diário volta ao mundo

74
VOLTA AO MUNDO Viagem mais que radical 1 – Introdução Desde criança sempre gostei de correr. Por ter nascido em Areia Branca, cidade do interior do Rio Grande do Norte, região nordeste do Brasil, lá pelos idos de 60, costumava ir ao campo “disputar” corrida com cavalos, burros, éguas, vacas e com qualquer animal de quatro patas. Quase sempre eles galopavam melhor que eu, mas toda vez que via um animal iniciando um trote, colocava-me ao seu lado e tentava acompanhá-lo até os pulmões não agüentarem mais. Essa obsessão por correr era tanta que mesmo em “sonhos” me via correndo. Meu sonho predileto era um em que começava uma corrida no meio da rua contra o vento e de repente soltava do chão e ganhava asas e voava sobre as casas e depois por cima de toda cidade e a seguir viajava por toda a terra. Nesta época eu tinha oito anos. O interessante é que quanto mais eu corria, mais me sentia forte e capaz de aumentar os percursos. Pensava que podia sair de casa e ir ao bairro seguinte. Depois chegar até a próxima vila. A seguir a próxima cidade e depois a outro estado e depois... Logo cresci. Deixei a bucólica cidade banhada pelo mar e refrescada pelo vento dos coqueirais, a minha saudosa “Areia Branca”. Meus pais mudaram para São Paulo quando eu estava com 11 anos. Fomos morar junto ao porto de Santos, litoral deste estado.

Upload: george-silva-de-souza

Post on 20-Mar-2016

218 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

livro em projeto

TRANSCRIPT

Page 1: Diário Volta ao Mundo

VOLTA AO MUNDO

Viagem mais que radical

1 – Introdução

Desde criança sempre gostei de correr. Por ter

nascido em Areia Branca, cidade do interior do Rio Grande do Norte, região nordeste do Brasil, lá pelos idos de 60, costumava ir ao campo “disputar” corrida com cavalos, burros, éguas, vacas e com qualquer animal de quatro patas. Quase sempre eles galopavam melhor que eu, mas toda vez que via um animal iniciando um trote, colocava-me ao seu lado e tentava acompanhá-lo até os pulmões não agüentarem mais.

Essa obsessão por correr era tanta que mesmo em “sonhos” me via correndo. Meu sonho predileto era um em que começava uma corrida no meio da rua contra o vento e de repente soltava do chão e ganhava asas e voava sobre as casas e depois por cima de toda cidade e a seguir viajava por toda a terra. Nesta época eu tinha oito anos.

O interessante é que quanto mais eu corria, mais me sentia forte e capaz de aumentar os percursos. Pensava que podia sair de casa e ir ao bairro seguinte. Depois chegar até a próxima vila. A seguir a próxima cidade e depois a outro estado e depois...

Logo cresci. Deixei a bucólica cidade banhada pelo mar e refrescada pelo vento dos coqueirais, a minha saudosa “Areia Branca”. Meus pais mudaram para São Paulo quando eu estava com 11 anos. Fomos morar junto ao porto de Santos, litoral deste estado.

Page 2: Diário Volta ao Mundo

Ai não tinha vacas, bois, cavalos ou campos verdes para correr. Apenas a voz de minha mãe que gritava sempre que saia de casa:

- Menino, se vir alguém estranho, corra! Assim fui crescendo correndo dos estranhos do meu

bairro sempre que necessitava sair do meu lar. Deste modo foi fácil aprender com minha mãe que a vida é feita de correrias:

Correr para passar de ano. Correr para se formar numa boa faculdade. Correr para ter um bom emprego. Correr para conseguir a namorada mais linda. Correr para construir uma casa. Correr para casar.

Ou seja, viver é correr e correr é, “viver”. Então, após ter corrido para passar de ano, para me

formar em uma boa faculdade, para conseguir um bom emprego, a namorada mais linda, para construir uma casa e me casar, pensei que iria “parar de correr”.

Engano, porque após alcançar tudo isso e estar bem “estabilizado” na vida, quase a ponto de poder ficar de “papo pro ar”, a leitura de um livro trouxe-me um novo motivo para correr. Chama-se “Volta ao mundo em solitário”, de Aleixo Belov. Nesta obra ele narra como deu uma volta ao mundo sozinho, de barco.

Assim nasceu um novo motivo para correr. Desta vez para conseguir recursos suficientes para comprar um barco. O homem que cresceu sonhando em viajar o mundo em asas, voando, agora iria fazer uma volta no planeta com os pés no chão, ou melhor, na água.

Todavia não iria sair só. Se viajar e depois escrever um livro, seu título deverá ser: “Volta ao mundo a dois”. Isto porque correndo para conseguir a namorada mais linda, acabei casando com a mulher mais aventureira e charmosa que já surgiu na face da terra, a Francis, uma descendente de índios, minha fantástica esposa.

Page 3: Diário Volta ao Mundo

Tive que aprender a correr a vida ao lado da Francis. Sete anos depois de casados, passei a correr por ela e por um barrigudinho, o Gregori. Vividos mais dois anos, a correria aumentou com a chegada da Glendali.

Por isso, foi se perdendo nos labirintos das correrias da vida, o sonho de fazer uma volta ao mundo em barco. Entretanto, havia uma semente plantada no fundo da alma com esse desejo de sair um dia a conhecer os horizontes além das fronteiras de minha cidade, de meu estado e do meu país.

Esta chama, guardada como um tesouro no fundo do coração e gravada nos neurônios de meu cérebro, poderia ser acesa a qualquer momento. Bastava uma pequena faísca para ela iluminar os meus passos e uma nova corrida começar.

Eu nasci em Areia Branca, cidade que é quase uma ilha. Fica no interior do interior do Rio Grande do Norte. Um estado pequeno, localizado no nordeste do Brasil.

- Poderia alguém nascer neste fim de mundo e ter o sonho de conquistar a terra inteira...

Pois desde que me vi por gente, e brotaram os primeiros pensamentos em minha cabeça infantil, senti que de alguma forma ganharia asas e meu livro da vida não teria suas linhas todas escritas neste lugar.

Por causa de um sonho, fiz de minha vida um eterno correr. Deixei Areia Branca e vim para São Paulo. Deixei São Paulo e fui para Recife. De Recife segui para Porto Velho. Desta capital da amazônia brasileira segui para o Rio de Janeiro e deste estado para todo o Brasil, correndo, nadando e pedalando.

Agora estou deixando o Brasil e avanço para conquistar outras nações, sempre como atleta, em bicicleta ou caminhando e correndo. Viajei pelo Uruguai. Cruzei toda a Argentina. Percorri o Paraguai.

Page 4: Diário Volta ao Mundo

No momento, sigo para os Estados Unidos e antes que alcance meu alvo neste país, a cidade de Atlanta, no estado da Geórgia, terei que passar pela Venezuela, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Belize, Guatemala e México. Estimo que vou correr e pedalar 13.850 km.

Este livro deseja narrar como um menino nascido no interior do Brasil, em um cidade que quase não aparece nos mapas, e que sempre sonhava viajar e voar, foi chamado por Deus para fazer uma volta ao mundo radical.

Estou seguindo para Atlanta, nos Estados Unidos. O próximo passo é chegar ao Alasca, depois Canadá. Após cruzar as três Américas seguirei para o velho mundo, a Europa. Deixando o berço das civilizações seguirei para a África, Oriente Médio, Ásia, Oceania e Austrália. Para visitar todos estes continentes calculei que vou necessitar percorrer a distância de 160.000 km num transcurso de dez anos.

Você não precisara sair de casa para visitar todos os lugares onde vou passar. Basta ler os meus livros.

Vem comigo, o mundo inteiro nos espera.

Page 5: Diário Volta ao Mundo

A LARGADA

O Sinal Depois do término do Desafio São Paulo, no qual

corri e pedalei por quase todo o Estado num percurso de 2.172 km, resolvi continuar o avanço em direção aos demais países da América do Sul. Elaborei um projeto no qual terminaria este continente em três etapas: Chile e Bolívia, Peru, Equador e Colômbia. Por último, iria para a

Page 6: Diário Volta ao Mundo

Venezuela e as Guianas. Depois de tudo planejado, sai em busca de patrocinadores, como sempre faço nessas maratonas. Enquanto aguardava a resposta, passava dias analisando o melhor caminho em cada país e qual a maneira de alcançar mais objetivamente o alvo de minhas viagens: pregar o evangelho por meio do esporte.

Nessa busca por informações me deparei com um anúncio em um site sobre a realização da 59ª Sessão da Conferência Geral, em Atlanta, Estados Unidos. Então, acendeu uma luzinha em minha mente sobre a importância de eu ir participar desse evento mundial da igreja adventista do sétimo dia. Já que pretendo visitar todos os países, essa seria uma oportunidade ímpar para falar a uma grande quantidade de adventistas e líderes mundiais sobre o ministério do Atleta da Fé.

Verificando a data do início e término do evento, e considerando o ritmo de viagem diário, observei que para chegar lá com uma margem de folga para a abertura e ainda passar pelos países da América do Sul e Central, evangelizando de cidade em cidade, com calma, precisaria sair “imediatamente”.

Só que para sair num desafio de meses e meses longe de casa, teria que receber um sinal de que Deus estaria à frente, aprovando a iniciativa evangelística, como sempre ocorreu em outras viagens. E, naturalmente, a concordância de minha esposa e filhos.

Depois de muitos diálogos e orações, consegui mais esta vez o sim da mulher mais corajosa e amada do mundo: a Francis. Depois, foi fácil receber o apoio do Grégori e da Glendali, que são crianças tementes e amantes da causa de Deus. Na verdade, quando deixo meu lar para ir a terras distantes, tenho em mente a seguinte promessa: “Todo aquele que deixar casas, ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou mulher, ou filhos,

Page 7: Diário Volta ao Mundo

ou terras, por amor de meu nome, receberá cem vezes tanto, e herdará a vida eterna” (Mt 19:29).

Foi muito importante receber o aval da esposa e dos filhos, no entanto, necessitava de algo ainda mais significativo para me lançar de peito aberto nesse projeto: um sinal dos Céus. Uma manifestação da glória de Deus junto a mim para me revestir de uma fé inabalável e confiança sem limites no poder do altíssimo em favor do ministério do atleta da fé.

O sinal foi dado de uma forma estranha, mas que me fez acreditar fielmente no amor e misericórdia de Deus para livrar e salvar. Vejam o que ocorreu com minha esposa, poucos dias antes da data marcada para eu ir a Brasília, a fim de levar o projeto ao líder de Jovens da Divisão Sul-Americana, pastor Otimar Gonçalves. Ela estava na casa da mãe e tomava banho. De repente, se desequilibrou e caiu, batendo com as costas no vaso sanitário. A pancada foi muito forte e próximo à coluna vertebral. Quando a socorri, assustei-me porque ela não conseguia se levantar. Nesse momento, fiz uma oração e pedi a Deus que estendesse a mão sobre ela e a sustentasse nessa hora de dor.

Com cautela e atenção, removi-a do banheiro e a coloquei em um carro. Ela sentia dores intensas. Quando chegamos ao hospital, foi necessária uma cadeira de rodas, porque ela não se sustentava nas pernas. Minha preocupação era que ela tivesse sofrido algum tipo de traumatismo na coluna e não pudesse mais andar. Também poderia ter quebrado ou fraturado alguma costela ou ossos na região pélvica. Ainda havia a possibilidade de afetar órgãos internos.

Percebi que necessitava que Deus realizasse um milagre. Enquanto ela estava sendo examinada e tirando várias radiografias, eu orava e orava. Pela fé senti a

Page 8: Diário Volta ao Mundo

presença do Todo-Poderoso junto a nós. A resposta foi imediata. Recebi minutos depois a informação de que ela não tinha quebrado ou fraturado qualquer osso. E, aparentemente, todas as funções orgânicas estavam normais. Tenho convicção de que a mão do anjo do Senhor a livrou de receber a pancada da queda direto na coluna, o que, se ocorresse, a deixaria sem andar.

Os médicos disseram que ela deveria ficar vários meses sentindo aquelas dores e que teria que ficar de cama em repouso absoluto (e isso impediria que eu iniciasse a viagem planejada). Então, aproveitei esse momento trágico, em que estávamos todos agarrados em oração a Jesus, para pedir-Lhe que levantasse minha esposa da cama e a restabelecesse totalmente a fim de que eu pudesse viajar para cumprir o Seu chamado. Dou glórias a Deus por atender minha oração porque ela deixou a cama dentro de alguns dias e passou a fazer suas atividades normais em tempo recorde para um acidente dessa natureza. Depois que retornou ao medico e fez novos exames, inclusive uma ultra-sonografia, foi constatado que seu corpo estava completamente sarado.

Assim, é baseado na mão poderosa do Deus que sirvo para livrar, proteger e guardar, que resolvi partir para mais uma missão aparentemente inacessível, mas que será conquistada graças à fé depositada naquele que não posso contemplar com olhos carnais, todavia, posso tocar e sentir com o poder da fé. Inclusive, posso orar assim:

“Em ti, Senhor, confio; nunca me deixes confundido. Livra-me pela Tua justiça. Inclina para mim os Teus ouvidos, livra-me depressa; sê a minha firme rocha, uma casa fortíssima que me salve. Porque Tu és a minha rocha e a minha fortaleza; assim, por amor do Teu nome, guia-me e encaminha-me” (Sl 31:1-3).

Page 9: Diário Volta ao Mundo

Dias depois, peguei um empréstimo para viajar até Brasília e de lá para Manaus e Boa Vista. Hoje, vivo a realidade de percorrer os primeiros quilômetros na Venezuela, o primeiro desafio desta viagem transcontinental.

Venha comigo, porque Deus está aqui.

Quase Impossível Depois do que se passou com minha esposa pouco

antes da partida, ainda estive alguns dias relembrando meus desafios anteriores e o quanto Deus atuou para me conceder a vitória em todos eles. Obviamente, chamo de “vitórias” as pessoas que foram alcançadas para o reino de Deus por meio dos testemunhos que ouviram de mim. Ou seja, o Espírito Santo me usou para convencê-las de que só há um Deus verdadeiro e também um único caminho para se entrar no Céu.

Os anjos têm trabalhado muito para me manter vivo. Lembro-me de que no Rio de Janeiro eu estava de carona, sentado ao lado do motorista, em uma Kombi, e, ao entrarmos em uma curva, fomos surpreendidos por um caminhão desgovernado. Batemos de frente e o mais incrível é que, com o impacto, a Kombi ficou amassada de dentro para fora, livrando-me de quebrar as duas pernas. O motorista também saiu ileso. E o caminhão ficou com o pára-choque danificado.

Page 10: Diário Volta ao Mundo

Ainda no Rio de Janeiro, fazendo uma corrida de 16 quilômetros pela Avenida das Américas, uma van de 12 lugares, vindo em sentido contrário, desgovernou-se e atingiu com força meu ombro direito. O motorista fugiu desesperado, deixando-me caído no acostamento. Depois de alguns minutos, recuperei os sentidos, me pus de pé e percebi o milagre: nenhum osso havia quebrado. Sentia apenas dores leves. Por outro lado, a van ficou sem o retrovisor esquerdo, porque o anjo do Senhor, o ser poderoso e invisível que me acompanha 24 horas por dia, para me livrar de ter uma clavícula quebrada, arrancou a peça por inteiro e a atirou para longe de mim.

Antes disso, ainda, saí para realizar um treinamento na Serra do Mar, treinamento que consistia em subir até o topo de uma grande montanha, na praia de Boracéia, em Bertioga, São Paulo. Quando estava quase no topo, sempre subindo pelas pedras de uma cachoeira, ao parar para descansar e colocar a mão direita em um arbusto seco, este quebrou. Desequilibrei-me e acabei por enfiar a mão na boca de uma jararaca. A mordida foi muito dolorosa e as presas deixaram dois furos que passaram a sangrar. Imediatamente toda a mão ficou inchada. Como estava sozinho e a uns 15 km de casa, sabia que não teria outro fim, a não ser uma morte horrível. Então, a única saída seria um milagre. Sendo assim, orei ao Senhor e pedi que me permitisse correr até minha casa a fim de buscar socorro.

Sabe-se que uma pessoa mordida por cobras peçonhentas como coral, cascavel, jararaca, etc., necessita ser imobilizada e imediatamente transportada a um hospital. Nisso reside o milagre que quero contar, pois corri 15 km envenenado e esperei seis horas até o atendimento, sem que o veneno da serpente atingisse meu coração. Corri o risco de quase ter o braço direito

Page 11: Diário Volta ao Mundo

amputado, devido às toxinas que danificaram os músculos, inchando-os a ponto de quase se romperem. Estive uma noite inteira na UTI. Todavia, recuperei-me completamente e alguns meses depois estava iniciando uma viagem de 8.200 km pela Argentina, Uruguai e Paraguai. Sim, amigo, há muito que dizer sobre as maravilhas que Deus tem feito em minha vida. Mas o espaço agora é pequeno e estou ansioso para contar o que vem acontecendo aqui na Venezuela...

Antes, porém, de narrar tudo que passei até Caracas, a capital da Venezuela, onde estou agora, preciso contar como consegui a “Atlanta” (nome que dei à bicicleta que me acompanhará nesta travessia das três Américas). Como já disse, não consegui patrocínio para esta maratona de fé. Talvez alguns pensem que quero o dinheiro para me enriquecer... De forma alguma. Quase tudo o que possuo – uma casa e um carro –, comprei-os com o salário que recebo como aposentado da Forca Aérea, onde trabalhei por 27 anos. Qualquer oferta que me chega às mãos de outra fonte, uso para manter o Ministério do Atleta da Fé. E, como são poucos os que acreditam em projetos como este, recebo pouquíssima ajuda. Agora, imagine custear as despesas de uma volta ao mundo, mesmo por etapas, como estou fazendo... De quanto dinheiro se necessita?

Como também já comentei, após uma peregrinação infrutífera em busca de patrocínio, decidi fazer um empréstimo para iniciar a viagem. Consegui R$ 3.000,00 para pagar em 15 suaves prestações. Esse dinheiro calculei que daria apenas para viajar de São Paulo a Brasília, de Brasília até Manaus e de Manaus a Boa Vista. Seria apenas para as passagens e a comida. E, realmente, calculei certo, porque cheguei a Boa Vista apenas com R$ 140,00.

Page 12: Diário Volta ao Mundo

No entanto, como desejo correr e pedalar até Atlanta, nos Estados Unidos, faltava à bicicleta e os acessórios – algo próximo a R$ 2.000,00. Assim, saí de casa já necessitando de um milagre; de algo impossível para mim. Deus precisava sensibilizar alguém para me dar essa ajuda. Mas onde estaria essa pessoa? Em Brasília? Em Manaus? Em Boa Vista, minha última escala antes da viagem? Então, como um verdadeiro atleta da fé, deixei meu lar certo de que não precisaria me endividar mais para conseguir a bicicleta (apesar de estar disposto a isso). Na primeira parada, Brasília, não foi possível. Prometeram ajuda mais à frente. Na segunda, Manaus, estive bem perto; inclusive visitei as fabricas de bicicletas da Sandown e da Caloi. Ambas impuseram restrições burocráticas para fornecer a bike. Disseram que o projeto primeiro deveria ter a autorização da matriz de São Paulo.

Só restou Boa Vista. O último porto. A última esperança. A última montanha a transportar pela fé, para alcançar a graça de ter meu equipamento de viagem. Logo ao chegar, tive um bom sinal. Fui recebido pelo cunhado do pastor Otimar Gonçalves (líder sul-americano dos jovens adventistas) e sua amável esposa Ivonete. Levaram-me para a casa deles. Deram-me um lugar para dormir, boa comida, atenção e muito carinho – ações dignas de verdadeiros filhos de Deus. Quando contei ao Janus (o cunhado do pastor Otimar) sobre estar sem patrocinador e não ter até aquele momento os equipamentos de viagem, ele se dispôs a ajudar no que fosse preciso.

Cheguei a casa deles no sábado à noite. Passamos um domingo muito agradável, e na segunda começamos a busca pelo patrocínio. Primeiro fomos à TV Roraima e conseguimos acertar a cobertura da largada, com o

Page 13: Diário Volta ao Mundo

mesmo repórter que me acompanhou na descida do Monte Caburaí, em 2002, o Luciano Abreu. Depois, o Janus me deixou em uma avenida de Boa Vista, cheia de grandes lojas onde esperava convencer algum empresário a se engajar no projeto. Inclusive lhes prometia divulgar a empresa em meu site e durante a entrevista na TV Roraima, afiliada da TV Globo para o Estado. Mas quando falava em números, todos tinham uma resposta pronta, como: “Os negócios não vão bem.” “Estamos no meio de uma crise financeira e não temos mais verbas para patrocínio.” “Este ano já fechamos as despesas com publicidade.” Assim, passei toda a manhã de segunda-feira ouvindo essas desculpas. Então, parei. Fiquei toda à tarde até o começo da noite em oração, enquanto esperava o irmão Janus vir me buscar. Quando chegou, por volta das 18h, foi duro dizer-lhe que não tinha obtido sucesso. Mas, disse que pela fé conseguiria.

Passei a noite esperando que Deus alinhavasse esse milagre. Na manhã da terça-feira, um dia antes da largada, na primeira loja em que fomos (o Mercadão das Bicicletas), o senhor Antonio Araújo, um maranhense, foi o egípcio de hoje, que Deus proveu para me dar a “Atlanta”, uma bicicleta toda equipada para a viagem aos Estados Unidos. A melhor e mais cara bicicleta que ele tinha em sua humilde loja. Um milagre necessário, quase impossível e alcançado pela fé, segundo a vontade e amor infindo do Deus a quem sirvo. Esse Deus está aqui comigo. Acompanhe esta viagem e seja também abençoado.

Que as asas dos anjos do Senhor dos Exércitos, Jesus Cristo, me cubram até que chegue a Atlanta.

AS SERPENTES

Page 14: Diário Volta ao Mundo

Depois de ter conseguido a bicicleta no penúltimo

dia antes da largada, no último momento, na última oração, obtive grande confiança nos favores e proteção de Deus para arrancar rumo a Atlanta. Se você não leu as primeiras informações deste desafio, saiba que ele consiste em correr e pedalar desde Boa Vista, em Roraima, até a Geórgia, nos Estados Unidos, onde pretendo chegar para a 59ª Sessão da Conferência Geral dos Adventistas do Sétimo Dia. Meu alvo é rodar com minha “gorduchinha” (a bicicleta que ganhei) pelas ruas de Atlanta no dia 18 de junho de 2010, cinco dias antes de começar a abertura dessa importante reunião mundial da Igreja Adventista. Esse evento vai de 23 de junho a três de julho de 2010. Para chegar lá pedalando, terei que percorrer os seguintes países a partir de Boa Vista: Venezuela, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Guatemala, México e Estados Unidos. A previsão é correr e pedalar 13.850 km.

Então, após ganhar a bicicleta do Senhor Antonio Araújo, dono do Mercadão das Bicicletas, só necessito de fé e disposição física para dar a largada. Esta ocorreu sem muita pompa no dia 12 de agosto de 2009, quarta-feira, do centro de Boa Vista, após uma entrevista concedida à TV Roraima, ao repórter Luciano Abreu.

Desde o centro até a BR-174, que é a rodovia que liga o Brasil à Venezuela, fui acompanhado pelo Janus e seu filho Gabriel, meus guias para chegar pelo caminho mais curto à estrada. Ainda antes da largada, por volta das 11h30, fui almoçar em um restaurante vegetariano, sendo essa refeição e todas as que fiz em minha estada em Boa Vista custeadas por Janus e a esposa dele, Ivonete.

Page 15: Diário Volta ao Mundo

Após uma oração sob um sol capaz de me fazer derreter, despedi-me do homem de Deus que me tratou com fineza e amor cristão. Acelerei a “Atlanta” (nome que dei à bicicleta), tendo Pacaraima como destino inicial. São 220 km e sabia ser impossível alcançar essa cidade saindo de Boa Vista às 12h30.

Pedalei 45 km antes de fazer a primeira parada, em uma pequena lanchonete. Tomei dois refrescos e comprei um frasco de mel. A pista desde o centro de onde larguei até essa parada está boa. Apenas o asfalto está velho e rachado em alguns pontos, necessitando de reparos, mas é possível pedalar com certo conforto. Apesar do calor, a natureza em volta encanta a vista. São quilômetros e quilômetros de uma região do Brasil pouco explorada. Tanto é que os rios que encontro sob as pontes são cristalinos e cheios de peixes. Assim que cheguei à primeira ponte com um rio corrente debaixo, pensei em tomar um banho. Todavia, minha disposição foi freada quando olhei por entre as folhagens pedaços de árvores escuras caídas no fundo do lago que se formou junto à ponte. Fiquei sob a sombra de uma linda palmeira, mirando com atenção o leito cristalino do rio, a ver se uma jibóia ou sucuri se mexia por entre as folhas. Isso durou meia hora e nada encontrei apenas uns peixes grandes listrados de amarelo que se deliciavam com seus filhotes subindo a correnteza. Um ecossistema perfeito, equilibrado, no qual me faltava coragem para me integrar. Desejava dar um mergulho profundo (até carrego óculos de natação para esse fim).

Meu corpo pedia um banho relaxante. Já havia pedalado 65 km até aquele pequeno paraíso e, se pudesse imergir naquela banheira natural, que fosse por uns 10 minutos, minhas energias seriam restauradas. No entanto, estava sem coragem, uma vez que já quase fui engolido

Page 16: Diário Volta ao Mundo

por uma piraíba (peixe que chega a uns cinco metros de comprimento), quando fui atravessar o rio Guaporé, em Rondônia, na cidade de Costa Marques. Também, noutra ocasião, nadando em rios do Amazonas, quase fui comigo por piranhas.

Por essas lembranças, estava desistindo de dar o mergulho encantado. Dizia para mim: “Bom, pelo menos esfriei o corpo sob a sombra de uma frondosa palmeira e meus olhos se deliciaram vendo a harmonia no mundo aquático deste pedaço do planeta.”

Estava quase para juntar as coisas e sair, quando parou um carro velho. Havia dois homens dentro dele. Um desceu, chegou sem cerimônia, tirou a camisa e se jogou dentro do lago. Ele fez exatamente o que pensei fazer: mergulhar ate o fundo daquele paraíso. Logo saiu da água. Aproveitei para lhe perguntar sobre o perigo das piranhas e sucuris.

– Neste rio não tem piranhas. Pode haver sucuris ou jibóias. Observe se elas estão deitadas, enroladas no fundo. Caso as veja assim, não tem perigo. Mas se observar alguma com a cabeça fora d’água, saia imediatamente porque ela está com fome e agarra a primeira presa que encontrar.

Deu-me a dica, colocou a camisa, entrou no carro e foi-se embora.

Então, tirei a camisa, cheguei à beira do lago e preparei-me para dar meu primeiro mergulho em águas roraimenses nesta viagem. Antes, observei se havia alguma cobra enrolada no fundo. Não vi coisa alguma. Então, tchibum! Lá fui eu com meus óculos de nadador para ver de perto aqueles cardumes de peixes coloridos.

Vi peixes lindíssimos. Vi folhagens retorcidas e belas. Vi um recanto aquático maravilhoso. Enquanto mergulhava mais e mais fundo, me esquecia das cobras e

Page 17: Diário Volta ao Mundo

meu corpo se refrescava, relaxava e recuperava a forca dos músculos das pernas. Meus tendões, ligamentos e veias estavam se reestruturando para prosseguir na viagem até o por do sol.

Mas me achei muito ousado. Este não é o meu habitat. Não sou um peixe, apesar de nadar como muitos deles. Recuperei o bom senso e resolvi sair da água. O encanto das águas frescas do lago me atraía perigosamente. Tanto é que quando fui sair, a apenas dois metros da margem, avistei uma cobra. Ela havia saído do mato e entrara na água. Fiquei gelado. Parei. Tranquei a respiração. Lembrei-me de estar sozinho e uma mordida - outra vez - de cobra, longe de qualquer auxilio, seria algo desastroso. Poderia comprometer meu projeto.

O complicado é que a cobra preta com listras brancas (não tive coragem de lhe perguntar se era venenosa) estava bem no lugar onde eu teria que passar para sair do lago. Então, resolvi ficar imóvel e deixar que Deus me guardasse, pois já havia me livrado do encontro com ela no fundo do lado.

Assim ocorreu. A cobra passou esgueirando-se a alguns centímetros de minha perna e, dando voltas com seu corpo reluzente, foi sumindo por entre as folhagens do lago e desapareceu.

Depois que o susto passou, pulei para fora do lago e, quando já estava rodando com a “gorducha”, a “Atlanta”, minha bike, dei glórias a Deus por ter me permitido refrescar o corpo e compartilhar o lago de cobras sem sofrer acidentes.

Como disse, vamos rumo à Atlanta. Venha comigo, porque Deus está aqui.

Page 18: Diário Volta ao Mundo

AS VACAS

Depois do susto com as serpentes no primeiro dia de viagem, acordei neste 15 de agosto, quinta-feira, disposto a conquistar meu alvo: Atlanta. Faltam “apenas” 13.650 km.

Viajando em media 20 km/h, 100 km por dia, parece faltar uma eternidade. E falta mesmo, porém, sobra fé de que alcançarei. Acredito que minha ajuda principal vem do Céu. Ter escapado da serpente é uma prova. Pedalar 100 km sob um sol de uns 40 graus e subindo montanhas é outro. Suportar o peso angustiante da saudade é ainda outro. Viver todo momento escapando da morte e grato sempre pela luz de um novo dia; outro. Tenho percebido que Deus está aqui. Não fico um minuto só. Ele é minha sombra. Enquanto durmo, Ele não cochila para me salvar de perigos que nem mesmo posso ver.

Por isso, vou prosseguindo. Estou no segundo dia desta maratona. Tenho ainda intermináveis dias, porém, sinto o gosto aromático, agradável e restaurador da vitória. Isto tão-somente porque sei em quem tenho crido. O que está diante de mim não falha. Nunca perdeu uma batalha. Ele é o Senhor dos Exércitos. Esse é o que vai adiante de mim. Por isso e tanto mais, serei vencedor. Venha comigo para os Estados Unidos por meio destas linhas. Seja um vitorioso em nome de Jesus Cristo!

O Rei do Universo é meu Pai. Sou herdeiro de tudo que meus olhos contemplam, minhas mãos tocam, meus ouvidos escutam e meus pés pisam. O que não posso ver, ou tocar, nem pode passar pela minha mente ou coração, é o que Deus ainda tem reservado para mim. Todavia,

Page 19: Diário Volta ao Mundo

necessito servi-Lo, enquanto humano mortal, para tomar posse dessas promessas.

Ir aos Estados Unidos correndo, pedalando, pregando e exaltando o nome grandioso do meu Deus é uma maneira de agradecer essa herança. É maravilhoso receber as bênçãos do Céu. Quero vencer pela força, coragem, garra e extrema determinação. Não posso me enganar e você também: saiba que os covardes não entrarão nos portais da Terra Santa.

Por tudo isso (e acho pouco o que digo), é que prossigo nesta maratona de fé. Posso falar em “fé” porque não consegui quem patrocinasse esta jornada e arranquei na certeza de que Deus iria prover tudo de que necessito. Assim mesmo, Ele fez. Estou montado na “gorducha”, a Atlanta. Tenho alguns trocados para os primeiros dias. Tenho roupa para vestir. Calçado nos pés. Uma Bíblia, passaporte e identidade. Levo pouca coisa, mas tenho o coração abarrotado de esperança e certeza de que alcançarei meu alvo. Estou feliz porque sei que uma vida sem sonhos não merece ser vivida. Quando deixar de sonhar, sei que estarei na curva descendente dos meus dias. É por isso que tenho 49 anos e a disposição de um menino.

As rodas da Atlanta giram suavemente pela BR-174. O alvo hoje é chegar a Pacaraima, cidade divisa com Santa Helena de Uairén, na Venezuela. Neste segundo dia, já me sinto integrado à natureza local. Sou parte dela. Ela me encanta e me deixa deslumbrado. Ver as coisas ao redor a 20 km/h é muito mais agradável do que a 80 ou 100 km, em um carro, caminhão, moto ou ônibus. Até onde a vista alcança tudo é belo. Até o vento daqui é “bonito”. Ele me abraça e me envolve com um manto de frescor, aliviando de vez em quando o calor ardente da pista asfaltada. São quase 13h da tarde e não me

Page 20: Diário Volta ao Mundo

apareceu outro “paraíso de serpentes” para poder refrescar a pele. Necessito com urgência encontrar um lugar onde aliviar um pouco o calor forte do sol que me queima. Uns dez minutos sob uma árvore será suficiente. Ligo meu radar da fé e permito que os céus saibam dessa necessidade por meio de breve oração. Ao estender a vista ao longe, não vejo uma árvore frondosa e sim uma caminhonete parada. Quando me aproximo dela, desce um homem. Está sozinho e, mesmo distante, noto um olhar estranho para minha “gorducha”. Depois do carro tem uma curva. Resolvo passar por ele em velocidade máxima e com a idéia de após a curva achar um lugar onde me esconder.

Assim, acho que estou a uns 40 km/h quando passo pelo estranho. Faço a curva e imediatamente avisto a uns 200 metros algumas arvores formando um bosque espesso. Deixo a pista e rapidamente me enfio por entre os galhos mais fechados. Logo que entro, aparece uma baixada e ali me deixo envolver por seus galhos e me deito, colocando a Atlanta ao meu lado. A seguir, passa a caminhonete e, sem perceber para onde fui, o condutor resolve continuar seu caminho. Caso estivesse com alguma intenção maligna, teria algum trabalho para me localizar.

Depois de alguns minutos, quando senti ter passado o perigo, relaxo e fecho os olhos. Estendo os músculos cansados sobre o chão frio daquele simples refúgio. No entanto, passado o perigo, logo me vejo cercado por outro, porque, de repente, me cercam umas dez vacas. Isto mesmo: dez novilhas se aproximam rápido e se postam a minha direita e esquerda. Tão perto que posso sentir o cheiro agradável de leite fresco e o aroma selvagem do campo. Os cascos se aproximam mais e mais e tenho que ficar imóvel. Um gesto brusco de minha parte

Page 21: Diário Volta ao Mundo

pode assustá-las e, provavelmente, serei pisado, o que pode me deixar com sérias lesões.

Não demora muito e descubro a razão por que me cercaram. É que sentiram o cheiro do sal em meu corpo e, então, passaram a me lamber por completo. Sinto as línguas ásperas em minhas pernas, nos braços, no pescoço. Uma tenta puxar um dos meus tênis e outra quer me lamber à barriga, nem que para isso deva primeiro comer a camiseta que lhe atrapalha. Fico nessa situação por cerca de meia hora. Acho que sou agora o primeiro homem no mundo a tomar banho de língua de vaca! Quem sabe ativa a circulação...

Depois de lamberem todo o sal da minha pele, uma delas olhou para alguma coisa do outro lado da pista e saiu bem devagar, sem me machucar. Ato que foi imitado pelas demais.

Levanto-me e, certo de que os anjos de Deus impediram qualquer ato mais danoso por parte das vacas, volto à estrada para continuar minha saga: hoje, 15 de agosto, chegar a Pacaraima. Jesus, muito obrigado por mais esse livramento.

Bom, vou em frente. Venha comigo porque Deus está aqui!

VENEZUELA I

Depois de escapar das serpentes e das vacas loucas

por sal, continuei na direção de Pacaraima, a última cidade do Brasil antes de entrar na Venezuela. Quando cheguei a Pacaraima, após pedalar 120 km, dos quais 25 subindo uma grande serra, passei mal. Vomitei várias vezes e quase fui hospitalizado. Porém, como sabia que o mal estar fora provocado por ingestão de água

Page 22: Diário Volta ao Mundo

contaminada, ou seja, sabia que meu organismo apenas estava eliminando bactérias nocivas, resolvi me tratar apenas com chás e soro caseiro. Por causa desse desconforto, perdi uns três quilos, pois fiquei dois dias sem poder comer alimentos sólidos e cuidei apenas da hidratação.

Em Pacaraima, fui atendido pelo irmão Antônio Barateiro e a esposa dele, Cristiane. Além de me hospedarem em sua casa, o irmão Antônio, ancião da igreja de Pacaraima, conseguiu que eu pudesse pregar no sábado e isso foi uma bênção, pois umas dez visitas que ouviram atentamente meu testemunho de conversão tomaram a decisão de entregar a vida a Jesus. Esse foi meu primeiro troféu espiritual antes de entrar na Venezuela.

No domingo pela manhã, após pedalar apenas 20 km, cheguei à primeira cidade do país vizinho, a tranqüila Santa Helena de Uairén, onde também preguei em uma igreja menor, na qual mais pessoas uniram-se a nossa fé de que Cristo está voltando e que Seu povo aqui neste planeta se reúne na Igreja Adventista do Sétimo Dia.

Depois de Santa Helena, segui para a comunidade indígena adventista conhecida como San Francisco, onde recebi o apoio de outro irmão venezuelano, indígena, chamado Eleutério. Hospedei-me na casa dele e às 5h30 da manhã segui para outra comunidade indígena chamada Las Claritas, distante 180 km de San Francisco.

Para chegar a esse local tive a satisfação de atravessar o Parque Nacional de Canaima, um lugar deslumbrante, cheio de corredores, altas montanhas e muitas cachoeiras.

Todavia, após passar um dia inteiro pedalando, tendo tomado muito sol e subido morros, colinas e serras que alcançaram a altitude de 1.500 m, chegando em Las

Page 23: Diário Volta ao Mundo

Claritas com 179 km, superando todos os obstáculos naturais, físicos e psicológicos, nessa nova comunidade indígena não obtive apoio e nem mesmo pude dormir, tão somente porque não tinha uma carta de apresentação que pudesse atestar que sou adventista. Não tive como convencer os líderes de que só teria esse documento após passar pela primeira Associação Adventista da Venezuela, no caso, localizada em Puerto Ordaz, a mais de 300 km de Las Claritas.

Por isso, fui obrigado a buscar ajuda junto a outras pessoas, que me atenderam de braços abertos e me cederam um quarto com ar refrigerado para que eu pudesse descansar das grandes lutas da viagem, especialmente do sentimento de rejeição por parte dos líderes da comunidade indígena.

Foi com alegria que vi o sol nascer no pequeno povoado de Las Claritas e poder estar em condições de prosseguir meu destino me deixou mais animado. Estou agora a 13.350 km de Atlanta, segundo minhas estimativas. Muito longe; longe demais, por uma visão matemática, e perto, pertíssima pelo prisma de minha fé.

Após uns 500 km desde que saí de Boa Vista, no Brasil, deixei o Parque Nacional de Canaima, na Venezuela. O fim dele está depois de Las Claritas e então segui para El Dorado, El Callao, Upata, Puerto Ordaz, Ciudad Bolivar e El Tigre.

Em todas essas cidades tive apoio da igreja adventista local, milagres ocorreram e pessoas se converteram. Mas, ao deixar El Tigre (cidade que tem esse nome porque em sua fundação os pioneiros que exploravam petróleo eram obrigados a fugir de tigres que havia em grande quantidade nas florestas da região), quase fui atropelado por um caminhão dirigido por um motorista insensato que me jogou para fora da pista.

Page 24: Diário Volta ao Mundo

Entretanto, graças aos anjos de Deus, escapei e prossegui, até alcançar o extremo norte da América do Sul, o mar do Caribe, via cidade de Barcelona e Puerto Piritu.

Cheguei com a “gorducha” (minha bike) às 23h30, em Puerto Piritu. Por causa do horário, não fui em busca de alguém da igreja. Procurei um hotelzinho para dormir e sair na madrugada do dia seguinte. No entanto, três hotéis que visitei estavam lotados. Por isso, resolvi fazer um lanche e prosseguir viagem noite adentro, mesmo após ter pedalado 200 km para chegar à cidade. Eu estava cansado, mas me animei a pedalar até encontrar um local na floresta ao longo da pista para armar minha rede de selva e então passar a noite.

No entanto, enquanto comia na lanchonete a beira da pista, três rapazes me observavam de forma suspeita. Fiquei desconfiado. Paguei a conta e montei na bike para sair rápido dali. Não havia me afastado muito quando um deles me chamou e disse que eu colocasse a bike em cima de uma caminhonete que estava com eles. Explicaram que queriam me ajudar, pois sabiam que eu não tinha onde dormir. Para isso, teria que confiar neles e subir na pick-up. Bom, não vi saída para a situação e, confiando somente nas providencias misteriosas de Deus para me socorrer, joguei a “gorducha” na carroceria e subi no carro, orando para que não estivesse caindo em mãos de ladrões.

Tomei um susto enorme quando deixaram a cidade e saíram na direção dos montes, para o campo. Pensei que parariam em um lugar ermo e me roubariam e até teriam condições de intentar contra minha vida. No entanto, após uns 20 minutos de viagem, a caminhonete chegou a uma casa com um muro branco e alto, cujo portão se abriu automaticamente. Mandaram-me descer com a bike

Page 25: Diário Volta ao Mundo

e então disseram que estavam admirados comigo, pois haviam passado por mim às 8 horas da manha, quando saí de El Tigre, e às 23h30 me viram comendo um lanche em Puerto Piritu, a mais de 200 km de onde me haviam visto. Desconfiaram de que eu estava fazendo uma viagem importante e informaram por telefone ao seu pai, que lhes autorizou me levar para passar a noite em sua casa.

Nesse lar fui muitíssimo bem tratado e pude ligar para minha casa, no Brasil, comer bem, usar a internet e só sair dois dias depois, quando estava plenamente recuperado de todos os atropelos dos dias anteriores.

Apesar de não serem meus irmãos de fé, eram homens de valor e tementes ao Deus do Céu, em nome do qual me fizeram esses favores. Dois dias depois, quando deixei aquele lar, plantei uma forte semente de esperança e fiz ver o quanto o Senhor da vida está perto de todos os que O invocam com convicção.

Na nossa despedida, ainda recebi uma ajuda financeira para comer e pagar um hotel na cidade seguinte, caso não encontrasse quem pudesse me abrigar.

A seguir, parei em Cúpira, cidade onde recebi o apoio da igreja adventista e participei de uma vigília. Ali ocorreram milagres que você conhecerá na segunda parte deste diário sobre a Venezuela. Aguarde para ler aqui.

Vou avançando com fé. Atlanta para mim não está longe porque Deus está aqui. Venha comigo!

VENEZUELA II

Page 26: Diário Volta ao Mundo

Depois de ter passado momentos agradáveis em Puerto Piritu, continuo buscando chegar a primeira capital dos dez países que terei que percorrer até chegar a Atlanta. A próxima cidade a 110 km chama-se Cúpira e depois dela terei mais 160 km para alcançar Caracas. Viajo no momento junto ao mar do Caribe. Pelas “janelas” da gorducha consigo ver o mar. São águas de um verde forte, aparentemente calmas aqui da pista distante. Penso que quando encontrar o primeiro ponto de entrada para o mar irei me banhar nessas águas. Ainda não senti na pele essas águas. Já me banhei no Oceano Atlântico e Pacífico (quando estive no Peru). Agora será uma satisfação refrescar-me em águas tão longínquas de minha pátria.

Avanço nesse desejo e quando avisto uma trilha, que segue paralela à estrada, desço e em poucos minutos estou frente a frente, a alguns passos, das águas verde-musgo do Caribe, pelo menos na costa que chego agora. Para minha satisfação ser maior, há junto à beira-mar onde cheguei duas árvores à distancia exata para armar minha rede de selva. Também por perto não há casa alguma. É uma parte um tanto deserta e longe de Puerto Piritu e Cúpira. Assim me banho e em seguida armo minha rede e me deito, tendo como manto o frescor das árvores e o som do mar como cantiga de ninar. Esse momento não podia terminar de outra forma, senão em um sono profundo e exato no ponto para recarregar minhas baterias.

Bem na hora em que me apareceu a trilha, eu estava cansado e com a pele muito queimada do sol. Por isso dei graças a Deus quando desci para a beira-mar e encontrei a trilha. Que beleza! Que maravilha! Que fantástico! Mais que bom! Um banho de SPA completo, ou seja, descanso, sombra, música suave e água fresca.

Page 27: Diário Volta ao Mundo

Por isso, quando acordei, já às quatro da tarde, estava completamente desligado do meu compromisso de chegar a Cúpira antes do pôr do sol desta sexta-feira. É a primeira vez que isso acontece. Acho que fui embalado pelos anjos de Deus. Eles me cantaram uma música suave usando as ondas encapeladas do mar do Caribe como cordas e a brisa do vento como bojo de um violão. Foi o sono mais curto e mais sublime de toda a viagem. Já dormi em muitos hotéis e quartos confortáveis de várias casas, mas nenhum é semelhante aos momentos que passei aqui. A solidão, associada à paz e à calma serena do lugar em que me encontro me transportaram aos palácios da Terra Prometida e foi como chegar aos braços do meu Salvador.

Se esta natureza corroída, maltratada e transformada por milhares de anos de pecado pode me dar esta deslumbrante sensação, imagine como será desfrutar dos rincões criados por Deus em nossa Pátria Celestial...

Eu quero estar lá, por isso resolvo desarmar a rede e continuar a viagem. Certo é que preferia não ter compromisso com mais nada e, parando o tempo, ficar aqui até o fim do mundo. Como entendo que para encerrar a história deste planeta condenado é preciso trabalhar para levar o evangelho eterno a todas as nações, apressando assim a volta de Jesus, irei me levantar e fazer o possível para alcançar a cidade de Cúpira e encontrar meus irmãos para acertar com eles a oportunidade de pregar no sábado.

Com as energias renovadas pelo sono celestial, chego fácil a Cúpira e sou guiado por anjos invisíveis até a igreja adventista da cidade. Para minha alegria ser completa, encontro a igreja e ela está aberta, em semana de oração. Pela graça de Deus, após a apresentação de

Page 28: Diário Volta ao Mundo

uma carta de recomendação, os irmãos me cedem espaço para pregar e testemunhar e muitos entregam a vida ao Salvador.

No domingo cedo, deixo Cupira e sigo no afã de conquistar a primeira capital, Caracas. Mas, antes, outro milagre deve acontecer. Convido você a vir aqui a este blog para ler a parte três deste relato e sentir a mão do Todo Poderoso sobre minha vida.

Estou a caminho de Atlanta, de bicicleta. Parece impossível, mas não é porque Deus está aqui. Venha comigo!

Venezuela III

Depois das maravilhas ocorridas em Cúpira e do

primeiro encontro com o Mar do Caribe, só me resta seguir em frente, com um sentimento no fundo da alma de que Deus está aqui. Essa sensação da presença do Todo-Poderoso é representada pelos milagres que Ele têm feito em minha vida a cada dia. Não teria como avançar não fosse a bondade infinita de Deus. Ele tem feito com que corações se derretam diante das histórias impossíveis do Atleta da Fé (meu apelido de missionário). Foi assim quando saí de Cúpira rumo a Caracas. Uma distância de 165 km. Fácil para a “gorducha” (minha bike) fazer em um dia. Mesmo com algumas serras e morros altos pelo caminho.

Fui avançando tranqüilo e observando os marcos de quilômetros nas estradas. Quando faltavam 65 km, por volta das 17h30, resolvi fazer uma parada para comer e beber algo. Não tinha tanta fome. Estava, na verdade, com um pouco de sede. Na margem da pista, apareceram

Page 29: Diário Volta ao Mundo

algumas barracas com pessoas vendendo frutas. Todas eram muito simples e vendiam quase as mesmas coisas. Eu passava por elas na esperança de que meus olhos se agradassem de algum produto. Até que o letreiro colocado em um pequeno barril me atraiu. Dizia assim: “Papellon con Lemon!”

Imaginei ser um suco diferente e fiz a volta com a “gorducha” na intenção de tomar um refrescante suco de “papelão com limão”. No entanto, quando perguntei pelo atraente anúncio, tratava-se de rapadura moída com suco de limão. O nome papellon vem de “panela”, ou seja, rapadura, por aqui. Quando fui chegando ao pequeno quiosque, cansado e com muita sede, o dono, um senhor magro, moreno queimado, sorridente, me pediu para sentar. Assim que me recostei sobre uma caixa de engradados de cerveja, ele me trouxe uma garrafa de água. Mas eu não lhe havia pedido água. Isso é que chamo do milagre de Deus “derreter” um coração para me ajudar. Veja, o homem não me conhecia e me ofereceu um abrigo do sol, um lugar para descansar e água fresca para beber... Por isso tenho certeza de que Deus estava entre nós. Alguma coisa maravilhosamente bela deve ter se passado ali. O Espírito Santo de Deus Se moveu naquele lugar. Seus anjos trabalharam por algo que só fui saber depois. Isso ocorreu em Puerto Piritu e em Las Claritas.

A seguir o homem me perguntou de onde venho e qual meu destino. Quando lhe falei que vinha de Cúpira e seguia rumo a Caracas, ele ficou muito surpreso e no mesmo instante seu rosto estampou uma expressão de preocupação. Admirou-se pela distancia de 100 km que eu já havia percorrido e se mostrou apreensivo pelo destino que eu pensava alcançar ainda naquele dia: a capital de seu país.

Page 30: Diário Volta ao Mundo

Disse-me que por ser já tarde, seria muito difícil eu chegar a Caracas antes do pôr do sol. Melhor seria descansar, dormir por ali e avançar no dia seguinte. Inocentemente fiz a pergunta sobre o porquê de não poder chegar a Caracas tarde da noite. A resposta direta e certa foi que Caracas, como toda cidade grande, é repleta de ladrões, delinquentes e outros desocupados de plantão. E ele acrescentou com ênfase: “Se você chegar a Caracas sozinho, com essa bicicleta atraente, é certo que ficara sem ela.”

Então respondi: “Mas, amigo, preciso completar esta viagem. Ainda vou para muito longe e necessito chegar nessa capital ainda hoje. Deus me guardará. Ele terá compaixão de mim e enviará Seus anjos para que me livrem de todo perigo.”

“Certo, concordo”, disse-me o homem. “Porém já falei com minha esposa e você não avançará nem mais um quilometro. Você é estrangeiro e seria um prato perfeito para os ‘ratos de viadutos’ [referindo-se aos grupos de desocupados que moram embaixo de pontes e abrigos das pistas elevadas] na entrada de Caracas. Você vai dormir aqui, em nossa humilde choupana. Amanhã cedo, seguirá seu destino.”

Diante desse “convite ordem”, não tive como recusar. Suas palavras seguras me fizeram entender que ele falava da parte de Deus. É certo que se insistisse em continuar esta viajem depois de tantos conselhos, não saberia como agir diante de um possível imprevisto e a culpa recairia sobre mim.

Aprendi de Deus uma coisa útil: na multidão de conselhos há sabedoria. Por isso, encostei a “gorducha” num canto e fiquei a espera do casal fechar o comércio de frutas que mantém na beira da pista para então

Page 31: Diário Volta ao Mundo

terminar aquele dia. Isso veio a acontecer depois de meia-hora.

A hospitalidade do casal me fez acreditar que ainda existem pessoas solidárias e naturalmente hospitaleiras neste mundo. Eles moram em uma casinha de dois cômodos, teto de zinco, sem reboco e sem banheiro. Para as necessidades básicas, usa-se um vão sem cobertura de quatro estacas e um plástico. O banho toma-se de cuia com água que desce de uma mangueira da serra e é despejada dentro de um pequeno barril de plástico. Ali não se paga luz, água ou impostos. Também, por que pagar para viver num lugar assim, sem nenhum tipo de serviço público disponível? Ali parece que a vida apenas se tem por empréstimo.

Todavia, tenho percorrido milhares de quilômetros e fazia tempo que não contemplava tamanho desprendimento para se ajudar o próximo. Já estive diante de pessoas com gorda conta bancária e morando em verdadeiras mansões, porém, não foram capazes de oferecer-me voluntariamente um copo d’água.

No entanto, senti que aquele cidadão estava sendo usado por Deus. Não fosse sua intercessão, eu teria prosseguido a viagem. Quando chegou a escuridão da noite, eu estava abrigado da chuva, do frio e do vento no rústico lar.

Logo que o sol se pôs, a mulher estendeu um colchão surrado no chão de um dos cômodos que também é cozinha e sala de visitas, cobrindo-o com um lençol desgastado e me avisou de que minha cama já estava pronta. O outro cômodo abrigava o casal e dois filhos. Para dormir nessa “cama” seria necessário disputar o espaço com um cachorro velho e uma galinha com pintinhos.

Page 32: Diário Volta ao Mundo

Tudo isso pode ser muito penoso para alguém acostumado só a luxo, limpeza e ordem. Claro que isso seria o ideal para toda a raça humana. Porém, nunca acontecerá neste planeta em que vivemos. Apenas no Céu não haverá divisão de classe social. Jesus Cristo subiu para nos preparar mansões, independentemente de eu ter vivido aqui como carente ou passado os dias cercado de toda a pompa que o dinheiro pode dar.

Os pobres, disse Jesus, sempre existirão em todas as gerações e estão aqui para provar-nos em quanto podemos ser solidários com nossos semelhantes. Se nos estendem a mão em busca de auxílio e nos negamos a socorrê-los, deixamos de fazer ao próprio Cristo. Necessitamos meditar sobre isso.

Senti que a família estava feliz em encontrar alguém mais carente do que eles e poderem dar-me apoio.

Dormi ouvindo o som carinhoso da mamãe galinha envolvendo seus pintinhos sob suas asas. Elas fazem um barulhinho agradável. Um sonzinho com notas melodiosas capaz de trazer a paz a qualquer mortal. Você só saberá que som é esse se for passar uma noite no campo onde haja galinhas e pintinhos novos.

Pela madrugada, antes dos primeiros raios de sol surgirem, o papai galo cantou cocoricó, cocoricó, acordando toda a família e a mim também.

Logo que levantei, recebi um bom dia do casal e disseram-me para seguir viagem agora, pois o dia começava a clarear.

Não tinha palavras que dizer para me despedir. Deixei um short da seleção brasileira e um boné que havia comprado em Pacaraima. Ainda lhes dei um exemplar do Novo Testamento em português.

A seguir, tendo arrumado minha pequena mochila na garupa da gorducha, peguei a rodovia em direção a

Page 33: Diário Volta ao Mundo

Caracas, acenando com a mão até que desapareci na primeira curva.

Quando não mais os vi, veio em minha alma um sentimento de alegria profunda, incontida, que me fez chorar. Chorei e orei a Deus pela família a fim de que Suas bênçãos sem limites possam alcançá-los. Mas as lágrimas estavam sendo derramadas por descobrir que ainda existem seres humanos solidários espalhados por este mundo de pecado, corrupção e violência. Sou grato a Deus por ter estado algumas horas com essa família.

Despertando para a realidade de minha missão evangelística, apertei o ritmo para chegar a Caracas. Após umas quatro horas pedalando, avistei os primeiros edifícios altos, comuns em toda grande cidade. São símbolos da prosperidade de um país. Quando mais perto chegam do céu as construções dos homens e em maior número existem, mais desenvolvido é o povoado, a cidade ou a nação. Acompanhando esse progresso, existe outra marca indesejável e que aparece como símbolo de criminalidade, pobreza e desajuste social: as favelas.

Infelizmente, ao me aproximar do centro da capital da Venezuela, encontrei-a sitiada por casas amontoadas umas sobre as outras. Vendo essas imagens e o corre-corre desesperado das pessoas, lembrei-me do casal campesino. É certo que ao chegar onde estou agora, em meio a viadutos e conjuntos residenciais pouco ordenados (favelas), não seria difícil topar com os “gaviões da noite” (delinqüentes), ávidos por prender e destroçar suas presas.

Deus me livrou de tudo e consegui atravessar a cidade em paz.

Após Caracas, segui para Nirgua, onde estive pregando e fazendo palestra na Universidade Adventista localizada ali. Depois fui para Barquesimeto, Guanare,

Page 34: Diário Volta ao Mundo

Barinas e Santa Barbara. A última cidade que visitei na Venezuela foi San Cristoban, na fronteira com a Colômbia.

No dia 15 de setembro, depois de percorrer 2.732 km em um mês de viagem, finalmente cheguei a Cucutá, primeira cidade do país das cordilheiras e das guerrilhas.

Obrigado por me acompanhar neste giro. Estou fazendo um resumo do que tenho passado. Não posso contar tudo por falta de tempo. Mas continue comigo, porque Deus está aqui e vejo Sua face por meio dos milagres que Ele tem feito por mim.

Abraços e até a próxima.

Colômbia I Depois de cruzar a fronteira, me dirigi ao controle

de imigração da Colômbia, na cidade de Cucutá, onde meu passaporte foi selado e recebi 60 dias para atravessar o país. O primeiro colombiano que conheci foi na cidade de Las Claritas, ainda na Venezuela. Um jovem muito alegre e falante. Quando lhe contei que ia cruzar a Colômbia pedalando uma bicicleta, ele enfaticamente me disse ser impossível fazê-lo todo em bicicleta por duas razões: (1) precisaria atravessar pedalando as três cordilheiras que cortam o país e (2) por causa das regiões dominadas pelas guerrilhas. Senti que ele falava com entusiasmo principalmente ao se referir à força do exército inimigo. Aconselhou-me a seguir por estradas apenas da fronteira até a capital, Bogotá. Em seguida, eu deveria tomar um avião ate a Cidade do Panamá, e dai prosseguir por terra.

Page 35: Diário Volta ao Mundo

À medida que fui avançando por dentro do território colombiano e quanto mais me afastava de cidades grandes, como Cucutá, Pamplona e Bucaramanga, mais informações recebia sobre a presença de guerrilheiros por estradas mais desertas, em regiões de selva e pequenos povoados. Mas também era comum encontrar as Forças Armadas da Colômbia presentes nas entradas dessas vilas e até em pontos estratégicos no alto de montanhas e rodovias muito movimentadas. Assim, cada vez que os via, sentia-me mais seguro. Claro que estava consciente dos riscos. Sem dúvida era notória a ocupação do Exercito Colombiano em pontos especiais, no entanto, por estar de bicicleta, pedalando a uma velocidade media de apenas 10 km/h, certamente em muitos momentos iria estar sozinho por estradas dominadas pelos guerrilheiros.

Alguns irmãos, quando souberam que eu não dispunha de recursos para comprar uma passagem de avião ate o Panamá, disseram que talvez fosse melhor eu viajar em ônibus. No entanto, outros também informaram que se os guerrilheiros parassem o veículo, iriam pedir a documentação de todos passageiros e, quando me encontrassem, seria seqüestrado. Por isso, como não tinha alternativa, a solução foi buscar coragem em Deus e prosseguir com a “gorducha” (minha bike) levando como espada a Palavra do Senhor, que me diz: “Não temas e não te espantes, porque Eu estou contigo por onde quer que andares. Eu sou a tua sombra a tua direita.”

Essas promessas me encantam. Dão-me alento para desafiar o impossível e continuar em frente quando o óbvio seria recuar.

Parece loucura o que estou fazendo. Até vejo lágrimas de emoção em alguns irmãos na hora em que deixo suas casas. A maioria diz: “Até o dia em que nos veremos no céu, querido irmão. Que Deus o abençoe.”

Page 36: Diário Volta ao Mundo

E eu respondo: “Até os Estados Unidos. Veremos-nos em Atlanta. Para honra e glória de Deus, cruzarei seu país em paz e estarei na Conferência Geral de nossa igreja. Não eu, mas o Senhor dos Exércitos me conduzirá até que chegue lá.”

Entre a cidade de Bucaramanga e Socorro, alcancei uma grande marca: a dos 3.000 km. Fiz uma grande festa para a “gorducha”, recheada de muitas orações ao meu Guardião. Um grande brado de vitória ecoou dos meus lábios pelas montanhas altas, desertas e rochosas das Cordilheiras dos Andes Oriental. Além das Farc's, esse é o segundo inimigo que enfrento. Para alcançar o pico de algumas delas, às vezes preciso subir distâncias de mais de 50 km direto. Quase não aparecem planos ou partes com descidas. O terreno é sempre ascendente. Estou numa prova de resistência física jamais enfrentada. Viajando pelo Brasil, Uruguai, Paraguai e Argentina, nunca estive em trechos tão escabrosos, com tão grandes altitudes e frio como agora. Os picos alcançam quase 4.000 metros e há precipícios fantásticos. A vista se encanta com a beleza selvagem do lugar. Nunca contemplei algo assim. Esquecendo-me às vezes dos perigos em volta, até agradeço a Deus estar por esta parte do planeta sob condições tão adversas, ou seja, pilotando a “gorducha”. Como a velocidade máxima que alcanço nessas ascendências é de 10 km/h, enxergo até os olhos das formigas e desvio os pneus da bike das lagartas inocentes que cruzam meu caminho.

Assim, chego a Socorro e depois na cidade de, Barbosa onde concluo a travessia da Cordilheira Oriental e começo a pedalar pela Cordilheira dos Andes Central.

Ainda há muito que ver por aqui, mas meu alvo longínquo é a cidade de Atlanta, nos Estados Unidos. No entanto, devido a tantas profecias humanas sobre um

Page 37: Diário Volta ao Mundo

possível seqüestro da “gorducha” neste país pelas forças revolucionárias, avanço apreensivo, atento, receoso. Só em Deus posso encontrar fé necessária para ir em frente. Incrível como creio e tenho certeza de que anjos me cercam. Seus braços poderosos têm me guardado. Seus olhos incansáveis e que não dormem nem de dia nem de noite vigiam meus passos e todos os meus caminhos. Suas pernas se atiram como raios em minha direção para me amparar em alguma queda. Quando paro para fazer um lanche, eles se sentam à mesa comigo. Quando durmo numa parada de ônibus em um lugar deserto, eles velam meu sono. Quando desço nas cachoeiras para buscar água, eles me protegem de cobras, insetos peçonhentos e de cair nas pedras lisas e molhadas. Quando o pneu fura em lugar perigoso, eles cerram os olhos dos meus inimigos para que não me persigam. E ainda mais incrível é saber que se estiver para cair nas garras traiçoeiras do maligno, em risco de morte iminente, eles assumem a forma humana, momento em que os vejo e converso com eles, às vezes, sem saber quem são.

Sabe caro amigo internauta e irmão, é bom respirar uma “atmosfera celestial” aqui na Terra. É gostoso estar nas mãos de Deus e depender tão-somente dEle.

Estou indo para Atlanta. Estou muito distante do meu alvo, mas bem perto do meu Criador e Redentor. Venha comigo, porque Deus está aqui.

Até breve.

Colômbia II

Page 38: Diário Volta ao Mundo

Após ter cruzado a Cordilheira dos Andes Oriental, depois de ter atingido seu pico na cidade de Berlim, com 3.310 metros acima do nível do mar, iniciei uma descida de uns 50 km. Em nenhum país até o momento enfrentei subidas e descidas tão longas. Neste caso, quando a descida é longa e a partir de uma altitude elevada, momento em que os braços e pernas executam pouco movimento, a sensação de frio é algo critico. O ideal é descer em pé sobre a bicicleta e realizar o máximo de movimentos possíveis a fim de aquecer um pouco o corpo. Principalmente no meu caso, que não levo nenhum abrigo especial. Mas, como me considero uma “máquina humana”, penso que suportarei esses desafios.

É necessário informar que me exponho a essa situação tão somente por não dispor de um carro de apoio. Caso tivesse, agora estaria com um abrigo bem quentinho. Mas, como considero o que faço uma missão e não um trabalho, faço com alegria mesmo nas piores condições de viagem.

Ter conseguido atravessar a Cordilheira Oriental bem fisicamente e sem nenhum contato com a guerrilha colombiana, me animou a prosseguir. Todavia, ando com um alerta vermelho o tempo todo. Cada carro parado na estrada, cada transeunte a pé, cada grupo de homens reunidos em locais desertos e cobertos por florestas, me faz bater forte o coração e buscar proteção dos Céus. Isso é sempre preocupante e viajaria com mais alegria caso não tivesse que levar na mente essa situação.

Em realidade, penso que à medida que se aproxima a volta do Senhor mais o mundo se tornará violento. Além de tantos sinais claros na natureza do retorno breve de Jesus, um dos que mais se nota na raça humana é o “amor se esfriando em quase todos”.

Page 39: Diário Volta ao Mundo

Observe a sua volta o quanto as pessoas estão cada vez mais insensíveis a expressões de cordialidade, amor e compaixão para com o próximo. Por isso esses seqüestros na Colômbia, os homens suicidas nos países árabes, crianças morrendo de fome na África e uma série interminável de corrupção, violência e degeneração mental, fruto de tabaco, bebidas e drogas.

Enquanto isso passa, estou aqui, subindo as Cordilheiras dos Andes Central da Colômbia em uma bicicleta a 10 km/h. Acho que todo ser humano deveria parar o que está fazendo, montar numa bicicleta e vir para cá. Seu corpo ia se regenerar, sua mente flutuar rumo ao céu e sua concepção da existência de um Deus Criador de todas as coisas chegaria ao ponto máximo. Aqui você sente o Todo-poderoso mirando Suas obras espetaculares.

O bom é que há subidas de mais de 50 km e que não se tem como passar correndo. O tempo gasto viajando em caracol a baixa velocidade permite pensar em tudo. Posso ir ao espaço sideral, buscando mistérios ocultos nas estrelas ou penetrar em imensas divagações sobre a miséria em que se encontra o ser humano. Mas o que me conforta é saber que enquanto estiverem nascendo flores no campo e crianças geradas em ventre materno, Deus ainda não perdeu a esperança na raça humana. Sim, já ouvi isso em algum lugar.

Prova disso é que Seu Santo Espírito me ordenou a deixar meu país, minha casa, esposa e filhos e sair errante, como peregrino e missionário, para chamar a atenção de alguns e ajudar a salvá-los para o reino eterno.

Isso ocorreu em Bucaramanga, aqui na Colômbia, onde tive oportunidade de testemunhar em várias igrejas

Page 40: Diário Volta ao Mundo

e fazer apelos e ver pessoas realmente se entregando a Jesus de todo coração e alma.

Enquanto corria provas de maratonas, ciclismo e natação no Brasil, às vezes ganhava alguma medalha ou troféus. Agora, tudo mudou. Fui chamado por um milagre a fim de levar o evangelho eterno a todo o mundo por meio do esporte. Alguns vêem, se emocionam. Crêem e se convertem. Deus é honrado e eu receberei de Jesus, no lugar de medalhas e troféus, uma estrela em minha coroa por cada ser que conduzir aos Seus pés.

Penso em meu coração que vale a pena trocar esta vida mortal, sofrida vida mortal, pela imortalidade ao lado de Cristo. Dar uma volta ao mundo, como faço agora, não é nada comparado ao galardão que me espera.

Em tudo louvo ao Senhor porque este conhecimento não vem de homens. São promessas escondidas nos mistérios de Sua Palavra viva, a Santa Bíblia. Nela tenho minha rocha.

Os dias foram passando nas estradas da Colômbia e tive a satisfação de terminar também a Cordilheira Central. Cheguei numa tarde ensolarada em Bogotá, cidade a 2.600 metros sobre o nível do mar. Aqui é sempre frio em qualquer época do ano, especialmente no inverno. Geralmente, todo lugar muito alto é frio.

A chegada na capital colombiana foi tranqüila. É fácil percorrê-la de um extremo a outro, uma vez que ela é toda cortada por ciclovias. De todas as capitais dos países que já percorri, esta é a primeira em que vejo respeito ao ciclista. Aqui todo mundo pedala porque se tem um espaço exclusivo onde há segurança para transitar. Quisera que todas as grandes cidades oferecessem ciclovias a seus habitantes. Especialmente as capitais dos países Isso promoveria mais saúde e menos poluição ambiental e sonora pelo uso mais freqüente da

Page 41: Diário Volta ao Mundo

bicicleta. Mudaria a mente, os hábitos e a atitude das pessoas com relação a pratica regular do ciclismo. Seria um grande beneficio para todo o planeta. Parabéns às autoridades governamentais de Bogotá. Que outras cidades e países imitem essa iniciativa.

Depois que cheguei a Bogotá e me encontrei com pastores e irmãos da igreja, voltei a ouvir os comentários sobre guerrilha. Novamente me aconselharam sobre ir de avião até a Cidade do Panamá a fim de evitar cruzar o “campo minado” do inimigo. Mas, outros que não estavam tão preocupados com minha segurança diziam: o exército colombiano está nas estradas. Aqui de Bogotá até Medellín você ainda consegue viajar seguro. Então, quando chegar a Medellín, tome o avião.

Inicialmente me disseram para nem passar pela Colômbia. Depois afirmaram que poderia viajar ate Bogotá. Agora me dizem que não posso ir até Medellín...

Segundo eles, existem grandes problemas com guerrilhas na zona conhecida como Cartel de Cali e Medellín. Famosa em todo mundo, vigiada pelo FBI e sempre citada em filmes sobre o tráfico de drogas. Fato concreto é que para chegar a Medellín passaria por essa zona vermelha, como eles assim chamam as partes do país ocupadas em sua maioria pelas forças revolucionarias. Todavia, esperando uma reação dos meus conselheiros, disse-lhes outra vez que não tenho dinheiro para viajar de avião até o Panamá. Por isso, iria cruzar a Cordilheira Ocidental, a terceira do país, montado sobre a “gorducha” Atlanta. Confesso que até esperei que eles me dessem uma pequena oferta que me permitisse comprar a passagem em avião... Como não foi ocaso, no dia seguinte estava cruzando um perigoso túnel que me levaria do centro de Bogotá rumo à rodovia para Medellín.

Page 42: Diário Volta ao Mundo

Outra coisa que me animava a prosseguir até aquela cidade é que nela se encontra a sede da Universidade Adventista de Colômbia. Quem sabe, se chegasse ali sem problemas, poderia conseguir os recursos para ir ao Panamá de avião. Deixei mais esse problema nas mãos de Deus e segui.

Depois de muito suor; depois de muitos sustos pelo caminho; depois de ver muitas vezes pela fé os exércitos do Céu pelos caminhos tortuosos, frios, desertos e intransponíveis de mais uma cordilheira, guardando-me de todo mal, consegui chegar a Medellín.

Glórias, glórias, glórias àquele que tudo pode. O Senhor é a minha forca. Ele é o meu socorro, a Rocha em que me sustento. Essa vitoria é do Senhor! Essa vitoria é do meu Rei.

Estou avançando. Venha comigo porque Deus esta aqui.

Colômbia III

Chegar a Medellín foi um sonho. Ver que todos os

prognósticos sobre a impossibilidade de alcançar essa cidade pedalando falharam, foi simplesmente magnífico.

Em Medellín temos uma importante Clínica Médica e a Universidade Nacional Adventista da Colômbia (Unac). Na Clínica, conheci o Dr. Miguel Moreno, o diretor, que me prestou tremendo auxílio. Apresentou-me a pastores da universidade os quais me abriram espaço para testemunhar ao corpo de alunos desse centro de ensino. Eles disseram ser “impossível” o que estou fazendo. Alguns falaram ser difícil crer em tudo o que já fiz e me proponho a realizar. Esta maratona esportiva e missionária até Atlanta é, segundo a opinião de muitos

Page 43: Diário Volta ao Mundo

alunos e professores, completamente inconcebível. Algo meio “louco” de se realizar.

Por que não ir de moto, de avião, de carro, de navio? São tantas as maneiras que se tem para viajar aos Estados Unidos e resolvo ir de bicicleta?! Apenas aqueles que são mais curiosos e tomam tempo para me perguntar e ouvir a razão por que estou viajando assim, é que acabam por entender e mesmo se motivam a apoiar de alguma forma.

A realidade é que a fé que me sustenta a manter esse tipo de ministério assusta alguns. Até a mim mesmo. Após planejar e iniciar uma viagem, mesmo quando todas as promessas de patrocínio falham, como tem ocorrido até agora, eu prossigo até concluí-la, tão somente movido por uma força que não vem de mim. Essa é a razão por que tenho avançando em meio às guerrilhas da Colômbia, mantendo no coração uma fé quase infantil de que Deus me guardará.

De tanto falar assim, fui advertido por um pastor aqui da universidade que me disse para não confundir confiança em Deus com presunção. Ele assim se expressou: “Uma coisa é você crer e confiar na proteção de Deus. Outra é você se lançar contra o perigo na ‘presunção’ de que Deus tem obrigação de salvá-lo. Você precisa tomar um avião aqui de Medellín até o Panamá. Não continue mais cometendo esse erro de viajar sozinho de bicicleta por essas estradas desertas. Caso não possa tomar um avião, vá de ônibus, que não deixa de ser arriscado, porem o risco é menor.”

Lógico que o nobre pastor falava pensando que eu dispunha de patrocínio e recursos para escolher em que viajar.

Depois outro tomou a palavra e disse: “Não haverá problema. Se ele crê que Deus o protegerá em qualquer situação, isso de um modo ou de outro acontecerá. Vamos

Page 44: Diário Volta ao Mundo

deixar que avance e ver no que vai dar. O que podemos fazer é orar. Eu mesmo tive que negociar com as Farc's por seis meses a libertação de um pastor nosso seqüestrado por essa gente. O coitado voltou cheio de traumas e até hoje não vive bem. Há muita gente boa nas mãos desses homens, vivendo sob condições terríveis. Alguns há décadas que não vêem suas famílias.”

Imagine como ficou minha cabeça após ouvir essas opiniões. Elas me serviam para duas coisas: (1) colocar-me medo e conscientizar-me do perigo que corro; (2) por não poder pagar avião ou ônibus, avançar esperando um milagre e, por ele, chegar mais perto de Deus.

Assim, após os compromissos missionários na Universidade Nacional Adventista da Colômbia, saí escoltado pelo carro de um pastor por uns 25 km, até chegarmos à entrada de um túnel. Aí paramos e oramos. O pastor regressou com sua família a Medellín e eu prossegui rumo à “boca do leão”.

A primeira cidade a alcançar seria Santa Fé. Pela misericórdia e graça do Senhor, cheguei em paz. A segunda, Dabeiba, mais de 100 km à frente, também alcancei sem problemas. A terceira, Chigorodo, também com outros 120 km a percorrer.

Foi quando saí de Dabeiba, rumo a Chigorodo, que não me senti muito bem. Havia um deserto grande entre os povoados. Poucos carros passando. Várias motos e selva de todo lado. Eu estava exatamente passando na região onde um pastor nosso foi levado pela guerrilha. Realmente minha situação estava preocupante. Eram quase duas da tarde quando me encontrava em um trecho bem isolado, cercado de floresta densa por toda parte. Algo parecido com a selva amazônica ou a mata atlântica. Uma região cheia de morros e planaltos, bem inacessível. Ótima para se manter qualquer esconderijo.

Page 45: Diário Volta ao Mundo

Foi nessa parte da estrada entre Dabeiba e Chigorodo que, olhando à frente, a uns 200 metros, percebi um grupo de quatro homens. Eles estavam na entrada que dava acesso a uma ponte. Exato lugar por onde eu tinha que passar. Minhas batidas do coração aumentaram em segundos. Senti o perigo à frente. Não havia para onde correr porque já tinham me visto. No entanto, quando estava a uns 50 metros, passou uma moto por mim. Logo o piloto precisou diminuir a velocidade para subir na ponte. Quando fez isso, dois dos rapazes o seguram e ele foi obrigado a descer. Observei dinheiro sendo passado entre eles. Pareciam estar cobrando um pedágio. Aproveitando o envolvimento daqueles homens com o motoqueiro, busquei passar pelo outro extremo da ponte. Nesse instante, ao levantar os olhos à frente, vi dois soldados do exército colombiano descendo para onde estávamos. Eles chegaram no momento exato de me permitir passar incólume pela ponte. Cumprimentei-os com um aceno de cabeça e arranquei com a “gorducha” em velocidade máxima e sem olhar para trás.

Quilômetros depois, após recuperar-me do susto é que fui pensar nas conseqüências de ser identificado como estrangeiro nesta região da Colômbia.

Estou certo de que foi a mão de Deus que me guiou em paz até este momento por estas terras tão lindas e perigosas. Aqui, ao mesmo tempo em que as belezas nos fascinam, os perigos nos lapidam a alma. Com certeza, há um grande espaço vazio no Céu, porque os anjos de Deus estão aqui. Por isso prossigo e no fim da tarde chego a Chigorodo. Falta-me Apartado e Turbo, as duas últimas cidade que ainda têm estradas para seguir viajando neste país.

Page 46: Diário Volta ao Mundo

Depois, precisarei cruzar o estreito de Darién e viajar por barco pelas águas do mar azul-turquesa do Caribe para alcançar finalmente a primeira cidade do Panamá. Sim, isso é o que veremos na parte 4 deste relato.

Bom, será que você já pode perceber por que digo que Deus está aqui? Se entendeu, venha comigo, pois Atlanta ainda está muito longe e teremos bons momentos juntos.

Um abraço e até breve.

Colômbia IV

Talvez você esteja muito impressionado com o que tenho passado nesta viagem até o momento. Este é o diário que chamo por ora de Colômbia IV. Certamente em meu livro ele terá outra denominação e não será um simples resumo. Convido que você leia o que escrevi em Colômbia I, II e III, para que entenda melhor o que vou contar a partir de agora. Antes de ingressar neste maravilhoso, belo e indomável país, recebi o seguinte aviso pessimista: Você não terá como cruzar a Colômbia em bicicleta por dois motivos:

Primeiro por causa das três Cordilheiras e segundo por causa das forças paramilitares (guerrilheiros) que controlam certas regiões isoladas. Ou seja, disseram, se você tiver forças para vencer as montanhas, certamente será seqüestrado nas regiões desertas do Golfo de Darién, próximo do Panamá.

Em realidade, os que não acreditavam nas minhas condições físicas para ultrapassar as grandes cordilheiras pedalando, não entenderam o treinamento que fiz pelo Brasil, Uruguai e Paraguai. Sendo assim, louvo a Deus que

Page 47: Diário Volta ao Mundo

tem renovado as minhas forças e me ajudado a alcançar cada pico e bradar aos Céus um grande grito de vitória.

Após chegar nas principais cidades da Colômbia como Bucaramanga, Bogotá e Medellín, sendo esta o ponto de partida para a última cordilheira, a Ocidental, os que duvidavam e me viam chegar pedalando a "gorducha", se admiravam e indagavam de onde vem tanta força. A resposta os fazia entender vir de um poder sobrenatural e o sobrenatural levava a todos a ver a mão de Deus neste desafio.

Mas, se perguntavam: Qual o Deus capaz de me livrar viajando sozinho por estradas quase sempre desertas em direção ao Panamá?

Na verdade, a rodovia Interamericana liga todos os países entre si desde o Chile até a Colômbia, porém é interrompida neste país pelo Golfo de Darién e só recomeça no Panamá. E acontece que viajo exatamente para esta zona, dominada pela guerrilha, selvática e onde estes paramilitares logram êxito em seqüestrar cidadãos colombianos e estrangeiros mantendo-os em cativeiros em troca de recursos para alimentar seu exército mercenário.

Desde que deixei Medellín e tomei o rumo de Turbo, uma pequena cidade portuária a Noroeste da Colômbia, recebo constantes avisos de que estou em "zona vermelha".

Um pastor me deu o seguinte conselho: Durante a viagem, nas estradas, não fale com ninguém. Evite parar em lugares com grande número de pessoas. Não responda a muitas perguntas. Cumprimente a todos apenas com aceno de cabeça. Não deixe que percebam seu sotaque ao falar e descubram que és estrangeiro. Tenha muito, muito cuidado.

Page 48: Diário Volta ao Mundo

Era neste clima que viajava de Chigorodo para Apartado. Com o coração palpitante de preocupações. Grande alívio sentia ao encontrar um grupo de soldados do exército colombiano em patrulha. Passava sorrindo por eles e sabia que estava protegido por vários quilômetros enquanto durasse o raio de ação daquela milícia.

Estavam faltando apenas duas cidades para sair desta zona vermelha: Apartado e Turbo.

Quando chegasse a Turbo a viagem prosseguiria em barco até a primeira cidade do Panamá com estradas. Eram apenas 100 km, longos 100 km. Apartado já estava perto e as estradas não tinham grandes montanhas para subir. Meu odômetro já passou dos 4000 km. Completei esta marca após deixar Medellín e só na Colômbia estou alcançando 1450 km.

Por isso que hoje estou sentindo um raro "cansaço" nas pernas. Não gosto de admitir que sinto isto próprio a todos os mortais. Digo a mim mesmo que Deus tem me feito um "homem de ferro" para a execução deste ministério. Na verdade eu não entendo, nem tão pouco os irmãos que me recebem em suas casas, como tenho enfrentado tantas intempéries sem me enfermar. Sol extremo, chuvas torrenciais, finas e garoas, ventos e tempestades. Frio congelante. Com isto tudo tenho convivido às vezes em um único dia.

Como hoje em que estou um dia inteiro subindo serras. No fim da tarde atinjo o pico, depois de 80 km. Neste dia já choveu, recebi rajadas de ventos frios, a poeira e o gás carbônico dos carros. Para ficar pior, cai à noite e ainda não enxergo as luzes da próxima cidade e, após atingir a marca dos 4.000 km, na euforia da comemoração, em uma descida, a gorducha desliza em um banco de areia. A roda dianteira vira e trava e tomo uma queda desastrosa.

Page 49: Diário Volta ao Mundo

Por misericórdia de Deus não estava passando na hora nenhum veículo e apenas sofri cortes no corpo sem quebrar nenhum osso. Nesta queda, a primeira desta viagem, ocorreram as seguintes baixas: amassou o guidão dianteiro e o suporte da bagagem.

Em meu corpo deixou as seguintes seqüelas: dedo mindinho direito cortado. Braço e antebraço direito com a pele rasgada. Parte interna da coxa direita cortada e perfurada. Perda de um pouco de sangue. Porém, e dou graças a Deus por este milagre: Nenhum osso foi quebrado ou fraturado, pois meu Pai sabe que com ossos danificados não poderia prosseguir a viagem.

Levanto, oro. Faço um check-up na gorducha e avanço. Vencendo todos estes sacrifícios, consigo chegar em Apartado. Após outros 30 km, chego finalmente na última cidade onde ainda havia alguma estrada em direção ao Panamá, Turbo. Esta é a derradeira fronteira por terra na Colômbia. Penso que se até o momento, por uma benção de Deus, as Farc's não puseram as mãos em mim, chegarei ao próximo país em paz e poderei continuar sonhando em pedalar pelas ruas da cidade sede da 59ª Conferência Geral dos Adventistas do Sétimo Dia, Atlanta, na Geórgia, Estados Unidos.

Acompanha-me nesta travessia estimada em 15.000 km uma bicicleta feita por grossos tubos de alumínio que tive a alegria de receber de presente da loja "Mercadão das Bicicletas" na cidade capital de Roraima, Boa Vista, na região norte do Brasil. Seu apelido é "gorducha" exatamente por ser muito pesada. Levo ainda uma pequena mochila num bagageiro traseiro com duas calças de tactel, uma camiseta, duas blusas, uma bermuda de nylon, uma capa de chuva e um boné. Tenho também um canivete, uma lanterna e um kit de remendos. Carrego a frente do guidon dianteiro uma outra mochila (menor que

Page 50: Diário Volta ao Mundo

a traseira), contendo mapas, passaporte, identidade, câmara fotográfica, uma bíblia pequena e uma dispensa para lanches (sacos plásticos impermeáveis). Tinha um capacete amarelo, mas o perdi.

Este é o conjunto que arrancou do Brasil, rumo à conquista das três Américas. Sozinho. Sem pai. Sem mãe. Sem irmãos. Sem filho ou filha. Sem esposa. Sem amigos. Todavia, com Deus. Com o Espírito Santo. Com Jesus e com os Anjos. Assim sendo, viajo com um grande exército. Invisível, invencível e incontável exército. À frente dele, tenho o comandante que jamais perdeu uma batalha. Nem na Terra, nem no Céu ou em qualquer ponto do Universo: Jesus Cristo. Ele tem sido meu pai, minha mãe, meu irmão, minha filha, meu filho, minha esposa e meu maior amigo.

Quando estou cansado, Ele me restaura as forças. Quando estou triste, Ele me traz alegria. Quando estou angustiado, Ele desfaz meus problemas. Quando sinto solidão, Ele me faz sentir a presença dos seus anjos. Quando a saudade sufoca meu coração, Ele me faz entender que em breve nunca mais irei me separar de quem amo.

Eu e a gorducha somos dois peregrinos. Eu e a gorducha nos fizemos peregrinos. Somos peregrinos do Senhor. Somos representantes neste mundo escuro do Senhor da Luz e que também é o protagonista de sua redenção, através do sangue, suor e lágrimas vertidos na cruz do Calvário.

As cordilheiras já venci. As Farc's nem me viram, por isso tenho dito que Deus está aqui. Eu sinto. Vem comigo para Atlanta e permita que o Todo-poderoso ilumine também sua existência.

Um até breve.

Page 51: Diário Volta ao Mundo

Colômbia V Quando ingressei na Colômbia, sonhava em alcançar

duas cidades: Bogotá e Medellín. Depois que conquistei Medellín, fixei meu alvo no caminho mais curto que me permitisse chegar ao Panamá. Havia um em direção a Cartagena. Mais longo e vigiado todo tempo pelo exército colombiano. O outro seguia em direção de uma cidade chamada Turbo – praticamente a metade da distância e que me deixaria em um porto bem próximo do Panamá. No entanto, esse caminho é considerado como “zona vermelha”, ou seja, região onde existe ação terrorista das Farc's. Aliás, Farc’s quer dizer Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia. Sua criação se deu em 1964, apenas como uma guerrilha revolucionária do Partido Comunista Colombiano. As Farc’s são uma das mais capacitadas, equipadas e a mais antiga das forças insurgentes do continente sul-americano. Tem de 12.000 a 18.000 membros e mantém presença em aproximadamente 80% do território colombiano, comandando grande parte dele, a maioria em florestas e selvas a sudeste da base das montanhas dos Andes.

Segundo o governo norte-americano, as Farc’s obtêm financiamento principalmente por meio de extorsões, seqüestros e tráfico de drogas. Muitos combatentes e informantes das Farc’s são menores – estima-se que cerca de 20 a 30 por cento tenham menos de 18 anos. Todavia, posso também dizer, depois de concluir esta travessia, que este país foi invadido e ocupado estrategicamente por outro exército bem mais poderoso do que as Farc’s e as Forças Armadas: o exército celestial, cujo comandante-chefe é meu amigo e Criador do Universo, Jesus Cristo.

Page 52: Diário Volta ao Mundo

Por isso digo que o sufoco está passando. Cheguei a Turbo após cruzar de bicicleta todo o território colombiano. Para alcançar essa cidade portuária onde terminam as estradas da Colômbia em direção ao Panamá, foi necessário percorrer 1.580 km. Foi muito complicado galgar o pico das montanhas das Cordilheiras dos Andes Oriental, Central e Ocidental pedalando uma bicicleta. Ainda mais com uma “gorducha”.

A Colômbia é o único país da América do Sul cortado por esses três belíssimos acidentes geográficos. Estive em regiões nas quais havia picos com mais de 4.000 metros de altitude e o frio era insuportável. Como não carrego mochila capaz de levar roupa mais pesada, para aquecer o corpo dependia tão somente do calor produzido pelas pedaladas. Nos momentos em que era obrigado a parar por qualquer motivo – como, por exemplo, um pneu furado –, o frio me congelava os dedos e todo o corpo. Mas, pela compaixão de Deus, raras vezes estive nessa situação. E quando ocorreu, pude suportar.

Então, se apoderou de mim um sentimento profundo de vitória quando cheguei próximo a Turbo e avistei pela primeira vez sítios e fazendas completamente planos. Agora somente olhando para sudoeste, forçando a vista é que se vê muito distante a tênue imagem cinzenta das altas montanhas das cordilheiras. Quando recordo o instante em que cruzei a fronteira da Venezuela para a Colômbia, por Cucutá, e comecei a ziguezaguear por subidas de quase 100 km, as quais me deixavam exausto para vencê-las, é quando entendo que não foram apenas os meus músculos que me fizeram chegar a Turbo. Há outro poder por trás de tudo isso.

Devo regozijar-me e louvar com toda força ao meu Criador e Redentor, o qual me fez com capacidades físicas para superar limites. O incrível também é que esta

Page 53: Diário Volta ao Mundo

“máquina humana” vai completar meio século desde que foi criada! Isso mesmo. Os músculos que impulsionam a “gorducha” irão completar 50 anos de existência. E, logicamente, se eu fosse um atleta comum, já estaria “pendurando as chuteiras” e pensando mais em aposentar-me. Todavia, em meu sangue corre um sentimento de missão a cumprir. Só vou poder descansar após ter percorrido todos os continentes da Terra e neles visitado todos os países, divulgando o estilo adventista de vida saudável e anunciando a volta de Jesus.

Somente nesta etapa – o Projeto Atlanta –, estarei cruzando 11 países. São eles: Venezuela, Colômbia, Panamá, Costa Rica, Nicarágua, El Salvador, Honduras, Belize, Guatemala, México e Estados Unidos. Ainda estenderei esta viagem até o Canadá, depois Europa, África, Oriente Médio, Ásia, Oceania e, por último, Austrália. Portanto, mesmo com a idade “dobrando o Cabo da Boa Esperança”, não poderei aposentar ainda meus sonhos e desafios.

Antes deste projeto, já percorri o Brasil (21.000 km) e toda a União Austral (8.200 km passando por Argentina, Uruguai e Paraguai), sempre caminhando, correndo e mais constantemente pedalando uma bicicleta, ou seja, esquadrinho os países como um desportista. Por onde passo vou semeando um rastro de esperança, de fé, de coragem, de garra e determinação e, sobretudo, de que não sou ninguém e nada posso fazer sem o Deus que está adiante de mim. Esta é a grande mensagem. Esta é a tônica básica e motivo maior de minhas viagens: pregar a verdade, dizendo para o mundo temer a Deus e dar-Lhe glória, pois se aproxima a passos largos a hora do Seu Juízo.

Essa é a maneira singela que Deus encontrou para salvar “alguns”, ou seja, enviar-me como atleta para lhes

Page 54: Diário Volta ao Mundo

chamar a atenção, para ouvir-me, converterem-se e serem salvos.

Por isso, mesmo sem nenhuma condição, lutei para chegar a Turbo. Agora preciso descobrir como chegar por barco até o Panamá e a alguma cidade que tenha estradas a caminho de Costa Rica.

Em Turbo, fui recebido por dois irmãos adventistas. Eles estavam muito impressionados por eu estar viajando de bicicleta por seu país. Perguntaram por que não tomei um avião em Bogotá para a Cidade do Panamá. Ao saberem que eu estava sem condições financeiras para fazer esse percurso em avião, informaram que as passagens em barco até o Panamá, apesar de serem mais em conta, também não são tão baratas, e é necessário apresentar 600 dólares em espécie (dinheiro vivo) ao serviço de imigração para ter acesso ao território panamenho.

Por isso, saíram logo com a pergunta: “Irmão, quanto você tem em mãos, em dólares, para sua viagem até Puerto Obaldia, primeira cidade panamenha do outro lado?” Respondi: “Irmãos, não tenho dólares. Apenas alguns bolivares (moeda colombiana).” Dito isso, entreguei-lhes todo o dinheiro das ofertas recebidas das igrejas e que não havia gasto até aquele momento. O irmão Cesar Royas fez a contagem e, com a ajuda de uma calculadora, fez a conversão para dólares americanos. Muito surpreso, disse:

“Irmão George, você só dispõe de 52 dólares. Com este dinheiro não dá para viajar até o Panamá. Você terá que viajar daqui até uma cidade chamada Capurganá e ali pegar outra lancha até Puerto Obaldia, onde deverá receber o visto de entrada e ainda outra lancha até Miramar, que é o porto onde existe estrada ligando o resto do país. Só a primeira parte da viagem custa 50

Page 55: Diário Volta ao Mundo

dólares, sem direito a comida. É impossível o que você pretende fazer! São necessários quase mil dólares para se chegar ao Panamá em condições de ingressar no país. A igreja local é pobre, não temos como lhe ajudar. Você deve buscar ajuda com seus irmãos brasileiros. Há muitos adventistas ricos no Brasil. Se você não tiver apoio financeiro, aqui é o fim desse seu sonho de chegar a Atlanta.”

Após escutar atento as orientações, percebi que havia chegado a um beco sem saída. Não tinha recursos para continuar a viagem e muito menos para regressar ao Brasil. Havendo estradas, eu vou até o fim do mundo com muito pouco. Porém, quando sou obrigado a utilizar outro meio de transporte, quer seja barco, ônibus ou avião, a situação se complica porque os gastos aumentam e não tenho um patrocinador que banque despesas de grande vulto. O dinheiro da minha aposentadoria mantém minha esposa e filhos no Brasil.

Estou com um problema de difícil solução... Onde conseguir mil dólares (600 para apresentar ao serviço de imigração para o carimbo do passaporte e outros 400 para pagar passagens em barcos, comida e hotéis nas vilas portuárias até ingressar no Panamá?

Enquanto o irmão Cezar coçava a cabeça e repetia que não tinha meios de me ajudar, eu orava e a comunhão com Deus dava-me a certeza de que de alguma forma iria sair dessa situação.

Então, passados alguns minutos, meu anfitrião da igreja adventista em Turbo me disse que há uma única alternativa para que eu continue avançando rumo ao Panamá: terei que tomar um barco em direção a um povoado marítimo chamado Unguia e dali seguir por trilhas até outra cidade chamada Acandi. No entanto, ele me advertiu de que ninguém faz esse caminho em

Page 56: Diário Volta ao Mundo

bicicleta por ser muito perigoso. Além do risco de se perder (uma vez que é preciso passar por rios, trilhas na selva, cortar por fazendas), corre-se o risco de assaltos e seqüestro.

Ah, Senhor, o que devo fazer? Um único caminho. Uma única alternativa para seguir viajando. Lembro-me da Tua Sagrada Escritura que diz assim: “Entrai pela porta estreita, pois largo e espaçoso é o caminho que conduz à perdição.” Ou seja, há muitas direções, mas apenas uma deixa na entrada do Céu.

Deus meu, se não tenho outro rumo para alcançar o Panamá, seguirei por esse estreito, espinhoso e perigoso caminho. Vem Senhor dos Exércitos! Passe adiante de mim mais esta vez. Avancemos juntos!

Duas horas após essas meditações, depois do pagamento de 25 dólares por mim e mais 15 pela “gorducha”, estava embarcando em uma “palanca” (lancha pequena) na direção de Unguia.

Não sei o que me espera do outro lado. Todavia, de algo tenho certeza: Deus vai adiante de mim.

Meu nome é George Silva. Meu apelido: Atleta da Fé. Triatleta brasileiro viajando sobre duas rodas para os Estados Unidos. Sou um “caçador”. Um “caçador celeste”.

Vamos juntos. Embarque comigo nestes relatos. Viva o que estou passando. Sinta o que tem feito o Deus a quem sirvo, pois Ele está aqui. Venha comigo. Atlanta nos espera!

Colômbia VI Durante minha passagem pela Venezuela, andando

por estradas desertas, algumas repletas de florestas,

Page 57: Diário Volta ao Mundo

jamais senti medo ou estive preocupado com ação terrorista de qualquer tipo. Por outro lado, quando estive falando com o primeiro colombiano, este me advertiu dos perigos e da impossibilidade de atravessar seu país sem sofrer graves atentados contra minha vida.

Assim sendo, se hoje me encontro na última fronteira para deixar a Colômbia e durante os 1580 km que rodei por ela com a gorducha, sem sofrer nada, posso dizer que o "impossível" ocorreu. Este momento me faz lembrar uma passagem bíblica, escrita no livro de Lucas que se lê assim: Porque para Deus nada é impossível.

Ou seja, vivo para realizar o impossível em nome de Deus. O impossível neste momento significa querer chegar aos Estados Unidos atravessando 10 países sobre uma bicicleta. O inusitado nesta hora é pensar do fundo da alma que Deus fará este milagre. Isto é "fé inocente". Outros a chamam de loucura e há os que chamam de "presunção", acrescentando que o Senhor não tem obrigação nenhuma de fazer este milagre. Não sei bem o que é. Sinto uma atmosfera celeste junto a mim. Estou vivendo cada dia por uma concessão de Deus. A morte tem estado a minha espreita em toda parte. Se fosse detalhar cada instante em que sou livre das garras do maligno, páginas e páginas teria para escrever só sobre isso.

Exemplo: Estava viajando por uma estrada sem acostamento. Era uma rodovia com tráfego intenso de carros, ônibus e caminhões. Um ônibus de turismo se aproximava em alta velocidade. Buzinou para que eu deixasse a pista. Como não havia para onde ir, pois a minha direita estava repleta de buracos, permaneci sobre a rodovia. Em segundos este ônibus passou por mim a mais de 80 km/h. Após sua passagem eu gritei: Glória a Deus e seu anjos. Este grito de gratidão foi motivado por

Page 58: Diário Volta ao Mundo

ver que o ônibus estava com uma das portas do bagageiro aberta, a qual, como uma gangorra, abria e fechava-se conforme a ação do vento. Ou seja, no instante em que o ônibus passou por mim, os anjos de Deus mantiveram esta porta fechada, pois se a mesma estive aberta, seria arrastado por ela.

Por isso continuo avançando mesmo sem ter a certeza que verei o pôr-do-sol do dia seguinte. O bom é que estou agarrado a Cristo como um filho faminto ao seio de sua mãe. Não quero em momento algum afirmar que Deus tem obrigação de dar-me esta vitória. Se Ele quiser, fará. Mas se conseguir alcançar Atlanta da maneira como estou viajando, não fui eu que cheguei, más o Príncipe da Paz quem me levou em seus braços. Deste modo, toda honra e glória será dEle. Serei apenas instrumento para anunciar ao mundo que há um Deus vivo administrando, cuidando, salvando e protegendo a vida dos seus escolhidos.

Após quase duas horas de viagem passando por muitos meandros, manguezais e rios estreitos, a pequena lancha, chamada aqui de "palanca", chega em Unguia. Ao desembarcar verifiquei tratar-se de um vilarejo, tendo atrás de si as montanhas do Golfo de Darién e à frente, águas do mar do Caribe.

Depois do desembarque tenho que montar as rodas da gorducha. Feito isto, sigo em busca de uma pessoa por nome Jairo. O irmão Cesar, de Turbo disse para perguntar no vilarejo que certamente alguém me informaria o endereço de sua casa.

Esta é a vantagem de se morar em um lugar pequeno: Todo mundo se conhece e também reconhecem quando chega um estrangeiro. Foi assim comigo e a gorducha. Logo um jovem em outra bicicleta se aproxima

Page 59: Diário Volta ao Mundo

e me pergunta de onde venho. Disse que estava chegando de Turbo e buscava um homem chamado "Jairo".

Eu o conheço. Sei onde mora. Basta me acompanhar. Assim, localizei em poucos minutos a casa de Jairo. Homem simpático. Animado. Prestativo e atencioso. Após algumas perguntas já estava todo interessado em meu trabalho de missionário. Enquanto almoçávamos ele me fez o convite para pregar na igreja local. Fiquei feliz e aceitei de imediato.

Como realizo apelos após contar o motivo pelo qual faço estas viagens esportivas, o resultado foi o que esperava: várias conversões e decisões pelo batismo.

Por isso este outro apelido que tenho de "caçador celeste", pois estou em busca de almas para habitarem nas mansões celestiais onde quer que se encontrem. Entendi agora porque Deus trouxe-me de tão distante a Unguia porque sabia haver neste rincão da terra pessoas sinceras a espera de um chamado para seguirem a Jesus.

Depois do animadíssimo culto na igreja de Unguia, os irmãos se mostraram muito preocupados quando disse que iria seguir por terra até a cidade de Acandi. Um deles disse que provavelmente eu iria me perder e que muitos já tiveram suas vidas ceifadas viajando pelas florestas do Golfo de Darién. Recebi inclusive a informação que no último grupo que tentou alcançar o Panamá, viajando por estas trilhas, oito (oito) estão desaparecidos, provavelmente nas mãos das Farc's, ou mortos por seus "guias colombianos" para roubar-lhes os pertences.

Disse-lhes que só iria enfrentar esta viagem por trilhas tão somente por não ter recursos para ir em barco.

Logo, outro me disse: Se não tens recursos nem para seguir em barco, onde estão os 600 dólares para apresentar ao serviço de imigração? Caso não possas

Page 60: Diário Volta ao Mundo

provar que tens este dinheiro em mãos, não lhe permitirão entrar no Panamá.

Irmãos, disse, o Senhor proverá. Ele sabe que não tenho este dinheiro. "Alguém" está cuidando disso para mim. Amanhã, cedo, vou iniciar a viagem até Acandi. Não posso desistir agora. Não tenho como recuar. Só vejo uma direção a seguir: a que me leva ao Panamá.

No dia seguinte, as 07hs, estava deixando a residência do irmão Jairo, onde dormi uma noite tranqüila. Na saída sua esposa me deu uma marmita com o almoço dizendo que o caminho é quase sempre deserto e não tem onde comprar comida. Fizemos uma foto de despedida e no último adeus o irmão disse que certamente eu iria ficar perdido nas trilhas das florestas entre Unguia e Acandi. E, preocupado, acrescentou: querido irmão George, você precisa de um guia. Pode iniciar a viagem sozinho. Mas vou fazer o possível de lhe enviar alguém para ajudá-lo nesta difícil travessia. Que Deus o acompanhe até que chegue apoio.

Assim deixei Unguia para realizar aquele que provavelmente seria meu último dia por estradas dentro do território colombiano. Este percurso pelas matas do Golfo de Darién visa dar mais um passo não somente em busca de terras panamenhas, estou fixando meu olhar bem mais longe: Atlanta.

Tenho no momento uma montanha para afastar do caminho da conquista do meu sonho: uma floresta tomada por guerrilheiros.

Pela fé prossigo na certeza de que Deus está aqui. Vem comigo. Meu destino é Atlanta, localizada na

Geórgia, Estados Unidos. Outra vez, até breve...

Page 61: Diário Volta ao Mundo

Colômbia VII

Unguia a Acandi

Estava muito feliz por ter alcançado a cidade de Turbo. A euforia era resultado de ter concluído a travessia de um país muito difícil. No entanto, por falta de alguns dólares, não tive condições de tomar uma lancha desde Turbo até Puerto Obaldia, a primeira cidade pertencente ao território panamenho e fui obrigado a seguir mais um trecho por estradas colombianas antes de passar ao Panamá: Unguia a Acandi.

Após a programação maravilhosa em Unguia (leia em Colômbia VI), deixei a casa do irmão Jairo um tanto preocupado depois de suas orientações e advertências. Foi bem claro de que eu corria perigo de vida ou de ficar perdido dentro da selva nas trilhas entre Unguia e Acandi. Entretanto, é óbvio de que após ter enfrentado tantos perigos em caminhos anteriores, não iria deixar de avançar em busca de mais um passo na direção do meu sonho: Atlanta.

Por isso apertei o ritmo e fui logo deixando para trás a casa que me abrigou em Unguia. Antes de fazer a primeira curva olhei e vi braços estendidos acenando um adeus. Respondi também agitando ao vento e para o alto minha mão esquerda.

Gostaria que este fosse o último adeus desta viagem, mas estou certo de que não será. Pensando nesta questão, não sei dizer o número de vezes que precisei me despedir de familiares, amigos e irmãos nestas andanças missionárias pelos países que já percorri na América do Sul. Se incluir a Colômbia, que já estou terminando, são um total de seis países e mais de 35.000 km. Até Atlanta tenho mais nove nações a visitar. Terei que passar por

Page 62: Diário Volta ao Mundo

Panamá, Costa Rica, Nicarágua, Honduras, El Salvador, Belize, Guatemala, México e Estados Unidos. Faltam aproximadamente 10.000 km. Ou seja, ainda terei muitas chegadas e partidas.

Abraços, alegria, sorrisos e satisfação nas chegadas. Porém, ao ter que ir embora, após conquistar corações sinceros, às vezes corre fios de água pela face. Se não, quase sempre a voz fica silente e o olhar se perde rapidamente na busca de um novo horizonte.

Assim sendo, descobri que não preciso ter apenas músculos, ossos, nervos e mente a prova de fortes emoções. Mas, e principalmente, um coração resistente as intempéries dos sentimentos humanos.

No entanto, não vejo o choro como uma fraqueza do homem. Há momentos em que o melhor remédio para aliviar a angústia da alma é derramar lágrimas. Exemplo disso foi o choro de Cristo por ocasião da morte de seu amigo Lázaro.

Assim fui percorrendo os caminhos entre Unguia e Acandi. Comecei por uma estrada de terra, pedregosa e com areia e poças de lama em algumas partes. Também vez ou outra cruzava um rio de pedras com água cristalina. A estrada é estreita. Em suas margens temos florestas e alguns sítios e fazendas. As partes com selva é onde existe maior perigo, podendo ter algum acampamento dos guerrilheiros das Farc’s.

Estava tão apreensivo que tomei a decisão de esconder meu passaporte e identidade. Enrolei-os em um plástico e os coloquei dentro da cueca. Com isto pensava que caso fosse abordado por membros desta força revolucionária, talvez pudesse ocultar minha real identidade, haja vista que meu “espanhol”, no momento, assemelha-se muito com o falado por aqui. Se conseguisse apenas ser tomado por um colombiano, poderia dar-se o

Page 63: Diário Volta ao Mundo

caso de apenas me roubarem. Assim, evitaria o seqüestro, o qual traria conseqüências terríveis para o ministério do Atleta da fé e toda família adventista que tem me acompanhado.

Com essas preocupações esquentando a mente, avançava pela estradinha deserta ponteada de buracos, lama e pedras soltas, as quais quase me levaram ao chão em algumas descidas. Toda vez que me aproximava de alguma pessoa, estando a cavalo, a pé ou moto, orava rogando ao Senhor livramento das mãos do maligno.

E com dificuldade, gastando o dobro do esforço que usaria por uma estrada asfaltada, vou engolindo os quilômetros com a gorducha: 5, 10, 15, 20 km. Depois de vencer estes, chego em um povoado chamado Santa Maria. Passei direto apenas fazendo aceno com a cabeça para alguns moradores que me olhavam curiosos e sempre rogando a Deus que ninguém tivesse um amor à primeira vista pela “gorducha” e seus equipamentos.

Adiante encontrei uma patrulha do exército colombiano, cercada por uma barricada feita de sacos de areia. Esta preocupação em dificultar a ação da artilharia inimiga mostra o quanto eles temem as forças deste exército paramilitar.

Após passar Santa Maria, o caminho volta a ficar inteiramente deserto. Esta solidão não traz desespero à alma porque me encanta o verde das florestas, a canção melodiosa dos pássaros, o sussurrar do vento nas folhas das palmeiras e o penetrar da vista nas fontes cristalinas, buscando a colorida e exótica vida aquática.

Em realidade, não fosse este compromisso com Deus, eu certamente iria embrenhar-me nestas matas, em busca de cachoeiras e paisagens paradisíacas. Seria capaz de passar dias em total integração com a fauna e flora desta região. Somente o que me preocupa é que há

Page 64: Diário Volta ao Mundo

outros habitantes na selva que não nasceram da mãe natureza. São os intrusos guerrilheiros das Farc’s, que a tem utilizado como esconderijo para reterem pessoas que não tem nada a ver com a sua luta pela tomada do poder na Colômbia.

Por enquanto só tenho me deparado neste caminho com cavalos, burros, touros e vacas. Até aproveito para de vez em quando bater um papo com eles. Todos falam um pouquinho, porém a que mais gosta de conversar são as vacas, especialmente no fim da tarde, quando já terminaram de pastar e estão deitadas junto a alguma árvore frondosa. A boca abre e fecha o tempo todo, num tagarelar sem fim (ruminando)...

Marcando 24 quilômetros no velocímetro da gorducha, alcanço mais um vilarejo. Chama-se Ricardi. Novamente encontro uma milícia do exército da Colômbia. Sua presença traz segurança, mas por outro lado mostra o quanto a região é perigosa e necessita de força militar para proteger os cidadãos. Também passo direto por este povoado, sem perguntar nada ou mesmo comprar algo para comer. O temor é de que alguma palavra pronunciada com um sotaque português me entregaria. Isto seria algo nada confortável por estas bandas. Ou seja, uma “zona vermelha” onde em cada esquina pode ter um informante deste exército paralelo. Por aqui, toda cautela é bem vinda.

Depois que deixei para trás a pequena cidade de Ricardi, volto a estar só e, olhando à frente, vejo dois motoqueiros lado a lado fechando o caminho. Havia apenas entre eles um pequeno espaço por onde passar com a gorducha. Senti o perigo e clamei a Deus que me deixasse atravessar sem ser interpelado por eles. Assim ocorreu. Disse-lhes:

- Bom dia! O qual obtive uma resposta igual.

Page 65: Diário Volta ao Mundo

Segui tranqüilo por uns dois quilômetros, porém um dos motoqueiros me perseguiu. Rápido estava ao meu lado e pediu-me que parasse. Senti sua presença antes mesmo dele chegar e já estava em oração. Sabia que seria presa fácil e tudo dependia de minhas respostas as suas indagações.

- Ola amigo! O que faz por aqui? De onde vens? Este “olá amigo” trouxe alívio ao meu assustado coração. Senti que uma boa resposta dirigida pelo Espírito Santo, me permitiria um salvo conduto.

- Sou um missionário. Pertenço à igreja Adventista do Sétimo Dia e ando evangelizando estes povoados. Já estive em Unguia e sigo para Balboa e depois Acandi. Tenho “irmãos” que vivem lá.

Certo de que meus lábios pronunciaram a melhor resposta, esperei em silêncio. O jovem da moto passou um olhar investigativo. Primeiro pela gorducha, depois pela mochila traseira e dianteira. Depois para mim.

- Quer dizer que você é missionário da Igreja Adventista? Está evangelizando os povoados? Muito bem. Que Deus o acompanhe, siga em paz. Dito isto, o motoqueiro fez meia volta e desapareceu na primeira curva da trilha.

Após passar por este susto e livramento, segui mais tranqüilo e até retirei os documentos da cueca e os coloquei de volta na mochila dianteira. Continuei a forçar as pedaladas para chegar ao próximo povoado antes de Acandi, por nome Balboa. Precisava tomar água e comer um pedaço de pão.

Mas, de repente a estradinha sumiu. Acabou-se o caminho e dei de cara com uma porteira. Fiquei sem saber para onde seguir. Para a direita? Para a esquerda? Em frente após a porteira? Estava em dúvida. Precisava de orientação e não via a quem pedir ajuda.

Page 66: Diário Volta ao Mundo

Logo minha mente me fez recordar as palavras do irmão Jairo quando nos despedimos em Unguia pela manhã: irmão George, creio que você vai se perder nestas trilhas antes de chegar a Acandi.

Neste momento suas palavras se cumprem. Tenho três caminhos e somente um segue em direção do meu destino. Esta situação soma-se a que já tenho arquivada na memória: 600 dólares para poder ingressar em terras panamenhas. Disponho de somente 12 e ainda terei que viajar mais dois dias em barco ou lancha para alcançar uma cidade do Panamá com estradas que permita me chegar à rodovia Interamericana, a qual me dará condições de viajar aos outros países da América Central e do Norte.

São problemas grandes como montanhas. Talvez altos como as cordilheiras da Colômbia. Mas tenho um Deus que me diz assim: Eleve os seus olhos para os montes. De lá virá o teu socorro. Quem te socorre fez os céus e a terra e não cochila nem dorme Aquele que te guarda. Ele não vai permitir que o teu pé “vacile”.

Por isso, olhando para minhas fraquezas e condições não vejo como prosseguir. Por outro lado, fixando pela fé o olhar em Jesus, não vejo como perder esta batalha.

Estou seguindo para a cidade de Atlanta localizada nos Estados Unidos montado sobre uma “gorducha” de aço, alumínio, borracha e plástico. Um destino longínquo que perto está porque o meu sonho voa sobre as asas dos anjos das Cortes Celestiais.

Vem, vem comigo porque Deus está aqui. Atlanta nos espera. Breve, até breve...

Page 67: Diário Volta ao Mundo

Colômbia VIII

O Anjo do Senhor

Estou viajando por trilhas de terra e pedras no noroeste da Colômbia. Minha companheira de viagem é uma bicicleta de alumínio com 21 marchas, feita de tubos grossos e roliços. Estes tubos a tornam pesada, por isso a chamo carinhosamente de “gorducha”. Até o momento ela parece não se importar e temos um excelente relacionamento. Viajamos uma média de 100 km todos os dias e juntos nesta maratona esportivo-evangelística já ultrapassamos a marca dos 4000 km pelas estradas do Brasil, Venezuela e Colômbia. Ainda precisamos rodar mais de 10.000 km para alcançar nosso alvo, a cidade de Atlanta, na Geórgia, USA.

Às vezes as coisas não são bem como a gente pensa. Na Colômbia, todos me diziam que seria muito complicado chegar em bicicleta até a cidade de Turbo. Caso eu conseguisse atravessar esta região perigosa em paz, era só pegar uma lancha ou barco e descer no Panamá para voltar a encontrar estradas e seguir pela Rodovia Interamericana rumo ao estado do México. Fiz o percurso “perigoso”. Alcancei Turbo. Pensei que agora estaria entrando no paraíso, ou seja, após um “passeio de lancha”, voltaria a rodar pela Rodovia Interamericana.

Más, como disse acima, certos acontecimentos na vida, às vezes, não vivemos bem da maneira como esperamos. Por falta de um conveniente suprimento financeiro, deixei de cruzar para o Panamá em dois dias para fazê-lo agora em cinco. As etapas previstas são as seguintes: Turbo x Unguia (lancha), Unguia x Acandi (por trilhas na selva), Acandi x Capurganá (lancha), Capurganá

Page 68: Diário Volta ao Mundo

x Puerto Obaldia (lancha) e por último, Puerto Obaldia para Miramar (primeira cidade panamenha que tem estradas de acesso a Interamericana). Tenho comigo três mochilas: uma no bagageiro traseiro e outra no dianteiro. Levam objetos de uso estritamente essencial. Se algo está pesando e fica sem utilidade por algum tempo, é logo descartado pelo caminho.

A terceira mochila é invisível. Não sei nem mesmo onde está localizada. Eu poderia chamar esta mochila extra, a terceira, de “mochila da fé”. Isso mesmo. Creio que carrego algo que não tem peso, forma, cor ou tamanho definido. Algo que não posso tocar. Não posso ver... Só posso sentir. Todavia busco constantemente. Até aproveito para definir biblicamente o que tem no seu interior:

- Fé é a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem. Ou seja, quando enfio a mão nesta mochila especial, só vou conseguir tirar algo, se exercer uma fé extrema. E, me alegra saber, que é exatamente o pleno exercício desta fé que me faz uma pessoa agradável a Deus.

Tenho consciência que fui muito audacioso diante dos Céus quando sai do Brasil dizendo que estava indo aos Estados Unidos participar da 59ª Conferência Geral montado em uma bicicleta. Imagino o alvoroço que provoquei junto ao Exército de Anjos Celestiais quando a notícia foi alçada ao trono de Jesus Cristo.

Quero antecipar deixando registrado que esta atitude ousada, este modo de ser destemido, foi “Ele” quem me ensinou, pois, no “manual” onde aprendi a lutar por alcançar “aquilo que não se vê”, diz assim:

- Sem fé é impossível agradar a Deus. Não posso, nem devo me comparar a Noé,

Abraão, Moisés, Josué ou Davi. No entanto, entendo que

Page 69: Diário Volta ao Mundo

vivemos em um mundo no qual precisamos exercer a fé desses ilustres antepassados. Temos que crer que há uma “arca da salvação” (a igreja). Temos que nos esvaziar de nós mesmos e “doar a nossa vida”, para recebê-la de volta revestida da imortalidade. Devemos avançar sobre os “mares” (Moisés) e “rios” (Josué), na certeza que chegaremos a um porto seguro. E, quando houver inimigos que pareçam imbatíveis por serem maiores e mais fortes do que nós, confiemos que não lutamos sozinho e que este cairá aos nossos pés vencidos (Davi).

Essas colocações retratam exatamente o momento por que passo agora. Cheguei nesta travessia de Unguia para Acandi em um “beco sem saída”.

Desde que inicie este desafio, nas estradas de Roraima, na região norte do Brasil, algumas vezes deparei-me com encruzilhadas levando a vários destinos. Porém sempre havia uma placa ou onde buscar a informação da direção certa a seguir. Quando deixei a vila de Unguia, fui avisado que iria me perder.

Mas, devido à audácia, a ousadia, a intrepidez, a autoconfiança de que “não ando só”, sai na fé de que algum milagre ocorreria caso me visse perdido. E, vivo isto neste exato momento. Estou parado em frente a uma porteira. Há trilhas a direita e a esquerda. Há outra em frente.

A pergunta é: - Qual o caminho certo? São dez da manhã e estou sozinho. Em meus ouvidos ainda soam as palavras do irmão Jairo:

- Você ficará perdido. Você precisará de ajuda. Onde buscar a informação? Com as vacas gordas

da fazenda que pastam preguiçosamente sem dar ouvidos a ninguém? Com o cavalo negro, de porte altaneiro e olhar orgulhoso que ouço relinchar nos campos verdes e que não para de afinar os cascos? Com o gavião? Ave

Page 70: Diário Volta ao Mundo

habitante das nuvens, que passa em vôo rasante e desaparece no ar, sem ter nada para falar. Ou será que as formigas roçadeiras que avançam em marcha como um exército além dos moirões da porteira, seguem na direção do meu destino? Mas, infelizmente, não vejo a “jumenta de Balaão” para lhe perguntar que rumo devo seguir.

Certamente não estou tão só por aqui. Lindos animais me cercam junto com um céu todo azul.

Depois de alguns minutos vivendo a situação de estar perdido pela primeira vez, meus pensamentos são quebrados pelo barulho de uma moto. Esta se aproxima de mim devagar e montado sobre a mesma vem um rapaz magro, moreno, vestido de bermuda jeans e camisa de manga azul e portando um óculos no rosto. O termômetro da auto defesa entra no vermelho até que vejo um sorriso em seus lábios e ouço sua voz dizendo:

- Ola, irmão! Como está a viagem? Respondi ao seu sorriso e a sua pergunta: - Está difícil. Não sei qual caminho seguir para

chegar a Acandi. Estava exatamente esperando aparecer alguém para dar-me esta informação.

- Eu conheço as trilhas para Acandi e fui enviado pela igreja para escoltá-lo até uma parte em que não se perderá mais.

Acrescentou o simpático e sorridente jovem. Vários atletas já se dispuseram a acompanhar-me

em alguns trechos desta travessia continental. Em Pedraza, Venezuela, dois irmãos montados sobre bicicletas de corrida, seguiram-me por 8 km. Em Bucaramanga, Colômbia, quatro ciclistas adventistas, três em bicicleta e um em carro, foram meus companheiros por 32 km. Em Barbosa, também Colômbia, outros dois atletas do pedal juntaram-se a mim por 15 km. Porém,

Page 71: Diário Volta ao Mundo

todos envolvidos aos seus compromissos diários, tiveram que retornar aos lares.

Por isso estou surpreso porque este rapaz está dizendo que foi “enviado” para guiar-me pelas trilhas até Acandi.

- Você é da igreja de Unguia? Indago outra vez. - Sim, eu estava no culto ontem à noite. Escutei

sua mensagem. Quero acompanhá-lo, guiá-lo e protegê-lo nesta selva até próximo a Acandi. Vamos, siga-me!

Após esta resposta ele abriu a porteira, segurou-a e pediu-me que entrasse.

Ao ingressar por este caminho, a pequena estrada de pedras, lama e areia acabou. A partir deste ponto o percurso era de grama e pasto. Andar por asfalto com uma bicicleta já se gasta muita energia. Viajar por estradas irregulares contendo pedras, areia ou barro, é mais difícil ainda. Agora andar por pasto alto e grama, é muito, mais muito mais desgastante.

Este é no momento o cenário que estou enfrentando aqui no Golfo de Darién, noroeste da Colômbia. A região a minha esquerda é tomada por florestas verdes e com árvores altas e exuberantes. Mata fechada. Parte preservada e algumas áreas tomadas por fazendas com algumas cabeças de gado.

Do meu lado direito, ao longe, segue o mar do Caribe. Possui águas de um verde marinho turquesa que deixa a vista extasiada. Como, além de missionário, de caçador de almas, aprecio muito ser um explorador de paraísos ecológicos, estou muito a vontade neste lugar.

Más só posso dizer, sentir e respirar a beleza em volta, após a chegada do meu “anjo” guia e protetor. Antes de ele aparecer, meus passos estavam sendo calculados e meus olhos perscrutavam toda pessoa suspeita ao longo destas trilhas. Por exemplo, jamais

Page 72: Diário Volta ao Mundo

invadiria a porteira de uma fazenda sem antes ter alguma autorização do seu proprietário ou gerente.

Porém estou seguindo o jovem motoqueiro por toda parte. Ao terminarmos de cruzar uma fazenda ou sítio, logo ele descobre um caminho estreito, uma trilha ou uma nova porteira e avança, sempre pedindo para segui-lo. Assim vamos atravessando diversas propriedades sem retornarmos mais para a estradinha de terra por onde comecei a viajar inicialmente.

Ao indagar sobre o porquê de estarmos passando por estas zonas rurais, ele me diz que é um atalho e que o caminho é mais seguro. Assim sendo, sigo-o de olhos fechados sem lhe fazer mais perguntas. Ele avança com sua moto por trilhas nas florestas, nas fazendas e sítios. Atravessa charcos e rios e sempre me vendo na sua retaguarda.

Ele diz ser um irmão de minha igreja e eu o tomo como um anjo enviado por Deus. Não fosse por estar aqui, após verificar o tanto de obstáculos que já passamos, certamente estaria perdido, desorientado e aflito.

Depois de horas pedalando duramente nestas veredas descalçadas, sinto fome e sede. Parecendo adivinhar meus pensamentos, o “anjo do Senhor” encosta a moto junto à gorducha e pergunta se estou bem. Digo-lhe que estou suportando o cansaço, porém tenho fome e sede.

Ele deixa-me. Avança sozinho. Sai da fazenda e entra numa floresta. Faz várias curvas e pára adiante. Quando o alcanço, após entrar em um trecho arborizado, sinto meu tênis molhar numa corrente de água. Quando olho a esquerda, vejo um veio forte de água cristalina, doce e fresca descendo por entre as pedras lisas.

Neste lugar fizemos a primeira parada longa do dia. Tomei banho nestas águas e matei a sede. Aproveitei

Page 73: Diário Volta ao Mundo

para dividir com o anjo a marmita que a irmã de Inguia me ofertou. Arroz, ovos mexidos e banana frita.

A seguir continuamos a jornada por terrenos difíceis de pedalar contendo charcos, lama, grama e pasto alto. Voltamos a atravessar as propriedades rurais e já iniciando à tarde, entramos outra vez numa parte de florestas. E uma vez nesta, verifiquei que havia próximo um rio e o meu guia motoqueiro se adiantou e cruzou-o por uma ponte de cabos de aço e piso de madeira.

Quando fui seguir o mesmo caminho, ao chegar junto à ponte, percebi que estava dentro de um acampamento de soldados. Olhei em volta e vi várias barracas de tecido camuflado e roupas estendidas em varais. Também no meio do camping tinha uma panela grande em um fogão de lenha improvisado.

Logo um dos soldados ali presente, vestindo apenas short, sem camisa e boné na cabeça, corre em minha direção e fecha a passagem para a ponte. Outros observam seu gesto apenas assentados preguiçosamente com seus fuzis encostados sobre um tronco de árvore. Vejo ainda outros cortando madeira para a panela com facas nas mãos.

Após ter sido parado, imagino estar em uma destas situações:

1 - No meio de uma milícia do exército das Farc's. 2 – No centro de um pelotão do exército

colombiano. No primeiro caso, muito triste, pois eu não

estaria seguindo um anjo, mas um inimigo que me conduziu direto a uma cilada.

No segundo caso, melhor. Seria apenas mais um obstáculo a enfrentar, porém também perigoso caso fosse identificado como estrangeiro.

Page 74: Diário Volta ao Mundo

Ao ver o soldado estático diante de mim, impedindo a passagem para a ponte, meu coração começou a bater mais forte. Meu “anjo” guia estava do outro lado e seu olhar foi “disparado” em minha direção.

Há um soldado do exército da Colômbia adiando meu grito de vitória neste dia.

Preciso vencê-lo e prosseguir minha jornada. Estou tão longe de Atlanta. Meu sonho. Meu

destino. Meu alvo. Atlanta é na Geórgia, Estados Unidos. Vem comigo, porque sinto, sinto mesmo que Deus

está aqui. Até breve...