dias melhores - a presenca publica das igrejas em areas urbanas3
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Missões urbanasTRANSCRIPT
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Por amor ao mundo
Clovis Pinto de Castro
Compartilhando uma experincia... A religio, ou melhor, as experincias religiosas me acompanham desde a
infncia. Influenciado pelo catolicismo praticado pelo meu pai e pela
minha me, aprendi desde cedo a buscar na religio uma maneira de
transcender as duras e, muitas vezes, cruis realidades cotidianas.
Participava de vrios rituais: novenas, procisses, missas, rezas...
Descobri aos poucos, especialmente na adolescncia quando se
intensificaram as minhas experincias religiosas, j no contexto da Igreja
Metodista, que por meio dos rituais religiosos poderia alcanar a paz
interior, independente do que estava acontecendo no mundo. Na
verdade, fui catequizado, tanto no catolicismo quanto no metodismo, no
sentido de me manter afastado do mundo. Costumava ouvir que o mundo
nos afasta de Deus. Quem ama o mundo no ama a Deus.
Quando comecei a freqentar a Igreja Metodista, ficava admirado com o
quadro que decorava uma das salas da Escola Dominical: Os Dois
Caminhos. O caminho largo (do mundo) que levava ao inferno e o
caminho estreito (da f e, mais especificamente, da Igreja) que levava ao
paraso. Essa imagem foi fundamental para formar meu imaginrio. Vivi
muitos anos tentando fugir do mundo.
Mas, o mundo no fugia de mim. Ele sempre se fazia presente, uma
presena que sempre me seduzia e inquietava. Quanto mais tentava fugir,
com mais fora ele se apresentava. At que decidi fazer Teologia,
possivelmente porque pensava que os/as pastores/as tinham mais fora
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para viverem fora do mundo ou para venc-lo. Porm, a reflexo teolgica
provocou uma metania em minha vida de f. Fui (re)educado a ver o
mundo com outros olhos. Fui convidado pelos docentes a amar o mundo,
a ter paixo pela vida. Essa mudana de olhar (hermenutica) no foi to
simples assim. Demorou, foi um longo e doloroso processo e no estou
muito seguro se ele j terminou, pois de vez em quando me surpreendo
com saudades do tempo em que no amava o mundo, ancorado em
certezas que a f me oferecia, vivendo uma espiritualidade tranqila em
meu pequeno espao privatizado.
Por amor ao mundo Uma das biografias mais completas da filsofa poltica alem Hannah Arendt,
organizada por Elizabeth Young-Bruehl, tem como ttulo a expresso Por amor ao
mundo1, que sintetiza bem a vida e o pensamento dessa filsofa. Como
provavelmente ningum vai perder tempo organizando uma biografia minha, at
porque no seria um sucesso de vendas, j adotei em vida mesmo essa
expresso Por amor ao mundo como algo que explicita bem minha perspectiva
acadmica e ministerial. Por ainda acreditar na possibilidade de um mundo mais
justo, onde seja possvel o acesso de todos os humanos s condies bsicas
para uma vida com dignidade, compartilho aqui pensamentos que apontam para a
possibilidade de uma presena mais relevante da Igreja no espao da pluralidade
humana, especialmente no cotidiano de nossas cidades.
Quando se fala a partir do Brasil, no fcil ser portador de uma mensagem de
esperana. Permanecermos na mesma posio no ranking do IDH ndice de
Desenvolvimento Humano, divulgado no Relatrio do Programa das Naes
Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), em agosto de 20052. Entre 177 pases, o
Brasil est na 63 posio. um lugar incmodo para um pas que detm uma das
maiores economias do mundo. Nesse cenrio scio-econmico, um dos principais 1 Young-Bruehl, Elizabeth. Hannah Arendt: Por amor ao mundo. Rio de Janeiro: Relume-Dumar,1997. 2 Folha de So Paulo, 1 caderno, 07 de setembro de 2005, pginas 1, 20-22.
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problemas a concentrao de riqueza: quase 50% da renda nacional est nas
mos de apenas 10% da populao. Alm do quadro social crtico que se
manifesta de forma mais visvel nas cidades, especialmente nas metrpoles,
convivemos tambm com um cenrio poltico desalentador com tantas denncias
de corrupo envolvendo todos os poderes da Repblica judicirio, executivo e
legislativo.
Diante desse quadro, so comuns as manifestaes de espanto, raiva, desnimo
e decepo. D vontade de chorar. Podemos afirmar que o Brasil est de luto.
Rubens Alves, ao escrever sobre a recente crise poltica brasileira, falou sobre
esse sentimento:
Choramos... D. Miguel de Unamuno, filsofo espanhol que Guimares Rosa muito amava, disse que o que existe de mais sagrado num templo o fato de ser o lugar aonde se vai chorar em comum. Um Miserere cantado em coro por uma multido aoitada pelo destino vale tanto quanto uma filosofia. Creio que ele me permitiria uma inverso. Eu diria: Um lugar aonde se vai chorar em comum, qualquer que seja, transforma-se num templo. Em que templo enorme se transformou o Brasil! S nos falta um poeta que nos componha um Miserere para cantarmos!3
Por mais legtimo e necessrio que seja, esse choro coletivo deve nos levar a uma
ao restauradora e no prostrao. Nessa direo, trago memria a orao
pela cidade, escrita em 1910, por Walter Raushenbush, principal criador e
articulador da Teologia do Evangelho Social, telogo-pastor que soube conjugar
adequadamente o amor a Deus e o amor ao mundo. Assim como Jesus chorou
diante de Jerusalm, Rauschenbush tambm deve ter chorado diante da situao
de sua cidade, pelo menos o que podemos inferir ao ler a sua orao pela
cidade:
Deus, oramos pela cidade que amamos e da qual nos orgulhamos. Alegramo-nos com sua beleza e seu comrcio, suas lojas e suas fbricas, seus mercados e suas feiras onde todos se juntam a
3 ALVES, Rubens. A hora da tristeza, in: Folha de So Paulo, 1 caderno, pgina 3, Tendncias e Debates, do dia 04 de setembro de 2005.
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trabalhar; e com seus lares onde as pessoas se encontram para o repouso e o amor. Ajuda-nos a fazer com que a nossa cidade seja a oficina comum do nosso povo, onde cada um poder achar seu lugar e sua misso para assim construir diariamente sua vida, dando com suas mos e sua mente aquilo que de melhor tem. Ajuda-nos tambm a fazer de nossa cidade o grande lar do nosso povo, onde todos podero viver suas vidas com conforto, sem medo, em paz e amando uns aos outros. Une nossos cidados no s pelo elo do dinheiro e do lucro, mas tambm pela boa vontade comunitria, pela emoo de alegrias comuns, e com o orgulho de seus bens comuns. Quando formos traar as metas grandiosas para o futuro de nossa cidade, permite que lembremos sempre que a sua verdadeira riqueza e grandeza consistem no s na abundncia daquilo que possumos, mas tambm na justia das instituies e na irmandade dos que nela habitam. Torna-a rica com seus filhos e filhas e que fique famosa atravs das paixes grandiosas que os inspiram. Somos-te gratos pelos homens e mulheres do passado que, pela sua generosa devoo ao bem comum, foram os pilares de nossa cidade. Permite que nossa gerao possa continuar dignamente a construir sobre os fundamentos que eles lanaram. Se, no passado, houve quem tivesse se enriquecido pela apropriao indevida dos bens pblicos, manchando assim a honra da cidade por causa de sua ganncia, d-nos, ns te pedimos, a raiva justa de cidados, para que possamos expurgar essa vergonha e ela no venha a macular os anos futuros. D-nos uma viso de nossa cidade, bela como dever ser: cidade onde impere justia, onde um no ser vtima de outro; cidade de abundncia, onde o vcio e a pobreza no mais existiro; cidade fraterna, onde os empreendimentos tero como fundamento o servio ao povo e as honras sero dadas somente aos que so realmente merecedores delas; uma cidade pacfica, onde a ordem no reinar pela fora, e sim pelo amor de todos pela cidade, que a grande me da comunidade. Escuta, Deus, as oraes silenciosas de todos os nossos coraes, enquanto devotamos nosso tempo, foras e pensamentos para que chegue logo o dia em que ela se tornar bela e justa. Amm.
(Orao pela Cidade Walter Rauschenbush, 1910)
uma orao que, mesmo tendo sido escrita h quase um sculo, expressa ainda
muitos dos nossos desejos e frustraes com relao ao espao urbano. Uma
leitura mais atenta dessa orao revela, pelo menos, cinco categorias de anlise:
a cidade como espao da produo material da vida; a cidade como lugar da
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manifestao da singularidade; a cidade como espao da reunio dos cidados e
cidads em projetos comuns; a cidade como espao da manifestao objetiva da
justia e a cidade como espao da expresso religiosa. Assim, para Raushenbush,
a cidade se abre possibilidade humana da expresso do trabalho, da
religiosidade e da governana. Segundo ele, essas formas de expresso do
humano so balizadas na justia, na memria e no amor, parmetros para a
ordenao de um espao comum onde se expressa a pluralidade e singularidade
humana. Para explicitar essa trade, retomo as palavras do autor:
Se, no passado, houve quem tivesse se enriquecido pela apropriao indevida dos bens pblicos, manchando assim a honra da cidade por causa de sua ganncia, d-nos, ns te pedimos, a raiva justa de cidados, para que possamos expurgar essa vergonha e ela no venha a macular os anos futuros. D-nos uma viso de nossa cidade, bela como dever ser: cidade onde impere justia, onde um no ser vtima de outro; cidade de abundncia, onde o vcio e a pobreza no mais existiro; cidade fraterna, onde os empreendimentos tero como fundamento o servio ao povo e as honras sero dadas somente aos que so realmente merecedores delas; uma cidade pacfica, onde a ordem no reinar pela fora, e sim pelo amor de todos pela cidade, que a grande me da comunidade.
Em estreita relao com a trade justia, memria e amor h, nesse trecho da
orao, duas afirmaes que nos chamam a ateno. A primeira, quando ele
pede: d-nos, ns te pedimos, a raiva justa de cidados. O que seria para ns
hoje a raiva justa de cidados? Entendemos que a raiva justa que
Rauschenbush busca em sua orao se traduz num forte sentimento de
indignao que possa levar os cidados e cidads ao exerccio de uma cidadania
mais plena, por meio de uma f cidad e no ao conformismo ou alienao. A
segunda afirmao est na expresso: d-nos uma viso de nossa cidade, bela
como dever ser. Aqui se reflete a dimenso escatolgica da experincia crist.
Aponta para um mundo restaurado pela manifestao da Graa de Deus.
Participar ativamente do espao pblico exige da Igreja no como corpo abstrato
enquanto instituio social, mas corpo vivo formado por cidados e cidads a
juno ou a articulao destes dois elementos: uma raiva justa de cidados e
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uma viso (escatolgica) para as nossas cidades. a necessria articulao
entre a cidadania ativa e a utopia. Para isso, sempre necessrio acreditar que
dias melhores viro.
Promessas de um mundo melhor a Primavera que anuncia a teimosia da vida H na histria do povo de Deus, tanto no Antigo como no Novo Testamento,
promessas de um mundo bom e agradvel para se viver, uma terra que produza
abundantemente leite e mel ou um novo cu e uma nova terra onde no haja
qualquer tipo de violncia e sofrimento. a manifestao do desejo de uma
criao restaurada. Os profetas conseguiram em diferentes pocas e lugares
explicitar esse desejo humano. So promessas bblicas de um futuro melhor para
toda a humanidade: Iahweh dos Exrcitos prepara para todos os povos, sobre
esta montanha, um banquete de carnes gordas, um banquete de vinhos finos, de
carnes suculentas, de vinhos depurados [pena que os vegetarianos e os
metodistas no podero participar] (...) O Senhor Iahweh enxugou a lgrima de
todos os rostos; ele h de remover de toda a terra o oprbrio de seu povo (Is 25,
6-8).
Ainda hoje, em diferentes manifestaes culturais, h a traduo desse desejo
humano por um mundo melhor. Encontramos, por exemplo, tanto na Igreja como
fora dela, poetas que conseguem sintetizar numa cano essa esperana da
humanidade. Compartilho apenas dois exemplos:
Jesus Cristo, esperana para o mundo de Silvia Meincke, Edmundo Reinhardt e Joo Carlos Gottinar
Um pouco alm do presente Alegre o futuro anuncia A fuga das sombras da noite A luz de um bem novo dia. Venha o Teu reino, Senhor A festa da vida recria
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A nossa espera e ardor Transforma em plena alegria A nossa espera e a dor Transforma em plena alegria. Boto de esperana se abre Prenncio da flor que se faz Promessa de Tua presena Que vida abundante nos traz. Saudade da terra sem males Do dem de plumas e flores Da paz e justia irmanadas Num mundo sem dio nem dores. Saudade de um mundo sem guerras Anelos de paz e inocncia Derrota de todos os sistemas Que criam palcios barracas. J temos preciosa semente Penhor do Teu reino agora Futuro ilumina o presente Tu vens e virs sem demora.
Vivemos esperando da banda mineira Jota Quest:
Dias melhores Dias de paz, dias a mais Dias que no deixaremos para trs Vivemos esperando O dia em que seremos melhores Melhores no amor, melhores na dor Melhores em tudo Vivemos esperando O dia em que seremos para sempre Vivemos esperando Dias melhores para sempre Dias melhores para sempre Vivemos esperando Dias melhores Dias de paz, dias a mais
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Dias que no deixaremos para trs
So canes que expressam promessas de restaurao, de renovao da vida.
Nesse sentido, recordo que nosso congresso acontece uma semana antes do
incio da Primavera (no hemisfrio sul). H um fator simblico importante por trs
desta coincidncia: a Primavera nos lembra que a vida se renova e que sempre
possvel um recomeo. a teimosia da vida. Por mais rigoroso que tenha sido o
Inverno smbolo das provaes, das lutas, da frieza, da escassez a Primavera
aponta para a possibilidade do novo, da superao, da renovao da vida. Apesar
do mal estar da (in)civilizao manifestado por meio de tanta violncia e opresso
que, diariamente no Brasil e em outros cantos do planeta, ceifa a vida de milhares
de seres humanos, possvel crer na restaurao do mundo bom e justo criado
por Deus.
Freud j dizia em seu livro O Mal estar da Civilizao4 que o ser humano possui
um contedo de crueldade que no tem como dele desfazer-se. conseqncia
da relao dialtica entre pulso de morte e pulso de vida. Pode, porm, sublimar
esse desejo de morte e destruio por meio do desenvolvimento de uma cultura
humanizadora tendo como horizonte a construo de um mundo comum a todos
os humanos. Nesse sentido, as mltiplas formas de expresses artsticas e
literrias so fundamentais para o desenvolvimento de projetos de restaurao.
Porm, enquanto a Primavera instala-se por aqui, acima da linha do Equador o
Outono que chega para tomar o seu lugar no ciclo da natureza. A aparente
contradio desse movimento permite a compreenso de que vivemos em
diferentes mundos no mundo. Simbolicamente, esse movimento da natureza
uma afirmao de que h esperana para situaes aparentemente
desalentadoras. As estaes do ano apontam para o movimento dialtico da
produo da vida e para a complexidade do existir humano que acontece tambm
entre duas estaes nascimento e morte.
4 FREUD, Sigmund. O Mal-estar da Civilizao. Rio de Janeiro, Imago, 1997.
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A Primavera nos aponta essa possibilidade de construo da vida. Na Primavera
possvel contemplar a determinao das plantas que venceram o inverno e que
agora se mostram em toda a sua beleza e esplendor. O nosso mundo,
especialmente as nossas cidades, aguarda ansiosamente por uma Primavera
mais duradoura um mundo que celebre a vida em toda a sua diversidade. Este
mesmo desejo sempre marcou a vida da humanidade. A Primavera a
explicitao da possibilidade de tempos de restaurao.
Tempos do refrigrio e tempos da restaurao e deste modo venham da face do Senhor os tempos do refrigrio. Ento enviar ele o Cristo que vos foi destinado, Jesus, a quem o cu deve acolher at os tempos da restaurao de todas as coisas... (At 3. 20-21)
Na tradio bblica neotestamentaria, h dois tipos diferentes de tempo: tempos do refrigrio e tempos da restaurao. So tempos que exigem um processo de arrependimento e de converso. No texto original do Novo Testamento, h
duas palavras gregas diferentes usadas para traduzir a palavra tempo: kairs e cronos. Estes dois vocbulos esto presentes, por exemplo, no texto de At. 3. 20-
21: kairoi anapsyxes (tempos do refrigrio ou tempo favorvel) e chronoi apokatasteses (tempos de restaurao).
Esse texto est no contexto de um relato da fundao da comunidade crist
primitiva. Esse relato aponta a identidade ou o carisma da Igreja nascente. Ele
est colocado dentro de uma lgica estruturante5: o Evento (At 3. 1-10); o Discurso (At 3. 11-26) e o Refro (At 4.32-35). Portanto, o mais importante para uma compreenso mais adequada do texto o evento, ou seja, a cura do
paraltico uma prtica solidria de incluso. Aquele que estava margem do
5 Parte dessas observaes foram colhidas num dilogo com o prof. Paulo Roberto Garcia, doutor em literatura bblica, docente da Faculdade de Teologia e da Ps Graduao em Cincias da Religio da Universidade Metodista de So Paulo.
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Caminho (como era conhecido o movimento cristo nascente), por meio de um
ato solidrio, foi curado e includo na normalidade da vida cotidiana de seu povo,
comeando pela experincia religiosa.
O evento fundante determina o refro:
A multido dos que haviam crido era um s corao e uma s alma. Ningum considerava exclusivamente seu o que possua, mas tudo entre eles era comum. Com grande poder os apstolos davam o testemunho da ressurreio do Senhor, e todos tinham grande aceitao. No havia entre eles necessitado algum. De fato, os que possuam terrenos ou casas, vendendo-os, traziam os valores das vendas e os depunham aos ps dos apstolos. Distribua-se ento, a cada um, segundo a sua necessidade (At 4. 32-35)6.
Esse texto (refro) retrata uma antecipao do tempo favorvel (kairs, tempos do refrigrio) no tempo de restaurao (cronos). Essa antecipao s foi possvel pela ao desencadeada no evento (uma prtica solidria de incluso).
Outra palavra grega que merece um destaque no texto de At 3.19-20 a
expresso pants (todas) relacionada ao tempo de restaurao. Ela pressupe a restaurao de todas as coisas, sendo assim, tem um carter universal. Porm, ao
mesmo tempo em que tem esse sentido de totalidade e de alcance pleno de todas
as coisas, pants significa tambm o particular: cada um, cada uma de todas as
coisas. um movimento de restaurao que parte do particular em direo ao
universal, do privado ao pblico. Nesse contexto, a cura e a restaurao de uma
nica pessoa determinante para a restaurao de todas as coisas. Esse mesmo
movimento est presente, por exemplo, na afirmao do profeta Jeremias:
Procurai a paz [shalom] da cidade, para onde vos deportei; rogai por ela a
Iahweh, porque a sua paz ser a vossa paz (Jr 29, 5-7). um movimento de
sincronicidade entre o nvel individual e coletivo ou, em outras palavras, entre o
privado e o pblico. Quando uma pessoa se abre presena do outro em sua
6 BIBLIA. Portugus. A Bblia de Jerusalm. So Paulo: Paulinas, 1992.
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singularidade histria, tempo e lugar a sua ao solidria vence os interesses
particulares e alcana os interesses coletivos.
As duas dimenses de tempo presentes na percope so qualitativamente
diferentes. Kairs o tempo oportuno, o tempo em sua plenitude de sentido. o
tempo que aponta para uma Primavera definitiva. o tempo de Deus onde mil
anos podem estar contidos num s dia e um dia pode conter mil anos. o tempo
que o relgio no consegue registrar. Cronos o tempo presente, tempo
cronolgico, permeado pelos limites e contradies da existncia humana. o
tempo fugidio que se esvai pelas nossas mos. o tempo que nos controla e nos
d a conscincia de que somos seres limitados.
Um aponta para uma dimenso escatolgica a restaurao definitiva da
criao e o outro para uma realidade mais objetiva e concreta, realando a
condio permanente do mundo renovado7 a restaurao possvel (sempre
parcial e incompleta) no presente tempo. So promessas para o futuro (do
refrigrio pleno) e para o presente (da restaurao em processo). Aqui se apresenta a perspectiva dialtica do Reino de Deus.
Na perspectiva crist, a Igreja, assim como toda a humanidade, vive entre esses
dois tempos: tempos do refrigrio (o ainda no) e tempos de restaurao (o j). Os tempos do refrigrio pertencem a Deus ( o kairs de Deus). Todavia, os
tempos de restaurao permitem a participao humana. a esfera em que se
pode atuar para dar maior sentido e expressividade vida em todas as suas
manifestaes. Nessa direo, as promessas escatolgicas podem se transformar
em esperana criativa, pois, segundo Moltmann, ns no somos apenas os
intrpretes do futuro: j somos colaboradores do futuro, cuja fora, tanto na
esperana como na realizao, Deus.8 Um dia (dimenso escatolgica) os
tempos do refrigrio podero ser desfrutados em sua plenitude. Mas, por
7 H. Vorlnder e C. Brown, Dicionrio Internacional de Teologia, Editora Vida Nova, So Paulo, verbete reconciliao, p. 1945. 8Idem, p. 305.
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enquanto, cabe aos cristos e crists, como colaboradores de Deus, assumir os
projetos de restaurao. Por qu? Vejam a resposta de Moltmann para essa
questo:
Existe futuro para a sociedade moderna? Seu futuro chama-se converso. Ir a humanidade superar as crises descritas? No podemos sab-lo e tambm no devemos sab-lo. Se soubssemos que a humanidade no iria sobreviver, ento no iramos mais fazer nada por nossos filhos. Apenas diramos: Depois de ns, o dilvio. Se soubssemos que a humanidade iria sobreviver, ento, iramos desperdiar nossa chance de converso pela inao e ociosidade. Tendo em vista ignorarmos se a humanidade ir sobreviver, devemos agir hoje de tal maneira como se todo o futuro da humanidade de ns dependesse e, ainda assim, confiar plenamente que Deus ir permanecer fiel sua criao e no a deixar sucumbir.9
H muitas situaes no nvel pessoal, familiar, comunitrio e social que podem ser
mudados ou, pelo menos, sofrer algum tipo de interveno. A palavra grega
apokatastasis, traduzida por restaurao, tem origem secular e significava,
entre outras coisas, a etapa final do perodo antigo e o ponto onde comea o
novo ou a restaurao de um estado anterior10. Essa definio de restaurao
se aproxima da compreenso de milagre no pensamento de Hannah Arendt.
Segundo essa autora, os milagres no devem ser vistos apenas numa perspectiva
transcendente, mas como interrupes de uma srie qualquer de acontecimentos,
de algum processo automtico, em cujo contexto constituam o absolutamente
inesperado.11 Nesse sentido, milagre fruto da capacidade humana de iniciar
algo novo pela ao que interrompe os processos automatizados. Ao, na
compreenso de Arendt, chamar existncia o que antes no existia por meio
de palavras e atos no espao da pluralidade humana.
Restaurar coragem para enfrentar (construir) o futuro
9MOLTMANN, Jrgen. Existe futuro para a sociedade moderna?, in: No limiar do terceiro milnio, Revista Concilium, n. 227 (nmero especial), Petrpolis, Editora Vozes, 1990/1, p. 65. 10 H. Vorlnder e C. Brown, Dicionrio Internacional de Teologia, op. cit., p. 1943. 11ARENDT, Hannah, Entre o passado e o futuro, So Paulo, Editora Perspectiva, p. 217.
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Navegar preciso. Viver no preciso12 uma frase que ficou imortalizada num
poema de Fernando Pessoa e, tambm na cano Os Argonautas de Caetano
Veloso: Na verdade, esta frase no de Fernando Pessoa como muitos
imaginam.
Ele tomou emprestado de Pompeu, famoso General Romano que viveu um sculo
antes de Cristo: Navigare necesse; vivere non est necesse. Ele usava esta frase
para encorajar os marinheiros covardes, amedrontados, que no queriam viajar
em tempos de guerra.
Quando Fernando Pessoa se apropriou da frase do General Pompeu, ele estava
sendo tambm influenciado pela sabedoria oriental, que circulava na Europa no
tempo dele, destacando-se o Taosmo. Tao significa caminho. Para o Taosmo, o
mais importante estar no caminho, no importando aonde se quer chegar, pois,
segundo essa concepo, se alcanarmos algum ponto de forma definitiva, o
nosso caminho ter chegado ao fim. Seremos mortos em vida. Por isso, que para
Pessoa navegar preciso. Navegar no sentido de caminhar, estar a caminho,
enfrentar os desafios e riscos da vida no importando a fria do mar. Para os
12 Navegar Preciso Fernando Pessoa Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar preciso; viver no preciso". Quero para mim o esprito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver no necessrio; o que necessrio criar. No conto gozar a minha vida; nem em goz-la penso. S quero torn-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. S quero torn-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essncia anmica do meu sangue o propsito impessoal de engrandar a ptria e contribuir para a evoluo da humanidade. a forma que em mim tomou o misticismo de nossa Raa.
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cristos, estar a caminho uma recomendao bsica do discipulado. Porm, no
estar a caminho de qualquer maneira. estar no caminho buscando sempre
viver projetos de restaurao que articulem a dupla dimenso da f crist pblica
e privada. Esta abertura implica em que no se esteja fixado num nico momento
mgico da experincia de f do passado, que se ossifica no correr dos anos, e
nem se tente eternizar uma experincia de espiritualidade do presente por mais
confortante que possa ser. Na dimenso de uma f cidad: navegar sempre
preciso, especialmente para aqueles e aquelas que querem ser colaboradores de
Deus.
Sendo assim, restaurar implica em olhar para frente e renovar as esperanas. A
Igreja precisa manter sempre o equilbrio entre a memria e a esperana. Porm,
para continuar navegando e vivendo, olhar para frente fundamental. Na orao
de Raushenbush, por exemplo, percebe-se uma pessoa que ao caminhar assume
compromissos de restaurao. Para Fernando Pessoa, navegar significa olhar
para o futuro e viver uma experincia de grandeza. viver com significado.
superar a mediocridade da existncia humana.
comum as pessoas ficarem ancoradas nos portos seguros de seus mares ou
nas zonas de conforto de suas existncias, ou numa linguagem popular, se
acostumar com a vidinha cotidiana sem muitas mudanas. Assim, como os
marinheiros do passado, tambm h aqueles que ainda hoje tm medo de
enfrentar o mar com todos os perigos que ele representa. Tm medo de navegar
nos mares violentos das cidades contemporneas. Nas palavras de Pessoa, a
alma deixa de ser pequena quando se volta humanidade, caso contrrio
acontecer o que Dom Jos, o Infante, um dia constatou sobre sua vida: no fui
algum, minha alma estava estreita.
Quando os cidados se voltam humanidade e ao cuidado do mundo, a vida
passa a ter mais sentido. a passagem de uma espiritualidade privada e intimista
(que tambm tem seu lugar e importncia) para uma espiritualidade pblica, onde
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o mais relevante cuidar do que comum a todos. o envolvimento no cuidado
do mundo comum para preserv-lo s geraes que nos sucedero.
Hoje, possivelmente mais do que no passado, o cuidado do mundo exige de todos
uma aproximao mais afetiva e efetiva com a cidade. nas cidades que
devemos viver os projetos de restaurao. A cidade o lugar privilegiado de
incluso social imediata e de exerccio da cidadania como uma tarefa tica. na
cidade que o sujeito trabalha, tem famlia, se locomove, consome, constri suas
redes sociais, vive sua cultura13. H, em nossas cidades, muitos que esto ainda
beira do caminho esperando por um ato de restaurao.
13 Cadernos Le Monde Diplomatique. As cidades em movimento (editorial), Especial n 2: Um Outro Mundo Urbano Possvel, So Paulo, Instituto ABAPORU, janeiro de 2001, p. 3.