dignidade da pessoa no fim da vida - universidade do...

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DIGNIDADE DA PESSOA NO FIM DA VIDA Nao e a morte que e digna, mas a pessoa que e portadora de uma dignidade intrfnseca (ontoI6gica) que e merecedora de um fim de vidadigno. Quanto mais fnJgil e debil se encontra a pessoa, mais necessita do nosso amor e, no terminus da vida, o outro ape la-nos ao amor na rela~ao, raiz da sua dignidade. Ce n'est pas la mort quiest digne, mais la personne quipossede une dignite intrinseque (ontologique), qui merite une fin de vie digne. Plus une personne se sens fragil, plus elle a besoin de notre amour et, en finde ~ie, nous appelle a I'amour dans la relation, qui est la recine de sa dignite. Adignidade da pessoa humana eum assun- to que tem prendido a atenyao ~emuitos te6ri- cos. A ideia geral que paira e que esta interiorizada e que a pessoa humana e um ser com uma dignidade que deve ser respeitada. Mais complexa, e a tarefa de explicitar 0 porque, isto e, que fundamentos estao na sua base. Nao entrando em grande discursos sobre a dignidade humana, sendo certo que a reconhe- cemos desde 0 primeiro momenta da sua exis- tencia, pensamos que umadas suas dimensoes ocorre aquando do ocaso da vida. Escolhemos para esta reflexao, a pessoa humana em fim de vida, por quest6es profissionais e tambem, por- que nos ultimos tempos temo-nos debruyado sobre a morte humana. A pessoa em fimde vida e um ser humane vulneravel, especialmente se se encontra confi- nado ao leito, sujeita aos cuidados de outrem para as actividades mais elementares da vida. Parece-nos que assumir adignidade desta pes- soa e uma exigencia de todos os que se abeiram do seu leito. •Assistente do 1. Q Trienio na Escola Superior de Enfer- magem Calouste Gulbenkian· - Braga 1 - UMA REFLEXO ACERCA DA DIGNIDADE DA PESSOA Adignidade da pessoa humana tem sido objecto das mais variadas discuss6es ao longo dos tempos. 1 No seculo XV, Givanni Pico delia Mirandola escreveu Oratio de Hominis Dignitate, ediz-nos numa das suas passagens: "Finalmente, pareceu-me ter compreendido por que razao 0 homem 0 mais feliz de todos os seres anima dos, invejavel nao s6 pelas bestas, mas tambem pelos astros e ate pelos espfritos supra -mundanos. Coisa inacreditavel e maravi- Ihosa. E como nao? Ja que precisamente por isso 0 homem e dito e considerada justamente um grande milagre e um ser anima do, sem duvi- dadigno de ser a dmira do". 2 Este autor, coloca enfase no antropo- centrismo,"O hamem e 0 mais digno da Criar;:ao de Deus, porque foicolacado no centro do uni- verso e porque de tudo quanta fai criado ele possui as sementes."3 Um fil6sofo proeminente e com impacto nos dias de hoje, e Immanuel Kant. E suficientemen- te conhecida aideia kantiana de que 0 homem e umfim em si mesmo e nunca um meio para determinado fim, "... 0 ser humano e um valor absoluto, fim ~m si mesmo, porque dotado de razao.A sua autonomia, porque racional, e a raiz

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DIGNIDADE DA PESSOA NO FIM DA VIDA

Nao e a morte que e digna, mas a pessoa que e portadora de uma dignidadeintrfnseca (ontoI6gica) que e merecedora de um fim de vida digno. Quanto mais fnJgile debil se encontra a pessoa, mais necessita do nosso amor e, no terminus da vida,o outro ape la-nos ao amor na rela~ao, raiz da sua dignidade.

Ce n'est pas la mort qui est digne, mais la personne qui possede une digniteintrinseque (ontologique), qui merite une fin de vie digne. Plus une personne se sens fragil,plus elle a besoin de notre amour et, en fin de ~ie, nous appelle a I'amour dans la relation,qui est la recine de sa dignite.

A dignidade da pessoa humana e um assun-to que tem prendido a atenyao ~e muitos te6ri-cos. A ideia geral que paira e que estainteriorizada e que a pessoa humana e um sercom uma dignidade que deve ser respeitada. Maiscomplexa, e a tarefa de explicitar 0 porque, istoe, que fundamentos estao na sua base.

Nao entrando em grande discursos sobre adignidade humana, sendo certo que a reconhe-cemos desde 0 primeiro momenta da sua exis-tencia, pensamos que uma das suas dimensoesocorre aquando do ocaso da vida. Escolhemospara esta reflexao, a pessoa humana em fim devida, por quest6es profissionais e tambem, por-que nos ultimos tempos temo-nos debruyadosobre a morte humana.

A pessoa em fim de vida e um ser humanevulneravel, especialmente se se encontra confi-nado ao leito, sujeita aos cuidados de outrempara as actividades mais elementares da vida.Parece-nos que assumir a dignidade desta pes-soa e uma exigencia de todos os que se abeiramdo seu leito.

• Assistente do 1.Q Trienio na Escola Superior de Enfer-magem Calouste Gulbenkian· - Braga

1 - UMA REFLEXOACERCA DA DIGNIDADEDA PESSOA

Adignidade da pessoa humana tem sidoobjecto das mais variadas discuss6es ao longodos tempos. 1 No seculo XV, Givanni Pico deliaMirandola escreveu Oratio de Hominis Dignitate,e diz-nos numa das suas passagens:

"Finalmente, pareceu-me ter compreendidopor que razao 0 homem 0 mais feliz de todos osseres anima dos, invejavel nao s6 pelas bestas,mas tambem pelos astros e ate pelos espfritossupra -mundanos. Coisa inacreditavel e maravi-Ihosa. E como nao? Ja que precisamente porisso 0 homem e dito e considerada justamenteum grande milagre e um ser anima do, sem duvi-da digno de ser admira do". 2

Este autor, coloca enfase no antropo-centrismo,"O hamem e 0 mais digno da Criar;:aode Deus, porque foi colacado no centro do uni-verso e porque de tudo quanta fai criado elepossui as sementes."3

Um fil6sofo proeminente e com impacto nosdias de hoje, e Immanuel Kant. E suficientemen-te conhecida a ideia kantiana de que 0 homem eum fim em si mesmo e nunca um meio paradeterminado fim, "... 0 ser humano e um valorabsoluto, fim ~m si mesmo, porque dotado derazao. A sua autonomia, porque racional, e a raiz

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da sua dignidade, pois e ela que faz do homemfim de si mesmo."4

Nao querendo incorrer numa reflexao histo-rico - filosofica sobre a dignidade da pessoahumana, partilhamos da posigao de Cabral, quan-do nos afirma que nos 8 muito mais simples afir-mar a dignidade de qualquer pessoa do que defini-la e fundamenta-Ia. 5

Independentemente da nossa concordancia,assistimos na nossa realidade social, aos atrope-los constantes ao mais elementar direito da pes-soa, 0 da vida, fonte de toda a dignidade huma-na. E so para iniciar no s8culo XX, e maisespeciflcamente na II Guerra Mundial, as chaci-nas de milhares de pessoas, judeus, ciganos eoutros que nao compactuavam com ideologiaspol/ticas, sao exemplo paradigmatico das atroci-dades e do absurdo da acgao humana. No en-tanto, na segunda metade do s8culo XX houveuma maior consciencializagao acerca da dignida-de da pessoa humana e hoje 8 "... uma ideiafo((;a que actualmente possufmos e admitimosna civilizar;ao ocidental, que e a base dos textosfundamentais sobre Direitos Humanos". 6 Logo noPreambulo da Oeclaragao Universal sobre osDireitos Humanos, encontra-se plasmada a ideiaanteriormente referida:

"Considerando que 0 reconhecimento da digni-dade da pessoa humana inerente a todos osmembros da famflia humana e dos seus direitosiguais e inalienaveis constitui 0 fundamento daIiberdade, da justir;a e da paz no mundo."?

Como bem afirma Renaud "0 facto de re-conhecer polftica e internacionalmente a dignida-de inviolavel de cada ser humano, ainda que naoseja possfvel encontrar um acordo sobre os seusfundamentos, ja representa um indiscutrvel valorno 'relacionamento interhumano [. ..] nenhumseculo tera ido tao longe na pratica do horrorcontra 0 ser humane e tao longe na reacr;ao ul-terior em proveito da dignidade."8

o reconhecimento da dignidade da pessoahumana, nao 8 0 reconhecimento de um statussocial, biologico ou psicologico especial. E antesde tudo, 0 que M de igual em todo 0 ser humanee que Ihe confere um valor.

"... a dignidade no nosso sentido nao cons i-dera nem a posir;ao social nem 0 valor etico in-trfnseco do agir individual, mas confere, previa-mente a qualquer considerar;ao dos conteudosdas situar;oes sociais ou do agir, um valor ao serhumane enquanto tal [..]. Ele opera a maneira deum conceito filos6fico que distingue em cada serhumane uma dimensao de nobreza ontol6gica(grar;a a qual ele merece a priori 0 respeito

por parte de todos) bem como 0 respeito por sipr6prio."9

Esta dimensao de nobreza ontologica que 8a pessoa humana, nao Ihe 8 conferida em razaodo seu corpo, semelhante mas ao mesmo temposingular a tantos corpos, mas antes "... grar;as aoacto de ser, dotado de intensidade unica, que apessoa possui uma dignidade constitutiva." 10

Poderfamos entao afirmar, em consonanciacom Adorno, que ser digno equivale a ser pes-soa; ser pessoa 8 0 termo utilizado para designaros seres que possuem uma dignidade intrfnseca,que sac diferentes das coisas. 11

Nesta linha, 0 homem possui uma dignidadeontologica, comum a todos os homens. "Esta no-r;ao remete-nos para a ideia de incomuni-cabilidade, de unicida de, de impossibilidade dereduzir este homem a um simples numero. E 0

valor que se descobre no homem s6 pelo factode existir." 12

Mais al8m de descobrir uma dignidade intrfn-seca na pessoa humana, Melendo defende que araiz ontologica da mesma, provem do ser quetorna possfvel a Iiberdade como amor. 13 a autor,afirma peremptoriamente que, "... 0 amor consti-tui, ao mesmo tempo, 0 sentido de toda a exis-tencia e da nossa pr6pria libe rda de. "14 Oestaforma, defende que 0 destine do homem 8 um"ser-para-o-amor" e mais ainda, "para-o-Amor". 15

Esta posigao de nexo estrutural liberdade-amor, que esta na base da dignidade da pessoahumana, 8 explicita na exposigao do autor quenos indica que "... amar - com um querer gra-tuito, de benevolencia - constitui 0 acto maisalto, a concrer;ao mais sublime, do exercfcio daliberda de: que a Iiberdade e, ao fim e ao cabo,capacidade de amar. Somos livres, mais livres,na medida em que amamos e amamos mais." 16

a que 0 homem quer livremente, e para 0 qualfoi concebido, 8 "... 0 bem do outro enquantooutro, aquilo que quer, justamente, ao amar". 1?

2 - A DIGNIDADE DA PESSOANO FIM DA VIDA

A primeira vista, parece que a dignidade dapessoa humana poder<3, fragmentar-se, isto 8,falarfamos de uma dignidade no inicio da vida,na idade adulta , r:Ja adolescencia, na velhice.au ainda de uma dignidade biologica, psicologi-ca ou social. Nao 8 esta a questao que aqui secoloca, muito pelo contrario. Partimos da posigaode Renaud: "...e 0 ser humane como totalidadeunica e nao intrinsecamente dissociavel que cons-titui 0 fundamento da dignidade." 18 Nesta linha

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de pensamento, 0 que se pretende e projectar adignidade da pessoa sobre uma dimensao de vidahumana: 0 seu fim.

Reconhecemos que 0 morrer como aconteci-mento da vida, e ainda uma situaC(ao ainda muitomal tratada nas unidades de saude, e tambempela sociedade em geral. A pessoa que se en-contra em estado terminal 19 (ou se quisermosmoribundo), ve-se confrontado com 0 seu fim,num qualquer hospital, rodeado de profissionaisde saude, mas sentido-se s6. Este quadro e, emparte, resultante da dificuldade que a nossa so-ciedade tem em lidar com a morte humana.

Apesar de ja se falar mais sobre a mortehumana nos dias de hoje, pode-se dizer que elaconstitui ainda uma tematica tabu. Segundo Bar-ros de Oliveira: "Cairam todos os tabus, como 0

do sexo, mas a morte, e hoje, mais do que nun-ca, proibida de se mostrar, quase como uma coisaobscena ou pornogr8.fica". 20

Esta negaC(ao da morte encontra-se inerentea pr6pria actuaC(ao da sociedade actual, e que"tecnicamente admite-se que podemos morrer etomar providencias em vida para preservar osnossos da miseria. Verdadeiramente, porem, nofundo de n6s mesmos, nao nos sentimos mor-tais".21 0 pr6prio "sitio" ou "local" onde se morrehoje, tao diferente dos tempos de outrora, contri-bui para este sentimento de nao familiaridade coma morte. A morte como acontecimento da vida,passou do dominio familiar para 0 dominio dostecnicos de saude. GeraC(oes houve em queo moribundo morria em casa, despedia-se da fa-milia, resolvia os ultimos compromissos em vidae todos assistia a este acontecimento num am-biente profundamente natural. Actualmente e des-de a decada de 60, os progressos na area dareanimagao e do intensivismo medico, conduziua hospitalizagao da morte. Em certos paises,estas transformagoes foram tao evidentes que,hoje, 2/3 dos Britanicos morrem em hospitais e80% das mortes nos Estados Unidos da Americaocorrem em variadas instituiC(oes de saude.22

Em Portugal, nao fugindo a esta linha, tam-bem aproximadamente 80% dos 6bitos aconteceem unidades hospitalares 23.

Esta transformagao social do local da morteconduziu a um progressivo esquecimento damesma no contexto comunitario e, inclusive, asua negagao: "0 materia/ismo reinante ehedonismo reinantes nao suporta que 0 pensa-mento da morte venha a perturbar um crescendodo consumo de bens e prazeres, a morte e vistacomo um facto unicamente bio/6gico e nao comouma realidade profundamente humana". 24

Os profissionais de saude, tambem nao sa-bem lidar com a morte do outro e surgem actosque nao SaD respeitadores da dignidade da pes-soa, SaD actos profissionais de fuga a realidadeda morte e com um deficit de amor.

"0 moribundo ref/ecte a morte ao tecnico,despertando as suas incertezas, crem;as e inqui-etando 0 seu saber, serenidade e maturidade.Por isso, e/e tenta evitar esta situa9ao porque: aquer ignorar; nao tem tempo; pens a que 0 doen-te prefere ficar 56 [...J sente que nada mais podefazer; quer ter tranquilidade emocional; nao querestar pr6ximo de alguem que vai morrer; recor-da-se de um ente querido; 0 moribundo ja setornou um amigo; nao se sente capaz de dialogarou acha que isso nao Ihe compete; quer pro-teger-se dominando a angtJstia e a ansie-dade que a morte (como constata9ao pessoalou como sin6nimo de desaire profissional) Iheprovoca. "25

Estas atitudes dos profissionais traduzemactos perante a pessoa em fim de vida:

Isolamento da pessoa, e redu<;:ao das visitasmedicas e do pessoal de enfermagem. Os profis-sionais estao educados para a perspectiva docurar e, perante a iminencia da morte, as seusobjectivos fracassam e SaD confrontados com a"inimigo" que nao conseguem vencer, por issotentam evitar 0 confronto com a morte do outroou refugiar-se no uso da tecnologia, para adiar amorte (caindo numa distanasia). Par vezes, hauma falta de contacto ffsico, de carinho, de umapresenga amiga, mesmo silenciosa, junto do leitodo moribundo. Por ultimo, embora pUdessemosreferir muitas mais exemplos, referimos um dadoque na nossa pratica ainda acontece comfrequencia: a controlo ineficaz da dor. Esta situ-a9ao, numa era em que temos todos meiostecnicos para suprimir/diminuir a dor ffsica e me-Ihorar a qualidade de vida da pessoa no ocasoda vida, atenta contra a dignidade da pessoa hu-mana.

Ha que proceder a uma inversao destascircunstancias. A pessoa humana, mesmo no fimda vida nao podera ser instrumentalizada, comonos indica Oliveira, "Os profissionais de satJde,com 0 seu saber e competencia, tentam fazer 0

seu melhor, mas parecem preocupar-se mais como corpo do paciente e 0 seu funcionamento bio-16gico (como se fosse um objecto, do que coma pessoa, com os seus sentimentos, dtJvidase afli90es; que SaD por vezes bem evidentes,como 0 medo da morte, claro, e tambem dador, do desconhecido e de toda esta esquisitasitua9ao. "26

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Parece-nos, legitimo entao afirmar que so como amor e que a pessoa humana no seu fim davida podera restituir a sua dignidade ontologica.Tal como nos indica Borges, "Nao e a morte quee digna. Quem e digno e sempre 0 ser humano,que, por amor e eapaz, de sacrifiear a propriavida e euja dignidade fragil e sempre amea9adarequer 0 nosso euidado permanente". 27

Este cuidado permanente que e solicitadoperante a vulnerabilidade do outro que morre, sacactos de amor. Esta realidade e expressa porMarie Hennezel, psicologa que trabalhou durantesete anos numa unidade de cuidados paliativosparisiense:

"Quando nada mais resta fazer, podemos ain-da amar e ser amados, e muitos moribundos, noinstante de deixarem a vida, nos tem lan9adoesta mensagem pungente:

nao passem ao largo da vida, nao pass em aolargo do amor. Os ultimos instantes da vida deum ser amado podem eonstituir a ocasiao de ir 0

mais longe possivel com essa pessoa."28Servindo-nos da quest6es da alteridade do

filosofo Emmanuel Levinas, poderfamos entao afir-mar que, quando 0 outro, no fim da vida me olha,sou por ele responsavel, "... desde que 0 outrome olha sou por ele responsavel (.r 29 Levinas,en uncia que essa responsabilidade, "... e 0 queexclusivamente me incumbe e que, humanamen-te, nao posso reeusar. Este eneargo e uma su-prema dignidade do unieo. "30 Ainda, a propositoda morte em Levinas, Nunes relata-nos que"0 confronto eom 0 rasto que morre desperta emmim um eerto temor, um medo que e provocadopela «rectidao» extrema do rosto do proximo, ras-gando as formas plasticas do fenomeno."31 Maseste medo, segundo Nunes, nao significa por

consequencia abandono, pelo contrario, "... eunao posso deixar 0 oufro morrer sozinho. Estenao deixar 0 outro sozinho nao eonsiste em qual-quer confranto, mas sim numa importancia emface do outro que eonsiste simplesmente em di-zer: eis-me". 32

Neste sentido, a dignidade da pessoa no fimda vida, sera assumida, sempre que 0 amor(incondicional, como e paradigmatico com a pa-lavra "eis-me"), estiver presente na relagao.A este proposito Adorno diz-nos, "... 0 amor e auniea antitese a instrumentaliza9ao da pessoa;so ele nos permite escapar a uma visao utilitaristae, por isso mesmo, cruel do homem. Somente 0

amor nos permite advertir que quanta mais debile doente e uma pessoa, tanto mais necessita donosso afecto. Trata-se de suseitar, em nos mes-mos, uma v.erdadeira admira9aO existencialperante cada ser humano." 33

A incursao pela problematica da dignidadeconduziu-nos a vislumbrar 0 amor como atitudeplenamente adequada para 0 respeito integral dadignidade da pessoa no terminus da sua existen-cia. Como nos enunciam Sanchez e Baron,"0 homem e nobre e digno, fundamentalmente,por ser eapaz de amar [ ..] a particular digni-dade do ser humano radica em que e sujeito eobjecto de amor, na capacidade de amar e seramado." 34

Numa situagao de grande vulnerabilidade,confrontado com 0 seu fim, 0 moribundo, clamapor outro, e 0 "rosto que fala", utilizando Levinas,que nos apela ao amor, raiz da sua dignidade erealizagao ultima do ser humano.

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1 Para um visualizagao acerca da· historia do termodignidade e das ideias ao longo da historia ver CABRA.L,Roque (2000) - "A dignidade da pessoa humana". In CABRAL,Roque - Temas de etica. Braga. Faculdade de Filosofia,pp. 273-280.

2PICCO DELLA MIRANDOLA (1989) - Discurso sobre aDignidade do Homem. Lisboa: Edigoes 70, pp. 49-51.

3 GANHO, Maria de Lurdes Sirgado (1986) - Acercado pensamento de Givanni Pico de Mirandola. In: Ibidem,p.27.

• CABRAL, Roque (2000) - "A dignidade da pessoahumana". In: CABRAL, Roque - Temas de etica. Braga.Faculdade de Filosofia, p. 277.

5 Ibid. p. 280.6CONSELHO NACIONAL DE ETICA PARA AS CIEN-

CIAS DA VIDA (1999) - Reflexiio Etica sobre a Oigni-dade Humana (documento de trabalho 26/CNECV/99), p. 4.

70RGANIZA<;Ao DAS NA<;OES UNIDAS (1998) - Oe-clarar;iio Universal dos Oireitos do Homem. [s.I.]: ImpressaNacional Casa da Moeda, p. 5.

8RENAUD, Michel (2000)- "A Dignidade Humana. Re-flexao Retrospectiva e Prospectiva" In: Cadernos de Bioe-tica. (23), pp. 17-18.

9RENAUD, Michel (1999) - "A Dignidade do ser huma-no como fundamento etico dos Direitos do Homem-II" In:Brateria (148), p. 425.

10"Es gracias a su acto de ser, dotado de una intensi-dad unica, que ella poseen una dignidad constitutiva."In: ADORNO, Roberto (1998) - Bioetica y dignidad de lapersona. Madrid Editorial Tecnos, p. 56.

11Ibid., p. 56 e 61.12"Esta noci6n nos remite a la idea de incomunicabiiidad,

de unicidad, de imposibilidad de reducir este hombre a umsimple numero. Es el valor que se descubre en el hombre porel solo hecho de existir" In: Ibid., p. 57.

13MELENDO, Tomas (1999) - Oignidad Humany Bioetica.Pamplona: Ed. Univ. Navarra, p. 134.

14•.... el amor consttuye, a la par, el sentido de todaa existencia humana y el de nuestra misma Iiberdad".In: Ibid., p. 130.

15Para 0 autor, Amor refere-se ao Absoluto e amor aspessoas na nossa vida.

16•.... amar - com un querer gratuito, benevolenciacontituye el acto mas alto, la concrecion mas sublime, delejercicio mismo de la liberdad: que la liberdad es, al cabo,capacidade de amar. Somos Iibres, mas libres, en la medidaque amamos, y amamos mas" la Ibid., p. 131.

17•.... el bien del outro en cuanto outro, aquello que quiere,justamente, ai amar. "In: Ibid., p. 131.

18RENAUD, Michel, op. cil., p. 426.19Pessoa em fase terminal "... doentes em que os clfni-

cos experientes esperam que eles morram de uma doengaespecffica, apesar do tratamento apropriado, num perfodorelativamente curto de tempo, medido em dias, semanas ou

meses no maximo." In JONSEN, Albert et al (1998) - EticaClfnica (4.~ ed.). Lisboa-S. Paulo-Bogota: Mc Graw-Hill,p. 24. Apesar desta definigao, 13 muito arbitrario a atri-buigao de urn estatuto de doente em fase terminal.Os mesmos autores, afirmam que ha estudos que revelamque medicos experientes apresentam imprecisoes nas previ-soes do tempo de vida. Independentemente deste facto, 0

termo 13usado em contexto de cuidados de saude pelos pro-fissionais.

20BARROS de OLIVEIRA, J. H. (1998) - Viver a Morte:abordagem Antropol6gica e Psicol6gica. Coimbra: LivrariaAmedina, p. 16.

2' ARIES, Phillipe (1989) - Sobre a Hist6ria da Morte noOcidente desde a Idade Media. Lisboa; Teorema, pag. 16.

"Cf. NULAN, Sherwin (1998) - Como morimos. Madrid:Alianza Editorial, p. 342.

23Cf. SERRAo, Daniel (1998) - "Etica das atitudes me-dicas em relagao com 0 processo de morrer". IN: Etica emcuidados de saude. Coord. Daniel Serrao e Rui Nunes. Porto:Porto Editora, p. 86.

24BARROS de OLIVEIRA, op. cit., p. 17.25OLIVEIRA, Abilio (1999) - 0 Oesafio da Morte - Con-

vite a uma viagem interior. Lisboa: Editorial Notfcias,pp. 148-149.

26 Ibid, pp. 152-153.27BORGES, Anselmo (1996) - "Morrer dignamente.

A obstinagao Terapeutica". In AA.VV.-Bioetica. Coord. LuisArcher, Jorge Biscaia e Walter Osswald Lisboa: Editorial Verbo,p.363.

28HENNEZEL, Marie (1997) - Oialogo com a Morte.Lisboa: Editorial Notfcias, p. 14.

29LEVINAS, Emmanuel (1988) - Etica e Infinito. Lisboa:Edigoes 70, p. 88.

30 Ibid., p. 93.31NUNES, Etelvina Pires Lopes (1993) - 0 Outra e 0

Rosto. Braga: Faculdade de Filosofia da UCP, p. 158.32Ibid. p. 159, Para uma melhor compreensao das figuras

do outro em que a alteridade se manifesta em Levinas, aautora aborda a tematica das p. 153-167.

33"... el amor es la unica antitesis a la instrumntalizacionde la persona; que s610 131nos permite escapar a una visionutilitarista y, por elle mismo, cruel del hombre. Solamente ellenos permite advertir que cuanto mas debil y enfermo es unapersona, tanto ma necesita de nuestro afecto. Se tratade suscitar eu nosostros una verdadera admiracion exis-tencial ante cad a ser humano." In: ADORNO, Roberto, op. cit,p. 166.

34"EI hombre es noble e digno, fundamental mente, porser capaz de amar (...) la particular dignidad del ser humaneradica en que es sujeto y objeto de amor, eu su capacidad deamar y ser amado" In SANCHEZ, J. D. Munoz; BARON,M. Gonzalez (1996) - "Aspectos Eticos en la fase terminal.Principios generales" In: AA.VV. - Tratado de Medi-cina Paliativa y Tratamiento de Soporte en el enfermocom cancer. Madrid: Editorial Medica Panamericana,pp. 1226-1227.

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