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Universidade Federal do Paraná Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes - SCHLA Departamento de Ciências Sociais - DECISO DEUTSCHE SCHULE: UM PROJETO DE EDUCAÇÃO ÉTNICA NA COLÔNIA DONA FRANCISCA Heloísa Nass Curitiba, 2010

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Universidade Federal do Paraná

Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes - SCHLA

Departamento de Ciências Sociais - DECISO

DEUTSCHE SCHULE: UM PROJETO DE EDUCAÇÃO ÉTNICA NA COLÔNIA

DONA FRANCISCA

Heloísa Nass

Curitiba, 2010

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II

Universidade Federal do Paraná

Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes - SCHLA

Departamento de Ciências Sociais - DECISO

DEUTSCHE SCHULE: UM PROJETO DE EDUCAÇÃO ÉTNICA NA COLÔNIA

DONA FRANCISCA

Monografia apresentada como requisito

parcial para a obtenção do grau de

Bacharelado, do curso de Ciências

Sociais, Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes da Universidade Federal do

Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Márcio de Oliveira

Curitiba, 2010

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III

HELOISA NASS

DEUTSCHE SCHULE: UM PROJETO DE EDUCAÇÃO ÉTNICA NA COLÔNIA

DONA FRANCISCA

Monografia apresentada como requisito parcial para

a obtenção do grau de Bacharelado, do curso de

Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Márcio de Oliveira

COMISSÃO EXAMINADORA

Profa.Dra. Ilanil Coelho

Univille

Prof Dr. Márcio de Oliveira

Unversidade Federal do Paraná

Profa. Dra. Wanirley Pedroso Guelfi

Universidade Federal do Paraná

Curitiba, de de 2010.

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IV

Dedico este trabalho e todo o meu curso

de Ciências Sociais aos meus pais. Papi

e Mami, sem vocês eu jamais teria

conseguido chegar até aqui.

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V

AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais por seu trabalho, que possibilitou o meu ingresso

nesta universidade e mais ainda pelo amor, pela paciência, pela confiança e pelos

seus conselhos que nunca me deixaram desanimar durante toda a caminhada.

Agradeço também ao professor Márcio que teve para comigo muita

generosidade. Por toda a sua compreensão, por ter aceito me orientar, mesmo

sabendo que eu tinha outras ocupações e ainda muitas dúvidas e, principalmente,

por não ter desistido de me esperar! Muito obrigada.

Aos colegas que me visitaram no café para conversas sociológicas, mesmo

quando eu precisava atender aos clientes e não podia lhes dar a menor atenção.

Muito obrigada pelas visitas, pela atenção e pelo carinho.

Agradeço também a toda a minha família que torceu por mim e me

incentivou a realizar este trabalho. Em especial à minha bisavó, que faleceu este

ano, mas deixou em todos nós somente lembranças bonitas de uma mulher forte,

guerreira e ao mesmo tempo bondosa. Ela dizia que a única coisa que ninguém

jamais poderia tirar de mim seria o conhecimento, foi acreditando nestas palavras

que cheguei aqui.

Finalmente, agradeço ao Carlos, meu grande amor e meu companheiro.

Obrigada por estar ao meu lado nas madrugadas em que fiquei escrevendo, por

cuidar do café para que eu pudesse me ausentar por alguns dias e por ter tido toda

a paciência do mundo para o meu nervosismo e a minha falta de tempo. Eu amo

você.

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VII

RESUMO

Este trabalho foi realizado a partir de uma pesquisa no arquivo histórico da

Comunidade Evangélica de Joinville e debruçou-se sobre o tema da identidade

étnica teuto-brasileira.

Para isto, utilizamo-nos de uma abordagem histórica, tratando dos primeiros

anos da Colônia Dona Francisca, dando especial atenção à igreja luterana e à

escola alemã. Analisamos o papel desempenhado por estas duas instituições na

promoção da sociabilidade entre os imigrantes e na preservação dos costumes, da

língua e das tradições germânicas na cidade.

Pretendemos mostrar a relação que se estabeleceu entre estas duas

instituições e de que modo isto influenciou a vida na comunidade.

Preocupamo-nos em dar conta do fenômeno da germaneidade entre os

imigrantes da colônia, mostrar como ele se manifestou e em que momentos foi

manipulado para alcançar algum objetivo político, como por exemplo a construção

da escola particular e evangélica.

Palavras-chave: alemães, Joinville, germaneidade, escola alemã, igreja luterana

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VIII

SUMÁRIO

RESUMO ................................................................................................................. VII

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... IX

1. A FUNDAÇÃO DA COLÔNIA DONA FRANCISCA E A CHEGADA DOS

PRIMEIROS IMIGRANTES ..................................................................................... XII

1.1 Joinville, a cidade dos príncipes ................................................................ XII

1.2 O contexto das migrações na Europa do século XIX e a chegada dos

imigrantes à colônia ................................................................................................ XVI

2. A COMUNIDADE LUTERANA NA COLÔNIA DONA FRANCISCA ................. XXIII

2.1 A fundação da Casa de Oração Protestante .......................................... XXV

2.2 o trabalho social da comunidade evangélica .......................................... XXX

3. AS DESVENTURAS DA DEUTSCHE SCHULE EM JOINVILLE ................... XXXIII

3.1 A história da escola de 1866 a 1938 ................................................... XXXIII

3.2 Um projeto de escola étnica teuto-brasileira gerida pela comunidade

luterana ........................................................................................................... XLI

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. XLVI

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... XLVII

ANEXOS ............................................................................................................... XLIX

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IX

INTRODUÇÃO

A idéia de estudar imigração alemã não se deu ao acaso: é notório que eu

mesma sou descendente distante destes imigrantes, nasci em Joinville, morei lá até

os 17 anos, fui batizada na igreja luterana e estudei no Colégio Bom Jesus.

Nosso trabalho se insere no campo da Sociologia da Imigração, que é muito

amplo e tem inspiração no trabalho do pesquisador francês Jean Roche, que

inaugurou, no Brasil, os estudos acerca da imigração alemã no sul do país a partir

de uma ótica puramente sociológica. Sua obra “A colonização alemã e o Rio Grande

do Sul”, publicada em português no ano de 1969 tornou-se um clássico na área

justamente por ter rompido com aquela visão apaixonada que se tinha a respeito da

“epopéia imigrante nos trópicos” e até hoje ainda é referência obrigatória para quem

se inicia no tema das imigrações.

Em termos gerais, o presente trabalho vai debruçar-se sobre a questão da

identidade teuto-brasileira entre imigrantes alemães na cidade de Joinville no

período de 1851 até 1938. Propomo-nos a analisar este assunto a partir da

instituição escolar, em particular a Deutsche Schule (escola alemã), que foi fundada

em 1866 e funcionou até 1938, ocasião em que foi impedida de continuar existindo

pelo decreto de Nacionalização.

De início acreditamos que, assim como aconteceu em tantas outras

comunidades imigrantes no século XIX, a escola alemã em Joinville foi fruto da

preocupação da comunidade em dar educação aos seus filhos. Conseqüentemente

conseguiriam reproduzir seus costumes e tradições. Porém, já no contato preliminar

com o campo de pesquisa algo novo nos foi revelado: a escola alemã havia sido

construída no pátio da igreja luterana. E esse fato evidenciava uma relação óbvia,

até então desconsiderada por nós. A partir daí, começou a nos interessar também o

papel da comunidade luterana na cidade. A pesquisa no acervo histórico da

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X

Comunidade Evangélica de Joinville fez-nos deparar com inúmeras provas

documentais que flagravam a relação que havia se estabelecido entre a igreja

luterana e a escola alemã desde a sua fundação, ou melhor, desde quando a sua

construção não passava de uma idéia.

Logo, o foco desta análise passou a ser investigar o que, verdadeiramente,

motivou a construção de uma escola étnica alemã na cidade. De que forma deu-se a

relação entre a igreja luterana e a escola alemã. Como essas duas instituições

contribuíram para a preservação da identidade “germânica” entre os colonos

residentes no Brasil e ainda, até que ponto essas questões influenciaram o fluxo

migratório dessas populações para a cidade.

Passamos a compreender que, num primeiro momento, o que motivou a

construção de uma escola alemã para filhos de imigrantes no pátio da igreja foi uma

tentativa de se repensar toda a organização do ensino e da religiosidade na Colônia.

E em seguida a possibilidade de se criar um local próprio para dar educação moral e

religiosa, baseada no “espírito germânico”1, e que desse aos alunos condições para

que se tornassem bons profissionais.

Através de uma abordagem histórica, apresentamos nosso objeto de

pesquisa, a escola, em diferentes momentos da sua trajetória: desde a sua criação,

passando pelas intervenções que sofreu por parte do governo imperial, até o seu

fechamento por conta da campanha de nacionalização2 na Era Vargas. O fio

condutor do trabalho foi, então, a relação entre o papel da igreja luterana e da

comunidade teuto-brasileira no suporte à escola alemã durante estes períodos

conturbados.

Para desenvolver a relação acima explicitada, dividimos nosso trabalho em

três capítulos: no primeiro trataremos, de modo geral, da fundação da Colônia Dona

Francisca, do contexto das imigrações em meados do século XIX na Europa e da

chegada dos primeiros imigrantes alemães a Joinville; no segundo contemplaremos

a construção da Casa de Oração Protestante em 1857 e o trabalho social

desenvolvido pela igreja junto à comunidade desde então. O terceiro capítulo

1 TERNES, 1986, p. 29.

2 Através dos decretos 3580, sobre o livro didático, e 406, sobre o ensino de língua estrangeira, o presidente

Vargas conseguiu fechar as escolas étnicas no sul do país, entre elas a Deutsche Schule.

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versará sobre a escola alemã. Buscaremos compreender a mobilização social para a

fundação de uma escola particular. Além disso, observaremos os impactos que esta

sofreu durante a campanha de nacionalização em 1938, até ser obrigada a fechar as

portas, já que o idioma alemão havia sido proibido em território nacional, bem como

o funcionamento de instituições com nome estrangeiro, que ensinassem em língua

estrangeira ou mesmo que contassem com professores não naturalizados. Por fim,

na última parte do terceiro capítulo, estudaremos de que modo se deu a relação

entre a igreja luterana e a escola alemã em Joinville e quais as contribuições de

cada uma para a manutenção de uma “germaneidade” em território brasileiro.

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XII

CAPÍTULO I

1. A FUNDAÇÃO DA COLÔNIA DONA FRANCISCA E A CHEGADA DOS

PRIMEIROS IMIGRANTES

1.1 Joinville, a cidade dos príncipes

A cidade de Joinville está geograficamente situada no sul do país, na região

nordeste do estado de Santa Catarina. A antiga Colônia Dona Francisca, tinha sede

administrativa na cidade de Joinville e avançava ainda sobre alguns terrenos de

Campo Alegre, Garuva, Guaramirim, São Bento do Sul e Schroeder, que são hoje,

cidades vizinhas. (ver anexo I)

Conta-nos a história, que em 1840, o príncipe François Ferdinand Phillipe

Louis Marie d‟Orleans, filho do rei Louis Phillipe da França, foi incumbido de repatriar

os restos mortais de Napoleão Bonaparte da ilha de Santa Helena para a França.

Em sua viagem, passou pelo Brasil e visitou a família real brasileira, ocasião em que

conheceu a princesa Francisca Carolina, filha do Imperador D. Pedro I (ver anexo II).

Em 1843, por motivo do casamento do príncipe da França com a princesa de

Portugal e do Brasil, foi-lhes concedido um dote de 25 léguas quadradas de terra

localizadas a norte da província de Santa Catarina, que hoje correspondem ao

município de Joinville.

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XIII

Já em 1848, por conta da revolução que depôs o rei Louis Phillipe da

França, o casal de príncipes encontrava-se em situação financeira precária. Optou,

então, por negociar as terras do seu dote com uma companhia colonizadora alemã

chamada Sociedade Colonizadora de Hamburgo que, a partir de um acordo

assinado em 1849, começou a levar para a Colônia Dona Francisca3 os primeiros

imigrantes europeus.

Este acordo colocava à disposição da Sociedade Colonizadora 8 léguas

quadradas de terras e, em troca, a Sociedade comprometia-se em derrubar um

trecho de mata nativa, construir abrigo provisório para receber os primeiros

imigrantes e fornecer a eles, condições de sobreviverem naquele local.

Assim, oficialmente4 a história de Joinville começa a ser contada com a

chegada da primeira leva de imigrantes europeus em 9 de março de 1851 a bordo

da barca Colon.

O desenvolvimento da Colônia Dona Francisca, com o passar dos anos e a

chegada de mais imigrantes, pode ser analisada à luz das discussões de Giralda

Seyferth em sua obra “Imigração e Cultura no Brasil”. A autora observa que as

cidades colonizadas por imigrantes alemães preservaram um certo padrão de

organização espacial:

As cidades não repetem um padrão luso-brasileiro; guardam uma fisionomia própria, não tão européia como muitos pensam, mas com as adaptações que se fizeram necessárias (...) As cidades se desenvolveram a partir dos núcleos iniciais conhecidos pela denominação Stadtplätze entre os alemães: ponto de onde partiram as picadas principais, em geral junto ao rio, e onde se concentraram, desde o início, as casas comerciais mais importantes, a dministração,

3 Nome dado às terras do dote em homenagem à princesa Francisca Carolina.

4 Chamamos esta história de oficial porque é aquela mais comumente encontrada no material didático das

escolas, mais difundida entre a população joinvilense; porém, sabemos que antes mesmo da chegada destes imigrantes à Colônia Dona Francisca já residiam ali alguns portugueses reemigrados de outras Províncias (como a de São Vicente) juntamente com seus escravos, bem como transitavam por aquelas terras brasileiros que moravam na cidade de São Francisco do Sul. Para o nosso estudo, no entanto, importam somente as conseqüências desse processo migratório que se iniciou em meados do século XIX na Europa e trouxe para a Colônia Dona Francisca imigrantes germânicos.

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XIV

as escolas, a primeira capela, depois transformada em igreja, e mais

residências/oficinas de alguns artesãos (...)5

Segundo a autora, nestas colônias o espaço urbano se confundia com o rural,

pois as casas dos colonos possuíam, ao fundo, plantações que se sucediam ao

longo das mesmas estradas que eram as principais vias urbanas. A arquitetura das

casas procurava repetir padrões das suas regiões de origem, com a diferença de

que os materiais à disposição para construí-las eram outros. Um dos estilos de

construção mais comuns nas áreas de colonização alemã é a casa enxaimel que

mescla o uso de tijolos e de madeira6. Marcas que distinguem a arquitetura

germânica das outras seriam:

(...) o telhado empinado e a casa de dois andares com aproveitamento do sótão (...) O que mais caracteriza a casa dos colonos é a sua bipartição, isto é, o local da cozinha e do banho são separados da parte da casa destinada aos dormitórios e à sala de

estar.7

Há, contudo, a valorização de alguns elementos da cultura luso-brasileira,

como a varanda, por exemplo, que muitas vezes é construída na frente da casa,

passando por toda a lateral e chega até os fundos. Seyferth afirma, portanto, que

não existe no sul do Brasil um estilo arquitetônico “alemão” e muito menos

“europeu”. O que se pode dizer é que, aquilo que se observa nestas regiões, difere

do que se costuma considerar “tipicamente brasileiro”. Há apenas uma ressalva:

5 SEYFERTH, 1990, p. 44.

6 Uma curiosidade a respeito dessas casas é que não se usa pregos nem parafusos para a fixação dos materiais.

É como se os tijolos e a madeira fossem encaixados. Essa técnica possibilita, inclusive, desmontar e montar a mesma casa em outro lugar. Por outro lado, essa característica dificulta muito a manutenção, no caso de reforma dessas construções. Justamente por isso é que se encontram muitas casas que imitam o estilo enxaimel, pintando as madeiras de preto e deixando os tijolos à mostra, mas as divisões internas e a técnica de construção são diferentes. 7 SEYFERTH, 1990, p. 45.

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XV

Mas o que dá uma aparência específica à casa do colono, qualquer que seja sua origem, é a presença de um jardim, por mais modesto que se apresente. (...) uma pequena área destinada ao cultivo de flores, na frente da casa, é um costume mantido nas regiões de imigração, costume particularmente cultivado por teuto-brasileiros. Existe nesta língua um termo que designa a casa bem cuidada: Wohnkultur – a arte de morar bem ou de viver bem. Implícitos neta concepção de Wohnkultur estão o jardim, uma casa de boa aparência e confortável, e uma decoração que inclui cortinas nas janelas,

plantas e outros ornamentos.8

Mais adiante, veremos que a organização espacial da colônia esteve sempre ligada

às atividades religiosas, que aglutinavam a comunidade em torno das paróquias,

concentrando ali inúmeros serviços como a escola, o hospital, área de lazer,

orfanato, asilo, etc. Nesse sentido, Seyferth indica que não apenas a disposição

espacial das colônias se dava a partir da capela (futuramente transformada em

igreja), como também laços sociais se construíam ali e, assim, o arranjo social da

comunidade estava orientado pela religião.

Para compreender o processo de colonização da Colônia Dona Francisca, é

importante lembrar, ainda, que para além da negociação entre os príncipes e a

Sociedade Colonizadora, o incentivo à imigração européia para o Brasil partia do

próprio governo imperial. Esperava-se, com isso, preencher os vazios populacionais

do sul do país e, ainda, atrair mão-de-obra para o campo, que não podia mais contar

com o trabalho escravo. Em especial na Colônia Dona Francisca, a fixação de

imigrantes em pequenas propriedades policultoras, com base no trabalho familiar,

poderia formar uma camada social média que, posteriormente, viria a se integrar

economicamente à nação.

No entanto, o que se constata em relação à imigração alemã para o sul do

Brasil, segundo a pesquisadora Ilanil Coelho, é que

8 SEYFERTH, 1990, P. 47.

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(...) o fluxo de imigrantes no Brasil, particularmente dos alemães, obedeceu a diversas circunstâncias históricas inter-relacionadas. O processo de colonização do estado de Santa Catarina reflete bem este quadro, na medida em que a conjunção de fatores internos e externos ao Brasil, condicionou a forma, os meios e os objetivos da imigração. (...) A fixação de imigrantes atrelada à pequena propriedade, resultou, ainda, numa estrutura sócio-econômica

completamente diferente da sociedade rural brasileira tradicional.9

O que chama atenção é esta relação “comercial” que se estabelece entre a

Sociedade Colonizadora e os imigrantes que serão trazidos da Europa. Isto porque,

diferentemente de outras regiões do Brasil que receberam fluxos migratórios

“espontâneos”, a Colônia Dona Francisca foi um projeto de colonização privado,

empreitado por uma companhia alemã e respeitando um acordo estabelecido

previamente com o Príncipe de Joinville10.

Tendo em vista essas discussões, objetiva-se compreender que motivos

levaram esse contingente populacional europeu a deixar suas pátrias e seguir para

os trópicos.

1.2 O contexto das migrações na Europa do século XIX e a chegada dos

imigrantes à Colônia

O panorama sócio-econômico da Europa em meados do século XIX era de

crise e o fator econômico foi, certamente, determinante para a intensificação do fluxo

migratório em direção à América. O que nos interessa aqui, mais especificamente, é

saber o que acontecia na Alemanha durante estes anos.

A industrialização avançava sobre o modo de produção artesanal e atingia

tanto o meio rural como o urbano. Como conseqüência imediata observou-se o

9 COELHO, 1993, p. 15.

10 O título de “Príncipe de Joinville” foi concedido pelo rei Louis Phillipe da França a seu filho e, segundo o

historiador joinvilense Carlos Ficker, a partir de 1852 o núcleo da colônia passou a se chamar Joinville em homenagem ao antigo proprietário das terras.

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XVII

empobrecimento dos pequenos produtores agrícolas e dos artesãos. À medida que

esse processo foi-se intensificando, restaram-lhes poucas alternativas: trabalhar

para um grande proprietário, conseguir emprego em uma indústria ou emigrar.

Assim, a emigração passou a ser uma alternativa à miséria ou uma opção para

quem tentava fugir do país preservando ainda uma condição financeira razoável.

Somava-se a isso um crescimento demográfico que excedia a capacidade produtiva

do país e uma concentração de muitas terras nas mãos de poucos proprietários.

Formou-se assim uma massa de camponeses e artesãos pobres que

significava um obstáculo à estabilidade interna das províncias que mais tarde

formariam a Federação Alemã. Os governos passaram a entender a emigração

como uma solução para esse problema e, inclusive, passaram a convidar

“indesejáveis” a deixarem o país.

Entre as múltiplas técnicas de controlar as forças naturais e sociais, a migração figura-se como uma das mais relevantes... Relativamente rara nos séculos anteriores, a migração se torna, no século XIX, nos países europeus, um meio cada vez mais comum de prevenir ou

modificar situações econômicas indesejáveis.11

O historiador joinvilense Dilney F. Cunha aponta ainda outros fatores que

teriam impulsionado o fluxo emigratório na Alemanha da época. Tão importantes

quanto as condições econômicas, teriam sido as religiosas e políticas naquele

contexto. A Prússia era palco de uma estrutura ainda feudal, comandada pela

nobreza agrária que não permitia direitos civis ou qualquer liberdade aos cidadãos.

Contra este regime manifestaram-se, em 1848, estudantes, intelectuais liberais,

industriais, a burguesia culta e os democratas, reivindicando amplas reformas

sociais, a instalação de uma monarquia parlamentar, a promulgação de uma

“constituição” por uma Assembléia e a unificação da Alemanha. Já no fim do ano de

1848 as forças da reação conservadora dominavam a situação e a partir de 1849 os

militares prussianos perseguiam revoltosos, deixando-lhes a opção entre a prisão e

11

WILLEMS, 1980, p. 32

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XVIII

o fuzilamento. Cunha afirma que, neste período, cerca de 80 mil pessoas foram

perseguidas.

Os liberais foram substituídos na administração pública por burocratas conservadores, o Parlamento de Frankfurt foi dissolvido e a Constituição revista até que, em 1851 a Liga Alemã comandada pela Áustria e pela Prússia anulou os “Direitos Fundamentais do Povo Alemão” (Grundrechte des deutschen Volks), restringindo a liberdade

de opinião e de imprensa e instaurando a censura (...)12

Nem um pouco distantes de todos estes acontecimentos, encontravam-

se alguns grandes comerciantes da cidade de Hamburgo, entre eles o Senador

Christian Mathias Schröder, que no ano de 1849 fundou a Sociedade Colonizadora

(Colonisations-Verein von 1849 zu Hamburg). No início ela pretendia aumentar as

relações comerciais entre o Brasil e a Alemanha, porém estas negociações jamais

obtiveram êxito. Uma alternativa mais rentável poderia ser enviar emigrantes

alemães para o Brasil, onde estes fundariam colônias agrícolas.

Mesmo tendo servido a interesses das elites européias da época, a

emigração alemã não foi um projeto político oficial do governo. Segundo Coelho,

(...) vários estados alemães passaram a estimular tal atividade, através da abolição de antigas restrições e do financiamento de viagens para os interessados. Porém, coube à iniciativa particular – a partir da segunda metade do século XIX – a maior parte da organização da emigração, a qual consistia no recrutamento de interessados em emigrar, negociação e obtenção de terras para fixação destes além de custeio de viagens, estadias e sobrevivência

nos primeiros tempos.13

12

CUNHA, 1996, p. 10. 13

COELHO, 1993, p. 17

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XIX

O senador Schröder já havia feito contato com o Príncipe e a Princesa de

Joinville, que na época encontravam-se exilados na Inglaterra, no sentido de

negociar terras no sul do Brasil para as futuras instalações de uma colônia. O

contrato entre eles foi firmado no ano de 1849 e a fundação da Colônia Dona

Francisca data de 9 de março de 1851, quando a barca Colon atracou às margens

do rio Cachoeira, desembarcando 118 imigrantes vindos da Suíça e do Grão Ducado

alemão de Oldenburg e ainda 61 noruegueses procedentes do Rio de Janeiro. Sabe-

se que as estatísticas sobre imigração no Brasil neste período não são muito

confiáveis, mas partindo dos relatos disponíveis acerca do tema, Richter (1982 apud

CUNHA, 1996, p. 11) infere que:

Ao final do ano, a Colônia contava com 394 habitantes, dos quais 384 eram protestantes e apenas 10 católicos. (...) de 1850 a 1888 foram encaminhados para a Colônia Dona Francisca 17.408 colonos, dos quais 12.911 eram lavradores, 1.288 artesãos, 562 operários e 1.647 de profissões diversas. Quanto a nacionalidade, 12.290 eram alemães, 3.224 austríacos e 1.894 de outros países, principalmente escandinavos e suíços. E quanto à religião, 11.944 eram protestantes

e 5.430 católicos.14

E que tipo de ambiente encontraram estes imigrantes ao chegarem em

terras brasileiras? (ver anexo III)

Uma possível descrição nos é fornecida pelo colono suíço Christian

Hermann, imigrado em julho de 1851, trazido pelo “Emma & Louise”, segundo navio

que aportou na Colônia em carta aos parentes:

14

CUNHA, 1996, p. 11.

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XX

Como encontramos a Colônia? Para dizer a verdade, desembarcamos do navio com um certo receio, pois as informações recebidas em São Francisco, não eram das melhores. Esperávamos uma cidade e muitas plantações e ficamos decepcionados com a realidade: em vez da cidade encontramos choupanas feitas de barro e cobertas com folhas de palmeiras. Somente uns 200 morgos estavam desmatados e poucas plantações tinham sido feitas. Não negamos os esforços da Sociedade Colonizadora, empregando colonos na construção de caminhos e pontes, e no desmatamento das florestas, pelo que... já desde o primeiro dia recebem

vencimento...15

Ao invés daquele paraíso exuberante pintado pelos agentes da emigração

na Europa, descortinou-se perante os olhos dos imigrantes uma paisagem bem

adversa:

(...) em vez de uma “cidade”, uma floresta inteira a ser derrubada; em vez de “casas” choupanas; em vez de jardins floridos, plantações de milho e café; entusiasmo e a expectativa transformaram-se em

desilusão e medo.16

Diante disso, é compreensível que cerca de dois terços dos 8.000 imigrantes

que deram entrada na colônia até 1860 tenham reemigrado. Porém, segundo o Dr.

Robert Avé-Lallemant (que esteve na Colônia Dona Francisca em 1858)

sedentarizaram-se “os bons, os descentes e bem intencionados”17. E, para tanto, foi

decisiva a atuação de uma elite, composta por intelectuais liberais, muitos com

formação acadêmica, emigrados devido à perseguição que sofreram depois do

fracasso da revolução de 1848. Entre eles, Dr. Ottokar Dörffel, Pastor Georg Hölzel,

Dr. Adolf Haltenhoff, Tenente Louis Niemeyer, Otto Niemeyer, Major Friedrich Lange,

Carl Lange, Capitão Benno Von Frankenberg und Ludwigsdorf e o engenheiro

15

FICKER, 1965, p. 92 16

CUNHA, 1996, p. 18. 17

AVÉ-LALLEMANT, 1953, p. 102

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XXI

Friedrich Heeren. No capítulo 3 voltaremos a falar desses nomes quando tocarmos

no assunto da comunidade escolar.

A autora Ilanil Coelho aponta que, já no fim do século XIX, a emigração para

o sul do Brasil era considerada bem-sucedida pela Sociedade Colonizadora de

Hamburgo, pois imaginava-se criar naquelas colônias um mercado consumidor de

manufaturados e abastecedor de matérias-primas.

(...) o fato de terem sido formados verdadeiros “quistos étnicos” no interior dessas colônias, favorecia sobremaneira o estabelecimento

de laços econômicos e políticos com a Alemanha.18

A partir de um relatório elaborado em 1857 sobre a Colônia Dona Francisca

pela “Associação de Proprietários” (Verein der Grundbesitzer), veremos que também

do ponto de vista de alguns colonos a imigração estava se mostrando muito

vantajosa.

É o que nos mostra este trecho retirado do trabalho de Dilney F. Cunha:

Na Colônia fala-se exclusivamente o alemão, o imigrante encontrará aqui os queridos e conhecidos costumes, tradição e vida alemãs, e reencontrará aqui a velha pátria, despida no entanto de vários erros, deficiências e preconceitos, e concordará conosco que a pátria alemã estará em todo lugar em que soar a língua alemã... a vida aqui tem uma feição totalmente européia. Em Joinville há uma igreja protestante e uma escola de língua oficial... uma sociedade de atiradores, uma associação de canto coral... Um grupo de teatro

amador... duas lojas maçônicas e uma associação cultural.19

18

COELHO, 1993, p. 18. 19

CUNHA, 1996, p. 19 e 20.

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Apesar de exageras e parciais essas impressões não deixam de significar algo.

Mesmo divididos em grupos heterogêneos e de nacionalidades distintas, como

vimos no início deste capítulo, estes imigrantes buscavam preservar sua identidade,

seu caráter, suas idéias, seus costumes e é nesse contexto que se insere a igreja e

a religiosidade.

Veremos, a partir de agora, como se deu a formação desse “quisto étnico

inassimilável”20 no interior da Colônia Dona Francisca e qual a participação da

instituição religiosa, em particular da igreja luterana, neste processo.

20

Assim eram chamadas, no governo Vargas, estas regiões de grande concentração de imigrantes que continuavam preservando seus costumes e ainda não haviam sido “assimilados” pela cultura brasileira.

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XXIII

CAPÍTULO II

2. A COMUNIDADE LUTERANA NA COLÔNIA DONA FRANCISCA

Quando se pensa no contexto brasileiro da segunda metade do século XIX,

deve-se ter em mente que a religião oficial do Brasil Império era católica. Em

contraponto a isso já vimos, no capítulo anterior, que a imensa maioria de imigrantes

europeus que deu entrada na Colônia a partir de 1851 era protestante.

Seyferth aponta que, no início os protestantes tiveram problemas; mas ainda

assim eram tolerados desde que seus cultos fossem celebrados em locais sem

aparência de igreja (torre, sinos, etc). Porém essa questão religiosa se refletia

também no aspecto jurídico:

Não podiam naturalizar-se; não possuíam estado civil; considerados em concubinato, os filhos eram ilegítimos... É certo que essa oposição ao credo evangélico contribuiu para a segregação social das comunidades protestantes (...) só em 1861 a lei brasileira

reconheceu o valor jurídico dos casamentos não-católicos (...)21

Até então, pela Constituição do Império de 1824 os direitos políticos dos

protestantes eram restritos e desiguais: só podia votar quem fosse naturalizado, só

21

SEYFERTH, 1990, p. 50.

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XXIV

podia-se eleger quem também já era naturalizado, o acesso à Assembléia

Legislativa lhes era vetado, bem como o sepultamento em cemitérios católicos ou

públicos22. Soma-se a isso, ainda, um movimento de reforma no seio da Igreja

Católica brasileira que culminou com o Concílio Vaticano I em 1840. Ele exprimia

todo o seu conservadorismo contestando o liberalismo e qualquer prática ou

divulgação não-católica.

Por outro lado, o protestantismo contava com a proteção dos liberais e do

próprio Estado, que via na imigração protestante a possibilidade de promover o

progresso e o aumento de riqueza para a nação.

Os conflitos entre o governo imperial e a igreja católica tiveram seu auge em

1872 na chamada “Questão Religiosa”. Foi quando o clero brasileiro, atendendo às

orientações do Vaticano, decidiu proibir que maçons fossem membros de ordens

religiosas e expulsando aqueles que já o fossem. O Estado se colocou a favor da

Maçonaria e baniu os bispos que haviam feito tais declarações.

Na Colônia Dona Francisca, o convívio entre fiéis de diferentes

denominações sempre pareceu menos conturbado. Por exigência dos colonos e

atendendo a interesses da Direção da Colônia, a Sociedade Colonizadora de

Hamburgo contratou, na Alemanha, no ano de 1851 o pastor luterano Daniel

Hoffmann; anos mais tarde, em 1857 trouxe de lá também um padre católico, Carlos

Boegershausen.

A respeito da questão religiosa que se dava no âmbito nacional, pode-se

observar a partir das práticas do Padre Carlos na Colônia Dona Francisca alguns

reflexos deste conflito. Segundo Cunha23, assim que chegou Padre Carlos integrou-

se logo à comunidade, porém de maneira pouco “ortodoxa”: em 1858 ajudou a

fundar a “Liga de Cantores” e a “Sociedade Harmonia”, compostas quase

exclusivamente por protestantes e em 1864 participou como membro do coral nas

festividades da inauguração do templo protestante. Daí em diante nota-se uma

mudança radical no comportamento do padre, provavelmente após ter sido advertido

por seus superiores. Já em 1865, padre Carlos pediu ao governo imperial que

expropriasse o terreno reservado pela Direção da Colônia à Maçonaria, que ficaria

22

CUNHA, 1996, p. 21. 23

CUNHA, 1996, p. 23.

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XXV

ao lado da igreja católica; o governo negou o pedido e as duas permaneceram

vizinhas. No ano de 1870 o padre abençoou um cemitério particular católico, pois até

então havia permitido que os seus fiéis fossem sepultados no cemitério dos

luteranos. Apesar de todos esses pequenos conflitos, sabe-se que famílias luteranas

mandavam seus filhos para a escola do padre Carlos, mesmo depois da fundação

da Escola Alemã, ligada à igreja luterana.

Enfim, trata-se apenas de um exemplo para ilustrar como se davam as

relações entre católicos e luteranos na colônia. Mas para além desses conflitos

(mais políticos do que religiosos) crescia entre os imigrantes um sentimento de

pertencimento e de identidade que se sobrepunha a essas pequenas diferenças.

Em se tratando de um contexto colonial, nenhuma instituição teve mais peso

para a organização social da vida das pessoas quanto a igreja. E se quisermos

entender de que modo se mantinha e se incentivava essa identidade étnica entre os

imigrantes, é para a igreja que devemos nos voltar.

2.1 A construção da Casa de Oração Protestante

Desde 1849 já se pode notar a preocupação da Sociedade Colonizadora de

Hamburgo e da Direção da Colônia com a questão da “assistência espiritual” aos

imigrantes da colônia. No contrato firmado entre o Senador Christian Mathias

Schröder e o senhor Leonce Aubé (representante do Príncipe e da Princesa de

Joinville) deixava-se claro que a Sociedade Colonizadora estaria se comprometendo

em

(...) construir conforme a necessidade, igrejas, hospitais, escolas, etc., e enviar os respectivos sacerdotes, médicos e professores. Para

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XXVI

fazer face às despesas com a manutenção das estradas e caminhos, poderá levantar o Sr. Schröder dos colonos proprietários um imposto anual na base de 2$000 por família no máximo. (parágrafo 5, cláusula

nº 4).24

Evidencia-se, assim, que tanto a Sociedade Colonizadora quanto a Direção da

Colônia sabiam da importância da religiosidade para a fixação destes imigrantes na

colônia. A presença de um representante da igreja poderia confortá-los no caso de

alguma morte, animá-los para o trabalho, mesmo diante das adversidades e, dessa

forma, criar um ambiente mais harmônico para a vida na colônia que evitaria a

dispersão dos imigrantes frente às dificuldades que não eram poucas.

Ainda antes da chegada do primeiro pastor à cidade, a Direção da Colônia já

havia contratado o senhor Carl Mörikofer (que chegou na primeira barca, a Colon em

março de 1851) para realizar os serviços religiosos. Ele prestava assistência a

enterros, realizava batismos e até casamentos, que mais tarde seriam validados

pelo pastor ordenado. Estas cerimônias religiosas aconteciam em um pequeno

rancho construído pela Direção e contava apenas com um simples e pequeno sino

ao lado da construção que anunciava os ofícios. Apesar dos esforços, o senhor Carl

Mörikofer mostrou-se despreparado para o desempenho da função e diante desta

situação, a Sociedade Colonizadora Hamburguesa decidiu contratar um pastor

luterano na Alemanha para o exercício do cargo. Entrou em contato com as

autoridades eclesiásticas da cidade vizinha a Hamburgo, Lübeck e conseguiu, em 7

de outubro de 1851, a contratação de um doutor em Filosofia ordenado pelo

Consistório de Lübeck, o Pastor Jacob Daniel Hoffmann. As condições em que se

deu esta convocação estão expostas a seguir:

A pedido de alguns colonos e animado pelo desejo de conservar na confissão de seus pais os cristãos evangélicos que mudaram de sua pátria alemã para a Colônia Dona Francisca; de dar-lhes oportunidade a deixar instruir os seus filhos na doutrina e moral cristãs, a manterem a comunhão em cultos públicos (...) a abaixo

24

FICKER, 1965, p. 45

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XXVII

assinada Sociedade decidiu convocar para esta finalidade o senhor Doctor Philosophie Jacob Daniel Hoffmann (...) O senhor D. Hoffmann promete e obriga-se a anunciar de modo puro e reto a Palavra de Deus, (...) a administrar os Sacramentos conforme o rito da Igreja

Lutherana; e a edificar a comunidade com seu exemplo de vida.25

Algumas considerações a respeito desse documento (ver Anexo IV)

precisam ser feitas. De imediato o que se observa é a ação rápida da Sociedade

Colonizadora em contratar um pastor para a Colônia Dona Francisca, atendendo as

necessidades espirituais dos colonos, no mesmo ano em que deu início ao fluxo

migratório para esta região. Certamente o Senador Schröder não teria empenhado

esforços e gastos para essa contratação se não visse nela alguma oportunidade de

ganho.

Tendo limitado os poderes do pastor, subordinando-o à Direção da Colônia,

a Sociedade Colonizadora garantiu um vínculo entre a atividade religiosa e os

interesses da administração. A adoção de uma só forma confessional (luterana

hamburguesa), prevista no contrato, contribuiu definitivamente para homogeneizar a

religiosidade entre os imigrantes e evitar o isolamento e a dispersão de

congregações. Ficou evidente, portanto, que a função do pastor seria estratégica

para a integração de diferentes grupos nacionais e/ou religiosos entre si, visando a

prosperidade da colônia.

O contrato previa a permanência de três anos do Pastor Hoffmann na

Colônia Dona Francisca, mas, passados um ano e meio, ele e sua família mudaram-

se para a cidade de Petrópolis no Rio de Janeiro a convite da comunidade

evangélica de lá.

Depois da partida do Pastor Hoffmann foi trazido da Alemanha, em abril de

1854 o pastor austríaco Georg Hölzel. Figura que mereceu destaque na história da

Comunidade Evangélica de Joinville por sua trajetória de engajamento político na

Revolução de 1848, por ter sido perseguido na Áustria pelo Ministério da Cultura e

pelo clero católico e por seu caráter dinâmico frente a toda e qualquer adversidade. 25

“Convocação e Instalação do Senhor D. phil Jacob Daniel Hoffmann como Pregador e Pastor na Comunidade Evangélica que se formará na Colônia Dona Francisca”. Documento lavrado em Hamburgo a 7 de outubro de 1851. A.H.C.E.J. Caixa 1: Documentos históricos

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XXVIII

A esperança, a esperança por melhora é que também nos fez abandonar nossa pátria, que nos fez procurar além do oceano uma nova pátria, que alimenta nossa coragem (...) Abandonamos nossa

pátria para fundar uma nova pátria muito, muito longe, além do mar.26

Essa personalidade contumaz levou Hölzel a buscar realizar, desde o primeiro dia

na Colônia, a utopia dessa nova pátria a ser construída, moldada. Tanto assim que,

graças à sua habilidade diplomática, o governo imperial aprovou a planta da Igreja

Protestante e contribuiu com dez contos de réis para sua construção. A obra teve

início em 20 de abril de 1857 e no dia 01 de junho daquele mesmo ano aconteceu o

ato solene de lançamento da pedra fundamental da Casa de Oração Protestante

numa festividade (ver anexo V) cheia de pompa e com presenças ilustres. A

solenidade reuniu na Colônia membros da comunidade luterana, autoridades

religiosas, a Direção da Colônia e até um representante do presidente da Província

de Santa Catarina. A ocasião foi descrita em ata pelo senhor Ottokar Dörffel; dela

transcrevemos aqui um trecho:

(...) reuniram-se hoje de manhã às 10 horas: os professores e sua juventude escolar, no templo provisório, muitos colonos, homens e rapazes, nos arredores desta casa, e os sócios da Direção da Colônia, além dos especialmente para este fim convidados de honra, nas imediações da Casa de Direção. (...) Depois de formado o cortejo pelos que ali se reuniam, dirigiu-se o mesmo, sob o acompanhamento musical, ao local da construção, indo os professores e seus alunos na frente, em seguida a banda de música e o coral de cantores, depois o Sr. Pastor Hölzel, após este, os sócios da Direção da Colônia, além dos convidados de honra, e finalmente os homens e rapazes da Colônia, encerrando o cortejo. Enquanto isso, reuniram-se no local da construção, as senhoras e senhoritas da colônia, tomando os lugares para elas preparados. Depois que o cortejo chegou ao local da construção e os diferentes grupos tomaram os seus lugares, cercando as mulheres e o local da solenidade em semicírculo oval,

26

Prédica proferida pelo Pastor Georg Hölzel, a bordo do navio “Linda”, no domingo Cantante, 14 de maio de 1854

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XXIX

teve início a cerimônia, com a comunidade e o coral de cantores entoando o hino de louvor e agradecimento: „Somente Deus nas alturas seja louvado’. Em seguida o Sr. Pastor Hölzel proferiu um sermão solene (...) Depois disto, o Sr. Mestre-de-obras Kröhne apresentou as ferramentas, o martelo e a colher de pedreiro numa almofada e entregou-a, após a bênção das ferramentas pelo Senhor Pastor (...) ao Diretor de Colônia Sr. Aubé (...) o qual passou-a ao Sr. Major Alwin, como representante de S. Excia., o Presidente da Província, para a execução das tradicionais três marteladas (...) e o ato do lançamento da pedra fundamental (...) a festiva solenidade é

encerrada com uma oração e a bênção do Sr. Pastor Hölzel.27

A enorme repercussão obtida por esta solenidade não provou apenas a

popularidade do Pastor Hölzel, mas proporcionou um momento de sociabilidade

para os colonos e marcou profundamente a vida da comunidade com uma

“religiosidade oficial”.

Na Colônia Dona Francisca a vida social dos colonos esteve sempre

vinculada à igreja. Momentos solenes como este, acima descrito, serviram para

reforçar estes laços, criando uma identificação entre os membros da comunidade e

avivando um sentimento de “pertença”.

O que tentamos demonstrar aqui é que a Igreja Protestante, através de seus

rituais e da sua atuação social, conseguiu tomar a frente desse processo de

socialização e reprodução dos costumes para a manutenção de uma identidade

étnica teuto-brasileira.

Veremos a seguir algumas obras sociais da igreja luterana em Joinville e de

que forma ela procurou atuar para se aproximar mais da sociedade.

2.2 O trabalho social da Comunidade Evangélica

27

Ata do lançamento da pedra fundamental da Igreja da Paz, lavrada por Ottokar Dörffel em 1º de junho de 1857. A.H.J., transcrição e tradução de Maria Thereza Böbel, dez/1985.

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XXX

A centralidade (espacial e ideológica) da igreja na vida das colônias é uma

característica das comunidades de imigrantes alemães, sendo observada também

na Colônia Dona Francisca. Seyferth observa que a organização comunitária esteve

sempre ligada às atividades religiosas, católicas ou protestantes. E nos dois casos a

igreja não é uma entidade isolada, caracterizada apenas pela celebração de cultos e

auxílio espiritual.

A capela constituiu o marco inicial de muitos povoados e vilas (...) A capela podia ser, ao mesmo tempo, local de culto, sala de aula, salão paroquial, etc.(...) A “comunidade religiosa” inclui a escola (primária e/ou secundária, e em alguns casos também superior), uma área de lazer, como é o caso do salão paroquial, além de diversas entidades assistencialistas, como asilos, orfanatos e hospitais. Em muitos lugares, essa “comunidade” existe também num plano espacial, isto é, os edifícios (igreja, asilo, hospital, etc.) são construídos próximos uns dos outros. Sua administração pode estar a cargo do clero, ou existe uma espécie de diretoria integrada por pessoas notáveis da

localidade, mais comum na comunidade evangélica luterana.28

Infere-se, a partir dessas observações, que a igreja conseguia ter sobre a

comunidade um certo tipo de controle social; já que para obter alguns serviços, ditos

públicos, os colonos obrigatoriamente dependiam dela.

Na Colônia Dona Francisca, a igreja protestante se fazia presente através de

instituições que mantinha vinculadas a ela, como por exemplo: o cemitério, o

hospital, o asilo e a escola.

Cunha29 nos relata que antes da chegada do primeiro pastor luterano, Sr.

Hoffmann, os mortos eram enterrados em um terreno baixo, bem próximo do “centro”

da colônia. Somente por iniciativa do pastor Hoffmann abriu-se outro cemitério, um

28

SEYFERTH, 1990, p. 52 29

CUNHA, 1996, p. 69.

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XXXI

pouco mais afastado do núcleo da colonização. O terreno para o novo cemitério foi

destinado pela Sociedade Colonizadora às confissões católica e protestante,

recebendo cada parte iguais 2 morgos.

Mais tarde, em 1859, uma reunião entre representantes das duas

comunidades resolveu que, por serem maioria absoluta, os protestantes ficariam

com 3 morgos e os católicos com apenas 1. Note-se que esta decisão partiu do

padre Boegershausen num país de religião oficial católica e num momento em que a

Igreja Católica considerava indivíduos de outras denominações como inimigos. Foi

um caso raro de “ecumenismo” no século XIX: protestantes e católicos sepultados

lado a lado, sem nenhuma cerca ou muro que os separasse.

Já o ano de 1916 foi importante para a comunidade luterana de Joinville

porque aos 12 de novembro deste ano a imigrante da Saxônia Helena Dorothea

Trinks Lepper reuniu na escola alemã um grupo de 80 senhoras para fundar a

Sociedade de Socorro das Senhoras Evangélicas de Joinville, que foi o embrião do

Hospital Dona Helena. A imigrante foi pioneira na fundação da entidade mantendora

e doou o imóvel onde hoje está localizado o hospital.30

Anos mais tarde, em 1964 iniciou-se a obra de construção do ancionato

Bethesda que contou com a doação de terras por um morador e ajuda financeira ou

força de trabalho da própria comunidade para que, no ano seguinte, começasse a

funcionar como unidade de tratamento para idosos e, mais tarde se transformasse

em hospital, maternidade e casa de repouso.

O caso da escola é um pouco distinto dos anteriormente descritos, já que

não partiu de uma iniciativa particular como o hospital, nem teve intervenção direta

do governo, como o cemitério. Outra diferença é que foi anterior a todas estas outras

iniciativas da comunidade luterana.

Para entendermos o que motivou a construção de uma escola alemã para os

filhos de imigrantes e o como a igreja luterana participou disso, vamos nos debruçar

sobre o tema ao longo do próximo capítulo.

30

Revista Comemorativa dos 150 Anos da Comunidade Evangélica Luterana de Joinville, 2001, p. 39.

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XXXII

CAPÍTULO III

3. AS DESVENTURAS DA “DEUTSCHE SCHULE” EM JOINVILLE

3.1 A história da escola de 1866 a 1938

A história da Deutsche Schule (escola alemã) está estreitamente ligada ao

desenvolvimento da cidade de Joinville. Na medida em que a colonização da cidade

se deu através da iniciativa privada, era comum que faltassem recursos

governamentais para salários, obras e serviços públicos na Colônia Dona Francisca.

Na verdade, as áreas de colonização, durante todo o século XIX, não receberam maior atenção das autoridades provinciais, e mesmo o ensino primário foi descuidado, ou melhor, foi deixado sob a responsabilidade dos imigrantes. Coube aos padres e pastores e aos próprios colonos a construção das escolas – muitas vezes identificadas com a capela, que servia de local de culto e sala de

aula.31

31

SEYFERTH, 1990, p. 50

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XXXIII

Frente a essa situação de abandono, restou aos imigrantes organizar-se em

associações para tentar reunir esforços e solucionar juntos os problemas cotidianos

que atingiam a todos.

Por reivindicação dos colonos e em cumprimento ao contrato firmado em

1849 entre a Sociedade Colonizadora de Hamburgo e o Sr. Aubé, chegou a Joinville

em junho de 1854 o Sr. Carl Otto Schlappal. Enviado pelo Presidente da Província a

pedido do Sr. Aubé, foi efetivado o primeiro professor da Colônia.

Não demorou até que ele conquistasse a antipatia de toda a comunidade

imigrante, pois negou-se a lecionar em língua alemã (só dava aulas em português)

alegando que seu ordenado não era suficiente para ensinar dois idiomas. Além

disso, pelo que mostra uma correspondência (ver anexo VI) enviada pelos colonos

ao Presidente da Província em 1858, o estilo de vida do professor Schlappal era

motivo de preocupação para os imigrantes.

Estes, liderados pelo Pastor Hölzel e amparados pelo Presbitério da Igreja

Luterana, conseguiram articular a saída do professor Schlappal da Colônia e a

indicação de “uma pessoa de confiança da comunidade” para as atribuições de

professor do município, o professor Carl Julius Parucker.

No mês de maio de 1856 o Professor de Primeiras Letras desta Colônia Carl Otto Schlappal recebeu outro emprego e deixou esta Colônia à grande satisfação de todos, porque por suas intrigas e por sua vida imoral ele dera mal exemplo a mocidade e carecendo dos conhecimentos necessários e não sabendo bem a nossa língua não cumpria os seus deveres como Professor, de sorte, que nenhum pai mandara mais os seus filhos na escola (..) E como será a impressão que tal fato fará na nossa pátria? Está impossível que a emigração dirija-se em maior escala para o Brasil, não podendo nos assegurar aos nossos patrícios, que a educação de nossos filhos seja confiada a homens dignos e sábios e sabendo a nossa língua e os nossos

costumes.32

32

Petição enviada por moradores da Colônia Dona Francisca ao Diretor Geral da Repartição das Terras Públicas em 12 de maio de 1858. Caixa 1: Documentos Históricos: A.H.C.E.J.

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XXXIV

Percebe-se que o teor da carta é de reclamação e ameaça, pois coloca em questão

a continuidade do fluxo migratório alemão para o Brasil. Revelando, desta forma, a

centralidade do assunto „educação‟ para a vida dos imigrantes. E ainda que o projeto

de ensino estes imigrantes esperavam conseguir para seus filhos era de uma escola

que ensinasse em língua alemã e cujo professor partilhasse dos mesmos costumes

e crenças que os alunos.

Num primeiro momento as reivindicações dos colonos foram atendidas, um

professor da sua preferência foi nomeado para o cargo, mas passados alguns anos,

a situação do ensino na sede da Colônia, Joinville, continuava crítica. O historiador

Cunha33 relata que a escola construída e mantida pelo Estado, em um terreno doado

pela Sociedade Colonizadora à Comunidade Evangélica estava em ruínas, o

governo não mostrava interesse pelo caso e cada vez mais famílias protestantes

mandavam seus filhos à escola do padre Carlos.

Frente a esta situação, o Presbitério da Igreja tomou a iniciativa de formar,

em 1865, um comitê em prol da construção de uma nova escola: desta vez particular

e protestante. Faziam parte desta comissão: Ottokar Dörffel, Louis Niemeyer, Carl

Lange, Dr. Haltenhoff, Hermann Lepper e o Pastor Hölzel.

Os objetivos deste comitê ultrapassavam o intuito de viabilizar a construção

de uma escola, prestavam-se a repensar toda a organização do ensino e da

religiosidade na Colônia. É o que se observa neste trecho de matéria publicada por

Ottokar Dörffel no jornal Kolonie Zeitung em 30 de dezembro de 1865:

Desistir de querer preencher o cargo de pastor com um teólogo formado – pois para a nossa situação eles são muito exigentes em relação ao padrão de vida – e em vez desses convidar missionário alemães, os quais recebem primeiramente uma formação para o magistério e só depois para os serviços paroquiais. (...) poderíamos ter na Colônia 4 distritos com escolas e igrejas e, cada um teria na pessoa de um missionário seu próprio professor e pastor. (...) Tendo em vista a juventude, que precisa de instrução, a Escola é mais importante do que a Igreja. A Escola deve estar em primeiro lugar,

pois onde falta a escola a igreja nada pode fazer.34

33

CUNHA, 1996, p. 67. 34

CUNHA, 1996, p. 67

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XXXV

As primeiras reuniões da comissão aconteceram em 1866, quando a população

urbana da Colônia era de 974 pessoas, enquanto a rural contava com 3.693

imigrantes. Nasceram ali a “Associação Escolar” (Schulverein) e as bases da Escola

Alemã (Deutsche Schule).

Da criação do comitê à fundação da escola passaram-se nove anos. Tempo

em que a elite protestante da cidade usava de sua influência para angariar o terreno

para a construção da escola e verba para viabilizar a obra. Depois de muita

negociação, a Direção da Colônia autorizou a demolição do antigo prédio que havia

erguido para abrigar a escola (e que por falta de manutenção se encontrava em

ruínas) para que dele se aproveitasse pelo menos o material. Isto significou um

enorme passo, pois o terreno cedido pela Comunidade Evangélica para a escola

municipal voltava agora para o controle da igreja, que poderia dispor dele como

melhor lhe conviesse.

(...) bem cedo os membros do comitê depararam com a dura realidade, isto é, quando chegou a hora de concretizarem seus objetivos. No começo ia tudo bem. Os apelos aos alemães do Rio e em Desterro foram enviados, e em Joinville coletava-se com afinco. Toda a população colaborava acima das expectativas e em poucos meses havia sido reunida a importância de 1.107$500 em dinheiro, material e mão-de-obra. Como provaram as listas de contribuição, delas participaram 180 famílias aqui residentes quase sem exceção, e as poucas que não o fizeram foi por absoluta falta de condições. Também o valor e a variedade das doações provam que todas as classes sociais participavam desta boa ação. A maior doação, da direção da Colônia, foi de 200 mil réis. De particulares, a maior foi de 30 mil réis e a menor – tal qual o óbolo da viúva pobre da Bíblia – foi

de 2 vinténs.35

35

TERNES, 1986, p. 26.

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Vários foram os motivos que atrasaram as obras da Deutsche Schule: em princípio a

escassez de recursos, seguida da demora para a aprovação da planta da escola

pelo governo imperial e ainda os inúmeros desacordos entre membros da própria

Associação Escolar. Por duas vezes as obras foram iniciadas e imediatamente

interrompidas por motivos que não ficaram claros. A direção da Colônia envolveu-se

na construção da escola, mas, por também lhe faltarem recursos, acabou retirando a

ajuda oferecida. Já chegava o ano de 1870 e as instalações da Escola Alemã ainda

não haviam sido inauguradas quando a comunidade joinvilense recebeu com

apreensão a notícia da Guerra Franco-Prussiana.

Como não pudessem participar, tentavam ao menos minorar os sofrimentos causados pela guerra, contribuindo para a Cruz Vermelha. E muitos mil réis que se destinaria à causa da escola, foi doado à terra natal, em sinal de amor e lealdade. A comissão pró-construção cedeu, desprendidamente, a primazia à Cruz Vermelha,

pois afinal, era em prol da causa alemã.36

Justamente devido à demora para finalizar a construção, ao mesmo tempo que se

modificava algumas coisas, também reparos já precisavam ser feitos. Isto porque a

falta de janelas, por exemplo, permitia que chovesse dentro das salas de aula. Ou

seja, os escassos recursos precisavam ser partilhados entre comprar material, pagar

mão-de-obra e ainda, consertar o que já havia estragado.

Finalmente, em 1875 a Associação Escolar firmou contrato com a Liga de

Cantores, fato este que possibilitou o término da escola. Pelo acordo, a Liga faria um

empréstimo à escola, que deveria devolver o dinheiro dentro de quatro anos, sem

juros e, em contrapartida, a Liga utilizaria as instalações da Escola Alemã para

realizar seus ensaios semanais.

As aulas no prédio novo foram iniciadas no dia 01 de fevereiro de 1876 sob

a responsabilidade dos professores Schulz e Stötterau, sendo que o primeiro logo se

36

TERNES, 1986, p. 27.

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afastou e o segundo permaneceu no comando da escola até 1879, quando a mesma

fechou as portas por falta de recurso e de alunos tendo permanecida inativa até

1881.

Neste período, mesmo com a escola do padre Carlos com excesso de

alunos, as dependências da Deutsche Schule não foram alugadas e inicio-se,

através do jornal (de propriedade do Sr. Ottokar Dörffel) Kolonie Zeitung uma

verdadeira campanha junto à população para que a escola voltasse às suas

atividades.

(...) em 4 de janeiro de 1879, o Kolonie publicava artigo em que se fazia uma análise das deficiências da escola alemã no Brasil, especialmente a má qualidade do ensino e a incompetência dos professores.

Esta crise do ensino na escola alemã, afinal, desencadeou uma intensa discussão nos meios escolares. A imprensa participava dos debates, inclusive recomendando que as famílias não enviassem seus filhos para a Alemanha, mas que lutassem pelo fortalecimento

das escolas alemãs no Brasil.37

Como resultado desta polêmica passou-se a discutir mais os currículos e em 1881

reabriu as portas a Deutsche Schule sob o comando do filólogo hamburguês Ernst

Buek. Sua proposta foi da criação de um curso particular que ensinava alemão,

português, francês, matemática, história, geografia, história natural e desenho e, aos

interessados, latim e inglês.

Daí por diante, alternaram-se diversos diretores na Deutsche Schule, em sua

maioria vindos da Alemanha, até que em 1902 chegou a Colônia o professor

Theurer. Ele conseguiu organizar a escola e dar forma aos anseios da comunidade

através de diretrizes claras. Entre elas, Ternes cita: o objetivo de dar formação moral

e religiosa, baseada no espírito germânico, dando aos alunos condições para se

tornarem bons profissionais. Entre os anos 1915 a 1930 a Deutsche Schule adotou

37

TERNES, 1986, p. 29.

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um currículo inspirado naquele adotado em 1901 na Prússia, que previa o ensino de

alemão, português, francês, inglês, história, geografia, cálculos, matemática, física,

química, história natural, desenho, caligrafia, trabalhos manuais, canto, moral e

literatura. O corpo docente da escola figurava como o melhor de todos os tempos,

contando com a presença de diversos professores trazidos da Alemanha. O número

de alunos da escola em 1907 era de 196 e já se azia necessária um ampliação.

Note-se que para alavancar todos esses feitos da Deutsche Schule foi

fundamental que a partir de 1895 o governo alemão tenha passado a enviar

remessas de dinheiro para as escolas alemãs em todo o sul do país.

Em 1910 concluiu-se a obra de ampliação da Deutsche Schule. Além de

uma bela infra-estrutura, a instituição dispunha de um corpo docente preparado que

dava condições pedagógicas para que a Deutsche Schule pudesse oferecer estudos

de nível superior (atualmente o ensino médio) para seus estudantes.

Desta forma, vê-se que a Deutsche Schule acompanhou a evolução social,

política e econômica da cidade de Joinville. Crescendo fisicamente e investindo em

qualidade de ensino ela pode ofertar aos filhos de uma elite, que também vinha se

fortalecendo, um ensino reconhecido até pelo Ministério da Cultura alemão. Isto

possibilitou, inclusive, que filhos de imigrantes, formados pela Deutsche Schule

fossem cursar a universidade na Alemanha, por volta de 1914.

Depois de conseguir grandes êxitos, em 1938 a Deutsche Schule teve de

enfrentar um obstáculo intransponível: a Campanha de Nacionalização do governo

de Getúlio Vargas. Segundo Borges de Garuva38, pesquisador joinvilense, o artigo

85 do decreto-lei 406 de 1938 do Estado Novo entendeu que tudo que era

estrangeiro representava perigo para o Brasil. Transcrevemos, a seguir, um trecho

do decreto-lei nº 406 de 4 de maio de 1938.

Art. 85. Em todas as escolas rurais do país, o ensino de qualquer

matéria será ministrado em português, sem prejuízo do eventual emprego do método direto no ensino das línguas vivas.

38

GARUVA, 2007, p. 34

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§ 1º As escolas a que se refere este artigo serão sempre regidas por brasileiros natos.

§ 2º Nelas não se ensinará idioma estrangeiro a menores de quatorze (14) anos.

§ 3º Os livros destinados ao ensino primário serão exclusivamente escritos em língua portuguesa.

§ 4º Nos programas do curso primário e secundário é obrigatório o ensino da história e da geografia do Brasil.

§ 5º Nas escolas para estrangeiros adultos serão ensinadas

noções sobre as instituições políticas do país.39

Numa tentativa de evitar o fechamento da escola, a Associação Escolar

mudou o nome da escola para Instituto Princesa Isabel, mas os funcionários da

Campanha Nacionalista foram mais rápidos e, ainda naquele ano, fecharam a

escola. A partir de 1939 a instituição foi transferida para a administração da

professora Anna Maria Harger que em 1926 havia criado uma escola voltada para a

formação profissional chamada Remington Official. Desde 1932 ela passou a se

chamar Instituto Bom Jesus e, tendo vencido uma série de percalços durante a

Campanha de Nacionalização, fundiu-se com a Deutsche Schule em 1939. Mesmo

assim, a perseguição à instituição continuava e somente graças à perseverança de

D. Anna é que o instituto não foi fechado.

Em 1950 dissolveu-se a Associação Escolar, que desde 1938 não se reunia

mais, passando o patrimônio da antiga Deutsche Schule para o controle da

Comunidade Evangélica de Joinville. Em 1964, por motivos de saúde, a professora

Anna quis vender ou dissolver o colégio e a Comunidade Evangélica mobilizou-se

em comprá-lo, tornando-se a única mantenedora da instituição.

De toda a trajetória da Deutsche Schule, o que nos chama particularmente a

atenção é o período de sua fundação, porque nele estão mais explícitos os motivos

que impulsionaram a comunidade luterana a construir uma escola étnica.

Lembramos, assim, daquela correspondência enviada pelos colonos à direção da

39

Decreto-Lei nº 406, de 4 de maio de 1938.

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província exigindo a substituição de um professor que não tinha postura adequada,

nem mesmo dominava a língua alemã para ensinar seus filhos.

Além disso, interessou-nos observar a relação que a Deutsche Schule

manteve com o modelo de escolas alemãs: o perfil de ensino germânico e o corpo

docente estrangeiro, para verificar a quais demandas sociais esta educação

respondia.

Nosso propósito foi, então identificar como a escola alemã em Joinville se

inseriu num processo de manutenção da identidade germânica. A respeito disso,

pretendemos discorrer na última parte de nosso trabalho.

3.2 Um projeto de escola étnica teuto-brasileira gerida pela comunidade

luterana

Como vimos nos capítulos anteriores, a condição de isolamento em que se

encontravam as colônias alemãs no sul do Brasil, trouxe como conseqüência

inevitável que, por muito tempo, estes imigrantes continuassem falando o idioma

alemão, preservando hábitos alimentares, costumes de vestir, de arrumar a casa, de

professar sua fé,etc... Por outro lado, eles não estavam mais na Alemanha, a

realidade dos trópicos era outra: o clima era diferente, a vegetação e o terreno

impunham desafios diferentes daqueles da terra natal; o estilo de vida numa colônia

majoritariamente rural certamente se mostrava muito distinto do original... enfim,

nem todos os costumes puderam ser preservados, já que os imigrantes tiveram que

se adaptar a novas circunstâncias que se impunha a eles.

A respeito disso, Magalhães afirma que nas pequenas cidades colonizadas

por imigrantes de maioria germânica se formaram espécies de “micronações” que

“reeditam a mesma necessidade de afirmação da identidade coletiva, a valoração do

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sentimento de pertença e múltiplas formas de solidarismo”40. É como se uma

pequena comunidade germânica em isolamento reproduzisse, em menor escala, o

mesmo sentimento de “nação” experimentado na Alemanha.

Na perspectiva de Seyferth a “nação alemã” não é um conceito político, mas

se inspira no Romantismo e parte de representações abstratas de um “espírito do

povo”, que estaria manifesto nas tradições e costumes preservados.

(...) Deutschtum engloba a língua, a cultura, o Geist (espírito) alemão, a lealdade à Alemanha, enfim, tudo o que está relacionado a ela, mas como nação e não como Estado (...) Nesse sentido, nacionalidade e cidadania não se misturam e não se complementam. A nação é considerada fenômeno étnico-cultural e, por sua razão, não depende de fronteiras; a nacionalidade significa a vinculação a um povo ou raça, e não a um Estado. A cidadania, sim, liga o indivíduo a um Estado e, portanto, expressa sua identidade „política‟. Mas uma cidadania não alemã em nada impede que um descendente de alemães seja fiel à nacionalidade dos seus antepassados, que

herdou(...)41

Tal concepção nos permite pensar que é compreensível falar numa nação

germânica fora da Alemanha. Isto porque, mais forte do que os limites territoriais de

um país são as idéias que pintam o pano de fundo ideológico de uma nação. E,

neste caso, o caráter germânico, ou a germaneidade, de um povo não está

condicionado ao lugar em que ele se encontra.

A idéia de germaneidade, por conseguinte, transcende a noção política de

nação e adquire significado étnico de grupo e de identidade. Quando se fala em

germaneidade, portanto, não se separa o sentido de nacionalismo da idéia de etnia.

Para compreender a complexidade apresentada pelo mosaico social da

Colônia Dona Francisca, fez-se necessário resgatar este conceito de germaneidade

em Seyferth. Mas é importante lembrar que os teuto-brasileiros acrescentaram a

40

MAGALHÃES, 1993, p. 30. 41

SEYFERTH, 1981, p. 46.

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esta noção de identidade e pertencimento de grupo étnico outros significados,

provenientes da sua experiência singular nos trópicos.

É interessante perceber, portanto, que a categoria “germaneidade” foi

manipulada na Colônia Dona Francisca para incentivar entre os imigrantes alguma

harmonia e criar um sentimento de identidade.

Para tanto, Seyferth observa que a língua foi o principal elemento definidor

de identidade e de etnicidade para teuto-brasileiros e acreditamos que isso de igual

maneira se aplica ao caso da Colônia Dona Francisca:

(...) mais do que a raça, a língua foi considerada como a forma mais concreta de identificação, constituindo-se ainda como extensão da nacionalidade alemã. (...) a utilização desse idioma foi o principal e mais importante canal de divulgação da ideologia germanista e, ao

mesmo tempo, de afirmação da identidade étnica.42

Tendo em mente o uso e a divulgação do idioma alemão na colônia, nos

vem à mente: a escola, a igreja e a mídia. Sendo que esta última veio a se

desenvolver um pouco mais tarde. Porém, como vimos no capítulo II, a igreja se fez

presente desde o primeiro ano da colonização e, ela própria, anos mais tarde,

encarregou-se de viabilizar a construção de uma escola alemã.

Já notamos que a instituição de primordial importância para a manutenção

da ordem na Colônia foi a igreja. E que, além de evitar a dispersão dos colonos ela

também promoveu formas de sociabilidade entre eles e se mostrou presente não só

no aconselhamento espiritual como no gerenciamento de serviços “públicos” como o

hospital, o asilo, o cemitério e a escola.

Sendo assim, não apenas a língua mais falada na Colônia Dona Francisca

era o alemão, como também a religião “oficial” era a protestante. Logo, o ensino

42

SEYFERTH, 1981, p. 130.

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também passou a ser encampado pela comunidade luterana para atender à

demanda daquela sociedade teuto-brasileira.

Já mencionamos que a organização da comunidade em “sociedades” se

deu, em muito, pela situação de isolamento em que se encontrava a colônia. Diante

disso, só restava aos colonos unirem-se para buscar coletivamente a solução de

problemas que afetavam a todos. É notório, todavia, que a igreja luterana tenha

participado de muitas dessas “sociedades” em prol de uma ou outra questão, como

foi o caso da escola.

No caso específico da questão do ensino na Colônia, que relatamos ao

longo do capítulo III, nota-se que a preocupação manifesta na correspondência

enviada por colonos à direção da Província em 1858 não era com a ausência de

uma escola ou com a ausência de um professor. O que incomodava aos colonos era

a postura do professor que a Província de Santa Catarina havia enviado para a

colônia. Causava inquietação o fato do referido professor Schlappal não dominar o

idioma alemão e, além disso ser conhecido pela vida boêmia e pouco regrada.

O que pretendemos mostrar é que, além de resolver situações críticas e

urgentes de falta de recursos, higiene, alimentos, etc... algumas dessas “sociedades”

se ocupavam em preservar os costumes e as tradições germânicas na colônia. Além

de estarem atentas ao que era desejável ou não para a manutenção do seu modo

de vida e principalmente o que deveriam e o que não deveriam aprender seus filhos.

Evidencia-se, assim, que por trás das mobilizações para a construção da

escola alemã, pretendia-se muito mais do que garantir vagas no ensino para filhos

de imigrantes: havia um projeto de educação étnica, carregada de valores,

incumbida de preservar o idioma teuto e reproduzir os costumes germânicos para as

futuras gerações. E a participação da igreja luterana na efetivação deste projeto de

escola étnica não se deu ao acaso: assim como a escola era o lugar do aprendizado

e da reprodução social dos valores, costumes, etc. também a igreja figurava como

instituição social capaz de organizar a sociedade, divulgando a ideologia germânica

e contribuindo para a preservação da identidade étnica entre seus membros.

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Depreende-se daí que, na Colônia Dona Francisca, a igreja luterana e a

escola alemã, juntas, foram responsáveis por incentivar na comunidade, uma idéia

de nação germânica fora da Alemanha.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo concluído a pesquisa nos arquivos históricos da Comunidade

Evangélica de Joinville e apoiados nos relatos de Apolinário Ternes e Carlos Ficker

acerca da história da cidade, somos levados a refletir sobre o papel da igreja

luterana e da escola alemã. Percebemos, assim, que a escola e a igreja não apenas

eram instrumento de reprodução social de costumes e valores trazidos de um outro

lugar, como ajudaram a reinventar uma unidade que na verdade jamais teria existido

entre aqueles indivíduos se não tivessem deixado suas pátrias.

Avançando nas discussões de Seyferth, podemos concluir, ainda, que estas

instituições acabaram por forjar uma certa identidade étnica teuto-brasileira, que não

era igual à cidadania germânica daqueles que permaneceram na Europa. Isto

porque possibilitava a indivíduos de diferentes províncias (da Prússia, da Baviera, da

Saxônia, da Polônia, da Suíça, da Noruega, da Áustria) que partilhassem de um

mesmo sentimento de irmandade, de comunidade, de pertencimento, de

solidariedade, etc...

Ou seja, tanto a escola alemã como a igreja luterana contribuíram não

apenas para o processo de assimilação dos imigrantes no Brasil como construíram,

junto da comunidade, uma noção de identidade nova para estes imigrantes e para

seus descendentes. A tal idéia de germaneidade teve que ser reformulada a partir

da experiência vivida no Brasil para agregar diferentes povos em torno de interesses

comuns, quais sejam: a fixação dos imigrantes e a prosperidade da Colônia Dona

Francisca.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

A) FONTES PRIMÁRIAS

“Ata de Lançamento da Pedra Fundamental da Igreja da Paz.” lavrada por Ottokar

Dörffel em 1º de junho de 1857. Transcrição e tradução de Maria Thereza Böbel,

dez/1985. Caixa 1: documentos históricos A.H.C.E.J.

“Convocação e Instalação do Senhor D. Phil. Jacob Daniel Hoffmann como Pregador

e Pastor na Comunidade Evangélica que se formará na Colônia Dona Francisca.”

Hamburgo, 7 de outubro de 1851.Caixa 1: documentos históricos A.H.C.E.J.

“Petição ao Diretor Geral da Repartição das Terras Públicas.” Joinville, 12 de maio

de 1858.Caixa 1: documentos históricos A.H.C.E.J.

“Prédica do Pastor Hölzel a bordo do navio „Linda‟, no domingo Cantante, 14 de

maio de 1854.” Caixa 1: documentos históricos A.H.C.E.J.

B) FONTES SECUNDÁRIAS

AVÉ-LALLEMANT, Robert. Viagem pelo Sul do Brasil. Vol. 2. Rio de Janeiro:

Instituto Nacional do Livro, 1953.

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COELHO, Ilanil. Joinville e a Campanha de Nacionalização. São Carlos: UFSCar,

1993.

CUNHA, Dilney F. O Luteranismo em Joinville nos primórdios da Colonização

(1851-1889). Joinville: Universidade de Joinville, 1996.

FICKER, Carlos. História de Joinville. Subsídios para a Crônica da Colônia Dona

Francisca. Joinville: Ipiranga, 1965.

GARUVA, Borges de. A Muitas Vozes. Joinville: Bom Jesus/Ielusc, 2007.

LAEMMLE, Morgana Thays.As “alemoa” e as brasileiras: com quem devo me

casar? Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2008.

MAGALHÃES, Marionilde Dias Brepohl de. Alemanha, mãe-pátria distante; utopia

pangermanista no sul do Brasil. Campinas: Universidade Estadual de

Campinas, 1993

RICHTER, Klaus. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Santa Catarina,

nº4 1982-1983

REVISTA Comemorativa dos 150 anos da Comunidade Evangélica Luterana de

Joinville. Joinville. 2001.

SEYFERTH, Giralda. A Colonização alemã no vale do Itajaí-mirim. Porto Alegre:

Movimento, 1974.

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_________________. Nacionalismo e identidade étnica. Florianópolis: Fundação

Catarinense de Cultura, 1981.

_________________. Imigração e cultura no Brasil. Brasília: Ed. UnB, 1990.

TERNES, Apolinário. Colégio Bom Jesus – 60 anos de ensino. Joinville: Meyer,

1986.

WILLEMS, Emília. A aculturação dos alemães no Brasil. 2ª Ed. São Paulo: Ed.

Nacional, 1980.

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ANEXOS

Anexo I

Figura 01. Mapa da Colônia Dona Francisca e região com indicação de rios e estradas. Acervo digital do Museu Nacional de Imigração.

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Anexo II

Figura 02. Retrato do Príncipe de Joinville

Acervo Museu Nacional da Imigração

Figura 03. Retrato da Princesa Francisca Carolina. Acervo digital do Museu Nacional da Imigração

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Anexo III

Figura 04. Gravura que mostra o aspecto da Colônia Dona Francisca em 1857.

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Anexo IV

Contrato firmado entre o pastor Hoffmann e a Sociedade Colonizadora de Hamburgo

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Anexo V

Figura O5. Ilustração da solenidade de lançamento da pedra fundamental da Casa de Oração

Protestante em 1857. Jornal Ilustrado, 01/06/1857. Caixa 1: Documentos históricos A.H.C.E.J.

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Anexo VI

Petição dos colonos à Direção Geral da Repartição das Terras Públicas na íntegra

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