diferentes atitudes frente ao risco e diferentes projetos ... · ção social, política,...

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Page 1: Diferentes atitudes frente ao risco e diferentes projetos ... · ção social, política, econômica e cultural que, ... uma teoria da modernização reflexiva. In: ... Política,

TRÓPICOS DO DISCURSO SOBRE RISCO 1301

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(6):1277-1311, nov-dez, 2001

Centro de Estudos em Saúdedo Trabalhador e EcologiaHumana, Escola Nacional de Saúde Pública, FundaçãoOswaldo Cruz, Rio de Janeiro, [email protected]

Carlos Machado de Freitas

Diferentes atitudes frente ao risco e diferentesprojetos de modernidade

O debate sobre o termo risco e seus discursosna modernidade são um tema atual e de gran-de importância para o campo da Saúde Públi-ca, pois sempre nos remete à possibilidade dedebatermos diferentes projetos de sociedade ede modernidade.

O termo risco surge com o próprio processode constituição das sociedades contemporâ-neas a partir do final do Renascimento, quan-do ocorreram intensas transformações sociaise culturais associadas ao forte impulso nasciências e nas técnicas, às grandes navegaçõese à ampliação e fortalecimento do poder políti-co e econômico de uma nascente burguesia(Freitas, 1997). Constitui-se em uma das for-mas de expressão de um projeto de organiza-ção social, política, econômica e cultural que,tendo suas origens na nascente burguesia daEuropa Ocidental, foi cada vez mais se esten-dendo sobre todo o planeta e se intensificandonas sociedades que atingiu. Neste projeto, ohomem, através de ações racionais que objeti-vam ordenar o mundo em que vive, deve deter-minar seu próprio futuro, transformando-o emum território a ser conquistado ou colonizadoe que lhe possibilitará alcançar a liberdade, afelicidade ou a satisfação das suas necessida-des (Giddens, 2000; Toraine, 1994).

Neste processo histórico dois fundamentosmoldaram o termo risco e suas aplicações namodernidade, sendo estes: a perspectiva utili-tarista e a concepção elitista de democracia.

Para a perspectiva utilitarista, as ações ra-cionais dos indivíduos deveriam ser orientadaspara determinados fins com o objetivo de al-cançar os melhores resultados; felicidade, utili-dade, satisfação, entre outros, sendo o merca-do o protótipo do processo que liga as prefe-rências individuais às escolhas sociais e sua le-gitimação. Orienta a luta pela própria sobrevi-

aventura” y la realidad material de millones depersonas que hoy parecen vivir simplementeen peligro.

DUCROT, O. & TODOROV, T., 1979. Diccionario Enci-clopédico de las Ciencias del Lenguaje. México,DF: Siglo Veintiuno Editores.

vência e a busca para a prosperidade em ummundo dominado por aparente caos e incerte-zas, permitindo substituí-lo por outro, domi-nado pela ordem e a previsibilidade (Freitas,1997).

A concepção elitista de democracia se en-contra na base do que Giddens (1990) denomi-na de sistemas abstratos de confiança, que en-volvem as instituições da modernidade que or-ganizam os principais aspectos de nossa vidacotidiana e que se encontram vinculadas àsquestões decisivas relativas à segurança, riscoe perigo no mundo moderno. Para a concepçãoelitista de democracia, a preocupação maior émanter a estabilidade de um sistema social ba-seado no utilitarismo. A limitação da participa-ção dos cidadãos nos processos decisórios nãoé apenas aceita, mas também justificada comosinal de fé e lealdade para com o sistema e suaselites técnicas e políticas, essas sim, capazes derealizar os melhores julgamentos para a maxi-mização de ganhos para todos (Freitas, 1997).

Na modernidade tardia, assistimos ao triun-fo do projeto de uma sociedade industrial e ca-pitalista, em que as preferências individuais eescolhas sociais reproduzem, em maior ou me-nor grau, uma ordem instrumentalmente ra-cional que tem como referência o mercado. En-tretanto, falhou a perspectiva de que a expan-são e intensificação da intenção de controle deriscos modernidade, como modo de regular,normatizar e submeter o futuro ao nosso do-mínio, representaria para muitos a liberdade, afelicidade ou a satisfação de suas necessidades.Hoje, somos todos forçados a reconhecer a im-previsibilidade das ameaças provocadas pelodesenvolvimento técnico-industrial e a procu-rar modos diferentes de relação com a incerte-za, tornando-se obscurecido o horizonte deum mundo e um futuro controlados pela razãoinstrumental (Beck, 1997; Giddens, 2000).

Neste contexto atual, conforme observaBeck (1997), alguém que considere o mundocomo um risco irá se tornar incapaz de agir, demodo que vem se produzindo o oposto, sendoo risco-aventura apenas uma das diversas ati-tudes constituídas para enfrentar a imprevisi-bilidade dos riscos modernos. Thompson &Wildavsky (1983), por exemplo, na perspectivade uma teoria cultural dos riscos, identificamcinco atitudes, tais como: indivíduos atomiza-dos (a vida é uma loteria, os riscos estão fora decontrole e a segurança é uma questão de sor-te), burocratas (riscos são aceitáveis enquantoas instituições têm rotinas para controlá-los),eremitas (riscos são aceitáveis enquanto nãoenvolvem a coerção de outros), igualitários (ris-cos deveriam ser evitados a menos que sejam

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SPINK, M. J. P.1302

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 17(6):1277-1311, nov-dez, 2001

inevitáveis para proteger o bem público) e em-preendedores (riscos oferecem oportunidades edevem ser aceitos em troca de benefícios). Es-tas diferentes atitudes, como observam os au-tores, manifestam que as escolhas dos riscos ede como viver, são tomadas conjuntamente, jáque a seleção das formas de organização socialpredispõe as pessoas a selecionarem determi-nados riscos em detrimento de outros e de ou-tras formas de organização social. Também ma-nifestam as contradições de um projeto de mo-dernidade para o qual as ações racionais quebuscam ordenar o mundo, deveriam ter comofundamentos somente a perspectiva utilitaris-ta e uma concepção elitista de democracia.

O que se encontra por trás das atitudes ediscursos sobre o risco e dos debates que lheacompanham na modernidade são diferentesprojetos de sociedade. Dentre esses projetospodemos considerar que o risco-aventura sim-boliza aquilo que Giddens (1990) denomina deradicalização do projeto da modernidade. Nasua forma mais ambiciosa, aprofunda o indivi-dualismo e afirma que o homem é o que ele faz,reduzindo a sociedade e nossas vidas a umaempresa lutando para sobreviver num merca-do internacional. Os poderes ocultados pas-sam cada vez mais a ser definidos em termosde gestão e de estratégia, que individualizadase restritos ao espaço privado, deixam, comoobserva Torraine (1994), apenas um abismosem fundo lá onde havia o espaço público, so-cial e político. Trazer para o debate outras ati-tudes e discursos sobre os riscos na moderni-dade, que envolvem outros projetos de socie-dade, como os que orientam as críticas dos jo-vens, partidos de esquerda e organizações não-governamentais ao processo de globalizaçãoem curso e seus riscos para a saúde e o meioambiente é, então, de vital importância. Spinkperde essa oportunidade, ao limitar sua abor-dagem a apenas uma perspectiva do risco.

BECK, U., 1997. A reinvenção da política: Ruma auma teoria da modernização reflexiva. In: Mod-ernização Reflexiva – Política, Tradição e Estéticana Ordem Social Moderna (U. Beck, A. Giddens &E. Lash, org.), pp. 11-71, São Paulo: Editora Unesp.

FREITAS, C. M. & GOMEZ, C. M., 1997. Análise deriscos tecnológicos na perspectiva das CiênciasSociais. História, Ciências, Saúde – Manguinhos,3:485-504.

GIDDENS, A., 1990. As Conseqüências da Moder-nidade. São Paulo: Editora Unesp.

GIDDENS, A., 2000. Mundo em Descontrole – O Que aGlobalização está Fazendo de Nós? Rio de Janeiro:Editora Record.

THOMPSON, M. & WILDAVSKY, A., 1983. A proposalto create a cultural theory of risk. In: The RiskAnalysis Controversy – An Institutional Perspec-

tive (H. C. Kunreuther & E. V. Ley, ed.), pp. 145-161, Berlin: Springer-Verlag.

TOURAINE, A., 1994. Crítica da Modernidade. Rio deJaneiro: Editora Vozes.

Santa Casa de Misericórida,São Paulo, [email protected]

Rita BarradasBarata

O artigo em questão apresenta uma diversida-de muito grande de planos de análise tornandorelativamente temerária a tarefa de debatê-lo.Para não incorrer então nas inúmeras “armadi-lhas” apresentadas pela autora, optei por colo-car-me estritamente da perspectiva de um pra-ticante da Epidemiologia, campo no qual o con-ceito de risco desempenha papel nuclear.

O conceito de risco, estrito senso, em qual-quer campo de saber científico ou tecnológicoem que venha a ser utilizado, tem um único epreciso significado: probabilidade de ocorrên-cia de um evento de interesse. Entretanto, quan-do se trata de olhar, como faz a autora, para alinguagem em uso ou para os usos da lingua-gem em diferentes domínios do saber, aí in-cluído o plano do cotidiano, ocorre uma verda-deira “explosão polissêmica” que esvazia o con-teúdo estritamente conceitual da palavra risco,dando lugar a uma noção multifacetada, carre-gada de valor.

Mantendo-se fiel ao conceito de risco, nãohaveria como atribuir-lhe conotações negati-vas ou positivas, visto que o cálculo da proba-bilidade de ocorrência de um evento é em simesmo, um procedimento neutro. Todavia, asatribuições de sentido operadas no interior daspráxis discursivas conferem à noção de riscoora sentidos positivos, como alguns daquelespontuados pela autora ao apresentar a idéia derisco-aventura, ora sentidos negativos, comoocorre mais freqüentemente no interior do dis-curso epidemiológico e na prática em SaúdePública.

Os variados usos que a palavra risco tem,principalmente no cotidiano, correspondemfreqüentemente a um processo de reificaçãodo conceito levando à confusão entre a possi-bilidade de ocorrência de um evento e as cir-cunstâncias ou elementos “responsáveis” poressa ocorrência. Este efeito pode ser verificadono próprio texto aqui analisado quando a au-tora se refere ao fato de que na etapa pré-capi-talistas “esses eventos (terremotos, furacões eoutras desgraças) não eram denominados ris-cos. Eram referidos como perigos, fatalidades,hazards...”. Aqui, a primeira armadilha nesse