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MARCIO JOSÉ DE LIMA DEVANEIOS EM PROSA (Contos) 1

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MARCIO JOSÉ DE LIMA

DEVANEIOS EM PROSA

(Contos)

1

APRESENTAÇÃO

A presente obra trata-se de um conjunto de contos. É uma

obra ficcional. Ficção... aqui tratada como a Arte do

Fingir. Mas, não somente o fingir por ele mesmo. E, sim

um fingir com uma finalidade literária, da manifestação

útil e doce da Arte.

Despertar no homem a sensibilidade, buscar fazê-lo

enxergar no outro, fingida ou não, sua dor, e senti-la

como se fosse sua. Eis, talvez um dos maiores trunfos da

Arte Literária... Ela consegue? Depende de cada um de

nós. Deixar ou não, ser sensibilizado.

A você, uma boa leitura!

O Autor.

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3

Agradeço a Deus acima de tudo

E a minha família pelo amor recebido.

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ÍNDICE

SINESTÉTICA: Um amor em um momento....................5A LENDA.......................................................................72O ACHADO MISTERIOSO ..........................................75UMA NOITE SOLITÁRIA............................................84BONECO DE NEVE......................................................91NA MALHA FINA.........................................................96O SERVO......................................................................104

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SINESTÉTICA: Um amor em um momento.

A dieta da luz

Era um dia como qualquer um outro na vida de

Sinestética. Ela comentava com suas amigas que chegara

ao limite do seu peso e que haveria necessidade urgente

em começar um regime, precisava manter-se saudável. A

amiga mais magra e mais vaidosa, por consequência,

comentava que ouvira falar de uma super dieta da luz.

Sinestética e Monavir nunca ouviram falar, mas queriam

saber como que era essa dieta. A esguia explicava que se

ela não estava enganada era uma dieta praticada pela

esposa do imperador do Japão ou da China, não tinha

muita certeza de qual país ela era. Só lembrava que a

mulher ensinou: “era como que colher laranjas em uma

árvore imaginária em um dia de sol e pronto”. Era só

tomar água e comer luz. Todas riram muito. Despediram-

se e cada uma foi para sua casa.

Todas solteironas, todavia, Sinestética era a única que não

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tivera namorado até agora. Dizia-se feliz como era:

solteira e morando sozinha, embora a sua vida fosse uma

imensa monotonia.

A noite chegou e os pensamentos voaram. Sinestética

decidiu começar a dieta. Aquela noite comeria de tudo. E

na manhã seguinte começaria a comentada abstinência de

alimentos. Comeu muito. Teve que dormir sentada porque

passou mal.

Primeiro dia da Dieta

Chega a manhã. Três grandes copos de água foram seu

alimento. E como uma doida varrida começou sua

colheita de laranjas imaginárias. Deve ter colhido quase

uma caminhão imaginário - pensou. Riu muito. Quase

rolou de rir. Sentiu-se feliz. Com a barriga roncando – no

entanto – feliz.

Doméstica era sua profissão. Fazia com tanta dedicação

seu serviço que ao final do dia tudo parecia que tinha

recebido um toque de mágica pelo brilho dos móveis e

7

pelo agradável perfume de limpeza que exalava da casa

que cuidava.

Mais uns dois litros de água, tomou no almoço. Precisava

se alimentar. E imaginou-se colhendo de novo as

imaginárias laranjinhas. Saiu ao quintal e pôs-se a colhê-

las. Uma mãozadinha aqui, outra mãozadinha lá e mais

uns cem quilos colhidos. Que delícia – delirou ela. A

vizinha que estava no sobrado ao lado observava a

doméstica pela janela de vidro fumê. Ah mais uma doida

fazendo a dieta da luz – afirmou – isso não vai dar certo.

Se bem que se essa ficar um ano sem comer não vai dar

muita diferença. - Riu maliciosamente a crítica vizinha.

A barriga parecia que tinha um caminhão roncando.

Pensou nessa hora em tantas coisas. - Um boi inteiro

assando no espeto. - Acho que vai ser pouco. – delirava a

caprichosa secretária do lar. Sentou-se um pouquinho,

antes de terminar o segundo piso. Olhou uma barra de

cereais que trazia na sua mochila. É agora, lá vai ela. Não

vai resistir. Seus olhos se arregalaram. Seus lábios

desapareceram. Vai comê-los. – Não vou c-o-m-e-r! E

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realmente não comeu. Pôs-se a trabalhar.

A tarde chegou. Hora de ir para casa. Mais uns quatro

litros de água. Saiu na janela e começou a colheita. Só

que agora imaginou uvas. Uma colheita de deliciosas

uvas. Contava duzentos e três cachos deliciosamente

colhidos. Água na boca. Um barulho na barriga. E um

turbilhão nos olhos. – Vou me sentar. Pensou “isso

passa”. Enfraqueceu-se. Suou um pouco. Suou mais

ainda. Quase lavada de suor resolveu tomar banho.

No banho começa a lembrar de tudo que comera até ali.

As guloseimas, os bolos, os salgadinhos um mais gostoso

do que o outro: coxinha, risólis, pastéis, quibes, e outros...

Seus pensamentos em abrupto ímpeto mudam de direção.

E o intento cada vez fica mais forte: emagrecer, ficar

bela, saudável e quem sabe conseguir um amor – casar.

O banho termina. Ela vai para frente do espelho.

Observa-se, admira-se, gosta-se. Nunca se olhara daquele

jeito, nunca se gostara tanto. E a pergunta da aflita: - será

que já emagreci? – Riu. Comentou: – que precipitada eu

sou. Já quero resultado.

9

As primeiras horas da noite lhe são muito extensas,

demoram a passar. Esta sensação lhe era estranha. A

fome. A dor no estômago. Os delírios por comida. -

Quantas horas demoram esses minutos? – pensou

Sinestética. - Eu vou sair para ajudar a passar o tempo

mais ligeiro. Talvez eu me esqueça um pouco dessa fome.

A rua estava muito iluminada, pois era noite de lua cheia.

Lembrou-se do brilho da luz. Resolveu sentar-se no

banco da praça e ficar ali a se alimentar da luz da lua. –

Agora vou colher o quê? Já sei vou colher lírios. – As

flores naquela noite estavam muito iluminadas. A igreja

branquinha parecia que possuía luz própria. Os holofotes

iluminavam toda a extensão da praça. Dando impressão

de que era dia. Observava as crianças correndo no

parquinho, brincando muito. Via a felicidade nelas, seus

sorrisos ecoavam e a cada um deles era como se ela se

saciasse um pouco mais. Um sorriso da molecada lhe

apagava uma lembrança de um salgadinho. Um beijo de

um pai ou uma mãe em filho - um tipo de docinho lhe

saía da vontade de comer. E isso começava a lhe dar

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prazer. Os namorados na praça se beijando – davam-lhe a

seu paladar o doce do mel, o frescor da menta. E isso lhe

deu muito prazer – extasiada - por um minuto ficou

atônita. Não entendia bem o que era isso. Mas, gostou.

Quando se sentiu realmente alimentada, decidiu caminhar

um pouco. Esqueceu de sua colheita. Achou que não

precisaria mais se alimentar naquele momento. – Estou

cheia! Agora tenho que caminhar pra gastar essas calorias

a mais. – balançou a cabeça em sinal de autossarcasmo.

O calor daquela noite lhe dava sede. Resolveu voltar para

casa. No caminho tudo lhe era - de certa forma – novo. A

maneira como olhava para cada coisa era diferente. Sua

vida parecia ter outro sabor. E algo lhe batia no peito

galopante, mais intenso – talvez a vida se renovando –

filosofava.

Chegou em casa depois de caminhar bastante. Tomou

muita água, precisava digerir tudo o que viu-viveu.

Fazia muito tempo que não observava as estrelas. Decidiu

sair e louvá-las, decifrá-las. Esta noite elas estavam muito

belas, pareciam um shake de escuridão e luz. Alguns

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minutos observando dava-lhe uma paz sem igual. Sentia

que seus horizontes se estendiam para mais longe. Pensou

ser um cometa. Viajava por entre estrelas e planetas, mas

se emocionou realmente quando passou pela terra e viu

um planeta azul com sua grandiosidade e beleza. Pensou

em sua perpetuação – pensou eu sua preservação –

pensou-se como criação – pensou na paz entre os

homens. A viagem terminou. E estava na hora de dormir.

Deitou-se, agradeceu a Deus por mais um dia. E como

uma criança que conheceu algo de novo no mundo

dormiu como um anjo.

Segundo dia da dieta

O sol brilha. Com uma energia fora do comum, sente-se

mais viva do que no dia anterior. A fome já não lhe

incomoda. Dirige-se à pia e toma seus dois litros de água.

Agora sente que a água tem mais gosto. Delicia-se a cada

gole de água tomado. Veste sua roupa. As cores

escolhidas por ela deveria naquele dia ser verde e branca.

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Com esta mistura de cores determinaria que seu dia fosse

de paz e esperança. – Paz e esperança. - Riu. Não sabia

bem o porquê. Mas deveria ser assim...

Saiu de casa e, antes de iniciar o trabalho resolveu passar

na igreja. Teve uma imensa vontade de agradecer a Deus

pela manhã, pelo canto dos pássaros, pela noite bem

dormida, pela natureza, e por tantas coisas que se fosse

agradecer por cada uma perderia a hora do trabalho. Fazia

muito tempo que não rezava. Fazia matutinamente o

caminho casa-trabalho e trabalho-casa, poucas vezes

passava na igreja rezar, a pressa lhe determinava o trajeto

– como se tivesse o compromisso de chegar em casa em

determinado horário.

Começou a notar as pessoas. Suas expressões avivavam

nela sentimento de curiosidade - o que pensava cada uma,

suas histórias, seus sofrimentos, suas vitórias...

Em sua frente ia uma moça de vestido azul escuro.

Resolveu, como quem não manda em seus atos, conversar

com ela. Mas como? – pensou. Simplesmente decidiu.

Cumprimentá-la com um alegre bom dia. E assim fez. A

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moça alegremente retribuiu.

- Que belo dia hein? – falou Sinestética.

- Parece que hoje vai ser de sol. – retribuiu a moça de

azul num tom de intimidade.

- Está indo pra que lado? –

- Estou indo para o meu trabalho que fica em frente do

cinema. Trabalho em uma livraria. E hoje tem o

lançamento de um livro. Preciso arrumar a exposição. O

Autor vai estar lá. Tem coquetel e tudo. Se você quiser ir

lá será à noite. O escritor dará uma breve palestra de

apresentação de seu livro.

- Quem é ele? Qual o nome do livro?

- Trata-se de um escritor novo, ele possui uns oito livros

lançados, o nome dele é Maximilliano Di Bruno - é um

pseudônimo. O livro é sobre o poder da mente e

neurolinguística.

Sinestética riu muito. Pediu desculpas mas falou que não

sabia o que era esse negócio de “neuro... neuro...”

- Neurolinguística. – Traduziu a moça. – Eu também não

sei muito sobre isso, mas ouvi falar que é algo que ajuda

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as pessoas a serem mais felizes se entenderem mais.

Dizem até que as pessoas podem mudar suas vidas. O

livro pelo que ouvi falar tem a ênfase em tornar as

pessoas mais confiantes. Dizem que ele ajuda a superar

algum de nossos traumas do passado e vivermos melhor.

- Parece muito interessante. Vou fazer o possível para ir.

- Tenho aqui um convite. Você aceita?

- Sim é claro.

As duas se despediram e Sinestética seguiu seu caminho.

A casa em que trabalhava parecia-lhe maior do que os

outros dias. Parou em frente e ficou a admirar a sua

forma. Era um sobrado em estilo alemão. Havia na frente

um bonito jardim. As janelas eram grandes. As cores da

pintura eram creme e marrom escuro. Havia no jardim

uma estátua de São Francisco de Assis. – História de

doação e amor. – Pensou ela. – É tem que ter coragem e

muito amor pra fazer o que este homem fez. Desprender-

se de todos os bens e viver uma vida de abstinência e

doação.

Abriu o portão eletrônico e entrou. Na entrada da casa

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sentiu uma forte dor na barriga. A fome lhe voltou. A

tontura também. Entrou na casa e foi direto para a

geladeira. Tomou um gole de água. Melhorou um pouco.

Tomou mais água e sentiu-se melhor. Saiu no jardim e

abaixou-se tocando em petúnias, sentiu suas folhas, suas

flores, e isto a fez melhorar. Voltou para casa. Começou

seu trabalho que foi concluído antes do almoço. A hora do

almoço - que ela comeria - foi dedicada ao jardim.

Regou-o, tirou as daninhas, e passou um inseticida não

tóxico para cuidar das pragas. Retornou à estátua de São

Francisco tocou-lhe a mão. Admirou os pássaros que

faziam seu cortejo e pensou na integração do homem com

o animal. Que luz os atraía? Que luz tinha este homem?

Sentou-se. Ficou vendo as joaninhas, as abelhas, os beija-

flores, as folhagens.

O tempo passou e já alimentada pela natureza sentia-se

satisfeita. Com mais força retorna ao trabalho. O dia de

trabalho termina. Liga o alarme e segue para sua casa.

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A palestra

Chega na sua casa. Checa sua caixa de correios - somente

cheia de contas a pagar: água, luz, telefone e crediários.

Imagina-se recebendo cartas de amigos, parentes, até de

admiradores – quem me dera, secretos; também de

valores a serem creditados em minha conta. Gargalhou de

sua medíocre condição. – Ah a esperança, florzinha que

rego diariamente e que teima em nascer...

Tomou um banho rápido. Tinha que chegar a tempo na

palestra. Sentiu-se um pouco fraca. Lembrou-se da janta.

A luz já tinha se ido e agora? Somente lhe restava a água.

No caminho de casa pegou água mineral de dois litros.

Tomou de um gole só mais ou menos um litro e meio.

Sentiu o doce da água, também sua salobridade - sentiu

um pouquinho de seu caminho, imaginou-a viajando por

rios e mares – mas isso foi só em um repente e retomou a

sua missão arrumar-se para ir ao evento. Pegou em seu

guarda-roupa sua mais bela vestimenta, um conjunto

muito bonito de jeans e uma batinha azul-escura com uma

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plataforma que nunca fora usada, aliás como todo o resto.

- O que será que vai acontecer lá? Nunca ouvi falar nisso.

Vou fazer feio... Aliás vou só conhecer melhor sobre isso

– na verdade nem estou interessada nesse negócio de

neuro... qualquer coisa – vou conhecer pessoas diferentes.

Quem sabe...

Sinestética não tinha o interesse por palestras. Sempre

evitava multidões. Seu interesse no máximo era ir fazer

visitas em pizzarias, lanchonetes, em petiscarias e na casa

de suas amigas Monavir e Tiseta. Sentia-se estranha.

Sentia algumas vontades novas. Amava ultimamente as

leituras fúteis, mas por alguns instantes pensava nos

clássicos, em alguns problemas do homem. O ócio na

maior parte do seu tempo era seu amigo e a tevê sua rede

para embalá-la ao sono dos finais de semana e às noites.

Agora, sua vida dava uma guinada, se via toda arrumada

para um lançamento de um livro nem sabia de quem, nem

sabia para quem, nem sabia por quê. E, quem diria? Toda

arrumada, mais bela do que nunca.

Com o convite em mãos chegou em um hotel muito

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elegante no centro da cidade. No hall a nova amiga estava

dando boas vindas aos presentes. Ela foi ficando por ali

mesmo. – Já chegou muita gente? – Você é a primeira.

Riu discretamente a amiga. – Nem o escritor chegou.

Prometeu que estaria aqui na porta. A propósito me

chamo Durvalina, pode me chamar de Dorva. Minutos

depois começam a chegar os convidados. Parece que

ficaram na esquina amontoados combinando em

chegarem juntos. Também chegou o escritor.

Cumprimentou-as com um largo sorriso. – Essas são

minhas fiéis escudeiras? Brincou Maximilliano. Dorva

cumprimentou, como se estivesse em êxtase, um mega

star. – Nos falamos a maior parte do tempo só por

telefone, precisamos nos ver mais. Joseph está lá em

cima. Ele dará as boas-vindas às pessoas na sala de

palestras. Já está tudo arrumado. O coquetel ficará a

cargo do hotel. Tudo em ordem. – Agradeceu

exaustivamente Maxi. – Era como queria ser chamado.

O olhar de Maxi e Sinestética se cruzaram de forma

meiga e verdadeira.

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- Essa sua amiga é?

- Sinestética, muito prazer. – A esta altura Siné – era

como queria ser chamada ali pelo menos – estava muito à

vontade ajudando Dorva que entre um boa noite aos

convidados e uma palavra com Maxi organizavam a

recepção e davam um tom intimista ao lançamento – o

que era elogiado pela imprensa ali presente bem como

por alguns críticos de plantão que taxavam o

comportamento do autor de acordo com a linha de

pensamento adotado em seus livros: - a valorização do ser

pelo ser. Sem distinção - como se fosse um serviçal que

de fato o era - resolveu não vender ali nem um de seus

livros – o que era feito por Joseph lá em cima.

- Não se preocupem autografo depois os livros. –

Tranquilizou o simpático escritor.

A recepção foi tranquila. As pessoas estavam à vontade. A

amizade de Dorva e Siné começou a se desenhar.

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O Triângulo

Siné percebeu que Dorva olhava cobiçosamente Maxi.

Ele com olhar fugidio desviava a admiradora, voltando-se

para Siné. Tudo se apagava ao seu redor como se aquilo

não estivesse acontecendo a ela como se as pessoas não

estivessem ali – só enxergava aquele que em um instante

roubou seus sentimentos – amor à primeira vista -

pensou.

Dorva percebeu que havia um clima romântico entre os

dois. Um leve toque na mão quase que imperceptível

entre os dois selou tal desconfiança.

- Ah que bela amiga esta. – Ruminava Dorva.

Todavia, resolveu manter-se discreta. Morria ali – em

seus pensamentos medíocres - a possibilidade de uma

amizade verdadeira. Mas quem realmente saberia o

destino desta amizade?

- Dorva passou a observar Siné. Seus gestos suaves, sua

profundidade de pensamento – embora não fosse de falar

muito – era preciso – falava com veemência e sabedoria.

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A dor veio-lhe em segundos ao seu peito. - A ladra de

coração – pensou.

- Quem é esta mulher misteriosa? - Respirava Maxi. O

acontecimento já lhe rendera a oportunidade de conhecer

aquela bela moça que exalava um perfume de rosas. Seus

cabelos escuros davam-lhe um charme sem igual

contrastando com sua pele clara com algumas sardinhas

próximas ao seu aquilino nariz.

- Você... sentimento que nasceu em meu coração como se

estes minutos que passamos aqui fossem triplicados com

tão agradável companhia. – Maxi, falou quase que

automaticamente corando frente a Siné, frase ouvida por

Dorva que teve em frangalhos seu palpitante coração.

A recepção estava feita. Era subirem à sala. Siné falou

que subiria. E o fez, entrando na sala cheia, deixando para

trás Dorva e Maxi.

Dorva aproveitou o ensejo e atacou Maxi, roubando-lhe

um beijo no elevador. Maxi atônito vermelhou, nada

falou. E ambos chegaram ao salão sem mais nem uma

palavra proferida.

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Joseph compôs a mesa chamando alguns repórteres e um

vereador da cidade que se fazia presente. Maxi expôs

durante quarenta minutos o mote do encontro, falando

extasiado sobre a experiência do livro que tratava de

forma profunda – mas segundo ele – com linguagem

simples vulgarizando teorias tão complexas como a

filosofia existencialista e a teoria da relatividade de

Einstein. Os focos principais eram: a ajuda ao homem

para se perceber como homem e; aproveitar seu tempo

dando-lhe uma elasticidade promovida pelo prazer de

uma vida vivida em sua plenitude - do homem que

aprecia um simples lírio ao homem que descobre Deus na

grandiosidade complexa das relações humanas.

A eloquência de Maxi fazia Siné voar por suas palavras,

tudo parecia tão claro, tudo tão profundo, viajava numa

nebulosa de saber-amor-prazer.

Dorva era ensurdecida pelo ciúme. Os recônditos da sua

mente eram abrigados por estratégias de conquistas. –

Como não pude perceber esta traidora no primeiro

encontro. Seus olhos ligeiros, seu sorriso malicioso.

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Quanto fui tola. Chamá-la ao meu lado. O lobo vem à

casa do cordeiro. Ruía-se por dentro Dorva.

A palestra acabou, os convidados se retiraram, Joseph

levou as autoridades para um jantar. Saiu dizendo que

aguardaria Maxi assim que ele terminasse ali.

Ficaram Dorva, Maxi e Siné no final. A conversa fluiu em

torno do sucesso que foi o lançamento do livro. Maxi

elogiou desmedidamente a competência de Dorva. – Esta

foi a melhor apresentação que já participei. Muita

simplicidade, objetividade, e de um profissionalismo sem

igual. Dorva corou e orgulhou-se. Agradeceu afirmando

que o evento foi o sucesso que foi pela qualidade do

trabalho do escritor que não merecia que fosse diferente.

- Irei fechar a conta. Vocês vem comigo? – Falou Dorva.

- Não, ficaremos aqui. Preciso conversar com Siné. Vou

chamá-la para trabalhar em meu consultório. Você achou

uma auxiliar à altura da qualidade do evento, preciso de

alguém assim a meu lado. Declarou Maxi – provocando

mais ainda a ira de Dorva.

Os dois a sós. Siné ainda extasiada pela eloquencia e

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charme de Maxi. Parabeniza-o. – Você topa sair comigo

logo após o jantar? Convida meio que descrente Maxi.

Rindo discretamente, com a humildade de uma jovem

inexperiente – aceita.

- Temos muito que conversar. E com um discreto beijo

incendeia as bochechas de Siné. O que é flagrado pela

admiradora de Maxi que fica tristemente parada no final

da escada que dá acesso à cena.

Despendem-se deixando primeiro Siné em sua casa.

Segue levando Dorva ao jantar. – Nos vemos... diz Maxi.

– Té Miga. Brigadão... A gente se vê. Despede-se Dorva.

No carro ao sair para o jantar Maxi deixa claro a Dorva

que o relacionamento entre os dois seria apenas

profissional. Desculpa-se afirmando: - Dorva não é por

nada, você é uma mulher atraente, muito inteligente,

madura nos seus atos e palavras, mas... podemos ser

amigos e só... acho que encontrei a pessoa que há muito

procuro. Siné sua amiga... – Ela não é minha amiga –

braveja Dorva. – Ela foi alguém que conheci no momento

errado. Tudo bem podemos ser amigos? Mas assim que

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você se decepcionar com aquela imatura estou esperando

por você. – Ambos aceitam a condição, e sobem sem

nada se falar, para o jantar.

O Amor bateu no coração

Siné vai para a geladeira pega de sua água e a consome

como se estivesse no deserto. Meio que aturdida não

compreendia o que estava acontecendo em sua vida. –

Tudo tão diferente em tão pouco tempo... – balbuciava a

si mesma. Nunca um homem havia a olhado como Maxi.

– Aqueles olhos, aquela expressão sábia, sua boca, sua

voz, seus cabelos, sua sensibilidade, sua inteligência. –

Quantas palavras para descrever o que o coração não

entendia, somente sentia. Mais do que nunca a

necessidade de conhecer o mundo para impressioná-lo

fazia-se presente. – Quero saber mais. Quero viver mais.

Quero viajar mais. Quero me embelezar. Quero ser feliz.

Tudo isso com meu amor. Jogou-se de cabeça – com

palavras – no amor de um desconhecido, que o sabia

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assim, todavia por alguma razão lhe transmitia confiança.

A lua ainda iluminada no céu com brilho se assemelhava

a um grande copo de leite alvo, luminoso, inspirador.

Ela pôs uma roupa leve e saiu na escada de sua casa que

dava para o quintal. De lá ficou a se alimentar da luz da

lua, dos sonhos ao lado do seu amado, das verdadeiras

amizades como Dorva que lhe oferecera até ali o que nem

uma amiga lhe tinha oferecido – a oportunidade de ser

feliz, de sonhar, de conhecer pessoas diferentes – embora

não soubesse o que se passava nos pensamentos de sua

rival amorosa. Isso Siné não sabia, pois Dorva

dissimulou-se muito bem. Sempre prestativa, sempre

sorridente, sempre pronta a responder atenciosamente o

que Siné perguntava - aparentemente uma pessoa sensível

e autêntica. Talvez tenha sido desfigurada pelos

flamejantes dragões do ciúme - quem sabe?

Os planos foram inevitáveis voltar a estudar. Decidiu

voltar a estudar, preparar-se para o vestibular, pois havia

três anos que tinha se formado no ensino médio. – Quero

fazer psicologia. Decidi. – Quero fazer poemas. Aliás,

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esta noite vou fazer um. - Adorava poemas. Eles a faziam

sentir-se melhor. No entanto poucas vezes pegou da

caneta para compor um. Eis a oportunidade. E num

ímpeto queria ler sonetos. Queria fazer para o seu amor –

por ora platônico – sonetos. Eles ajudariam também

explicar sua paixão. Talvez idealizá-lo como um cavaleiro

que a acompanharia, que estaria a protegê-la como a uma

donzela em perigo.

O resultado de algumas horas tentando foi festejado logo

que saiu a primeira estrofe em um velho caderno:

Meu amor, que de longe imaginado

Pensava existir somente em estrela

Distante, outrora só em meu fado

Acendeu em mim, da esperança, a centelha.

As tentativas se sucederam e adormeceu sentada no sofá

não conseguindo continuar a segunda estrofe.

Às duas horas da manhã. Bateu-lhe à porta Maxi. Meio

que atordoada abriu-a. Surpreendeu-a com um caliente

28

beijo. E a noite lhe ofereceu a inspiração que precisava

para terminar seu soneto. O que foi descrito logo de

manhã após Maxi ter se despedido com beijo - enquanto

ela dormia - deixando o número de seu telefone e as juras

de amor eterno presas pelos ímãs em sua geladeira num

bilhete: “Que desta noite ecoe o mais puro amor dos

nossos corações. Tomei a liberdade de ver seus versos.

Amei-os. Bjs.”

Emaranhei desejo não gozado

Em gotas de orvalho na lapela

Nunca havia deste mel experimentado

Sinto-me agora tinta em sua tela.

Controlava, o pecado, meus conceitos

E você, meu amor, os olhou se quer

Com carinho ignorou meus defeitos

E com amor selou uma mulher

Que jamais sonhara tais deleitos

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Que docemente em minha vida se fez mister.

Dia de folga.

Ainda atônita perguntava-se era digna de tanta paixão.

Nunca imaginou que em tão pouco tempo começaria em

sua vida um momento deveras sublime.

A fome lhe veio como algo inesperado, como o verme

que lhe rói as vísceras. Com ela a sensação do

esgotamento tomou seus membros. Resolveu caminhar

para esquecê-la. Foi até a uma fonte no centro da praça

próxima à sua casa. Lavou-se: a cada vez que tocava sua

face lhe vinha à mente suores, ofegos, calafrios,

felicidade... Embora, a felicidade fosse um mar em que se

encontrava submersa, estremecia-se suas entranhas e o

medo do amor frustrado toldava-lhe por alguns instantes

a luz que cintilava sorrisos na alma que cobriam as mais

densas lembranças de uma vida sofrida. Aqui-agora-

felicidade, pensou.

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Vestia amarelo claro. Sentia na boca o gosto do

enxaguante bucal que lhe enjoava. Sentou-se em um

banco bem de frente à igreja. Os raios solares, lambiam-

lhe o rosto, refletidos nas águas da pequena lagoa em que

nadavam alguns patinhos. A água naquele dia tinha que

ser reflexivamente apreciada goles calmos no fundo

ensalobros, salgado-doce. O coração sentia-o bater

aceleradamente. Mais água, os patos pareciam não se

mover, aliás tudo parecia não se mover – pelo menos é o

que parecia.

Apreciou um velho ipê amarelo. Seus galhos cobertos por

um ponche verde claro davam-lhe uma imponência real.

Lembrou-se do rei Salomão, suas riquezas, sua sabedoria,

sua mortalidade, do sermão do padre na quarta-feira de

cinzas, da simplicidade dos lírios da praça... O sofrer

pelas coisas terrenas. A correria do dia a dia em busca de

se eternizar por um momento, em um mísero momento. O

fato de não ter que animalescamente perder a eternidade

para garantir um tórrido pedaço de pão. Riu-se, xingou-se

“boba, isso não é tua realidade! Esquece. Ô ô volte à tua

31

aguinha!”

Sua voz ordenou para que voltasse de seu momento de

reflexão. O homem às vezes se animaliza na busca de

seus ideais, esquece de sua origem subliminar e prende-se

ao predatório materialismo. Espiralava seus sentidos tal

reflexão. “Já sei a fome. Quero mais água”. Saciou-se por

mais alguns segundos.

Não queria se lembrar da incrível noite – o medo do

abandono a atormentava – a eternização daquele

momento era seu locus amoenus. “Aprazíveis caminhos

me levam ao meu Amor. Seu celular... Vou ligar... Nem

que eu queira meus dedos não me obedecem, nem minha

razão... Não posso ser aquela que rasteja... Mas é o meu

amor... Não posso...”

- Minhas amigas. – Lembrou-se de suas amigas. Mas de

todas Dorva era a que lhe puxava o fio da memória.

Admirava-a, sua paciência, sua sabedoria, seu

conhecimento. – Minha mentora. – Balbuciou.

32

As amigas

Já não se sentia tão faminta. Dirigiu-se à livraria em que

trabalhava Dorva. Ao chegar à vitrine da loja um choque

correu-lhe à vértebra. O livro de Maxi exposto, um

grande folder à porta com a fotografia de Maxi segurando

o fruto de seu trabalho e o slogan “Viver um fardo? Ou

um presente divino? Você faz a escolha.”

Para ela a escolha do amor gerava-lhe uma dúvida,

mesclada de satisfação e esperança.

Ficou alguns segundos em um plano diferente daquele em

que estava. As coisas ao seu lado ofuscaram-se. Maxi saía

do folder lhe abraçava, satisfazia-lhe, saciava-lhe,

entendia-lhe. Maxi talvez não soubesse a que intensidade

incendiara esta rica criatura. O amor de Siné era algo que

– segundo muitos - não existe mais em nossos dias. Em

pouco tempo - como uma adolescente – entregara-se aos

encantos de uma paixão.

A mulher degladiava-se com a inocente criança que

habitava os recônditos de sua essência. A primeira

33

alertava-a à possível decepção, à superficialidade dos

relacionamentos, à maturidade da mulher que não se

aprisiona, mas deixa a paixão livre como um cavalo

selvagem. Já a segunda... possessiva, louca de paixão... a

entrega certa... a espera do príncipe encantado... algo

edipiano; o casamento; a casa limpinha... a dona de casa,

a comidinha, os filhinhos, os cachorros, as juras de amor

eterno...

Alguém a desperta com leve toque ao ombro. Com um

sobressalto interrompe-se a divagação. Olha para trás e

Dorva lhe recepciona com um largo sorriso. Siné a abraça

sinceramente. A amiga – pensou: porto seguro, conselho

certo.

- Como vai você? Desculpe-me o jeito. Onde você

estava? – sorriu maliciosamente Dorva.

- Longe, muito longe. Aqui no meu peito tem um navio

que navega sem rumo. Ora no mar, ora no cais. – Filosofa

Siné.

- Ah malandrinha, apaixonada não é?

- Digamos que... talvez...

34

- Seus olhos não enganam. Maxi é um Don Juan com as

mulheres, um legítimo gentleman. Esse Maxi. – apontou

com o dedo – Não se entregue fácil. É das mais difíceis

que ele mais gosta. - Alertou tardiamente Dorva.

Siné só sorriu.

- Maxi esteve aqui hoje cedinho. Ele passou aqui assinar

o contrato com a editora. Joseph estava muito contente

com a expectativa positiva do livro frente às vendas. Já é

um sucesso. – Comemorou Dorva.

Siné sorriu.

– Ele é muito inteligente. Inteligência e carisma são um

prato cheio para o sucesso. Reafirmou Dorva.

- E você como está Dorva?

- Estou ótima. Vou ganhar uma promoção. Vou ser

responsável pela turnê de Maxi. Vou viajar com ele no

lançamento do livro na Europa por uns três meses.

Depois me estabeleço na França por mais seis meses na

filial de lá me aperfeiçoando e volto para gerir os

negócios aqui no Brasil na região sul. – Extasiava-se

Dorva comemorando oceanicamente.

35

Os olhos de Siné arderam, a palpitação, a falta de ar.

Engoliu tudo isso a seco e falou:

- Que bom! Quando vocês viajam?

- Daqui uns quinze dias. – Pausa.

- A propósito você não quer trabalhar aqui? Uma de

nossas atendentes vai ficar no meu lugar e vai sobrar uma

vaga o que você acha? Joseph amou seu trabalho, você

ontem se saiu muito bem. Vou acertar com você, você foi

ótima. – Dorva acatou muito bem a ordem. A discrição

era pedido de Maxi para que Siné não desconfiasse que o

pedido viera dele. Ele acreditava nela, mas, quem daria

trabalho nesta área para uma pessoa que não tem muito

conhecimento em literaturas. Deveria ela conhecer muito.

Mas isso não era problema para Siné gostava de leitura,

embora não tivesse ainda frequentado uma faculdade. Era

autodidata, aprendia com a vida, aprendia com a natureza.

– Um espírito inquieto, uma mente limpa, um coração

mais limpo ainda, uma malícia pueril que decifrava o

espírito das coisas. Talvez foi isso que só Maxi percebeu.

O conteúdo e não o frasco daquela incomensurável

36

fragrância.

- Amei o que fiz ontem. Não se preocupe aprendo rápido,

amo livros. Aceito o emprego. Quando começo? –

Abraçou Dorva agradeceu-a exaustivamente.

A situação era nova. Poucas vezes decidiu tão

prontamente por alguma coisa. Sabia que o desafio era

grande. Mas que engrandecida sentia-se. Era uma

sensação de felicidade e um dedinho de preocupação com

seus patrões. Sempre confiaram nela... e assim sair de

repente, deixá-los na mão. Eles entenderiam, - pensou, -

sempre torceram por mim e sabem que o meu momento

chegou. Tenho que voar, tenho que conhecer coisas

diferentes. Sempre estivera anônima na multidão. Os

rostos das pessoas lhe pareciam não focarem em sua

direção. Sempre uma anônima. Mais uma carinha

assustada que caminha na rua. Seus sentimentos, sua

vida, sua história, não interessava a ninguém... às vezes

nem a ela que procurava recalcar tudo que a fazia infeliz.

Tudo que a diminuía. Sua tristeza embora embalasse seus

dias, empurrava-a à uma vida diferente de sublimação de

37

apreciação das coisas pequenas: do canto dos pássaros,

das flores amarelinhas que faziam sua vida mais feliz, dos

cachorros na rua com seus olhares tristes, solitários,

famintos, às vezes doentinhos... Chorava por não poder

cuidá-los como deveria, o tempo lhe era pouco. Cuidava

poucos dias, encaminhava-os a alguém que pudesse criá-

los, o último que adotou morreu... Decidiu por um tempo

não tê-los. A posse: quem tem quem? Síntese quase

perfeita: homem x cão: amizade e não solidão. Pensou

“Seria muito infeliz se não tivesse sido curada da solidão

pela presença em minha vida no momento em que mais

precisava de um amigo cão”.

Dorva selou neste momento, sem perceber, um contrato

de amizade. Uma amiga verdadeira. Daquelas que briga

por aqueles que a cercam.

38

Por outro lado, na ótica de Dorva, teria Siné por perto.

Vigiaria sua concorrente. Pelo fato de como mencionou

que seria companhia a Maxi em sua turnê já causou –

bem no íntimo de Siné – ciúme. Dorva comemorava o

fato de quem ficaria com Maxi seria ela. Era uma questão

de tempo e em poucos dias seriam um casal.

Que mesquinha sou eu! Por que estes pensamentos me

rondam? Não posso pensar isso. Esta pobre alma amou

aquele homem... Ela confia em mim... Pobre menina

perdida...

Por um instante Dorva compadeceu-se de Siné.

A viagem de Maxi trazia ao coração de Siné a realidade

dura, dura realidade, e, isso a puxava ao seu mundo.

“Sei que Maxi não gosta de mim!” O conflito entre

paixão possessiva e consciência desconcertou Siné. E por

alguns segundos entregou-se à figura de amiga. – Talvez

eu seja a ele uma amiga, mais uma em sua vida. Seja o

que for, foi ótimo.

Um calor imenso corou Siné e Dorva notou. Mas não

39

comentou, apenas percebeu que fazia algum tempinho

que estava falando sobre o trabalho. O que deveria fazer.

Ela balança a cabeça e pede que ela continue.

- Vamos tomar um café assim a coisa flui melhor. E

Dorva sai com Siné como duas amigas confidentes,

traçando planos de quando ela começaria.

- Você folga hoje, amanhã você começa. Acerta a tua

vida. Tudo bem? Sorriu Dorva muito prestativa.

Siné festejou mais uma vez: carteira assinada, uma

chance diferente, um universo diferente...

Por outro lado a família que há dois anos a adotara seria

deixada. Sentiu-se traidora. Mas a mudança teria que

acontecer e o pedido de conta: o choro, a despedida, o

início de uma nova vida.

A tarde do Passeio

40

Siné resolveu retirar-se do mundo pois precisava refletir

sobre sua mudança repentina de vida. Tudo a aturdia: o

amor, a dieta, o novo trabalho, novas amizades, passou a

gostar-se.

Saiu diretamente do café e embarcou no ônibus. Ao

adentrá-lo as pessoas a fitavam alegremente. Algumas a

olhavam com inveja. Interrogava-se se era para ela

mesma que olhavam. Não se sentia neste momento como

antes – invisível ao olhar das pessoas – era como se uma

luz despertasse aqueles que a cercavam. Sentou-se na

poltrona. A brisa daquela tarde entrava alegre pela janela

lavando-lhe ainda mais suas desilusões passadas. Sentia-

se linda, sentia-se desejada, sentia-se como se a vida lhe

valesse a dura pena que pagara até aquele momento... “a

dor me edificou, hoje mereço o que vivo pela imensa dor

que senti. Valeu ser uma boa moça e ter um amor

verdadeiro, pelo menos o meu é verdadeiro, e é isso que

realmente conta.” No seu interior Siné sabia que a sua

dor não era tão imensa como daquelas pessoas que

sofrem de doenças, ou daquelas que sofrem privadas da

41

liberdade, ou males maiores. Todavia, havia algo nela que

poderia ter-lhe tirado a vida. Sentia que às vezes não

tinha liberdade, pois não a vivia na sua mais profunda

significação. Vivia presa dentro de si mesma. Havia de se

libertar. E essa nova vida estava lhe oferecendo a

oportunidade de sair de seu interior e no mais íntimo de

seus desejos viajar muito longe. Absorver a vida que

raiava nas manhãs e que ela por muito tempo a ignorou

optando por ficar na escuridão que toldava seu desejo de

presenciar coisas tão simples como o raiar de uma manhã

ensolarada.

Junto com a brisa veio-lhe gritinhos. Era da filhinha de

uma senhora que estava com uma pequena menina. A

criança chamava-lhe a atenção. Como se quisesse

conversar com ela. Sorriu-lhe altivamente e se escondia

atrás da mãe. Fez várias vezes e Siné retribuía com um

sorriso tão largo quanto o da menina.

- Linda menina... uma princesinha. – Falou Siné

elogiando meio que timidamente.

- Ela realmente é muito linda, é minha meninha. Não é

42

filha? - Encolheu-se muito mais a criança quase que

desaparecendo atrás da mãe.

- Você tem filhos? Indagou a mãe da menina segurando a

menina que queria sair do colo.

Siné respondeu: - Não. (pausa) - Mas tenho veneração

por elas. Elas me relembram um tempo em que somente

as crianças me eram verdadeiras.

A mãe sorriu meio reticente. – Elas nos entendem,

embora sua consciência de mundo seja limitada e

ingênua, seus olhinhos veem coisas que nós adultos não

enxergamos. Elas nos pregam, às vezes, uma imensa

lição.

Siné encantada com a meninha viajou a sua infância.

Infância dura de uma família de poucos recursos. O pai

era biscateiro e a mãe trabalhava como diarista. Seu pai,

semianalfabeto, assim como a mãe. Mas a honestidade e

o valor à vida – pela vontade de sobreviver - era o que

segundo eles deixariam a ela. O pai sempre lhe falava:

“te darei estudo filha e ele não é tudo, mas é o que não

podem te tirar, meu maior presente a você. Enquanto eu

43

puder te sustentarei para você estudar”. Esta possibilidade

não durou muito tempo, haja vista ter tido a necessidade

de trabalhar bem nova para ajudar sua família no sustento

da casa. Ajudava sua mãe de manhã e à tarde ia para a

escola. Sua sofrida vida nem era percebida. As dores lhe

açoitavam, no entanto, com sua valentia as suportava, e

no fundo acabava até se divertindo com as poucas coisas

que lhe davam prazer. “Siné é muito madura para idade

dela” falavam as amigas da mãe. Essa menina um dia será

alguém na vida. A inteligência de Siné era elogiada pelas

patroas da mãe. “Uma menina com olhar vivo, com

atitudes vivas, e uma luz muito grande.” Foi assim que

foi definida Siné por uma historiadora dona de uma das

casas em que a mãe dela faxinava. “Eu lhe darei alguns

livros e você os leia, assim que puder te darei mais.

Conseguirei para você uma carteirinha da biblioteca.”

Esse foi um dos maiores presentes que Siné ganhou, pois

lhe traria uma lucidez de espírito que a faria forte em sua

caminhada.

Trabalhando, estudando, vivendo. As dores lhe eram

44

diversões, fortaleciam-lhe. Sua sofrida vida passava e os

sofrimentos não lhe eram assimilados. Mas, com o passar

do tempo veio-lhe a ansiedade. E sua dieta calórica,

oferecida pelos poucos recursos, lhe daria os contornos os

quais odiaria e lhe faria – como vaga desculpa – infeliz

com sua aparência. Mesmo assim, no seu interior, dizia-

se feliz, e seus pais até o final de sua adolescência sempre

estiveram com ela dando-lhe companhia e força para

suportar as dificuldades da vida e a sua desenfreada

busca, quase que inutilmente, em entendê-la. Lembrava-

se também que às noites o pais contava histórias e não

raras as vezes seus pais cantavam embalados à luz do

lampião. Definia aqueles momentos como sua riqueza,

sua integridade. Seus pais cuidando - instintivamente -

em seu pouco entendimento, da integridade emocional da

filha, queriam que ela não se ferisse. Protegê-la, pois ela

era a eles “sua menininha”.

Aproximava-se o ponto de parada precisava descer. Beija

calorosamente a menina no rosto, bem como sua mãe e

desce. “Você valeu o dia!” disse docemente Siné

45

despedindo-se.

Havia perto de onde ela desceu um santuário. Tirou as

sandálias e andou pela grama até chegar à capela central.

Uma pequena capela em volta muitas árvores ao longe

um vale. Precisava olhar longe libertar sua mente. O céu

tocava o verde. Sentou-se embaixo de uma árvore. O

canto dos pássaros se fizeram sua música, relaxava-a. A

lucidez precisava fazer-se amiga dela, pois nesse

momento ela precisava mais do que nunca ser lúcida.

Entendia que a felicidade podia ser momentânea e neste

momento ela poderia toldar-lhe seus sentidos.

Rezou alguns instantes. Entregou a Deus suas decisões.

Entregou a Deus seu amor por Maxi.

Ficou o resto da tarde ali. Depois foi para casa.

As juras de amor

Quando chegou próximo a sua casa viu que o carro de

Maxi estava estacionado em frente. Sentiu uma imensa

alegria, e também insegurança. Não sabia o que falar.

46

Gostaria de poder encantá-lo, mas a criatividade é um

animal selvagem. Às vezes não conseguimos domá-lo, às

vezes nem conseguimos nem se quer vê-lo.

Maxi estava sentado na pequena varanda que havia na

saída para o jardim.

- Olá? Como vai? – perguntou Maxi.

- Muito bem e você?

- Já conseguiu assimilar a nova vida que você viverá

daqui para frente? – Sorriu Maxi.

- A maior mudança aqui é você. – Justificava Siné, com

um largo sorriso.

Ele a beijou suavemente, pegou suas mãos. E interrogou:

- você não vai me convidar para entrar?

Siné sorriu novamente e abriu a porta. Abre toda a casa.

Sentam-se na sala.

A conversa foi longa. Haviam coisas para serem tratadas.

Maxi disse que era como se ele a conhecesse há muito

tempo. Não precisava conversar muito com ela para saber

que havia algo de muito bom nela.

- O que você viu em mim? Não tenho nada de

47

interessante. Sou uma menina sem a metade do seu

conhecimento de mundo. Você é viajado. Não sei nada de

você.

Nesse instante Maxi põe levemente a mão nos lábios de

Siné e suavemente pede que ela não fale mais nada. Beija

carinhosamente sua mão. E diz: - amanhã você entenderá.

Poderia te dizer tudo o que senti por você. Mas passei a

tarde inteira escrevendo sobre isso. Seria tautológico.

Portanto amanhã leia minha crônica que publiquei sobre

nosso amor. Peço desculpa se expus a gente. Mas

precisava falar para o mundo inteiro. Eternizar um

momento que para mim foi um dos mais felizes da minha

vida. A mulher que sempre sonhei. Mas... Amanhã você

lerá e entenderá tudo. Agora vamos aproveitar este

momento.

Resolveram sair. Precisavam aproveitar o tempo. Maxi

dispensou seus compromissos e entregou-se a Siné.

- Vamos jantar depois, vamos ao cinema.

Não sabia da dieta de Siné. Logo saberia. Ficou meio

atônito, todavia resolveu respeitar. Não sem antes

48

aconselhá-la como quem tem conhecimento de causa, por

ter como aconselhadas várias meninas que sofriam de

anorexia.

- Você não sabe o quão triste é o sofrimento dessas

meninas, o quanto sofrem suas famílias e aqueles que as

amam. Pense profundamente no que você está fazendo.

Na livraria você encontrará vários livros a respeito do

assunto.

Siné contra-argumenta afirmando que não está passando

fome, só mudou seu alimento. E desde que mudara, sua

vida também mudou. E agora ela se sentia muito feliz.

- Olhe Maxi. (pausa) Desde que mudei meu foco de vida

cresci muito. Talvez não seja o momento de eu parar. Eu

supervalorizava algumas coisas. E não aproveitava

outras. Deixei de me alimentar da vida. E é isso que

entendi.

Sentada à mesa com Maxi se alimentava de suas palavras

de sua preocupação, de seu amor quase que paternal. E a

noite passou agradável. Com cada um contando sua

história de vida.

49

Mais Siné falava, Maxi só ouvia como que se sonhasse.

A crônica

Maxi saiu antes de amanhecer. Um bilhete na geladeira:

“os sonhos que mais nos prendem são aqueles a que nos

entregamos sem nem uma reação. Um agradável dia a

você. Um início ótimo de trabalho. Boa sorte. Passo à

tarde aqui. Com amor Maxi.”

Siné era toda empolgação. Seus olhos flamejavam. Era

um sonho que não sonhara, mas que o vivia com

intensidade. As colegas de trabalho a receberam com

bonomia. Foram simpáticas e dispostas. Embora uma

delas, a mais velha, aparentemente falou com ar de graça

“aqui se muito trabalha, pouco se ganha, mas muito se

diverte, boa sorte colega. Aliás livros novos chegaram,

você já tem o que fazer. Axulina você ensina Siné na

catalogação?”.

Era um ambiente bem arejado, uma iluminação ótima,

havia uma sala de leitura com confortáveis almofadas, um

50

ambiente Hi-Fi, e tudo que uma livraria bem montada

precisava ter, inclusive um ambiente infantil com salinha

de leitura e jogos lúdicos. Era algo muito agradável a

Siné. O saber batia em sua porta. Ali com certeza

aprenderia muito.

Axulina chegou com um exemplar do jornal de circulação

regional em mãos. Falou a Siné. Dorva pediu que eu o

entregasse a você. Tem algo muito importante aí que te

interessa. Siné continuou catalogando. Observava as

pessoas que entravam. E cada uma delas apresentava um

ar que despertava nela o interesse de saber um pouco de

suas vidas. Aproximava-se para vê-las qual eram suas

preferências de leitura. Estudava-as e sem perceber a cada

pessoa que entrava arriscava mais ou menos a que sessão

se dirigiria – algumas vezes acertava – e isso se fazia uma

interessante brincadeira. As colegas às vezes não muito

simpáticas abandonavam os clientes muitas vezes nem

perguntando no que se interessaria. O que desejaria. E

assim passou a manhã. Dorva chegou perto da hora de

Siné sair para o almoço. Abraçou-a e falou:

51

- Siné hoje estou conversando com algum de nossos

clientes e fornecedores, caso você precise de alguma

ajuda só você me ligar te deixo meu número de celular

com você. Ligue não se apure. Se você precisar de algum

livro para você se familiarizar temos todos em versão

digital. Alguns dos editores nos abrem para conhecermos

seu conteúdo com sinopses muito interessantes. A senha

te entregarei também. Não se envergonhe em perguntar.

Todas as meninas estão muito bem aconselhadas em não

te deixar na mão. Você é minha amiga. Eu não vou te

deixar na mão (insistiu). – Dorva falava ligeiro Siné só

balançava com a cabeça concordando. – A propósito

tenho que ir ligeiro em casa almoçar, à tarde continuo

com meus serviços externos. Até mais Siné. Amanhã

conversamos mais. Beijão.

Dessa forma sem Siné dizer alguma coisa Dorva falou

com uma das meninas e saiu apressada.

Logo após sai Siné para a hora do almoço.

52

Curiosa Siné dirigiu-se à igreja. Benzeu-se. Sentou-se e

tirou de sua bolsa o jornal. Foi folhando até chegar na

coluna de Maxi. E começou a ler:

“O amor em sonhos e realidades. Prezados leitores.

Sempre venho a vocês semanalmente falar das relações

humanas e suas dificuldades. Atualmente tenho vivido

um conto de fadas. Lembram-se vocês de alguma vezes

ter citado em minhas crônicas uma mulher que sempre

sonhei? Era minha companheira ideal. Não digo que não

tenho que agradecer às muitas mulheres a que conheci e

que muitas vezes traçamos histórias muito felizes.

Decepções vivi sim. E mesmo elas me ajudaram a definir

o meu padrão do que realmente quero para minha vida.

Agora volto a falar de minha companheira ideal. Vejam

só os senhores. Sairei de minha formal maneira de

escrever baseada na ciência para de maneira – quase que

coloquial – traduzir o que estou vivendo. Há poucos dias

no lançamento de meu último livro havia feito um pedido

aos céus. Que precisaria conhecer alguém especial. E foi

nessa mesma noite que conheci. Eu antes mesmo de

53

conhecê-la pessoalmente já a imaginava há muito tempo.

A descrição era a mesma: fisicamente, intelectualmente e

sentimentalmente. Ela poucos dias, em forma de sonho já

havia se apresentado a mim. Seu rosto não conseguia

enxergar, mas sua voz para mim era clara, era a mesma da

mulher que me ajudou ter sucesso num dos eventos mais

importantes a que participei. Meu maior contrato com

uma editora. Minha maior chance de minha vida.

Sobretudo minha noite mais feliz depois de tantas que se

passaram como que se fosse a repetição de outras opacas

noites. Saliento que sua luz era sem igual. Sua aura de

bondade era um coisa fora do normal. Sua aparência

física era completada por uma sabedoria, daquelas

imanentes, daquelas que nasce com a pessoa. Confesso

que ela não precisa dizer muitas coisas. Como já falei, eu

já a conhecia. Senti medo disso. Mas o amor é maior. As

viagens que fiz me conduziram para caminhos

desconhecidos. A cada uma delas a novidade me trazia

algo um pedaço do desconhecido e necessário à minha

vida. Sinto que de todas as viagens amorosas essa é a que

54

mais tem a me trazer algo novo. (Desculpo-me aqui aos

meus amores passados a que tenho muito que agradecer).

Confesso que pensei que não confessaria nunca um amor.

Principalmente a vocês leitores. Nunca fui tão pessoal nas

minhas escritas destinadas a vocês. Mas achei que esta

seria a chance de me fazer conhecer – uma pessoa

sensível, leitor de poesias, que se emociona com um

filme, que se emociona com a natureza, que se compraz

com aqueles que padecem, e que também sofre, mas não

deixa de acreditar. Em meus artigos, vocês sempre

encontrarão um pouquinho de mim. Hoje vocês tiveram a

chance de ver muito de mim. E isso graças a uma mulher

que colocará com certeza nos meus próximos livros – se

ela mesma quiser – um charme maior às minhas

manifestações por quanto tempo ela assim desejar.

Termino hoje afirmando que vale a pena se entregar ao

amor, ele é o remédio a todos os males trazidos pelo

tédio. Uma ótima e iluminada semana.”

A quinzena de amor

55

A crônica de Maxi aumentou ainda mais o amor de Siné,

bem como a admiração do público-alvo de seus livros que

o viam como um homem da ciência que escrevia

friamente, mas não de forma vazia, sobre o homem e seus

recônditos – suas fraquezas e seus caminhos alternativos

para sair da depressão e enfrentar de frente este mundo

capitalista predador. Este conflito, admiradores e Siné não

perturbava Maxi que tinha bem claro seu caminho, seus

ideais – ter filhos, viver um grande amor, fazer

profissionalmente o que sentia prazer: escrever.

Os quinze dias passavam rapidamente. Siné não

abandonou sua dieta que já não a incomodava – o sol, as

alegrias, as idas a lugares floridos ou em que a natureza

cantava silenciosamente uma canção, a igreja, aos

templos, suas amizades, seu novo trabalho que a cada dia

mais a impressionava pela riqueza que possuía as

infinitas páginas das obras que se ofereciam

carinhosamente a ela – que servia como mediadora entre

objeto desejado e ávido consumidor. Enfim alimentava-

56

se, às vezes, enfastiando-se de vida que se fazia

abundante ao seu lado.

Esses dias foram transcritos em uma poesia em seu

diário:

“Fez-se enfim primavera

Fez-se em mim felicidade

E a quinzena... Já era.”

A viagem de Maxi

Chegou o dia da viagem de Maxi. Abre-se aqui um

parêntese para comentários a respeito do tempo. Os dias

antes da revolução na vida de Siné eram muito extensos –

a sua dor – muitas vezes sem motivo, pareciam

infindáveis. Suas mágoas regurgitavam em suas vísceras

e o tempo regurgitava dessa forma. Seu sofrimento diário

sempre era novo. No seu interior a dor era intensa –

57

fibromiálgica. Embora buscasse externar-se como pessoa

feliz, sorridente, muito pronta a tudo, quase uma mãe de

suas amigas. Era estoicista, sofria por suas amigas, por

ela mesma, pelo mundo, pelas estrelas... Agora as

novidades de uma vida radiante aceleravam sua vida,

páginas novas no livro de sua existência, eram páginas

prazerosas de serem folheadas e quando revistas

reavivavam mais ainda seu dia a dia. Tornou-se solidária,

agora, de sorrisos, de bons conselhos, porém sem deixar-

se contaminar pela dor do outro. Sentia prazer e, ser fonte

de luz aos outros. Uma nova vida.

Com essa radiância acordou ao lado de seu amado. As

malas estavam prontas. Era o dia. Maxi afirmou que

noivaria com ela no retorno e, ela ficava na incumbência

da organização do noivado. Sentou-se aos pés de Maxi a

olhá-lo era como um sonho que ainda não acreditava: o

amor em um tempo em que sentimentos puros são raros

em meio a tanta atitude mesquinha com o semelhante em

que as pessoas parecem ter saído de um iceberg.

O avião partiria às 15 horas, até lá buscaria fazer o que

58

pudesse para disfarçar a Maxi a imensa saudade que iria

sentir e a que já estava sentindo mesmo antes da partida.

Precisava ser forte. E de fato o dia foi muito agradável,

conseguindo aproveitá-lo mesmo diante de tal situação.

O fato que mais marcou o dia de Siné, foi Maxi ter feito

um noivado simbólico no meio da praça. O que ele fez a

Siné, foi tirar suas sandálias, ele tirou os seus sapatos.

Embaixo de um pé de plátamo, apanhou um galho de uma

flor branca fazendo-o à forma de uma grinalda, no celular

o toque da marcha nupcial. Mas, o cortejo da natureza e

dos pássaros foi o que mais impressionou o momento –

embora não planejados – pareciam que o fora. Siné achou

muito engraçado, muito espontâneo, Maxi parecia muito

feliz, mais do que nunca, e seu sorriso ora quase que

orbital, seus olhos em chama não o deixaria mentir diante

de tão grande evento: natural, original, poético. Ao fim

selaram um amor, uma aliança. E devido à demora, quase

que Maxi perdeu o avião, saiu um pouco do

planejado. Dorva estava preocupadíssima – ligando sem

parar a Maxi. Até que ele chegou e ela se sentiu aliviada.

59

- Cuida bem dele Dorva.

- Cuidarei como meu irmão. Não se preocupe Siné.

Siné abraçou calorosamente Maxi, em seus olhos o amor,

em seus olhos a saudade, em seus olhos uma história que

parecia não ter fim. O choro-riso inevitáveis. Olhar vivo

de ambos: o amor celebrado em de uma rica e

transparente taça de cristal.

- Contigo vai meu coração.

As lágrimas em seu olhos marejados caíram timidamente,

sua tez resplandeceu, e uma indescritível fragrância floral

foi sentida por Maxi, as flores abençoando uma união.

A solidão

Siné sentiu-se muito só. Em seus primeiros dias sem

Maxi ainda ecoavam seus momentos de felicidade ao seu

lado. Com o passar dos dias o sol já não brilhava para ela

da mesma forma. Nem os e-mails de Maxi com as fotos

dos lugares aos quais visitara conseguiam colocá-la para

cima.

60

Certo dia quando caminhava na rua, viu um senhor

sentado na calçada. Era um dia muito quente. O homem

lhe pediu uma moeda para comprar pão. Ela parou e

enquanto procurava em sua carteira moedas o senhor a

interrompeu.

- Minha filha você está triste. Não se preocupe. (pausa)

Ele voltará.

Ela pegou as moedas e as entregou ao pedinte.

- Este homem não merece seu sofrimento.

- Como assim? – Indagou Siné.

(até aqui) - Ele trairá você com sua melhor amiga. – Meio

que sussurrou o homem com um imenso bafo de cachaça.

- O senhor não conhece meu noivo. Não me conhece.

- Não o conheço. Mas sei que ele não é fiel a você.

61

Siné sentiu um choque correr por se corpo. Sua garganta

quase que se fechou, seu coração palpitou. Suas mãos

suaram. Sua mente pedia-lhe que não contra-

argumentasse, que nada falasse – afinal era somente um

bêbado – alguém fora de seu juízo normal. Mas, tem

coisas que a razão não explica, como o nosso corpo reage

instintivamente quando provocado.

- O senhor diz isso porque a maior parte das pessoas trai.

Nós somos muito felizes. Ele não vai me trair.

Num súbito impulso Siné deu por si e resolveu sair dali.

“Esse senhor está blefando. Quanto sou tola, dando

importância ao que diz esse bêbado.” Quando se afastou

um pouco mais, o senhor insistiu:

- O escritor... O escritor vai te trair.

Aí foi o golpe final. Siné fitou profundamente aquele

homem. Formigava seu estômago. O medo apoderou-se

de seus sentidos. E, ela afastou-se rapidamente com os

olhos marejados. A angústia. A dúvida. “Não vou

acreditar... Esse bêbado com certeza conhece Maxi... Ele

deve ter nos visto.” Assim pensava, assim esperava, assim

62

rezava.

Mesmo tendo duvidado das palavras do mendigo – pelo

menos era assim que insistia em pensar – elas ecoavam

em sua mente. Agora a dieta era também de noites

dormidas. Os seus livros lidos passaram a ser os

ultrarromânticos. A dor. A nostalgia. A fuga. Trabalhava o

dia todo e à noite se internava na leitura. Suas amizades

se preocupavam com ela, mas o telefone não o atendia.

Os e-mails de Maxi ficaram sem resposta e os colegas de

trabalho entregavam inutilmente os recados a ela. Os

postais chegavam à sua casa esbofeteando-a como uma

imensa mão que trazia escrita em seus vãos dos dedos a

palavra: traição.

Siné resolveu conversar com o mendigo. Dias ela desviou

o caminho em que ele poderia se encontrar. Todavia,

chegou o momento em que ela enfrentaria seus temores.

Aproximou-se da esquina em que ficava aquela

esfarrapada criatura – pensava-o assim por seu incrustado

ódio. Parou. Decidiu retornar e não o enfrentar. “Não.

Decididamente preciso ir.” O mundo nesta hora girou.

63

Quase desmaiou. Sentia as veias do corpo inteiro, seu

coração a pulsar fortemente. Seus braços estavam

formigando. Passa uma moça com olhar assustado e

pergunta a Siné ali parada.

- Tudo bem com você?

- Só estou um pouco enjoada. Isso pode ser gravidez

minha filha. - Sorriu a moça.

Sentou-se havia esquecido da possibilidade de gravidez.

- Não, não é minha senhora, estou em dia.

- Então pode ser o sol minha filha. Se alimente com

comida leve. Beba muita água. Aliás já te trago um pouco

de água pra você. – Assim entrou a senhora na lanchonete

trazendo em seguida água a ela.

- Obrigada minha senhora pode deixar estou melhor.

Siné recuperou-se um pouco e decidiu continuar no

empreendimento.

Quando virou a esquina olhou o senhor que estava

sentado no mesmo lugar que o vira antes. Ao observá-lo

mais de perto, não o reconheceu como sendo o mesmo

daquele dia.

64

- Uma moedinha para o “veinho” minha filhinha.

- O senhor sabe onde está o homem que estava sentado

aqui dias atrás?

- Aqui é meu ponto minha filha. Não tem outro que pode

ficar aqui minha filha. É a lei da selva. Tudo para

sobreviver. Depois eu contribuo com a cachacinha para os

irmãos. – Assim sorriu largamente o senhor com muitas

falhas nos dentes.

Siné insistiu.

- O Senhor me conhece?

- Já vi você passar por aqui. Mas nunca falei antes com

você. Difícil alguém me enxergar aqui minha fiinha.

Ainda mais moça bonita assim...

- Atônita Siné teve sua visão tolhida. Quase desmaiou.

- Tudo bem moça? – Perguntou um homem de terno que

passava por ali.

- Tô bem. Tô bem. – E saiu Siné apressada dirigindo-se à

ingreja.

65

Siné não entendia. Parecia estar alucinada. Vendo coisas

estranhas. Era a falta de Maxi? Era a dieta? Não

conseguia resposta.

A resposta talvez estivesse nos livros. Mas em que livro?

Mergulhou na leitura sobre o assunto. Metafísica não era

seu forte, mas aos poucos ganhou força, apegando-se com

santos e anjos para enfrentar o momento.

Deixou-se esquecer do que havia ocorrido. Desligou-se

da saudade de Maxi. Embora às vezes ela a açoitasse.

Suas Suas chagas: trabalhos voluntários aos finais de

semana. Assim distraía-se. E os dias passavam.

A invisibilidade

Aquele dia ao se acordar sentiu-se diferente. A luz

parecia-lhe mais amiga que outrora. Conseguia - como se

seu corpo fosse o fim de uma aresta - ver as diversas

cores da branca luz que lhe transpassava. A corpulência

desse evento distraía-lhe os sentidos. Notou suas mãos

diferentes – muito brilhantes. Sua face quase translúcida

66

ao espelho também refletia muito forte a luz. Ao sair à

janela, um beija-flor parou em sua frente, quase imóvel,

tentou beijar-lhe os lábios, o que conseguiu de leve. Ficou

atônita diante de tal acontecimento.

“Um beija-flor tentou provar de meu néctar.” Brincou

consigo mesma. Sentia como se formigas devorassem seu

estômago. A luz, agora, transpassava-lhe completamente.

A fome se intensificava. A saudade de Maxi, suas

palavras. Precisava abrir seus postais, seus e-mails.

Decidiu em meio a tudo aqui – ir à tarde à uma lan house.

Era domingo, não trabalhava. Precisava ir ao parque, ir à

igreja. O abraço dos idosos um dia antes a reanimara,

assim como a umas palavras em sinal de gratidão e

carinho de uma senhorinha de cabelos azuis: “viva o

amor como se ele fosse o único motivo de sua vida, o

tempo passa e só ele é a lembrança que mais nos

impulsiona a viver mais. Lembre-se disso, pois ainda

vivo intensamente aqui cada ato de amor que vivi

(apontava para o coração). Vale muito a pena, pode ter

certeza, pois é uma das poucas que tenho”. Sentia uma

67

imensa vontade de sair. Apressou-se em se arrumar. Foi

apanhar a escova dental, segurou-a, mas ela caiu. Achou

natural “escorregou”, pensou. Continuou logo após

arrumando-se. Ao tentar fechar a porta caiu-lhe da mão a

chave. Tentou pegá-la quase que não conseguiu. No

entanto, teve dificuldades, mas fechou a porta – a esse

momento o medo e a loucura eram tolhidos por um

resquício de sobriedade que não deixa nós pobres mortais

acreditarmos em coisas do gênero. “Que está

acontecendo??!!” – indagou Siné. Descartou a loucura,

ignorou o fato e seguiu. Viu ao longe uma colega de

trabalho. Ao se aproximar a mesma não a viu. O que foi

autojustificado como sendo sua amiga “orgulhosa. Finge

que não vê as outras pessoas. Normal isso hoje em dia.

Falsas amizades, falsos colegas.” O padre de sua paróquia

– amigo de Siné – também não a enxergou. Aliás, todos

pareciam não enxergá-la. “Opa, opa, opa, tem algo de

estranho aqui!.” - Sentia alguma coisa que não sabia bem

o que era. Ela só sabia que isso não era o que deveria

sentir. Nesta situação os sintomas de um ataque de nervos

68

seria o mínimo razoável. Mas... não era o que estava

acontecendo com ela.

Vinha-lhe uma outra colega de trabalho em sua direção e

- esta daria graça se não a visse mesmo - o que acabou

acontecendo. Queria chorar. Não conseguia. Gritou,

ninguém a ouviu. Olhou-se: o corpo em luz, radiante,

muito belo. Seus pés levitavam. “Subliminar” pensou.

“Agora sou um anjo” - não deixando de lado seu censo de

humor. “Que sonho mais demoradinho esse!” devaneava

ironicamente.

No fundo, ela pensava-se num sonho. Aparentemente não

era. E esse frio da dúvida corria-lhe pelo seu subliminar

corpo.

“Cadê meus sentimentos? Se dissiparam com... com... –

não sabia definir. – Deve ser... isso?!” Que êxtase. Sentiu-

se inebriada. As pessoas ao seu comando andavam

devagar, bem devagar.

Pensou “Sei...! eu acho que... como é que eu vou dizer

isso? Eu...” Resolveu não dizer o que achava o que tinha

ocorrido. Mas então deve se igual aquele filme “O sexto

69

sentido”. Então...” Parou na praça em frente à fonte e ao

velho ipê. Voltou no tempo na noite de lua cheia e viu-se

sendo iluminada. Viu-se bela. Viu-se plena... A solidão a

deixou. Cada pessoa que passava perto dela agora a

alimentava. Seus sabores corriam - como se fossem

essência – aos seus olhos. Suas dores, felicidades e

angústias. Escutava-lhes seus pensamentos – quando

assim desejava. Tudo isso a aturdia, mas não a

incomodava. Andou, viajou, viveu de forma diferente.

Sentiu prazer no canto do pássaro o qual contou com sua

presença por alguns instantes. Se emocionou ao ver vida

no ninho e a mãe alimentando seus filhotinhos.

Continuou andando na rua. Ao passar pela esquina em

que tinha visto o mendigo, o avistou novamente. Ela

parou em sua frente. Encarou-o com coragem, mas ele

abaixou sua cabeça. Conferiu - não foi o segundo que

negou conhecê-la. Ela parou poucos instantes ali. O

senhor lhe dirigiu a palavra:

- Você ainda tem dúvida minha filha?

- O senhor consegue enxergar-me?

70

- Sim até seu lindo interior.

- Procurei o senhor novamente, mas não estava aqui.

- Eu estava aqui. Você não me enxergou. Éramos dois.

- Então...

Um silêncio imperou. Siné resolveu não entender o que

havia realmente ocorrido. O fato é que ela conseguiu vê-

lo. As indagações eram menores que ânsia de talvez

aproveitar o estado em que se encontrava: feliz, em paz.

- O que está acontecendo? O senhor quem é?

- Você estava muito confiante em um amor e eu resolvi

testá-la. Hoje poucas pessoas amam de forma que você

está amando. – A face do senhor era tão expressiva

quanto suas palavras, como um druida respondia Siné

com sabedoria e paciência.

- Eu o amo muito...

- Você quer vê-lo?

- Sim muito.

- Então que se faça.

Tudo se espiralou ao seu lado em fechos de luzes

multicolores. Pararam em frente à janela do apartamento

71

em que estava hospedado Maxi. Pela janela Siné

observou Maxi abraçado com Dorva. Neste momento

compreendeu as palavras que a alertavam à traição. Mas

não se enfureceu, apenas observou. Não entendeu porque

a fúria não invadiu seu coração que parecia bloqueado.

Ficaram ali alguns instantes.

- Nos aproximemos mais.

Ao se aproximarem ela viu que Maxi chorava. Durva

Consolava. Abraçados Maxi afirmou:

- Siné. (pausa) – O que aconteceu com ela?

Em um repuxo tão forte Siné e o misterioso homem

saíram dali. Retornaram à esquina. Siné fitou o senhor,

pegou a sua mão, beijou-lhe a face e atônita retirou-se.

Em frente à igreja sentada sentia os primeiros pingos de

chuva. A chuva engrossou e a água começou a lhe trazer

de novo à materialidade. Pouco tempo depois a mãe e a

criança que ela havia acompanhado no ônibus se

aproximaram e a menina ao colo da mãe lhe sorriu,

jogou-lhe um beijo com as mãos, sua mãe não percebeu o

que ocorria.

72

Siné seguiu para casa. No caminho desmaiou. Uma mão

quente tocou-lhe à face. Abriu lentamente os olhos e com

um sorriso um médico - com a mesma face do mendigo –

lhe falou:

- Você menina precisa se alimentar... (sorrindo brincou)

agora você precisa comer por dois.

(20/11/2009)

'

A LENDA

73

Na clareira uma alegre festa à luz dos lampiões.

Amantes se embalam ao som do violão.

Noite de lua cheia.

Um moço com olhar apaixonado mira uma linda moça de

olhos azuis que acompanha a só os balanços de uma noite

festiva.

A moça ao aproximar da meia-noite, olha a escuridão e

corre sorrateiramente para a mata.

O moço atrás sai com passos ligeiros a se preocupar com

a forasteira que ao primeiro olhar se apaixonara.

No escuro, um barulho... uma fera. Ao ver dor moço,

atacara sua pretendida.

Sem nada entender e, a pronto, saca de sua arma.

A fera da moça se aproxima, olham-se. A moça chora

silenciosamente e como as águas do Amazonas, nesta

noite de lua cheia, brilharam suas lágrimas.

O moço no vão das árvores, atentamente, com receio de

provocar de vez a ira do monstro e ele atacar sua vítima,

observa e espera o momento certo.

A luz da lua a brilhar, mais resplandecente do que nunca,

74

brilha no Gigante Amazonas oferecendo um espetáculo

sem igual. Para o moço, aquele momento era apavorante;

para natureza, algo incomum...

A vida pede socorro; o amor intenta vencer preconceitos,

o ódio de outrora, o ciúme que destrói, e a maldição que

aprisionou um amor em segredo que revoltava a todos.

Um pedido insano da separação, justificativa impensada-

insensata: o pobre e o rico... inimigos de sangue...

inimigos de idéias... inimigos daqueles que padeciam...

talvez uma provável esperança da paz... mas que não era

desejada.

A dor aprisionou, mas o Amor ainda resiste...

O valente moço atônito, naquele momento que parecia

eterno, solta o fogo de sua arma, que como vaga-lumes,

alcança insanamente a Suçuarana que cai ao chão.

A moça com o desespero dos amantes enlouquece aos

prantos. Desmorona-se em lágrimas ao lado da fera que

padece.

A fera, agora quase homem, despede-se da moça com

olhar suplicante. A moça segue para o rio... olha para

75

trás... vê seu amado em seu último suspiro e, já não mais

caminha... levita-se nas asas da misteriosa Mãe-d’água,

meio ser fantástico, meio mulher... despede-se.

Do valente moço, ninguém mais sabe nada.

Mas, muito se fala da viúva-moça que às noites de lua-

cheia chora em águas límpidas a falta de seu amado.

(11/06/2008).

76

O ACHADO MISTERIOSO

Era um dia como qualquer um outro.

Juvenal, um jovem catador de recicláveis, entoava

uma melodia aos assobios quando avistou uma mala. Era

uma linda mala. Olhou para os lados para tentar avistar se

havia alguém que a reclamaria. Ninguém aparecia

naquele beco, eram sete horas da manhã. Pensou em ficar

esperando até que o dono aparecesse. Colocou a mala em

seu carrinho, escondeu-a. Lembrou-se de ver quais eram

os detalhes da mesma para ver se a pessoa que aparecesse

reclamá-la saberia descrevê-la. Daí sim a devolveria.

Juntou o reciclável do beco e nada. As janelas se

abriam. As pessoas punham as roupas nos varais. As

chaminés cuspiam fumaça, saíam pais para levarem suas

crianças à escola. Uma senhora que saía muito cedo

caminhar estava a voltar de sua matinal caminhada.

Juvenal disfarçava e ficava a esperar... E nada...

Nove horas da manhã. O pobre catador

77

aguardava... Sua barriga roncava. Seu pensamento neste

momento era de deixar a mala ali e seu dono que voltasse

buscá-la.

Mas, será que outra pessoa, que não seu dono, a

encontraria. Enfim, deixá-la não. Resolveu aguardar.

Dona Jurubeba sai à janela e estranha a inusitada

permanência do homem da reciclagem mais do que os

quinze minutos habituais os quais demorava para fazer a

coleta. Mas, mesmo assim ela se recolhe.

Juvenal se incomoda e, ninguém... Pensa,

ninguém mesmo vem buscá-la.

Resolve ficar sentado na praça à frente do beco e

aguardar o descuidado que deixara uma linda mala ali a

esmo.

Olho fixo. E, um senhor se aproxima. Distinta

pessoa, ao ver do Juvenal, muito bem vestida, com um

impecável terno. Deve ser ele o proprietário, pensou o

preocupado Juvenal. Bateu à porta da mulher do número

18 e conversou ligeiramente saindo com uma caixa

pequena embaixo do braço, que após passar perto do

78

nosso herói, descobriu uma caixa com xícaras pelo

desenho que tinha na mesma. Cumprimentou o simpático

senhor e este foi embora. Concluiu que não era o dono.

Quem deixaria ali aquela maleta? Quem voltaria

para reclamá-la? Será que alguém saberia dizer alguma

coisa a respeito. Em quem confiar? Como perguntaria às

pessoas? Faltavam idéias ao homem que cuidava tão bem

do lixo. Até que chegasse a resposta, resolveu comer

alguma coisa. Trazia em sua sacola um pedaço de pão e

uma garrafa de refrigerante com chá dentro. Comeu, a

cada mordida se preocupava, quando iria sair dali.

O lanche acabou e ainda nada. Ninguém aparecia

para levar a mala. Pensou em jogar fora e fim do

problema. “Mas que idéia a minha, que falta de

consideração com as pessoas” refletiu nosso honesto

homem.

Faltava-lhe conhecimento. A quem entregar a

mala? O medo passava-lhe pelos nervos como um choque

a lhe arrepiar. “Por que medo?” Decidiu ver melhor a

mala. Chacoalhou-a. Parecia haver algo lá dentro que

79

pareciam papéis. Achou que podia ser dinheiro.

Por um momento sentiu-se feliz. Ajudar alguém.

Talvez a pessoa que perdeu o dinheiro voltasse para

buscá-lo. Certamente o pagamento do mês. Pensou de

pronto: as crianças em casa à espera do pai com a compra

do mês, a esposa pronta para cumprir suas obrigações...

“Que prazer ajudar alguém”, devaneava Juvenal.

A tarde vem e, a sombra já não conseguia impedir

os ardentes raios solares que queimavam a pele escura do

esforçado agente ecológico.

Este, a imaginar a chegada do homem que

esquecera ou perdera o dinheiro.

“Será mesmo que é dinheiro?” Interrogou-se.

Sentado quase o dia todo, poucas pessoas haviam

notado nosso reflexivo homem. Os pássaros lhe faziam

companhia. Ele ficava a indagar a eles, em pensamento,

se sabiam de quem era aquela bendita mala.

Decidiu. Em um lapso de pensamento decidiu pela

libertação. Ver o que havia na mala. O coração quase lhe

sai pela boca. Palpitava-lhe que seria confundido com um

80

ladrão, um bandido. Mas precisava abrir e ver se havia ali

alguma pista que levasse ao seu irresponsável dono.

Agora o suor escorria-lhe ao rosto, lavava-lhe a

alma, talvez fosse o momento... Nuca imaginou que

partiria daquela forma. “Não, decididamente, não! Não

vou morrer!” Mesmo que seu coração lhe falasse o

contrário. Não tinha sentido tal sensação até aquele

momento. Mas... a curiosidade era maior e pensou “Já

que vou morrer quero saber o que vai me levar!”

A mala olhava quase que sorridente àquele infeliz.

Justiça seja feita, por que se preocupar tanto com um ser

tão ignóbil? Uma pessoa que deixava uma maleta em

qualquer lugar pode ter feito propositalmente, talvez um

descuido ou até mesmo para se desfazer dela. Qual destas

indagações seria a correta? Filosofava Juvenal.

A emoção, a curiosidade, o medo, a sublimação...

Nunca havia refletido tanto. Nunca pensara tanto para

encontrar uma resposta. Seu coração nunca sentira tanta

emoção. A preocupação era com outrem e, nem ao

mesmo o conhecia. Um desconhecido nunca o

81

influenciara desta forma. A preocupação com outra

pessoa se fazia clara ao nosso paciente catador.

Sempre gostou do que fazia. Não sabia bem

definir o que o movia diariamente àquele ofício. Achava

que era só a ânsia de viver e ter porque viver. Todavia,

naquele momento sentia-se importante, não sabendo

exatamente por quê.

se preocupe em A angústia. A curiosidade. O peso

na consciência que o fazia sentir culpado. Tudo isso o

atormentava. As mãos suavam, a cabeça rodava, a falta da

esposa neste momento se fazia grande - pois saberia ela o

que fazer – mas ele...

Em um relance helicoidal a mala espiralava-se em

um escuro buraco negro que lhe tolhera aos poucos sua

consciência. A mala às mãos. Agora ao peito. Resolveu

sentar-se recostado ao carrinho, quando... o mundo

começou a fugir-lhe, levando consigo seus sentidos.

Em um grande sonho surreal ele abria a mala e de

lá saíam mansões, carros dos mais variados tipos e

marcas cada um mais belo e brilhante que o outro,

82

comidas que não saberia descrever - pareciam-lhe

deliciosas – mas distantes se faziam, assim doía-lhe ainda

mais seu estômago.

Sua família – como se fosse espectadora desse

sonho – apreciava atônita tamanho acontecimento. Tais

coisas os distanciavam cada vez mais, até que Juvenal já

ao longe dos seus, sente-se muito só. Muito só. Ele

unicamente deseja transpor as barreiras impostas pelo que

saía da maleta. A mesma é alvejada por uma inesperada

pedra – vinda não sabe de onde. Ela se fecha. E o que

dela saiu some.

Assim nosso herói se sente aliviado, pois se vê

novamente próximo de seus familiares. Eles o abraçam e

aliviado despede-se.

Alguns minutos depois retoma seus sentidos e,

avista ao seu lado a maleta. Estava aberta. Atônito vê em

seu interior um livro velho e um maço de papéis escritos.

O homem que faz a coleta do reciclável não sabe

ler. A curiosidade lhe corrói a alma. Por que não estudei?

– indagou Juvenal. Os conselhos de sua mãe para que

83

estudasse açoitava-lhe. No entanto... teria imediatamente

saber o que estava escrito naqueles papéis e o que era

aquele livro.

Para a sua sorte vinha alegremente um menino

que pela rua assoviava sem parar. Sem cerimônia ele foi

parado. Perguntou-lhe se ele sabia ler. Respondeu – meio

com receio - com a cabeça que sim. Deu-lhe os papéis –

mesmo o menino achando aquilo muito estranho - leu

meio que silabicamente, mas leu. A primeira página dizia

assim: “Quero desculpar-me da forma que achei para

repartir do muito que colecionei em minha vida. Os anos

se passaram e descobri nisto que deixei registrado nas

folhas que se seguem um grande tesouro, que me fez um

homem feliz, livre e, sobretudo solícito. Resolvi repartir

com você, pois certamente saberá assimilar com

sabedoria o que lhe deixo. Acredito que se mudou a

minha vida, poderá mudar a sua. Deixo-lhe um exemplar

desta preciosidade que para mim é uma bússola num

mundo em que as pessoas andam sem saber para onde e

porquê. Um grande abraço de um amigo”

84

Inesperadamente a ira nos olhos de Juvenal era

visível. Os papéis foram lançados furiosamente em seu

carrinho. “Quem me roubou? Levou o que havia neste

maleta me deixando só estas folhas sem valor. Talvez

houvesse jóias, dinheiro ou sei lá o que mais. Pobre de

novo! Somente desejei ter uma casa digna. Comida...”

Afirmou furiosamente.

O menino lhe perguntou “Hei, o senhor vai querer

este livro?” O homem disse que poderia ficar com ele.

“Obrigado moço” disse o menino sorrindo – e levando

consigo um exemplar usadíssimo da Bíblia Sagrada.

85

UMA NOITE SOLITÁRIA

O vento batia violentamente na parede da velha

casa. Soprava uivante como lobos em noite de luar. Os

trovões, os raios e os relâmpagos se sucediam em um

espetáculo assustador, pelo menos para as mentes

daqueles que não possuíam uma alma pura para enfrentar

o medo proporcionado por uma apocalíptica noite. Logo

começou a chover. O vento se exaltava cada vez mais,

trazendo consigo os primeiros pingos violentos daquela

que seria uma tempestade dantesca. Ramiro assustava-se

com tudo isso. Os galhos das árvores batiam na parede,

no telhado; dava-lhe a impressão de que alguém tentava

derrubar a casa.

Ramiro sempre ouvira as histórias dos mais velhos a

respeito das pessoas que foram atingidas por raios, por

isso tremia freneticamente de medo como se fosse uma

86

apavorada criança, embora estivesse com dezessete anos.

A cada raio, pulava. Estava sozinho. Seus pais haviam

saído ver seu tio, irmão de seu pai que se encontrava

muito doente.

Seu tio era para ele um herói, contava muitas histórias de

viagens, de passeios, de fantasmas e de lendas de tesouros

escondidos. Narração que vinham seguida de uma

vivacidade pungente, que o emocionava arrancando

sensações mais puras e verdadeiras que somente os

narradores mais eloquentes conseguem.

Vinha-lhe à mente a história do velho João, que seu tio

sempre comentava como testemunho de que a alma é

imortal e, o corpo é um simples abrigo desta. Dizia ele

que na noite em que o velho João falecera escutou um

barulho, como se alguma tivesse caído no chão. Foi ver o

que era. Caminhou pela casa toda e tudo estava em

perfeita harmonia, tudo estava em seu lugar. Sentiu um

frio correr pelo corpo inteiro, mas dizia ele a si mesmo

que estava tranquilo, “era uma reação natural dos

nervos!” Voltava à velha poltrona. Lia um livro de contos

87

de Edgar Poe. Julgava ele que tais sensações eram

geradas pela temática dos contos lidos. Após alguns

minutos, novamente ouviu alguma coisa cair, desta vez a

intensidade do barulho era mais alta e, dava-lhe a

impressão de que caiu no piso da cozinha. Pensou... “É

ladrão”. Pegou a vassoura que se encontrava perto – era

só o que se encontrava por perto e podia defendê-lo

naquele momento pensou - e caminhou sorrateiramente.

O coração em batidas violentas parecia que sairia

correndo e deixaria quem dele precisava. O suor em seu

rosto vertia como água salobra dos gêiseres. Tentou

acalmar-se um pouco e planejava o ataque. Talvez contra

um ladrão. Aproximou-se da porta da cozinha e pela

fresta observou lentamente, mas nada viu. Caminhou pela

casa toda e nada percebeu de anormal. Tudo em seus

lugares. Olhou pela janela e tudo estava bem. A

curiosidade o assombrava. Queria saber o que era.

Interrogava-se, levantava hipóteses do que podia ser.

Sentou-se à mesa da cozinha, ficou a refletir, pensou em

rezar. Às primeiras avemarias, escutou o telefone tocar.

88

Uma voz baixa e triste de uma mulher lhe disse: “meu

irmão se foi. E, como você era muito amigo dele,

lembrei-me de ligar a você.” Tudo isso lhe vinha à

memória. E o pavor era cada vez maior. Falava baixinho

“meus pais, meus pais”...

“Não sei por que as coisas que nos amedrontam parecem

imperceptíveis quando estamos com nossos pais”, pensou

Ramiro. O vento soprava, parecia-lhe cada vez mais forte

dando-lhe a impressão de que a velha casa construída há

mais de cinquenta anos não aguentaria. Interrogou-se se

poderia gritar para espantar o horror. Pensou “estou

sozinho, e as casas vizinhas ficam no mínimo a dois

quilômetros”, pois morava em uma chácara. E, em um ato

de desespero berrou. Berrou como o pobre personagem

Eurico o presbítero - que se atirou em um ato insano

contra um exército sarraceno que o perseguira com o

intuito de matá-lo -. E nesse instante uma paz interior o

invadiu como algo digno dos grandes heróis, ou como o

silêncio que prenuncia algo pior a acontecer.

Ouvia a chuva, e, de certa forma começava a se

89

acostumar. Já o vento não soprava tão forte, e os raios já

não eram despejados com a mesma frequência. Ramiro

mirava o retrato de casamento de seus pais, contemplava

a face de ambos, sentindo a saudade dos solitários

ermitões. Relembrou da noite anterior em que seus pais o

aconselhavam para melhorar suas notas escolares.

Num abrupto instante escuta um estrondo – como jamais

ouvira antes -. Algo precedido de uma imensa

luminosidade que tolheu seus sentidos. Sentia-se como se

estivesse gritando apavoradamente, tudo brilhava ao seu

lado. Sua visão não oferecia nitidez que dá ligação do

real, do lógico, ou do possível para nossas mentes

racionais. Era um sonho, um devaneio, talvez o mesmo

que sentiu Dante Alighieri quando viu tais céus e

infernos, como ele mesmo afirma ter visto com os olhos

humanos maravilhas e horribilidades que a mente depois

se esvai na tentativa de relembrá-las...

Tudo se distorcia. A porta já não estava no mesmo plano

em que se encontrava. Estava ela para ele à distância, era

como se estivesse bem distante, talvez no horizonte, e sua

90

magnitude era como se fosse a porta celestial. Gritava ele,

mas, o som que saía parecia aos seus ouvidos algo

incompreensível, quase inaudível; afinal ele nem sabia

para quem gritar e o que gritar. A porta se aproxima dele.

Como algo que vem automatamente, como a vida dos

humanos, ou como o movimento das máquinas. Não

sentia suas mãos, que aos seus olhos pareciam disformes,

ora agigantadas, ora minúsculas. Seu coração batia em

um ritmo descomunal, como se lhe fosse sair do peito. A

saudade batia juntamente com seu peito num frenesi

desvairado, galopava em sua frente sua fé com algo que

ele acreditava, mas há muito havia esquecido – pela

correria do seu quotidiano, ou pelo desleixo dos afazeres

fúteis -.

A porta se aproxima muito mais. Alguém saiu de lá, não

se apresentava nitidamente. Fecha-se a porta. Abre-se

novamente e mais alguém sai de lá. Ambos revestidos de

muito mais luz que o seu ambiente atual, que já se

encontrava aparentemente muito iluminado.

Ramiro agora, sente-se correr para a porta em uma i-n-f-i-

91

n-d-á-v-e-l correria, num caminho tranquilo e já não tão

assustador. Olha mais para as pessoas que se

aproximavam dele e, percebe-os um homem e uma

mulher. Chega mais perto. Suas pernas amolecem e ele

cai. Quando olha para perto de si observa duas sandálias e

logo mais duas e, ouve uma voz doce e suave que diz em

coro “meu filho”.

92

BONECO DE NEVE

A neve caía branquinha. Cobria toda a cidade. As crianças

brincavam. O mais velho deu a ideia de construir um

boneco de neve. Logo a criançada começou a construção,

com baldes, pazinhas seguia feliz a empreitada. A criança

mais velha somente moldava, organizava seus

companheiros conforme a idade.

Construiu-se a base. Reuniram-se todos e ficaram a

contemplar carinhosamente a criação. Descansaram.

Faziam planos para o dia seguinte. Cada um viria com

uma peça de roupa para vestir o boneco: um traria

cachecol, outro traria um chapéu velho que o pai não

mais usava, outro tampinha de garrafa descartável para

fazer os olhos e botões da blusa; enfim cada um

procuraria o que trazer para deixá-lo com uma boa

aparência.

A noite cai. A criançada procurou dormir cedo para

levantar mais cedo ainda e continuar a construção. Cada

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uma delas possuía uma paz e satisfação por participar da

criação de tal criaturinha.

As portas se abrem. A neve ainda estava muito espessa e

o frio era muito intenso. Baldinhos, pazinhas se unem

novamente. Continuam seus ofícios. A segunda parte

concluía-se. A cabeça já estava moldada. Três partes

unidas em uma só. A menorzinha questionava como se

colocaria o coração no boneco, pois ele deveria ser capaz

de amar seus amiguinhos, pois a sua mãe lhe falou que o

amor vem do coração, e é ele que nos faz ser capaz de

amar...

Os braços de galhos eram como se tivessem dedos nas

pontas. Os olhos de tampinhas de garrafas descartáveis

eram azuis. O chapéu velho trazido pelo garoto ruivo era

na verdade uma cartola velha, mas deixou o boneco como

um aspecto de cavalheiro. O cachecol e os botões foram

engenhosamente dispostos. O nariz teve que ser

fabricado. Um pedaço de papel vermelho feito cone deu

um ar de gripado ao boneco. A boca foi um desafio ao

grupo. A menorzinha fez cara feia da expressão infeliz do

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“boeco”. Não queria ela um risco. Queria uma forma de

uma metade de lua. Ele deveria ter cara de feliz.

Em um zape as crianças concluíram. Houve uma

grande comemoração. Os gritos de alegria se sucediam.

Era para elas um dos dias mais felizes de suas vidas.

A escuridão caiu. Eles se recolheram, meio que a

contragosto. Nas janelas todas vigiavam o boneco, como

se alguém pudesse levá-lo dali. Com certeza todos

sonhariam com o resultado do suor de seus rostos.

A solidão da escuridão deu a uma fadinha que

passava por ali a ideia de dar vida ao boneco. Ela

perguntou a ele qual seria seu desejo, ele respondeu que

gostaria de subir o monte mais alto daquela região e ver

toda a cidade e o vale onde ela se localizava, com toda

sua natureza exuberante e os mais longínquos lugares em

que pudesse avistar. E como num passe de mágica o

boneco já podia andar.

Iniciou sua subida, mas antes se despediu da fada,

que se perguntava o porquê dele não querer ser um

garoto... A nevasca que caía não fazia com que nosso

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herói desistisse de sua jornada. Em poucas horas já estava

no mais alto de um monte que naquela região era o maior.

De lá de cima admirou as luzes que brilhavam lá

embaixo. Lembrou-se das crianças e seus empenhos para

formá-lo o que era agora. Desejou em sua curta vida de

boneco ser uma gigantesca bola de neve. Pensou em rolar

o monte ganhando assim tamanho e força. Novamente em

seus ouvidos ecoaram os gritos repetitivos da molecada.

Pensou que se de lá de cima rolasse possivelmente

causaria uma avalanche e um imenso estrago nas suas

casas que no vale estavam erigidas. Sentia ainda pulsar

em seu peito um coração imaginário que a menorzinha o

criara. Batia assim uma saudade do chão que o acolhera e

decidiu se eternizar pela alegria oferecida às crianças.

Resolveu voltar ao seu lugar.

Na metade do caminho um lobo que o

acompanhava sem ser percebido o questionou por que

não descia rolando, iria mais rápido. Justificou o boneco

que dessa forma era a correta, pois se rolasse a muitos

machucaria; principalmente aqueles que dedicaram muito

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a ele. Em pouco tempo este serzinho absorveu o que de

melhor havia nas pessoas: a preocupação com aqueles

que dedicavam pelo menos um pouco de suas vidas aos

outros, sorrisos, a criatividade, a união, a pureza, a

malícia ingênua, a preocupação com o semelhante; enfim

ele conheceu a pureza do coração das crianças.

Chega novamente àquele lugar a que reconheceu

como sua casa. Durou poucos dias, pois logo chegou a

primavera e com ela os primeiros raios de sol. Imaginou

que sua missão de boneco estava cumprida e amanhã

faria parte das águas que subiriam ao céu e de lá

retornaria alegremente em um novo ofício - o de água -

levando vida a todos os lugares até chegar novamente ao

imenso e indescritível mar.

(26/04/2009).

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NA MALHA FINA

Era mais um dia de trabalho para Genildo, auditor de

tributos. Com uma ordem de serviço em mão sua missão

era investigar uma declaração de Imposto de Renda, de

uma pessoa de 68 anos de idade, na qual ela declarava um

patrimônio milionário em bens não tangíveis, mas não

possuía uma renda compatível para aquele patrimônio,

declarando-se como aposentado que ganhava um salário

mínimo e meio.

O auditor saía com planejamento em mãos e uma

rotina bem definida. Sua hipótese inicial era de erro na

declaração, pois uma pessoa que possuísse tal valor em

bens não moraria onde esta pessoa morava – sabia onde

era a localidade pois a avistava em seu computador em

que mostrava uma área bem pobre de ocupação.

Descartava inicialmente a suspeita do investigado ser um

laranja, pois não havia indícios em seus arquivos pelo

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cruzamento de dados, e também seu instinto bem apurado

de auditor não lhe dizia isso.

Com seu carro entrou no bairro. Crianças

brincavam na rua, cachorros aos montes faziam o cortejo

em uma verdadeira algazarra, mulheres conversavam nas

esquinas, muito desconfiadas miravam o estranho. Num

fim de rua, em uma casa muito precária praticamente em

um banhado, ele avista um senhor de barba comprida

acinzentada, estava vestindo camisa branca social surrada

pelo tempo, calça preta bem descorada e sandálias de tiras

remendadas por costura. No olhar do senhor havia muita

firmeza. Nos lábios um sorriso. E a voz firme

cumprimenta o moço da receita com um:

- Bom dia, em que posso servi-lo?

- Bom dia! Respondeu o auditor.

- Em que posso servi-lo?

Ele se apresentou como funcionário da Receita. Falou que

precisaria conversar sobre Declaração do Imposto de

Renda. Também, perguntou seu nome e outros dados do

contribuinte checando-os com seus registros.

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Com estas informações em mãos continuou.

- Tenho uma notificação para o senhor, não se assuste,

vou explicar pro senhor do que se trata, mas antes tenho

que fazer algumas perguntas, é o protocolo. Riu

discretamente, para quebrar o gelo e tornar a missão

menos árdua e mais tranquila.

O senhor muito solícito, falou que estava às ordens.

- Nossos arquivos apontam que o senhor declarou um

valor milionário em bens. Mas pelo que vejo...

O senhor riu, ainda meio discretamente, o que foi

acompanhado pelo entrevistador.

- Enviamos ao senhor notificações pelos correios, mas

elas retornaram com o não localizado, e por isso estou

aqui. Justificava a autoridade.

- Meu filho, tudo que você quiser saber eu lhe contarei.

Respondia o senhorzinho em um tom meio que intimista.

Genildo voltou ao carro, pegou alguns papéis, travou a

porta e, retornou a casa, que a adentrou com o convite do

seu dono.

- Sente-se, fique à vontade, só não ligue que é uma casa

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simples. Explicou o anfitrião.

- Obrigado, ficarei! Agradeceu a visita.

Sentado em uma cadeira de palha Genildo mirava as

paredes escuras da casa, as panelas penduradas debaixo

do fogão a lenha chamavam-lhe a atenção, pois estavam

muito bem limpas e chegavam a brilhar. O assoalho de

madeira, com muitos nós, também brilhavam. Tudo isso

remetia-lhe ao seu passado, lembrava de sua casa e a casa

de seus avós. Lembrava-se dele limpando o assoalho de

sua casa, que possuía muitas frestas, mas à sua

brincadeira de puxar os irmãos em um pano velho rendia-

lhe um brilho sem igual que o orgulhava – simples, pobre,

mas muito limpo era sua ideologia. Isso tudo lhe dava

uma imensa saudade de seu tempo passado. Uma infância

rica de carinho e muita brincadeira.

- Você aceita um café? Interrompe o auditado.

- Não obrigado.

- Então, toma mate? Aceita um? Eu não vivo sem

chimarrão. Comenta o senhor.

- Aceito! - Isso não vai interromper meu trabalho -. Pensa

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o servidor.

O senhor de barba acinzentada pegou de sua chaleira e

cuia e serviu um mate ao servidor público. Tomou o

chimarrão. Agradeceu. Falou que precisava continuar,

pois haviam outras atividades previstas para aquele dia,

mas agradecia a hospitalidade.

- O senhor pelo que me consta aqui é aposentado?

Inquiria o auditor.

- Sim senhor!

- De que mais vive?

- De apanhar latinhas de alumínio.

- O senhor ajuda alguém?

- Não, vivo sozinho. Não tenho filhos, nem outras

pessoas que vivem comigo.

Houve uma pausa e senhor abaixou levemente a cabeça.

- Eu vivi desde os 19 anos com minha esposa até os 60

anos. Foi quando ela se foi. Daí pra frente vivi sozinho.

Com uma imensa saudade...

Novamente houve uma pausa. O Clima ficou meio triste,

mas o ofício tinha que continuar.

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- O senhor pode continuar. Pedia o ancião.

O homem da receita indagou sobre seus bens e seguiu-se:

- O que pude perceber o senhor não possui,

aparentemente, o que declarou. Meio que constrangido

segue.

- Quem fez sua declaração?

- Eu mesmo. Falou firme o interpelado.

- Tudo que possuo de valor está aqui em meu rancho,

inclusive ele, tudo que tenho aqui é o meu tesouro. A vida

que estas paredes testemunharam não tem valor. Aqui

aconteceram os melhores anos de minha vida. O

sentimento de gratidão aos céus me fez pôr nestas paredes

um preço sem igual. Os amigos que aqui passam deixam

muito, o que faz este lugar valer mais. Enfim, desconheço

a pobreza - a de espírito é lógico – sempre fui rico, pois

possuo o que muitos não possuem – a liberdade,

felicidade, dignidade e a gratidão ao bom Deus que tudo

criou -.

A autoridade fiscal riu discretamente. Em sua mente,

muito bem treinada pelos anos de estudo que o ofício

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pedia, encontrava uma situação nova. E como mensurá-

la? O que fazer? O que apontavam os livros e manuais?

Deixava-se convencer pelas explicações lógicas, ou

render-se ao valor subjetivo atribuído pelo senhor a tudo

que o cercava? Enfim que parecer dar?

- Me vê mais uma cuiada desse chimarrão. Pedia um

tempo o auditor para aliviar a tensão e melhor dar termo

àquela situação.

Mais um gole e as palavras soltas do senhor dava-lhe o ar

da sapiência simples, mas autêntica de uma pessoa que

passava exemplo de vida. Termina a cuia de chimarrão.

- Termino por aqui meu serviço. Era o que tinha por hoje.

Estou indo. Falou Genildo.

- Tudo bem! O senhor, como todos que aqui vêm, sempre

será bem-vindo a minha casa. Dizia com ar autêntico o

sábio senhor.

Levanta-se, sai lentamente o auditor. Mas quando sai, a

cortina do quarto levanta-se ao vento e ele percebe no

quarto um lindo quadro, de uma delicadeza sem igual.

Possuía traços impressionistas. Sabia o auditor por

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sempre apreciar as belas artes. Pensou ele, quem é este

senhor? Perguntou:

- Que belo quadro hein?

- Lindíssimo. Um dos meus maiores tesouros, empreguei

nele tudo que ganhei em minha vida, mas sem o

arrependimento, pois ele por sua apreciação me inspira a

ser um homem melhor. Enfatiza o senhorzinho.

Com um adeus, um aperto de mão bem forte, despedem-

se os senhores.

No relatório. Ordem cumprida. O parecer: “Nada consta

de Anormal ou Inadequado na Declaração Auditada”.

(14/08/2009).

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O SERVO

Olhava sempre ao alto, sua tez resplandecia com os

últimos raios solares daquela maravilhosa e límpida tarde.

Estava solitário. Os pássaros faziam o cortejo, como se

aquele fosse um rei. O azul-celeste de seus olhos fitava o

verde vivo das videiras, e o marrom seco do solo

queimado, que ao sopro suave da brisa, soltava uma

poeira fina, a qual cobria a vegetação rasteira do

caminho.

Caminhava o homem, sem descansar e olhar para trás.

Seu olhar sério refletia sua compenetração e a

contemplação de tudo que o cercava. Um sorriso

esboçava-se em seu rosto ao perceber os pássaros

cantantes, que retornavam aos seus ninhos, felizes se

abrigavam para passar a noite. A brisa fazia seus cabelos

ondulados esvoaçarem. O caminhar era calmo. Os passos

eram sequenciais e constantes, quase não parava. O olhar

fixo ao cume do morro fazia-o ainda mais distante, como

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se chegasse ao céu, e lá permaneceria.

O caminho estava coberto por poeira, que ao longe

quando se movia parecia possuir vida própria com

helicoidais figuras autônomas criadas pelo vento,

vegetação rasteira com pequenas flores rosa e brancas que

ofereciam ao caminho uma rósea imagem de paz e

conforto; e algumas pedrinhas soltas pelo caminho que

ora ou outra entrava em suas sandálias, que eram retiradas

pacienciosamente como se elas o fizessem refletir. Seus

pés estavam levemente empoeirados e cansados pelo

longo caminho percorrido.

O homem olhou à sua frente e percebeu uma fonte de

água que saía das pedras e jorrava cristalina formando um

pequeno córrego e logo desaparecia ao meio das liquentas

rochas. Ficou a admirar a limpidez da água e logo juntou

as suas mãos, como uma concha, e bebeu-a agradecendo-

a ao Pai por sua função de dar vida a todas as criaturas da

terra. Molhou o rosto e os cabelos e seguiu caminho.

No cume do morro morava, em uma imponente casa, uma

família que optou em viver longe de tudo e de todos. Da

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família eram três pessoas pai, mãe e um filho.

Semanalmente ordenavam a um dos empregados buscar

na cidade mantimentos e o que precisassem. O

empregado de confiança da família estava muito doente

há mais de um mês e a família começava a sentir falta de

algumas coisas para casa. O serviçal não recebeu nenhum

medicamento para o tratamento de um mal súbito que o

enfraquecera a ponto de não se pôr mais em pé. A família

recolhera-se ainda mais e, deixara o pobre empregado a

sofrer num quarto escuro e fétido pelo bolor das paredes.

O pobre suplicava por ajuda. Clamava ao céu

principalmente. Sua dor era muito mais pelo abandono do

que pela doença em si. Via-se próximo da morte, mas

agonizava esperançoso pela clemência dos seus senhores

aos quais sempre se doou pela troca de pão e lugar para as

noites recostar sua cabeça.

O agonizante escuta passos se aproximarem do quarto. Os

passos se aproximam cada vez mais. Uma paz tomou

completamente o serviçal, o qual percebeu através das

frestas o sol resplandecente e os pássaros a cantar à

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procura de ninhos nos beirais do casarão para passar a

noite. O homem esperou os passos desaparecerem.

Lembrou-se do seu passado dedicado apaixonadamente à

família, seus senhores. Alegrava-se pela certeza do dever

cumprido: ordens sempre recebidas e executadas com a

devoção dos santos. As mãos grossamente calejadas

juntavam-se em um ato solene ao peito. Os lábios

proferiram palavras sacras de clamor por piedade. A luz

que lhe era próxima faz-se distante, até que lhe são

toldados os sentidos.

Alguém bate a porta. O patrão a abre. Aparece-lhe um

homem de vestes brancas numa alvura impressionista que

se apresenta como seu servo.

A voz do senhor segue-se friamente:

- Você começa amanhã. Alfred acaba de falecer.

(Guarapuava, 1999)

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