deusa mae natureza bruxa dom de ser mulher

18
Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 13 Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira, Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira, Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira, Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira, Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira, benzedeira, “ benzedeira, “ benzedeira, “ benzedeira, “ benzedeira, “dom de ser mulher dom de ser mulher dom de ser mulher dom de ser mulher dom de ser mulher”? ”? ”? ”? ”? Rosane Ribeiro Borges Bem sabemos que percebemos no passado, primeiro as diferenças e só depois as semelhanças com o tempo em que vivemos. 1 Resumo: Na sociedade pós-moderna, e mais especificamente no interior do Brasil, a benzeção ainda é amplamente praticada e mesmo procurada por pessoas de diferentes classes sociais e níveis culturais. Na cidade de Ituiutaba-MG tal situação não difere de outros lugares do país, e assim, conhecimentos, comportamentos e gestos, acompanhados ou não de ramos, água ou fogo, são cotidianamente utilizados, guardados e transmitidos de geração a geração, perpetuando em invocações sincréticas o ato da benzedura. Buscando entender a perma- nência destas práticas na atualidade, examino os mitos refe- rentes à mulher ao longo da história, criados e guardados pelo consciente e inconsciente coletivo até chegar na “teoria do dom” do M.A.U.S.S. 2 da modernidade. Palavras-chave: Benzedura; cultura; História; dom. Abstract: In the post-modern society, specifically in the interior of the Brazil, conjuring is still practiced as people from different social classes and cultural levels look for it. In Ituiutaba-MG this situation doesn’t differ from other regions of the country, and therefore, knowledge and methods are customary used, kept and transmitted from generation to generation, thus, perpetuating conjuring. To understand the permanence of certain acts in the contemporaneity, I examine Rosane Ribeiro Borges. Mestranda em História pela Universidade Fede- ral de Uberlândia da linha de pesquisa História e Cultura. 1 ARIÉS, Philippe. A história so- cial da criança e da família. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara, 1986, p.14. 2 M.A.U.S.S. Mouviment Anti-Utili- tariste dans lês Sciences Sociales (Movimento Anti-Utilitaris- ta nas Ciências Sociais), Es- cola criada em 1981, filiada à tradição teórica do soció- logo francês Marcel Mauss, nascido em 1872, fundador da sociologia moderna, di- vulgador da Revue du M.A.U.S.S., cujas pesquisas centralizam em estudos sobre a Dádiva. A filosofia teórica é emba- sada nos estudos e idéias do filósofo Claude Lefort, e pensamentos de Corne- lius Castoríadis, iniciadores do grupo MAUSS. As refle- xões maussianas tem-se aberto para debates com outras correntes de pensa- mentos que não são “redutí- veis nem ao marxismo, nem ao estruturalismo, nem ao funcio- nalismo, nem ao individualismo metodológico, nem ao empirismo dogmático.” (Lefort: p.61, in: A Dádiva, p.10.) Analisa a sociedade a partir das trocas simbólicas e da dádiva num conjunto de reflexões so- bre os modos “próprios e ori- ginais de organização da vida social fora das regras dos sistemas,

Upload: api-3804049

Post on 07-Jun-2015

813 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

"Examino os mitos referentes à mulher ao longo da história, criados e guardados\pelo consciente e inconsciente coletivo até chegar na “teoria do dom” da modernidade."

TRANSCRIPT

Page 1: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 13

Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira,Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira,Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira,Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira,Deusa, mãe-natureza, bruxa, feiticeira,benzedeira, “benzedeira, “benzedeira, “benzedeira, “benzedeira, “dom de ser mulherdom de ser mulherdom de ser mulherdom de ser mulherdom de ser mulher ”?”?”?”?”?

Rosane Ribeiro Borges

Bem sabemos que percebemos no passado, primeiro as diferençase só depois as semelhanças com o tempo em que vivemos.1

Resumo: Na sociedade pós-moderna, e mais especificamenteno interior do Brasil, a benzeção ainda é amplamente praticadae mesmo procurada por pessoas de diferentes classes sociaise níveis culturais. Na cidade de Ituiutaba-MG tal situação nãodifere de outros lugares do país, e assim, conhecimentos,comportamentos e gestos, acompanhados ou não de ramos,água ou fogo, são cotidianamente utilizados, guardados etransmitidos de geração a geração, perpetuando em invocaçõessincréticas o ato da benzedura. Buscando entender a perma-nência destas práticas na atualidade, examino os mitos refe-rentes à mulher ao longo da história, criados e guardadospelo consciente e inconsciente coletivo até chegar na “teoriado dom” do M.A.U.S.S.2 da modernidade.

Palavras-chave: Benzedura; cultura; História; dom.

Abstract: In the post-modern society, specifically in theinterior of the Brazil, conjuring is still practiced as peoplefrom different social classes and cultural levels look for it. InItuiutaba-MG this situation doesn’t differ from other regionsof the country, and therefore, knowledge and methods arecustomary used, kept and transmitted from generation togeneration, thus, perpetuating conjuring. To understand thepermanence of certain acts in the contemporaneity, I examine

Rosane Ribeiro Borges. Mestranda em História pela Universidade Fede-ral de Uberlândia da linha de pesquisa História e Cultura.

1 ARIÉS, Philippe. A história so-cial da criança e da família. Riode Janeiro: Ed. Guanabara,1986, p.14.

2 M.A.U.S.S. Mouviment Anti-Utili-tariste dans lês Sciences Sociales(Movimento Anti-Utilitaris-ta nas Ciências Sociais), Es-cola criada em 1981, filiadaà tradição teórica do soció-logo francês Marcel Mauss,nascido em 1872, fundadorda sociologia moderna, di-vulgador da Revue du M.A.U.S.S.,cujas pesquisas centralizamem estudos sobre a Dádiva.A filosofia teórica é emba-sada nos estudos e idéiasdo filósofo Claude Lefort,e pensamentos de Corne-lius Castoríadis, iniciadoresdo grupo MAUSS. As refle-xões maussianas tem-seaberto para debates comoutras correntes de pensa-mentos que não são “redutí-veis nem ao marxismo, nem aoestruturalismo, nem ao funcio-nalismo, nem ao individualismometodológico, nem ao empirismodogmático.” (Lefort: p.61, in:A Dádiva, p.10.) Analisa asociedade a partir das trocassimbólicas e da dádiva numconjunto de reflexões so-bre os modos “próprios e ori-ginais de organização da vidasocial fora das regras dos sistemas,

Page 2: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

14 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

myths concerning women as time goes on. Those mythswere created and kept by the collective conscious and un-conscious in archaic, old, modern and contemporary timesand are articulated with the “Theory of donation” out of MAUSS

movement.

Keywords: Conjuring; culture; time; donation.

A relação da mulher com elementos que com-punham o “dom” de cuidar, curar, oferecer proteção,sempre foi forte e exteriorizada através de pinturasrupestres, vivenciadas nos rituais, celebrações realizadasno interior de religiões pagãs, em tempos distantes.Na atualidade, e mais especificamente no interior doBrasil, a benzeção é amplamente praticada, e procu-rada, por diferentes classes sociais e níveis culturais.Na cidade de Ituiutaba–MG, tal situação não diferede outros lugares do país, e assim, conhecimentos emétodos são cotidianamente utilizados, guardados etransmitidos de geração a geração, perpetuando o atoda benzeção. Diante desse contexto, procurei nestapesquisa responder à seguinte questão: no que dizrespeito à manutenção dessas práticas, que pontosincidem sobre os movimentos de mudanças e perma-nências? Para tanto, examino num primeiro momento,os signos, os mitos referentes à mulher ao longo dahistória que foram criados e guardados pelo conscientee inconsciente coletivo em vivências de épocas arcaica,antiga, moderna e contemporânea até chegar na “teoriado dom”, pensada pelos autores do M.A.U.S.S., nos diasde hoje.

Estes signos que atravessam o tempo e se tornamcristalizados — são os resíduos que se mantém comose fossem fossilizados, no interior de uma rocha —intocáveis, gravados muito mais profundamente queas lembranças conscientes e que, às vezes nem se temconsciência, mas, felizmente o passado nunca morre

mercantil e estatal” (p. 13). Ver:MARTINS, Paulo Henrique(org.). A Dádiva entre os moder-nos: discussão sobre os fun-damentos e as regras dosocial. Trad. GuilhermeJoão de F. Teixeira. Petrópo-lis: Vozes, 2002.

Page 3: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Rosane Ribeiro Borges

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 15

completamente para o homem. O homem pode esquecê-lo, masdesse passado guardará sempre a recordação.3 (Coulanges,1995).

As origens, assim como a credibilidade das recor-dações permanecem quase sempre recheadas dedúvidas pois é impossível distinguir o apreendidoinconscientemente (residual) do aprendido (costume),mas é crível que o homem é o resumo de todas suas épocasanteriores,4 podendo ser possível a reconstrução demodos de vidas, através de processos históricos noestudo da memória e dos fragmentos que são osresíduos de processos de vida.

No início da civilização o homem tirou os deusesde si próprio. Assim, o primeiro objeto de adoraçãofoi o ser invisível, tudo que governava o ser humano,uma vez que sua força moral, seu pensamento eramprovenientes do culto aos mortos.

O segundo endeusamento refere-se à natureza. Ohomem retirava os deuses de cada elemento que acompunha, como exemplos, florestas, planícies, mon-tanhas, rios e lagos, dentre outros. Nasceram assimmilhares de deuses com variados nomes, conformeas necessidades do tempo e desejos daqueles povos.

A história nos mostra que o primeiro culto foioferecido a uma Deusa, aquela que o homem acre-ditava haver gerado o mundo e os seres humanos.Durante milênios, a principal preocupação humanafoi se prostrar diante dessa Deusa — a mulher comodoadora da vida. Para tanto, não faltam cerâmicas,pinturas rupestres,5 as quais reproduzem mulheres emposição de parto, ou com o ventre e os seios avolu-mados. As estatuetas simbolizam a anatomia femininae são encontradas por toda a Eurásia, são artefatosque testemunham sentimentos de admiração e mistérioexperimentados pelos povos antigos e datam de35.000 a 8.000 a.C. Arqueólogos entendem que asfiguras podem ter representado divindades em cultosde fertilidade, ou símbolos de autoridade em socie-dades matriarcais6. A mulher era vista como a senhora

3 COULANGES, Fustel. A cidadeAntiga. São Paulo: MartinsFontes, 1995.

4 COULANGES, Idem.

5 Pinturas Rupestres: Pintu-ras feitas nas rochas. Ins-crições de povos antigos.Há mais de 40 mil anos ohomem da Pré-história de-positou suas marcas, figu-ras... em cavernas, deixandodocumentos de sua presen-ça.

6 Sociedades Matriarcais: So-ciedade onde a mãe exerceautoridade de chefe sobresua família e descendentesem geral. No matriarcado amulher é a base da famíliae exerce nela autoridadepreponderante.

Page 4: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

16 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

da vida em todas as suas vertentes. Portanto, fecunda,divinizada, era entendido ser ela a única capaz não sóde conservar esse poder para si própria, mas tambémde transmiti-lo a todos os outros segmentos da natu-reza.

Nas culturas pré-patriarcais o homem desconheciao papel masculino essencial na fecundação, via amulher como criadora única, e era tratada como umser mágico, um bem precioso, indispensável à sobrevi-vência da espécie. Ela era a Grande Deusa, e esta primeiraDeusa era a Mãe.

Como Terra-Mãe, dona da vida, rapidamente setransformou em responsável pelos mortos (lavava-os preparava-os para os rituais de despedida da vidaterrena). Enfim, toda essa crença mágico-religiosaculminará em uma série de rituais associados às mito-logias, além de estar sempre ligada, (à mulher) simbo-licamente, não só a terra, mas também às águas, àscavernas, às árvores, às grutas, ao sangue, entre outros.

Desse modo, o culto à Deusa-Mãe foi difundidoem todos os extremos do planeta. Os estudiosos apon-tam os arredores do mar Cáspio como seu berço deorigem, entretanto, dizem, independente de sua origemfoi constatado sua existência em todas as civilizaçõesarcaicas e curiosamente, esteve associada às mesmascrenças, aos ritos, aos símbolos, inspirando os mesmossentimentos de amor e inveja, de feitiço e medo. Taisconvicções contrariam aqueles que tentam negar isto,assim, o culto à Grande-Mãe estendeu-se por muitosséculos, mantendo-se presente no judaísmo, prolon-gando-se no cristianismo primitivo além de superá-lo.

No paganismo, a Deusa7 reinava no céu e na terra.Era doadora do bem e do mal, além de condutorana vida e na morte. Ela sempre esteve ligada a fenô-menos extremos, oscilando entre ser recusada ouendeusada, evidenciando os dois extremos detectadosno princípio feminino, ou seja, contrários e comple-mentares.

Não foi difícil para o homem primitivo perceber

7 Deusa: divindade femininado politeísmo ou de reli-giões matrilineares.

Page 5: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Rosane Ribeiro Borges

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 17

que sua sobrevivência dependia da natureza, e a partirdela fazer diversas associações. Um exemplo dissorefere-se ao fato de que segundo alguns pesquisadoresas fases da lua com seu eterno retorno propiciaramao ser humano tomar contato com um tempo concre-to. A lua marcava o ritmo da vida e a mulher foiobservada como cúmplice lunar, e passou também aser responsável pelas marés, chuvas, vegetação, germi-nação, bem como a menstruação e gravidez — oCalendário Lunar foi assim amplamente difundidocomo feminino.

Em reconstruções históricas é possível verificar quea partir do século II os romanos convertidos ao cristi-anismo se negaram ao culto dos deuses pagãos8, masestes cultos continuaram de forma mais circunferencial,retidos em pequenas capelas, ou ainda, em clareirasnas florestas. Percebemos que as religiões nunca mor-rem completamente, e que o sincretismo religiosoexerceu papel preponderante na formação de váriasreligiões, e até mesmo a vertente romana sabemosque não escapou de inúmeras influências. Quanto aocristianismo este se impôs como religião católica, por-que incorporou e transformou aquilo que não conse-guiu eliminar. Este procedimento é verificado atravésde ações que hoje são praticadas no catolicismo taiscomo as procissões, cantos, fogos, reuniões em cam-pos, bebida, sendo resquícios de práticas pagãs.

Mas havia muitos outros povos... que se organiza-vam social e politicamente em tribos independentes epossuíam, às vezes, uma religião única, por exemplo,a religião dos druidas — druidismo9, na qual se articu-lava toda uma sociedade. O culto celta sempre pri-vilegiou a clareira sagrada, no meio da floresta, vistoque ali a espiritualidade poderia ser sentida e vividaem toda a sua plenitude, lugares onde a figura femininaera primordial.

A Bretanha antiga não cedeu facilmente à presençaromana e muito menos à sua religião, manteve a orga-nização tribal independente, e a mulher continuou a

8 Deuses Pagãos: O Deus deuma região nativa, não cristã,nem judaica. Diz-se de deu-ses do paganismo ou poli-teísmo.

9 Druidismo: Religião dosdruidas, dos celtas. Religiãoda antiga Gália e da Breta-nha.

Page 6: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

18 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

representar a soberania, com papel de destaque tantono campo social, político como no religioso. A Bre-tanha foi cristianizada muito tempo depois, com datade difícil precisão, contudo é conhecido que no fimdo século III e início do século IV, esta região já possuíasua organização eclesiástica. O povo bretão, ao fugirdas invasões anglo-saxônicas, refugiou-se em regiõesmais selvagens da ilha. Neste lugar o povo bretão fixoumorada, e assim surgiu a Nova Bretanha, a qualpreservou seu povo, sua língua, sua religião celta...

Na tradição religiosa celta, aquele que portasse ummanto teria o dom10 de se metamorfosear. O mantodruida era a certeza de que o indivíduo possuía asabedoria, a visão11 e grande parte das mulheres celtasusavam este manto. Desse modo, pode-se afirmar quea referida tradição é repleta de magias, presságios,encantamentos — de fadas, deusas e sacerdotisas.

Alain Caillé12 e David Graebe13, em Introdução àDádiva, argumentam:

Ora, como se pode prever, se é importante fixar os traços essenciaisda humanidade primeira e determinar o papel desempenhado nestaépoca pelo dom tal constatação não é suficiente para iluminar omundo contemporâneo.

É preciso avançarmos, desenvolver o:

‘paradigma da Dádiva’: mostrar como a descoberta do papel centraldo dom na ‘sociedade primeira’ permite, transpondo-a, iluminartambém a modernidade (...) ( Introdução à Dádiva, p.30.)

No que diz respeito às premonições e bênçãosfemininas estas são cúmplices da luz do luar — da luzfeminina — que acrescentados a flores, frutos, ervas,produziam beberagens de encantamentos; tudo erapraticado em torno do poder enigmático e intuitivoda Deusa — Ela é memória arquivada das intenções femi-ninas14 possuidora do chamado princípio feminino15

Estés,16 num estudo à psicologia junguiana,17 reconhece

10 Dom: Dote natural, talento,aptidão, capacidade, habili-dades especiais além o es-perado como comum.

11 “Visão” aqui quer dizer:aptidão extra da percepção.Uma função extra-sensorial.Contemplação intuitiva.

12 CAILLÉ, Alain. Autor do arti-go “Dádiva e Associação”.publicado em 1997, in Revuedes Ètudes Coopératives eAssociatives, n. 265 (confor-me nota, in A Dádiva entre osmodernos, p.19, op.cit.

13 GRAEBER, David. Pesquisa-dor americano, antropólo-go, professor na universi-dade de Yale, leitor assíduoda Revue du M.A.U.S.S.

14 ÉSTES, Clarissa Pinkola. Mu-lheres que correm com lobos. Riode Janeiro: Rocco, 1994.

15 Princípio feminino: A na-tureza instintiva da mulher.Ela é a memória arquivada dasintenções feminina, diz Éstes,p. 46.

16 Op. Cit.17 Psicologia Junguiana: Seu

fundador Carl Gustav Jung,médico e psicoterapeutaestudou o Inconsciente ededicou ao estudo profun-do dos povos primitivos —seus mitos, religiões, tradi-ções e hábitos. Estudou osistema psicanalítico — Psi-cologia Analítica onde o in-consciente coletivo é en-tendido como sendo he-rança de ancestrais. A teoriaJunguiana acrescenta à psi-cologia fundamenta umadimensão que vai aos hábi-tos coletivos, hábitos espiri-tuais e culturais.

Page 7: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Rosane Ribeiro Borges

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 19

o poder intuitivo, instintivo, próprios de “todas asmulheres”, enfatizando que este último gerou luz,consciência, clarividência durante toda história dahumanidade. Salienta que a mulher tem insight, poden-do ser introvertida ou extrovertida, triste, majestosaou vulgar, alegre ou ambiciosa, e complementa, dentrodo seu pensamento na psique intuitiva:

O corpo é considerado um sensor, uma rede de informações, ummensageiro com uma infinidade de sistemas de comunicação —cardiovascular, respiratório, ósseo, nervoso, vegetativo, bem comoo emocional e o intuitivo. No mundo imaginário, o corpo é umveículo poderoso (...) Nos contos de fadas, como encarnado porobjetos mágicos que têm capacidade e qualidade sobre-humanas,considera-se que o corpo tem dois pares de orelhas, dois pares deolhos: um para a visão normal, e outro para a vidência; dois tiposde forças: a dos músculos e a invencível força da alma.18 (Estés,1994, p.251.)

Ainda, dentro do arquétipo da “mulher selvagem,”a autora assevera que:

Ela é a voz que diz ‘Por aqui, por aqui’. Ela carrega dentro de sios elementos para cura (...) ela dispõe do remédio para todos osmales. Ela carrega histórias e sonhos, palavras e canções (...) Elaé tanto o veículo quanto o destino. (Idem, p.26-27.)

Na expressão Ela carrega dentro de si os ele-mentos para cura (grifo meu) noto que a palavracarrega significa que contêm os elementos, mas queainda não os têm desenvolvidos, estão como queguardados, em estágio latente, podem aflorar ou não,dependendo de serem exercitados. Em ela carregahistórias e sonhos, palavras e canções..., perceboestar implícito que existe o acumular de lembrançasde hábitos anteriores, de antigas consciências enraizadasnas mentes humanas.

A partir dessas considerações, consigo compre-ender o fascínio que a mulher forte, intuitiva, a mulher

18 ÉSTES, Op. Cit.

Page 8: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

20 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

deusa ou bruxa, curandeira ou benzedeira, pôdeexercer no imaginário coletivo e o quanto, partindodas minhas investigações, ainda exerce, permanecendoas mesmas características que acarretam simul-taneamente respeito e medo.

Recorrendo a fontes literárias, encontro na obrado famoso poeta inglês do século XVI, WilliamShakespeare19, Macbeth, fortes indícios de que o escritoracreditava existir um poder vigoroso e irresistível namulher, ou, percebia que os homens de seu tempoassim o pensavam.

No ato primeiro, o dramaturgo inicia sua tragédiacom raios e trovões, e três feiticeiras. Macbeth, valentegeneral da Escócia do séc. XI, volta glorioso da guerrae antes de ver seu Rei, encontra e ouve a profeciadessas três bruxas. Shakespeare, a partir desse encontromístico, entrega coragem e ambição à personagem deMacbeth que, alimentado pelos vaticínios ouvidos,transforma-se em cobiçoso tirano. Nesta narrativa hácoragem, traições, assassinatos, e Macbeth coroadorei como anunciaram as profetisas.

Shakespeare usa como principal argumento pararecriar sua tragédia documentos de conceituadoshistoriadores do séc. XIV e XV, final da Idade Média,em que o poder feminino era chamado de bruxaria.Em suma, o estudo da literatura clássica se mostraaqui revivendo temas antigos: a visão pagã da vidadiferenciando-se da visão cristã e ainda o caminhardas mentalidades; do imaginário coletivo (termos usadospor Michel Vovelle20 e G. Duby21, posto que taispesquisas vislumbram um mundo em constante movi-mentação, repleto de lutas religiosas que abalaram osfundamentos da estrutura religiosa medieval (pautadano Catolicismo), as quais geraram ceticismo, supers-tições, perseguições e mortes:

— A Caça às Bruxas.A intolerância quanto a ver-tente feminina, ou, em

outras palavras, a repressão à mulher, deformou e fezcom que germinasse a onda da doença cultural que foi se

19 SHAKESPEARE, William. Intro-dução Geral. Obras completasde William Shakespeare. Rio deJaneiro: Nova Aguilar, v. I,1995.

20 VOVELLE, Michel Ideologias eMentalidades. São Paulo: Bra-siliense, 1987

21 DUBY, Georges. História davida privada. São Paulo:Ciadas Letras, 1990.

Page 9: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Rosane Ribeiro Borges

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 21

agravando no decorrer dos séculos.Cabe lembrar que as chamadas bruxas ou feiticeiras

podem ter sido vistas como hereges por parte daIgreja, mas em outras religiões, como a dos celtas, daqual já citei, essa heresia era vista e sentida como algoexcepcional e a intuição deveria ser incentivada econtemplada, uma vez que suas praticantes eramprivilegiadas com a grande sabedoria e extraordináriaforça interior e, por isto, tinham papel de destaqueem assuntos políticos, social e particularmente reli-gioso.

Todavia, o nome dado ao resultado do uso dessaforça interior modifica-se de acordo com a época e asculturas díspares, a exemplos, bruxas, feiticeiras, reza-deiras, profetisas...

Segundo Laura de Mello e Souza, autora de O diaboe a Terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade popular noBrasil Colonial,22 neste país as práticas de magias coloniaiseram diferentes da feitiçaria louca e perseguida daEuropa. Tais métodos eram aceitos, pois trouxeramvida aos três séculos de existência colonial, construindosentimentos de religiosidade nos diferentes povos quecompunham a colônia brasileira. Entretanto, somenteapós entrar em vigor o Código Penal de 1890, é quecurandeirismo passa a ser consi-derado crime em âmbitonacional, haja vista que feitiça-rias ou práticas de magias comoadivinhações, benzeduras eram o caminho sempre buscadopara amenizar, curar... enfatiza a historiadora. Assim,no Brasil Colônia (século XVIII), feiticeiras e contra-feiticeiras, ambas eram solicitadas para detectarmalefícios e curas de que-branto23, mau olhado24, espinhelacaída25, vento virado26, dentre outros, procedimentoscomuns na sociedade Colonial.

Desse modo, havia no país, como já foi dito, umamistura de crenças religiosas, além de práticas místicas,como exemplos, benzeduras, curandeirismo e até sata-nismo. Estes métodos intensificaram-se, possivelmenteno inconsciente coletivo, diante do conhecimento dagrande quantidade de degredados enviados de

22 MELLO E SOUZA, Laura. Odiabo e a Terra de Santa Cruz.São Paulo: Companhia dasLetras, 1986.

23 Quebranto: Achaque quemanifesta com dores decabeça, febre. “Quebran-tamento do corpo”. Palidez,sonolência, indiferença, o-lhar amortecido. Falta deforça, prostração, mal olha-do.

24 Mau olhado: Olho ruim,pesado, agourento, maléfi-co que uma vez lançado,pode fazer adoecer quemo captou.

25 Espinhela caída: Dor nascostas, dor no estômago edor na coluna, também“buxo virado”.

26 Vento virado: Inf luênciaque prejudica. Quebranto,mau olhado. A criança ficachoramingando, vomita.Também chamado de “bu-xo virado”.

Page 10: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

22 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

Portugal para o Brasil, acusados de falsas crenças, entreos quais, e em grande número — as chamadas beatasportuguesas. Laura de Mello e Souza (1996), listou 51degredos e deste total analisei, que 41 eram do sexofeminino.

Ainda sob este prisma esta autora, em outra obra,A feitiçaria na Europa Moderna,27 situa o fenômeno dacaça às bruxas ocorrido na Europa como sendo umasituação armada pelo cerco à intolerância ao poderfeminino, porque era a mulher que de fato, detinhaatenção e grande movimentação em torno de suasações como parteira, benzedeira, ou a prática do curan-deirismo.

Nos contos sobre “Vasalisa”,28 contado na Rússia,Romênia, Iugoslávia, Polônia, e em todos paísesbálticos, a boneca representa uma característica psíquicaem torno do poder instintivo básico da mulher-força; aboneca é conhecida por sua perspicácia, seu senso deobservação ela representa o espírito interior das mulheres.

A mulher (...)capta as causas, os porquês do que está em volta.(grifo meu) A intuição se autopreserva; é forte e entranha. Temolhos, tem ouvidos que enxergam e ouvem além da capacidadecomum do ser humano. (Estés, 1994, p.117.)

A intuição, segundo Estés, é o instrumento de adivi-nhação da mulher. Portanto, penso que esta dádivaseja a benfeitora de todas as mulheres fortes, lutadoras,carismáticas-pintoras, escritoras, escultoras, dançarinas,pensadoras, rezadeiras... Assim, este dom é a capaci-dade de captar as causas, os porquês do que está em volta,que a estudiosa cita acima. Dessa forma, a mulhertreinada é observadora, sente e apreende, atraindo aatenção, incomodando posturas hegemônicas, uma vezque tal comportamento é verificado em análises atravésdos tempos, por exemplo, nas reações da IgrejaMedieval, que perseguiu aquelas mulheres que apre-sentaram essa percepção e combateram-nas. Então, a

27 MELLO E SOUZA, Laura. Afeitiçaria na Europa Moderna.São Paulo: Ática, 1987.

28 Vasalisa é uma boneca noscontos da Rússia, da Romê-nia, da Iugoslávia, etc, quetraz uma característica psí-quica antiqüíssima acercado poder instintivo básicoda mulher força, a mulherinstinto. Mulheres que corremcom os lobos. (Éstes, p.100.)

Page 11: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Rosane Ribeiro Borges

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 23

intuição é endeusada, odiada, respeitada, danada,porque consegue apreender o que está em sua volta,isto é, o animal irracional possui uma espécie de sensore a mulher desenvolveu sua habilidade sensorialintuitiva e a usa com maestria.

Jules Michelet,29 no livro A mulher, indaga a ummestre:

Supondo-se a ciência igual, qual será o melhor médico?Aquele que ama mais! — Reponde-lhe o mestre

Esta convicção induziu Michelet a uma afirmativa:

A mulher é o verdadeiro médico.(...) Ela o é entre todos os povos bárbaros. Entre eles, a mulher éque sabe os segredos das plantas medicinais, aplica-as. Aconteceuo mesmo entre os povos não bárbaros, de alta civilização.

Em que lugar esteve ou está presente essa mulher?Onde encontrá-la? Segundo a psicóloga Estés, estamulher está nos lugares comuns no mundo dos ho-mens: — ela vive nas grandes ou pequenas cidades,nas vilas, nos guetos, está nas universidades, nas ruas,nas salas de reuniões, nas fábricas, nos presídios, nocomércio (...) independente de seu estilo.

No que tange às naturezas de observação e pers-picácia estas podem ter sido acumuladas a partir deantigas práticas de vida, tornando-se inerentes às vivên-cias e repassadas através das memórias residuais, asquais provavelmente são vestígios do inconscientecoletivo, que para Michel Vovelli, são reflexos inconscientesde representações enraizadas.

Desse modo, analisando ainda outros trabalhos so-bre o chamado Dom, ou Dádiva Feminina, encontro naspesquisas da historiadora e antropóloga Jamie Sams30,um estudo acerca de fatos do quotidiano dos índiosnorte-americanos, da Tribo Dois Mundos, em que asmulheres deste grupo não necessitavam provar forçafísica para serem aceitas como especiais entre os

29 MICHELET, Jules. A mulher. SãoPaulo: Martins Fontes, 1995,p.306-307.

30 JAIMIE, Sama. As cartas do Ca-minho Sagrado. Rio de Janei-ro: Rocco, 2000.

Page 12: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

24 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

guerreiros, pois eram reconhecidas como possuidorasde uma sabedoria particular:

elas não tinham necessidade de suportar os rigores de força físicapara conseguirem adquirir mais Visão. As mulheres são Mães daForça Criativa do Universo e recebem naturalmente as mensagensdos seus Guias de Cura. (Sams, p.244.)

No trabalho organizado por Paulo Henrique Mar-tins, A Dádiva entre os modernos31, este pesquisadorapresenta uma coletânea de estudos do grupo do Movi-mento M.A.U.S.S.32, onde é exposto questões sobredádiva e dom, cujos preceitos são analisados nos para-digmas sociológicos e na sua função “classificadora, identi-ficadora, e circulatória”.33 (Aldo Haesler, p.139.)

Na lógica do movimento criado por Marcel Mauss,

“Dar é dar-se. Ao dar-se a si mesmo torna-se o dom”.“O discurso da Graça inscreve-se no Dom” (p.187.)“de graça recebestes de graça deveis dar!” (Mt 10,8)

A definição sociológica de Dádiva é sintetizada porAlain Caillé34 como:

“Qualquer prestação de bens ou serviços efetuada sem garantia deretorno, tendo em vista a criação, manutenção ou regeneração dovínculo social. Na relação de Dádiva, o vínculo é mais importantedo que o bem” (grifo meu) (A Dádiva, p.192.)

Numa definição geral este autor propõe que adádiva:

“é toda ação ou prestação efetuada sem expectativa, garantia oucerteza de retorno; por esse fato, comporta uma dimensão de‘gratuidade’” (p.192.)

A primeira descoberta da dádiva teria sido de for-ma empírica num estudo nas sociedades arcaicas em

31 MATINS, Op. cit.

32 Idem.

33 HAESLER, Aldo. A demons-tração pela Dádiva. Abor-dagens filosóficas e socio-lógicas. In: A Dádiva entre osModernos, Op. cit., p. 137-160.

34 CAILLÉ, Alain. Op. Cit.

Page 13: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Rosane Ribeiro Borges

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 25

que, segundo Marcel Mauss, havia a tripla obrigação,isto é, dar, receber, e retribuir, mas, percebe-se através deanálise de fontes documentais variadas que seria super-ficial considerar o referido dom como sendo umacaracterística somente de sociedades arcaicas de espí-rito comunitário, ou, mais primário ainda, concordarcom o senso comum, de que dádiva é somente o quejá está dito; ou seja, base de antigas civilizações. Outroaspecto pertinente na observação deste paradigma seriao da não aceitação (por algumas linhas de estudo),das compatibilidades do sistema da Dádiva com omodelo pós-moderno, sugerindo às vezes uma utopianum mundo industrial eternamente arraigado ao eco-nômico.

“A tentativa de demonstrar que o social tem regraspróprias não redutíveis às dimensões estatal e mercantilparece-nos uma das contribuições cruciais dessa escolaantiutilitarista para o pensamento crítico em sociedadescomo a brasileira”, segundo Paulo Henrique Martins.Portanto, a dádiva entre os modernos, é um debateque está posto nas Ciências Sociais, como forma deprática da ação social , cujas lógicas não obedece àseconômicas, e sim a da doação, confiança e solida-riedade.

Assim o dar, receber, retribuir constituiu-se nassociedades arcaicas mas continua como um dos fenô-menos da sociedade atual:

“A sociedade se funda, sobretudo na ambivalência da reciprocidade:existe o interesse, mas também o desinteresse, o contrato e o vín-culo espontâneo, o pago e o gratuito. Pelo interesse utilitarista,dizem os maussianos, funda-se uma empresa comercial, mas nãohá o vinculo social. E, no sentido contrário, pelo desinteresse es-pontâneo se fazem amigos, casamentos, etc. (...) mas não a economiade mercado ou Estado.” (Paulo Henrique Martins, p.12.)

Cabe ressaltar que em pesquisa de campo realizadaem Ituiutaba–MG, onde trabalhei com dez (10) benze-deiras em depoimentos orais, quando indagava Como

Page 14: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

26 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

tudo começou...? Os motivos que a levaram ser benzedeira ? Umofício sem lucros, sem regalias e, como eu própria já havia obser-vado, sem hora pré-estabelecida para a prática. Colhi expli-cações similares entre elas. Vejamos Dona Marzira35:

Não,... não acho que é iscoiê caminho... eu acho que muitas coisasjá vem nascido... com aquele dom, né? Aquela cruz... aquela...aquele destino que você tem que cumpri... então... bate na suaporta (...) eu acho que é assim... pela... natureza da gente, a gentevem... pela nascença da gente mesmo... A gente já nasce comaquela força, aquela intuição...Deus disse: ajuda o que tá em vorta de ti que eu te ajudarei, né?As benzedêras...Deus deixou um Dom (grifo meu) para essas pessoas; dom dacura. Um Dom divino para as pessoas de coração bão, pra podêajudá. Porque a gente tem que tá preparado pra ajudá o outro... apessoa recebe aquela graça. (...)Tem aqueles próprio pra benzê (...) aquelas mãos ungidas porDeus.

Ou ainda:

Deus disse:Ajuda o que tá em vorta de ti que eu te ajudarei, né?Deus deixou (...) um Dom divino para as pessoas de coração bão(...) Porque a gente tem que tá preparado pra ajudá o outro.

Ao analisar estas expressões observo que nelas háuma forma implícita de dizer que o dom existe guardado,e deve ser desenvolvido, ou treinado, numa decisãoespontânea já que não existe interesses econômicosenvolvidos no ato de benzer.

Outro exemplo relevante é o de D. Sebastiana II36. Estasenhora explica que era minina e já acudia as mulher noparto... e por ser criança, não lhe era permitido entrarno quarto da parturiente:

Ficava de fora, na porta para ajudar...

35 Dona Marzira tem 67 anos.Benzedeira de adulto e cri-ança. Receita chás de ervas,ungüentos... Benze há 22anos.

36 D. Sebastiana II. Sessentaanos. Benze adultos e crian-ças e foi parteira muitosanos. Receita chás, xaropes...Ituiutaba.

Page 15: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Rosane Ribeiro Borges

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 27

Lá onde eu morava, as mulher morria muito de parto, lá na beirado Paranaiba... então tavam passando mal pra ganhar nenem, melevava lá (...) dava uma vasilhinha pra mim, eu fazia o remédio...As outra vinha, pegava na porta o paninho com o remédio meu eia lá e passava na barriga dela.(...) Ai tudo começouDaí por diante eu passei por assistente (parteira) também, sabe?Eu agora rezo, faço xarope pra curá bronquite... parei de fazêparto. Tenho a capelinha... todo mundo vem — Domingo, 5horas cumeça chegá gente...37

D. Maria38 fala que foi escolhida:

Eu tinha. a minha sogra, ela benzia. Aí ela falou:‘Maria, Deus tá perto de me chamá, você vai ficá encarregadadessa missão’.

Aí eu falei, ô Dona Badia, eu nunca benzí.

‘Deus te ensina’.

Aí veio aquela... Aí eu comecei (...) fui recebendoaquele dom.39

Dona Marzira40 fala como foi escolhida:

Minha vó era benzedeira e parteira... Minha mãe também... Numaprendí com minha vó nem com minha mãe porque elas nunca tevepaciência... na gente, né? ... mas eu acho que foi assim... porque eunasci,... num foi pra aprendê cum famia... eu acho que já vemassim... se fosse pra aprendê cum famia minha... eu tinha aprendidocom minha vó... minha mãe, cuma tia, que sabia muita coisatambém... Eu fui aprendê com a “veinha”.41

Dona Marzira acredita ser seu caminho de aprendizdiferente do usual pois dá explicações do porquê denão ter sido iniciada com a família. Percebo que acorrente continua com os elos ligados em mulheres,mas que pode haver escolhas independentes dos laços

37 Sebastiana II. Op. cit.

38 D. Maria. Setenta anos. Ben-zedeira de adultos e criança,já foi parteira, ensina por-ções. Benze há trinta anos.Ituiutaba.

39 Dona Maria. Idem.

40 Dona Marzira. Op. cit.

41 Dona Marzira. Ib.id. cita a“veinha” como sendo umasenhora benzedeira muitovelhinha, que a ensinoubenzer. Observação: procu-rei por esta senhora. Já haviamorrido; velhinha... quasecega e... benzendo sempreaté seu fim.

Page 16: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

28 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

familiares. Parece haver na escolha da benzedeira ini-ciadora, algo que indica-lhe caminho, não sendo necessa-riamente de mãe, filha... de laços consangüíneos. Tam-bém isto foi perceptível numa análise à iniciação deDona Maria42, que diz ter sido através da sogra.43

Dona Jeza44 me disse que seu aprendizado foi com aDona Maria da Água Santa! 45 Percebo novamente aqui,um aprendizado feito fora dos laços familiares, e, nestecaso, numa escolha onde uma mulher não conhecia aoutra anteriormente, sugerindo-me crer que iniciadorae iniciada, aproximaram-se como “recipiendários nos quaisprovocou eco” e, numa análise em diálogo de D. Graeber46

e Alain Caillé,47 concordo com o anteriormente apre-endido: “os dons e a amizade intelectual circulam através dotempo e dos oceanos.”

É compreensível dár o que se recebeu de graça. Nãoimporta quem deu o quê a quem. O que importa é arelação que se estabelece entre as pessoas.

Enfim, os depoimentos de D. Marzira, D. Maria,D. Sebastiana (I e II), D. Jeza, representam a correntedo dar, aceitar e retribuir (...) reconhecida e presente nopensamento do grupo M.A.U.S.S. como na obra domaussiano, Camille Tarot48:

A dádiva impõe-se aos homens, fixa soberanamente os papéis dedoador e donatário, além de criar, ao metamorfoseá-los em agentesde troca, o vínculo social. A dádiva não é uma escolha, mas umaobrigação; não é apenas um fato , mas um dever; não é apenas umgesto, mas uma estrutura que contém e organiza seus elementos.(...)Por último, a dádiva tem poder de absorver tudo, muito além dosbens materiais (p.162.)

Entendo que o dom de benzeções praticadas pormulheres, pode realmente estar no exercício intuitivo,podendo ser desenvolvido ou não, mas quando esti-mulado pode ser reconhecido como um “ dom” —um bem próprio.

Pode também ser reconhecido como o dom dadádiva, segundo a argumentação maussiana onde ele

42 Dona Maria. Op. cit.43 A sogra de Dona Maria, ti-

nha outras filhas, e nenhu-ma se tornou benzedeira.

44 Dona Jeza. Sessenta e quatroanos, mulata, viúva. Iniciou-se na idade de mocinha.

45 Dona Maria da Água Santa.Uma senhora ajudante naIgreja da cidade de ÀguaSanta.

46 A sogra de Dona Maria, ti-nha outras filhas, e nenhu-ma se tornou benzedeira.Novamente uma mulher.Criadas em regiões diferen-tes e que não se conheciamanteriormente.

47 GRAEBER, David. Op. cit.

48 TAROT, Camille. Pistas parauma História do Nascimen-to da Graça. In: Dádiva entreos modernos, op. cit., p.161-190.

Page 17: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Rosane Ribeiro Borges

Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005 29

(dom), é o que faz a circulação da dádiva, aquela que,ao ser praticada, possibilitará o vínculo social, e quenão representa um modelo de equivalências pois nãohá troca mediante retribuição (pode haver retribuiçãoàs vezes, mas não é o fim perseguido).

Pode ser o dom que a psicologia junguiana estudacomo a herança dos ancestrais do inconsciente coletivo

O dom reconhecido por Estes49, o que está incor-porado na psique feminina, e que se estimulado passaa ser uma ferramenta psíquica da mulher tornandoseu instrumento de adivinhação, sua capacidade agu-çada. Reconhecido pela estudiosa como o “arquétipoda mulher selvagem”.

Vale ressaltar, portanto, que o dom da dádiva de-senvolvido e retribuído em forma das benzeduras pormulheres na atualidade, não segue o modelo do homooeconomicus — que produz para acumular, e sim repre-senta o modelo do homo donatus — que produz paradar. Os parceiros do dom, valorizam o prazer da dá-diva, diferente do modelo mercantil.

As mulheres benzedeiras, às vezes conectadas aonível do profano, são extremamente sensíveis e extra-ordinariamente capazes pois exercitam sua intuição.Possuem o desprendimento em aceitar a dádiva dodom, retribuindo-o com a força dos desejos de suasrezas, rogas dirigidas àqueles que necessitam de suaforça.

Assim, as ponderações arroladas neste trabalho de-monstram que, felizmente na sociedade vigente, aspessoas dispensam, novamente, um reconhecido trata-mento a essas mulheres especiais que têm nomes de:Sebastianas (I e II), Maria, Josefa, Marzira, Aparecida...50

Nos séculos da “ caça às bruxas” chamaram, maléfi-camente: Baba Yaga (mulher bruxa); Hille Bobbe — “ ABruxa de Haarlen”.51

No Brasil Colônia: Brites Marques, Maria Padilha,Gerônima Gonzalez, Celestina, Maria Molambo, MariaCalha...52

Na Bíblia, sempre indicando importante papeis não

49 ÉSTES, Clarissa Pinkola. Op.cit.

50 Nomes próprios verídicos,colhidos em entrevistas o-rais, de benzedeiras da cida-de de Ituiutaba-MG.

51 BOBBE, Hille. A bruxa deHaarlen. Pintura do artistaFrans Hals Séc. XVIII.

52 Os nomes próprios foramcolhidos em fontes deconstruções historiográfi-cas, iconográficas, e literá-rias.

Page 18: Deusa Mae Natureza Bruxa Dom de Ser Mulher

Deusa, Mãe-Natureza, Bruxa, Feiticeira, Benzedeira, “Dom de ser mulher”?

30 Caderno Espaço Feminino, v.13, n.16, Jan./Jun. 2005

só na vida familiar, social, econômica, política ereligiosa, os nomes das heroínas, profetisa, adivinhasforam: Sara, Rebeca, Jael, Judite, Ester, Miriam, Ulda,Débora...53

A partir desse artigo deixo minhas consideraçõespara que sirva como instrumento de provocação aleitores interessados, e estudiosos(as) dispostos(as) abuscas de novos paradigmas, de novos caminhos queauxiliem a um entendimento mais amplo da mulherque benze — estas, cujas práticas não se explicam soba forma de mercado, do “toma lá dá cá” mas, sob umoutro modelo, que também não é o caritativo —encaixando mais , no modelo que Marcel Mauss chamade tripla obrigação: dar, receber, e retribuir — que éo movimento da dádiva.

53 Nomes próprios consulta-dos na Bíblia onde muitosaparecem como tendo sidode adivinhas e profetizas.Também na Bíblia a mu-lher aparece como possui-dora do dom da profeciavigorando esse pensamen-to em todos os tempos ar-caicos: no paganismo, ju-daísmo e no cristianismo.A Mulher trazendo em suaessência a idéia de matriz,era eleita para espairar o amensagem divina.