo atual uma bo-lha baseada no crédito ao consumo em geral e não só das empresas.

A análise do professor aponta aspec-tos para a compreensão do caráter da crise, os limites do capitalismo atual e o seu vínculo com a receita estatal. “En-tão, a crise se manifesta aqui de manei-ra sorrateira, através desses vários me-canismos que nos mostram que esta-mos na verdade submetidos a um siste-ma de austeridade mundial, já há mui-to tempo. Ele se manifesta através de superávit primário”, critica, explican-do também a dimensão e o papel das fi -nanças nesse movimento de crise.

Brasil de Fato – Qual a caracterização que o senhor faz da crise do capitalismo hoje?Francisco Paulo Cipolla – Tivemos uma crise bancária que se transformou em uma crise industrial, essa é a pri-meira caracterização geral. E, uma vez transformada em crise industrial, is-to é, em crise de reprodução do siste-ma capitalista, a escala global, nós ti-vemos um segundo ato, que é a tenta-tiva de resgate da economia dentro das entranhas da depressão ou da recessão. E esse resgate vem acontecendo de for-ma diferenciada entre os EUA e a Euro-pa. Enquanto nos EUA houve um gasto massivo para recuperar tanto o sistema fi nanceiro como a demanda efetiva, na Europa estamos assistindo a um apro-fundamento da austeridade. E a auste-ridade na Europa tem aprofundado os efeitos da depressão.

Como se, na Europa, as razões que levaram à crise continuassem sendo aplicadas pelos governos?

A razão da crise na Europa não foi a austeridade, a razão da crise foi resulta-do da internacionalização da atividade bancária dos bancos europeus. Com o boom imobiliário nos EUA e com a uni-fi cação da moeda na Europa, em 1999, quando se dá a introdução do Euro, os bancos da noite para o dia tiveram um palco de investimentos, um palco de ação ampliado para proporções da es-cala da economia estadunidense. De fa-to, a economia americana é uma econo-mia de 13 trilhões de dólares e, com a unifi cação europeia, os bancos se viram diante de um euro cuja cobertura era mais ou menos o mesmo valor: 12 tri-lhões de dólares. Então, da noite para o dia, você tem um agigantamento das possibilidades de atividade bancária. De modo que esses bancos internacionali-zaram seus investimentos dentro da Eu-ropa, na forma de compra de títulos pú-blicos de países estrangeiros. Isso é im-portante: a maior parte da dívida públi-ca de posse dos bancos europeus é de dívida pública de países estrangeiros e não do seu próprio país, houve uma in-ternacionalização do seu portfolio den-tro da Europa. Porém, mais importante que isso foram os investimentos na bo-lha imobiliária americana, que os ban-cos europeus fi zeram, levantando fun-dos dentro dos próprios EUA. É como se na verdade os bancos europeus tives-sem duplicado dentro dos EUA o tama-nho do sistema fi nanceiro, porque em questão de cinco a sete anos eles tinham ativos dentro dos EUA do tamanho dos ativos do sistema fi nanceiro americano, através de uma sucção de dinheiro den-tro dos EUA. Então, como se dava is-so? Esses bancos emitiam títulos que se

chamavam papeis comerciais, são títu-los de curto prazo, vendidos para fundos mútuos (Money Market Funds). Então, eles levantavam dinheiro de curto pra-zo e aplicavam em derivativos da dívida imobiliária. Quando se deu o estouro da bolha, o fi m do boom imobiliário, esses bancos perderam somas enormes de di-nheiro. E tiveram que contrair o crédito, o que foi o início da crise europeia.

Esse movimento se conjuga com uma crise no setor produtivo, uma crise de superprodução, como alguns analistas colocam?

Em geral, do ponto de vista teórico, na obra de Marx, a crise de superprodução é, ao mesmo tempo, uma crise causada, digamos assim, por excesso de crédito, por uma tendência do sistema a produ-zir além dos seus limites. Na teoria de Marx, essa tendência se dá pelo fato de que o equilíbrio entre empresas que poupam para investir depois, ou seja, empresas que acumulam capital na for-ma dinheiro, para investir depois, e em-presas que estão na fase de usar esses fundos de acumulação e transformá-los em capital produtivo, ele se rompe na fase de aceleração do ciclo, porque to-dos os capitais têm pressa em transfor-mar seus fundos monetários em capi-tal produtivo. O número de capitais que se apresentam na fase de investimento produtivo se adensa, e portanto aquele equilíbrio entre capitais que estão guar-dando dinheiro e capitais que estão in-jetando dinheiro, se rompe para o lado dos capitais que estão injetando dinhei-ro, o que signifi ca que se tem um exces-so de demanda ocasionado por exces-so de crédito. Já que aqueles capitais que tinham pouco dinheiro só podem investir tomando dinheiro empresta-do. Bom, essa era a ideia de Marx. Es-sa ideia desembocava numa fase espe-culativa porque como você tem mais de-manda de meios de produção que ofer-ta, você tem então um começo de infl a-ção, de aumento de preços, abre-se um período especulativo, no qual agentes econômicos vão tentar obter crédito pa-ra tirar vantagem do processo infl acio-nário. O processo infl acionário se de-senvolve. Assim que alguns empreen-dimentos especulativos estouram, tudo vem abaixo, porque a bolha especulati-va vem abaixo.

Então, como comparar essa análise e a crise nos EUA?

O que tem de igual é que tivemos uma bolha baseada no crédito, mas baseada no crédito ao consumo e não no crédito às empresas. O crédito ao consumo em geral, dos trabalhadores em geral (mis-turado com a especulação obviamen-te, de pessoas que compraram casas para revender etc). Mas, em geral, foi uma bolha de crédito ao consumo tan-to nos EUA como na Europa. Isso é im-portante, então boa parte do crescimen-to europeu anterior à unifi cação do eu-ro até desembocar na crise foi em parte por esse crescimento do crédito ao con-sumo, principalmente em países como Grécia, Espanha e Irlanda, onde houve um boom imobiliário. O que tem de pa-recido é que o boom foi baseado no cré-dito, só que crédito ao consumo, já que o ciclo descrito pelo Marx estava meio bloqueado pelo fato de que a acumu-lação de capital não tem aquela exu-berância de ciclos de desenvolvimento, baseados no crédito e de crise industrial baseada no colapso de processos espe-

culativos ligados ao boom industrial. A noção de crise econômica do Marx e cri-se de superprodução é, na verdade, não uma crise de superprodução de oferta, mas uma crise de superprodução de de-manda, excesso de demanda de investi-mento de meios de produção. É um ex-cesso de acumulação. Isso mudou um pouco porque o sistema capitalista en-trou numa espécie de letargia de lon-go prazo, no qual a taxa de crescimen-to é mais ou menos mórbida, informe, e o sistema acumula dinheiro do mes-mo jeito que antes. Então, criou uma contradição entre acumulação mone-tária nos bancos e pouca fruição des-sa acumulação monetária para investi-mento produtivo. Essa acumulação mo-netária acabou se redirecionando pa-ra o consumo. Então agora temos uma contradição na qual o capitalismo cres-ce devagar, mas produz crises bancárias do mesmo jeito. Esse é o pior dos dois mundos, por assim dizer.

E a tendência é de continuidade desse processo? Você falou das medidas de incentivo nos EUA, mas que não apontam uma plena recuperação.

Nos EUA, é difícil voltar a um dina-mismo forte, porque a massa de dívida que foi contraída pelas pessoas é mui-to grande. Como o consumo era impor-tante, agora as pessoas não vão consu-mir tanto, elas têm que pagar o que de-viam. É um momento de crescimento muito mais reduzido da demanda im-pulsionada pelo crédito, logo o ritmo de crescimento da economia como um todo é muito menor que antes. E isso, nos EUA, com base nos gastos do Esta-do e aumento do endividamento públi-co. Na Europa, o que estão tentando fa-zer – FMI, Banco Mundial e Banco Cen-tral Europeu – é reduzir tudo o que for possível, emprego público, salários dos funcionários, dívida pública e das pes-soas, então isso tudo leva a uma redu-ção do dispêndio, que reduz o que Key-nes chamaria de demanda efetiva, o que reduz o nível de emprego. Então esta-mos vendo na Europa um processo tí-pico da Grande Depressão. É como se a Europa estivesse revivendo os EUA, que achava que tudo voltaria ao normal deixando a economia quebrar.

Fala-se na perspectiva de uma crise rastejante.

Nesse caso, é uma grande depressão mesmo. Do ponto de vista de Marx, a crise é o modo de funcionamento cícli-co do capitalismo, para destruir capi-tal excessivo, diminuindo o valor deles e destrói materialmente o capital que não é usado. Isso está acontecendo na Europa, mas como a burguesia mundial e suas instituições aprenderam que não se pode deixar o sistema se auto-sanear por meio da destruição de capital, o sis-tema não mais se saneia por meio des-se modo, ele deve se sanear por meio da destruição do trabalho. Só tem dois as-pectos, o capital variável e o constante. Se o sistema de crise não destrói mas-

sivamente o capital constante, tem quedestruir o massivamente o capital va-riável, diminuindo o seu valor. Isso é oque acontece agora por meio do desem-prego. Vejam que na Grécia, por exem-plo, professores tiveram o salário redu-zido em 15%. Isso não só os professores,mas todo o funcionalismo público. En-tão, há em curso um processo de des-truição de capital variável, no sentidode desemprego e corte de salário. En-tão, esse é o modo mais genérico peloqual o sistema está se saneando, e ele sesaneia também por meio da destruiçãode dívida pública e privada, para recon-duzir o sistema à taxa de juros baixas,para reavivar o sistema. Mas, depen-dendo das condições, isso não é pos-sível. O Japão é um exemplo, os EUAtambém, com taxas de juros próximasde zero, mas isso não foi capaz de reer-guer o sistema.

Como se conjuga esse elemento da dívida e da crise fi nanceira?

A dívida não era um problema até a crise bancária. Na Itália, Espanha... na Grécia foi talvez o único lugar, pois eles escondiam, para se manter na Zona do Euro, o verdadeiro montante do défi cit público, portanto, o montante que te-ria que aumentar a dívida pública. Mas o problema da crise não surgiu da dívi-da pública europeia, mas do fato de que, com a perda bancária originada da cri-se imobiliária, já que os bancos europeus estavam envolvidos até o pescoço, houve uma parada creditícia, em analogia à pa-rada cardíaca. Os bancos passaram a dar menos crédito aos agentes econômicos europeus, com isso a taxa de crescimen-to decresceu. Com a queda na taxa de crescimento europeia, os Estados nacio-nais arrecadaram menos, mas tiveram que gastar da mesma forma para manter a economia e os próprios bancos. Então o défi cit aumentou e com isso aumen-tou a necessidade do endividamento pú-blico, mas os bancos já não queriam au-mentar o crédito ao setor público. O se-tor público se viu em face da necessida-de de aumentar a emissão de dívida pú-blica, mas ao mesmo tempo havia um re-querimento do setor bancário por taxas de juros mais altas. Então, na verdade, o problema da dívida pública foi causa-do pelo sistema bancário privado. O se-tor bancário privado aumentou os juros no momento em que eles contraíam cré-dito. Do ponto de vista marxista, não se trata de culpar os bancos, mas um sis-tema econômico que funciona à base de crédito. Então, é natural que o sistema se contraia totalmente quando o crédito se contrai. Então, não é uma culpa do ban-queiro ou do industrial, mas na verdade uma crise resultante do modo de funcio-namento do capitalismo.

Um movimento de letargia do capitalENTREVISTA Professor de economia aponta os mecanismos da crise mundial do capitalismo, tais como o endividamento pelo crédito e a expansão do sistema bancário mundial a partir da zona do Euro

Quem é Francisco Paulo Cipolla é Doutor em Economia (New School for Social Research – 1990). Atual-mente é professor titular do Departamento de Economia da Universidade Federal do Paraná.

“A razão da crise na Europa não foi a austeridade, a razão da crise foi resultado da internacionalização da atividade bancária dos bancos europeus”

“Estamos vendo na Europa um processo típico da Grande Depressão. É como se a Europa estivesse revivendo os EUA”

“Não é uma culpa do banqueiro ou do industrial, mas na verdade uma crise resultante do modo de

funcionamento do capitalismo”

Manifestação de trabalhadores espanhóis

www.workerspower.co.uk

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de 23 a 29 de maio de 2013 9brasil

Viviane Tavaresdo Rio de Janeiro (RJ)

HÁ 35 ANOS, quando trabalhadores da saúde e familiares fundaram o Mo-vimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), foi dado início a uma das maiores conquistas da saúde no Brasil: a luta antimanicomial que deu origem à Reforma Psiquiátrica.

A partir da criação do movimento ‘Por uma sociedade sem manicômios’ é que começou a fi car evidente que o mo-delo implementado até então não era o mais adequado. Depois de muitas de-núncias das violências praticadas nos manicômios, da questão da mercanti-lização da loucura, com extensa rede privada na assistência e do despreparo dos profi ssionais, este modelo começou a entrar em decadência.

Quase uma década depois surgiu o primeiro Centro de Atenção Psicosso-cial no país (Caps), na cidade de São Paulo. De acordo com o documento do Ministério da Saúde Reforma Psiqui-átrica e política de saúde mental no Brasil, o processo de intervenção do Hospital Anchieta, em 1989, e a cria-ção do primeito Caps foram dois mar-cos de que ‘a Reforma Psiquiátrica, não sendo apenas uma retórica, era possí-vel e exequível’.

O dia 18 de maio surge nesse contexto para deixar registrado no calendário que essa luta não deveria ser esquecida. O Presidente Nacional da Associação Bra-sileira de Saúde e um dos fundadores da Reforma Psiquiátrica, Paulo Amarante, conta que a data surgiu no ano de 1987 durante o I Encontro Nacional dos Tra-balhadores da Saúde Mental, na cidade de Bauru, em São Paulo.

“O movimento começou com traba-lhadores da área de saúde mental, mas depois vimos que era muito importante envolver a sociedade, levar a nossa lu-ta para outros atores, entre os quais, os próprios pacientes, os familiares e ou-tros atores de movimentos sociais, co-mo os de direitos humanos e da diver-sidade. Por isso é importante marcar uma data especial para esta luta”, re-lembra.

Segundo Paulo Amarante, a ideia de manicômio passou a ser reconfi gurada, não só como estabelecimento do hospí-cio, mas do conjunto de saberes e prá-ticas que falam sobre a loucura, a doen-ça, saberes que são estigmatizadores, segregadores etc.

Avanços e retrocessosSegundo o professor, esta luta está vi-

vendo um novo capítulo agora. Entre os pontos de retrocesso estão a privatiza-ção da saúde, inclusive na área da saú-de mental, com o crescente incentivo às comunidades terapêuticas, e a interna-ção compulsória.

Por outro lado, pesquisadores e traba-lhadores da área reconhecem que tam-bém houve muitos avanços: ao longo destas quase três décadas, os investi-mentos do Ministério da Saúde muda-ram da medicalização para o tratamen-to, exemplo disso, é a criação dos Cen-tros de Atenção Psicossociais (Caps), além da mudança de pensamento da população que atualmente acredita em maneiras alternativas de cuidado com os pacientes de doenças mentais.

A professora e pesquisadora da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Nina Soalheiro indica também os fechamentos dos leitos de hospitais psiquiátricos como uma gran-de conquista.

“O Brasil tinha um parque manico-mial estimulado durante o período da ditadura e fi nanciado pelo Estado, o chamado estímulo à indústria da lou-cura. Depois de muitos debates e com a aprovação da lei em 2001 – Lei 10.216/2001 (Lei da Reforma Psiquiátrica) – começa a surgir de maneira mais forte a substituição deste modelo hospitalocên-trico e de exclusão por uma rede de ser-viços que vai sendo confi gurada no país inteiro”, explica.

Paulo Amarante aponta também co-mo conquista a grande mobilização

cas, desenvolver um projeto para envol-ver aqueles pacientes crônicos abando-nados, sem perspectiva de tratamento em atividades cotidianas, como ajudar a fazer comida, a discutir o que está ruim e o que está bom, no tratamento em ge-ral. E isso teve efeitos terapêuticos ma-ravilhosos”, lembra.

Nova fonte“A princípio, a comunidade terapêu-

tica não pode ser um local fechado, on-de há violência, onde não tenha direitos, ou seja, tudo ao contrário do que essas comunidades estão apresentando. Além disso, elas dizem respeito a um serviço de saúde e não são. São serviços muitas das vezes de caráter religioso e que vi-sam ao lucro. Agora a novidade é que to-do mundo descobriu como tirar dinhei-ro do SUS e essa é uma nova fonte”, ana-lisa Amarante.

O deputado Adriano Diogo (PT/SP), que é presidente da Frente Parlamentar de Luta Antimanicomial, defende que as comunidades terapêuticas são manicô-mios disfarçados.

“Agora o poder público dá este nome pomposo, mas não passam de centros manicomiais. Elas continuam usando o sistema de tranca, de isolamento, de in-

comunicabilidade. A maioria é de pesso-as que usam isso como negócio, para ga-nhar dinheiro com poucas e honrosas ex-ceções. É um depósito de gente”, diz.

A presidente do Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro, Vivian Fra-ga, denuncia que o Estado deveria inves-tir mais dinheiro no SUS no lugar de fi -nanciar este tipo de tratamento.

Organizações religiosas“Organizações religiosas não deveriam

receber subsídios do Estado. Infelizmen-te, tal prática não está isolada em São Paulo ou no Rio de Janeiro. Estamos fa-lando de uma diretriz do próprio Minis-tério da Saúde e fi nanciada, em alguns estados, pela política de assistência so-cial”, aponta.

A professora da EPSJV Nina Soalheiro relembra que durante a ditadura militar houve um crescimento estrondoso de lei-tos privados e que agora esse fenômeno vem se repetindo.

“É evidente que a Saúde Mental optou estrategicamente por fazer o credencia-mento de instituições por pressão dos setores evangélicos do Congresso e ago-ra passa a regulá-las. Em relação ao in-centivo a este modelo, vemos isso de for-ma clara como o recente programa insti-tuído pelo estado de São Paulo, que en-trega um valor à família e já destina o seu uso. É uma bolsa que garante a essas clí-nicas uma clientela cativa. O Estado en-tão se exime da responsabilidade, fi nan-ciando um setor privado, que além de tu-do tem muitos problemas”, informa, ci-tando o programa ‘Cartão Recomeço’, que destina uma bolsa de R$ 1.350 por mês para custear o tratamento do usuá-rio de crack, mas este benefício só pode ser gasto em comunidades terapêuticas conveniadas ao programa. (VV) (Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)

Comunidades terapêuticasRelatório mostra violações das mais diferentes formas em 68 comunidades terapêuticas em 25 estados

“São serviços muitas das vezes de caráter religioso e que visam ao lucro. Agora a novidade é que todo mundo descobriu como tirar dinheiro do SUS e essa é uma nova fonte”

em torno desta temática. Ele lembra que autores como Boaventura de Sou-sa Santos chegam a reconhecer a lu-ta antimanicomial como um dos maio-res movimentos sociais do Brasil e da América Latina.

“O mais interessante disso tudo é que a luta é um movimento, não é uma as-sociação nem entidade. Mas tem legi-timidade e representação no Conselho Nacional de Saúde e vários estaduais e municipais. Isso criou uma dimen-são de participação muito grande em todo o país. Agora, o 18 de maio fi cou pequeno, já falamos em semana da lu-ta antimanicomial e até já chamamos o mês de maio de mês da luta antimani-comial”, refl ete.

A importância do CapsCom a Publicação da Portaria GM

nº 3088, de 23 de dezembro de 2011, instituiu se a Rede de Atenção Psicos-social (Raps) para pessoas em sofri-mento decorrente de transtorno men-tal, consumo de crack, álcool e outras drogas no âmbito do Sistema Único de saúde (SUS).

Avanços e retrocessos na luta antimanicomialSAÚDE No dia 18 de maio, a principal pauta foi a luta contra a internação compulsória e as comunidades terapêuticas

O dia 18 de maio surge nesse contexto para deixar registrado no calendário que essa luta não deveria ser esquecida

Entre os pontos de retrocesso estão a privatização da saúde, inclusive na área da saúde mental, com o crescente incentivo às comunidades terapêuticas, e a internação compulsória

do Rio de Janeiro (RJ)

O Conselho Federal de Psicologia apre-sentou em 2011 o Relatório da 4ª Inspe-ção Nacional de Direitos Humanos: lo-cais de internação para usuários de dro-gas, em que mostra violações das mais diferentes formas em 68 comunidades terapêuticas em 25 estados.

“Há claros indícios de violação de direi-tos humanos em todos os relatos. De for-ma acintosa ou sutil, esta prática social tem como pilar a banalização dos direi-tos dos internos. Exemplifi cando a afi r-mativa, registramos: interceptação e vio-lação de correspondências, violência físi-ca, castigos, torturas, exposição a situa-ções de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o an-ti-HIV – exigência esta inconstitucional –, intimidações, desrespeito à orienta-ção sexual, revista vexatória de familia-res, violação de privacidade, entre ou-tras, são ocorrências registradas em to-dos os lugares”, diz o relatório.

Paulo Amarante lembra que há um distanciamento do projeto original das comunidades terapêuticas. “O termo co-munidade terapêutica diz respeito a um projeto muito importante surgido na In-glaterra no pós-guerra de democratiza-ção das instituições psiquiátricas. Mi-litares, inclusive, naquela visão de re-construção da democracia, queriam, por meio das comunidades terapêuti-

Fazem parte da rede o Centro de Aten-ção Psicossocial, Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convi-vência e Cultura, Unidades de Acolhi-mento, leitos de atenção integral, além de outras iniciativas, como o programa De Volta para Casa, que oferece bolsas a pacientes egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos.

Dentre estes, o Caps é considerado a principal alternativa ao modelo de ma-nicômios. Eles são divididos em Caps dos tipos I, II e III, Capsi (para crian-

ças e adolescentes) e Caps ad (álcool eoutras drogas), de acordo com o tipo decuidado e complexidade do caso. Atual-mente, conforme dados do Ministérioda Saúde, existem 1.981 Caps em todo o território nacional.

Amarante reconhece que o número de Caps aumentou, mas considera ainda in-sufi ciente por conta da demanda. O pró-prio Ministério da Saúde mostra que 3% da população geral sofre com transtor-nos mentais severos e persistentes, ou seja, 5,7 milhões pessoas. Outras 12 mi-lhões apresentam transtornos psiquiátri-cos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas; e 12% da população, ou cerca de 23 milhões de pessoas, neces-sitam de algum atendimento em saúde mental, seja ele contínuo ou eventual.

“Houve um certo desinvestimento do Estado. Mas não é particular da Saúde Mental, é do SUS como um todo. Parado-xalmente, estamos diante de um gover-no popular que está assumindo mais os interesses privados, como o estimulo aos planos de saúde, as fi lantrópicas”. (Esco-la Politécnica de Saúde Joaquim Venân-cio EPSJV/Fiocruz)

Prefeitura de Belo Horizonte

“Por uma sociedade sem manicômio”, pede faixa em protesto em Belo Horizonte

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brasilde 23 a 29 de maio de 201310

Ciro Barrosde São Paulo (SP)

DADÁ MARAVILHA começou a entre-vista incisivo como um cabeceio certei-ro que se tornou sua marca registrada. Dos 926 gols que fez em 20 anos de jo-gador profi ssional, 499 gols foram de ca-beça. Como ele gosta de lembrar, é dele o recorde de gols de cabeça na história do futebol. “A cabeça tem dois olhos, aí fi ca fácil de acertar né?”, brinca.

Igualmente diretas são suas críticas aos preparativos para a realização da Copa do Mundo no Brasil. “Belo Hori-zonte, por exemplo, para pensar em Co-pa do Mundo, acho que precisa pensar primeiro em metrô, pensar na saúde, na educação. E assim é no Brasil também. O negócio tá feio no Brasil. Tá feio, feio, feio…”, diz.

Dadá também usa a cabeça para criti-car dirigentes, dizer que o futebol não é prioridade para o país e que se desiludiu com a Seleção Brasileira.

O que você acha do Brasil receber a Copa do Mundo? Como você está avaliando isso?Dadá Maravilha – Bom, eu como bra-sileiro estou super feliz. Agora, como en-tendedor de futebol e um pouco como uma pessoa que entende o que é uma pá-tria, eu não vejo o Brasil em condições normais de sediar uma Copa do Mundo. E eu estou muito preocupado com o trân-sito, com os hotéis, com a infraestrutura que é necessária para a Copa do Mundo e para a própria vida do país. A vaidade, o que é normal mesmo do brasileiro, a mi-nha vaidade como brasileiro de sediar uma Copa do Mundo está muito gran-de. Mas eu não tenho expectativa nem do Brasil ser campeão e nem do Brasil se dar bem na organização. Tomara que o Dadá esteja totalmente enganado…

E quais são os principais problemas que o Brasil enfrenta na preparação da Copa do Mundo fora de campo?

Fora de campo temos problemas de infraestrutura muito grandes; Belo Ho-rizonte, por exemplo, para pensar em Copa do Mundo, acho que precisa pen-sar primeiro em metrô, pensar na saú-de, na educação. E assim é no Brasil tam-bém. O negócio tá feio no Brasil. Tá feio, feio, feio… Os políticos não fazem alar-de quanto a isso porque eles só querem fazer alarde no que é bom, o negativo eles cobrem, fi ngem que não vêem. Mas nós estamos carecas de saber que o po-vo está reclamando da saúde, da educa-ção e enquanto isso o Brasil se dá ao lu-xo de sair fazendo elefantes brancos por aí, que não vão ter competições depois que justifi quem. Então eu sinceramente estou muito triste com tudo isso que es-tá acontecendo. E o trânsito, como eu te falei, está como uma dinamite prestes a explodir. Tomara que eu esteja engana-do, mas o negócio não está as mil mara-vilhas não.

O que você acha da Copa ser quase que inteiramente bancada com dinheiro público?

Bom, eu não concordo. Porque o país tem que ter prioridades e entre as priori-dades não está o futebol. O futebol é um entretenimento, ele não pode ser, por exemplo, mais importante do que saúde e educação. Então estão tirando dinheiro da educação, da saúde, para investir em futebol. Estão desviando o foco. Mas in-dependentemente disso, o brasileiro po-de sofrer o que for, mas se ganhar a Copa ele vai fi car feliz. Então, já que se decidiu fazer a Copa, tomara que o Brasil ganhe a Copa para ajudar a amenizar a tristeza do povo brasileiro. Se o Brasil ganhar a Copa do Mundo, o cara vai tomar cacha-ça e vai esquecer que não tem nem arroz para comer.

E dentro de campo, o que você acha da equipe, da atual safra de jogadores da Seleção Brasileira?

Ninguém pode dizer hoje que o Brasil é o favorito para a Copa do Mundo, que o Brasil é um bom time, ou vai cair no

ridículo. A verdade, infelizmente, é que nós estamos correndo o risco de pas-sar uma vergonha dentro do nosso país. Duvidar do futebol brasileiro, eu não duvido não. Futebol brasileiro é o me-lhor que tem no mundo, só que antiga-mente nós éramos copiados, hoje a gen-te copia os outros times. Não estamos mais fazendo o nosso futebol de toque de bola, o nosso futebol de molecagem. Quando eu falo em molecagem estou fa-lando sobre dribles, dar caneta, dar cha-péu, enervar o adversário e botar a bo-la lá dentro. E o Brasil sabe dar olé, mas não está sabendo botar a bola lá dentro. Aqui é um nascedouro de craques, não dá para dizer o contrário. Mas o que eu acho é que você tem que avaliar os ide-ais de cada um. Por exemplo, na minha época o ideal da gente em primeiro lu-gar era vestir a camisa da seleção. Ho-je não. O cara quer saber só de dinheiro. O bom hoje é quem tem dinheiro, quem não tem dinheiro é porque não é bom. Hoje o cara vende o corpo, a alma por dinheiro. Futebol o Brasil tem, só não tem é patriotismo mais. O cara vai lá pa-ra a Europa, é chamado para a Seleção, mas não vem porque o Brasil vai dar 5 mil de bicho [premiação paga, geral-mente em dinheiro vivo, por resultados positivos com uma equipe ou seleção] e lá dá 15, 20. Falta patriotismo.

Mas você não acha que também há falta de vínculo do torcedor com a Seleção, e não só dos jogadores?

Eu, por exemplo, o Dario, o Dadá Ma-ravilha. Eu sou mais atleticano do que brasileiro hoje. Torço mais para o Atléti-co do que para o Brasil. Eu digo isso em todo lugar. Podem até me condenar, mas eu falo. Quando eu era jogador, eu era primeiro brasileiro e depois atleticano. Sempre. Eu me desiludi porque na mi-nha época da seleção brasileira, na sele-ção do tri, nós éramos patriotas até a ca-beça. A gente vibrava, chorava, éramos unidos pela nação. O nosso nome era na-ção, era Brasil. Por isso que a minha se-leção de 70 é considerada até hoje a me-lhor seleção de todos os tempos e eu te-nho essa certeza até o fi m da minha vida. Eu vou morrer e não vou ver nenhuma seleção melhor que a minha.

Pra muita gente a Seleção de 82 era comparável e até melhor que aquela de 70…

Comparável eu não acho, mas ela era também muito boa. Porque infelizmen-te no futebol a gente compara campeões. Quem é campeão é bom, quem não é, in-felizmente está sujeito a chuvas e trovo-adas. Infelizmente no futebol, o bom é o campeão.

E se você jogasse hoje? O Brasil resolveria os seus problemas com a camisa 9?

Olha, se eu jogasse hoje, com a produ-ção que eu tinha, que chegava qualquer bola e eu fazia. Começava um campeona-to e o artilheiro era o Dadá. Campeão é sempre o Dadá. Eu ia fazer isso. Ia conti-nuar fazendo. Eu hoje, se eu jogasse ho-je, o meu salário ia ser miseravelmente uns R$ 4 milhões. Eu seria artilheiro do brasileiro com 40 gols, 45, mais ou me-nos isso.

E como você vê o Fred, o Damião, os nomes que estão aí cotados para vestirem a 9 da Seleção Brasileira?

Me empolgo. Principalmente o Fred. O Fred eu tiro o chapéu para ele como jo-gador. O Damião também, mas está pas-sando uma fase mais difícil, não sei o que aconteceu com ele que ele tava tão bem, agora nem tanto. Eu não duvido do joga-dor brasileiro. Eu duvido da mentalida-de dos jogadores e dos dirigentes brasi-leiros, que só falam em dinheiro.

Você falou em mentalidade… Mas em geral, o que você mudaria no futebol brasileiro agora se você pudesse?

No futebol brasileiro hoje, a ideia é sempre defender para depois atacar. E eu acho que a melhor defesa é o ataque. Se você tiver um time habilidoso do meio de campo para a frente, vai sempre fi car difícil da bola chegar na sua defesa. En-tão é isso. Eu vou ver os treinos de fu-tebol hoje e dá vontade de chorar. O ca-ra não dá cinco cabeçadas no gol e já vai embora. Eu sou um cara exigente. Eu da-va cem cabeçadas por dia, chutava a bo-la no gol cem vezes por dia. Por isso que eu fi quei essa perfeição, esse Dadá Ma-ravilha. Eu treinei. Não me caiu do céu não, eu treinei muito. Por que que a bola do Dadá entrava no gol e a do outro não entrava? A coisa acontecia. Cansei de ou-vir que eu tinha sorte, mas não era só is-so não. Eu treinava muito e hoje os ca-ras treinam muito pouco. Não vejo mais forquilha pro cara dar cabeçada, só vejo chutar em gol, mas assim mesmo os ca-ras erram o gol.

E você acha que há uma defi ciência técnica em curso no futebol brasileiro, comparado ao tempo em que você jogava?

Acho que há sim e estamos vivendo um problema de jogar só no contra-ataque. E como vai jogar no contra-ataque se ho-je poucos jogadores brasileiros são velo-zes? Então temos que voltar a ter jogo de toque de bola, em agrupamento, com técnica. Como vamos esquecer o Santos do Pelé, o Botafogo do Garrincha, o Pal-meiras do Ademir da Guia, o Corinthians do Rivelino? Não tem como. Esses times treinavam dar passes, lançar em veloci-dade. Hoje os caras treinam pouco. Na base também. 90% dos jogadores che-gam no profi ssional com defi ciências téc-nicas. Até porque tem a coisa do cara só chegar ao profi ssional se tiver um bom empresário.

Você não acha que o futebol pode acabar servindo como um escape, uma distração para o povo em relação à vida política?

O futebol já esteve muito ligado à po-lítica. E até ajudava a manter a situação política, como na época do militarismo. O povo estava sofrendo, mas a gente fa-zia coisas lindas e maravilhosas dentro de campo, o povo fi cava feliz, se envol-via no futebol e esquecia todo o resto que estava vivendo. Hoje eu já acho que o fu-tebol não tem mais esse poder porque o nosso futebol não está mais maravilhoso. Tanto que o Brasil está na vergonhosa e modesta 19ª posição no ranking mun-dial. Nós sempre fomos os primeiros e hoje estamos nessa posição. É uma ver-gonha. O futebol não está conseguindo mais esconder as coisas ruins que o tor-cedor, o brasileiro está vivendo.

E como você avalia, por exemplo, o futebol espanhol e alemão que são consideradas as grandes potências futebolísticas de hoje? Você gosta de ver o modo como eles jogam?

Eu gosto de ver o futebol espanhol. Eles estão passando uma fase ruim ago-ra, mas acredito que a Espanha vai ser campeã do mundo de novo. O futebol alemão está passando uma fase muito boa, mas o futebol alemão só está fazen-do o que o brasileiro fazia. Eles estão co-

piando o Brasil da época boa, enquanto o Brasil copia a Alemanha da época ruim.

E o que aconteceu no meio do caminho para que houvesse essa inversão? De a gente passar a copiar os europeus?

Acho que o principal é a questão da mentalidade de pensar só em dinheiro. Ninguém pensa mais em produção, por exemplo. Então o cara chega no profi s-sional do Palmeiras, do Corinthians, do Atlético-MG, do Cruzeiro, do Fluminen-se, do Vasco, do Internacional e acha que já tá bem na fi ta, como diz a gíria. Acon-tece a acomodação, porque ali dinheiro o cara já ganha muito.

E o Galo? Você está feliz com o momento do seu time?

O Atlético está jogando de uma manei-ra maravilhosa ultimamente. Mas o Atlé-tico oscila muito e às vezes cai numa es-parrela de reclamar muito com o juiz. Ti-me bom não reclama com o juiz. Joga-dor bom não reclama com juiz. Tam-bém o time faz muita falta. O Galo ho-je é muito brilhante, mas faz muita falta. O meu Atlético fi cou sem ganhar um car-tão amarelo ou vermelho durante 27 jo-gos. Joguei 27 jogos e não ganhei um car-tão. E olha que era pra eu tomar cartão. Porque ninguém corria como Dadá, eles me davam pontapé. E nem pulava. Pular comigo só se tivesse uma escada de bom-beiro pra chegar aonde eu chegava. Pra correr comigo tinha que pegar táxi. En-tão os caras passavam o jogo todinho me batendo e eu fi cava tranquilo. Vou recla-mar? Eu tinha que fazer gol e era isso o que eu fazia. Hoje o cara toma um pon-tapé, revida e é expulso. Reclama com o juiz se ele anular um gol. Juiz anula-va um gol meu e eu fi cava rindo. Eu pen-sava: “problema dele, vai ter que anular mais dois”. Ninguém enervava o Dadá, porque eu dependia da minha tranqui-lidade. Eu tranquilo e o beque nervoso, quem vai levar vantagem?

E o que você acha que a Copa do Mundo pode trazer de avanço para o futebol brasileiro, para o país?

Os megaeventos vão enriquecer quem vier aqui, não vai deixar nada para o Bra-sil não. São esses caras que vão vir aqui, vão dizer que o Brasil é lindo, que as mu-lheres são bonitas e vão voltar para o lu-gar deles com os bolsos cheios. Nem im-postos os caras vão pagar. E acho que to-do brasileiro é impotente ao elogio. Elo-giou a gente, a gente abre a guarda. En-tão eles fazem isso, nos elogiam e levam o que quiserem.

Faltou uma postura mais fi rme do governo com relação às exigências que a Fifa fez para a realização da Copa em solo brasileiro?

Acho que não, porque é o seguinte. O Brasil queria o privilégio de fazer a Co-pa e a Fifa também queria que fosse aqui e fez tudo quanto era exigência. O Bra-sil então para fazer uma Copa se cegou. A Fifa nos cegou. Cegaram os brasileiros, cegaram os políticos e agora nós estamos vendo a merda em que nós caímos. Ago-ra eles estão pisando na cabeça da gente, exigindo demais e a cobrança está gran-de demais. Com a coisa em curso, é difícil resistir e fazer alguma coisa.

Falta mais posicionamento de pessoas de dentro do futebol com relação aos problemas estruturais que ele enfrenta?

Antigamente os dirigentes brigavam pelos clubes. Hoje eles brigam pelo in-teresse deles. Então os caras saem, que-bram tudo e não prestam conta a nin-guém. Isso não é só com dirigentes não, é com os nossos governantes. O Brasil está uma vergonha dentro e fora de campo.

Você já foi discriminado por ser negro dentro do futebol?

Já. E qualquer jogador negro que falar que não foi é mentiroso.

Para fechar, o que você vê de futuro para o futebol brasileiro dentro e fora de campo? Qual o horizonte do futebol brasileiro pros próximos anos?

Se a gente analisar o futebol brasileiro, a gente tem que falar do jogador sim, mas tem que falar do torcedor. Sem torcedor não tem futebol. É o cara que compra 250 gramas de carne, poderia comprar mais, mas deixa o restante para comprar o ingresso. Tomando a birita dele, a ca-chaça dele e vendo o time dele jogar ele tá feliz. Mas você vê, pobre coitado do tor-cedor que está se acostumando com mui-to pouco de todo lado, no campo ou fo-ra dele. Eu, como ex-jogador de futebol, acho que as coisas vão começar a melho-rar quando houver mais amor à profi ssão de torcedores e dirigentes. O dinheiro não é a causa, é a consequência. Tem que haver mais respeito deles com os clubes e deles com eles mesmos. Tá cheio de jo-gador, por exemplo, passando pelo Atlé-tico e não deixando marca nenhuma. Le-gado nenhum. Mas mesmo assim o cara tá rico, ganhou dinheiro. Isso eu acho ve-xatório. Tem muito ídolo de barro por aí. (A Pública: www.apublica.org)

“Brasil não tem condições de falar em Copa”FUTEBOL Dadá Maravilha, ex-camisa 9 do Atlético-MG e do Internacional diz que futebol não é prioridade para ser bancado com dinheiro público e lamenta decadência técnica dentro de campo

“Se eu jogasse hoje eu ia ganhar por baixo uns quatro milhões e ser artilheiro com 40, 45 gols no Brasileirão”

“Eu não duvido do jogador brasileiro. Eu duvido da mentalidade dos

jogadores e dos dirigentes brasileiros, que só falam em dinheiro”

Agência Minas

O ex-centroavante da seleção brasileira Dadá Maravilha

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cultura de 23 a 29 de maio de 2013 11

Eduardo Campos Limade São Paulo (SP)

EM 2013, O GRUPO de teatro Buraco d’Oráculo completa 15 anos de atuação nas ruas de São Paulo. Nos espaços da ci-dade e nos problemas de homens e mu-lheres urbanos, a trupe – que já nasceu do lado de fora de edifícios teatrais – tem seu eixo central de trabalho e de crítica.

A história do Buraco d’Oráculo come-ça em 1998, quando três de seus funda-dores participaram de uma ofi cina de te-atro de rua com o ator e diretor João Car-los Andreazza. “Participamos do Núcleo de Teatro de Rua da Ofi cina Amácio Ma-zarropi. A partir dessa experiência, o tra-balho com teatro de rua tornou-se nos-so foco”, lembra o ator e diretor Adail-ton Alves.

A defi nição da rua como espaço de tra-balho teve íntima relação com a própria origem dos artistas. “Morávamos em lu-gares em que não havia nada em matéria de equipamentos públicos culturais”, ex-plica Alves. Logo que se formou, o gru-po buscou fazer apresentações em bair-ros da zona leste de São Paulo – algumas das regiões visitadas, situadas nos ex-tremos do bairro do Itaim Paulista, ain-da estavam em formação naquela épo-ca. “Começamos a fazer nossos traba-lhos em nosso próprio chão. Talvez não tivéssemos embasamento político, na-quela época, para ter uma real percepção do que estávamos fazendo, mas algo nos trazia para cá”, conta outro fundador do grupo, Edson Paulo.

A instalação defi nitiva na região de São Miguel Paulista ocorreu em 2002, por meio do contato com militantes das artes que atuavam na região há décadas. Esses ativistas eram remanescentes do Movi-mento Popular de Arte (MPA), que des-de o fi m dos anos 1970 estimulou a agita-ção cultural em espaços do bairro, prin-cipalmente na praça Padre Aleixo Mon-teiro Mafra.

A primeira ação sistemática do Buraco d’Oráculo na região deu-se por meio do projeto Se Essa Rua Fosse Minha, que reunia sete grupos de teatro de rua. “A ideia era criar um corredor cultural nos bairros: cada grupo teria uma progra-mação em uma região e, em um momen-to seguinte, os grupos circulariam entre elas”, explica Adailton Alves. O projeto teve vida curta, mas foi o estopim para a organização dos grupos de teatro de rua.

“Somos do teatro de rua!” Naqueles anos, havia uma efervescên-

cia no movimento teatral na cidade de São Paulo. A articulação política dos gru-pos em frentes como o movimento Arte Contra a Barbárie resultou na aprovação do Programa Municipal de Fomento ao Teatro, em 2002. “Defendíamos aquela luta, mas o teatro de rua não era bem vis-to sequer pela própria categoria teatral. Naquele momento, foi importante riscar o chão no sentido de dizer: ‘somos do te-atro de rua!’”, afi rma Alves.

A partir daí, o Buraco d’Oráculo come-çou a travar contato com mais a mais co-letivos, reunidos em diferentes iniciati-vas que foram se constituindo, como as Overdoses de Teatro de Rua. “Todos os grupos que estavam nessa ebulição do teatro de rua resolveram fazer apresen-tações ininterruptas, das 10h às 18h, no boulevard da Av. São João. Na época não havia Virada Cultural, mas já fazía-mos isso – e os públicos eram gigantes-cos”, recorda Edson Paulo.

Em pouco tempo, a articulação tornou-se mais ampla, abrangendo grupos de outras regiões do país. Em 2007, surgia a Rede Brasileira de Teatro de Rua, em Salvador. “Inicialmente, foi criado um espaço virtual de discussão. Em 2008, a Rede passa a ter encontros regulares, du-as vezes por ano”, explica Alves.

O fortalecimento político obtido com essa articulação permitiu que o teatro de rua se afi rmasse junto ao poder público e à própria categoria teatral. “Hoje em dia dialogamos dentro do campo do teatro como um todo”, aponta Alves.

Um dos focos principais da Rede é a discussão de políticas públicas para o te-atro. Embora conquistas importantes te-nham sido logradas – como o prêmio Ar-tes Cênicas na Rua, discutido entre a Re-de e o Ministério da Cultura –, nos últi-mos anos houve uma série de retroces-sos no campo federal, conforme avalia o grupo.

“Por não termos mais nada a perder, colocamos nossas demandas sem ro-deios, o que desagrada a muita gente. Desde o Congresso Nacional de Teatro de 2011, o governo não nos recebe mais”, aponta Alves. Enquanto reivindicações históricas do teatro de grupo, como o Prêmio Teatro Brasileiro, encontraram diversos obstáculos, o governo investiu fortemente em programas como o Vale-Cultura – benefício de R$ 50 destinado a trabalhadores com renda de até cinco sa-lários mínimos para o consumo de bens e serviços culturais. “O Vale-Cultura não benefi cia nem o teatro de rua nem o tra-balhador brasileiro, pois privilegia a in-dústria cultural de massas”, defi ne Adail-ton Alves.

Processos de trabalhoEnquanto fortalecia o embate político,

o Buraco d’Oráculo mantinha suas ações localizadas, dando continuidade à cons-tituição de um circuito próprio em São Miguel Paulista e região.

Em 2002, o grupo realizou uma pri-meira mostra de teatro com grupos par-

ceiros. Com a itinerância crescente pela zona leste, o coletivo passou a trabalhar cada vez mais em bairros desprovidos de qualquer tipo de estrutura que pudesse abrigar uma peça teatral concebida pa-ra palco tradicional. “Por isso, em 2006 fi zemos a primeira edição da mostra con-tando apenas com teatro de rua”, lembra Edson Paulo.

Em 2005, o Buraco d’Oráculo obte-ve recursos públicos para desenvolver o projeto Circular Cohabs. Em cada con-junto habitacional, a trupe trabalhava por um mês: no primeiro fi nal de sema-na apresentava um espetáculo, que nos encontros seguintes era discutido e ser-via de insumos para uma ofi cina teatral. “Com esse formato de trabalho, circula-mos inicialmente por seis Cohabs”, con-ta Paulo. No ano seguinte, o projeto foi expandido, com o oferecimento de ofi ci-nas com seis meses de duração, abordan-do circo, expressão corporal, interepreta-ção, fi gurinos e adereços. “Pulamos para 18 Cohabs, atingindo mais de 30 mil pes-soas”, econtabiliza Adailton Alves.

O trabalho artístico do grupo tem co-mo eixos centrais, desde o início, a pró-pria perspectiva da rua, a linguagem far-sesca e a cultura popular. Tais elementos consolidaram-se como horizonte de tra-balho da trupe no espetáculo O Cuscuz Fedegoso, de 2002, permanecendo cen-trais em peças seguintes, como A Farsa do Bom Enganador e ComiCidade.

A vivência muito próxima do públi-co das periferias acabou por infl uir na produção do Buraco d’Oráculo. “Fazen-do nossas apresentações, sempre ouvi-mos muitas histórias. À certa altura, pas-samos a nos questionar sobre isso e de-cidimos, então, fazer um espetáculo que nascesse daqueles relatos, em vez de tra-zer uma peça pronta para o público assis-tir”, explica a atriz Lu Coelho.

Essa foi a gênese de Ser TÃO Ser – nar-rativas da outra margem. O grupo co-lheu mais de 80 horas de depoimentos em vídeo de moradores de seis comuni-dades em São Miguel Paulista e Cidade Tiradentes. Eram histórias sobre migra-ções, perda de vínculos sociais e afetivos e luta por moradia na cidade grande (veja quadro com a introdução da peça).

A partir dos relatos, a trupe decidiu privilegiar três eixos temáticos princi-pais: uma ocupação de terreno urbano, uma favela e um conjunto habitacio-nal, refl etindo sobre as consequências políticas de cada contexto. “Na ocupa-ção e na favela há um aspecto da soli-dariedade importante. O conjunto ha-bitacional, marcado pela intervenção do Estado, por um lado traz melhoras

do ponto de vista da urbanização – maspor outro desorganiza o coletivo, fazen-do os movimentos terem menos força”,compara Adailton. A percepção nasceude um dos depoimentos, em que umalíder de movimento de bairro apontaque “hoje está difícil tirar as pessoas dedentro das casas.”

O espetáculo transformou a perspecti-va estética do grupo, que passou a privi-legiar a narrativa de modo até então não explorado e também a incluir diretamen-te nas peças dados da realidade, como re-latos e documentos – procedimento típi-co do teatro documentário. “Ser TÃO Ser também nos aproximou de movimentos sociais, como o MST e o MTST, de forma mais organizada e sistemática. É uma pe-ça que está à disposição da luta, onde ela for necessária”, defi ne Lu Coelho.

A perspectiva aberta com Ser TÃO Ser tem sido desenvolvida com a pesquisadas condições de trabalho dos habitan-tes das periferias. A intenção é tratar detemas como a precarização e o desem-prego em uma Ópera do Trabalho. Pa-ralelamente, o Buraco d’Oráculo levaráaos sertões cearense, baiano e pernam-bucano sua última produção, como par-te do projeto Ser TÃO Ser pelos nossossertões, contemplado com o Prêmio Fu-narte de Teatro Myriam Muniz.

Introdução de Ser TÃO Ser

“Boa noite senhoras, e senhores! O que irão aqui ver e ouvir não se pas-sa no tempo presente, mas no tem-po passado, escrito por nossa gente. Ouvimos as histórias do povo – vo-cês, nós –, todas contadas em vol-ta de uma mesa de café, num fi m de tarde qualquer. As personagens que aqui aparecem são habitantes de um sertão que fi ca à margem da cida-de, pois foi lá o único lugar que en-contraram que podiam pagar. Des-se passado, não tão distante, muita coisa ainda permanece. Nas comu-nidades por onde passamos, as pes-soas abriram as portas de suas casas e seus corações. Pois então vos peço: abram espaço para o teatro que aqui vamos apresentar! E começaremos pela chegada desse povo, pois como diz o poeta, um passo à frente e você já não está no mesmo lugar.”

Buraco d’Oráculo completa 15 anos de arte e lutas nas ruas

TEATRO Grupo atua no espaço público de São Paulo e discute problemas da metrópole

“A ideia era criar um corredor cultural nos bairros: cada grupo teria uma programação em uma região e os grupos circulariam entre elas”

“O Vale-Cultura não benefi cia nem o teatro de rua nem o trabalhador brasileiro, pois privilegia a indústria cultural de massas”

“Ser TÃO Ser também nos aproximou de movimentos sociais, como o MST e o MTST, de forma mais organizada”

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O grupo de teatro Buraco d’Oráculo em ação: 15 anos de atuação nas ruas de São Paulo

A defi nição da rua como espaço de trabalho

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culturade 23 a 29 de maio de 201312

www.malvados.com. br dahmer

Horizontais: 1.Iniciativa do governo FHC retomada pelo governo Dilma para retirar da Petrobras e entregar para empresas privadas o controle de bacias petrolíferas. 2.Narra – “Chá”, em espanhol. 3.Organizações Sociais – Aviso de recebimento emitido pelos Correios – Um dos mais renomados historiadores marxistas que faleceu ano passado, autor da tetralogia que vai da Era das Revoluções à Era dos Extremos. 4.O contrário de “sim” – Indica anterioridade – Sociedade Anônima. 5.Que sofreu introdução de genes de outro organismo ou espécie. 6.Pista – forma coloquial de “está”. 7.O contrá-rio de “entrou” – Falta de energia. 8.Autoridade suprema – “Carlos”, em alemão. 9.Terceira pessoa do singular do verbo inglês “to be” – Que presume muito de si. 10.Cuidam – Sigla de Mato Grosso. 11. Sigla para Sturmabteilung, em alemão, “destacamento tempestade” ou usualmente traduzido como “tropas de assalto”, a milícia paramilitar nazista comandada por Ernst Röhm – No Brasil, eles estão divididos em 240 povos e falam 180 línguas.

Verticais: 1.Modalidade utilizada pelo governo de São Paulo para cobrar um dos mais altos pedá-gios do país. 2.“Azulejo”, em espanhol – Saudável. 3. “Em”, em espanhol – Região mais alta do mundo, com uma elevação média de 4.900 metros de altitude, por vezes recebe a designação de “o teto do mundo” ou “o telhado do mundo”. 4.“Pedra”, em tupi – “Verdadeiro”, em inglês. 5. “Casa” (sentido fi gurado) – Apesar de considerada nobre, sua carne gera nojo em algumas pessoas – Dê risada!. 6.Marido ou companheiro da mãe, ou do pai em casais do mesmo sexo, em relação aos fi lhos por eles tidos em relacionamento anterior. 7.Sem fi m. 8.O ente humano (plural) – Tumor formado prin-cipalmente de tecido muscular. 10.Organização Mundial do Comércio – Maior ave brasileira que tem a peculiaridade de serem os indivíduos masculinos os responsáveis pela incubação (tempo em que a ave permanece sobre os ovos) e o cuidado com os fi lhotes – Confederação Nacional da Indústria. 12.Aversão inveterada e absoluta, raiva. 13.Lavra a terra para o plantio. 14.“Tá (?) Manno”, slogan criado durante as eleições para prefeito em São Paulo – Partido pelo qual o vice-presidente José Alencar foi eleito – Minas Gerais. 15.Chega! – Tribunal Superior Eleitoral. 16.Único satélite na-tural da Terra, situando-se a uma distância de cerca de 384.405 km do nosso planeta, o equivalente a 38 viagens entre a América do Sul e a Europa ou a 9,5 voltas ao redor do mundo seguindo a linha do Equador – Enceno. 17.Banheiro. 18.Estado do Nordeste, governado pelo tucano Teotônio Vilela Filho, que vem sofrendo um completo sucateamento nas áreas da educação e da saúde.

Horizontais: 1.Leilões do petróleo. 2.Conta – Té. 3.OS – AR – Eric Hobsbawm. 4.Não – Pré – SA. 5.Transgênicos. 6.Estrada – Tá. 7.Saiu – Apatia. 8.Soberania – Karl. 9.Is – Tolo. 10.Tratam – MS. 11.SA – Indígenas.

Verticais: 1.Concessões. 2.Losa – São. 3.En – Tibet. 4.Ita – True. 5.Lar – Rã – Ria. 6.Padrasto. 7.Eterna. 8.Seres – Mioma. 10.OMC – Ema – CNI. 12.Ódio. 13.Ara. 14.Russo – PL – MG. 15.Basta – TSE. 16.Lua – Atuo. 17.WC. 18.Alagoas.

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Deni Ireneu Alfaro Rubbo

À PRIMEIRA vista, Dentro de Casa (Dans la maison), de François Ozon, tem tudo para ser comparado ao clás-sico fi lme Teorema, do afamado cineas-ta Pier Paolo Pasolini. Nessa película, como se sabe, o cineasta italiano inten-tava discutir a partir da chegada de um misterioso hóspede o universo ideoló-gico de uma típica família da pequena burguesia italiana.

A relação entre o forasteiro e os mem-bros da família, que passa pelo crivo da sexualidade, desencadeia profundas transformações psicológicas, éticas e morais entre os personagens, revelan-do, em última instância, o desmembra-mento e a crise do paradigma familiar na sociedade capitalista industrial mo-derna.

Naturalmente, o caráter fortemen-te hermético, as referências ocultas, as relações alegóricas, em suma, as carac-terísticas conhecidas de um “cinema de poesia” que Pasolini adotou explicita-mente não estão presentes no novo fi l-me de Ozon.

Não obstante, o enredo tem indis-cutíveis semelhanças e referências di-retas. Vejamos: German, professor de literatura do ensino secundário, está frustrado. Seus alunos escrevem tex-tos monótonos, sem explosões literá-rias que transmitam qualquer emoção. Tal situação muda assim que ele come-ça a ler a redação de Claude, um meni-no de 16 anos. Sua redação está apoia-da da sua vivência. Ele narra – com um olhar voyeurista – a privacidade da ca-sa de seu colega de classe chamado Ra-pha. Os alvos centrais da narração equi-libram-se em um triângulo que envolve o pai, a mãe e o fi lho.

O adolescente, com potencial de es-critor, começa a ser estimulado pelo professor a escrever mais e prosseguir com sua experiência dentro da casa de seu colega. German compartilha os es-critos do jovem com sua mulher Jean-ne. Cada frase, cada texto é lido, ava-liado, sentido e julgado por ambos. As palavras de Claude fascinam o casal de meia idade. Mas não se trata apenas de um interesse pela forma como o jo-vem concatena suas ideias. A elegância está atrelada a um olhar social. Clau-

Janela IndiscretaFILME O cineasta italiano intentava discutir a partir da chegada de um misterioso hóspede o universo ideológico de uma típica família da pequena burguesia italiana

A mistura frustrada entre fi cção e realidade faz com que fi que

ingênuo seu elogio, já que o fi lme não conseguiu atingir sua única

ambição: a imaginação

de está no seio de uma família peque-no-burguesa (“O cheiro de uma mulher da classe média”, ao referir-se a mãe de Rapha) e parece ter consciência disso. Naturalmente, uma consciência frágil, titubeante, não tão clara, mas que indi-ca uma sutil sensibilidade que torna o fi lme mais saboroso à medida que avan-ça cada cena.

Todavia, um roteiro que continha to-dos os ingredientes instigantes trope-ça e cai. E não se levanta mais. Explico: em meio às inúmeras redações, Claude se depara com uma situação limite, qual seja, a continuação de sua história não está assegurada. Afi nal, se Rapha for mal na próxima prova de matemática, seus pais provavelmente irão “dispen-sar” a ajuda de Claude, que o ajuda nos

estudos. Por isso, o jovem escritor im-plora para que o professor o ajude a re-solver sua situação, falsifi cando a pro-va de matemática em benefício do alu-no. Seu argumento central é o de que, se não puder mais entrar na casa, seu, di-gamos, espaço de inspiração, não have-rá continuidade da história e não escre-verá mais. Como uma criança assustada o professor cede às suas pressões.

É incrível como essa atitude enfra-quece o fi lme. O problema não está na escolha do professor em aceitar. Isso seria um elemento interno do fi lme, que pertence exclusivamente à obra. Ora, seria no mínimo bizarro se fi carmos in-comodados com as escolhas de perso-nagens sejam quais forem as circuns-tâncias da trama. Na realidade, parece que Ozon limita-se a contar a história até seu desfecho, sem qualquer preocu-pação com as mediações que as situa-ções poderiam propor (como estava fa-zendo anteriormente). Às vezes parece que Ozon quer terminar o fi lme a qual-quer custo.

Assim, o fi lme muda substancial-mente, parecendo uma comédia fraca. O diretor utiliza da interessante estra-tégia de diluir o que é fi cção e realidade durante a narração de Claude. Porém, por não ser distribuída adequadamen-

te durante o fi lme, não convence. É co-mo se German fosse o equilíbrio e suamudança, inclusive de caráter, vicia-do na história de seu aluno, desequili-brasse o fi lme. Talvez a mais lúcida se-ja sua mulher, Jeanne, que lhe afi rma:“Ele manipula você. Você quer ensinarliteratura, mas é ele quem dá as lições”.Aliás, é o fi lme que é manipulado, aindaque pense que está manipulando. Fran-çois Ozon tinha uma boa isca para pes-car ótimos peixes. Mas a isca foi mordi-da e Ozon só retirou o anzol.

No fi nal, ainda, temos que nos con-tentar com uma cena patética do pro-fessor, doravante já despedido, desem-pregado, abandonado pela mulher, sen-tado em uma praça com a barba por fa-zer, sem óculos, praticamente irreco-nhecível, mas ainda sim esboçando umsorriso (?) junto ao seu (ex-)aluno querelata do que as pessoas estão fazendoem casas. É uma espécie de “recado” decomo a imaginação é importante, o quedo ponto de vista do conteúdo é total-mente válido. Porém, a mistura frustra-da entre fi cção e realidade faz com quefi que ingênuo seu elogio, já que o fi lmenão conseguiu atingir sua única ambi-ção: a imaginação.

Deni Ireneu Alfaro Rubbo é sociólogo.

Divulgação

Cena do fi lme Dentro de Casa (Dans la maison), do cineasta francês François Ozon

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Marcio Zontade Guararema (SP)

EM VISITA ao Brasil na semana passa-da para o lançamento de seu livro, Des-truição em Massa – Geopolítica da Fo-me (Editora Cortez), o sociólogo suíço Jean Ziegler expressou sua preocupação com a problemática da fome numa socie-dade cujo contexto atual é de excesso de alimentos.

O primeiro relator das Nações Unidas, cargo que ocupou por oito anos cumprin-do missões em diversos países, afi rma ser a primeira vez na história da huma-nidade que a fome existe e aumenta sem estar relacionada a problemas de nature-za, baixa produtividade agrícola ou por circunstâncias de guerras.

“Nos tempos atuais, a problemática da fome no mundo é a organização social da ordem capitalista, que nega o aces-so à alimentação para um contingente de pessoas”.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Zie-gler, que atualmente é vice-presidente do Comitê Consultivo de Direitos Humanos das Nações Unidas, alerta sobre a atua-ção dos grandes grupos econômicos que dominam a alimentação a nível mundial e levam à morte 57 mil pessoas diaria-mente por consequência da fome.

“Hoje temos dez transnacionais que potencializam a fome no mundo. Esse grupo econômico controla 85% de todos os alimentos negociados no planeta. Fi-xam preços, controlam a distribuição e assim decidem todos os dias quem pode-rá comer, quem vai passar fome e quem vai morrer sem alimentação”, afi rma.

Entre as transnacionais que contro-lam a alimentação no mundo, o francês destaca a Nestlé, Unilever, Bunge e Car-gill. Abaixo confi ra os tópicos aborda-dos na entrevista com Ziegler, que ainda menciona a importância do médico bra-sileiro Josué de Castro no debate con-tra a naturalização da fome, iniciada na década de 1940, e totalmente atual nos dias de hoje.

O livroO conteúdo dessa publicação relata

minha experiência em vários lugares do mundo nos oitos anos em que atuei como relator das Nações Unidas, trabalhando com o tema de direito à alimentação. Meu livro, antes de tudo, deve ser uma arma para combater os inimigos do aces-so à alimentação. O livro tem um título pessimista, mas na verdade traz também esperança, porque na última parte mos-tra como o combate a fome pode ser or-ganizado nos dias atuais.

Fome e excesso de alimentosDados da FAO do último relatório de

2012 aponta que a cada cinco segun-dos uma criança com menos de dez anos morre de fome. Diariamente 57 mil pes-soas morrem de fome. Atualmente mais de 1 bilhão de pessoas no mundo são su-balimentadas. No entanto, a agricultu-ra atual poderia alimentar diariamen-te 12 bilhões de pessoas, o que pratica-mente acabaria com a situação atual da fome. É a primeira vez na história huma-na que não há falta objetiva de alimento e, tampouco, baixa produtividade agríco-la. Antigamente era diferente, existia fo-me por questões da natureza, por exem-plo. Nos tempos atuais, a problemática da fome no mundo é a organização social da ordem capitalista, que nega o acesso à alimentação para um contingente de pessoas.

Inimigos do acesso à alimentaçãoHoje temos dez transnacionais que fo-

mentam a fome no mundo. Esse gru-po econômico controla 85% de todos os alimentos negociados no planeta. Fi-xam preços, controlam a distribuição e, assim, decidem todos os dias quem po-

derá comer, quem vai passar fome e quem vai morrer sem alimentação. Es-sas transnacionais controlam, sobretu-do, os alimentos de subsistência, como milho, arroz e trigo, o que muitas vezes encarece a cesta básica. Ainda vale lem-brar que as transnacionais são tão pode-rosas que intervêm no Estado e passam por cima de qualquer normativa contrá-ria a elas, impondo um mercado total-mente liberalizado e privatizado. Nes-se grupo estão Nestlé, Unilever, Bunge e também a Cargill que, por exemplo, con-trola mais de 35% de todo o trigo produ-zido no mundo.

Mecanismos mortíferos da fome Existem quatro principais mecanismos

mortíferos da fome no mundo. O primei-ro é a especulação fi nanceira, depois da crise econômica de 2008, onde os merca-dos fi nanceiros, devastados por um ban-ditismo bancário, migram às bolsas de matérias primas, principalmente agríco-las, como milho, trigo e arroz. De manei-ra totalmente legal realizam lucros astro-nômicos, sem qualquer intervenção ou ponderação pela fome que causam, além de dominarem a produção de derivados de soja e açúcar. Nos últimos dois anos, o preço mundial do milho subiu 63% por causa da especulação e a tonelada do tri-go dobrou de preço no mesmo período. O arroz também sofre uma alta absurda de valor. A consequência nas favelas do mundo foi reduzir ainda mais as chan-ces de alimentação de seus moradores. Em alguns lugares eu presenciei mães indo aos depósitos de alimento e voltan-

do para casa com uma xícara de arroz pa-ra toda a família, pois sequer tinham di-nheiro para comprar um quilo ou mais de arroz, sendo essa quantidade adqui-rida toda a refeição do dia.

O segundo mecanismo mortífero é o dumping agrícola (concorrência desleal de mercado). Em Dakar, na África, pode-se comprar frutas, verduras, frangos vin-dos da Europa a um terço do preço dos alimentos produzidos no mercado afri-cano. Isso porque a União Europeia sub-sidia economicamente esses alimentos, que invadiram a África nos últimos tem-pos. A família camponesa africana traba-lha em média dez horas por dia sob um sol escaldante e não tem a mínima chan-ce de atingir a alimentação para subsis-tência e, também, para competir nesse mercado. A África é um continente ma-joritariamente agrícola, no entanto, a fo-me nos últimos anos só tem crescido por conta de políticas de dumping da União Europeia na região. A saída para resol-ver o problema de refugiados da fome na África tem sido a intervenção militar.

O terceiro mecanismo mortífero é a dí-vida externa. A maior parte dos povos do

Sul têm uma dívida externa elevada, e ca-da euro que ganha com exportação de al-godão, por exemplo, é levado diretamen-te ao banco credor de São Paulo, de Nova York, de Paris e outros para servir aos ju-ros da dívida externa.

A dívida impede totalmente que os países mais pobres possam investir em sua agricultura de subsistência. Alguns exemplos podem ser observados em toda a África onde há somente 3,8 % da terra irrigada. Assim, a produtividade é mui-to baixa. Não é o camponês africano que é menos trabalhador ou incompetente, pois se trata de uma grande civilização camponesa com conhecimentos meteo-rológicos, de solo etc.

O problema é que o agricultor africano não tem os meios para produzir. Dessa forma, o Banco Mundial, as transnacio-nais e grandes bancos privados promo-vem o roubo da terra. No ano passado esses grupos econômicos roubaram 201 milhão de hectares de terra fértil na Áfri-ca com crédito do Banco Mundial e de bancos de investimento europeu. O Ban-co Mundial alega que a produção é baixa e é melhor os investidores estrangeiros, que têm capital e tecnologia, terem essas terras para produzir em vez de deixá-las aos camponeses africanos.

Assim, o roubo de terra se constitui co-mo uma catástrofe para os camponeses que são expulsos de suas terras, pelas for-ças armadas nacionais, porque o gover-no vende a terra às multinacionais, que produzem para o mercado internacional, não para o abastecimento interno.

Último mecanismo mortífero são os biocombustíveis. Os dois produtores mundiais mais importantes são Brasil e Estados Unidos. Os estadunidenses queimaram no ano passado 138 milhões de toneladas de milho para fabricar com-bustível. O tema da energia é um fator es-tratégico para o Pentágono, que não con-segue reduzir seu orçamento sem dimi-nuir as importações de petróleo, por isso a produção do etanol para tornar os Esta-dos Unidos menos dependente do petró-leo de outros países.

Ademais, no Brasil, essas extensas ter-ras utilizadas para produzir matéria pri-ma de combustível reduz a quantidade de hectares destinados à produção de ali-mentos, além de mover a fronteira agrí-cola do país à Amazônia. Ou como ocor-re no interior de São Paulo, que a cana de açúcar avança e o gado passa a destruir áreas de fl oresta.

Josué de Castro O médico nutrólogo brasileiro deveria

ter um monumento em sua homenagem em muitas cidades brasileiras. Ele foi um dos primeiros no mundo a dizer que a fo-me não é natural, não é uma fatalidade e não estava ligada à falta de produção de alimentos. Castro quando recebia um paciente nas unidades hospitalares que atendia em Recife (PE), com sintomas de depressão e uma série de outras enfermi-dades, sempre dizia que o problema era decorrente da fome. Mesmo com a se-ca existente no nordeste Josué de Castro sempre defendeu que a falta de comida era fruto da ação política do homem. Fa-lava que o latifúndio era muito mais per-verso do que qualquer problema da na-tureza. Por isso, um dos seus livros mais importantes, Geografi a da Fome, foi tra-duzido em mais de cinquenta línguas. Ao fi m da segunda guerra mundial esse foi o livro mais famoso na Europa, porque os europeus passaram a se atentar como o nazismo de Adolf Hitler organizava a fo-me como forma de destruição da popula-ção soviética. Nos campos de concentra-ção, a falta de alimentação matou muito mais do que outras medidas assassinas dos nazistas. Josué de Castro faleceu na década de 1970, mas por ser um visioná-rio previu o que estamos vivendo hoje.

Pressão popular O Brasil é uma grande democracia,

e muitos outros Estados são democra-cias tendo direito às eleições e possibi-litando a escolha de mandatários políti-cos, sendo isso uma arma para quebraressa ordem canibal do mundo do capi-tal fi nanceiro globalizado em poder dastransnacionais.

É necessário a pressão popular para cobrar leis que sejam contra a especula-ção de alimentos no mundo.

Crime de lesa-humanidadeEsses especuladores internacionais de-

vem ser levados a julgamento diante de um tribunal internacional por crime con-tra a humanidade, porque matam mi-lhões de pessoas diariamente.

A fome lucrativaENTREVISTA Para Jean Ziegler , o problema da fome no mundo perpassa pela especulação fi nanceira dos alimentos, pelo dumping agrícola e pela destinação de terras à produção de biocombustíveis

“Esses especuladores internacionais devem ser levados a julgamento diante de um tribunal internacional por crime contra a humanidade”

“Hoje temos dez transnacionais que potencializam a fome no mundo. Esse grupo econômico controla 85% de todos os alimentos negociados no planeta”

“Mesmo com a seca existente no Nordeste, Josué de Castro sempre defendeu que a falta de comida era fruto da ação política do homem”

Lixão da Estrutural, em Brasília: a fome numa sociedade cujo contexto atual é de excesso de alimentos

O sociólogo suíço Jean Ziegler

Reprodução

Wilson Dias/ABr

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internacional de 23 a 29 de maio de 201316

Reprodução

Achille Lollode Roma (Itália)

NA PRIMEIRA semana de maio, os ser-viços de inteligência do exército tunisia-no souberam que nas montanhas fron-teiriças com a Argélia havia sido insta-lada uma base de Mujahdin da Jihad, is-to é “combatentes da Guerra Santa”, no-toriamente ligados à central terrorista al-Qaeda.

Assim, o exército e a polícia montaram uma operação de reconhecimento que confi rmou a informação. Inclusive por-que uma dezena de militares e policiais fi caram feridos quando suas viaturas ha-viam passado por minas terrestres, pou-co antes de chegar na região das grutas onde os “jihadistas” haviam criado seu posto de comando.

No local, os militares encontraram do-cumentos que demonstravam claramen-te a conivência de alguns setores do par-tido salafi ta Ansar al-Sharia com as célu-las da al-Qaeda do Magreb, facção terro-rista que opera no norte da África, em particular na Argélia e no Mali.

Tudo isso infl uenciou bastante a Con-ferência para o Diálogo Nacional, em que sindicatos, partidos e organizações reali-zaram em Túnis, no dia 16 de maio, com o objetivo de questionar o governo for-mado pelo partido islâmico moderado Ennahda sobre as principais questões: desemprego, reorganização do Estado, construção da democracia, pluralismo político e religioso e, sobretudo, seguran-ça pública.

Nessa conferência o governo e em particular o Ministério da Justiça fo-ram amplamente criticados por não te-rem conseguido descobrir os assassinos do líder da Frente Popular, Chori Be-laid e, em segundo lugar, por atuarem com muita lentidão para com o parti-do salafi ta Ansar al-Sharia (fundamen-talistas islâmicos) que, segundo as lide-ranças de sindicatos e da Frente Popu-lar, estaria provocando uma revolta pa-ra obrigar o governo a impor as leis islâ-micas da Sharia.

Algo que já aconteceu no Egito quando a Irmandade Muçulmana (islâmicos mo-derados) deixaram que seus aliados sala-fi tas agitassem as praças para exigir do Parlamento poderes ilimitados ao presi-dente e introduzir uma série de leis reti-radas da Sharia.

1 morto e 120 presosDiante da representatividade da Con-

ferência de Dialogo Nacional, o chefe do governo, Ali Larayedeh, e a direção do partido islâmico Ennahda tiveram que

optar pela não realização do encontro nacional na cidade santa de Khiruan, on-de o Ansar al-Sharia pretendia dar uma prova de força enfi leirando cerca de 5 mil militantes em termos paramilitares.

Uma proibição que veio também para acalmar as pressões do Estado Maior do Exército que – após a descoberta dos re-fúgios dos Mujahdin da Jihad nas mon-tanhas e a capacidade de usar as perigo-sas minas terrestres – mantém ao lon-go das regiões fronteiriças com Argé-lia muitas unidades em estado de aler-ta máximo.

Foi, de fato, uma decisão sofrida por-que entre os moderados islâmicos do En-nahda e do Ansar al-Sharia houve muitas ligações políticas que se concretizaram durante a última campanha eleitoral, quando os dois partidos islâmicos atua-ram em conjunto para evitar a vitória dos partidos leigos e da esquerda, muitos re-conhecidos nos sindicados, entre os tra-balhadores e os estudantes.

Porém, é preciso dizer que a cenas de guerrilha urbana em Ettadamen foram antecedidas de uma tentativa de media-ção entre os homens do presidente Ali Larayedeh e do líder do Ansar al-Sharia, Seifallah Ben Hassine. Mediação que fra-cassou porque ambos apostavam no en-frentamento nas ruas para afi rmar sua visibilidade política em nível nacional.

De fato, Ali Larayedeh, precisava dar uma resposta enérgica para demonstrar à oposição – leiga e de esquerda – e, so-bretudo, aos militares, que o governo controlava plenamente a situação, con-trariando, assim, a acusação de ser “ma-nipulável às causas dos compromissos eleitorais com os salafi tas”.

Por sua parte, a direção do Ansar al-Sharia acreditava que o choque militar com o governo teria ampliado e qualifi ca-do sua organização e, consequentemen-te, mobilizado as camadas populares em-pobrecidas, com as quais marcharia até o centro da capital Túnis e, por consequên-cia, pediria a formação de um governo autenticamente islâmico.

Foi nesse contexto que depois da proi-bição governamental, o líder do Ansar al-Sharia, Seifallah Ben Hassine, a par-tir de seu esconderijo clandestino, orde-nava aos militantes salafi tas que ocu-passem as mesquitas da cidade santa de Khiruan, os subúrbios de Douar Hic her, Ben Arous e de Ariana, que é uma cida-de dormitório a poucos quilômetros da capital Túnis.

para insurgir. De fato, após a iniciati-va na rede social, a jovem Amina reapa-receu de novo e anunciou publicamen-te que iria enfrentar os salafi tas na ci-dade santa de Kairouan, no dia da reu-nião nacional deles. E isso aconteceu,tanto que Amina conseguiu pintar naparede de uma mesquita de Kairouana palavra Femen (mulher) provocan-do a ira dos crentes islâmicos modera-dos. Ela escapou do linchamento, poisfoi salva pela repentina chegada da po-lícia que a levou até Túnis, em um carroà prova de bala.

O ato heróico de Amina Tyler tem du-as leituras. Pode ser considerada uma blasfêmia pela maioria do árabes de re-ligião islâmica da Tunísia; ou pode ser oexemplo máximo do desespero e da de-sesperança que hoje afl ige a juventude da Tunísia.

A mesma juventude que enfrentoupolícia e Exército para empurrar para o exílio o corrupto Ben Ali e que hoje achaque está vivendo em condições piores devido à crise econômica e, sobretudo,em função das restrições às liberdades individuais que o governo ameaça intro-duzir com novas leis fundamentadas na doutrina islâmica. (AL)

A volta de Amina TylerA jovem conseguiu pintar na parede de uma mesquita de Kairouan a palavra Femen (mulher) provocando a ira dos crentes islâmicos moderados

Guiados no terreno pelo porta-voz do Ansar al-Sharia, Seifeddine Rais, no dia 19 de maio, 2 mil militantes sa-lafi tas se concentraram em Ettadamen – bairro popular de Ariana – promo-vendo uma articulada guerrilha urba-na, que foi controlada quando a polícia decidiu ocupar todas as ruas do bair-ro. Foi utilizado, para isso, o efetivo de 11 mil policiais. Nos inúmeros cho-ques que se deram nas ruas de Ettada-men, morreu o militante salafi ta Moez Dhamani, de 27 anos. Porém, 14 poli-ciais continuam hospitalizados e cerca de 300 manifestantes fi caram feridos, enquanto 120 foram presos e acusados de prática de terrorismo.

O golpe salafi taApós esse fato, o chefe do governo, Aly

Laryedh, acusou publicamente o Ansar al-Sharia de “ser uma organização ile-gal que mantém ligações com al-Qaeda e que estava envolvida em ações de ter-rorismo”.

Acusações que ofi cializam o que par-tidos de esquerda vem dizendo nos últi-mos meses, sobretudo depois do assassi-nato do líder da Frente Popular, Chokri Belaid e dos ataques armados às esta-ções de polícia, cinemas e galerias de ar-te, considerados pelos salafi tas “elemen-tos da cultura ocidental”.

Porém, vários analistas admitem que neste cenário de violência organizada há

Na Tunísia, salafi tas desafi am o governo mas sociedade os rejeitaOPINIÃO Pressionado pela sociedade civil, o governo islâmico de Ali Larayedh intervém com 11 mil policiais em Ettadamen para impedir que se alastre a guerrilha urbana

de Roma (Itália)

Mesmo não sabendo o que os salafi tas estavam aprontando, a jovem militante feminista Amina Tyler, com a ingenui-dade de seus 19 anos, colocou ainda mais gasolina no fogo salafi ta, mostrando em uma rede social seu o seio pintado com frases que pediam mais liberdade pelas mulheres da Tunísia.

Um ato corajoso e até necessário pa-ra manter fi rmes os ideais da revolução que afugentou o corrupto Ben Ali. Mas, como muitos analistas e lideranças sin-dicais dizem, foi feito no momento er-rado, dando aos salafi tas a justifi cativa

vários níveis. O primeiro é considerado o mais comum porque empurra militantes salafi tas dos subúrbios de Túnis ao cen-tro da cidade para destruir e saquear tu-do que se relaciona ou que representa os conceitos da cultura ocidental.

Por isso, os cinemas, as botiques e até os supermercados foram alvos de ata-ques armados por grupos salafi tas quealistam jovens suburbanos. Desta for-ma, descarregam sua raiva por conti-nuar desempregados, pobres e sem fu-turo como nos tempos de Ben Ali, o pre-sidente corrupto que se manteve no po-der por mais 30 anos.

Nesse contexto, os dirigentes locais doAnsar al-Sharia escolhem os jovens pa-ra o segundo nível, representado pelosgrupos armados clandestinos que, apóstreinamento, atacam as estações de po-lícia ou liquidam os inimigos políticos, sobretudo os dirigentes sindicais de es-querda e das organizações comunistas.

O terceiro nível ocorre por meio da ação de jovens que optam por morrer pe-la Jihad (guerra santa); grupos enviados para as montanhas argelinas para trei-nar e se juntar a al-Qaeda do Magreb, es-perando o “dia d” para descer das mon-tanhas e realizar ataques suicidas.

Fontes policiais e do exército admitemque foram os jihadistas do segundo ní-vel que dirigiram as operações de guer-rilha urbana em Ettadem. Por estarem bem organizados – militar e fi nanceira-mente – atuam na clandestinidade de-pois de ter assassinado o líder da FrentePopular, Chokri Belaid e ter atacado aembaixada dos Estados Unidos em Tú-nis, para confundir a opinião pública e, assim, dar ao Ansar al-Sharia um falso atestado anti-imperialista junto aos se-tores populares islâmicos.

Achille Lollo é jornalista italiano, corres-pondente do Brasil de Fato na Itália e editor

do programa TV Quadrante Informativo.

Os militares encontraram documentos que demonstravam claramente a conivência de alguns setores do partido salafi ta Ansar al-Sharia com as células da al-Qaeda do Magreb

Ali Larayedeh precisava dar uma resposta enérgica para demonstrar à oposição – leiga e de esquerda – e, sobretudo, aos militares, que o governo controlava plenamente a situação

Tunisianos acompanham o funeral de Chokri Belaid

O presidente tunisiano Ali Larayedeh

Sarah Mersch/CC